Antropologia e Direito Aproximacoes Nece
Antropologia e Direito Aproximacoes Nece
Antropologia e Direito Aproximacoes Nece
E DIREITO
APROXIMAÇÕES NECESSÁRIAS
ANTROPOLOGIA
E DIREITO
APROXIMAÇÕES NECESSÁRIAS
Organização:
Recife
2020
Universidade Federal de Pernambuco
Créditos:
Capa: Edufpe
http://www.ufpe.br/ppga
E-mail: [email protected]
Na internet:
www.ufpe.br/depantropologia
www.ufpe.br/ppga
Catalogação na fonte:
Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408
Vários autores.
Inclui referências.
ISBN 978-65-86732-25-2 (broch.)
Prefácio: 9
Antropologia e Direito em contexto de lesa-democracia:
aproximações necessárias
Antonio Motta
Introdução 17
Mônica Gusmão & Vânia Fialho
Os autores 275
Lista das fotos e figuras
Antropologia e Direito
em contexto de lesa-democracia:
aproximações necessárias
Antonio Motta
9
Prefácio
indivíduos, em sua diversidade social e não apenas étnica,
tornaram-se sujeitos produtores do social e, portanto,
protagonistas de mudanças na cena política.
10
Antropologia e Direito em contexto de lesa-democracia
que a velha dogmática jurídica até então havia rigidamente
delimitado, encerrando-a em sua própria lógica normativa de
compreensão da realidade. Uma prova disso é a publicação, em
2012, da coletânea Antropologia & Direito: temas antropológicos
para estudos jurídicos, sob coordenação geral de Antonio Carlos
de Souza Lima, contando com a participação de vários outros
antropólogos e antropólogas na confecção de diferentes eixos
temáticos.
11
Prefácio
sociais junto ao Estado e seus governos. Alguns antropólogos e
antropólogas, ao perceberem a importância desse momento na
vida pública do país, tornaram-se mediadores no processo de
interlocução junto à Assembleia Constituinte, particularmente
no campo dos chamados direitos diferenciados: de indígenas,
de quilombolas, de afrodescendentes, de populações
tradicionais, entre outros. Depois da promulgação da Carta
de 1988, muitos antropólogos e antropólogas passaram a se
dedicar à promoção e à defesa dos direitos conquistados pelas
minorias étnicas e grupos urbanos subalternizados na esfera
pública, ao mesmo tempo em que reforçaram ainda mais suas
pesquisas e reflexões no campo da antropologia jurídica.
12
Antropologia e Direito em contexto de lesa-democracia
durante o processo de redemocratização do país e se tornaram
porta-vozes das reivindicações de indígenas, de negros, de
afrodescendentes, de quilombolas, de populações rurais, de
“sem-terra”, de jovens de periferia, de mulheres, de lésbicas,
de gays, de transexuais, de travestis, de moradores de rua,
entre outras minorias.
13
Prefácio
indígenas e quilombolas e o fazer antropológico foram
igualmente colocados em alvo.
14
Antropologia e Direito em contexto de lesa-democracia
descrito e uma prova irrefutável de que a antropologia tem
muito a contribuir no diálogo com o direito, especialmente
no cenário atual em que se constroem contra-narrativas aos
direitos fundamentais, assegurados na Constituição de 1988.
A capacidade analítica e os modos de olhar dos autores
e autoras desta coletânea permitiram-lhes adentrar por
veredas temáticas instigantes, a partir de diferentes tipos de
experiências situadas no campo do direito e da antropologia.
Contudo, o mérito do livro e o maior desafio dessa empreitada
é não perder o fio da meada: quando a lógica jurídica se exaure
em seus próprios limites de entendimento e de aplicabilidade,
a antropologia é capaz de ampliar novos horizontes e tornar
esse diálogo bem mais desafiador.
15
Prefácio
Referências bibliográficas
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto; GROSSI, Miriam Pilar;
RIBEIRO, Gustavo Lins. Apresentação. In: SOUZA LIMA,
Antônio Carlos de (coord. geral). Antropologia & direito:
temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de Janeiro/
Brasília: Contra Capa/LACED/ABA, 2012, p. 11-15.
RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge, MA: The Belknap
Press of Harvard University Press, 1971.
SOUZA LIMA, Antônio Carlos de (coord. geral). Antropologia &
direito: temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de
Janeiro/ Brasília: Contra Capa/LACED/ABA, 2012.
***
16
INTRODUÇÃO
Mônica Gusmão & Vânia Fialho
17
Introdução
objetivo integrar o estudante no campo, estabelecendo
as relações do Direito com outras áreas do saber,
abrangendo dentre outros, estudos que envolvam
conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência
Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia
e Sociologia. (RESOLUÇÃO CNE/CES N° 9, 2004)
[grifos nossos].
18
Mônica Gusmão & Vânia Fialho
e o Direito: a ressonância da argumentação antropológica em ações
envolvendo grupos indígenas no Nordeste brasileiro, publicado
nos anais da 26ª Reunião Brasileira de Antropologia e do
VI Congreso de la Red Latinoamericana de Antropología
Jurídica, em 2008.2 O trabalho problematizou o campo de
poder discursivo entre a antropologia e o direito, tendo em
vista processos judiciais de demarcações de terras indígenas e
ações criminais envolvendo indígenas, onde foram analisados
os argumentos antropológicos e jurídicos nos laudos e nas
sentenças judiciais, quando um profissional de cada disciplina
se dirigia ao outro, ou seja, perito falando para o julgador e
juiz traduzindo a fala do antropólogo para o “juridiquês”,
quando lhe convinha. São situações em que o argumento
antropológico foi formalmente incorporado e que nos levou
a refletir sobre os princípios da ética que regem distintamente
os dois campos de conhecimento e de atuação profissional e
as diferentes formas de construção de saberes. Nessa direção,
poderíamos ampliar a pesquisa para analisar mais processos
judicias, onde se faz necessária a perícia antropológica, a fim
de flagrarmos a relação dialógica na prática do antropólogo
e do jurista. Infelizmente é um projeto que tivemos que adiar
por enquanto.
19
Introdução
capazes de direcionar ações afirmativas em defesa de grupos
sociais culturalmente diversificados e, na maioria das vezes,
em situação de vulnerabilidade em relação à sociedade
hegemônica. Portanto, a construção do diálogo interdisciplinar
no trato da emergência dos povos indígenas, no reconhecimento
de direitos ancestrais, na memória cultural, no pluralismo
jurídico, na emergência de espaços de “governança” em meios
urbanos e rurais, no direito das minorias sexuais, entre outros,
mas, sobretudo, no momento histórico que estamos vivendo
de ameaça aos direitos fundamentais, tudo isso se tornou um
grande desafio da antropologia atual brasileira.
20
Mônica Gusmão & Vânia Fialho
se debruça sobre o que ele chama de “olhar pluralizado da
antropologia”; sobre a autoridade do argumento e o argumento
da autoridade nas decisões dos desembargadores da citada
corte de justiça. Segundo o autor, a performance da toga realça
não só os aspectos estéticos dos atores sociais, mas também
revela as estratégias do grupo, de acordo com suas origens,
tradição, memória e identidade. O terceiro texto, Paradigmas
Antropológicos na Constituição e Formação do Sujeito Policial
Militar de Pernambuco, apesar de não tratar de um ambiente
tipicamente jurídico, analisa um setor responsável pelo
patrulhamento ostensivo e preservação da ordem pública3.
Num ambiente de suma importância para a pesquisa
antropológica e para o campo jurídico, o autor Cristiano José
Galvão Faria, que também é policial militar, contribui com
esta coletânea na medida em que estende o diálogo através de
uma etnografia realizada no Centro de Ensino Metropolitano
da Polícia Militar de Pernambuco, onde aborda a formação
do sujeito policial, o qual, como o autor alega, “é reconhecido
socialmente como principal aparato estatal legalizado a
exercer a repressão social”.
21
Introdução
para realçar que conceitos de ‘direito’, ‘justiça tradicional’ e
‘justiça’ são simples demais para responder às complexidades
das práticas sociais na atualidade.
22
Mônica Gusmão & Vânia Fialho
após o crime, “Fogo” na Justiça: o julgamento do caso Galdino
lembra a impunidade no Brasil e questiona sobre a efetivação
dos preceitos constitucionais de igualdade, cidadania
e democracia, chamando atenção para “as categorias
usualmente estigmatizadas, como índios e mendigos”. Os
autores fazem uma exegese da sentença, considerando que o
argumento foi desenvolvido através de um discurso indutivo
para descaracterizar o dolo eventual do crime. É importante
frisar que a questão do julgamento dos assassinos do índio
Galdino abre um abismo no sentido de entendimento de Justiça
(no sentido de justeza) para antropólogos e para a sociedade
mais ampla, bem como no sentido de Justiça (aplicação da lei
ao caso concreto) para o campo do direito, quando diversos
artifícios jurídicos são utilizados para suavizar a pena dos
jovens pertencentes à classe social privilegiada, encobrindo a
perversidade de um crime hediondo tão evidente, posto à vista
de toda sociedade. No entanto, embora possa constituir uma
minoria, é prudente afirmar que, mesmo no campo do direito
e a despeito da “razão” jurídica, há juristas que entendem
diferente da forma como o caso Galdino foi julgado e também
se revestem de sentimento de indignação diante da crueldade
do crime seguido de impunidade.
23
Introdução
Os textos apresentados nesta coletânea somam-se aos
incontáveis outros que trabalham na interdisciplinaridade, tanto
no campo do direito, abordando temas caros à antropologia,
quanto no campo antropológico, tratando questões dantes
monopolizadas pelo campo do direito. Cremos que o mais
importante é falarmos, refletirmos, dialogarmos, uma vez que
teremos que conviver juntos, como ossos do ofício ou como
oportunidades epistemológicas. Torna-se importante, enfim,
pensarmos na possibilidade de um encontro onde, quem
sabe um dia, os diálogos possam se comunicar na perspectiva
habermasiana, semeando bons frutos no solo da comunidade
científica e da sociedade brasileira: a escolha é nossa!
24
O que um antropólogo
pode dizer para o Direito?
Uma etnografia do não diálogo
Luiz E. Abreu
Comentários introdutórios
Neste texto vou examinar a seguinte questão: como
os mecanismos sociológicos que operam dentro do campo
jurídico, e num certo sentido o conformam, influenciam as
possibilidades do diálogo que outros saberes são capazes de
estabelecer com o direito. Vou examiná-la a partir da minha
experiência de 18 anos (de 1997 a 2014) em uma faculdade
privada em Brasília, abordada como um relato etnográfico.
Para me referir à instituição, vou simplesmente escrever “a
Faculdade”, com maiúscula, para diferenciar do uso eventual e
genérico da palavra, mesmo sabendo que o leitor mais curioso
não teria dificuldades muito grandes em desvelar o mistério.
Embora esse anonimato um tanto artificial levante questões
teóricas e éticas importantes (vide a discussão em Bevilaqua,
2003), faço-o pelo escrúpulo de achar que há uma diferença
qualitativa entre explicitar nomes, lugares e instituições e
deixar ao leitor a dificuldade (independente do seu grau) de
descobrir de quem se fala.
25
Luiz E. Abreu
vez, decorre de um determinado lugar de origem. Na maioria
dos saberes, o ensino e o campo profissional demarcam espaços
bem diferentes de atuação e estariam, portanto, organizados
de maneiras distintas. Este é o caso das ciências sociais. A
distinção entre academia e campo de atuação profissional é,
portanto, constitutivo da maneira como os cientistas sociais
percebem os seus possíveis lugares de fala. No caso do direito
brasileiro, a separação não é muito nítida. E mais, a Faculdade
representa um caso muito particular desta relação, no sentido
de que a presença do campo se apresenta imediatamente ao
olhar etnográfico. Em parte, isso foi o resultado do seu, até
hoje, mais importante diretor, um ativo membro da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), em Brasília. A aproximação
servia a todos os envolvidos. Da parte daqueles ligados à
Ordem, um curso que forma por ano tantos alunos quanto
o faz a Faculdade, representa um enorme potencial eleitoral.
A razão disso é que os advogados recém-formados têm a
tendência de votar naqueles que foram seus professores. A
tendência é ainda mais forte durante os primeiros anos de
profissão, quando o advogado, geralmente, ainda não criou
redes vinculadas aos seus interesses mais especializados. À
administração superior da instituição, por sua vez, também
interessava a proximidade com a OAB, porque se imaginava que ela
atrairia mais alunos para o curso. No início de 2008, envolvido em um
escândalo, o então diretor viu sua posição na Faculdade insustentável
e pediu exoneração. No período posterior, a administração
superior adotou a política de desvincular o curso da OAB. Mas,
ao mesmo tempo, continuou com a prática, antiga, de trazer
para a Faculdade pessoas que ocupam cargos importantes
nas carreiras jurídicas, como, por exemplo, ministros e ex-
ministros dos tribunais mais importantes. Esses usualmente se
vinculavam à pós-graduação lato sensu; entre eles, aqueles com
vocação e doutorado, ao programa de mestrado e doutorado.
26
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
Há também outras razões para a proximidade estreita entre
o curso de direito e o campo jurídico. Até 2008, o mecanismo
de contratação para a Faculdade era baseado, sobretudo, na
indicação de professores que já pertenciam ao quadro. Com
isso não quero dizer que as contratações só aconteciam por
indicação; e, sim, que este era o mecanismo o mais usual.
Evidentemente, ser apresentado por um professor à direção
ou à coordenação do curso (de preferência aos dois) não era
garantia de ter seu pleito atendido. Havia que se levarem em
consideração as necessidades da Faculdade (quais disciplinas
estariam disponíveis naquele semestre, por exemplo), a
opinião dos outros professores (não era bem visto dar tempo
integral para um professor recém-chegado), a posição do
demandante no campo (muito mais fácil seria contratar um
desembargador que um bacharel recém-formado) etc. Mas
o efeito global era duplo: tornava a participação no corpo
docente do curso atrativa, visto que estar na Faculdade dava
ao professor o acesso a uma network que, sozinho, talvez ele
demorasse anos para construir; e, ao mesmo tempo, reforçava
as redes presentes na Faculdade. Some-se a isso o fato de que
a indicação era um favor que deixava o professor em dívida
com aquele que o indicou, dívida que suponho repercutisse
nas atividades profissionais. E até 2003, prevaleceu a ideia de
que o cargo advindo de um concurso público ou a nomeação
para a segunda instância ou um tribunal superior equivaleria
a um título acadêmico. Da mesma forma, bons advogados,
promotores e juízes eram imaginados como bons professores.
Havia também um argumento de mercado: imaginava-se
— talvez por bons motivos — que, se um curso tivesse uma
quantidade maior de professores que fossem ou juristas
de renome na capital ou exercessem alguma das carreiras
nobres do judiciário, ele seria mais sedutor para os alunos.
Como resultado, a sala de professores, os horários do café
e os intervalos aflitos entre as aulas, as tensões e os olhares
27
Luiz E. Abreu
aparentemente distraídos com os quais uns vigiam os outros
reproduzem as intricadas relações do campo jurídico: lá estão
juízes, advogados (novos, antigos, consolidados, abastados),
desembargadores e ministros, promotores, procuradores,
assessores de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)
ou Superior Tribunal de Justiça (STJ), senadores, partidos,
secretários executivos, futuros ministros e outras espécies do
mesmo gênero (enumeração na qual, propositalmente, ignoro
a ordem de precedência). À possível exceção dos mais novos,
esses personagens ganhavam tostões, da sua perspectiva,
mas por ali permanecem anos afora, na sua maioria, por um
diletantismo levado muito a sério — que às vezes nos é difícil
compreender.
28
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
para ter também o doutorado. Fui professor da pós e gestor do
NPM até minha saída da Faculdade.
A ciência do direito
A ideia de que o direito é uma ciência foi um dos grandes
estranhamentos que tive não apenas com meus alunos, mas,
sobretudo com os colegas professores. Ela também se constitui
em um dos diálogos (ou não diálogos) que tive nos anos que
trabalhei no curso de direito. Escolho-a porque, de alguma
maneira, apresenta características mais gerais que permearam
aproximadamente, 1.900 alunos, 450 defesas por semestre, cada defesa frente a
uma banca de três professores.
29
Luiz E. Abreu
estranhamentos e não diálogos com outros. Do ponto de vista
que vou adotar aqui e por razões que — espero — ficarão claras
adiante, a discussão se desdobra em várias situações diferentes,
mesmo em algumas nas quais a palavra “ciência” ou não foi
mencionada ou apenas o foi muito raramente. Porém, antes
de eu falar um pouco mais de como efetivamente a discussão
procedeu durante as várias fases da minha trajetória no curso
de direito, seria importante examinar quais os usos que a
ciência do direito tem no campo.
30
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
de Bourdieu (1986, p. 6), particularmente a competição entre
os professores ou os teóricos do direito e os práticos (dos quais
ele nomeia apenas o juiz) para impor “sua visão do direito e
de sua interpretação”. Segundo Bourdieu, a forma do corpus
jurídico de um campo particular dependeria da força relativa
de cada um destes grupos. Ora, trazendo o argumento para a
discussão de Kelsen, teríamos o seguinte: a ciência do direito,
nos termos deste último, poderia prosperar onde houvesse
um grupo social, professores e pesquisadores universitários,
por exemplo, que fosse capaz de dar à sua atuação um papel
semelhante àquele que Kelsen previa para a ciência do
direito, um grupo que se construísse em oposição ao grupo
daqueles que militam no direito, quer dizer, que atuam em
processos judiciais ou administrativos. Isso não acontece no
caso brasileiro. Não existe a oposição entre pesquisadores
que estão nos cursos de direito e os militantes. As pessoas
que estão nas faculdades como professores do direito são,
muitas delas, juízes ou procuradores ou advogados ou outros
funcionários do Estado. O mesmo fenômeno se repete nos
cursos de mestrado e doutorado. Isso resulta num duplo
processo: a jurisprudência se contamina pelos argumentos
aparentemente científicos e, ao mesmo tempo, a “ciência do
direito” (entre aspas) se olha e se julga pelo olhar da prática.
Várias vezes ouvi, não apenas de alunos de graduação,
comentários feitos a dissertações de mestrado e teses de
doutorado, que o problema do trabalho tinha acabado porque
o Supremo Tribunal Federal tinha decidido a questão. Outra
discussão que seguia a mesma linha era a de saber se um
trabalho acadêmico poderia problematizar uma decisão já
tomada pela jurisprudência do Supremo.
31
Luiz E. Abreu
um voto, ele pode querer dizer, por exemplo, que o argumento
para decidir a causa vem do direito ele mesmo, que não se
deixa contaminar por algo que lhe seja externo. Neste sentido,
usa-se a ciência do direito como um argumento de autoridade
para pôr um fim à multiplicidade e pluralidade que uma causa
necessariamente movimenta. Dito de outro jeito, o direito
enquanto ciência quer dizer, na hipótese acima, a imposição
da unidade sobre a multiplicação dos pontos de vista e das
posições. A expressão também tem seu lugar nos manuais de
direito. Faz parte dos argumentos introdutórios, mas logo
desaparece nas discussões sobre a interpretação específica dos
artigos do código (qualquer que seja ele). Ele também aparece
nos livros de teoria do direito, dizendo algo como “o direito
é uma ciência e uma arte”, proposição em tudo contraditória,
mas que, se se a percebe em relação às condições objetivas
do exercício do direito, ela procura abarcar a contradição
objetiva em que vivem os seus operadores: por um lado, eles
sentem a necessidade de afirmar a cientificidade do direito,
que, neste contexto, quer dizer sua equidistância dos outros
saberes e das coisas do mundo; por outro, como prática, o
exercício do direito abre caminho para as estratégias mais ou
menos criativas, de acordo com a conveniência daquilo que se
defende: se a jurisprudência lhe favorece, não convém inovar,
basta manter-se do lado do que já foi decidido; caso contrário,
é preciso encontrar, nos intricados meandros do processo,
algo que permita sustentar uma posição favorável à causa; se
o direito é bom, mas contrário à jurisprudência (o que parece
contraditório), então é preciso encontrar uma maneira de ou
retirar o caso da vala comum, defendendo uma especificidade
que o faça ser julgado em separado, ou encontrar um argumento
inusitado que tenha alguma probabilidade de convencer o
juiz e, quem sabe, até mudar a jurisprudência. Dizer que o
direito é, simultaneamente, ciência e arte é uma maneira de
abarcar estas duas “necessidades” que o constituem enquanto
32
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
tal: equidistância (das partes), imparcialidade, distância (de
outras considerações que não sejam as do direito), por um
lado; por outro, conflito, imersão, construção de estratégias,
criatividade.
33
Luiz E. Abreu
lesada tem direito a uma indenezação; não havendo erro, ela
não o tem. O problema é, claro, que não existe maneira simples
de se chegar a essa conclusão. É óbvio que, neste caso, devido
à especialidade do saber médico, dos seus procedimentos
e do risco que qualquer procedimento envolve, é preciso
recorrer a um especialista ou ao “perito” (como se o nomeia
no processo). No fundo, é o especialista (provavelmente
outro médico) que vai poder dizer se houve ou não erro a
partir do seu conhecimento do estado da arte da medicina
naquele campo específico. Mas isso coloca problemas para
a percepção de certo senso comum dos juristas à brasileira.
E o problema é fácil de enunciar: se a decisão depende do
veredicto do especialista, como continuar sustentando que é o
juiz quem decide a causa? O juiz não é, em geral, um médico,
tampouco conhece os meandros desse saber a ponto de ser
capaz de discutir com o especialista (o que levanta para os
juristas toda uma discussão sobre a conveniência ou não de
ter juízes tão especializados). A alternativa é deixar às partes
essa tarefa: o juiz espera que a parte contrária seja capaz de
refutar as conclusões do especialista (com o auxílio de outros
especialistas, evidentemente). Na prática, portanto, cria-
se uma zona cinzenta de fatos e versões sobre os fatos que
permitem ao juiz certa latitude. Ele então decide baseado
no embate dos diferentes argumentos. Mas, se, na prática, o
contraditório resolve o dilema, ele continua a colocar-se no
plano da reflexão. É possível, claro, argumentar que o “livre
convencimento do juiz” lhe permitiria não aceitar o parecer
do técnico e, portanto, é sempre o juiz que decide. A prática,
contudo, caminha na direção contrária: o juiz precisaria de
um argumento muito bom para manter a sua decisão frente
ao tribunal contra aquilo que afirma o especialista, porque
isso seria certamente utilizado contra sua decisão no recurso,
com boas probabilidades de sucesso. Esse exemplo é, como
o apresentei, um caso extremo: ele parte do princípio que é
34
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
possível ter clareza sobre um julgamento dos fatos (ou pelo
menos alguns deles), que não vem do direito (o julgamento
sobre o erro é do especialista) e do qual a decisão do juiz
depende. Seja como for, ele serve para mostrar que, neste
contexto, a ideia de que o direito é uma ciência teria um papel
na relação entre o direito e os outros saberes. Num certo
sentido, está aí contido todo o assunto deste artigo.
35
Luiz E. Abreu
extrair resultados imediatos. Por outra parte, ela é o resultado
das expectativas dos alunos: os cursos de direito são hoje, no
Brasil, cursos para concursos. E essa não é uma característica
exclusiva do mercado profissional de Brasília como sede
do governo federal, mas é um fenômeno generalizado. Não
creio que estes dois pontos esgotem o sentido de utilidade
para os alunos, mas eles me ajudam a apontar o que eram
suas características mais visíveis: útil era aquilo que poderia
ser aplicado no mercado de trabalho (uma angústia que já
começava nos primeiros semestre e ia aumentado com o passar
do tempo), ou seja, no caso deles, no mundo da advocacia; útil
também era o que lhes permitira passar no exame de ordem e,
mais para frente, num concurso. A tragédia — do meu ponto
de vista, bem entendido — é que eles imaginavam que as
habilidades requeridas para passar num concurso lhes seriam
suficientes para o mercado de trabalho. Os concursos todos,
incluindo aí os mais prestigiosos, têm como habilidades centrais
a memorização e a reprodução (as mesmas competências
exigidas, em geral, pelo ensino jurídico, como veremos), e as
suas provas exigem um conhecimento quase enciclopédico da
lei e, em alguns casos, da jurisprudência. A prática no mundo
dos processos, por sua vez, exige do profissional a capacidade
de utilizar o direito em situações novas e inusitadas de
maneira a, por exemplo, convencer o juiz, e as habilidades
necessárias para tanto não são a memorização e a reprodução,
obviamente. Ora, a leitura de textos como os da minha
disciplina pouco ajudavam no dilema: não só porque eles não
caíam em provas de concursos, como também a atitude que
eles exigiam para sua compreensão é contrária àquela que
o candidato precisaria adotar para passar em um concurso.
Embora eu pudesse argumentar (como de fato fiz) que as
habilidades para a prática profissional fossem muito mais
próximas àquelas que o meu curso procurava desenvolver.
