O Abismo-Clarice AULA 01 20 - 09

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 9

Minicurso - Clarice Lispector

Exposição La maison de Clarice


Belo Horizonte,setembro e outubro de 2023

O abismo-Clarice

Rafaela Faria Vianna


Mestre em Letras: Estudos Literários pela UFMG

20/09 → Clarice à descoberta do mundo, Clarice à descoberta da escrita

“Os espelhos”

O que é um espelho? Não existe a palavra espelho — só espelhos, pois um único é


uma infinidade de espelhos. — Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos?
Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambólica: bastam dois, e um reflete
o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e
insistente ad infinitum, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la
escorrendo de reflexos, os reflexos dessa dura água. — O que é um espelho? Como a bola de
cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e
em mim o campo de silêncios e silêncios. — Esse vazio cristalizado que tem dentro de si
espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que
existe. — E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no
deserto. De onde também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio
vibrante de um espelho. — A sua forma não importa: nenhuma forma consegue
circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é
sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como água se derrama. — O
que é um espelho? É o único material inventado que é natural.
Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem
consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem
caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestí­gio da própria imagem
— então percebeu o seu mistério. Para isso há-de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado
num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em
simples imagem de uma agulha.
Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria
imagem, pois espelho que eu me vejo sou eu, mas espelho vazio é que é espelho vivo. Só uma
pessoa muito delicada pode entrar num quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal
leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa
delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho
propriamente dito.
E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por
um ou outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro — e é preciso ficar de
espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante — nesse instante
consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e
branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco
recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difí­ceis: o seu gélido
silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder
recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água. (LISPECTOR, 2020,
p.12-13)
A estrutura em abismo (mise en abyme)

+ Nos diários de André Gide :

Eu gosto bastante que, em uma obra de arte, encontre-se assim transposta, no nível dos
personagens, o próprio tema dessa obra. Nada esclarece melhor ou estabelece mais certamente
todas as proporções do conjunto. É assim nos quadros de Memling ou de Quentin Metsys: um
pequeno espelho convexo e escuro reflete, por sua vez, o interior do cômodo em que se
desenrola a cena pintada. É assim no quadro As meninas, de Velásquez (mas de forma um
pouco diferente). Enfim, em literatura, há em Hamlet a cena do teatro; e em outros momentos
de muitas outras peças. (...) Nenhum desses exemplos é totalmente correto. O que o seria
muito mais, o que diria bem melhor o que eu quis nos meus Cahiers, no meu Narcisse e na
Tentative, é a comparação com o procedimento do brasão que consiste, no primeiro, a colocar
um outro “em abismo”1. (GIDE, 1948, p.41)

As meninas, Velásquez

O casal Arnolfini, Jan van Eyck

O cambista e a sua mulher, Quentin Matsys

O Díptico de Maarten van Nieuwenhove, Hans Memling

Brasão real de armas do Reino Unido

1
J’aime assez qu’en une œuvre d’art, on retrouve ainsi transposé, à l’échelle des personnages, le sujet même de
cette œuvre. Rien ne l’éclaire mieux et n’établit plus sûrement toutes les proportions de l’ensemble. Ainsi, dans
tels tableaux de Memling ou de Quentin Metsys, un petit miroir convexe et sombre reflète, à son tour, l’intérieur
de la pièce où se joue la scène peinte. Ainsi, dans le tableau des Méniñes de Velasquez (mais un peu
différemment). Enfin, en littérature dans Hamlet, la scène de la comédie; et ailleurs dans bien d’autres pièces.
Dans Wilhelm Meister, les scènes de marionnettes ou de fête au château. Dans la Chute de la Maison Usher, la
lecture que l’on fait à Roderick, etc. Aucun de ces exemples n’est absolument juste. Ce qui le serait beaucoup
plus, ce qui dirait bien mieux ce que j’ai voulu dans mes Cahiers, dans mon Narcisse et dans la Tentative, c’est la
comparaison avec ce procédé du blason qui consiste, dans le premier, à en mettre un second “en abyme”. (GIDE,
1948, p.41)
+ No livro O que é a psicanálise literária?, em que Lucia Castello Branco é entrevistada
por Ayanne Sobral:

Talvez fosse mais interessante pensarmos, como Lacan fala em lituraterra, que a
psicanálise e a literatura, ou a psicanálise e a leitura, só podem funcionar bem se elas
funcionarem como saber em fracasso. E, quando se diz saber em fracasso, ele reitera, não se
trata da mesma coisa que o fracasso do saber. Saber em fracasso, quando vocês escutarem
isso, escutem como “estrutura em abismo”. O que é uma estrutura em abismo? Aquele quadro
do Velázquez, não é? O pintor que pinta o pintor que pinta o pintor... Fui estudar nessa época
sobre isso, porque há a estrutura em abismo considerada clássica, que é toda proporcional; e
há a estrutura em abismo em que às vezes, quando o ângulo se coloca um pouco diferente, no
pedacinho menorzinho, você vê o detalhe. A tendência é pensarmos que a imagem vai
diminuindo, diminuindo, mas às vezes não é só um detalhe que você vê amplificado, você vê
alguma coisa que, no quadro maior, não aparecia, porque o ângulo mudou. Esses dias, aqui,
tentando fotografar a lua, eu tive muito essa sensação, porque às vezes eu via meu reflexo, às
vezes eu via a casa projetada na lua e às vezes eu via a lua. Então, tudo depende muito do
ângulo e dos espelhamentos que acontecem aí. Talvez o mais interessante não seja nem a
leitura no amor amalgamado, nem a leitura no ódio, ou no amódio, mas a leitura no amor em
fracasso, como se diz “saber em fracasso”. (CASTELLO BRANCO, 2022, p.30)
Clarice em abismo : o livro Para não esquecer

