Fotografia Colonial e Missao Cientifica

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FOTOGRAFIA COLONIAL E MISSÃO CIENTIFICA:

NOTAS À MARGEM DE DOIS RELATÓRIOS E DOIS ÁLBUNS


SOBRE ANGOLA E MOÇAMBIQUE

Manuel Lobato
Programa História e Cartografia, IICT

Uma das virtualidades das imagens - de todas as adormeceram apenas em aparência. A mais leve evocação
imagens - é a capacidade de permitirem diferentes leitu- desperta-as para as tensões emocionais que as geraram.
ras, inclusivamente interpretações opostas. Esse efeito Para toda uma geração de trabalhadores compro-
produz-se quando aquele que olha adquiriu um certo metidos com o projecto colonialista, essas imagens con-
distanciamento relativamente às circunstâncias - mate- servam o poder de questionar os fundamentos éticos das
riais, afectivas ou outras - que presidiram à criação da suas vidas, isto é, das suas obras e das suas carreiras. São
imagem. Se a execução de um condenado à morte na imagens animadas por um frenesim que parece oscilar
China ou nos EUA suscita em cada um de nós reacções entre o idealismo ingénuo da crença num progresso que
muito díspares, o mesmo acontece com as imagens de um parece ter sido, aliás, um facto e a suspeita, se não a cer-
colonialismo mais ou menos recente. Não vale a pena, teza, de que o estado colonial construiu a sua «verdade» à
sequer, precavermo-nos contra os efeitos que uma ima- custa de espezinhar a dignidade dos africanos, ignorar os
gem produz em nós. Ela fala por mil palavras, diz-se, seus sofrimentos e aspirações e reduzi-los a uma passivi-
porque discursa usando a linguagem simultaneamente dade aparente que silenciava a revolta dos sentimentos
aberta e fechada do símbolo. O que ela representa, repre- oprimidos...
senta para nós, não em si mesma, já que - enquanto Apenas existe uma história, aquela que se reescreve
imagem e não mero objecto (impressão sobre papel) - em cada momento, em cada época. O conflito geracional é
não tem existência independentemente da leitura que o conflito dos olhares que concordam quanto à essência
dela fazemos: é parte de nós. Se a quisermos dissecar dos «factos» e divergem na forma de os encarar. As
com a objectividade de um fisiologista ficaremos sem melhores intenções civilizadoras, a melopeia da promo-
objecto. ção social e das condições de vida dos indígenas, podem
O símbolo é o tudo que é nada, diz o poeta, e, no ainda sufocar escrúpulos que não chegaram a nascer.
jogo das representações, uma fotografia, qualquer foto- Porém, não podem impedir a censura implícita que as
grafia, é o campo semântico dos sentidos e das evocações gerações pós-colonialistas ergueram como estandarte e
que desperta em quem a vê. Por que não podemos passar que, mesmo com excessos, não raro de forma injusta, deu
sem os juízos éticos e políticos dos nossos comprometi- o tom definitivo ao juízo com que as historiografias vin-
mentos, a fotografia colonial, as imagens do terceiro douras julgarão o facto colonial.
império português, colonialista e pretensamente civili- Do nosso ponto de vista, o posicionamento mais
zado, evocam as perturbações políticas e as controvérsias interessante é o que consegue recuperar quer o discurso
ideológicas do passado colectivo recente, fazendo reviver gerador dessas imagens quer o crivo por que o pensa-
as marcas, diria até, os traumas, que elas deixaram em mento anti-colonialista o fez passar, pondo em contra-
muitos de nós, portugueses e africanos. Três décadas ponto os diversos sentidos de que o símbolo é um reser-
passadas sobre as descolonizações, as nossas memórias vatório natural. A censura, o juízo reprovador e conde-