Mas o argumento não convencia ninguém. Aliás, um dos
36
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
meus melhores alunos, anos depois desta disciplina, num dos
depoimentos mais emocionantes que ouvi nestes anos todos,
afirmou “filosofia faz mal à saúde”: ou bem ele ignorava
aquilo que as leituras que eu lhe havia sugerido lhe levaram
a pensar ou ele abandonaria o seu projeto de ascensão social.
Evidentemente, levar os dois juntos não era, para ele, uma
alternativa existencial.
37
Luiz E. Abreu
também a dificuldade que Popper tem de recuperar o conceito
de verdade), e por aí afora. Mas isso teve pouco efeito, nos que
foram meus alunos e nos professores que eram os meus mais
próximos interlocutores.
38
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
que o que se diz quer dizer. A fórmula parece obscura mais
decorre diretamente do que foi dito acima. É preciso explicitá-
la, todavia. A discussão, da perspectiva do direito, não é sobre
o enunciado literal da proposição “o direito é uma ciência” e,
portanto, não é solucionável a partir da teoria. Daí a impressão
de que os meus esforços tocavam muito superficialmente no
problema. A discussão dizia respeito, fundamentalmente,
ao direito como modo de vida. Ela, portanto, e em meu
entendimento, movimentou dois mecanismos sociológicos: (a)
a reafirmação constante do estatuto do conhecimento que eles
produzem, ou seja, o que está em jogo é, fundamentalmente,
a relação do direito com aquilo que o cerca (no que interessa
ao argumento deste texto, a sociedade e os outros saberes);
e (b) certa conformação social do debate e do sentido dos
argumentos. Kant de Lima tem apontado com frequência o
caráter escolástico do debate no direito brasileiro que, nas suas
palavras, “funda-se no oferecimento obrigatório de dissensos
infinitos à autoridade de terceiros” (Kant de Lima & Baptista,
2013, p. 12). Algo semelhante se passa no meu relato. Assim,
o diálogo sobre a cientificidade do direito tinha menos
relação com a possibilidade de alcançar o consenso (seja em
quais bases forem) e mais com a tomada de uma posição;
neste contexto, o convencimento significa, sobretudo, uma
adesão política. E disso resulta uma impressão difícil de pôr
em palavras, mas que seria possível, provisoriamente pelo
menos, enunciar da seguinte maneira: tudo se passa como
se o argumento que força o meu assentimento seja percebido
como um ato de força, no limite como uma violação da minha
identidade e da minha vontade. Algo semelhante acontece
com o argumento que me leva ao silêncio, porque, contra ele,
não tenho resposta. O bom debate seria aquele que não me
obriga a consentir, não me impõe o silêncio, mas no qual eu
possa me diferenciar ou aderir conforme a conveniência, o
interesse ou um ato de vontade.
39
Luiz E. Abreu
ii) O NPM, como já disse, fazia a gestão administrativa e
pedagógica do trabalho de conclusão de curso (TTC). A partir
de 2003, eu orientei monografias e, até 2006, também ministrei
a disciplina de projeto (com uma média de 50 alunos por
turma), disciplina que deixei quando assumi a gestão do setor.
Se participar do NPM foi o resultado do fato de eu ser professor
do programa de mestrado, o convite para gerir o setor foi
a consequência de um estado de coisas muito particular na
Faculdade, no qual se misturavam os condicionantes objetivos
de uma certa estrutura social, a estratégia da direção e as
regras de funcionamento do campo.
40
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
dos cursos de direito, e a direção da Faculdade percebia
claramente que o resultado seria o fortalecimento de critérios
que exigissem uma titulação mais robusta do corpo docente.
Mas também havia aí certa sabedoria prática. Digo isso porque
toda mudança é um problema sociológico, visto que requer e
promove a alteração nas práticas, no equilíbrio relativo entre
os grupos e na distribuição do capital simbólico. Mas, antes de
ser reconhecida como um fato inevitável de forças sociais que
estão para além da ação dos indivíduos, ela é, para os agentes,
apenas — e na melhor das hipóteses — uma tênue e arriscada
possibilidade. É possível intuir a direção, mas não é possível
ter certeza dos caminhos. Desta perspectiva, o equilíbrio entre
os dois grupos oferecia uma solução prudente que permitiria à
instituição tomar um ou outro rumo, conforme a relação entre
os ventos e o seu interesse. E se, da perspectiva do status quo,
o pior acontecesse e a mudança fosse inevitável, a dinâmica
dos dois grupos arrefeceria seu ímpeto, diminuir-lhe-ia a
velocidade, dando à administração e ao corpo dos professores
tempo para se adaptar. Assim, quando do convite, o diretor
me disse que: “até mesmo pelo seu perfil, sabemos com quem
você vai naturalmente se aliar”. Novamente, eu estava no
lugar certo na hora de necessidade: havia outros candidatos,
mas nenhum deles era também professor do mestrado.
41
Luiz E. Abreu
que se percebiam, por assim dizer, como “as próximas da
fila” ou aquelas para quem a escolha de um nome específico
poderia ofender. É importante ressaltar que era perfeitamente
possível decidir contra a opinião e à revelia de todos, mas
era preciso saber fazê-lo. Para tanto, aplicavam-se algumas
regras aprendidas em uma longa experiência nesses assuntos,
experiência na qual se associavam a vivência política nas
instituições de classe, a convivência com as instituições
jurídicas e as relações que o campo jurídico naturalmente
tem com o poder. Uma das regras mais importantes, no caso,
foi a discrição. Sua necessidade se explicava pela seguinte
máxima: não dar tempo para a política começar. Se a mudança
é publicamente anunciada antes de ser concluída ou muito
bem encaminhada, os grupos se articulam, candidaturas são
lançadas, os conflitos emergem e o processo se torna mais
longo e difícil de administrar. E, no meu caso em particular,
a mudança era particularmente sensível porque “eu não
era do direito”. Aliás, foi essa a pergunta que fiz ao diretor
quando do convite: por que eu que era um antropólogo? E
ele me respondeu que o fato de eu não ser do direito foi o que
havia impedido que o meu nome fosse aceito imediatamente.
Isso significava que havia, da parte da administração da
Faculdade, dúvidas que só foram superadas depois de muita
conversa. O principal defensor do meu nome foi o então
coordenador do NPM, um juiz de muito prestígio, que, depois
de aproximadamente oito anos no posto, havia se cansado e,
com razão, argumentava que a gestão do setor não lhe ajudava
a terminar o doutorado.
42
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
de que pressupunha certa percepção sobre o estatuto do
conhecimento jurídico. As discussões abordaram várias
questões: as habilidades que a monografia traria para a
formação do aluno e a importância disso para sua formação
profissional; o modelo de trabalho acadêmico adequado; a
construção do argumento na monografia e, particularmente,
o papel das partes históricas; a melhor maneira de trabalhar
com os alunos em todas as fases da elaboração da monografia;
o desenvolvimento de material didático apropriado às
necessidades dos alunos, considerando as especificidades
do curso e da Faculdade; o diálogo com as reclamações dos
alunos, as quais envolviam tanto a relação com seu futuro
profissional, quanto a importância do componente curricular
(a monografia era uma das poucas disciplinas do final do curso
nas quais os alunos eram efetivamente reprovados, o que
atrasaria sua formatura, e, em parte por isso, alguns alunos
defendiam que a monografia lhes seria inútil); os problemas
na relação entre alunos e orientadores; o papel do orientador
e o cumprimento, pelos professores, das regras de orientação;
os tipos possíveis de monografias jurídicas; a organização
administrativa e a relação entre a secretaria do setor e os
professores; a relação com os outros setores da instituição, em
particular a administração superior e o projeto de curso que
informava as posições dos diversos interlocutores no debate;
entre outros. Claro, não é o objetivo deste artigo tratar de todas
as questões listadas acima, mas elas mostram como a discussão
sobre o estatuto do conhecimento jurídico se expandiu para
contextos nos quais não parecia imediatamente visível e, neste
movimento, foi ganhando outros sentidos.
43
Luiz E. Abreu
práticos do direito, nos quais se incluíam uns poucos mestres e
um número ainda menor de doutores, e que representavam “a
elite da Faculdade”, como me disseram na ocasião. E o modelo
é importante para o argumento deste texto porque cristaliza e
consolida as ideias sobre o conhecimento jurídico acadêmico
e, por extensão, o que significaria, na prática, a “ciência do
direito”. E isso, por sua vez, também estava relacionado ao
papel da monografia dentro do ensino jurídico como um todo.
Digo isso de uma perspectiva sociológica e não pedagógica,
por razões que, espero, ficarão claras a seguir.
44
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
da lei. As avaliações mais comuns cobram a reprodução do
que foi dito em sala de aula ou está escrito nos manuais;
de preferência, o mais próximo possível das palavras do
professor. Não estou exagerando. O ponto que gostaria de
enfatizar é que esta maneira de ensinar o direito é paradoxal
àquilo que se compreende como a sua natureza. Como tal, ele
é imaginado como um “sistema, internamente consistente,
de disposições jurídicas abstratas”, quer dizer, “o direito
objetivo vigente [se constitui em] um sistema ‘sem lacunas’
de disposições jurídicas ou conter tal sistema em estado latente, ou
pelo menos ser tratado como tal para os fins da aplicação do direito”,
como já estava dito, com todas as letras, em Weber (1999, p. 13).
Desta perspectiva, um código não é apenas um conjunto mais
ou menos aleatório de artigos, mas “um sistema de regras
logicamente claro, internamente consistente e, sobretudo, em
princípio, sem lacunas” (Weber, 1999, p. 12).
45
Luiz E. Abreu
jurisprudência5 e, sobretudo, nos manuais e textos teóricos do
direito brasileiro. É importante salientar, todavia, que, apesar
deste seu caráter sociológico como narrativas, as decisões, os
manuais e a teoria pretendem pertencer a um gênero literário
diferente do gênero narrativo, justamente porque se percebem
como sistema, coerência, verdade, ontologia, teoria. Seja como
for, na Faculdade e em relação à posição do aluno, as grandes
narrativas estão presentes em alguns momentos de sala de aula,
na maioria das vezes como narrativa histórica, e, sobretudo,
na monografia de fim de curso. E esse é o ponto que gostaria
de enfatizar: o sentido da monografia é justamente o fato de ela
representar o momento da construção, por parte do aluno, de
uma grande narrativa que contrabalança a fragmentação do
processo de ensino ao qual ele foi submetido.
5 Vide, por exemplo, a diferença entre o gênero literário presente nas decisões de
controle concentrado e difuso do STF em Abreu e Souza (2013).
46
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
grosso modo, as seguintes partes: democracia, separação dos
poderes, o poder executivo, o poder executivo e o poder judiciário,
o controle judicial do processo legislativo e, por fim, o caso da CPI
que ela queria estudar. Essa não era minha maneira de orientar, mas
a aluna não sabia: ela apenas repetia para mim a exigência que, de
regra, seus colegas se submetiam. Grande esforço é gasto tanto
pelo orientador quanto pelo orientando para acertar, entre eles,
o sumário do trabalho que, na sua versão final, não se resume
às grandes categorias como no exemplo acima, mas requer o
detalhamento de todas as divisões e subdivisões dos capítulos.
Depois do sumário acordado, o aluno tem de periodicamente
trazer ao orientador alguns daqueles subtítulos prontos, para
que este último os corrija.
47
Luiz E. Abreu
profissional. Mas isso é apenas parcialmente verdadeiro.
É preciso notar que os textos das petições no STF daqueles
considerados bons escritórios têm a construção textual muito
mais sofisticada, na qual estão presentes os elementos de um
texto argumentativo citados acima. Seja como for, boa parte
do texto da monografia de graduação era a referência a outros
autores, e um orientador chegou a me dizer que ele exigia que
todo parágrafo tivesse uma citação — no que, aliás, ele não
estava sozinho. Idealmente, a referência seria uma paráfrase
do texto original, mas, muitas vezes, era a cópia pura e
simples, e grande parte do esforço do NPM nos últimos anos
da minha gestão foi gasto para identificar e coibir a prática,
por meio de um programa que identificava os trechos que
estavam presentes na web ou no seu banco de dados.6 Um
subtítulo muitas vezes era uma longa lista de citações, na
qual se privilegiava o ponto de vista que se defendia, e pouca
atenção era dada aos argumentos e/ou posições contrárias.
Utilizavam-se muitos autores clássicos, mas raramente ia-
se até a versão para o português do texto original ou aos
comentaristas importantes; eles eram vistos a partir de outros
comentadores do próprio direito que, muitas vezes, tinham
como base outros comentaristas de igual calibre.
6 Uma das características do programa era que ele guardava a memória de todos
os trabalhos que lhe tivessem sido submetidos (característica que poderia, a cri-
tério do usuário, ser desabilitada). Como consequência, quando mais se utiliza
o serviço, mais acurado ele, teoricamente, se tornava.
48
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
circular estava, com efeito, inscrito na própria estrutura do
conhecimento que se produzia. As monografias sobre um
mesmo tema começavam todas mais ou menos no mesmo
lugar e caminhavam todas para o mesmo destino. Havia,
claro, variações: um sumário mais elaborado, quer dizer, com
mais subdivisões ou com uma ordem entre gênero e espécie
mais sólida; mais tempo gasto com autores clássicos; uma
reconstrução mais caprichada do debate com diversos pontos
de vista; uma reprodução mais consistente dos autores citados;
uma escrita um pouco mais argumentativa, com parágrafos
mais sólidos; uma bibliografia mais extensa ou com autores
melhores; etc. O resultado global era que algumas monografias
começavam mais cedo e iam um pouco mais longe que outras,
mas o conhecimento produzido era praticamente o mesmo.
Mesmo considerando que o principal objetivo da monografia
fosse desenvolver certas habilidades e capacidades nos alunos
(como escrita e argumentação), todo esse esforço não faria
sentido se se imagina que seria bom que o debate entre os
professores e entre professores e alunos se movimentasse, que
fosse possível aprofundar as questões, elaborar argumentos
mais sofisticados, que daí surgissem outras questões. Mas faz
todo sentido se se percebe que o importante era a construção
de uma narrativa pelos próprios alunos.
49
Luiz E. Abreu
vida das ciências sociais. Mas, mesmo considerando o modelo
de monografia como a expressão de uma alteridade, os meus
incômodos me levaram a fazer a crítica dos seus pressupostos.
A crítica, contudo, se submetia a duas considerações. A
mais imediata era de ordem estratégica: o seu limite era a
necessidade de ocupação de espaços institucionais, ou seja,
ela não poderia inviabilizar a minha posição como professor
da pós-graduação. A outra consideração não é tão imediata,
mas é, em minha opinião, fundamental para este texto. Ela
se torna “visível” a partir dos argumentos que fui capaz
de elaborar no diálogo com este modelo de monografia.
Neles, eu pressupunha que algumas das regras pelas quais
os trabalhos acadêmicos eram avaliados nas ciências sociais
eram “corretas” e possuíam certa generalidade, quer dizer,
podiam ser aplicáveis ao conhecimento jurídico, mesmo
levando em consideração a diferença entre os seus respectivos
objetos. A atitude é, todavia, contrária ou contraditória àquela
que geralmente pressupõe o antropólogo ao lidar com o
outro do qual ele pretende falar alguma coisa. Eu me refiro
à suspensão radical que o trabalho etnográfico geralmente
admite da validade das categorias “nativas” do observador
para entender a alteridade do outro7. Ora, no caso do presente
trabalho, foi justamente a crítica, baseada em alguns valores
que eu considerava mais fundamentais e dos quais não estava
disposto a abrir mão, ou, mais precisamente, a resistência a ela
que permitiu delinear o conjunto de relações esboçadas aqui.
7 Vide, por exemplo, como expressão desta mentalidade, a maneira pela qual
Lévi-Strauss (1976), baseado em Rousseau, percebe o princípio do conhecimen-
to antropológico. Até mesmo por conta do assunto deste texto, é interessante
notar que Cardoso de Oliveira (1989, p. 42 ss.) propõe algo diferente na sua
crítica de Geertz.
50
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
a qual iniciei este texto: “como ele pode ser professor de
monografia se ele não é do direito?” É evidente que, embora
o formato fosse o de uma pergunta, tratava, de fato, de uma
afirmação. E de um aluno em particular ouvi, logo no primeiro
semestre que ministrei a disciplina, um longo discurso sobre
a inutilidade da monografia para sua vida profissional e que
eu, como alguém “de fora do direito”, não poderia corrigir seu
trabalho. Ele havia proposto o seguinte problema de pesquisa:
“saber se os juízados especiais tinham dado certo”; e minha
crítica foi que, uma vez que o seu trabalho era inteiramente
dogmático, ele não apenas não havia estabelecido o que “dar
certo” significava, como não tinha desenvolvido instrumentos
teóricos para resolver a questão. Mas o motivo da indignação
foi a nota que, embora garantisse aprovação, ele considerou
insuficiente pelo seu esforço; e, o fato de os meus comentários
não terem feito sentido para ele. Ele, como veremos abaixo, foi
apenas o mais explícito dos críticos.
51
Luiz E. Abreu
escrita de textos argumentativos e de coerência textual; con-
vidá-los a elaborar uma questão ou um problema a partir da
bibliografia lida; exigir que o problema fosse factível (quer di-
zer, que o aluno pudesse resolvê-lo a partir dos instrumentos
teórico-metodológicos que dispunha) e consistente com o que
ele havia escrito nas partes anteriores do projeto. Mas essa não
era nem a parte mais difícil do trabalho. O grande nó da dis-
ciplina era justamente, e como o leitor mais atento certamente
já o percebeu, a inversão que ele propunha na maneira como
o aluno se relacionava com o conhecimento jurídico. Por mais
que a monografia se baseasse na reprodução do discurso pro-
duzido por outros, ela requeria um esforço de escrita própria
e um conjunto de escolhas que dependiam que o aluno se pu-
sesse em movimento. A memorização e a reprodução não lhe
eram suficientes para a tarefa. O resultado desta configuração
social era, no plano individual, o sentimento de uma enorme
angústia. Mas ela não era o único motivo. A proximidade do
fim da graduação e as dificuldades do mercado de trabalho eram
também bons motivos para ficar preocupado.
52
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
que havia escrito neste para preencher um ou mais subtítulos
da monografia. O projeto, portanto, não era percebido como um
momento inicial que levantava questões que, mais tarde, seriam
desenvolvidas na monografia. O conflito entre professores de
projeto e orientadores de monografia também se desdobrava
na disputa pela competência de avaliar o projeto do aluno.
Alguns alunos conversavam com seus possíveis orientadores
antes mesmo de terminada a disciplina de projeto, o que,
aliás, os próprios professores de projeto incentivavam. Mas
enquanto estes pediam aos alunos que conversassem com os
futuros orientadores para pedir indicações bibliográficas, de
forma a aproveitar na monografia final o máximo possível do
trabalho gasto no projeto, os orientadores das monografias
percebiam-no como um convite à avaliação do próprio projeto.
E várias foram as vezes que, frente à reprovação na disciplina,
os alunos argumentavam que o seu futuro orientador havia
dito que o projeto estava bom. Muitas vezes isso acontecia
porque a orientador tinha relações ou laços mais antigos com
o aluno ou, mais frequentemente, com a sua família, o que
criava da parte do orientador, como é usual nestes casos, um
interesse mais generoso. Relato um caso que aconteceu quando
eu já administrava o setor: de um lado um sociólogo, professor
de projeto, de outro uma orientadora de criminologia. Os
dois com sólidas credenciais acadêmicas. De todos os ramos
do direito, a criminologia é que mais de perto flerta com as
ciências sociais e as utiliza extensivamente em suas análises
(embora, claro, a seu modo). Eles, portanto, tinham uma base
em comum a partir da qual era possível estabelecer não apenas
consensos, mas divergências sólidas. A orientadora começou
a reclamar dos comentários que o professor fazia ao projeto da
aluna, argumentando que as críticas, na verdade, se dirigiam
ao projeto de pesquisa dela, orientadora. Falei com o professor
e, pela sua narrativa, não apenas não vi crítica ao projeto da
orientadora, como achei que ele tinha razão. Mais reclamações
53
Luiz E. Abreu
da orientadora, que não havia falado com o professor porque
era possível — acreditava ela — que a atitude fosse melindrá-
lo. E lhe pedi então que conversasse com ele. O meu pedido
continha riscos para todas as partes: a posição dos dois já era,
por motivos que não cabe mencionar aqui, um tanto frágil;
entrar em conflito, portanto, poderia enfraquecê-los ainda
mais. E isso não me interessava, porque eu acreditava que os
dois faziam um bom trabalho. Para mim, o pedido também
continha seus riscos: eu teria de administrar o que resultasse
da conversa e era importante não deixar a situação fugir do
controle, o que significaria, naquele contexto, envolver outros
setores da Faculdade (como a coordenação do curso ou a
direção). É importante mencionar que o NPM, justamente
pela quantidade de horas extraclasse que movimentava, era
sempre um setor muito visado e o primeiro a ser lembrado
quando o assunto fosse o corte de gastos — e uma instituição
privada, via de regra, quer cortar gastos. A divergência, neste
caso, por maior que fosse, não se constituía numa séria ameaça
para mim pelo menos: no pior cenário, ela seria mais uma
lembrança a se juntar ao conjunto de coisas a se dizer contra
minha administração, e mais um conflito para administrar
as repercussões numa agenda cheia e em meio a mudanças
importantes na gestão da Faculdade. No final das contas, eles
sentaram, conversaram e descobriram que estavam dizendo
as mesmas coisas. E essa era mais uma característica daquela
estrutura social: ela formava interstícios que se prestavam
a toda sorte de manipulação e, por eles, caminhavam as
palavras que, embora ditas nestes “não lugares”, eram das
mais ouvidas. A manipulação da aluna foi uma das mais
inocentes.
54
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
partir da minha tradição disciplinar. Vou citar três: primeiro,
exigir certo cuidado na hora de citar autores clássicos, argu-
mentando que não era possível utilizá-los a partir de comen-
tários mal informados: se o aluno quisesse utilizar aqueles
autores ele deveria lê-los. Depois, corrigir os problemas de
pesquisa, como já mencionei acima, para adequá-los não ape-
nas às possibilidades dos instrumentos teóricos: o exemplo
mais radical foi o de um aluno que queria resolver o problema
do desemprego no país a partir da elaboração de uma norma
mais apropriada. Por fim, a parte histórica das monografias
sempre me incomodou muito. E nisso não vai nenhuma crí-
tica à história enquanto saber, mas à maneira como os textos
de direito a utilizavam. Muitas vezes, no direito, os juristas
enunciam suas premissas como se fossem verdades univer-
sais, quando, por exemplo, discutem a “ontologia” de um ins-
tituto, geralmente cobertas por uma historiografia fraquíssi-
ma que nega a própria história, vez que procura a essência de
um instituto na evolução da humanidade, começando, de pre-
ferência, pelo início dos tempos (um livro de direito foi mais
além, começando pela criação do próprio universo). Nas mo-
nografias jurídicas, com efeito, a parte histórica constituía-se
em uns poucos parágrafos, onde estavam presentes, pelo me-
nos, as seguintes fases: a sociedade primitiva, a Antiguidade,
o Império Romano, a Idade Média, a Revolução Industrial e os
tempos atuais. Neles, discutia-se, por exemplo, como a família
havia se desenvolvido até atingir sua conformação contem-
porânea. As diferentes configurações históricas eram enten-
didas não como ruptura, alteridade, mas como o progressivo
desvelamento do que seria a sua essência. Num primeiro mo-
mento, eu simplesmente dizia para os meus alunos retirarem
a parte histórica no projeto (com a previsão de reintroduzi-la
se o orientador assim o exigisse). Depois, conforme a discus-
são foi ganhando corpo, foi necessário estabelecer a distin-
ção entre a parte histórica em uma monografia dogmática e
55
Luiz E. Abreu
uma monografia histórica sobre o direito; e a distinção entre
a perspectiva histórica e a contextualização contemporânea
do assunto da monografia. Quero chamar a atenção do leitor
para o fato de que as discussões acima eram, em seu conjunto,
muito modestas. Elas não procuravam aplicar no direito as
teorias ou os métodos da minha origem disciplinar, tampouco
pretendiam criticar o conhecimento do jurídico naquilo que,
como os próprios juristas defendem, seria seu aspeto central:
a necessidade de decidir baseado em razões fundadas no edi-
fício normativo. Os três incômodos acima tinham, como eu os
percebia, algo em comum: todos se dirigiam aos limites do co-
nhecimento jurídico. Com isso, eu pretendia dizer que um tra-
balho acadêmico sobre o direito precisaria manter-se dentro
das possibilidades que os seus instrumentos ofereciam, e se
se quisesse ultrapassá-las, precisar-se-ia gastar algum esforço
com a leitura e a apropriação dos conceitos necessários.
