Angola 1961 o Horror Das Imagens
Angola 1961 o Horror Das Imagens
Angola 1961 o Horror Das Imagens
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Judith Butler, Frames of War: When Is
Life Grievable? (London: Verso, 2010,
p. 63).
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Fotografias de Atrocidade
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imagens de atrocidade. Para ensaiar uma espécie de biografia crítica das cente-
nas de fotografias que conhecemos sem nome, data ou autor, comecemos por
indagar em que condições foram tiradas.
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tenas de negros nos musseques da cidade –, que tinham ainda bem presentes
imagens dos refugiados belgas que embarcam no Lobito e Luanda, e para evi-
tar que a proposta da Libéria para discutir as colónias na ONU fosse aprovada.
Tendo fechado o país a olhares inconvenientes de fora, uma prioridade
do executivo, após o desacordo entre Salazar e o Ministro da Defesa, o gol-
pista Botelho Moniz, que pretendia o acesso da imprensa internacional à zona
operacional para que testemunhasse esta barbárie, a maioria das imagens hoje
conhecidas foram captadas nos primeiros dias, de um modo nada aleatório
ou acidental. Pelo contrário, muitas resultaram de ordens superiores para
integrar um grande número de fotógrafos e operadores de câmara dos ser-
viços oficiais entre as primeiras colunas de batedores a subirem Angola a 17
de Março, com a missão de documentar exaustivamente os cenários dantes-
cos de caos e morte. Uma missão de recolha de imagens de acesso interdito
a jornalistas estrangeiros, realizada por, entre outros, Joaquim Cabral, Horá-
cio Caio, Silva Campos, José Elyseu, Manuel Graça, Ricardo Mesquita, Hélder
Mendes, Perdigão Queiroga ou António Silva, para o Exército, RTP, CITA,
ou Imagens de Portugal, cujos feitos seriam reconhecidos com distinções ofi-
ciais. Esta insólita preocupação com o registo imagético surgia embedded na
vanguarda do aparato militar, e portanto, inteiramente submetida à perspec-
tiva estabelecida pelas autoridades – definindo como, e o que podia ou não
ser capturado. Esta voragem fotográfica alimenta-se ainda de imagens forne-
cidas pelas milícias civis e pelos próprios batedores, que embora se tornem o
símbolo de abusos na resposta portuguesa, serão os autores dos documentos
a partir dos quais os eventos se dão a conhecer e julgar, e passariam à história,
definindo o campo de visão da opinião pública, ditando e controlando como
este deveria ser interpretado. Um dos fotógrafos dos ataques é o próprio alfe-
res Robles, a quem se atribuiriam as piores atrocidades de então 9:
9
Segundo declara Rui de Azevedo Teixeira:
“A espiral do terror continua com a
selvática reacção dos brancos, na qual a Das chacinas eu tenho fotografias, tiradas por mim, de brancos e
qualidade da violência não desmerece da de negros. Foi um rolo que, suponho, depois de ter sido entregue no
dos bacongos e à quantidade de negros
mortos perde-se o número. Há negros que Quartel-General em Luanda, serviu para fomentar todo esse cariz do ter-
são enterrados vivos, outros enterrados rorismo na ONU 10.
até ao pescoço, sendo depois as cabeças
esmagadas por bulldozers, ou, então, em
interrogatórios, cortam-se os pénis às Se a fotografia se torna um mecanismo humano para lidar com o absurdo
rodelas obrigando os seus donos a
comê-las. Nesta vertigem da violência,
da violência que, de outro modo, seria inacreditável, impunha-se acima de
um nome se destaca: Fernando Leal tudo como uma das primeiras armas de retaliação e combate. Segundo relatos
Robles. O alferes Robles (…) assassina disponíveis, os fotógrafos, chegando aos cenários de destruição, avançavam
negros dos mais diversos modos: pondo-
-os em fila indiana para poupar munições, para o ritual de documentar detalhadamente os cadáveres em decomposi-
juntando-os «para a fotografia» e ção, e uma vez amplamente retratados, eram então enterrados por soldados.