v.
102 O DOMÍNIO DA DISTÂNCIA. PARTE II: REPRESENTAÇÃO CARTOGRÁFICA

natório, são aqui o trabalho do historiador, ou seja, a costumamos tirar fotografias no decurso das nossas via-
relação que se estabelece entre significados anteriores e gens de serviço ou de férias. Tal como nem sempre tira-
posteriores expressos ideológica e geracionalmente, não mos fotografias quando viajamos, também, segundo
um parti pris do analista construído à margem dessa rela- creio, os arquivos do IICT não possuem registos fotográ-
ção, e sem que, ao mesmo tempo, ele abdique do reco- ficos de um grande número de missões científicas efec-
nhecimento de que as imagens falam por si próprias no tuadas por este organismo nas antigas colónias portugue-
eco que encontram dentro de cada um de nós. sas. Ainda assim, mesmo nestes casos, podemos acreditar
que os responsáveis e outros intervenientes nessas mis-
sões se tenham deixado fotografar e tenham, eles pró-
prios, feito fotografias a título privado, pelo que é de
Nos últimos anos a fotografia colonial tem desper- esperar que elas existam nas suas colecções pessoais e nos
tado em Portugal um crescente interesse, especialmente espólios das suas famílias.
desde que João Loureiro publicou, sob a forma de livros Seja como for, tratava-se de fixar para a posteridade
ou álbuns, algumas das suas colecções de postais ilustra- factos e cenas que se desvaneciam na memória daqueles
dos relativas às diversas ex-colónias. O interesse pela que assistiram a uns e outras. Trata-se de recordar, mas,
fotografia colonial, enquanto documento a ser preser- acima de tudo, de partilhar as memórias com um con-
vado, foi desde sempre uma preocupação por parte de junto necessariamente estreito de pares e superiores hie-
responsáveis e técnicos dos organismos que possuem rárquicos. Criar um registo fotográfico dessa memória
colecções desta natureza. Também no IICT se tem feito parece ter sido, pois, o principal objectivo.
sentir, desde há alguns anos, essa preocupação para com Enunciadas estas premissas, que respondem às
os áudio-visuais em geral, que se traduziu em acções de questões «para quê» e «para quem», resta-nos ver o modo
reprodução em suporte magnético e digital que deram como isso se processou. Não tendo propósitos científicos,
prioridade à recuperação de películas cinematográficas. a fotografia das missões geográficas é produzida de
Porém, o tratamento do rico e extenso património modo empírico, e igualmente empírico o uso que dela
fotográfico de que o IICT é detentor só agora, graças ao será feito. Embora assim seja, facilmente constatamos,
projecto Cartografia, Política e Territórios Coloniais. Comissão mesmo após uma observação muito superficial, que neste
de Cartografia (1883-1936): um registo patrimonial para a domínio nada é deixado ao acaso e que o fotógrafo, mais
compreensão dos problemas actuais, deu os primeiros passos, ou menos improvisado, está sujeito a influências ideoló-
que encontraram feliz prossecução no projecto Tratamento gicas e estéticas, e, mesmo que não tenha consciência
e Divulgação de colecções de bens patrimoniais. plena desse facto, é o autor das suas fotos. Neste sentido,
Tal acervo fotográfico, cujo levantamento está em devemos excluir a ideia de que no processo de captura de
curso, provém de missões científicas, principalmente das imagens teria havido margem quer para o «acaso», quer
que, no terreno, procederam à delimitação das fronteiras para uma pretensa e pura objectividade documental.
de África. Abordaremos aqui três pequenos conjuntos Existe uma intenção de projectar estereótipos sempre que
fotográficos dessa natureza. a oportunidade, frequentemente criada pelo próprio
Importa salientar, desde logo, que, no que toca a fotógrafo, se proporciona.
este tipo de missões, o registo fotográfico não era rele-
vante para o estudo do seu objecto científico, nem a foto-
grafia constituía, nesse contexto, um recurso tecnológico, O primeiro conjunto de fotografias/que é também o
hoje muito útil para o historiador que queira empreender mais antigo, está anexo a dois relatórios produzidos na
o estudo histórico da actividade científica corporizada em sequência da 1.* campanha da «Missão Hydrográfica do
tais missões. Zaire» (1930-1933), que teve lugar em 1930-1931. O pri-
Sendo assim, e embora a capacidade de fotografar meiro desses relatórios é da autoria do Capitão Jorge
fosse um requisito indispensável para se ser recrutado César Baptista, «encarregado do serviço de cartografia»
como membro destas missões geográficas, não descorti- dessa campanha, e o segundo relatório, que cobre o
námos grande utilidade prática e científica nessas período de Outubro a Dezembro de 1930, é apresentado
sequências fotográficas. As razões que estariam por pelo 1° tenente engenheiro geógrafo, Manuel Afonso
detrás da constituição de um registo fotográfico parecem Dias.
ser muito mais ligeiras e quase se poderia dizer que elas Das 23 fotografias que acompanham o primeiro
são as mesmas pelas quais nós, a título privado e pessoal, destes relatórios seleccionámos cinco (Fig. 1 a 5) que ilus-
Fig.3 Kg. 4

