O Abismo-Clarice AULA 01 20 - 09
O Abismo-Clarice AULA 01 20 - 09
O Abismo-Clarice AULA 01 20 - 09
O abismo-Clarice
“Os espelhos”
Eu gosto bastante que, em uma obra de arte, encontre-se assim transposta, no nível dos
personagens, o próprio tema dessa obra. Nada esclarece melhor ou estabelece mais certamente
todas as proporções do conjunto. É assim nos quadros de Memling ou de Quentin Metsys: um
pequeno espelho convexo e escuro reflete, por sua vez, o interior do cômodo em que se
desenrola a cena pintada. É assim no quadro As meninas, de Velásquez (mas de forma um
pouco diferente). Enfim, em literatura, há em Hamlet a cena do teatro; e em outros momentos
de muitas outras peças. (...) Nenhum desses exemplos é totalmente correto. O que o seria
muito mais, o que diria bem melhor o que eu quis nos meus Cahiers, no meu Narcisse e na
Tentative, é a comparação com o procedimento do brasão que consiste, no primeiro, a colocar
um outro “em abismo”1. (GIDE, 1948, p.41)
As meninas, Velásquez
1
J’aime assez qu’en une œuvre d’art, on retrouve ainsi transposé, à l’échelle des personnages, le sujet même de
cette œuvre. Rien ne l’éclaire mieux et n’établit plus sûrement toutes les proportions de l’ensemble. Ainsi, dans
tels tableaux de Memling ou de Quentin Metsys, un petit miroir convexe et sombre reflète, à son tour, l’intérieur
de la pièce où se joue la scène peinte. Ainsi, dans le tableau des Méniñes de Velasquez (mais un peu
différemment). Enfin, en littérature dans Hamlet, la scène de la comédie; et ailleurs dans bien d’autres pièces.
Dans Wilhelm Meister, les scènes de marionnettes ou de fête au château. Dans la Chute de la Maison Usher, la
lecture que l’on fait à Roderick, etc. Aucun de ces exemples n’est absolument juste. Ce qui le serait beaucoup
plus, ce qui dirait bien mieux ce que j’ai voulu dans mes Cahiers, dans mon Narcisse et dans la Tentative, c’est la
comparaison avec ce procédé du blason qui consiste, dans le premier, à en mettre un second “en abyme”. (GIDE,
1948, p.41)
+ No livro O que é a psicanálise literária?, em que Lucia Castello Branco é entrevistada
por Ayanne Sobral:
Talvez fosse mais interessante pensarmos, como Lacan fala em lituraterra, que a
psicanálise e a literatura, ou a psicanálise e a leitura, só podem funcionar bem se elas
funcionarem como saber em fracasso. E, quando se diz saber em fracasso, ele reitera, não se
trata da mesma coisa que o fracasso do saber. Saber em fracasso, quando vocês escutarem
isso, escutem como “estrutura em abismo”. O que é uma estrutura em abismo? Aquele quadro
do Velázquez, não é? O pintor que pinta o pintor que pinta o pintor... Fui estudar nessa época
sobre isso, porque há a estrutura em abismo considerada clássica, que é toda proporcional; e
há a estrutura em abismo em que às vezes, quando o ângulo se coloca um pouco diferente, no
pedacinho menorzinho, você vê o detalhe. A tendência é pensarmos que a imagem vai
diminuindo, diminuindo, mas às vezes não é só um detalhe que você vê amplificado, você vê
alguma coisa que, no quadro maior, não aparecia, porque o ângulo mudou. Esses dias, aqui,
tentando fotografar a lua, eu tive muito essa sensação, porque às vezes eu via meu reflexo, às
vezes eu via a casa projetada na lua e às vezes eu via a lua. Então, tudo depende muito do
ângulo e dos espelhamentos que acontecem aí. Talvez o mais interessante não seja nem a
leitura no amor amalgamado, nem a leitura no ódio, ou no amódio, mas a leitura no amor em
fracasso, como se diz “saber em fracasso”. (CASTELLO BRANCO, 2022, p.30)
Clarice em abismo : o livro Para não esquecer
+ O “laboratório da escrita”
“Trabalho humano”
Talvez esse tenha sido o meu maior esforço de vida: para compreender minha não
inteligência fui obrigada a me tornar inteligente. (Usa-se a inteligência para entender a não
inteligência. Só que depois o instrumento continua a ser usado — e não podemos colher as
coisas de mãos limpas.) (LISPECTOR, 2020, p.24)
“A descoberta do mundo”
O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida. E eu quereria poder usar a
delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me
salva.
Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um
ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado,
longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo
aliás atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil
que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os
americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor
entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. Ou será que eu adivinhava mas
turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesma,
continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? Enfeitar-me aos onze anos de idade
consistia em lavar o rosto tantas vezes até que a pele esticada brilhasse. Eu me sentia pronta,
então. Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para
poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos? Acredito que sim. Porque eu sempre soube
de coisas que nem eu mesma sei que sei.
As minhas colegas de ginásio sabiam de tudo e inclusive contavam anedotas a
respeito. Eu não entendia mas fingia compreender para que elas não me desprezassem e à
minha ignorância.
Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os
meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência.
Até que um dia, já passados os treze anos, como se só então eu me sentisse madura
para receber alguma realidade que me chocasse, contei a uma amiga íntima o meu segredo:
que eu era ignorante e fingira de sabida. Ela mal acreditou, tão bem eu havia antes fingido.
Mas terminou sentindo minha sinceridade e ela própria encarregou-se ali mesmo na esquina
de me esclarecer o mistério da vida. Só que também ela era uma menina e não soube falar de
um modo que não ferisse a minha sensibilidade de então. Fiquei paralisada olhando para ela,
misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu
gaguejava: mas por quê? mas para quê? O choque foi tão grande – e por uns meses
traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca iria me casar.
Embora meses depois esquecesse o juramento e continuasse com meus pequenos
namoros.
Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo
como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição.
E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa,
rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia
ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o
amor. Esse adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa,
sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios.
Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério
continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida
com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache
vergonhoso, é pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita. (LISPECTOR, 1999, p.114)
Hermética? - p.79
Persona - p.79
O grito - p.81
Escrever - p.134
Fernando Pessoa me ajudando - p.137
Escrever ao sabor da pena - p.278
Escrever - p.286
Escrever - p. 433
Leitura para a próxima aula: “A quinta história”, crônica publicada no livro A legião
estrangeira
REFERÊNCIAS
FRANCO Jr, Arnaldo. Posfácio: Para ler “distraidamente” e não esquecer. In: LISPECTOR,
Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.
GURGEL VALENTE, Paulo. Nota. In: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999.