metralhando-os de seguida, etc. Robles,
cujo nome circula pelas instâncias e jornais São poucas, porém, as imagens de destroços materiais, vistas gerais ou pis-
internacionais, torna-se no único célebre tas forenses para fins militares. Não se tratava de apurar responsáveis e factos,
criminoso de guerra português”
A Guerra de Angola, 1961-1974
identificar vítimas, ou reunir informação por meios visuais, mas de montar
(Matosinhos: QuidNovi, 2010), p. 69. apelos e denúncias que, longe de passivas, continham já em si o julgamento e a
10
Depoimento do tenente Fernando Robles interpretação dos eventos. Através de close-ups perturbadores, a lente é encos-
em João Garção Borges, Ultramar, Angola
1961-1963, Acetato e RTP (1999). tada aos detalhes da abjecção, sorvendo minuciosamente, segundo a expressão
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Apesar das imagens terem sido cruciais
para a reavaliação da posição dos EUA,
Reis Ventura escreve: “Oportunamente,
o embaixador Vasco Garin mostrou-lhes
inacreditável dos terroristas que atravessaram a fronteira do norte de publicamente, no «Palácio de Vidro», as
fotografias horríveis dessa pobre gente
Angola para degolar, violar e mutilar as nossas mulheres e crianças por chacinada. E depois de observarem
todas as fazendas e aldeias indefesas em que passavam, sem a menor atentamente, no insofismável documentário
provocação, sem o menor conflicto racial (...) Não importa quanto gri- fotográfico, os velhos agricultores
esquartejados, as mães com o vente aberto
tam sobre a repressão portuguesa, sobre exploração portuguesa, não à catana e as criancinhas degoladas no
importa quão alto gritam as suas mentiras e fabricações para encobrir berço, – que fizeram os representantes do
governo norte-americano? Taparam os
estes crimes atrozes que encorajaram e continuam a encorajar, a prova olhos, horrorizados, reclamando um castigo
nua está aqui, demasiado nauseante para ser olhada 16. exemplar para tão hediondas atrocidades?
Nada disso. Eles que, indeferindo os
pedidos de clemência do mundo inteiro,
ataram Chessman à cadeira eléctrica,
votaram que Portugal deixasse à vontade
Notavelmente, este longo discurso, que marcou um ponto de viragem na
os beneméritos assassinos de homens,
estratégia diplomática, centra-se exclusivamente nas fotografias, detalhando mulheres e crianças…” O caso de Angola
como os selvagens castram o pénis dos homens, atirando-no ao ar enquanto (Braga: Editora Pax, 1965), p. 21. Para
Américo Barreiros, a importância das
dançam e cantam, como amputam os pés e as mãos às crianças, e cortam os imagens na ONU radicava no facto de,
seios a todas as mulheres, depois de violadas. Ao focar a natureza violenta em consonância com a doutrina oficial, as
considerar como única e exclusiva fonte
do ataque, refutava-se a legitimidade política dos movimentos de libertação, segundo a qual se pode interpretar os
por se saber terem o apoio internacional dos países ali reunidos. Sabendo do ataques da UPA: “Para se documentarem e
bem, nada melhor que ver nessas fotografias
poder particular das imagens grotescas para matar a discussão, dada a imo-
os cadáveres de homens, mulheres e
ralidade do horror se sobrepor a tudo, tornando qualquer questão heresia, crianças, cortados aos bocadinhos,
são mobilizadas despudoramente para aplacar os críticos. O sensacionalismo pelos negros desta Angola, tornados
completamente inconscientes por drogas
e chantagem emocional da estratégia de exibir o espectáculo doentio dos mor- que negros de além-fronteiras introduziram
tos, provou-se politicamente eficaz, tendo-se imposto ao debate racional, blo- na nossa terra, onde o pacifismo e a
confiança do preto na nossa Administração
queando a análise, paralisando os presentes. Os ganhos da perversa manobra nunca sofreram reparos de dentro e de fora
primavam sobre os escrúpulos com a dignidade das vítimas e o luto das famí- (…) Antecipem-se os senhores da Comissão
a redigir o seu relatório com base, apenas,
lias. E a centralidade das imagens na psique nacional era vincada: “a dolorosa
nos hediondos crimes que tais fotografias
prova de muitos destes casos permanecerá para sempre na nossa memória revelam e deixem-se de mais hipocrisias
através destas fotografias horrendas tiradas pelos socorristas, que chegaram que já cheiram mal.” A verdade sobre os
acontecimentos em Angola (Carmona:
demasiado tarde.” Tip. Angolana, 1961), p. 133.