56
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
orientação); e a qualificação dos próprios orientadores de
monografia. Muitos deles seriam meus alunos no mestrado e
no doutorado da própria instituição — o que, incidentalmente,
facilitaria bastante a sua disposição para ouvir as questões que
eu propunha. Havia também outros motivos para que o diálogo
pouco avançasse: motivos relacionados à administração
do NPM. Com efeito, o Núcleo se submetia a uma rotina
avassaladora que se distribuía em vários processos de cunho
pedagógico e administrativo. Grande parte do meu tempo era
gasto com a organização, administração e racionalização de
processos. O tempo dos professores de projeto, por sua vez,
era gasto com a correção dos projetos; e o dos orientadores
de monografia, com o atendimento dos alunos e a leitura dos
seus trabalhos intermediários. E, a partir aproximadamente
da metade do semestre, o processamento das monografias, a
marcação e a realização das bancas consumia todo o esforço
dos funcionários e dos orientadores. Por certo, uma rotina
acachapante tem uma profunda influência no diálogo de que
aquele grupo social seria capaz de realizar. Como resultado,
a discussão conseguia avançar apenas no primeiro terço do
primeiro semestre do ano. O mesmo não acontecia no segundo
semestre, porque, por razões que me escapam, ele sempre
parecia mais curto.
57
Luiz E. Abreu
Havia também reuniões para tratar de assuntos substantivos,
mas elas aconteceram até aproximadamente 2009, quando da
mudança na direção da Faculdade. As bancas de monografia
também proporcionavam uma oportunidade para o debate,
e, das que eu participei, os meus comentários apontavam na
direção dos meus incômodos. Mas este último “fórum” era
bastante limitado: os orientadores temdiam a se agregar em
áreas temáticas e, dentro delas, fazerem a maior parte das
suas bancas com os orientadores com os quais tinham maior
afinidade. Além disso, após me tornar gestor do setor, fui
progressivamente participando de menos bancas. Seja como
for, eu diria que o “lugar” mais importante do debate não
era estas situações institucionais, mas, e para além delas, as
situações informais como as conversas apertadas pelo começo
do segundo tempo na sala dos professores ou no final do
turno, os encontros fortuitos pelos corredores ou na praça de
alimentação, as visitas que os orientadores me faziam na minha
sala, as conversas paralelas que cercavam todo conflito entre
orientadores e orientandos, mesmo quando as reclamações
eram formalizadas por escrito. Como consequência, o diálogo
acontecia, principalmente, no grande sistema de circulação
das palavras que é constitutivo do campo jurídico e tem
basicamente duas funções: ser, em primeiro lugar, um espaço
para o movimento das opiniões, das fofocas e, portanto,
para a ação política; e, em segundo lugar, servir para uns
vigiarem os outros e se imporem, coletivamente, limites aos
comportamentos, às palavras que podem ser ditas, às atitudes
aceitáveis e, até mesmo, às maneiras de se vestir.
58
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
diálogos que caminhavam juntos, que se misturavam em
alguns momentos (como, por exemplo, o tipo de monografia
jurídica e o estatuto do conhecimento jurídico, quer dizer,
sua cientificidade) e, em outros, se afastavam (a relação do
tipo de monografia com a ideia de que era preciso formar
profissionais). Eles poderiam, em certas circunstâncias, estar
relacionados e noutras não. Por exemplo, o uso da história
pelo direito poderia, na reunião administrativa no começo do
semestre, referir-se à carga horária dos professores, no sentido
de que os professores poderiam achar que a relação alunos
por hora/aula8 era muito elevada (haveria um excesso de
alunos), e dar à história um tratamento diferente implicaria
em outra maneira de orientar monografias, quer dizer, mais
trabalho para eles. Na reunião para discutir os modelos de
monografia, a mesma questão poderia estar vinculada às
ideias sobre o estatuto do conhecimento jurídico. É claro
que, apenas neste último contexto, a discussão se aproxima
do sentido que lhe dei acima. Como decorrência, e esta é a
segunda condição, a divergência que as minhas críticas
enunciavam, ou seja, os exemplos dos nossos não diálogos,
só pode manter-se como algo que era preciso ouvir, porque
estavam relacionados a diálogos que foram bem-sucedidos.
Não que todos os outros diálogos o fossem, mas havia na
minha história na Faculdade várias posições ou políticas que,
se não obtiveram a concordância da maioria, faziam sentido
ou eram reconhecidas como necessárias. (Não faço a distinção
entre “posições” ou “políticas” e argumentos, porque, naquele
contexto social, elas eram indissociáveis: algo só se tornava
8 O professor de uma instituição de ensino superior privada é remunerado por
hora aula. Há, basicamente, dois tipos. Um é a hora aula gasta efetivamente em
sala de aula. O outro é a remuneração por atividades que acontecem fora de
sala de aula. É nessa segunda categoria que se incluem as horas distribuídas
pela monografia. A média alunos por hora aula variou bastante durante todo o
tempo em que fui gestor do setor. Ela passou de algo como 1,2 a 1,5 alunos por
hora/aula para 2 a 2,2 em 2014. A razão disso era a pressão da administração
superior para cortar gastos.
59
Luiz E. Abreu
uma posição ou uma política quando enunciada e justificada
como tal). Mas meu ponto é que, de uma maneira um tanto
torta e muito genérica, seria possível dizer que a diferença que
se expressava na minha fala como crítica estava ancorada e
sustentada por uma série de consensos que se realizavam na
prática do cotidiano da Faculdade. Mas isso, num outro plano,
se expressava como o reconhecimento da aproximação difícil
entre o direito e aquilo que lhe é estrangeiro, cujo melhor
exemplo foi um professor que, ao tomar ciência de alguns
dos argumentos e estratégias que eu utilizava nos processos
administrativos da Faculdade (e quase tudo se expressava em
um processo deste tipo), disse-me eu tinha me tornado um
rábula, quer dizer, um prático do direito. O que, do ponto
de vista dele, era um elogio. Outro exemplo foi uma frase,
certamente menos ofensiva para um cientista social, segundo
a qual, numa situação bem específica que não cabe aqui mencionar,
“o Luiz é o único que entende de ensino jurídico, e olhe que ele nem
é do direito”.
60
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
da situação na qual eu me encontrava, mas atravessa todo o
campo jurídico. Por fim, a quarta condição é o uso do que aci-
ma chamei de sistema de circulação de palavras que opera no
registro da informalidade. Era possível dar-lhe muitos usos
diferentes. Uma estratégia que adotei com frequência era a de
introduzir uma ideia informalmente neste circuito para ver as
possíveis reações: a maneira como o interlocutor se colocava,
quais os argumentos ou dúvidas que ele expressava, o empe-
nho ou indiferença com a qual ele a tratava, etc. Todos estes
jeitos eram pequenos índices da recepção que a ideia poderia ter.
Não se tratava, por certo, de uma ciência exata: muitos se dedicavam
à arte de nunca dizer o que pensavam e de usar aquilo que você diz
contra você, assim que a oportunidade surge. Mas era ali também
que muitas das batalhas para sustentar uma posição eram tra-
vadas: ele tanto serviria para criar apoios e consensos, como
para difamar, espalhar intrigas, falar do outro etc. Em outras
palavras, esse circuito informal de circulação de palavras é,
ao mesmo tempo, um mecanismo sociológico de controle, o
lugar por onde correm muitas das manipulações, estratégias e
embate em torno da opinião alheia, o espaço por onde aconte-
ce a política, quer dizer, se expressam as alianças, os conflitos
e as soluções de compromisso e um lugar de diálogo, da cons-
trução do consenso e da manutenção da divergência.
61
Luiz E. Abreu
A experiência do mestrado e, mais tarde, do doutorado
me permite relativizar os momentos anteriores: a própria
possibilidade do diálogo e do não diálogo que descrevi acima
esteve contida em um processo mais amplo no qual o campo
do direito se adapta a um novo contexto.9 É possível dar ao
leitor uma ideia desta mudança com a comparação entre
duas fotografias muito próximas no tempo. A primeira foi
uma reunião administrativa de um tribunal onde, em face de
um pedido de afastamento para cursar o doutorado, um dos
desembargadores afirmou que o pedido não fazia sentido para
o direito, querendo com isso dizer que os juízes não precisariam
de títulos acadêmicos para exercer bem a sua função, intuindo
com isso que eles poderiam inclusive atrapalhar. A segunda
foi a sabatina, no Senado, de um candidato para o cargo de
ministro do STF. Na referida ocasião, uma das perguntas
dirigidas ao futuro ministro foi, justamente, por que ele não
tinha um título de doutorado em direito, pergunta que foi,
na realidade e obviamente, uma crítica. Entre elas, a diferença
é de, aproximadamente, seis anos. Por evidente, há vários
problemas na comparação, os mais óbvios decorrem do fato
de que os contextos e, consequentemente, os sentidos das
palavras são muito diferentes (um o bloqueio das pretensões
institucionais de um juiz que o desembargador visse talvez
como um futuro competidor, o outro um momento político
com todas as implicações que disso decorrem). Mas mesmo
admitindo todas as dificuldades, a contraposição deles oferece
uma representação um tanto impressionista do movimento pelo
qual passava o próprio campo, movimento que, como o leitor
62
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
bem se recorda, já esteve presente em outros momentos dessa
narrativa.
63
Luiz E. Abreu
com a mensalidade paga pelos seus alunos. A razão disso é
que os professores contratados pelo mestrado ganham por 40
horas, dão um número reduzido de disciplinas (duas por se-
mestre) e orientam poucos alunos na graduação; se as mensa-
lidades dos alunos da pós fossem cobrir o custo, elas seriam
proibitivas. Seja como for, e esse é o ponto de tudo isso, tanto
o curso de direito quanto a mantenedora devem perceber que
o mestrado de alguma forma atende interesses que não serão
alcançados com investimentos mais baratos.
64
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
estou aqui falando de como operavam, de fato, as instituições
de avaliação, mas da percepção que se tinha destas a partir de
um programa novo. Estrategicamente, era preciso dominar as
maneiras eficazes de dialogar com estas instituições a partir
do nosso contexto específico. Some-se a isso o fato de que,
embora houvesse no programa professores com doutorados
mais antigos, nós, que cuidávamos disso, éramos novos na
tarefa e não contávamos com uma memória institucional que
nos orientasse.
65
Luiz E. Abreu
inabilidade de nossa parte e que teria feito mal ao programa.
Mas, por outro lado (e nestes assuntos sempre há muitos), a
reprovação significou o rompimento com a associação que se
fazia à época entre a qualificação acadêmica e a posição profissional,
quer dizer, a ideia de alguns profissionais que eles já seriam mestres,
graças aos cargos que ocupam ou ao seu reconhecimento no
campo, faltando apenas a formalidade do título. E o resultado
de tudo isso é que o desembargador se sentiu humilhado e
pediu demissão da Faculdade, no que, da sua perspectiva, ele
tinha toda a razão: a reprovação foi compreendida, por ele e
pelos seus colegas, como o sinal de um grande desprestígio,
irreconciliável com sua posição institucional. O outro caso
aconteceu também no começo do programa de mestrado,
talvez em 2003 ou 2004. Na sala de professores, ouvi uma
conversa entre três de meus colegas, um deles o coordenador
de curso, que tinha uma banca10 conhecida na capital, que
representava um escritório importante de outro estado, e dois
outros professores, ambos advogados, sendo um deles muito
bem-sucedido em Brasília, um sujeito dos mais habilidosos
no trato pessoal que já conheci. O advogado mais habilidoso
dizia que um colega deles, que só possuía o bacharelado, tinha
sido chamado para ser professor homenageado na turma dos
formandos daquele semestre. E ele então argumentou que
o mestrado ou o doutorado significam muito pouco para
o direito, querendo com isso dizer que o mais importante
não era o resultado de um título. O coordenador de curso
desconversou (acredito que ele concordasse com o argumento,
pelo menos naquele momento) e sugeriu pela cautela, talvez
porque tivesse me visto na sala, talvez porque fosse de sua
10 A ideia de “banca” evoca um grande escritório que pode atuar numa ampla
gama de especialidades. Ele se diferenciaria de escritórios especializados (que
só atuam em penal, por exemplo) e, mais recentemente, ao que eles chamam de
escritórios “boutiques”. Este último, como me explicou um advogado que tinha
acabado de abrir um escritório deste tipo, se caracteriza por um tratamento e
um serviço diferenciado ao cliente.
66
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
natureza dizer pouco, principalmente quando isso tivesse a
possibilidade de comprometê-lo, talvez porque, de alguma
maneira, ele percebesse que os ventos haviam mudado de
rumo. Eu participei das seleções para ingresso no mestrado de
2003 ao primeiro semestre de 2006 e, à exceção da primeira, fui
presidente de todas as outras. É bem possível — aliás, provável
— que a conversa, para além da sua aparente espontaneidade,
fosse um recado para mim. A opinião não representava a
percepção idiossincrática de um professor, mas era o retrato
da maneira como, nos primeiros momentos da pós-graduação
stricto sensu, o campo de profissionais recebia a novidade do
mestrado. Mas a história continua, e o mesmo advogado que
havia expressado a opinião, defenderia sua dissertação anos
mais tarde.
67
Luiz E. Abreu
a Faculdade, tendo em vista que boa parte dos alunos passava
em concursos públicos, e os funcionarios públicos, incluindo aí
os três poderes, achavam-na em geral atrativa. Além disso, “direito
e políticas públicas” tinha uma relação muito forte com algumas das
matérias centrais do curso de graduação, como o direito constitucional
(principalmente), direito tributário, direito econômico, o direito penal
e, ao lado dele, a criminologia. Em ambas as áreas, os outros
saberes concentravam-se nas disciplinas “propedêuticas”,
como antropologia, sociologia, história e economia — ou seja,
introdutórias (como lhes chamavam os juristas); com a abertura
da segunda área de concentração, as três disciplinas básicas
eram ministradas por professores que não eram do direito.
68
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
comparativo entre o direito brasileiro e a forma como outras
sociedades, predominantemente sem Estado, elaboram suas
formas jurídicas próprias ou, para além delas, tinham outros
procedimentos para a resolução de conflitos. O objetivo era
então mostrar como o nosso direito era uma forma possível
entre outras. Na segunda aula, dois alunos completamente
diferentes apareceram. As duas primeiras eram alunas
regulares; os dois outros eram professores da instituição que
se inscreveram em minha disciplina por sugestão da secretaria
do programa como alunos especiais11. O interessante dessa
história não é o fato de a disciplina ter poucos alunos (dali
em diante, ela seria um pouco mais popular, variando de 3
a 5 alunos); mas as razões pelas quais as primeiras alunas
decidiram não a frequentar: “o Luiz queria falar mal do
direito”, disseram elas, um tanto taxativamente, soube depois
por meio de outro professor. Algumas versões da disciplina se
voltaram para leitura de etnografias sobre o direito brasileiro
e outras para a produzção de etnografias. Todavia, poucos
foram aqueles que se deixaram influenciar pela leitura dos
textos12.
69
Luiz E. Abreu
anterior: encontrar um caminho a partir do qual fosse possível
conversar com os alunos do mestrado. E, como sempre, foi um
processo de tentativa e erro, no qual o curso migrou da leitura
de autores clássicos de sociologia para os de filosofia política
contemporânea. No seu desenho final, a disciplina explorava
a questão da justiça a partir do debate entre Rawls (1999) e os
comunitaristas (Walzer, 1983; Sandel, 1998; Macintyre, 2007
etc.). A disciplina acabou tendo mais sucesso que a outra, no
sentido de que os alunos, mesmo que não incorporassem a
bibliografia nas suas dissertações, tinham a convicção de que
aquelas discussões eram, de alguma forma, importantes. E isso é
um dado etnográfico que, em certo sentido, resume as possibilidades
objetivas do diálogo naquele contexto: muitos dos alunos ficavam
divididos entre a fascinação do debate, das discussões que aqueles
autores sugeriam, e a dificuldade de trazê-los para o contexto do
direito brasileiro. Havia, penso eu, duas questões de fundo. A
primeira delas derivava do fato de que o debate entre liberais
e comunitaristas baseia-se na questão do tipo de sociedade
em que os autores estão ou gostariam de estar; assim, mesmo
nos seus momentos mais abstratos e mais hipotéticos (como
em Rawls, 1999), a discussão só fazia sentido supondo-se a
existência de diferenças entre sociedades reais e se questionava
justamente a possibilidade de um modelo universalizável de
justiça. Isso, por sua vez, violava algumas das convicções mais
profundas e inconscientes do direito brasileiro: sua oposição
sistemática às formas espontâneas de sociabilidade, à decisão
de se constituir enquanto alteridade, à sociedade na qual
está inserido, e à sua pretensão de universalidade que está
presente em vários momentos dos quais já vimos alguns –
na construção de ficções histórias, na suposição de que seus
conceitos sejam frutos de uma investigação ontológica, na
pretensão de que ele seja capaz de compreender, não importa
qual outro conceito ou instituto vindo de um outro direito.
Estas últimas são também maneiras pelas quais o direito
70
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
brasileiro se inventa como saber universal, reivindicação que
é, fundamentalmente, a maneira pela qual o direito brasileiro
encontra de se construir em oposição à sociedade. Conclusão
em tudo paradoxal, mas que parece apropriada aos dados
(Abreu, 2013b; Abreu, 2016). A segunda questão de fundo é a
seguinte: o individualismo, como a ideologia da modernidade,
e os seus corolários (vide, a esse respeito, Dumont, 1985), que o
debate no fundo pressupunha, se constituíam como alteridade
não apenas ao direito brasileiro, mas à visão de mundo que
lhe acompanha. Isso era particularmente visível a partir dos
usos que o conceito de igualdade ganha no direito brasileiro
(Abreu, 2006; 2013a).
71
Luiz E. Abreu
quantidade de bolsas anuais para os professores da instituição)
e um desequilíbrio muito grande das forças relativas entre os
dois grupos na Faculdade em favor do grupo daqueles que
detinham, para além da competência jurídica de atuação
nos processos, os títulos acadêmicos. Passou-se de uma
configuração na qual a qualificação acadêmica era malvista e
tinha, no máximo, uma valoração subsidiária em relação ao
que se considerava o essencial, a saber, a prática do direito,
para uma na qual ela passa a ser um instrumento relevante na
disputa pela competência jurídica, portanto, para a construção
das hierarquias do campo. Repito o que disse anteriormente: a
Faculdade, neste sentido, foi também um reflexo da trajetória
do próprio campo. Seja como for, a mudança das condições
objetivas do mestrado trouxe alterações para a aliança entre os
professores do direito e os de outros saberes que começaria a ser
discutida em outros termos. E, em parte, há uma aproximação.
Assim, os professores de outros saberes foram incorporados em
alguns dos programas de pesquisa, principalmente aqueles
com alcance internacional.
72
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
de dados examinado a partir de uma teoria. Neste sentido, há
um distanciamento entre um conjunto que se percebe como
“empírico” e um outro formado por conceitos e teorias que
constroem um olhar possível daquele. A diferença com o modo
de conhecimento jurídico ganha, para os cientistas sociais, a
seguinte conformação: tudo se passa como se o direito unisse
“empiria” e teoria, naturalizando o método em uma prática,
um modo de vida em um trabalho acadêmico.
73
Luiz E. Abreu
conhecimento produzzido pelo direito; ao contrário, o seu
sentido estava relacionado à convivência com algo que não se
considerava ou apenas se considerava com muita dificuldade
como direito. Em outras palavras, essa é uma pergunta que
talvez não faça sentido ou não tenha o mesmo sentido em um
programa exclusivamente jurídico. Vários incômodos surgem
neste momento, que posso enunciar nas seguintes frases:
“Onde está o direito?” “Qual a relação disso com o direito?
” Ou, simplesmente, “Isso não é direito!” Estas e suas primas
eram perguntas constantes nas defesas das dissertações de
mestrado orientadas pelos professores de outras áreas. É
uma pergunta incômoda que implica algo como: “essa não
é a sua casa” ou afirmação de semelhante teor. E como se
tratava, no fundo, de uma diferença irredutível entre modos
de vida diversos, havia apenas a possibilidade de soluções
de compromisso: assim, ouvia-se, por parte dos professores do
direito, a seguinte afirmação que expressava uma convivência
incômoda, apesar de todas as suas possíveis boas intenções: “é
perfeitamente possível dissertações jurídicas e dissertações a partir
de outras disciplinas sobre o direito”.
74
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
escolha dos professores; de outro, a concepção do que seria
uma pós-graduação em direito e qual a boa atitude em relação
aos critérios de avaliação da CAPES. Apesar de todas as
idiossincrasias pessoais que tiveram um papel importante
na história, o conflito foi fundamentalmente pelo capital de
dizer o que era o mais apropriado para uma pós-graduação
e a sua relação com a graduação. Com vimos atrás, o conflito
não era nenhuma novidade na Faculdade. Mas, ao longo
dos anos, com a mudança na direção, perdeu-se, em parte,
o savoir faire mundano que, por longo tempo, caracterizou
a sua administração: refiro-me à capacidade de equilibrar
lados em disputa e manter os conflitos dentro daquela zona
intermediária, na qual a disputa é contrabalançada por relações
de aliança, visitação, convivência difusa, e a partir da qual é
possível estabelecer compromissos mais ou menos pontuais
e, ao mesmo tempo, manter a diferença e as tensões entre os
grupos, as pessoas, as categorias profissionais e, agora, as
diferentes titulações.
75
Luiz E. Abreu
um programa de direito”. Todavia, havia, ainda a ser gasto, o
capital acumulado da caminhada: vários professores que não
eram do direito tinham uma história dentro do programa e
isso formava e conformava uma rede de alianças, projetos em
comum e afinidades eletivas. E o resultado foi uma solução
de compromisso no desenho do programa e a adoção velada
de uma política de substituição de professores não juristas,
conforme iam saindo do programa atraídos por outros ventos
ou pela manipulação dos critérios de avaliação.
76
O que um antropólogo pode dizer para o Direito?
cipalmente naquilo que eles consideram como direito. Mas
ela é também uma forma sutil de desentendimento, porque a
oposição expressa pressupostos e valores que são os do antropólogo
e não do jurista. Mas que pressupostos e valores seriam estes? Eu
diria que, da perspectiva do antropólogo, o diálogo é um vai e vem
de argumentos, no qual cada um dos interlocutores se coloca face ao
argumento do outro, no sentido de aceitá-lo ou recusá-lo. Supõe-se
aqui que, na sua configuração mais elementar, está-se falando de
dois interlocutores. Os interlocutores devem estar dispostos
a se deixar dizer algo pelo outro, quer dizer, a se deixarem
influenciar. Um argumento é, portanto, aceito ou não depen-
dendo dos seus próprios méritos, quer dizer, pela sua capa-
cidade de convencimento. A recusa de um argumento leva
aquele que o recusou a propor um contra-argumento e assim
sucessivamente. Há, além disso, duas outras características.
A primeira é que pode haver bons ou maus argumentos, mas
não há, necessariamente, consenso. O importante é que o diá-
logo necessariamente caminhe, ou seja, ele idealmente produz
argumentos mais sofisticados ou novas questões. A segunda é
que não há apenas uma oposição distintiva entre “diálogo” e
“não diálogo”, mas, sobretudo, uma relação hierárquica: o “não
diálogo” é uma degradação do “diálogo”, quer dizer, o “não diá-
logo” é um “diálogo” malsucedido. Ora, não me parece que
estes sejam os mesmos pressupostos que a etnografia acima
apontou para o campo do direito. No direito, o diálogo não
está fundado em uma relação diádica, mas, ao contrário, supõe
um circuito de circulação de palavras no qual estão muitos ou-
tros. Portanto, o diálogo não é um vai e vem, mas a circulação
dos argumentos, e a conversa entre duas pessoas supõe sem-
pre a referência implícita a terceiros. Outra diferença impor-
tante é que os interlocutores não estão dispôstos a se deixar
levar pelo melhor argumento. Ao contrário, a aceitação ou a
recusa de um argumento é um comprometimento político, ele
requer uma percepção estratégica. No limite, o consenso entre
77
Luiz E. Abreu
alguns é uma aliança contra outros. E, por consequência, o si-
lêncio não é a recusa ao diálogo, mas uma resposta que pode
significar tanto a adesão quanto a oposição àquilo que se diz.
Ele é uma resposta interessante do ponto de vista daquele que
silencia porque deixa as possibilidades em aberto. O diálogo
aqui também não precisa produzir argumentos mais sofistica-
dos ou novas questões; ele caminha na medida em que circula,
ou seja, ele pode caminhar dizendo as mesmas coisas. Por fim,
a hierarquia dos lugares de fala é relevante, no sentido de que
é mais importante ouvir quem tem um status maior do que
quem tem um status mais modesto, e ela tanto pode basear-se
no lugar institucional que se ocupa quanto no capital acumu-
lado que se possui (há entre eles uma relação incestuosa, mas
não são sinônimos). Portanto, dizer que o não diálogo é um
diálogo malsucedido é uma posição que fundamentalmente
incompreende o que está em jogo da perspectiva do direito.
Melhor seria dizer que o não diálogo é simplesmente outra
forma de relacionar as pessoas a partir das palavras.
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80
A performance da toga
e as contradições do ritual
de uma corte de justiça
José Soares de Morais
Introdução
Busco traduzir e explicar, sob o olhar pluralizado da
antropologia, o que acontece durante as sessões em que os
Desembargadores da Corte Especial do Tribunal de Justiça do
Estado de Pernambuco utilizam da autoridade do argumento
e do argumento da autoridade, para proclamar suas decisões.