tram os meios logísticos muito escassos com que este poderia ser considerado uma forma de chamar a atenção,
cartógrafo se debatia, conforme ele mesmo se queixa no de lavrar um protesto silencioso, perante as condições
relatório que apresentou. Todas as fotos seleccionadas adversas que teve de enfrentar no decurso do seu
giram em torno do «dongo» ou canoa de fabrico africano trabalho.
usada para a navegação no rio Zaire. O capitão Baptista Uma segunda série bastante diversificada de 47
lamenta a instabilidade desta pequena e rudimentar fotografias acompanha o segundo relatório elaborado
embarcação, e não podemos deixar de chamar a atenção pelo do mesmo \.° tenente eng.e geógrafo Manuel Afonso
para a última fotografia destaa sequência (Fig. 5) que Dias em finais de 1930. Aqui, a par dos motivos específi-
acompanha o seu relatório, na qual o improvisado fotó- cos duma missão científica, como o uso de instrumentos
grafo teve a preocupação de colocar essa primitiva de observação e medição, torres de observação, etc, que
embarcação lado a lado com um vapor português fun- também existem na série anterior, encontramos melhor
deado no ancoradouro de Noqui e usado pelos serviços documentados alguns dos estereótipos que fazem da
hidrográficos para efectuar operações de levantamento fotografia colonial aquilo que ela é: o exotismo do interior
do curso e do leito rio. O contraste assim obtido bem das povoações, a curiosidade do naturalista amador, as
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tarefas desempenhadas pelos serviçais africanos, as poses Por outro lado, a influência das publicações de pro-
em grupo, o transporte da peça de caça, a assistência paganda dos pontos de vista oficiais do Estado colonial
médica dispensada aos africanos por parte dos membros está presente desde o momento da captura da imagem até
da missão científica, ao melhor estilo da propaganda' à colocação das fotos no álbum, em que se constata uma
oficial. preocupação com a distribuição e agrupamento por
temas, a par de um cuidado com a arrumação no interior
de cada tema e com a respectiva legendagem.
Um especial destaque é concedido às estruturas,
tanto materiais como mentais, da ocupação colonial, que
nestas fotos, como nas da propaganda em geral, contêm
uma iniludível função simbólica. Assim, por exemplo, os
contratempos sofridos pela caravana ao vencer obstáculos
são também documentados: travessia de rios, reparação
de estradas e de pontes, caminhadas em terrenos aciden-
tados, escaladas de penhas e escarpas, reboque de viatu-
ras avariadas ou atoladas, etc. Desprende-se uma imagem
de determinação e de força de vontade. O «progresso» e a
«ciência» em marcha. A «ordem» também, nas fotos
Fig.5
em que os africanos surgem fardados e alinhados
(Figs. 6 a 8).
As imagens documentam extensamente o recurso
ao trabalho dos africanos, fotografados em cenas da vida
O segundo conjunto provém de um álbum com 192 quotidiana, ou operando equipamentos de sinalização.
fotografias não numeradas, a que faltam duas, talvez
caídas ou arrancadas. Na capa do álbum pode ler-se
«Missão Geográfica de Angola» e, abrindo, a 1.- folha
indica que se trata da «Campanha de 1942». Mais de
metade do álbum, cujas folhas não estão numeradas, não
chegou a ser utilizado. Aparentemente as folhas deixadas
em branco destinar-se-iam a receber fotos de campanhas
posteriores, o que não aconteceu.
Apesar de ser meramente ilustrativo dos trabalhos
da missão e não possuir, por isso nenhuma articulação
interna com os relatórios da mesma, o álbum foi cuidado-
samente organizado. Cada foto possui legenda própria.
Nota-se a preocupação em mostrar os trabalhos de Fig.6
campo: montagem de equipamentos, construção de tor-
res, escadas e postes de observação, desarborização de
cumes. Também encontramos as simples «vistas» do
posto administrativo, do monte, da serra, do rio, da
queda de água ou cataratas, etc, predominando o tipo de
acidentes geográficos que se destacam na paisagem e a
marcam de forma mais vincada. A fotografia cumpre
assim uma função que ao longo de séculos tinha sido
desempenhada exclusivamente pelo desenho, pelas des-
crições dos geógrafos e por aquelas que proliferaram na
chamada literatura de viagens. Algumas fotos panorâmi-
cas coincidem com o estereótipo do bilhete-postal da
época, do qual não se distinguem. O olhar do turista e do
viajante reaparecem, pois, aqui e além. Fig.7
FOTOGRAFIA COLONIAL E MISSÃO CIENTÍFICA, MANUEL LOBATO 105

sentir. As poses, em grupo ou individuais, são prepara-


das, mesmo estudadas, previamente. Poucas são as fotos
que captam o movimento e a vida.
Posando para fotografias que nunca irá possuir nem
ver, o africano é, literalmente, objecto e não sujeito de

