Epistemologia em Paulo Freira
Epistemologia em Paulo Freira
Epistemologia em Paulo Freira
Resumo
Este artigo, de caráter eminentemente conceitual, busca Sara Silva
compreender os aspectos inerentes ao conhecimento na Prefeitura Municipal de Londrina
obra de Paulo Freire. A análise do conceito de [email protected]
epistemologia pressuposto nas reflexões freirianas permitiu
o entendimento de que este pensador elaborou um
constructo peculiar, sobre bases dialéticas, que tratamos
como epistemologia crítico‐dialética. Nesse constructo, o Darcisio Natal Muraro
conhecimento atende a um movimento dinâmico cíclico UEL
que se relaciona dialeticamente (ciclo gnosiológico). A [email protected]
curiosidade, parte do fenômeno da vida, possibilita a busca
constante e contínua pelo saber pelo ser humano na sua
condição de inacabamento, podendo ser ingênua:
caracterizada pelo senso comum, e epistemológica:
rigorosamente metódica e crítica. Por desdobramento, o
conhecimento recebido meramente por transferência é
inautêntico. O conhecimento autêntico é produzido pelo
próprio homem, na e pela reflexão‐ação, em situação
gnosiologia. O diálogo é vital para selar o conhecimento,
por propiciar a sua problematização e reflexão geradora de
sentidos que orientam a ação. São os olhares dos sujeitos
cognoscentes que comungam do processo
problematizador, crítico‐dialógico no e pelo conflito e
confronto que conferem ao conhecimento partilhado
critério de veracidade.
Introdução
Paulo Freire (1921‐1997), filósofo e educador brasileiro cuja obra em extensão e
relevância ultrapassou nossas barreiras nacionais e ganhou dimensão universal, foi um
incansável defensor da liberdade, da justiça, da ética, da autonomia do ser humano,
questões que são mediatizadas pela escola e pela sociedade. Sua obra traz em seu bojo
uma imensa preocupação com a vida humana, muito particularmente com aqueles que
são penalizados e discriminados social e economicamente.
Embora a leitura de diferentes fases dos escritos freirianos mostre que o conceito
de “consciência intransitiva”, “transitiva ingênua” e “transitiva crítica” perpassou por
outras denominações, como “tomada de consciência” e “conscientização” e,
posteriormente, “pensar certo” e “pensar inautêntico”, conceitos estes que tratam da
transitividade da consciência, a ideia de que o brasileiro precisaria ser ajudado a organizar
reflexivamente o seu pensamento sempre esteve no bojo de suas reflexões, como única
maneira de se alcançar a transformação social que o libertasse da sua condição de
oprimido.
Tal transformação, para o filósofo e educador, somente se faz possível por que o
homem é ser: “[...] um ser finito, limitado, inconcluso, mas consciente de sua inconclusão.
Por isso, um ser ininterruptamente em busca, naturalmente em processo” (FREIRE,
2001a, p.12).
qual independe dele, mas é plausível de ser conhecida, entendida, alterada, construída
(FREIRE, 2003).
Para buscarmos respostas a estas questões, objetivo deste artigo, faremos uma
breve análise conceitual acerca do conhecimento à luz das reflexões filosóficas freirianas.
1
Segundo o Dicionário de Etimologia Latin Chistes (2012), o termo foi apresentado pelo filósofo escocês
James Frederick Ferrier (1808‐1864).
foi preocupação primeira de Paulo Freire. Por isso, a nosso ver, a sua principal
preocupação se funda sobre dois grandes eixos articulados entre si. Formular uma
epistemologia crítica, amplamente observada em seus escritos, cujo principal objetivo era
trazer a baila da discussão filosófica o amplo leque de problemas ancorados na realidade
brasileira da primeira metade do século XX, em pleno auge da industrialização e
urbanização, e presentes até os dias atuais, como a pobreza, o desemprego, a opressão,
o analfabetismo, o predomínio da consciência ingênua, a alienação, a massificação, entre
outros. Propor uma educação verdadeiramente democrática, voltada para a
conscientização do homem brasileiro, capaz de lhe dar condições para reagir à
massificação, ao gregarismo e ao assistencialismo; resistir à alienação; e ajudá‐lo a se
sublimar da condição de homem‐coisa para homem‐sujeito. Posição do autor que pode
ser assim ilustrada:
A forma como Freire cristalizou suas reflexões, a nossa ver, é muito peculiar, e
uma primeira leitura dificulta a percepção de uma teoria do conhecimento, pois estamos
mais habituados às formas clássicas dessas elaborações teóricas. Paulo Freire não criou
textos puramente filosófico‐científicos. Seus escritos, a exemplo dos grandes textos
filosóficos, reúnem linguagem filosófico‐científica e linguagem literário‐poética. Daí a
necessidade de ler e apreender os escritos freirianos também de forma diferenciada,
dentro da perspectiva dialética. Leituras desprovidas desse olhar podem privilegiar o
entendimento literário‐poético em detrimento do filosófico‐científico. Não raro
escutamos comentários como o que ouvimos por ocasião do nosso primeiro contato com
Pedagogia da Autonomia, durante a graduação em Pedagogia, em que a professora de
História da Educação se referiu a Paulo Freire como “o poeta da educação”.