Pautado na área de interesse da antropologia jurídica, este
texto é resultado da minha Dissertação de Mestrado pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA, da
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, cujo tema não
diz respeito ao tecnicismo ou normativismo invocados pelos
ditames do paradigma positivista, que ainda vigora na prática
judicante no Brasil, nem tampouco avaliar o nível de justeza
das decisões judiciais tomadas por seus atores. O que está em
jogo são as atitudes que julgo performáticas e ritualísticas,
oriundas desse grupo de profissionais do direito, as quais,
por vezes, chegam a gerar “contradições” típicas de um
colegiado.13
81
José Soares de Morais
São os homens e suas contradições. As que se remetem
aos aspectos técnicos jurídicos (não interessam neste momento),
porém, as contradições do comportamento dos magistrados
en-quanto formas expressivas (essas, sim), podem, e devem ser
estudadas com o olhar e a leitura da antropologia. Ao recorrer
aos conceitos de ritual e performance procuro atentar sobre a
forma pela qual as decisões são tomadas, a lógica existente, a
linguagem que é transmitida, em que momento; para quem; o
que significa o impacto social, o simbolismo e a ação perfor-
mática dos atores envolvidos. Esses são objetivos particulares,
que esclarecem a pretensão de estudar em (no) tribunal de justi-
ça, e não “o” tribunal de justiça, como sugere Geertz em A inter-
pretação das culturas: “Os antropólogos não estudam aldeias,
estudam em aldeias” (Geertz, 1989, p. 32). Apesar de não ter
como estudar no tribunal, sem estudá-lo minimamente.
82
A performance da toga e as contradições do ritual
Foi um investimento na percepção etnográfica, levando
em consideração a indicação referencial descrita por Jean
Langdon, ao reconhecer que o antropólogo em campo
está imerso na política da interação comunicativa e, assim,
demanda uma constante reflexão sobre seus posicionamos,
seja na relação com os colaboradores, e na escrita geral dos
textos etnográficos (Langdon, 2007, p. 15). Não investi em
entrevistas diretas, em razão do contato muito próximo
com meus interlocutores, ao ponto de observar, e presenciar
um pouco dos bastidores da corte especial, e manter com
eles conversas informais, suficientes para apreender os
significados inerentes àquele grupo: do seu sentimento de
pertencimento; da experiência vivida na prática ritual do
evento corte especial; da impressão sobre os atos, gestos e os
mais variados tipos de debates; da ambivalência desses atores
frente aos conflitos internos e externos, dado a influência
da opinião pública, autos processuais, pressão política e as
relações interpessoais em suas decisões judiciais; bem como
a relevância na ligação da performance no modo de atuação,
e consequente bom desempenho funcional. Procurei dentro de uma
ética diligente do pesquisar, descrever, traduzir, estudar, revelar,
interpretar o ritual das sessões da corte especial, numa
tentativa de contribuir, minimamente, com a história de um
grupo social que desenvolve seu trabalho na casa da justiça,
ao estabelecer o diálogo entre a antropologia e o direito, em
perspectiva com os dizeres em Maurice Godelier: “Rigor
crítico, descentralização sistemática relativamente a sua
própria cultura, prudência e modéstia nas conclusões: eis,
provavelmente o que resume de maneira mais simples a ética
da prática científica” (Godelier, 1993, p. 18).
83
José Soares de Morais
84
A performance da toga e as contradições do ritual
ses britânicos que começaram efetivamente a delinear as bases
da antropologia jurídica, à medida que alguns estudos passa-
ram a conferir maior atenção aos aspectos da teoria do direito
em sociedade, abandonando, assim, qualquer pretensão de
conferir utilidade colonial a esses estudos. Essa tendência co-
meça a se definir de forma mais nítida com Malinowski, quan-
do chamava a atenção, na introdução da obra Crime e costume
na sociedade selvagem (publicada originalmente em 1926), que
de todos os ramos da antropologia, o estudo do direito dos
povos denominados “primitivos” é o que até aquele momento
vinha recebendo a menor atenção e a menos satisfatória (Mali-
nowski, 2003, p. 30).
85
José Soares de Morais
longo dos tempos marcou na sociedade, a solenidade do sacerdócio
dos defensores do direito e da justiça. O uso da toga perante os
tribunais, com o objetivo de impor respeito pela profissão, além de
gerar distinção social, se tornou obrigatório em Roma, visto que
foi com os romanos que a advocacia se transformou em profissão
organizada. Se por um lado, a toga é vista sob o aspecto apontado do
poder, por outro, é ela que carrega na sua história a nobreza de ser
um dos principais símbolos da justiça, trazendo uma carga de
compromissos e responsabilidades.
86
A performance da toga e as contradições do ritual
momento tem outro significado, como se dissesse que agora o
“fazer justiça” está mais próximo às mãos.
87
José Soares de Morais
ritual cultivado, e exaltado pelos que fazem a referida cena,
conforme me associo à indicação teórica em Segalen: “Na
medida em que o corpo está emblematizado, existe ritual”
(Segalen, 2002, p. 82). Bem como, a sintonia com a estética
que transmuta num ato performativo de usar uma espécie
de “manto sagrado”, em razão da autêntica transformação
destacada por Ana Paula Pastore Schritzmeyer: “O próprio
uso da toga por juízes, promotores e advogados, ao mesmo
tempo, assemelhando-os entre si, e os distinguindo dos
demais, marca sua transformação, pois ao vestirem a toga,
registram sua transformação de seres comuns em seres
especiais” (Schritzmeyer, 2012, p. 61). E Lídia Reis de Almeida
Prado afirma: “Pode-se, assim, imaginar o tribunal como um
espaço sagrado, que influencia o inconsciente das pessoas e
do próprio juiz. Quando o magistrado põe as vestes talares,
ele entra no arquétipo” (Prado, 2013, p. 56).
88
A performance da toga e as contradições do ritual
pertencer à instituição. Se para o magistrado, deve ser uma
honra vestir a toga, seu uso “correto” é imprescindível para a
honra da instituição. Por isso, ligar a toga à honra, à disciplina,
e à moral da instituição, a torna um símbolo bivalente, que
expressa tanto a honra individual, como a honra institucional.
Nesse sentido, a instituição do poder judiciário lança mão de
mecanismos correcionais, a exemplo de uma corregedoria
própria, a fim de apurar, justamente, condutas que venham
a denegrir a imagem da toga. Para tanto, a corte dispõe
de um instituto normativo denominado Procedimento
Administrativo Disciplinar (PAD), que visa apreciar os
comportamentos julgados indignos à magistratura.
89
José Soares de Morais
desde 1912, já deixava advertido de que o sagrado abrange
tanto o santo quanto o maldito:
90
A performance da toga e as contradições do ritual
isso acreditei que a concepção de ritual poderia me auxiliar
na pesquisa antropológica. Procurei aplicá-lo como uma
estratégia para analisar o evento etnográfico da sessão da
corte especial, como uma espécie de janela, para etnografar
(descrever e analisar) o grupo de desembargadores da corte
especial. Aldo Natale Terrin também afirma que: “Ritual passa
a ser abordagem, ferramenta, e não tema ou objeto de estudo”
(Terrin, 2004, p. 10). Desta forma, estarei abordando o ritual,
falando sobre o ritual, usando a linguagem do ritual. Enfim, o
evento “corte especial” interessa ao antropólogo porque é um
evento especial, e se reveste de traços característicos de ritual.
91
José Soares de Morais
2012, p. 43), além de possuir uma composição cênica muito
própria (palco e plateia). Passa a ser um espaço privilegiado
para que os valores sociais ali encenados, enfatizados, e reite-
rados, sejam postos em discussão, onde quem consegue argu-
mentar melhor ganha a adesão dos seus pares, num autêntico
ritual de persuasão. Não só o que se está julgando, mas os
jogos persuasivos, e as narrativas que reconstituem os fatos
passados, serão alvos de intensas investidas pelo poder de
convencimento.
92
A performance da toga e as contradições do ritual
p. 79). Embora não incursionar pelas veredas da compreensão
metafísica, pois não é esse o objetivo analítico da etnografia,
tal adendo em Campbell, me permite refletir sobre a ação
dos atores jurídicos no ritualismo que assola a corte especial,
e particularmente, quando se avizinha o severo embate de
ideias e teses, que parece mais um “duelo de titãs”, na tentativa
não somente em persuadir o outro, mas, tamanha a sanha
e fúria que o debate acarreta que, por vezes, imagino uma
aplicação metafórica da definição acima, apontando para uma
possibilidade do como se um quisesse “comer” o outro vivo.
Essas lutas pelo convencimento significa um ponto que exerce
tamanha influência sobre a decisão daquele colegiado, que é
capaz de originar um ou mais pedidos de “vistas” (ter acesso
aos detalhes dos autos processuais) pelos membros da corte,
pois o relatório do encarregado, bem como os argumentos
cedidos pelos demais não foram suficientes, pelo menos a
princípio, para sua adesão.
93
José Soares de Morais
nep e tendo por princípio a perspectiva de mudança social e
conflito, que o ritual também passa a ser objeto de interesse do
antropólogo Victor Turner (1987). Desenvolvendo um modelo
de estudo dos “ritos de transição” (“ritos de passagem”), cuja
interpretação desses eventos era feita em analogia ao teatro
grego, o que justifica os motivos pelos quais Turner definiu os
rituais Ndembu nos termos de “drama social”, como assevera
Rubens Alves da Silva (2005) em capítulo reelaborado de sua
tese de doutorado.
94
A performance da toga e as contradições do ritual
feita a partir das leis, sistema legal, organização social) que pode
ser confrontada por uma antiestrutura15. Resulta no desfecho fi-
nal, depois de prolatada a decisão do julgamento através de uma
sentença, que tanto pode levar à cisão do grupo (basta ocorrer
o fenômeno do “voto vencido” entre grupos), ou a fortalecê-lo
mais ainda (quando não há “voto vencido”), desdobrando-se em
outras possibilidades: dar guarida a “antiestrutura” ou reforçar a
“estrutura”.
95
José Soares de Morais
A corte nos mostra fatos essencialmente ancorados nas
relações de poder, nos mostra incidentes que lembram Roberto
DaMatta (1987) em “você sabe com quem está falando?”,
mas também nos mostra como a eficácia da ação ritual reside
no fato de acionar crenças no papel que o indivíduo está
representando (Gofman, 2009, p. 25). Aspectos culturais são
construídos nesse grupo e levados em consideração para
confirmar tal assertiva: os julgadores são mobilizados pelo
senso de justiça não só contido nos mitos legais, mas nos mitos
do próprio fazer justiça, como uma resposta a insuficiência da
letra fria da lei, das normas, e dos códigos puro e simples,
para alcançar a eficácia das demandas judiciais. A crença no
papel de julgador também perpassa pelos princípios morais
atrelados à ética profissional, e pela legitimidade da existência
da corte, que obedece a planos, condutas, meios, regras, e
critérios que resultam num procedimento ritual para buscar
“soluções” para os dramas sociais chegados a corte sob a
forma de narrativas processuais.
96
A performance da toga e as contradições do ritual
Ao tomar por empréstimo o referencial teórico em
Richard Schechner em sua classificação sobre o “realizar”
performance, em que descreve o “sendo”, o “fazendo”, o
“mostrar fazendo”, e o “explicar fazendo” (Schechner, 2006,
p. 28). Logo, diante da apreensão etnográfica registrada
nesta pesquisa, encontro o significado dessa performance na
atuação dos desembargadores em relação ao trabalho que
faz parte da produção de sua cultura jurídica. O “sendo” é a
própria realidade existencial, advinda da condição em ser um
desembargador/magistrado pertencente ao poder judiciário;
no plano da ação, vem o “fazendo”, quando se postam em
seus respectivos gabinetes ao confeccionarem seus votos; e
o “mostrar fazendo”, quando se posicionam no disposto da
sala de sessões e dão início ao ritual de interação; e quanto a
um plano mais reflexivo, está o explicar “mostrar fazendo”, o
estudo que ora realizo, ao empregar o conceito de performance
para tentar explicar o desempenho desses atores jurídicos.
97
José Soares de Morais
pelos corredores do tribunal, refletindo sobre as considerações
já constantes em seu voto, na tentativa de se cercar de todos
os possíveis meandros que poderão ocorrer na discussão,
sob a forma de “contra-ataques” por parte dos membros
do colegiado. Da sabatina inerente à discussão, às correntes
levantadas, e amparadas pelo leque de interpretações
acolhidas pelo direito, dada a instabilidade (variações) de
posicionamentos que se instala durante a discussão na corte,
obriga aos desembargadores que estão acostumado a vencer
batalhas pelo poder do convencimento, a se desdobrarem
cada vez mais em alcançar a melhor performance possível (e
tem consciência disso, que quanto melhor a performance, maior
a possibilidade de êxito no jogo persuasivo a que é submetido
a corte). Da performance invejável de um desembargador na
corte, ao chamar a atenção, e despertar o interesse dos demais a
segui-lo, durante determinada sessão. Fato assim presenciado,
quando um deles, após ter um excelente desempenho em seu
voto, foi suficiente para que recebesse inúmeros telefonemas
de elogios e pedidos de informações sobre o brilhante
desempenho bem fundamentado em suas intervenções.
98
A performance da toga e as contradições do ritual
um quadro sendo exibido para uma plateia não caracteriza
uma performance; alguém pintando esse quadro ao vivo, já
poderia caracterizá-la (Cohen, 2002, p. 28).
99
José Soares de Morais
As contradições no posicionamento dos desembargadores
entre a discussão e o voto, engendrando, por vezes, a
incompatibilidade lógica entre duas ou mais proposições;
O “jogo de cintura”, o “pulo do gato”, ao se vê encurralado
por múltiplos interesses em jogo, notadamente, quando as
proposições, tomadas em conjunto geram duas conclusões, e
formam inversões lógicas, geralmente opostas uma da outra.
As partes representadas pelos advogados; a amizade (lobby);
a mídia; a política; o grupo dominante dentro do Tribunal; A
transformação de postura e posicionamento político-jurídico
em um curto espaço de tempo entre a “discussão” e o “voto”,
ilustrando uma tendência geral na lógica aplicada, o princípio
Aristotélico da “não-contradição”, afirma que: “não se pode
dizer de algo que é e não é no mesmo sentido e, ao mesmo
tempo”. Por extensão, fora da lógica clássica, pode-se falar
de contradições entre as ações quando se presume que seus
motivos se contradizem. O paradoxo encontrado do querer
fazer “justiça” em consonância com o que a sociedade espera e
o enquadramento legal que manda o direito oficial construído
pelo parlamento; de um lado suas convicções de cidadão, de
jurista, e do outro, do profissional obediente ao preceito legal,
ao direito posto. As surpresas que acontecem durante a votação
do colegiado quer seja a corte ou o pleno. A discordância entre
o acordado nos bastidores e o votado na hora da sessão. Ou
seja, contradição também é incoerência entre o que se diz e
o que se disse, entre palavras e ações; desacordo (o “eu fiz
isso”, e o “falei aquilo”); ser contrário, desconversar o que
disse antes (após afirmar que tinha visto, e depois que não
viu, entrando assim em contradição).
100
A performance da toga e as contradições do ritual
mesmo que essa harmonia seja coerciva, como apregoa Laura
Nader (2012). Mas a contradição está posta como algo salutar
para o nosso direito oficial, é o que se apreende nas faculdades
de direito, e o que já vi por diversas vezes, sendo afirmado nas
sessões da corte. Não há quem ouse criticar o investimento
no debate (desde que esteja dentro da lógica da corte),
independentemente do tempo que venha a se prolongar,
sempre haverá uma defesa ferrenha por parte da corte (seja
da presidência, ou de algum desembargador) em prol da
persistência das discussões. Como ficou claro numa sessão
etnografada no dia 16 de março do ano em curso, quando um
desembargador relator, na intenção de encerrar o debate, e
partir para votação, exclamou: “por isso é que se julga pouco
nesta corte..., não tenho mais nada para esclarecer”. O que foi
logo aparteado por outro desembargador: “enquanto vossa
excelência não tem mais nada para esclarecer, nós temos
muito a aprender”. Coro esse reforçado pelo presidente da corte:
“a beleza do julgar está justamente na boa discussão”.
101
José Soares de Morais
a dialética erística (isto é, uma doutrina do debate) difundida
por Arthur Schopenhauer, e suas 38 estratégias para vencer
qualquer debate sem precisar ter razão, em A arte de ter razão,
publicado póstumo por Julius Frauenstädt em 1864. Ainda na
introdução desta obra, Karl Otto Erdmann acentua aquilo que
os dados etnográficos já teriam sinalizado em minha pesquisa:
“[...] ver com que frequência ter razão e ficar com a razão não
são equivalentes; que o vencedor de uma discussão não é o
que está do lado da verdade e da razão, mas sim o que é mais
espirituoso e sabe lutar de maneira ágil” (Schopenhauer, 2014).
São características de uma boa performance, uma performance
que faz a diferença, uma performance eficaz. Por outro lado, a
melhor das “performances”, às vezes não funciona de forma
efetiva diante da decisão política transvestida de jurídica.
102
A performance da toga e as contradições do ritual
de resposta. Com constatação em Kant de Lima aplicada
etnográficamente ao caso da corte em estudo, vislumbro a
prevalência do argumento da autoridade sobre a autoridade
do argumento, ou seja, a influência da autoridade sobre a
corte (acordos, ingerência política, o trabalho de bastidores,
e o “eu já sabia” como alguns exemplos). Portanto, quanto à
forma do argumento, ou a força do argumento, é na oralidade
(performance), onde está o poder da argumentação, e pode
sobressair-se o domínio do convencimento.
103
José Soares de Morais
encarregado, e ao seu bom senso), a prevalência da vontade do
grupo dominante; o “eu já sabia” – o momento mais político.
16 Outro termo corriqueiro na corte, pois quando não se trata de julgamentos po-
lêmicos, que tenham desembargadores que façam de suas causas, verdadeiros
“cavalos de batalhas”, tudo converge para o interesse mais uma vez do ator
104
A performance da toga e as contradições do ritual
demorar mais que o normal, tendo por vezes o votante ter que
pedir desculpas, o presidente menciona que é desnecessário o
pedido de desculpas, pois o voto serve de esclarecimentos e
ajuda a corte, a fim de se firmar seu convencimento.
105
José Soares de Morais
nea passagem de ator jurídico para assistente na plateia. O que
me motivou uma breve narrativa, que a intitulei: “da angústia
dos que ficam do lado de cá”. Pois se trata de um episódio que
observei, ao acompanhar de perto, o interesse de um desembar-
gador por um processo de um parente próximo, em que, por
razões regimentais, não podia participar do julgamento. Não
se contendo de sua ansiedade, passou a assistir as sessões da
corte do lado da plateia. Momentos que senti a apreensão que
o norteava, não muito diferente das pessoas que acompanham
atentamente os julgamentos de seu interesse. Embora com al-
gumas diferenças: a sua presença, ao mesmo tempo, que podia
servir de “pressão” aos seus pares, motivando, no mínimo, a
busca de uma decisão mais abalizada possível, tem um nível de
angústia maior do que o cidadão comum, que desconhece toda
sistemática decisional daquele grupo.
Considerações finais
Quando pensei em investir, e lançar o meu olhar
antropológico sobre uma corte de justiça, não foi com o ideal
do ineditismo da máxima popular da “invenção da roda”,
muito menos com o constructo autoral dos grandes teóricos,
mas, munido de uma perspectiva que perpassa a “receita” da
cientificidade exigida no âmbito da comunidade acadêmica,
permitindo uma “dose” de romantismo a que me alio a Proust
apud Edgar Morin: “Uma verdadeira viagem de descobrimento
não é encontrar novas terras, mas ter um novo olhar” (Morin,
2000, p. 107). Um olhar que não é um simples olhar, nem
tampouco mais um olhar, e sim um olhar especial, um olhar
diferente, no qual difere daquele em ver a corte, unicamente,
pela ótica do direito, e que se mostra insuficiente para explicá-
la. Enquanto as ciências sociais podem oferecer um novo
olhar; e esse olhar; o meu olhar; ou o olhar escolhido para
explicar essa reunião de pessoas sob o manto da autoridade
estatal, foi o olhar da antropologia. O mesmo olhar que faz
106
A performance da toga e as contradições do ritual
a antropologia estudar as diferentes respostas para o mesmo
problema. E que fez deste trabalho, dar a contribuição de
pesquisa, tão bem, e sempre realçada pela minha orientadora
Prof.ª Vânia Fialho: despertar o jurista a confrontar-se com modelos
a que ele não prestou atenção até agora, a exemplo da percepção da
existência e da importância do dado não verbalizado destacado aqui
pelos estudos do ritual e da performance.
107
José Soares de Morais
a constatação de uma das lógicas da corte: quem faz a corte não
são as melhores “performances”. As “piores” também fazem
parte, porém, as “melhores” exercem uma influência muito
maior na construção da corte. O que faz da corte, também um
“campo de batalhas” de vencedores (quando suas teses em
forma de votos vencem) e de perdedores (quando seus votos
são “vencidos”, ou seja, quando não vingaram).
108
A performance da toga e as contradições do ritual
homem, se pensasse no que ocorre para julgar outro homem,
aceitaria ser juiz”.
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111
Paradigmas antropológicos
na constituição e formação
do sujeito policial militar de Pernambuco
Cristiano José Galvão Faria
Introdução
Em épocas de campanhas políticas, apesar de os pro-
gramas de governo apontarem uma difusão de promessas de
ações nas áreas de saúde, educação, infraestrutura, seguran-
ça e, atualmente, a dita mobilidade urbana, como principais
práticas das políticas públicas governamentais, a segurança
pública passa a ganhar cada dia mais força pelo fato da popu-
lação exigir uma concreta presença ostensiva de policiais nos
diversos espaços da sociedade devido ao constante crescimen-
to da violência urbana.
113
Cristiano José Galvão Faria
apontando principalmente a defasagem do efetivo policial.
As práticas rotineiras dos policiamentos ostensivos estão
entre uma das maiores exigências da população, bem como as
acusações da sociedade civil frente a alguns comportamentos
violentos considerados não compatíveis ao perfil que se espera
pertencer a um policial militar.
114
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
civilizador, que carrega conceitos de participação direta
na constituição da polícia moderna passou a ganhar mais
força organizacional pelo fato de a polícia ser considerada
a instituição responsável por portar sobre os seus ‘ombros’
a responsabilidade e o dever de garantir direitos que
pertencem ao patrimônio e a vida do cidadão. Neste cenário,
onde o Estado, a instituição policial e a sociedade civil estão
intrinsecamente relacionados, encontramos um permanente
fluxo de representações, em que as relações de poder estão
envolvidas por conflitos, troca de favores e mediações de
diálogos que visam estabelecer tentativas de mudanças que
confrontam com resistências institucionais da própria polícia,
por valorizar as permanências identitárias dos principais
atores, os policiais, pois se consideram responsáveis pelo
protagonismo heróico na epopéica luta do Bem contra o Mal,
frente ao quadro deste drama social da violência que perpassa
a democracia brasileira.
115
Cristiano José Galvão Faria
passaram a ser fomentadas por programas de combate à
violência com vasta contribuição dos Centros de estudos de
Pesquisas das Universidades públicas, destacando: o Núcleo
de estudos da Violência (NEV), da UFRJ; o Núcleo de Estudos
da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU); a
UFMG que tem, no Centro de Estudos de Criminalidade e
Segurança Pública (CRISP), o Curso de Especialização em
Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Lato sensu),
ministrado no eixo Sudeste e recentemente; a UFC, com o seu
Laboratório de Estudos da Violência (LEV); e a UFPE, um
pouco mais recente, com o Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Criminalidade (NEPS), que tem contribuído com panoramas
transversais no que tange ao vernáculo das ciências sociais e
suas subáreas de pesquisas.18
116
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
Quando falamos de estudos antropológicos especifica-
mente com militares no Brasil, Celso Castro se tornou um dos
pioneiros ao utilizar os métodos de pesquisas etnográficas, me-
diante a sua observação participante no interior da Academia
Militar das Agulhas Negras (AMAN), vindo, assim, a produzir
a sua dissertação de mestrado, O Espírito Militar: um antropólogo
na caserna, defendida em 1989 no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, da UFRJ. Os estudos de Castro (2004)
acentuaram as interpretações de acordo com a visão do mili-
tar nativo, onde os mesmos enfatizam nas suas verbalizações a
existência de diferenças significativas que distanciam o mundo
“do militar e dos paisanos (civis)”, demonstrando assim que,
mesmo com toda configuração política proposta pela nova
constituição, o militarismo mostrava-se como uma organização
firme, composta de elementos e categorias de socialização tra-
dicionais, de naturezas duradouras desdobradas por paradig-
mas sociais e culturais seculares. Os caminhos metodológicos
abertos por Castro (2004) se referia especificamente às interpre-
tações da identidade dos oficiais militares do Exército; a pesquisa
de Castro (2004) teve sua contribuição quanto à importância
da inserção do antropólogo em instituições restritas e fechadas
como as militares, no entanto, a criação dos núcleos, grupos,
institutos de pesquisas e estudos da violência, citados anterior-
mente, também nos fins dos anos 80, fomentaram algumas par-
cerias entre governos e universidades, passando a aproximar a
ciência acadêmica dos sistemas de segurança pública estaduais,
fazendo, assim, as primeiras menções a pesquisas voltadas às
instituições policiais militares.