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Guerra em curso
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Sobre a centralidade das imagens na
intimação de canibalismo, escreveu Isabel
Castro Henriques: “As últimas operações
“As fotografias que iam chegando a Lisboa ligadas à banalização da antropofagia
foram certamente as que nasceram após
corriam de mão em mão, impressionando os actos de violência física dos africanos
vivamente o povo português, que reagiu da UPA a partir de Março de 1961, na
zona cafeeira do norte de Angola, e que
protestando em manifestações de rua.”
foram amplamente divulgadas pelos
serviços oficiais portugueses […] inúmeras
MÁRIO ANTÓNIO, A descolonização portu- companhias militares portuguesas
guesa, 1979, p. 62. podendo evocar ou até mostrar fotografias
das operações antropofágicas realizadas
pelos soldados portugueses, que tinham
“(…) numerosas fotografias que percorriam sido treinados no quadro da mitologia
Angola de ponta a ponta e mostravam alguns antropofágica dos africanos. [...] Todavia,
são portuguesas as fotografias que mostram
desses terríveis massacres. (…) fotografias (no século XX!) os cadáveres decapitados e
que espelhavam todo o horror daquela noite as cabeças espetadas em paus, para as exibir
ao mundo civilizado! Não bastava então
e daquele dia de pesadelo e lançaram um as crueldades da tortura e da morte, era
natural pânico por toda a população.” indispensável assegurar a eternidade das
imagens, prova da eficácia da violência, que
LUÍS RODRIGUES, A última jóia, 2006, pp. 45 e 52. só podia responder à antropofagia mítica
com a antropofagia real.” Os pilares da
diferença – relações Portugal-África: séculos
XV-XX (Casal de Cambra: Caleidoscópio,
2004), p. 244.
A exploração do imenso potencial detonador destas imagens escabrosas 24
Cf. Nuno Mira Vaz, Opiniões públicas
não se cinge a legitimar publicamente o envio das tropas para Angola. Pros- durante as guerras de África: 1961-74
segue a todo o vapor na mobilização para a guerra, com o apoio de organis- (Lisboa: Quetzal, 1997).
25
Filipe Leandro Martins, A pele branca
mos oficiais e semi-oficiais. A mais grandiosa destas manifestações decorreu das acacias (Lisboa: Caminho, 1986), p. 68.
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Tudo era calmo até então! A vida decorria simples e boa (…) Tu, que
és pai, olha bem a fotografia. Tu, que és mãe, aperta os teus filhinhos
contra ti. Imagina, por momentos, aquelas crianças, igualzinhas a todas
as crianças do mundo, que poderiam ser os teus filhos. (…) Vê as grossas
lágrimas na carita daquele inocente de dois anos, os brasitos estendidos,
os seus gritos ao ser dilacerado pelos requintes de perversão sexual dos
monstros. Ouve o agudo choro do bebé ao ser desfeito à catanada. (…)
Olha bem a fotografia. Vê-os ali, naquele terreiro, despedaçados e mor-
tos. (…) Tudo era calmo até então! Hoje… HÁ LUTO NA NOSSA CASA! 31
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O que viu nas fotografias que para aí circulam tem explicação, factor
por factor, nos rituais indígenas. Fizeram-nos regressar a tempos imemo-
riais de barbárie e selvajaria. (...) souberam trabalhar bem a besta-fera
que jazia adormecida dentro da alma negra 33.