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Fig.8

A conjuntura de guerra não é esquecida, como a


foto de um submarino alemão, captada provavelmente ao
largo da costa portuguesa, bem documenta. Os cientistas
não deixavam de fotografar tudo quanto aos seus olhos
oferecia maior interesse: tipos humanos e autoridades
tradicionais (Figs. 7 e 9), sepulturas, artefactos e técnicas
(Fig. 10) e até o «sorriso indígena» (Fig. 11). É bem
patente que os fotógrafos são homens e o olhar é mascu-
lino. Apreciavam muito os «sorrisos» - mesmo se, nal-
guns casos, não muito sorridentes - e os penteados.
Enfim, as mulheres são convidadas a exibir os seus
enfeites capilares de frente e de perfil.
Aliás, neste álbum, talvez todo ele contendo foto-
grafias provenientes da objectiva de um mesmo e único
fotógrafo, as poses predominam sobre os instantâneos, Fig. 10
que não abundam. Daí a falta a espontaneidade que se faz

Fig. 9
Fig. 11
O DOMÍNIO DA DISTÂNCIA. PARTE II: REPRESENTAÇÃO CARTOGRÁFICA

fotografia. A língua portuguesa não dá ensejo a equívocos Na organização do álbum deparamo-nos, aliás, com
que podem sobrevir noutras línguas. É esta uma das eloquentes associações entre fotos: a «mocidade indí-
razões por que alguns estudiosos da fotografia colonial gena», que acabámos de ver, aparece lado a lado com a
falam da violação de que o africano foi vítima ao não natureza selvagem (no caso uma «cobra»), a fonte de
poder recusar ser fotografado, contrariamente ao que águas termais, curiosidade de naturalista, e o espectáculo
acontece actualmente nos países pertencentes ao denomi- da queimada. A ajardinada fazenda do «branco» con-
nado terceiro mundo, onde, como sabemos por experiên- trasta com o mato circundante (Fig. 14), como se os olha-
cia própria, tirar uma foto a alguém num lugar público res do fotógrafo e o do africano, a quem toma de emprés-
pode ser melindroso e ferir susceptibilidades, por vezes timo a expressão («branco» está entre aspas na legenda, o
facilmente contornáveis mediante uma pequena compen- que pode significar que o seu proprietário era crioulo),
sação monetária. Ou seja, uma foto é, ou deveria ser, uma pudessem coincidir sobre uma mesma e inquestionável
troca, como muito bem nos ensinam os antropólogos. visão das coisas, como se as plantas exóticas de rendi-
Também neste domínio a troca desigual parece vir de mento económico, cuidadosamente alinhadas em fileiras
longe. Poder-nos-íamos interrogar a este respeito até que (mangueiras e cafeeiros), tivessem a sua contraparte na
ponto o fotógrafo colonialista rouba, rapta, despreza ou «mocidade indígena» da página ao lado (Fig. 12 a 15),
ignora a alma do africano. pelo que a mensagem que se pretende fazer passar é a da
Os estudiosos da fotografia colonial afirmam que, se domesticação da natureza selvagem em benefício de todos.
não há hostilidade nos olhares, também não há satisfação,
mas distância e indiferença. Haveria aqui de exceptuar,
como vimos, os sorrisos das crianças... São estas que o
colonialista deseja conquistar, já que fardada, aprumada e
alinhada, a «mocidade indígena», à semelhança da portu-
guesa, parece ser moldável (Figs. 12 e 13).