117
Cristiano José Galvão Faria
e o incremento econômico brasileiro como uma das suas
ordens causais, também inseriram a genealogia histórica das
organizações policiais como participante no crescimento dos índices
de violência no país, como relatam Pinheiro e Almeida (2003).
Os serviços da polícia são cada vez mais fundamentais para dar a
sustento às exigências do Estado democrático de direito, que, com
todo o seu “tônus de modernidade”, ainda estão inseridos no poderio
estatal (os atos do “policiar”), conforme descreve Adorno (1998).
118
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
em busca da profissão e identidade policial através de suas
experiências no Curso de Formação de Soldados (CFSD) da
Policia Militar de Pernambuco 2012/2013. Nesta minha dita
trajetória de pesquisa, tento elucidar a presença de quatro
paradigmas antropológicos, inseridos pela instituição no
processo de formação do soldado policial, como um complexo
de forças pedagógicas vigentes e responsáveis na formação
identitária do policial militar que pretendemos assim discutir:
O Centro de Ensino da Corporação como uma instituição
total (Goffman, 1987); a presença de rituais de passagens
como limiares nas mudanças de identidades (Turner,
2008); momentos de evocações totêmicas como estímulos
ao sentimento de pertencimento agregado ao coletivismo
(Peirano, 2003); e as encenações representativas (Goffman,
2003) nos treinamentos performáticos para cumprimento da
função policial na sociedade brasileira.
119
Cristiano José Galvão Faria
Com o intuito de ampliar sua circulação econômica e
seu aparato mercantilista, Portugal já tem incorporado no seu
sistema de governo a configuração de uma política baseada
na filosofia histórica do policiamento, de policiar os espaços
geográficos, as pessoas, os maus costumes, a utilização da
mão de obra escrava e do afugentamento de quaisquer outras
nações que atentem a invadir o seu então espaço físico e
comercial. Segundo Foucault (2008), esta será a interpretação
de um conceito semântico de polícia herdado do século XV,
em que o Estado forte é aquele que consegue policiar e vigiar
as suas relações comerciais, ainda mais incrementados no
século seguinte, no XVI, onde a sociedade é o real substrato
do controle estatal:
120
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
É nesta ascensão de significados, onde o sentido semântico
elaborado na teoria fundamenta-se nas palavras prescritivas do Ato da
Legalidade da Ordem, tais como: governar, patrulhar, vigiar, controlar
e o policiar intervendo na prática das relações de poder, envolvendo
Estado, indivíduo e sociedade, onde o primeiro (o Estado) supera o
segundo, abraçando-o com seu corpo político, que está distribuído
pelos membros das suas organizações institucionalizadas pela
legalidade do poder público.
121
Cristiano José Galvão Faria
(majoritáriamente escravo); e o mundo da desordem (exclusivo
de negros forros, mestiços e outros pobres). Nestes três ditos
mundos, o poder da ordem era exercido pelos senhores da
oligarquia, que delegavam as execuções de policiamento
ao mundo da desordem, que por sua vez encontravam
nas tarefas policiais uma forma de exercer certo poder
territorial, estabelecendo para si um status social ao extrair
alguns benefícios das classes dominantes pelos serviços que
prestavam.
122
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
Além das limitações estruturais, não podemos descartar
o desmazelo com o qual muitos policiais exerciam suas
atividades [...] o fato da força pública ser composta dos
extratos mais pobres da população e de que grande
parte dela era formada por homens de cor fazia com
que estes policiais tendessem a encobrir, sempre que
possíveis contravenções que não lhe parecessem ir
contra os valores de sua classe social. (Cabral & Costa
apud Maia, 2012, p. 160)
123
Cristiano José Galvão Faria
124
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
se tornaram os principais agentes resistentes ao sistema polí-
tico. A censura e a vigilância impostas pelo regime militar/ci-
vil derivaram registros de diversos embates sangrentos que se
tornaram marcos da histórica política brasileira. Esses aspectos
levaram a diversos estudos e pesquisas que tentam explicar e
entender o que de fato aconteceu no regime: monografias, dis-
sertações, teses, livros, filmes, comissões, seminários congressos
etc. Talvez os 21 anos de ditadura militar/civil tenha criado um
distanciamento pessoal, um estranhamento que se caracteriza
por um afastamento dos pesquisadores acadêmicos em relação
a pesquisas que abrangessem estudos da vida social dos po-
licias militares, mostrando mais acintosamente discussões no
âmbito legislativo que elucidasse a necessidade do civil poder
“virar o jogo” e possuir meios de controle e vigilância da refe-
rida instituição coercitiva na luta pelo estado democrático de
direito, como consta a narrativa da tese de Oliveira (2010). Bem,
não quero me deter à história de regimes políticos, mas entendo
que os fatos com mais expressões de contundências chamam
a atenção para os eventos e seus principais protagonistas (chefes,
líderes, presidentes etc.), levando-nos a esquecer de que o nú-
mero de envolvidos, considerados coadjuvantes é bem maior
do que contam a nossa história e são as rotinas mais comuns
das ações policiais na sociedade: as rondas nos bairros, as pre-
venções dos grandes shows e estádios de futebol, a proteção de
autoridades, as intervenções em discussões e brigas de famílias,
as prisões, as perseguições, as fiscalizações de estradas e matas,
realização de partos, contenções de distúrbios nos espaços pú-
blicos, condução de feridos a hospitais, as falhas operacionais,
os abusos de autoridade e outras atividades sociais envolvidas
por diversas ações solidárias, que parecem ficar à margem da
memória historiográfica, mas são esses quadros do drama so-
cial que transparecem as verdadeiras relações entre individuo,
Estado e sociedade. São essas ditas histórias anônimas e roti-
neiras que guardam fenômenos sociais do cotidiano carregados
125
Cristiano José Galvão Faria
de nuances ainda por explorar e que precisam ser registradas,
ressaltando, assim, a importância do campo etnográfico antro-
pológico muito bem exemplificado nas palavras de Laplantine:
126
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
ainda continua respirando as formações militares do passado,
demorando assim a se adequar com a real sociedade
democrática de direito. Todavia, é de extrema importância
compreender, com maiores detalhes, os aspectos que montam
a formação dos atuais agentes de segurança pública. Durante
as entrevistas, conseguimos observar e ouvir dos alunos a
soldados, durante o curso e também após a sua formação,
alguns aspectos normalmente comuns a atual juventude civil,
quando procuram na profissionalização policial uma garantia
de espaço e aumento da relação na sociedade:
128
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
Centros de Formação de Policiais Militares, continuem a basear
a educação policial nas regras da vida de caserna, disciplina
e hierarquia das Forças Armadas, conforme regimento da
Constituição Federal, artigo 144, que ainda estabelece os
padrões da vida militar configurado por leis próprias válidas
para organização. As significativas distinções entre militares
e civis também se figuram dentro das organizações militares,
regulando e limitando as suas relações de acordo com suas
divisões hierárquicas (oficiais e praças), evidenciando seus
comportamentos profissionais nas suas ações de ordem
administrativas e de seus atributos operacionais (policiamento
ostensivo e coercitivo). Essas complexidades hierárquicas
continuam a evidenciar o conteúdo de separação social,
evidente entre os próprios policiais militares, refletindo,
também, nas suas relações com os cidadãos civis.
129
Cristiano José Galvão Faria
setor do complexo industrial (ParqTel e Centro Urbano do
Curado-CUC), onde se estabeleceram algumas indústrias
multinacionais, que chegam também a abranger as cercanias
do município de Jaboatão dos Guararapes. A unidade Escola
da PMPE também fica localizado em um setor que, na
extensão territorial às margens da BR 232, além da Instituição
Policial, se encontram: o Campus de Ensino Metropolitano
– CEMET II; o Centro de Formação do Corpo de Bombeiros;
as bases militares das Forças Armadas; a Polícia do Exército
(PE); a 10ª Cavalaria Mecanizada e o Comando Militar do
Nordeste (CMNE); o Complexo Prisional do Curado, antigo
Presídio Anibal Bruno; o abrigo de idoso Cristo Redentor; e
o Setor Psiquiátrico/Manicômio do antigo Sanatório Sancho,
nomeado posteriormente Hospital Otávio de Freitas. Todas
essas instituições tiveram suas instalações firmadas entre as
décadas de 40 a 70, período em que essa região tinha uma
densidade demográfica bem mais baixa e uma localização
que era considerada deslocada do principal fluxo urbano
da cidade do Recife. Esta conotação de distanciamento e
separação de grupos específicos de indivíduos da maioria
da ordem populacional, dos centros urbanos, caracteriza e
dialoga com o conceito de instituições totais de Goffman (1987),
conceito este também reproduzido na narrativa dos sujeitos
da pesquisa:
130
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
hospício, principalmente quando via gente correndo
de um lado para outro quando a ordem dada era:
“aluno! Você têm dois minutos para trocar de roupa e
entrar em forma!” Quando chegava em casa não tinha
tempo para pensar em outra coisa que não fosse isso.
(Aluno CFSd 2012/2013, Afogados da Ingazeira-PE
2012/2013)
1. Dia da Matrícula;
2. Semana de adaptação;
131
Cristiano José Galvão Faria
carregado de significados e transformações que constam de:
novas vestimentas, novos comportamentos, novos horários,
novas posturas, novos símbolos, novas cerimônias, etc.
132
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
Engraçado quando o Sr. me fez essa pergunta, para
eu responder o que foi que os meus parentes viram
de mudança em mim, depois de entrar na PM? A
primeira pessoa que pensei foi no meu marido. Ele
chegou pra mim, um dia desses, e disse: ‘rapaz tu
agora aumentasse o teu vocabulário, além de tu falar
com mais firmeza vejo que palavrão sai com mais
facilidade de tua boca. Aí eu respondi a meu marido:
- Amor, uma coisa é chamar palavrão para ferir as
pessoas, outra é você está em uma situação de briga
ou num tumulto em um campo de futebol e você não
vai chegar pedindo, por favor, para eles pararem de
brigar não, no mínimo você tem que dizer: Para com
isso porra, ou então vai todo mundo preso! Se não
fizer assim, a galera monta, principalmente eu sendo
mulher! (Aluna CFSd 2012/2013, RMR)
133
Cristiano José Galvão Faria
estão prescritos em documentos normativos, mas que
constituem e fazem parte da vida e do convívio dos policiais
militares: os sacrifícios e esforços corporais (corridas,
pagações, agilidade nas mudanças de vestes, dentre outras
maneabilidades físicas), a mudança de linguagem e as novas
gestualidades (performance), a qual terá que se adaptar.
134
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
135
Cristiano José Galvão Faria
136
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
das interpretações totêmicas. Diante disto, a interpretação
que considero mais convergente com as minhas abordagens,
encontra-se nos estudos comparativos de Radcliffe-Brown. Ao
analisar os mitos de uma sociedade, Radcliffe-Brown detecta
que:
137
Cristiano José Galvão Faria
Pega, Mata e Come! (Aluno CFSd 2012/2013, Sertão de
Salgueiro)
138
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
presentadas pela Corporação Policial, no controle das diversas
relações públicas e privadas entre os indivíduos ou grupos de
pessoas. Durante os seis meses de aprendizados, teóricos e prá-
ticos, vale ressaltar que o Curso de Soldados, não se restrin-
ge apenas a atividades de manobras e treinamentos militares,
atualmente a grande parte do conteúdo da Malha Curricular
são de disciplinas teóricas, as principais envolvem noções de
Direito, Cultura Jurídica, Ciências Sociais e Humanas como um
todo. A implementação destas disciplinas é uma tentativa de
uma formação mais humanizada que começou lentamente a
integrar o currículo das polícias brasileiras, no final da década
de 90, pois ainda se persistia nos cursos privilegiar as discipli-
nas equivalentes às formações das Forças Armadas, que em sua
maioria, eram disciplinas com treinamento voltado para situa-
ção de guerra, de rituais de cerimônias cívico-militares e Or-
dem Unida (continências e marchas). A sala de aula, ainda que
lentamente, tem se tornado um espaço onde os debates teóri-
cos sobre polícia, direitos humanos e preservação da cidadania
passaram a ser ferramentas do conhecimento para que os po-
liciais possam operar de forma mais consciente nas atividades
práticas, principalmente nos serviços de rua, chamados de PO’s
(Policiamentos Ostensivos).
139
Cristiano José Galvão Faria
uma performance típica da cultura afrodescendente. Enquanto
registrava o cenário da aula, aquela simulação de abordagem policial
me levava a refletir que os treinos e aprendizados da escola policial
eram como uma encenação dos bastidores do teatro institucional,
que posteriormente se tornaria uma das reais representações da
práxis policial no drama da sociedade urbana brasileira.
140
Constituição e formação do policial militar de Pernambuco
Em uma das entrevistas, um dos alunos participantes
da encenação na aula de abordagem, agora se encontrava
trabalhando nas ruas da capital pernambucana:
Considerações finais
A partir dos conjuntos de vieses anteriormente comen-
tados, concluímos que a categorização e a formação de uma
nova identidade coletiva dos policiais militares passam por
um período transitório, tal como toda a sociedade brasileira,
clama por melhor exercitar, verdadeiramente, esses já passa-
dos 28 anos da então Constituição Federal, que desencadeou
141
Cristiano José Galvão Faria
o sonhado Estado Democrático de Direito. A pré-estabelecida
institucionalzação da segurança pública, encarnada nos seus
representantes, categoricamente enfatizados em transformar
indivíduos em representantes do Estado ou o que consideram
ser um Quase-Estado, reificam e assumem a presença corpo-
rificada do mesmo como uma constante tentativa de controle
social “civilizador” representativo. A este indivíduo que cha-
mamos de Quase-Estado, fazendo-me referência aos conceitos
de Foucault (2010), que traz uma complexa relação de domí-
nio e execução de ações sociais sobre os indivíduos vincula-
dos a uma difusão de poder sobre o corpo físico e social, onde
fenômenos paradigmáticos de tradicionais discursos socioan-
tropológicos nos faz repensar que a temática Jamais Fomos Mo-
dernos, interpretadas por Latour (1994), poderá nos fazer refle-
tir e parafrasear que nós não pensamos ou agimos com tanta
modernidade, pois, no nosso conteúdo humano, não estamos
tão distantes dos povos primitivos que um dia chamamos de
selvagens.
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144
A chamada “justiça tradicional”
na Guiné-Bissau:
as sombras do passado no presente
Christoph Kohl
Introdução
A noção de “justiça tradicional” é um conceito usado
frequentemente, em particular nas disciplinas acadêmicas de
Direito e Antropologia Social, onde o termo é uma palavra-
chave para estudar o chamado “pluralismo jurídico”.
Pluralismo jurídico refere-se à «coexistence de différents
ordres juridiques concurrents dans un même espace» (Mané,
2011, p. 185). Em muitos casos, a sua existência é atribuída à
[...] incapacidad de la administración de justicia del
estado para aplicar las leyes en la gran mayoría de
su territorio, las funciones de dicha administración
son ejercidas, con más o menos constancia según los
casos, por otros autoridades: las llamadas autoridades
tradicionales. (Farré, 2008, p. 92)
145
Christoph Kohl
seguida, apenas de tais instituições na área de jurisdição que
são muitas vezes como “tradicionais”, tanto na ciência como
em discursos políticos, populares e na socidade civil.
146
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
Durante os últimos anos, o termo “justiça tradicional”
entrou também na área da cooperação técnica para o
desenvolvimento, onde é associado com projetos que visam
a codificar o dito “direito consuetudinário”, baseado nos
“usos de costumes” dos seus usuários, sobretudo nos “países
em desenvolvimento” do “Sul Global”. Assim, “justiça
tradicional” significa também um domínio de atividades para
juristas, criando um novo (e bem-vindo) mercado de trabalho.
147
Christoph Kohl
como as Nações Unidas e a União Europeia, como solução para
a “fraqueza” de um estado “fraco”. Ao mesmo tempo, a codi-
ficação do “direito consuetudinário” é também interpretada
como expressão do respeito das culturas dos diferentes gru-
pos étnicos na Guiné-Bissau.
148
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
No entanto, o Século das Luzes já tinha indicado uma
evolução significativa do conceito de tradição (Lawson,
1993, p. 4; 1996, p. 13; Shils, 1981, p. 4 ss.). Após a Revolução
Francesa de 1789, “tradicionalidade” era associada com certo
tipo de sociedade. Assim, “tradicionalidade” transformou-se
no epítome do Antigo Regime francês:
Traditionality was regarded as the cause or the
consequence of ignorance, superstition, clerical
dominance, religious intolerance, social hierarchy,
inequality in the distribution of wealth, preemption of
the best positions on grounds of birth, and other states
of mind and social institutions which were the objects of
rationalistic and pro-gressivistic censure. Traditionality
became the ubiquitous enemy to every critic of the
ancien régime […]. The first entry on the agenda of the
Enlightenment was therefore to do away with traditionality as
such […]. (Shils, 1981, p. 6)
149
Christoph Kohl
mudança nas formas habituais de comportamento, e
os vários interesses, que costumam estar vinculados à
manutenção da submissão à ordem vigente, atuam no
sentida da conservação desta ordem. (Weber, 2009, p.
22-23)
150
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
individual e vivendo em um estado de equilíbrio (Balandier,
1974, p. 173-184; cf. também Eisenstadt, 1979, p. 45).
151
Christoph Kohl
tentativas de “civilização” colonial e pós-colonial por causa
da sua alegada “primitividade” e “vida tradicional”, foi,
em muitos casos, pronunciada e reproduzida a alteridade
dos “povos indígenas”, transformando-os em “espécies
em vias de extinção”, cuja cultura deveria ser protegida e
preservada. Nesse processo, representantes e organizações
não-governamentais dos indígenas desempenharam um
papel cada vez mais importante, fazendo valer sua agência,
depois de esta ter sido “silenciada” por séculos. Assim,
“tradições” agora foram reavaliadas como positivas. Além
disso, a população dos países do “Norte Global” também
está à procura de tradições, em particular em tempos
da globalização, ou seja, para usar uma expressão mais
antropológica, “glocalização” (Robertson, 1994), que cria
incertezas sociais, econômicas e políticas, ou, nas palavras
de Jürgen Habermas (1985), uma “nova opacidade”. Desta
forma, o destaque dado a certas características consideradas
como “tradicionais” pode prometer orientação e pode servir
como âncora de salvação – pelo menos do ponto de vista
da população afetada. Como consequência deste processo,
certas características culturais podem ser reificadas, quer
dizer: objetivadas. Daí surge, implicitamente, um relativismo
cultural que pretende “defender” as próprias culturas contra
(supostamente e generalizadas más) influências externas, mas,
ao mesmo tempo, realça a existência de culturas (e identidades)
“discretas”, “puras”, “originais” e “objetivas”, que podem
ser distinguidas claramente de outras entidades culturais
e identitárias. Ressoa aqui uma idealização e romantização
de certos grupos e culturas considerados “tradicionais” e
reafirma-se, assim, a ideia weberiana de tradição “que sempre
assim foi”.
152
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
“cidadãos” enfrentaram uma maioria de “indígenas” (ver
Kohl, 2016). As intenções coloniais eram discrepantes: por um
lado, os responsáveis reforçaram, com esta medida, a exclusão
política e jurídica do “espaço civilizado”, reservado, daqui em
diante, aos europeus e a uma pequena camada de africanos
(cidadãos), assim, tentando relegar os “indígenas” (como
produto da política colonial de dividir para reinar) a um papel
de mão-de-obra barata. Por outro lado, já naquela altura,
considerações culturalistas tinham um papel importante: havia
também vozes que reivindicavam a proteção e preservação da
cultura indígena. Deste ponto de vista, um sistema de “justiça
indígena”, separado da “justiça portuguesa”, poderia servir
também para o reconhecimento e a defesa do entendimento
das próprias normas legais indígenas. Uma expressão daquela
política colonial ambígua foram as tentativas de implementar
um sistema legal nativo, ou seja de “justiça tradicional”, a
partir dos anos 20 do século XX.
153
Christoph Kohl
two forms of power under a single hegemonic authority.
Urban power spoke the language of civil society and civil
rights, rural power of community and culture. Civil power
claimed to protect rights, customary power pledged to
enforce tradition. (Mamdani, 1996, p. 18)
154
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
mentiu não só a suposta “proteção dos valores humanos” e
“orientação” dos indígenas pelos portugueses (Moreira, 1951,
p. 37), mas também justificativas oficiais de “assimilar” os
‘indígenas’ em termos culturais, políticos, sociais, educativos
(ver, por exemplo, Moreira, 1951, p. 36-37, jurista e posteriora-
mente Ministro do Ultramar).
155
Christoph Kohl
para os crimes contra as liberdades estatais e civis (coloniais), a
formação de associações criminosas, danos e incêndios (§§20-
21). No entanto, os costumes e tradições (“usos e costumes”)
não eram válidos sem limitação: porque os princípios de
“humanidade” e “civilização” eram prioritários; a aplicação
de castigos corporais, entre outros, foi descartada (§§ 21 e 41).
Com algum atraso, os legisladores coloniais introduziram,
no mesmo ano, regulamentos separados para “autoridades
tradicionais”, atribuindo os seus casos exclusivamente ao
“Tribunal Superior dos Indígenas” (Diploma Legislativo
290). Na Guiné-Bissau as “autoridades tradicionais”, ou
seja, “autoridades indígenas”, são compostas por “régulos”,
que quer dizer chefes “superiores” e “chefes de povoação”;
ou seja, “chefes de tabanka” (“tabanka” sendo a expressão
da língua franca Kriol que se refere a uma “aldeia”); os seus
deveres e tarefas foram definidos em 1920 no Regulamento
das Autoridades Indígenas da Província/Portaria 511A.
156
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
em 1929 e harmonizadas com a legislação em vigor nas então
colônias portuguesas de Angola e Moçambique (Diploma
Legislativo 455 e Estatuto Político, Civil e Criminal dos
Indígenas/Decreto 16.473; ver também Barbosa, 1947, p.
359-362 sobre os detalhes do funcionamento dos tribunais
indígenas). Os tribunais foram rebatizados “Tribunais
Privativos dos Indígenas” e “Tribunal Superior dos
Indígenas”, respectivamente. Os tribunais estavam compostos
(§§ 2-3) pela “autoridade superior” (respectivamente, o
administrador colonial da unidade administrativa), como
presidente, dois ‘vogais’ (juízes adjuntos, “escolhidos para
cada causa pelo presidente entre os chefes indígenas da
região”; Barbosa, 1947, p. 359), dois assessores indígenas
“com funções de mera informação, escolhidos de entre
os chefes indígenas da região de reconhecido prestígio”
(Barbosa, 1947, p. 359) e um escrivão. Nota-se que as “penas
maiores aplicáveis aos Indígenas” foram “as admitidas pelo
Código Penal Português, que deverão ser substituidas por
trabalhos públicos ou correccional” (Barbosa, 1947, p. 361),
assim, ilustrando a discriminação colonial da maioria dos
africanos. Embora o direito consuetudinário devesse aplicar-
se em disputas entre “nativos”, agora a população “indígena”
também poderia optar pela lei portuguesa. A nova lei também
levou em consideração o fato de que o “direito costumeiro”
não era nem uniforme entre os grupos étnicos que foram concebidos
de forma culturalista, nem codificados. No entanto, a suposição de
que existiam grupos étnicos “puros”, bem definidos, cada um
deles com seus respetivos traços culturais (e, portanto, legais),
revelou o zeitgeist culturalista predominante na época. Tanto
os administradores coloniais, como os cientistas da época
[...] believed that pre-colonial Africa had been a land of
tribes, each united by language, modes of subsistence,
kinship, political chief ship [sic], cultural practice and
religious observance, all of which also separated each
tribe from its neighbours, rather as if they were differently
157
Christoph Kohl
coloured billiard balls. (Lonsdale, 1994, p. 132)
158
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
tempo, especificações mais detalhadas para a validade dos
diferentes “direitos consuetudinários” étnicos foram fornecidas:
enquanto em conflitos familiares os costumes do grupo étnico
do marido fossem declarados decisivos, em caso de heranças
foram os costumes do testador, e em processos de propriedade,
os costumes em vigor no local da propriedade (§§6-7).
159
Christoph Kohl
coleta de algumas informações sobre “usos e costumes”
locais e, de uma forma rudimentar, regras legais costumeiras.
Cinco relatórios foram posteriormente publicados no Boletim
Oficial da colônia (Alves, 1911; Ramos da Silva, 1911; Castro
Fernandes, 1911; Gomes Barbosa, 1911; Pereira, 1912).
Outro decreto, emitido em 1927 (Portaria 70), exigiu que os
administradores dos distritos conduzissem pesquisas entre
as várias “raças” e suas características étnicas. Parte deste
projeto foi, de acordo com o questionário, a investigação de
questões específicas ligadas ao “direito consuetudinário”, tais
como normas de propriedade e de casamento, contribuindo à
“codificação dos usos e costumes” jurídicos (Carvalho, 1929, p.