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caso do National States Rights Party, da John Birch Society ou da Billy James
Hargis’s Christian Crusade, além dos panfletos serem citados por um dos
principais livros da supremacia branca 45. A associação dos vários grupos de
supremacia branca, a White Citizens’ Council, que se destacava então, ao lado
do Ku Klux Klan, pela fortíssima oposição à integração racial através de amea-
ças violentas e boicotes económicos (denunciando dívidas, negando emprésti-
mos e créditos, e sabotando os negócios de afro-americanos), foi também um
dos orgãos seleccionados para divulgar os panfletos pela firma que operava
sob instruções precisas do governo de Salazar. Além deste grupo ter publi-
cado as fotos dos cadáveres portugueses numa das suas revistas, The Counci-
lor, usando-as para atacar os direitos civis, denunciando uma putativa aliança
entre Holden Roberto e Martin Luther King, e exibindo a chacina como pre-
núncio de um futuro com igualdade racial nos EUA; anuncia ainda, em página
inteira da sua revista oficial, The Citizen, a venda dos panfletos com as fotos
das vítimas portuguesas que morreram em Angola que o governo português
pagou e lhes fez chegar em quantidade, como objectos de colecção sobre a
“selvajaria negra”, instando o leitor a apressar-se antes que se esgotassem,
aceitando encomendas em avulso (1$), três (2$) ou dez cópias (5$):
Por seu lado, a versão italiana destes panfletos do SNI, embora financiada
por este e impressa em Lisboa, foi concebida para ser integrada numa coleção
de livros da Ordine Nuovo, grupo terrorista de extrema-direita dissolvido em
1973 pelo parlamento, na sequência de múltiplos atentados com dezenas de
mortos em Itália, e por tentarem restaurar o partido fascista de Mussolini. Foi
a este grupo que o SNI decidiu entregar as fotografias dos mortos de Angola,
reproduzidas ao lado de títulos da colecção como “o mito do extermínio dos
judeus,” atribuindo o crime à esquerda sanguinária, e à conspiração geno-
45
Cf. William G. Simpson, Which Way
Western Man? (Washington D.C.: National cida do “capitalismo yankee, l’imperialismo sovietico e la barbarie afroasiatica”
Alliance, 1978). contra Portugal e a Europa 47.
46
The Citizen: Official Journal of the
Citizens’ Councils of America, vol. 6, Embora não caiba aqui esmiuçar as implicações políticas dos canais de
Jackson: Citizens’ Council, 1961, 32. distribuição preferidos pelo regime português, enquanto defende publica-
47
O SNI edita então outro título de Pino
Rauti (L’Europa e l’Africa), fundador
mente a permanência em África com base na sua excepcionalidade multir-
deste grupo abertamente neofascista e racial e brandura de costumes, é crucial notar que, se nas edições para fora
anti-semita, e membro da falsa agência de do país, as fotografias estão quase sempre vedadas por avisos para não cho-
notícias montada por Salazar, a Aginter
Press. car o público, ou são exibidas com parcimónia, a atitude para com o público
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português não podia ser mais contrária. O panfleto inglês do SNI, por exem-
plo, tem um selo que separa o texto das imagens, alertando conter corpos hor-
rivelmente mutilados, a não ser vistas nem por menores, nem pelo comum
adulto. A versão americana reitera que estas são mostradas com muita reni-
tência, uma vez que são “completamente impublicáveis – nem para uma dis-
tribuição geral nem para a circulação privada.”
No entanto, o mesmo panfleto, dirigido à população portuguesa, era des-
provido de qualquer aviso, e o mesmo sucede com a maioria dos livros, dos
jornais e das exposições que as reproduzem. Ao contrário do que era pre-
gado fora de portas, a distribuição geral e circulação privada eram a regra em
território nacional, uma vez que, conscientes do potencial traumático das
fotografias, as autoridades não só não condenavam a exibição gratuita da vio-
lência perante menores e adultos, como eram os seus principais promotores
– mesmo que controlando activamente quais saíam sob a sua chancela, para
não se levantarem questões inconvenientes sobre a sua incapacidade de pro-
tecção das populações. Quando não as publicam, facilitam o acesso a arquivos
das expedições do horror para edições comerciais, que agradecem as cedên-
cias de fotografias às autoridades militares e civis, sobretudo ao CITA (Centro
de Informação e Turismo de Angola), mas também ao Serviço Cartográfico
do Exército, à Força Aérea, ao SNI, e aos jornais O Comércio, A Província de
Angola ou Diário de Luanda.
Se antes da declaração de Salazar (“rapidamente e em força”), as imagens
já saturavam os jornais e a televisão (em 1961, a RTP emite 9h30 só de repor-
48
Vasco Hogan Teves, História da
Televisão em Portugal, 1955/1979 (Lisboa:
tagens de Angola 48), chegam também ao cinema em 1962, alternando justa- TV Guia Editora, 1998), p. 114.