Fig. 14

Fig. 12

Fig. 15

O terceiro e último conjunto de fotografias foi reti-


rado de um álbum cuja capa exibe os dizeres «Missão
Geográfica de Moçambique». Trata-se de 252 fotos mais
uma solta e ampliada. Faltam 5 fotografias, das quais 1 foi
arrancada e as outras 4 podem ter-se descolado e caído.
Este álbum de Moçambique é uma miscelânea de
Fig. 13
duas ou mais campanhas. Algumas fotos referem-se, em
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legenda, à campanha de 1932, ano em que teve início a moribundo agonizando no chão e do esqueleto de um
«Missão Geográfica de Moçambique», enquanto uma elefante pretendem dar a ideia de que na dita «selva»
outra mostra um marco com a data de 1944... As fotos decorre o drama da morte: morte da vegetação pela mão
não estão numeradas nem existe paginação, havendo um do homem, o animal morto às mãos do homem, a morte
grande número de fólios vazios e tendo sido deixados do próprio homem, tudo reunido numa mesma composição.
grandes espaços entre alguns grupos de fotos. Apenas Por fim, tal como se esperaria duma qualquer
algumas delas possuem legenda própria: as primeiras, publicação de propaganda, o álbum encerra com duas
que dizem respeito à l.a campanha de 1932, no Zumbo, fotos de missões religiosas e outra do grande motivo de
na confluência da fronteira de Tete com a da Rodésia do interesse histórico colonial naquela região, a velha forta-
Norte e a da Rodésia do Sul, e as últimas, que mostram leza de Tete.
missões religiosas e a velha fortaleza de Tete. A maior
parte das fotos, contudo, não possui elementos de identi-
ficação e datação, enquanto as legendas genéricas apostas A tendência cada vez mais prosseguida pela
a cada página são demasiado vagas: «sinais geodésicos», imprensa colonialista de publicitar actos oficiais e os
«construção de sinais geodésicos», etc. A legenda «vege- empreendimentos que possam ser apresentados como
tação africana» parece mesmo um pouco pobre, senão marcos na modernização das estruturas coloniais, fez com
despropositada, num álbum sobre Moçambique. Enfim, que a representação de zonas que se mantiveram apa-
os autores são geógrafos, não botânicos. rentemente intactas e imunes à influência colonizadora -
Ao contrário do que se verifica com o álbum de de facto, sabemos que tais zonas não existem - fosse rele-
Angola, o de Moçambique é mais generalista e menos gada para o domínio do exótico, como a fauna selvagem
estruturado, contendo fotos de diferentes épocas, regiões da Gorongosa (de resto bem ilustrada no álbum de
e missões científicas, mais ou menos organizadas por Moçambique). Pelo contrário, a representação dos tipos
temas. Curiosamente este(s) fotógrafo(s) revela(m) uma humanos e da cultura tradicional africana manteve-se
maior sensibilidade para o ofício do que os anteriores, nesse registo misto de exótico e etnográfico, à medida que
quer no que diz respeito aos enquadramentos e ao equilí- uma multidão de camponeses afluía aos centros urbanos,
brio da composição, quer no que toca ao sentido do engrossando um proletariado suburbano, miserável e
movimento na captura de instantâneos e do dinamismo desenraizado, que não convinha exibir.
das forças: homens, correntes e quedas de água, veículos Facilmente se depreende que a fotografia colonial
e embarcações, etc. Certas sequências de fotografias tem uma especificidade própria. Depois das gravuras e
foram mesmo organizadas tendo em consideração estas desenhos, ela constitui a mais antiga memória pictural
características internas de espontaneidade e movimento. dos numerosos países que emergiram da vaga descoloni-
Algumas fotos das caminhadas em caravana foram zadora que teve lugar no terceiro quartel do século XX.
tomadas em andamento. Sem dúvida há aqui o «olho» e a Essa memória foi preservada através do olhar do
«mão» de um excelente fotógrafo amador. Dessas cami- fotógrafo europeu, o qual, como qualquer olhar, é discri-
nhadas e das escaladas para fins de proceder a observa- minativo e, neste caso, também frequentemente discrimi-
ções em pontos eminentes resultaram fotos magníficas e natório. No entanto, seja qual for o ponto de vista em que
muito espontâneas, com legendas como «caravanas em nos coloquemos relativamente ao fenómeno colonialista,
marcha». Não faltam os já citados «bilhetes postais» sem dúvida um dos mais tristes e tirânicos episódios que
agrupados sob legendas como «Aspectos do lago Niassa», marcou o destino comum dos povos, verificamos que a
«Paisagens do Niassa», «Zambeze», etc, nos quais se nota visão dos agentes da «colonização científica» - e a expres-
uma preocupação especial com o enquadramento da são não é minha - veicula a formação e a idiossincrasia
fotografia, mostrando a grandiosidade paisagística em próprias dos homens dessa época. E tal visão é essencial-
detrimento, por exemplo, da habitação típica dos crioulos mente construtiva. Os homens dessas gerações - e não
da Zambézia, o chamado «luane» ou «chuambo». apenas os homens cultos e com formação superior - têm
Tal como no anterior exemplo sobre Angola, tam- uma crença inabalável no «progresso»: progresso moral,
bém aqui deparamos com opções de arrumação muito progresso científico e progresso material. Essa foi de resto
significativas. Lado a lado, sob a legenda «Navegação no uma crença partilhada e um traço comum da mentalidade
Zambezes», encontramos o vapor e a canoa. A nossa do mundo ocidental até um passado recente, de que
preferência vai, no entanto, para o «Quadro da selva» somos ainda largamente herdeiros e tributários, e que só
(Fig, 16), onde as fotos de duas queimadas, de um a crise de valores dos anos 60 veio pôr em causa.
Fig. 16 - «Qu^^adr^zo da selva»
HISTÓRIA E CARTOGRAFIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA TROPICAL
o DOMÍNIO
DA DISTÂNCIA
COMUNICAÇÃO E CARTOGRAFIA