191). Apenas duas respostas foram posteriormente publicadas
(Pimentel, 1927; Menezes, 1928). Um decreto de 1945 (Decreto
34.478) autorizou explicitamente a realização de pesquisas
“antropológicas” e “etnológicas” nas colônias, entre outras
coisas, com o objetivo de estudar “instituições tradicionais” e
o “direito costumeiro” da população indígena (§1). Loureiro
Bastos (s.d.: 8-9) menciona duas outras tentativas feitas pela
administração colonial para pesquisar sistemas jurídicos
“nativos”: uma em 1918, com o objetivo de elaborar um “código
de justiça natural”, e outra em 1934, visando à codificação
dos “usos e costumes” locais. No entanto, resultados nunca
foram publicados. Mais uma tentativa seguiu em 1947, com
a denominada “Pesquisa Etnográfica” que, entre outros
assuntos, incluiu a coleta de dados juridicamente relevantes
(Teixeira da Mota 1947). Baseados, entre outros, em resultados
daquele levantamento, posteriormente foi publicada uma
série de estudos sobre o “direito costumeiro”, tanto artigos
em periódicos como monografias, pelo então Centro de
Estudos Africanos em Bissau. Algumas monografias foram
reimpressas mesmo depois da independência (por exemplo,
Silva, 1958, 1969, 1980, 1983; cf. Loureiro Bastos s.d., p. 9). Após
a independência, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa
(INEP) e a Faculdade de Direito de Bissau (FDB) continuaram
160
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
a publicar estudos sobre o “direito costumeiro” (cf. Loureiro
Bastos s.d., p. 8).
161
Christoph Kohl
162
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
dos esforços para uma reforma do setor da segurança (RSS)
no país, com o objetivo de “estabilizar” a Guiné-Bissau, que
continua a ser caracterizada por instabilidade política, golpes,
tentativas de golpes etc, já há décadas (ver Kohl, 2014 para
uma visão global e as razões do fracasso de muitos projetos
reformistas).
163
Christoph Kohl
projetos implementados na Guiné-Bissau nos últimos anos. O
projeto conjunto do PNUD e da UE, que durou de 2008 a 2011,
visava o levantamento e codificação do direito consuetudinário
vigente em seis gupos étnicos na Guiné-Bissau, continuando
dessa maneira um projeto colonial.
164
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
in Portuguese”, como frisou o meu interlocutor do PNUD. Um
jurista guineense que colaborou em coletar os dados afirmou
que sempre houve também colegas fluentes na(s) língua(s)
faladas nas aldeias em questão. Kriol é uma língua crioula
com origens no português, e hoje falada e entendida por mais
de 90% da população guineense, enquanto o português, a
língua oficial, é um idioma minoritário (Instituto Nacional de
Estatística 2009, p. 19). No entanto, aquele processo de pesquisa
mostrou-se bastante difícil, como frisou o meu interlocutor:
It is to know that the customer law is actually gathered
together in focus groups with different representatives
of their particular village. So this means that they it
was a real fieldwork as you can imagine, with different
representatives, like for example women, children,
elders, leaders etc., so different layers of society in
that particular village. It is very interesting and it is
very complicated. Because you have to get to a point
where everybody agrees, at least most of the layers
represented agree, that there are particular norms, so
that it looks like theirs, so it is regulated that way by
the ethnic group of their village.
165
Christoph Kohl
O relatório publicado foi julgado como primeira etapa de
um processo mais amplo: Numa segunda etapa, a compatibi-
lidade do “direito tradicional” coletado com as normas legais
nacionais e internacionais deveria ser verificada, ou seja, se o
“direito costumeiro” fosse “according to human rights prin-
ciples and international standards and which aspects are [...]
slightly different or sometimes even radically different from
state law [...]? And that is something that has to be discussed
seriously – but this is just the starting point.”
166
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
O desenho do projeto e alguns comentários de colaboradores na
realização da codificação revelam um entendimento culturalista
que percebe as etnias como entidades discretas, com limites
claros e “conteúdos” culturais bem definidos – e não produtos
de ações humanas, quer dizer, construções sociais baseadas em
processos subjetivos de delimitações identitárias em relação a
outros grupos, como propôs o antropólogo norueguês Fredrik
Barth (1969), um dos fundadores da abordagem construtivista
nos estudos de etnicidade. Um dos colaboradores no projeto
indiretamente revelou a sua convicção, quando constata uma
“communicabilité plus facile qui existe maintenant entre les
différents groupes ethniques” para, enfim, revelar que: “De
nos jours aucun individu ou groupe est confinée à un territoire
ethniquement homogène.” (Mané, 2011, p. 194) Em outras
palavras, antes da “modernização” da sociedade guineense
teriam existido territórios etnicamente homogêneos, porque
teria existido pouco ou não teria existido nenhum intercâmbio
interétnico. Isto significa que originalmente teria havido
etnias homogêneas residindo em áreas bem-definidas, em
tabankas etnicamente homogêneas, cada grupo com a sua
própria cultura, coexistindo com outros grupos como “bolas
de bilhar” (nas palavras de John Lonsdale) – um pensamento
primordialista e culturalista. Em outras palavras, apesar das
declarações contrárias, o projeto ignorou, em grande parte, a
mistura étnica devido a casamentos e relações interétnicas e a
complexidade da convivência de indivíduos de várias origens étnicas
e culturais nas aldeias e nos aglomerados (semi-urbanos). A convicção
primordialista e culturalista é afirmada pelo mesmo colaborador do
projeto com o comentário seguinte: “[...] la complémentarité des
avtivités économiques, pratiquées par les différents groupes
ethniques, les oblige à interagir, et crée, par conséquent, une forte
interdépendance économique entre eux“ (Mané, 2011, p. 189).
167
Christoph Kohl
das últimas décadas, que analisam o surgimento, sob a
dominação colonial, de etnicidades, novas tradições e do
direito costumeiro codificado e “inventado”, e nem parecem
ter consciência das implicações ligadas à codificação do direito
tradicional. Assim, a abordagem do projeto assemelha-se a
uma viagem no tempo, de volta à época colonial. Porque tanto
para os funcionários coloniais quanto para os colaboradores
do projeto do PNUD e da UE.
African societies represented precisely the sort of small-
scale, integrated ‘organic community’ of order, stability
and harmony that they idealized and feared would be
destroyed by the development of capitalism. Tribal
societies thus represented a form of social order and
culture which colonial officials also valued and regarded
as ‘natural’ for Africans. (Berman, 1998, p. 320)
168
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
of resources against the interests of juniors, women and
migrants. Codified custom concealed the new colonial
balances of wealth and power. (Berman, 1998, p. 321)
169
Christoph Kohl
como pertencente à comunidade, mas onde indivíduos
estão desenvolvendo estratégias para também poder possuir
vacas individualmente. Neste sentido, o jurista guineense
que colaborou em coletar dados nas aldeias e com o qual
conversei no início de setembro de 2014, opinou que sempre
há “variação” por causa de “infiltrações” por outras etnias;
assim, teriam entrado características em um grupo que não
eram “originárias” daquela comunidade.
170
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
levar em consideração normas sociais básicas como os valores
de liberdade, justiça e isonomia etc., e, consequentemente,
os direitos humanos. Ou seja, mesmo na Europa o “direito
costumeiro” não continua a existir sem alterações e sem tido ter em
conta considerações filosóficas; muito pelo contrario, certas normas
(por exemplo, a pena capital, os direitos humanos) tiveram de ser
impostas contra o “direito costumeiro” ancestral e o “sentimento
popular”.
171
Christoph Kohl
autoridades tracionales porque hay poblaciones que las
reconocen y recurren a ellas” (Farré 2008: 92). Um grupo
decisivo entre as chamadas “autoridades tradicionais”
envolvidos na “justiça tradicional” são os “régulos” – além
dos líderes religiosos e notáveis e/ou idosos respeitados
num sentido mais amplo. Como mostrou Oomen, usando o
caso da África do Sul como exemplo, a aprovação ou rejeição
de “autoridades tradicionais” depende de vários fatores –
e também diz respeito à consulta deles para pedir justiça.
Entre os fatores contam-se a associação das “autoridades
tradicionais” com as raízes “culturais” da comunidade
local, o estilo de liderança do líder, o reconhecimento das
“autoridades tradicionais” pelo estado e a falta de alternativas
às “autoridades tradicionais” (Oomen 2006). Por isso, sem ter
dados quantitativos, os chefes guineenses também gozam da
aprovação de alguns cidadãos, mas são rejeitados por outros.
Em muitas conversas na Guiné-Bissau aprendi também que,
como no caso da África do Sul, a aprovação de um líder
“tradicional” pode se referir apenas a um assunto específico,
enquanto eles sejam recusados pelo mesmo indivíduo com
relação a outro assunto.
172
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
chefes impostos pelos portugueses (Braga Dias 1974: 176-178).
O poder colonial também não hesitou em usar as “autoridades
tradicionais” para fins políticos, como ocorreu na Guiné-Bissau
pouco antes da independência, quando chefes serviram como
representantes “autênticos” da população local nos ditos
“congressos do povo” (Belchior 1973). Às vezes as tentativas
de manipulação do estado colonial acenderam, em parte,
disputas persistentes sobre a legalidade das “autoridades
tradicionais” e seus sucessores entre diferentes facções, conflitos
persistentes em parte até hoje. Por esta razão foram entronizados,
por exemplo, apenas chefes interinos em partes da Guiné-Bissau
colonial. Em outros casos chefes já não foram nomeados pelo poder
colonial devido a constantes conflitos entre diferentes aspirantes
(Havik 2010: 178-180, 186). Por isso, neste contexto a expressão
“tradicional” deve ser sempre vista com desconfiança e cautela,
já que há casos quando a imposição de um “líder tradicional”
aconteceu apenas na época colonial, em meados do século
XX, enquanto a aceitação de uma “autoridade tradicional”
pela população pode ser limitada. Sucessivamente, os chefes,
como “intermediários” do domínio colonial, foram colocados
em uma situação de dependência do estado colonial.
173
Christoph Kohl
mediação por um chefe, porque ela custa dinheiro (ou, como
algo equivalente, um animal domesticado para o consumo,
segundo o valor da causa).
174
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
no prelo), sobretudo religiosas, que tentariam manipular
a as pessoas com objetivos políticos. Mesmo hoje em dia as
“autoridades tradicionais” não contariam a verdade e só queriam
“comer dinheiro”. Caso eles tivessem recebido oficialmente
pelo estado o direito de fazer justiça, seria necessário um certo
grau de educação – muitas seriam analfabetos – e eles teriam
de respeitar a constituição e as leis do estado.
175
Christoph Kohl
de estabelecer um órgão autárquico “democrático” e
“progressista” à base da sociedade. Um comitê compreendeu
cinco membros com diferentes responsabilidades, tais como
produção agrícola, defesa e segurança, educação, distribuição
de material e assistência de pessoas (militares, hóspedes etc.)
e registro civil. Dois a três membros do comitê deviam ser
mulheres (Andreini e Lambert 1978, p. 39-40). No entanto, já
após a independência muitos comitês foram marginalizados
pela política nacional e em vários casos dominados pelos
“líderes tradicionais” das tabankas. Outros foram ignorados
pelas estruturas políticas ou religiosas tradicionais (Forrest,
2002, p. 245-246). Hoje em dia, após o fim do estado de partido
único em 1994, muitos comitês de tabanka continuam a existir
como órgãos informais, sem base na constituição ou em outras
leis. Parece que atualmente alguns comitês são compostos por
pessoas notáveis do cenário local, ou seja, homens idosos e/
ou respeitados (por causa de atividades políticas, econômicas
etc. ou por descender de famílias importantes, quer dizer,
de régulos, chefes de tabanka etc.), incluindo representantes
religiosos como, na região leste da Guiné-Bissau dominada
pelo Islã, os imãs. No entanto, pelo menos no caso de Geba, os
instrumentos de sanções do comitê são limitados, sobretudo
porque é uma instituição informal e não parece ter aceitação
além dos limites da aldeia e por parte de seus moradores
(quase) permanentes, mas é pelo menos capaz de condenar
moralmente comportamentos classificados como incorretos.
Isso aconteceu, por exemplo, no caso de um ex-membro do
corpo da polícia judiciária residente em Geba. Já no passado,
foi criticado por uma parte dos moradores de ter desviados
fundos de um doador internacional para construir uma escola
na aldeia, a qual, afinal de contas, nunca foi construída. Por
outro lado, é um comerciante que também tem relações com
as forças de segurança e oferece vários serviços comerciais
(no passado, um transporte fluvial para Bafatá, a sede da
região, mas o barco já não funciona há anos devido à falta
176
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
de manutenção; e uma máquina para descascar arroz, que
é cultivado em Geba e nas aldeias vizinhas) potencialmente
úteis para a tabanka. Contudo, quando ele ajudou no contexto
do assassinato os pastores Fula – ele mesmo pertence ao grupo
Mandinga – por “fazer desaparecer” o corpo do gambiano
assassinado, supostamente após ter recebido um suborno pelos
autores do crime e pela pessoa por trás deles, um comerciante
rico, ele tinha desempenhado o seu papel aos olhos não só do
comitê, mas também da população comum de Geba. O papel
do comerciante de Geba ficou ainda mais complicado devido
ao fato de que alguns residentes, majoritariamente jovens,
foram detidos arbitrariamente por um dia inteiro pelas forças
armadas após ter buscado o gambiano desaparecido no mato.
Segundo os moradores, tal condenação do comportamento
do comerciante pelo comitê nunca teria ocorrido antes. Ao
mesmo tempo, o setor de justiça em Bafatá ainda não se tinha
pronunciado sobre o caso durante a minha estadia.
177
Christoph Kohl
é normativamente indicado pelo população, mas que, de fato,
é contornada em muitos casos (Borszik, 2008, p. 67-68).
178
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
estatais): Borszik (2000, p. 73) confirma minhas próprias
observações que polícias convidem as partes envolvidas em
conflito para a delegacia para “sinta junto”, ou seja, sentar-
se juntos, para buscar, através de conversas prolangadas,
soluções e compromissos e assim resolver uma disputa e/
ou reconciliar sem intervenção da justiça – um processo que
tem semelhança ao modo tradicional de resolver conflitos nas
tabankas. Assim, o envio de um caso ao setor de justiça pode ser
usado como ameaça pela polícia numa tal reconciliação, caso
as partes em conflito não entrarem em acordo, salienta Borszik
(2008, p. 73). Em muitos casos, as pessoas temem resolver
casos através da justiça oficial-estatal, porque o setor tem a
reputação de ser ineficiente e caracterizado por corrupção,
processos intermináveis, opacidade e custos imponderáveis e
sanções, incluindo prisão e multas (ver Bock, 2008, p. 171 e
Kohl, 2015).
179
Christoph Kohl
aquela matrinlinearidade tradicional está em conflito tanto
com a prática oriunda dos centros urbanizados, como com
as leis influenciadas por modelos europeus/portugueses
que constituem a base de uma mudança normativa: hoje em
dia, a patrilinearidade substitui cada vez mais princípios
matrilineares. Segundo Gomes Viegas (2008), que analisa este
conflito em Biombo, a discrepância pode não somente resultar,
como na maioria dos casos, em reconciliações, mas também
em justiça pelas próprias mãos ou ainda em maldições mágicas
dos adversários.
Considerações finais
O caso da Guiné-Bissau reconfirmou que conceitos como
‘direito’ e ‘justiça tradicional’ e ‘moderna’, ou como ‘seguran-
ça’ e ‘justiça’ são simples demais para responder às complexas
realidades e práticas sociais. Pelo contrário, os setores de se-
gurança e justiça estão fortemente interligados. Espaços so-
ciais podem ser imaginados não só como uma continuidade,
mas, sobretudo, como uma arena onde está ativa uma multi-
dão de atores que muitas vezes ultrapassam os binarismos de
‘segurança’ e ‘justiça’, ‘estado’ e ‘não-estado’, ‘tradicional’ e
‘moderno’, assim sublinhando a flexibilidade e situacionali-
dade dos setores de segurança e de jurisdição. Muitas vezes
fala-se de um “forum-shopping” ou, respectivamente, da pro-
cura por um foro mais favorável segundo os desejos e neces-
sidades de usuários. No entanto, este processo não deve ser
concebido como um espaço sem poder. Além disso, discursos
de “forum-shopping” enfatizam de uma maneira unilateral o
lado da oferta. Contudo, como mostrei, não é sempre o caso
que usuários podem escolher livremente entre uma ampla va-
riedade de ofertas, ou seja, atores ativos na área de justiça (e
segurança). Enquanto usuários conseguem às vezes fazer es-
colhas de uma forma racional-econômica, eles muitas vezes
simplesmente precisam recorrer a atores disponíveis e acessí-
180
A chamada “justiça tradicional na Guiné-Bissau
veis, tanto em termos de distância geográfica quanto em ter-
mos financeiros. O projeto neocolonial de codificação do direito
consuetudinário, impulsionado pelo PNUD e pela UE e, sobretudo,
por juristas, pode ser explicado, em parte, por um entendimento e
uma imaginação romantizados e idealizados da vida rural em geral
e de processos políticas e jurídicos em particular. Ainda mais: de
uma maneira implicitamente culturalista, os responsáveis daque-
le projeto – todos pouco ou não familiarizados com estudos
históricos e sócio-antropológicos que analisaram criticamente
planos e medidas semelhantes realizados por vários poderes
coloniais na África – concebem o direito chamado ‘tradicional’
e as etnias como fatos substancializados, ou seja, realidades
objetivas e absolutas, em vez de percebê-los como construções
sócio-culturais. Assim, eles estão convencidos da possibilida-
de de ‘descobrir’ ou ‘expor’ estruturas e normas que estejam
‘lá fora’ – estruturas para a ‘fabricação’ das quais, na realida-
de, eles mesmos contribuem, assim criando uma nova ‘infle-
xibilidade’ e cimentando sistemas sociais, políticos e jurídicos
até então caractierizados por flexibilidade. Desse modo, eles
revelem uma compreensão conservadora, estática e culturalis-
ta de ‘justiça tradicional’, simplificando dramaticamente pro-
cessos acerca da procura de justiça e segurança, em particular
em ambientes rurais. Com esta perspectiva, muitas vezes sem
embasamentos empíricos e sem diálogos com as pessoas dire-
tamente envolvidas na jurisdição local, os protagonistas con-
tribuem, de fato, para uma divisão da sociedade ao longo de
linhas étnicas. É o caso do ‘direito costumeiro’ que um dia será
transformado em lei pelas instituições guineenses. Assim, a
codificação seria contraprodutiva: em vez de produzir um
fortalecimento da jurisdição e da sociedade para resolver con-
flitos, o resultado pode ser o contrário. Portanto, nem todos
os projetos de desenvolvimento na área de reforma do setor
de segurança e de justiça, que pretendem ser benéficos para a
população comum, defendendo uma abordagem e visão ‘por
181
Christoph Kohl
baixo’, contribuem à integração nacional, mas, ao contrário,
podem abrir a caixa de Pandora do chamado ‘tribalismo’, po-
tencialmente não só usurpado por indivíduos ‘por conta pró-
pria’ em processos judiciais, mas também por políticos, parti-
dos e personagens influentes para fins de poder e lucro.
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190
A lei na carne:
hierarquia e sujeição
em Pierre Clastres e Franz Kafka
Antonio Santos
Arthur Prado
Raiza Cavalcanti
Introdução
A filosofia encontra na literatura um aporte ilustrativo do
real. As relações de parábolas estabelecidas pelos pensadores
com a arte fazem com que as suas filosofias se tornem
complementares à imagem proposta pelo autor. Franz Kafka
é certamente um dos autores mais referenciados pela filosofia
contemporânea: as correspondências entre Walter Benjamin e
Theodor Adorno, os agenciamentos de Gilles Deleuze e Felix
Guattari, as relações paradigmáticas de Giorgio Agamben, e
finalmente as ilustrações proporcionadas pelas investigações
antropológicas de Pierre Clastres.
191
Santos, Prado, Cavalcanti
Não existem vilões, mas tudo o que se apresenta em
torno do protagonista leva à sua derrocada. Esse ambiente
hostil que encurrala os personagens é embebido da burocracia
estatal ou da submissão hierárquica típica das instituições, seja
a família ou as implicações de um processo legal. A potência
do indivíduo é medida pela sua capacidade de se manter sob
aquela ordem ou pela obediência à sujeição.
22 Os termos “tribo” ou “primitivo” são aqui usados entre aspas, pois se referem
a textos antigos inspirados em ideias evolucionistas do século XIX ou até mes-
mo usados de forma livre pelo próprio Clastres.
192
A lei na carne
Neste sentido, a obra de arte proporciona ao seu receptor
um feixe de interpretações múltiplas. O presente trabalho tem
por função principal a de elucidar o aspecto ressaltado por
Clastres de uma maneira que se compreenda o texto de Kafka
a partir da interpretação do antropólogo em conjunto com
suas implicações políticas e filosóficas. Tendo isto em vista,
é possível ir além da pontual questão da tortura e estabelecer
novos limites para a discussão entre a literatura aqui abordada
e a antropologia política.
193
Santos, Prado, Cavalcanti
pertencimento do indivíduo na “tribo” traz à tona sua relação
dialógica com os demais suscitando como ele se estabelece numa
dinâmica cultural, provocando ainda o questionamento sobre
a história daquele grupo. Essas dinâmicas pressupõem uma
relação de poder? Como se exerce poder de um sobre o outro, ou
de um sobre um grupo de indivíduos? Isso é sequer possível nas
sociedades “primitivas”? Todas essas indagações direcionam
para como se estabelece uma relação de chefia na “tribo”.
194
A lei na carne
Engana-se aquele que pensa que estamos diante de
um ponto de involução por sempre remeter à autoridade
como aquele que decide a vida do outro ordenado. A visão
eurocêntrica das “sociedades primitivas” na verdade desvela
a condição de existência da sua própria sociedade sob a
égide do Estado moderno. Os preconceitos aplicados à teoria
antropológica clássica são intolerantes para quem apresente
um modo de vida diferente da racionalidade hierarquizada
regida pelo poder central soberano e suas instituições
burocratizadas:
195
Santos, Prado, Cavalcanti
A teoria da chefia em relação aos povos “primitivos”,
segundo Clastres, distingue o poder e autoridade política da
“tribo”. A teoria antropológica tradicional expõe a “sociedade
primitiva” pela ausência da instituição ou pelo excesso desta
mesma instituição.
196
A lei na carne
Desta forma, há um diferencial entre poder e coerção.
O chefe não pode permitir que seja prolongada a hostilização
entre demandas conflitantes do grupo. A função de juiz
exercida pela chefia acontece raramente, mas quando vem a
ocorrer deve ser compelida de uma postura de equidade e que
a sua palavra seja um instrumento para a reconciliação:
197
Santos, Prado, Cavalcanti
para quem o escuta, lições de paz, harmonia, virtudes
recomendadas para que se tenha uma conduta pacífica e justa.
198
A lei na carne
reencontrar a primeira família, inaugurando assim um novo
ciclo. Mas o cargo é hereditário: não se trata aqui de troca,
mas de dádiva pura e simples do grupo ao seu líder, dádiva
sem contrapartida, aparentemente destinada a sancionar o
estatuto social do detentor de um cargo instituído para não se
exercer (Clastres, 2013, p. 59).
199
Santos, Prado, Cavalcanti
totalmente do chefe para se satisfazer, mas existe uma forma
de chantagem que a comunidade exerce sobre o chefe: o
discurso do chefe pode ser escutado, ou não, e o discurso de
autoridade é duro. Este na sua solidão da fala tem mais valor
que sinais. A opulência do líder é venerada na sua impotência.
200
A lei na carne
A junção dos dois sentidos acima explicitados faz nascer
a condição política primal do indivíduo nas sociedades
“primitivas”, o que se observa como a terceira função
conclusiva: o corpo como apresentação. Aqui se pretende
diferenciar apresentação de representação. A autoridade que
delega funções aos subordinados, assim como as instituições
do Estado ou na colônia penal kafkiana, é dotada de
representação. A despolitização conferida pela antropologia
etnocêntrica europeia às “tribos primitivas” por não
encontrarem a figura que equivalesse à autoridade se trata
de um “mal-entendido” pernicioso cheio de más intensões. O
poder aqui não é conferido por um representante do poder
central, mas acontece na própria apresentação do corpo e ele
diz: “Eu posso porque sou da comunidade e faço parte da
partilha do comum”.
201
Santos, Prado, Cavalcanti
É neste ponto onde Kafka é tão precioso à crítica aqui
pretendida. O contraponto oferecido factualmente pela razão
do Estado moderno gerindo a sociedade ressalta a metáfora
presente na colônia penal. A ironia kafkiana monta uma
topografia abstrata da razão do Estado. O corpo é algo passível
de punição e sujeição, não afirma uma subjetividade, mas
faz parte do maquinário. Ele é parte integrante da máquina
de talhar a pele, sem ele não existe sentido para o engenho
desenvolvido por aquele que há de mais próximo de legislador
originário.