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Lisboa. O país está alarmado com as reportagens da Televisão. Isto não pode
continuar assim. Não podem filmar mais sem a minha autorização.” Caio, a
quente, replicou apenas: “Para o raio que o parta!” 55. Se é verdade que, ape-
sar de amplamente divulgadas pela comunicação social, nem todas as ima-
gens foram transmitidas na televisão, Caio disponibilizou stills escabrosos no
seu livro – close ups dos genitais de um soldado suspensos de um ramo ou
uma mulher mutilada de pernas abertas para a câmara, etc. Se o país estava
alarmado, mais alarmado ficou. Há, contudo, pelo menos notícia dum jorna-
lista, Pereira da Costa, que afirma ter recusado publicar as suas reportagens
até 1969, em reacção ao alarmismo do momento em que “numerosos livros,
sem qualquer valor informativo e de nula capacidade formativa, atingiam tira-
gens de dezenas de milhares de exemplares (muitas vezes graças à inserção de
fotografias chocantes)”. Considerava, acima de tudo, que, contrariamente ao
que era a prática oficial diária, “a morte de milhares de portugueses brancos
e negros merecia um respeito que não se coadunava com a exploração do seu
sacrifício” 56.
No teatro da guerra
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Do outro lado
Para que o efeito das imagens sobre o público seja compreendido, é crucial
que nos lembremos sempre que, apesar da fixação com este evento e da crueza
da carnificina representada, o objecto material em causa é, na verdade, uma
fotografia. Esta percepção apenas seria então ousada publicamente por auto-
res estrangeiros, que não as viam como documentações neutras e factos irre-
futáveis, mas representações altamente mediadas e politizadas, inscritas numa
máquina de propaganda. René Pélissier foi um desses autores que, perplexo ao
descobrir a livre circulação desta “iconografia macabra de riqueza alucinante”,
a estudou, e regista que algumas fotos parecem “um pouco “arranjadas” para
suscitar mais o horror e a reprovação da população branca (nomeadamente
pela introdução de paus nas vaginas de cadáveres de certas raparigas)” 78.
78
René Pélissier, op. cit., 535n22. Outras imagens mostram ainda, no topo dos cadáveres, crânios limpos que
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não lhes pertencem; ou corpos que foram sendo remexidos, como o do soba
de Cassoneca. O problema, contudo, não jaz tanto na veracidade das fotogra-
fias (sabendo das atrocidades hediondas que lá tiveram lugar), mas antes no
manobramento político a partir da sua autoridade incontestada, apesar das
contradições e conflictos à sua volta.
A discrepância das legendas é sintomática. Tomando apenas o exemplo
mais icónico, e aquele que encabeçou toda esta campanha visual: a fotogra-
fia dos bebés mortos em Madimba que Vasco Garin exibiu na ONU, foi ao
mesmo tempo reproduzida com a legenda de Quitexe por Horácio Caio, Vale
do Loge por Luiz Iglezias, Nova Caipemba por Pedro Pires, e de Quibaxe por
Amândio César, lugares separados por centenas de quilómetros. Na televisão,
a RTP afirmou ser Camabatela. Bernardo Teixeira, que descreveu em detalhe a
captura da imagem por um fotógrafo do exército, segundo apurou em Angola,
garantiu ser Mavoio. Philippa Schuyler publicou-a também, mas afirmando
representar um massacre que teve lugar no Congo belga, e não em Angola 79.
A precariedade da informação contextual leva mesmo o delegado indiano na
ONU, J. N. Sahni, a interpelar Vasco Garin a 2 de Novembro. Referindo-se a
uma colecção de fontes oficiais, exigia que o representante português preci-
sasse onde e quando foram feitas, e se possível identificasse as vítimas, para
perceber “o propósito segundo o qual as fotografias foram tiradas e exibidas”.
Ressalvando não querer sugerir que estas fossem forjadas, considerava, no
entanto, que “Portugal deve oferecer provas de que são autênticas, e não, por
exemplo, fotografias da biblioteca de Eichmann” 80. Instava a que fosse dispo-
nibilizada toda a informação sobre elas a fim de se clarificar as circunstâncias
da sua produção e divulgação. Uma tarefa nunca feita, deixando o quem, quê,
como, porquê e o quando da maioria destas representações em aberto. 79
Philippa Schuyler, Who killed the Congo?