COORDENAÇÃO MARIA EMÍLIA MADEIRA SANTOS MANUEL LOBATO

AUTORES ANA CRISTINA ROQUE • ANGELA DOMINGUES


DEOLINDA BARROCAS • FERNANDA OLIVAL
FRANCISCO FRIAS DE BARROS • JOÃO PAULO APARÍCIO
JOÃO CARLOS GARCIA • JOÃO PAULO OLIVEIRA E COSTA
JORGE FLORES • JORGE MACIEIRINHA
JORGE MANUEL SANTOS ALVES • LÍVIA FERRÃO
MANUEL LOBATO • MARIA EMÍLIA MADEIRA SANTOS
MARIA MANUEL TORRÃO • MIGUEL JASMINS RODRIGUES
NELSON VERÍSSIMO • NUNO COSTA • NUNO LIMA
PAULA SANTOS • VÍTOR RODRIGUES

HISTÓRIA E CARTOGRAFIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA TROPICAL

LISBOA 2006
ÍNDICE

Introdução, Maria Emília Madeira Santos 3

PARTE I - Comunicação e Escrita

Descontinuidade e comunicação: o reino e a construção do império, Miguel Jasmins Rodrigues 13


A correspondência entre o Japão e a Europa: formar de comunicar a longa distância, João Paulo
Oliveira e Costa 21

Comunicação entre impérios: A engrenagem das relações entre Goa e a corte mogol durante o
governo do conde de Linhares (1629-1635), Jorge Flores 29

Algumas considerações sobre a circulação de informação no império do oriente, Vítor Rodrigues e


Manuel Lobato 45
Construção de redes de comunicação no tráfico negreiro atlântico, Maria Manuel Torrão 53
Mercês, serviços e circuitos documentais no império português, Fernanda Olival 59
Circulação de informação científica no império português em finais de Setecentos, Angela
Domingues 71
Governar no Brasil colonial na segunda metade de Setecentos: o caso de Minas Gerais, João Paulo
Aparício 77

Longe do remédio da Mesa do Paço, Nelson Veríssimo 89

PARTE II - Representação Cartográfica

O funcionamento da Comissão de Cartografia visto através do arquivo da sua secretaria (1910-


1936), Jorge Manuel Santos Alves e Vítor Luís Gaspar Rodrigues 95
Fotografia colonial e missão científica: notas à margem de dois relatórios e dois álbuns sobre
Angola e Moçambique, Manuel Lobato 101

Reconhecimentos hidrográficos na cartografia portuguesa da costa norte de Moçambique, no


século XIX, Ana Cristina Roque e Lívia Ferrão 109
A Comissão de Cartografia e a Armada Portuguesa. O caso do engenheiro hidrógrafo Baeta Neves,
Deolinda Barrocas 121
José Bacelar Bebiano: do trabalho de campo aos corredores do poder, Miguel Jasmins Rodrigues 125
O Sudoeste de Angola em 1929, segundo a Comissão de Cartografia: a elaboração de um mapa,
Jorge Macieirinha 131

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