Na colônia penal
A facilidade de montar um resumo ou uma sinopse de
uma estória de Franz Kafka se limita apenas ao estabelecimento
de um enredo simples, algo típico de seu estilo. Porém, esse
enredo nunca vai garantir a abrangência de seus escritos.
Qualquer explanação mais aprofundada se tornará numa
202
A lei na carne
expressão de pensamento própria do leitor que encara o texto.
Por isso a obra do escritor tcheco é tão preciosa à filosofia.
As estâncias e reentrâncias presentes em seus textos garantem
um caminho a ser trilhado com o real, externo ao imaginário
da narrativa. A estagnação do personagem diante daquele
mundo, como já estabelecido, se torna, de certa forma, a
estagnação do leitor ao terminar o texto que ao ser provocado
tem como primeiro impulso reler o mesmo para depois buscar
o seu sentido.
203
Santos, Prado, Cavalcanti
é parte integrante do mecanismo, ele é necessário para manter
viva a instituição.
Kafka e Clastres
Pierre Clastres vê nesta última um contraponto à vida
política das sociedades primitivas as quais possuem como
rito de passagem a escrita da lei da “tribo” na pele do
indivíduo membro da comunidade. Isto é operado como
artifício de inclusão do sujeito em seu meio. O antropólogo
francês pretende na sua compilação de textos intitulada A
Sociedade contra o Estado estabelecer uma antropologia política
204
A lei na carne
desmistificando a vida das sociedades ‘primitivas’ diante
da visão eurocêntrica acerca da vida indígena. A pretensão
do presente artigo é mostrar como a literatura de Kafka,
assim como as sociedades ‘primitivas’, da maneira orientada
por Clastres, podem servir como ilustração da condição do
indivíduo inserido no contexto do Estado moderno.
205
Santos, Prado, Cavalcanti
desse comandante, dessa origem inacessível do direito (a não
ser através do túmulo do antigo comandante), o que sobra são
seus papeis, seus rascunhos, ou seja, aquilo que foi dito por
ele e cristalizado no papel. Este dito é o que é tomado como
enunciado constativo, exercendo a função de conservar esse
direito.
206
A lei na carne
mentiras por outras e assim por diante. Mas agora eu o
agarrei e não o largo mais. (Kafka, 1998, p. 38-39)
207
Santos, Prado, Cavalcanti
vazio e atemporal. Seu fim não é um estado de coisas. O dever-
ser não se dirige a um ser, mas a um querer. O fim da lei moderna é
a sujeição. A lei tribal, de outro lado, só pode ser tida como meio no
sentido de ambiente, na medida em que é a partir dela que a “tribo”
decide pela organização da vida em comum.
208
A lei na carne
Incomoda a distância que separa o explorador culto e
educado do soldado e do condenado, assim também como
dos trabalhadores portuários da casa de chá, a quem só sabe
distribuir uns trocados. Eles são seres humanos descritos
como animais e percebidos como tais pelo viajante, esse
representante dos ‘direitos humanos’. Com a morte do oficial
e a destruição da máquina, essa separação não diminui, mas
continua inalterada. Aliás, o próprio viajante se esforça, com
irritação e violência, em conservá-la: ameaça os dois comparsas
com uma ‘pesada amarra’ quando querem alcançá-lo e
embarcar no mesmo navio: isto é, quando quase conseguem
deixar a ilha. Com todas as suas luzes, o viajante só deseja
fugir desse lugar sombrio e, também, impedir algo realmente
decisivo: que outros homens, esses ‘homens-animais’ como
diz Nietzsche, possam dar o salto (‘Sprung’) para fora da
colônia penal. (Gagnebin, 2006, p. 143).
209
Santos, Prado, Cavalcanti
Crítica
As estruturas de saber tradicionais podem servir a
antropologia como ponto de partida para uma diferenciação,
podendo ser analisada com o intuito de se afastar de
enquadramentos tradicionais reducionistas, pois a cultura do
outro que está distante não se adequa apenas a tais demandas.
É possível, a partir de Clastres, opor a lei tribal à lei moderna,
conduto é necessário ter em mente que há limitações em sua
teoria.
210
A lei na carne
um poder político centralizador. Clastres aborda o mito jun-
to ao tema da resistência guarani em ceder diante da religião
dos brancos, fortalecida pela promessa dos antigos deuses de
serem levados à terra eterna (Clastres 2013, p. 176). Os autores
apontam ainda para o caráter generalizador das afirmações de
Clastres (Combès & Villar, 2013, p. 210), marcadas por uma
abstração tal que se estendem dos tupinambás do século XVI
aos mbyá ou chiripás do Paraguai atual. É importante aten-
tar para as observações de Diego Villar que, no caso do mito
da Terra Sem Mal, apontam para suas diferentes recepções e
traduções, para além da etnografia francesa e para além do
próprio ambiente acadêmico. A trajetória do mito da Terra
Sem Mal, mencionado na Constituição do Estado Plurinacional
da Bolívia (Combès & Villar, 2013, p. 219), revela a dissemina-
ção dos sentidos de uma narrativa de fundação, marcada mais
por uma ambiguidade do que por uma pura oposição entre
sociedades com Estado e sociedades sem Estado.
211
Santos, Prado, Cavalcanti
há uma intensa vivência da lei punitiva inerente ao indivíduo.
O alicerce desta lógica seria a construção do tabu, pois
quase todas as regras estabelecidas estão como proibições.
O medo do julgamento do divino e o receio de ser isolado
pela comunidade afastam e consolidam a força vinculante
da lei nos costumes da “tribo”. Esta é a perspectiva proposta
anteriormente por Bronislaw Malinowski. Segundo o mesmo,
os mandamentos positivos, quando não são realizados, têm
um caráter punitivo. A maquinaria não pode ser prolongada
para fora da linha que distingue a lei civil e a lei criminal.
212
A lei na carne
Caso o indivíduo fizesse de maneira exemplar o que fora
apresentado ele seria recompensado, assim como seria punido
aquele que fosse negligente em sua função. A investigação
do social deve ter a cautela de uma análise: pois este mesmo
indivíduo, embora que raramente, em algum momento
executará atos que ferem os costumes e se refletem nos tabus.
Considerações finais
Neste trabalho, apresentamos primeiramente uma crítica
às concepções antropológicas tradicionais que caracterizavam
as sociedades primitivas principalmente pelo seu apolitismo.
Desvinculando-se a noção de política de um poder exterior e
transcendente, observamos que é possível observar relações
de força e um aspecto propriamente político na tribo, marcado
por uma concepção de política que é imanente, contrapondo-
se ao paradigma da lei moderna.
213
Santos, Prado, Cavalcanti
A contraposição entre lei tribal e lei moderna é bem
explicitada na contraposição entre os relatos de Pierre Clastres
e o texto de Kafka, Na colônia penal. A lei moderna seria
caracterizada por um distanciamento dos indivíduos, sendo
essencialmente autoritária e mística. Na colônia penal, o teor
da lei é revelado na frase “a culpa é sempre indubitável”. Seu
caráter inescapável e inefável faz com que diante dela só haja
uma sujeição vazia e culpada. A lei das sociedades primitivas,
por outro lado, estaria enraizada na comunidade, sendo
expressão de uma partilha do comum e fundamentada em
uma ideia de pertencimento compartilhada pelos membros.
As considerações de Clastres permitem contemplar um modo
de vida diverso daquele ofertado pela concepção atual de
Estado, público e privado, possibilitam ainda pensar acerca
da diferença sem deprecia-la, mais ainda, numa possibilidade.
Contudo, tal oposição entre lei tribal e lei moderna, no entanto,
não pode se sustentar por si só. Não podemos simplesmente
estabelecer uma distinção entre a lei transcendente e a lei
imanente, a lei que ameaça e a lei que liberta. Não é possível
simplesmente afirmar que não há sujeição nas sociedades
“primitivas”.
214
A lei na carne
não implica uma simples negação de conceitos, mas a
necessidade de investigar como tais conceitos, como a sujeição
e a autoridade, possuem novas configurações nas sociedades
primitivas.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921).
Tradução Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo:
Duas Cidades; Ed. 34, 2011.
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MOUFFE. Chantal. Sobre o político. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2015.
SOUZA, Ricardo Timm de. Kafka: a justiça, o veredicto e a colônia
penal, um ensaio. São Paulo: Perspectiva, 2011.
215
Demarcação de terras indígenas:
abordagens entre a Antropologia e o Direito
Introdução
Não se pode recusar o importante papel atribuído ao
Judiciário no que concerne à estipulação de alguns marcos
teóricos em relação às terras indígenas, tendo em vista o
novo paradigma instaurado pela Constituição de 1988;
tendo dedicado especialmente os artigos 231 e 232 aos povos
indígenas. Ainda persiste certa incompreensão a respeito da
natureza do território indígena e das repercussões jurídicas
correlatas. O próprio processo em que a discussão dessa
temática é desenvolvida revela, por si, essa marca em diferentes
perspectivas. Destaca-se que o procedimento de demarcação
de terras indígenas é regido pelo Decreto 1775/96; no qual a
Antropologia tem um destaque fundamental, especialmente
na fase de identificação e delimitação de terras, através de um
criterioso estudo de natureza sociológica, ambiental, etno-
histórica e jurídica. É justo ressaltar que neste procedimento
existem inúmeras controvérsias no âmbito do judiciário e
nos órgãos de defesa indígena como a União e a Funai, o que
compromete para a finalização deste instrumento que, de fato,
garante o direito à posse das terras tradicionalmente ocupadas
pelos indígenas. As questões que envolvem as terras indígenas
são muito complexas e conflituosas, devido, sobretudo,
às interpretações fora dos limites fixados pelo art. 231 da
217
Gilberto Romeiro & Fernando Maia
Constituição Federal de 1988 (Borges, 2014). A regulamentação
do processo de demarcação de terras indígenas já passou por
diversas modificações desde a sua implantação, tornando-se cada
vez mais complexo e envolvendo cada vez mais a Antropologia
e o Direito; bem como as diversas instâncias do poder, o que
exige a discussão de novas mudanças que indicam certo
retrocesso na garantia dos direitos indígenas.
218
Demarcação de terras indígenas
constitucional sociocultural endereçada aos índios (arts. 210
e 215 da Constituição Federal) e também pela afronta aos
tratados internacionais que conferem proteção à diversidade
étnico-cultural, tais como a Convenção 169 da OIT, a Agenda 21
(ONU/1992) e a Convenção da Biodiversidade (ONU/1992).
O autor reitera que “o direito à declaração judicial de um
território como sendo indígena constitui mais um instrumento
na realização dos direitos sociais e culturais dos índios e na
conservação dos recursos naturais imprescindíveis ao bem-
estar de índios e não índios”.
219
Gilberto Romeiro & Fernando Maia
que é determinado pelo caput do artigo 231 da Constituição
Federal.
220
Demarcação de terras indígenas
E no § 3º do mesmo artigo: “O grupo indígena envolvido,
representado segundo suas próprias formas, participará do
procedimento em todas as fases.”
221
Gilberto Romeiro & Fernando Maia
seus territórios e o exercício de seus direitos constitucionais
(Teixeira, 2009); bem como contribui para a perpetuação dos
impactos ambientais sobre essas terras por terceiros.
222
Demarcação de terras indígenas
ainda estava na fase inicial de constituição de grupo
técnico) confirmou o entendimento do Juízo a quo de
que 24 (vinte e quatro) meses constituem tempo razoável
para a conclusão de todo o processo demarcatório [...].
(Pernambuco, 2014)
223
Gilberto Romeiro & Fernando Maia
O juiz, na sua análise, alega que também tem como
improcedentes as alegações da União e da Funai de que o
Poder Judiciário estaria usurpando nas questões relacionadas
à função do legislador no que concerne a fixação de multas
que não estão previstas em lei.
224
Demarcação de terras indígenas
por meio da Portaria 1.014/PRES da FUNAI, porém até o
presente não se encontra concluído por omissão desse órgão.
Com isso, os conflitos de terra se tornam constantes na referida
comunidade indígena, haja vista a atuação de posseiros e
esbulhadores não índios.
225
Gilberto Romeiro & Fernando Maia
Nos dispositivos adotados pelo juiz, julgam-se proce-
dentes os pedidos formulados pelos autores, nos termos de-
correntes do art. 269 do Código de Processo Civil. É reconhe-
cida a omissão do INCRA no que tange às atribuições para
demarcação das terras indígenas Pankará em Carnaubeira da
Penha/PE.
226
Demarcação de terras indígenas
1988 atribui à União a titularidade do domínio sobre as terras
tradicionalmente ocupadas por indígenas e a dita entidade
política efetuou a demarcação do imóvel em questão para
fins de enquadramento na proteção constitucional, impõe-se
a sua presença no polo passivo desta demanda; 4) conforme a
doutrina pátria, ao interpretar os dispositivos constitucionais
que tratam da matéria apenas fazem jus à posse dos imóveis
rurais os silvícolas que as ocupavam quando da promulgação
da Constituição de 1934, o que ocorre no caso concreto, em que
a propriedade do bem (ou, pelo menos, a sua posse) pertence
aos antecessores dos autores desde o final do século XIX.
227
Gilberto Romeiro & Fernando Maia
deve-se anular a decisão que concedeu a liminar, sem atentar
para a regra insculpida nesse dispositivo legal.
228
Demarcação de terras indígenas
229
Gilberto Romeiro & Fernando Maia
e superior a qualquer outro que, eventualmente, se
possa ter constituído sobre o território dos índios. A
demarcação das terras tem única e exclusivamente a
função de criar uma delimitação espacial da titularidade
indígena e de opô-la a terceiros. A demarcação não é
constitutiva. Aquilo que constitui o direito indígena
sobre as suas terras é a própria presença indígena e a
vinculação dos índios à terra, cujo reconhecimento foi
efetuado pela Constituição Brasileira. (Antunes, 1998, p. 02)
230
Demarcação de terras indígenas
Considerações finais
A Constituição Federal de 1988 representou um consi-
deravel avanço no tratamento do Estado destinado aos povos
indígenas, em especial aquele referente à regularização de
suas terras. De fato, o surgimento de novos movimentos so-
ciais influenciou no reconhecimento das terras indígenas em
Pernambuco, assim como o novo tratamento aos povos indí-
genas, que vinha sendo consolidado pelo campo da Antropo-
logia e que teve reflexo nos parâmetros legais internacionais,
como a Convenção 169 da OIT e a Declaração dos Direitos dos
Povos Indígenas, e que fizeram parte deste momento de des-
taque aos povos indígenas.
231
Gilberto Romeiro & Fernando Maia
efetivados, corre-se o risco de perder-se, o que nos permite
uma compreensão desse processo atrelada a uma reflexão do
fenômeno jurídico.
Referências bibliográficas
ANTUNES, Paulo de Bessa. Ação Civil Pública, meio ambiente e
terras indígenas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998.
BORGES, Antonino Moura. Terras Indígenas e seus conflitos
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Dicionário tipo enciclopédico – on line. (disponível em:
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LEITÃO, Raimundo Sérgio Barros. Natureza jurídica do ato
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declaração em juízo. In SANTILLI, Juliana (org.): Os Direitos
Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: NDI, 1993.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Contexto e horizonte ideológico:
reflexões sobre o Estatuto do Índio. In SANTOS, Sílvio
Coelho dos (org.): Sociedades indígenas e o Direito: uma
questão de direitos humanos. Florianópolis: USFC, CNPq,
232
Demarcação de terras indígenas
1985.
TEIXEIRA, Vanessa Corsetti Gonçalves. O direito dos povos
indígenas á terra e ao território no Brasil e na América
Latina- uma proposta para a sua abordagem jurídica
comparada. Dissertação de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Integração da América Latina da
Universidade de São Paulo, 2009.
Documentos oficiais
233
“Fogo” na justiça:
o julgamento do caso Galdino
Edwin B. Reesink
Maria Rosário de Carvalho
235
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
por considerar que um seria suficiente, e, na sequência, uns
jogaram álcool na pessoa, enquanto os outros começaram
a atear fogo. Galdino pegou fogo, logo, pois as chamas
rapidamente se alastraram e os jovens correram para o outro
lado da rua. Algumas pessoas que, de mais longe, tinham
observado a movimentação, perceberam uma tocha de fogo
levantar-se do banco, apressaram-se para ver o que acontecera
e socorrer a pessoa em chamas. Uma testemunha anotou a
placa do carro e a polícia, desse modo, chegou aos jovens, na
manhã seguinte.
236
“Fogo” na justiça
o horror de queimar, por completo, um cidadão indefeso e
em defesa dos direitos humanos para todos os cidadãos
brasileiros. Uma cidadania a construir, como é consenso na
sociedade civil.
237
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
das classes menos favorecidas no Brasil, de que os membros
das classes dominantes neste país sempre são favorecidos
em detrimento daqueles situados na base da pirâmide social,
independentemente das circunstâncias envolvidas. Não faz
sentido a alegação, veiculada na grande mídia, de que os
criminosos não tivessem a intenção de matar e não previssem o
resultado, i.e., a morte sob dores lancinantes. Ora, é inaceitável
para a opinião pública, de modo racional, acreditar que se
alguém lança fogo sobre outrem de um modo em que esse outro
se queime gravemente, em quase 100% da superfície corporal, o
responsável pelo lançamento, e pela subsequente queima, não
soubesse que tal ato poderia causar a morte. Na prática, para o
senso público comum, fogo mata, e a juíza, por sua vez, lançou
lenha na fogueira da credibilidade da justiça brasileira, que
nunca, nem de longe, se pareceu com a mulher de César.
238
“Fogo” na justiça
Vozes dissidentes sobre a sentença, além de invocar uma
racionalidade imparcial a favor da juíza, ainda apontavam
para a necessidade de se conhecer os autos e os argumentos
da sentença. Segundo alguns juristas somente vale a realidade
dos autos e o raciocínio frio dentro dos parâmetros legais, o
que poderia isentar a juíza da acusação de uma deformação
consciente dos fatos. Realmente, pelo que noticiaram os
jornais, ela goza de boa reputação nos meios jurídicos em
Brasília (muito embora, em contrapartida, em Brasília, o senso
de realidade parece sofrer de uma dificuldade generalizada
de observação). Torna-se necessário ler a sentença, mesmo
não sendo os autores deste artigo juristas, para tentarmos
entender a distância entre o senso comum, apoiado na análise
da promotoria, e os argumentos da desclassificação social.
239
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
“provável” (além de possível) o resultado, e que o aceitou,
conscientemente, antes do ato”.24
240
“Fogo” na justiça
esta é a orientação corrente na Justiça, a justiça deste país tem
um problema sério de natureza social, ao eximir qualquer um
de refletir sobre seus atos, prever suas consequências, lidar
com os resultados e assumir a sua responsabilidade.
241
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
à idade e ao estado de saúde anterior da vítima, à localização
da ferida e à gravidade das lesões associadas, especialmente as
lesões pulmonares (ib., p.171). No caso sob exame, a extensão
e a profundidade das lesões, assim como a provável inalação
de gases incandescentes, comprovam que significativa porção
de álcool foi lançada sobre a vítima, fazendo com que o fogo a
envolvesse por completo, a partir do momento em que se pôs
de pé. Portanto, salvo melhor juízo, fogo indiscutivelmente
mata, e o faz dolorosamente.
242
“Fogo” na justiça
Ora, mais uma vez, os mesmos fatos apontam para
uma outra interpretação bem diversa, não menos crível, mas
mais detalhada do que a oferecida. Primeiramente, quando
os acusados apenas usaram um litro de álcool, isto não os
isentou, como não isentaria a qualquer pessoa, de saber
as consequências possíveis, e em todos os depoimentos os
acusados reconheceram saber dos perigos causados pelo fogo.
Se tivessem usado alguns pingos de álcool, realmente, estaria
caracterizada a vontade de “dar um susto”. Todavia, no seu
depoimento, citado antes na sentença, o jovem que estava
jogando o líquido, estava, de acordo com a sua afirmação,
derramando-o aos pés da vítima quando o fogo subiu na
direção de sua mão. Aí, então, ele iniciou o derrame no
meio do corpo do índio, já tendo derramado bastante, tanto
assim que, quando alguém riscou o fósforo, a vítima pegou
fogo de tal forma que as labaredas subiram em direção à sua
mão (que estava posicionada acima dos pés da vítima). Estes
detalhes demonstram, claramente, portanto, que Galdino
já estava encharcado de inflamável, a ponto de o fogo subir
para a área onde não havia, ainda, tanto líquido, e para a
borda do vasilhame que queimou. A perícia comprovou
a afirmação da promotora (não lembrada na sentença) de
que havia queimaduras em quase todo o corpo, causando
um cozimento geral e uma morte terrível. Os depoimentos
e a perícia demonstraram, por outro lado, que não se tratou
de alguns pingos, mas que boa parte do litro de álcool foi
despojada, não obstante o fogo possa ter sido precipitado.
Justamente os pés foram menos afetados do que o resto do
corpo, particularmente o tronco central. Quase um litro de
álcool que produziu gravíssimas queimaduras ao longo do
corpo não coaduna com uma brincadeira leve, de intenção
pouca lesiva.
243
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
Afobado, então, mostrou-se o jovem somente depois de atear
muito combustível ao corpo da vítima e produzir, igualmente,
muito fogo. Tal afobação também merece outra interpretação.
As testemunhas que presenciaram a fuga notaram essa afobação
e desespero. Ora, os jovens elaboraram uma estratégia de fuga,
também premeditada, deixando o carro pronto, com alguém
tomando conta, no outro lado da rua. Em um dos depoimentos
citados, um dos criminosos admitiu que não prestou nenhum
socorro ao fugir para o carro, porque um veículo vinha na
direção do local. Ou seja, a presença de possíveis testemunhas
que poderiam atestar o crime pode ter contribuído, e muito, para
tal afobação e desespero. O medo de ser pego também inspira
desespero, como a justiça sabe muito bem, e não necessariamente
o próprio ato, como concluiu a juíza.
244
“Fogo” na justiça
alcançar. Em primeiro lugar, ela contradiz as primeiras
autoridades judiciárias citadas no início, porque, conscientes
do perigo e bem educados que são os autores, não há como
evitar a conclusão de que sabiam da possibilidade de “morte”
no caso de fogo e que isso não os deteve. Em segundo lugar,
as circunstâncias demonstram, como reconhece a sentença,
evidente premeditação, o que quer dizer, tempo para refletir
sobre o ato a praticar, e, por causa disto, como já evidenciamos,
a interpretação dos fatos pode ser muito diferente daquela
expressa na sentença.
245
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
depoimento citado foi aquele tomado no flagrante. Ao contrário
do que parece lhes ser favorável, em uma situação de maior
espontaneidade, impressionados pela prisão, sabe-se que os
quatro adultos deram depoimentos semelhantes e atenuantes
de sua própria ação. Em contrapartida, o menor ficou separado
dos outros, sendo encaminhado para outro local e relatou uma
versão bem mais realista e destoante da dos outros quatro.
Ora, que crédito merece um depoimento já desmentido no seu
teor comprovadamente direcionado para se livrar de assumir
uma culpa maior? Ainda mais neste ponto tão nevrálgico. No
fim das contas, parte crucial da tentativa de se eximir do dolo
eventual depende destes depoimentos, e não será aceitável
simplesmente invocá-los a seu favor, a posteriori. Sem critérios
mínimos objetivos de avaliação da sua provável honestidade,
não se pode estar convencido da justeza de sua utilização,
exatamente aqui. Por exemplo, neste fragmento citado por
último, não é crível que o depoente alegue não recordar quem
deu a ideia de dar o susto, nem quem sugeriu o álcool, nem
quem achou os dois litros de óleo vazios.
246
“Fogo” na justiça
próprias estruturas sociais: o espaço social, bem como
os grupos que nele se distribuem, são produto de lutas
históricas (nas quais os agentes se comprometem em
função de sua posição no espaço social e das estruturas
mentais através das quais eles apreendem esse espaço).
(Bourdieu, 1990, p.26)
247
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
argumento revela suas diversas fragilidades e impõe outra
conclusão: a sua razão não convence. Todos os argumentos
básicos são contestáveis, de forma fundamental, sendo que
a tese carece de bases objetivas sólidas. Uma sentença deste
porte, ou seja, desta importância social para todas as categorias
desfavorecidas da sociedade brasileira tem como obrigação
sine qua non estar solidamente fundamentada e convencer
a opinião pública de sua justeza. Não está, seja lá por quais
razões, e sem que isso implique em duvidar da sinceridade da
indignação da juíza.
248
“Fogo” na justiça
generalizado aos direitos sociais coletivos – em prol dos mais
diversos interesses econômicos capitalistas que visam apenas
o lucro mais imediato e sem qualquer preocupação social.
Como mostraremos no posfácio a seguir, garantir um estado
de direito de fato justo e equânime para todos os cidadãos
brasileiros, independentemente de características individuais,
tais como classe, continua no terreno da utopia. Hoje,
lamentavelmente, constatamos que esse mesmo estado de
direito está sob grave ameaça e que a garantia real do exercício
da cidadania no Brasil ainda requer um longo percurso para
alcançar um patamar mínimo de dignidade.
Posfácio
Para melhor situar o leitor a respeito do artigo, consi-
deramos oportuno adicionar alguns breves esclarecimentos, à
guisa de advertência.