René Pélissier nota também como as imagens rapidamente foram usadas (New York: Devin-Adair Co., 1962). Esta
foi apenas uma de quatro proeminentes
para justificar todo o terror retaliatório, carta branca para inúmeras atroci- fotografias do 15 de Março que a autora
dades, no seio desta “guerra de extermínio onde a política não tinha qual- americana reproduz neste livro, garantindo
quer papel”. Lembrando as prisões indiscriminadas e as execuções sumárias tratar-se de um massacre perpetrado
pela etnia Baluba em Katanga, no Congo
de negros, em áreas inacessíveis aos repórteres estrangeiros, restringindo a belga, entre 1960 e 61. Cabe salientar
visão dos eventos exclusivamente ao aparato militar e governamental, Pélis- que esta celebrada pianista trabalhava
como propagandista do regime colonial
sier escreve: português, tendo-lhe sido então pagas
viagens por Angola e Moçambique com o
intuito de dar delas uma boa imagem em
Os canalhas dos jornalistas bem podiam espernear às portas de
palestras, artigos para jornais e entrevistas
Angola que não se admitia ninguém de fora nos matadouros de Ouro na televisão americana, além de lhe serem
Negro. E a quem se impacientasse com esta longa quarentena, o pai dedicados vários concertos em Portugal e
de Franco Nogueira lhe ter prometido um
do Menino oferecia-lhes fotografias de bébés brancos trucidados no seu lugar como solista no Festival de Música
berço, e de europeias mortas com um pau na vagina. É o comunismo da Gulbenkian. Cf. Kathryn Talalay,
Composition in Black and White: The Life
internacional, afirmava o Doutor, e todos repetiam em coro 81. of Philippa Schuyler (New York: Oxford
University Press, 1995), p. 227.
80
Man Singh Deora, Role of India in
As fotografias eram escudo e espada: por elas se atacava o inimigo, e com Angola’s Freedom Struggle (New Delhi:
elas se deflectia os seus ataques; inspiravam um horror cego e cegavam hor- Discovery Publishing House, 1995), p. 313.
rores perpetrados em seu nome. Notavelmente, Ernst Jünger, um pioneiro do
81
René Pélissier, Explorar – Voyages en
Angola et autres lieux incertains (Orgeval:
uso da fotografia chocante no contexto da propaganda bélica, visita por acaso Pelissier, 1979), p. 126.
422
Jünger lembra, ainda, que a fotografia jamais vale por si própria, nunca é
inequívoca como documento, e tem de ser interpretada. Mas foi precisamente
o escândalo da interpretação, ao escapar às suas leituras canónicas, que moti-
vou ataques virulentos do regime contra um documentário da NBC, Angola:
Journey to War (1961). Aqui, as imagens da chacina são juxtapostas à crise de
refugiados e eventos então censurados do público português, como o massa-
cre da Baixa do Cassanje, a violência do trabalho forçado, o uso de napalm
e execuções sumárias, mondando e relativizando a força extraordinária das
imagens quando restritas a um lado. É o próprio Horácio Caio, o mais cele-
brado dos cronistas do terror, que anos depois, confessou: “Houve realmente
uma retaliação que foi muito violenta também, de que não há notícia, não há
imagens, não há memória, porque era do outro lado. Não éramos nós que
íamos filmar isso, nem isso se podia filmar” 83. Um autor americano, John Fre-
derick Walker, vai ainda mais adiante, e considera: “As fotografias que os por-
tugueses tiraram da carnificina eram de dar a volta ao estômago. (…) [Mas]
Tendo em conta a matança que se seguiu, aldeias inteiras e os seus habitantes
cobertos de chamas e por aí fora, é seguro concluir que as fotografias da vin-
gança teriam conseguido facilmente igualar o horror das do levantamento” 84.
O impulso da produção e da reprodução desenfreada destas fotografias
82
Ernst Jünger, Siebzig verweht I (Stuttgart:
Klett-Cotta, 1980), p. 479. Em ensaio de atrocidade, era o mesmo que se intensificava a impedir que outras com-
prévio, Sobre a Dor (1934), declarara já: petissem com elas, a garantir que só um lado da história ficaria para contar.