Não é fácil entender o pensamento de Paulo Freire. Ele não pode ser lido
como qualquer outra literatura pedagógica, pois ele não queria escrever
textos tecnicamente pedagógicos. Os textos de Paulo são também
textos literários e devem ser lidos também como textos literários. Paulo
fora professor de português na juventude e continuou durante toda a
vida a apresentar seus textos de forma literária. (...) Paulo Freire reúne
nos seus escritos o estilo literário, a linguagem científica e a linguagem
poética. Não foi assim que foram escritos os grandes textos filosóficos?
(GADOTTI, 2002, p. 55).
Mas somente a captação dos objetos, dos fatos, da realidade, como mera
constatação deste, como ocorre pela consciência ingênua, não garante a quem os capta o
conhecimento genuíno.
A conscientização, por isso mesmo, não pode dar‐se numa prática a que
falta a seriedade indispensável a quem quer conhecer rigorosamente [...]
(FREIRE, 2001b p. 112‐113).
2
O conhecimento preponderantemente sensível é aquele que tem o homem que se encontra imerso no
[...] aquele que é ‘enchido’ por outro de conteúdos cuja inteligência não
percebe; de conteúdos que traduzem a forma própria de estar em seu
mundo, sem que sejam desafiados, não aprende (FREIRE, 1983b, p. 28).
Aquele que se sente desafiado é que aprende, e como desafio pertence à esfera
da curiosidade epistemológica, esta se encontra intimamente relacionada com o desejo
de aprendizado desvelador da realidade concreta, levado a sério, sob o rigor
metodológico, crítico.
mundo natural, sentindo‐se mais parte dele do que seus transformadores, muito próximo de como se
sentem os outros animais: ursos e cotovias, para lembrar Jacques Maritain (1968). É que entre estes e
seu mundo natural e mesmo seu mundo cultural, existe uma ligação tão forte, que comparada a um
“cordão umbilical, que mantém o homem aproximado de tal modo a esse mundo que faz com que se
confunda com ele, como se ambos fossem a mesma coisa. Isso impede ou dificulta o homem de
conhecer o mundo sob outras perspectivas (FREIRE, 1983b, p. 32).
3
O conhecimento ingênuo é adquirido pelo homem por transferência ou depósito de outrem, pois, trata‐se
de um conhecimento estático, verbalizado. É um entendimento de conhecimento que desconhece que a
confrontação com o mundo é a fonte do verdadeiro conhecimento, em todas as suas fases e níveis
(FREIRE, 1983b).
4
Romão (2003, p. XIV), referindo‐se a Lucien Goldmann, explica que compreender implica na verificação
das relações das partes e de cada uma com o todo. Seguida de análise que considere a sua insertação
em contextos mais amplos.
conhecimento tem na ignorância o seu ponto de partida. Freire (1083) explica tal
processo tomando como exemplo o saber dos camponeses.
[...] Se eles sabem selar um cavalo e sabem quando vai chover, se sabem
semear, etc..., não podem ser ignorantes (durante a Idade Média, saber
selar um cavalo representava alto nível técnico), o que lhes falta é um
saber sistematizado (FREIRE, 1983a, p. 28).
[...] Ninguém sabe tudo, assim como ninguém ignora tudo. O saber
começa com a consciência do que se sabe (enquanto alguém atua). É
sabendo que se sabe pouco que uma pessoa se prepara para saber mais.
Se tivéssemos um saber absoluto, já poderíamos continuar sabendo, pois
que este seria um saber que não estaria sendo. Quem tudo soubesse já
não poderia saber, pois não indagaria. O homem, como um ser histórico,
inserido num permanente movimento de procura, faz e refaz
constantemente o seu saber (FREIRE, 1983b, p. 47).
Freire e Shor (1986) são categóricos ao afirmar que os dois momentos do ciclo
gnosiológico não podem ser dicotomizados, isolados, tratados separadamente, pois se
feito isto o conhecer o conhecimento existente acaba reduzido à simples transferência,
extensão do conhecimento, tornando objeto de fácil manipulação, coisificação,
domesticação.
O que importa é problematizar o mundo numa visão totalizada para que seja
analisado e re‐analisado criticamente pelo homem. É nesse processo que o homem
conhece como conhece e reconhece que pode conhecer mais e melhor. Eis, aí, a força da
situação gnosiológica.
Referências
FREIRE, P. Educação e atualidade brasileira. 3. Ed. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo
Freire, 2003.
______. Educação e Mudança. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983a.
______. Ação cultural para a liberdade. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. Aprendendo com a Própria História II. 2. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2002.
FREIRE, P. SHOR, I. Medo e ousadia – o cotidiano do professor. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
GADOTTI, M. Los aportes de Paulo Freire a La pedagogia crítica. Revista Educación, v. 26,
n. 2, p. 51‐60, 2002.