249
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
A trágica morte de Galdino ocorreu em 1997 e o
que discutimos neste artigo concerne apenas ao início do
processo. Como vimos, Galdino estava em Brasília para
tratar de assuntos concernentes ao seu povo, o povo Pataxó-
Hãhãhãi, quando acabou dormindo em um abrigo de ônibus.
Confundido com “mendigos comuns”, a indignação que
causou foi seletiva, algo para o que chamamos a atenção
do leitor. Do mesmo modo, a justificativa dos implicados
de que o teriam confundido com um mendigo, ressalta a
completa desqualificação do mendigo para o senso comum,
i.e., uma “não pessoa”, desprovida, portanto, das qualidades
atribuídas à espécie humana e, consequentemente, desprovida
de direitos elementares26. Ressaltamos que a “Justiça”, na
figura do juiz eventual que foi responsável pelo processo,
reconstruiu os “fatos” de uma maneira que tendeu a favorecer
certas interpretações desses “fatos”. A nossa análise aponta
para um ponto de vista alternativo que, em termos dedutivos,
parece-nos melhor adequar-se a esses “fatos”. Evidentemente,
tratamos, aqui, de um caso particular, um caso determinado,
mas o fato é que a Justiça tem dado repetidas provas de que –
sem que queiramos acusar os seus representantes de má-fé ou,
indistintamente, incluir todos na avaliação ora efetuada – é
possível observar que o habitus bourdieusiano de classe média
alta ou de elite predispõe, em suas disposições estruturantes,
muitos julgamentos a um viés classista.
250
“Fogo” na justiça
encaminhamos o artigo, numa versão anterior e menor para a
Folha de S. Paulo que supôs que, passada mais de uma semana
da sentença, o fato não era mais suficientemente relevante
para uma coluna. Depois da negativa da Folha ainda tentamos
publicá-lo em um outro jornal, o Jornal do Brasil, que também
não o acolheu. Por fim, até mesmo uma revista com outra
periodicidade, Tempo e Presença, não se interessou. Isso quer
dizer que o artigo, em sua forma original, não saiu na imprensa,
o que, em si mesmo, é significativo de como a imprensa à
época definia o que era relevante e atual /ou já ‘velho demais’,
não obstante o grande interesse público gerado pelo fato. O
que se publica, aqui, então, é uma versão submetida a uma
revisão de estilo, mas, essencialmente, igual àquela que não foi
publicada, à época da ocorrência dos fatos, porque supomos
dever ser lida como testemunho de uma luta constante pela
atenção pública para a causa indígena no Brasil: o que inclui,
por um lado, esclarecimentos à opinião pública e, por outro, a
continuada e ainda hoje premente necessidade de estudar a lei,
o arcabouço das leis e como essas são aplicadas, nas suas mais
variadas formas e pelos mais diversos operadores, na prática
cotidiana. Por fim, exatamente com esse propósito, fazemos
rápidas observações complementares sobre o processo:
251
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
♦ A acusação foi compelida a lutar tenazmente para
conseguir que a primeira decisão sobre o tipo de crime
fosse revertida. Muitos juristas renomados manifestaram-
se contrariamente à reversão. A realização do julgamento
foi muito postergada, certamente devido à origem social
dos acusados. Maria José Miranda, a promotora, explicou
que o processo dos quatro rapazes foi dificultado pela
“quantidade absurda” de recursos apresentados e também
pela “incessante tentativa de desqualificar o crime, para
que eles não respondessem por homicídio e, sim, por lesão
corporal seguida de morte Ela classificou o curso processual
do caso como “anormal”: “Se o processo tivesse sido de
réus comuns, mortais comuns, teria tido o curso de apenas
seis meses. Tínhamos provas em abundância. O processo
era, tecnicamente, muito simples”. Ao mesmo tempo, a
promotora afirmou que durante a sua prisão os criminosos
tiveram regalias que ela não verificou para nenhum outro
preso.27
♦ O julgamento, que transcorreu ao longo de quatro dias e
12 horas, teve momentos constrangedores, quando, por
exemplo, Tomás pediu perdão aos familiares de Galdino,
negado pela mãe da vítima, Dona Minervina, e pela viúva
Carmélia; e quando Max Rogério Alves, enteado do ex-
ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Walter
Medeiros, afirmou que o grupo queria “apenas fazer uma
brincadeira”.
♦ Um dos depoimentos mais marcantes foi o da médica Maria
Célia Bispo, que atendeu Galdino no Hospital Regional da
Asa Norte. Ela relatou que o índio chegou ao hospital ainda
consciente e com 85% da superfície corporal apresentando
queimaduras de 3º grau e 10% de queimaduras de 2º grau
profundas. A médica esclareceu ser comum o paciente
27 Ver<http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL23764-5598,00.html>; aces-
so em 06/07/2019.
252
“Fogo” na justiça
manter-se consciente após sofrer queimaduras, e que as
únicas partes do corpo de Galdino que não foram atingidas
pelo fogo foram as solas dos pés.28
♦ Condenados os réus – a 14 anos em regime integral
fechado – por homicídio qualificado, em 2001, ao invés
de seguir o entendimento normal prevalente na ocasião,
i.e., a quantidade de anos efetivamente a ser passada na
cadeia, um tribunal reviu a situação e permitiu certo
relaxamento da prisão, o que não teria sido permitido à luz
da comparação entre o número de anos já passados e os
anos ainda devidos. O menor foi encaminhado ao Centro
de Reabilitação Juvenil do DF, onde permaneceu três meses
ao invés do que havia sido determinado preliminarmente,
i.e., um ano.
♦ Os quatro condenados desistiram de recorrer da decisão do
Tribunal do Júri de Brasília. O julgamento correu o risco
de ser anulado devido ao fato de a presidente do Tribunal
do Júri, a juíza Sandra de Santis Mello, ser considerada
impedida de pronunciar a sentença final, por ter participado
da parte inicial do processo, além de ter classificado o crime
como lesão corporal seguida de morte, decisão contrária
àquele que levou os acusados ao júri popular.
♦ Em razão de terem sido condenados por crime hediondo,
Max, Antônio, Tomás e Eron não teriam, à época, direito à
progressão de pena ou outros benefícios. A lei previa, apenas, a
liberdade condicional após o cumprimento de 2/3 da pena. Mas,
em 2002, a 1ª Turma Criminal fez uma interpretação diferente,
concedendo autorização para que os quatro exercessem
funções administrativas em órgãos públicos.
♦ A autorização da Justiça permitia, estritamente, que os
quatro saíssem do presídio da Papuda para trabalhar e
253
Edwin B. Reesink & Maria Rosário de Carvalho
retornassem ao final do expediente. Em outubro do mesmo
ano, o jornal Correio Braziliense flagrou três dos cinco rapazes
bebendo cerveja em um bar, namorando e dirigindo o
próprio carro até o presídio, sem passar por qualquer tipo
de revista, no retorno. Após a denúncia, eles perderam,
temporariamente, o direito ao regime semiaberto, que era o
que lhes permitia o trabalho e o estudo externos.
♦ A reclusão total durou pouco tempo. Em agosto de 2004, os
quatro rapazes ganharam o direito à liberdade condicional,
ou seja, foram postos em liberdade, mas sob certas regras de
comportamento impostas pelo juiz, tais como, não saírem do
Distrito Federal sem autorização da Justiça e comunicarem,
periodicamente, ao juiz sua atividade profissional.
♦ O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh atuou na acusação
e confessou o seu sentimento de isolamento por parte do
âmbito jurídico em decorrência da acusação de homicídio
doloso. “Havia uma discussão doutrinária sobre direito
penal [se se trataria] de caso de lesões corporais seguidas
de morte ou homicídio doloso. A maioria dos juristas
brasileiros dizia que o caso era de lesões corporais,
seguidas de morte. Eu discordava (...) afirmando tratar-
se de homicídio doloso, dado que eles sabiam que a ação
poderia resultar em morte, que o risco de morte era inerente
ao risco da ação.” Ele afirmou guardar com carinho uma
carta de agradecimento da família de Galdino.29 Notemos,
por último, que, nessa mesma época, a família de Galdino
externou não considerar que tenha sido feita justiça pela
morte do parente.
♦ Em suma, durante todo o processo penal a opinião quase
geral dos juristas tendeu ao favorecimento dos criminosos.
As observações da promotora e do advogado de acusação,
254
“Fogo” na justiça
na contracorrente da maioria, mostram as dificuldades
com as quais se defrontaram para garantir um processo
justo e correto. Por fim, antes e depois da condenação, os
acusados foram favorecidos por vários atos da Justiça que
facilitaram as suas condições de prisão. Parece justificável,
pois, concluir que a garantia da igualdade perante a justiça
prossegue como uma meta, talvez demasiado utópica, a ser
conquistada no Brasil.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de
pessoa, a noção do “Eu”. In: Sociologia e Antropologia, vol.
1, São Paulo, EDUSP, 1974.
MELLO, Sandra de Santis M. de F. Revista Jus Navigandi,
ano 2, n. 18, 24/08/1997. (<https://jus.com.br/
jurisprudencia/16290>; acesso em 18/07/2016)
WAY, Lawrance (ed.). Cirurgia, diagnóstico e tratado. Rio de
Janeiro: Ed. Guanabara Koogan, 1993.
255
Impasses e desafios
de uma “antropovogada”
no ambiente acadêmico e jurídico
Mônica Gusmão30
257
Mônica Gusmão
periódicos na unidade de internação, etc. Da mesma forma me
foi proporcionado acesso aos juízes, promotores e defensores
públicos: através das audiências nas quais participava em
defesa do adolescente31.
258
Impasses e desafios de uma “antropovogada”
Para iniciar, trarei como exemplo minha tese de doutorado
“Como a gente faz para colocar juízo nessa cabeça?” Paradoxo de
Moralidades nos Julgamentos de Adolescentes, defendida no início
de 2014, a qual dedica um capítulo para relatar os desafios
de uma pesquisa antropológica realizada em ambiente
jurídico por uma pesquisadora que atualiza os dois campos:
antropologia e direito. A título de reflexão, gostaria de dividir
com o leitor as palavras de aconselhamento que me foram
dadas por um antropólogo no decorrer de algum congresso:
“você deve esquecer sua primeira formação”, qual seja a
jurídica. Assustou-me a constatação de como um conceituado
antropólogo, que pode defender e incorporar a alteridade, não
concebe dialogar com o diverso. O conselho, contudo, foi benéfico,
pois me impulsionou na escrita da tese: após refletir aquelas palavras,
amadureci meus pensamentos, enfrentando os impasses e
desafios decorrentes do fato de eu ser uma pesquisadora
com formação e atuação jurídica, em um campo jurídico sob
a leitura antropológica. Enfrentar e, por vezes, solucionar
esses e outros impasses e desafios constituíram em definir a
direção a ser tomada na pesquisa, baseada na busca de um
equilíbrio entre critérios subjetivos, da minha própria moral, e
a compreensão científica, com atenção voltada para perceber
as sutilezas contidas no encontro dessas duas comunidades
científicas. As dificuldades enfrentadas no decorrer da minha
pesquisa de doutorado é um exemplo para demonstrar que
não é só possível como proveitoso e necessário o diálogo com
o direito pela antropologia.
259
Mônica Gusmão
bem o que é cultura. Não apenas é um conceito
fundamentalmente contestado, como os de democracia,
religião, simplicidade e justiça social, como é também
definido de várias maneiras, emprestado de formas
múltiplas e irremediavelmente impreciso. É fugidio,
instável, enciclopédico e normativamente carregado. E
há aqueles para quem só o realmente real é realmente real,
que o consideram inteiramente vazio ou até perigoso, e
que gostariam de eliminá-lo do discurso sério das pessoas
sérias. Em suma, um conceito improvável sobre o qual
tentar construir uma ciência. Quase tão ruim quanto a
matéria. Chegando à antropologia com formação em
humanidades, especialmente literária e filosófica, o
conceito de cultura me pareceu imediatamente mais
amplo como forma tanto de penetrar nos mistérios
desse campo quanto de levar o indivíduo a se perder
inteiramente neles. (Geertz, 2001, p. 22)
260
Impasses e desafios de uma “antropovogada”
um jurista se debruçando sobre um mesmo objeto de estudo,
definitivamente, não poderemos afirmar que este ou aquele
gozará, por pressuposto, da confiabilidade dos resultados da
suposta pesquisa, contudo, poderá acontecer, facilmente, que
os olhares sejam direcionados a partir de diferentes pontos
de vista e isso pode ser um fator muito mais benéfico que
conflituoso para a pesquisa e o seu objeto.
261
Mônica Gusmão
desprende a importância de se discutir os desafios e impasses
enfrentados pelo pesquisador híbrido, uma vez que a leitura
do campo foi transmitida segundo, também, a moral de quem
pesquisou. O impacto moral, proporcionando a necessária
reflexão antropológica diante da alteridade, decorrente das
questões que foram postas no exemplo de minha pesquisa de
doutorado, constituiu-se de dois alcances: na pesquisadora e
na pesquisa. A linha teórica seguida na tese foi colocada como
pano de fundo na análise tangencial de outras teorias: as
discussões sobre aspectos morais e éticos dos julgamentos de
adolescentes supostamente infratores incidem, inclusive, sobre
quem está sendo julgado, além do adolescente. Importante
lembrar que “(a) maior parte das pesquisas sociais envolve
contatos diretos, íntimos e mais ou menos perturbadores com
os detalhes imediatos da vida contemporânea, contatos de um
tipo que dificilmente pode deixar de afetar a sensibilidade das
pessoas que os realizam.” (Geertz, 2001, p. 31)
262
Impasses e desafios de uma “antropovogada”
torna-se mais difícil adotar uma postura relativizadora frente
aos supostos crimes praticados pelos jovens, visto que era a
minha própria integridade física que poderia se encontrar na
“mira” da infração penal; minha moral se encontrava mais
próxima do julgador que dos julgados, onde a violação aos
direitos humanos não são tão perceptíveis. Assim vivenciei a
“inerente tensão moral entre pesquisador e objeto”.
263
Mônica Gusmão
choque pela realidade revelada: superlotação, condições
desumanas, prática de torturas, etc. Para minha surpresa o
juiz não só negou a carta de recomendação como negou acesso
ao Relatório de Inspeção do CNJ, sob a alegação de que este
documento seria sigiloso, apesar do objetivo do Relatório ser
o de revelar para a sociedade como estão sendo tratados no
Brasil os adolescentes privados de liberdade, inclusive tal
documento foi veiculado pela mídia. Obtive o Relatório por
outras vias, mas a negativa do juiz dizendo, de forma até
gentil, que se eu procurasse outro juiz, esse, com certeza,
também me negaria, proporcionou-me perplexidade e falta
de compreensão, seguida de posterior reflexão sobre o porquê
dessa atitude, já que de minha parte nunca havia ocorrido
nenhuma falha ética que justificasse tal comportamento.
Passei a considerar, então, o fato de que a nova pesquisa teria
o ambiente do judiciário como objeto de estudo e não mais a
antiga FUNDAC, esta tutelada pelo Estado de Pernambuco.
Relativizei, assim, o comportamento do juiz como forma
de entendimento da força que o moveu como ator social do
ambiente de pesquisa. A partir daí foi mais fácil entender as
dimensões éticas do trabalho de campo, sob a perspectiva das
ponderações de Geertz.
264
Impasses e desafios de uma “antropovogada”
dos réus, que é onde deve estar a nossa cultura, mas
no das testemunhas. Se, quando isso for feito, elas
testemunharão pela defesa ou promotoria, é, creio uma
questão em aberto. Mas é claro que seu testemunho será,
como o de qualquer testemunha, mais pertinente a certos
assuntos do que a outros. Em especial, tal investigação
deve esclarecer que tipo de comportamento social é o
pensamento científico sobre os assuntos humanos, e deve
fazê-lo de um modo que não o podem fazer as análises
filosóficas de questões éticas, a lógica da decisão pessoal
ou as fontes da autoridade moral, apesar de todas serem
esforços úteis em si mesmas. Até meu exame passageiro
de alguns fragmentos de minha própria experiência dá
algumas pistas nessa direção – ao expor o que significam
“distanciamento”, “relativismo”, “método científico” e
coisas semelhantes, não como senhas e lemas mas como
atos concretos de pessoas concretas em disputas sociais
específicas. Discuti-los como tais, como aspectos de um
ofício, não porá fim à disputa, mas pode ajudar a torná-
la proveitosa. (Geertz, 2001, p. 44)
265
Mônica Gusmão
apresentou. “Há um aspecto de diagnóstico e um lado terapêutico em
nossa preocupação científica com essas sociedades, e o diagnóstico
parece, pela própria natureza do caso, ser infinitamente mais rápido
que o remédio.” (Geertz, 2001, p. 32).
266
Impasses e desafios de uma “antropovogada”
moral e a ética) estavam presentes em toda a pesquisa: era
preciso analisar esses elementos como formadores da “justiça”
nos julgamentos dos adolescentes. Passei a observar o que me
pareceu intrinsicamente “certo” ou “errado”, influenciada
pelas ideias de Geertz:
267
Mônica Gusmão
como os atores sociais me olhavam com estranheza nas
audiências33; os sutis julgamentos morais escondidos por
atrás do discurso dos operadores do direito; a compreensão
escorregadia da realidade social das audiências; tudo me fez
repensar o projeto inicial. Foi enfrentando esses “tigres” que
dei um redirecionamento à pesquisa sem medo.
33 Como optei por uma observação discreta, ficava sentada num canto da sala de
audiências anotando em meu caderno de campo, sem gravador (este não era
permitido pelo segredo de justiça) e sem estar vestida (caracterizada) como ad-
vogada. Com exceção das juízas que me permitiram o acesso às audiências, os
demais atores sociais me olhavam com estranheza: quem seria eu? Qual seria
minha função na audiência? Eu era estranha ao grupo dos adolescentes e dos
operadores de direito.
268
Impasses e desafios de uma “antropovogada”
no momento em que esses atores sociais se manifestam nos
autos dos processos judiciais, diante de uma argumentação
antropológica. Não raras vezes, utilizei textos da antropologia
jurídica, nacional e internacional, para fundamentar um pedido
jurídico, sobretudo atuando como advogada no direito de
família. Igualmente, não raras vezes obtive êxito, talvez pelo fato
de sair da usual fundamentação dogmática jurídica, talvez por
mostrar ao jurista um campo fascinante e, na maioria das vezes,
desconhecido dos operadores de direito, que é a antropologia.
O fato é que me parece mais confortável dizer que “sou
antropóloga” quando estou no ambiente jurídico, do que dizer
que sou advogada, enquanto estou no ambiente acadêmico
da antropologia. Esta afirmação é devido às dificuldades do
não diálogo proporcionadas por antropólogos, sobretudo por
ocasião do meu ingresso na antropologia.
269
Mônica Gusmão
O fato de não ter bolsa de estudos no início do mestrado,
obrigou-me a continuar como advogada do Estado, exigindo
que eu estivesse sempre correndo entre as aulas na UFPE e
o atendimento aos adolescentes internos em Abreu e Lima,
além de frequentes viagens para diversos municípios de
Pernambuco, para participar de audiências em defesa dos
adolescentes privados de liberdade. Nessa dinâmica, percebi
que meu modo de vestir dificultava minha socialização no
ambiente acadêmico. Abdiquei dos terninhos de advogada e
passei a usar vestidos mais confortáveis, ficando, por assim
dizer, mais parecida com antropóloga, cria eu. A escolha
causou-me outro problema de socialização, passei a ser
chamada (pelas costas) de “advogada hippie”. Apesar de
hoje esses fatos me provocarem risos, na época chegou a me
trazer alguns desconfortos. Não bastava correr de lá para cá,
de sofrer dois acidentes de carro, sem maiores danos, eu ainda
lidava com problemas de identidade nos dois ambientes: no
jurídico eu parecia menos advogada pela minha maneira
de vestir; no mestrado eu parecia menos antropóloga pela
mesma razão. Tanto que na minha defesa de dissertação
um avaliador confessou que achava que eu não conseguiria
realizar a pesquisa de campo sobre rebeliões de adolescentes
por eu parecer “patricinha”. Isso também hoje me provoca
risos. O fato é que, parecendo hippie ou patricinha, meu modo
de ser e de vestir parecia contracultura nos dois casos. Passei
a ter no carro um pequeno guarda-roupa para atender a cada
ocasião, até o momento que pude me dedicar integralmente
ao mestrado com o recebimento da bolsa CNPq e onde fiz
sólidas amizades que permanecem até hoje.
270
Impasses e desafios de uma “antropovogada”
conhecimento que cada disciplina projeta. É também impor-
tante pensar em novos conhecimentos que são proporciona-
dos quando se mantém uma interface entre a antropologia e o
direito. Após meu ingresso no PPGA/UFPE, outros advoga-
dos vieram em seguida e passaram a compor e contribuir com
a antropologia e com o direito, na mesma direção de excelen-
tes grupos de pesquisas no Brasil e no exterior, que trabalham
temas da antropologia jurídica.
Considerações finais
Para finalizar esta reflexão, trago à tona algumas
experiências de sala de aula, em cursos de direito e na
graduação de ciências sociais, que podem ser úteis para pensar
sobre o diálogo entre a antropologia e o direito.
271
Mônica Gusmão
e direitos humanos. Em todos os casos, estiveram em confronto
os dois campos de saberes e algumas observações podem ser
interessantes serem relatadas.
272
Impasses e desafios de uma “antropovogada”
do curso de psicologia, permanecendo a sala cheia até o final
do respectivo semestre. Como conteúdo, ofereci debates que
incluíam temas atuais de agressões aos direitos fundamentais,
que eram do interesse tanto da antropologia quanto dos
direitos humanos. Apesar de parecer óbvio o interesse, por se
tratar de agressões a direitos fundamentais, da pessoa humana,
e consequentemente objeto de interesse da antropologia e dos
direitos humanos, muitos alunos de ciências sociais chegaram
à sala de aula desconfiados e curiosos em saber se seria possível
lidar com o príncípio universalista, tão caro aos direitos
humanos. Aos poucos, pude ver seus rostos satisfeitos com o
conteúdo interdisciplinar e pude renovar minhas esperanças,
no sentido de perceber que os jovens em formação estão sim
abertos ao diálogo, num caminho e no outro, na antropologia
e no direito. Minha experiência negativa no momento em
que ingressei na antropologia talvez tenha sido causada por
profissionais que não queriam sair da zona de conforto do
saber, algo, enfim, pontual. As dificuldades são visíveis, mais
não intransponíveis. A confecção desta coletânea soa como
uma luz no final do túnel e demonstra como o PPGA se abriu
ao diálogo ao longo dos anos e o LEC – Laboratório de Estudos
Contemporâneos (PPGA/UFPE) conta hoje com excelentes
contribuidores da antropologia do direito, igualmente a outros
núcleos de antropólogos do direito que realizam pesquisas de
excelência no Brasil. Esperamos que os bons ventos possam
ainda ser soprados.
Referências bibliográficas
BECKER. Howard S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São
Paulo: Editora HUCITEC,1993.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia
interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998.
273
Mônica Gusmão
__________. Nova luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001
COSTA, M. M. Gusmão. “Como a gente faz para colocar juízo
nessa cabeça”: paradoxo de moralidades nos julgamentos
de adolescentes. Tese de Doutorado – Programa de Pós-
Graduação em Antropologia, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2014.
__________; FIALHO, V. Diálogo entre a Antropologia e o Direito: a
ressonância da argumentação antropológica. In: Anais da 26ª
Reunião Brasileira de Antropologia, 2008, Porto Seguro, BA.
Desigualdade na diversidade, v. 1. p. 1-12, 2008.
__________; SCHRÖDER, Peter. Habeas Corpus: entre o jogo de
cintura e a rebelião: um estudo sobre adolescentes internos
em Pernambuco. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
OLIVEIRA, Luciano. Manual de Sociologia Jurídica. Petrópolis:
Vozes, 2015.
274
Os autores
275
Os autores
Cristiano José Galvão Faria: mestre em antropologia pela
UFPE, especialista em Gestão Pública pela UFRPE, licenciado
em Educação Física (UFPE) e Bacharel em Teologia pelo
Seminário Teológico Pentecostal do Nordeste (STPN).
Também é bombeiro militar e atua desde 2005 como docente
pela Academia Integrada de Defesa Social de Pernambuco
(ACIDES-PE) na formação dos agentes de segurança pública
estadual e municipal.
276
Os autores
Luiz Eduardo Abreu: graduação em Ciências Sociais pela
UnB (1989), mestrado em Ciência Social (Antropologia Social)
pela USP (1993) e doutorado em Antropologia pela UnB
(1999). Professor do Departamento de Antropologia (DAN)
da Universidade de Brasília (UnB). Atua principalmente
nos seguintes temas: teoria antropológica, teoria das trocas,
antropologia do estado, direito, linguagem, congresso nacional
e etnografia constitucional.
277
Os autores
Direitos Humanos na Comarca da subseção da OAB Macaé
– RJ.
278
Título Ciência e conhecimento em administração
Estudos epistemológicos