“é de grande malícia o procedimento
que consiste em usar fotos de pessoas Cada documento visual é por isso também testemunha daquilo que omite.
assassinadas como cartazes na luta política.” Do outro lado da barricada, atendendo à ausência de relatos que não esti-
83
Depoimento no documentário de
Joaquim Furtado, A Guerra, 3º episódio,
vessem subordinados ao aparato colonial, a UPA conseguiu apenas que uma
produção RTP (2010). agência encenasse fotos no mato, simulando cenas de combate, para se apre-
84
John Frederick Walker, A Certain Curve sentarem internacionalmente. Seria um esforço inútil. A força das fotogra-
of Horn (New York: Atlantic Monthly Press,
2004), p. 132. fias da sublevação era tal que, a 17 de Março de 1961, quando chegam a Nova
423
Iorque, onde estava Holden Roberto, até este, estupefacto, hesitou em recla-
mar a autoria da UPA (“Vi imagens que não me agradaram”) 85. Nos meses
seguintes, contudo, estas fotografias passariam para o centro das suas críti-
cas, uma vez que os protestos das suas guerrilhas no mato, alegando torturas
e extermínios, e chegando por via clandestina, jamais podiam competir con-
tra uma campanha bem orquestrada, com descrições e testemunhas oculares,
cujas imagens se sobrepunham sempre a todas as denúncias verbais. E, para
mais, porque a própria ausência de fotografias da retaliação, um elemento sine
qua non para a ideia moderna do que constitui uma atrocidade, como afirma
85
Depoimento no documentário de
Joaquim Furtado, A Guerra, 3º episódio,
Susan Sontag, significava, em última análise, que nada havia sucedido do lado produção RTP (2010).
da reacção 86. No dia 18 de Novembro, a partir dos EUA, Holden Roberto con- 86
Cf. Susan Sontag, Olhando o sofrimento
dos outros (Lisboa: Quetzal, 2003).
testava: 87
Holden Roberto, Entrevista de rádio
por Dick Elman, WBAI-FM, Nova Iorque
(18 Novembro de 1961, 16h30). Esta foi a
Concordo que houve atrocidades de ambos os lados. Mas eu gosta-
tradução portuguesa entregue a Salazar, in
ria de esclarecer que algumas das atrocidades que os portugueses nos AN/TT, Arquivo de Salazar, AOS/CO/UL.
imputam foram cometidas por eles próprios. Eles mataram gente em
88
Pires et al., Braseiro da Morte, p. 85.
89
“Datam desse período as fotografias, que
Angola que depois fotografaram a fim de fazer crer ao mundo que tínha- circularam em todo o espaço português, de
mos sido nós. Mas isso não é verdade. Não temos possibilidades como colonos ou de soldados exibindo as cabeças
decapitadas dos africanos que, naturalmente
os portugueses de mostrar fotografias de todas as atrocidades que eles mudaram de estatuto: eram indígenas, mas
cometeram 87. passaram para a categoria de terroristas e de
“turras”.” Jorge Ribeiro, Marcas da Guerra
Colonial (Porto: Campo das Letras, 1999),
Multiplicar-se-iam queixas de que certas fotografias, embora usadas como p. 167. Além destas fotografias, surgiram
prova legal contra os crimes da UPA, foram encenadas e falsificadas, mos- outras mais complexas no início da guerra,
em que os soldados posavam em arranjos
trando chacinas perpetradas pelos portugueses. Há, inclusivamente, registos orquestrados com cadáveres esquartejados
de equipas oficiais de recolha de imagens que, ao chegar aos lugares, atri- e cabeças decepadas de negros. Sobre
elas, escreveu o psiquiatra Afonso de
buíam alguns dos massacres a milícias civis: “A brigada da Televisão chegou a Albuquerque: “[S]ó podem ser entendidas
Carmona. Antipática, a insultar os que sofrem e choram a morte de entes que- como uma adaptação inconsciente ao
medo, ao macabro, ao sinistro, ao horror.
ridos, acusando a população europeia de provocar a chacina” 88. Mas servia de Eles sabiam que podiam ser as próximas
pouco. O terror da imagem só podia ser combatido através da imagem. Assim vítimas. Neste caso, posar para a máquina
principia a guerra de fotografias na Sala das Curadorias da ONU, onde, rea- fotográfica tinha o mesmo efeito do treino
militar, ou seja, permitia uma exposição
gindo à estratégia de Vasco Garin, que deixara disponíveis para consulta as gradual ao real. Era um modo de aprender
imagens exibidas no Conselho de Segurança, é exposta, a 1 de Novembro, ape- a conviver com o perigo, com a morte.”