+ Posfácio de Arnaldo Franco Junior :

Publicado como livro independente em 1978, ano seguinte à morte de Clarice


Lispector, Para não esquecer tem uma história que merece ser resgatada, e que lembra, de
certo modo, aquelas matriochkas russas - bonecas que guardam dentro de si outras bonecas
semelhantes, numa série progressiva que, embora limitada, sugere, associado à ideia de
fertilidade, simultaneamente, o infinitesimal e o incomensurável. O livro resultou de uma
decupagem, digamos assim, da segunda parte de A legião estrangeira (1964), intitulada
"Fundo de gaveta", da qual foram suprimidos alguns textos. (...)
Para não esquecer resulta, portanto, de uma compilação de "Fundo de gaveta" que,
por sua vez, resulta de uma compilação da miscelânea de textos publicados na revista Senhor,
na coluna "Children's Corner". Heterogêneos, esses textos são, em sua maioria, de pequena
extensão, caracterizando-se como anotações, fragmentos, pensamentos, aforismos, frases que
registram instantes de iluminação poética, crônicas, notas sobre artes plásticas ou espetáculos,
reflexões sobre o ato de escrever e a literatura, contos…
Ganham, em conjunto, o status de um laboratório de escrita a partir do qual se pode
visitar a obra da escritora, com a qual eles mantêm laços não apenas temáticos, mas também
formais. A experimentação, não discrepante do entusiasmo que marcou esse período histórico
do Brasil, é a tônica. E por meio dela, é possível flagrar os grandes traços temático-formais
que, nas obras mais famosas, singularizam a escrita de Lispector. (FRANCO Jr, 2020,
p.137-139)

+ O “laboratório da escrita”

“Muito mais simples”


Pois se em vida é um calado, por que havia de escrever falando? Os calados só dizem
o que precisam; e isso impede os outros ouvirem? Trata-se de pessoa silenciosa: daí o ar
hermético. (LISPECTOR, 2020, p.19)

“Mas já que se há de escrever”


Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as
entrelinhas. (LISPECTOR, 2020, p.19)

“Um degrau acima”


Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever. Gradualmente,
gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem sabe, também eu já poderia não
escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável. (LISPECTOR, 2020,
p.32)

“Trabalho humano”
Talvez esse tenha sido o meu maior esforço de vida: para compreender minha não
inteligência fui obrigada a me tornar inteligente. (Usa-se a inteligência para entender a não
inteligência. Só que depois o instrumento continua a ser usado — e não podemos colher as
coisas de mãos limpas.) (LISPECTOR, 2020, p.24)

+ Outras sugestões de leitura em Para não esquecer: (Páginas correspondentes à edição


da Editora Rocco de 2020.)

Era uma vez - p.22


Aventura - p.27
Submissão ao processo - p.78
Dois modos - p.110
Escrevendo - p.131
Clarice à descoberta do mundo: literatura, jornalismo, literatura

A descoberta do mundo: livro que “reúne, em ordem cronológica, as contribuições de Clarice


que aparecerem aos sábados no Jornal do Brasil, de agosto de 1967 a dezembro de 1973”
(GURGEL VALENTE, 1999, p.7)

“A descoberta do mundo”

O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida. E eu quereria poder usar a
delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me
salva.
Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um
ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado,
longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo
aliás atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil
que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os
americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor
entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. Ou será que eu adivinhava mas
turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesma,
continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? Enfeitar-me aos onze anos de idade
consistia em lavar o rosto tantas vezes até que a pele esticada brilhasse. Eu me sentia pronta,
então. Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para
poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos? Acredito que sim. Porque eu sempre soube
de coisas que nem eu mesma sei que sei.
As minhas colegas de ginásio sabiam de tudo e inclusive contavam anedotas a
respeito. Eu não entendia mas fingia compreender para que elas não me desprezassem e à
minha ignorância.
Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os
meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência.
Até que um dia, já passados os treze anos, como se só então eu me sentisse madura
para receber alguma realidade que me chocasse, contei a uma amiga íntima o meu segredo:
que eu era ignorante e fingira de sabida. Ela mal acreditou, tão bem eu havia antes fingido.
Mas terminou sentindo minha sinceridade e ela própria encarregou-se ali mesmo na esquina
de me esclarecer o mistério da vida. Só que também ela era uma menina e não soube falar de
um modo que não ferisse a minha sensibilidade de então. Fiquei paralisada olhando para ela,
misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu
gaguejava: mas por quê? mas para quê? O choque foi tão grande – e por uns meses
traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca iria me casar.
Embora meses depois esquecesse o juramento e continuasse com meus pequenos
namoros.
Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo
como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição.
E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa,
rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia
ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o
amor. Esse adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa,
sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios.
Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério
continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida
com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache
vergonhoso, é pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita. (LISPECTOR, 1999, p.114)

+ Outras sugestões de leitura em A descoberta do mundo: (Páginas correspondentes à


edição da Editora Rocco de 1999.)

Hermética? - p.79
Persona - p.79
O grito - p.81
Escrever - p.134
Fernando Pessoa me ajudando - p.137
Escrever ao sabor da pena - p.278
Escrever - p.286
Escrever - p. 433

Leitura para a próxima aula: “A quinta história”, crônica publicada no livro A legião
estrangeira
REFERÊNCIAS

FRANCO Jr, Arnaldo. Posfácio: Para ler “distraidamente” e não esquecer. In: LISPECTOR,
Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.

GIDE, André. Journal 1889-1939. Paris : Gallimard, 1948. Disponível em:


https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.187057/page/n35/mode/2up?view=theater&q=vela
squez. Acesso em: 12 set. 2023.

GURGEL VALENTE, Paulo. Nota. In: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.

Você também pode gostar