Citado em Luís Quintais, “Trauma e
sar dos protestos portugueses, uma colecção de fotografias, ainda hoje difíceis Memória: Um Exercício Etnográfico”,
de obter, gerando a condenação geral. Eram as fotografias troféu de cabeças de Etnográfica, vol. IV (2000), p. 85.
90
“Certa ocasião, alguém trouxe a Otelo
negros, espetadas em paus erguidos por militares sorridentes, e apresentadas, uma série de fotografias de cabeças de
por proposta da Guiné (aprovada com 70 votos, contra a abstenção da África negros espetadas em paus, dispostas ao
do Sul, Espanha, França e Portugal) diante da Assembleia Geral, perante a longo de uma picada. Um colega seu do
curso de Artilharia tinha sido o autor
resposta imediata da delegação lusitana, que não só as declarou falsas, como da proeza. Essas imagens seriam mais
se apressou a oferecer mais uma colecção de fotos das chacinas da UPA. tarde exibidas na ONU, como prova
das atrocidades das tropas portuguesas.
As fotografias de cabeças em causa, garante Alfredo Margarido, tiveram bas- Eram práticas não só usuais, mas também
tante projecção em Portugal 89, circulando como a contrapaga sádica de atro- encorajadas pelas autoridades militares.
Chegava-se a humilhar ou a chamar
cidades sofridas, olho por olho, dente por dente. O impacto foi tremendo, ao cobarde a quem não as adoptasse.” Paulo
desmentir a imagem dominante da propaganda que mostrava a benevolência Moura, Otelo: O Revolucionário (Alfragide:
da acção pacificadora das tropas como agentes civilizadores que mantinham Dom Quixote, 2012), p. 88.
91
Cf. Felícia Cabrita, “O tabu de Cunhal”,
a ordem 90. Acolhidas logo no espólio do PCP, à guarda de Blanqui Teixeira 91, Tabu, n. 377 (22 de Novembro, 2013), p. 7.
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Por muito que hoje as imagens sejam relegadas para os confins de sótãos ou
bibliotecas, isto mostra que permanecem centrais à urdidura do discurso his-
toriográfico, condicionando subterraneamente as direcções, termos e alvos
das investigações, ao exercer uma espécie de prerrogativa fotográfica. Afir-
mar, como Luís Reis Torgal a propósito delas, que “As imagens não são his-
tória, mas apenas uma fonte para a história” 102, significa não entender que
estas foram, a um tempo, constituintes e constitutivas do evento histórico.
Não é apenas a ideia geral de que as fotografias permitem um acesso mais ime-
diato ao passado que deve ser posta em causa, lembrando os processos media-
dores que envolvem o enquadramento da representação visual, mas também
aqui, a necessidade de problematizar um enviesamento ideológico e a falta de
sujeição a verificação independente e ao escrutínio analítico. A menos que um
tratamento crítico desafie a transparência destas representações, estas fotogra-
fias do horror continuarão encerradas numa politização. A tarefa imperativa
é a de desafiar a ortodoxia interpretativa das imagens, contestando a fixidez
dos seus significados nas últimas décadas, devido a um imediatismo que mata
o contexto – desviando os olhos da negligência do governo no ataque, das
desumanidades estruturais do trabalho forçado e da questão racial na sua ori-
gem, da brutalidade dos massacres que o precederam e o sucederam –, escru-
tinando e equacionando os ângulos mortos que estas fotografias continuam
a potenciar sem a adequada resistência. Reproduzi-las de outro modo, não
tem que ver com a construção de uma história, mas com a manutenção de um
ponto de vista, confundindo o que visualmente representam com o que ideo-
logicamente veiculam – ignorando não só as contradições e as ambiguidades
internas das imagens, mas também, em muitos casos, o total desconhecimento
sobre a sua captura. Como destrinçar seriamente se os retaliadores foram tam-
bém, em grande medida, os autores dos documentos fotográficos? Urge come-
çar a discutir o que estas fotografias tornam visível, mas também aquilo que
102
Luís Reis Torgal, Estados novos, estado falham em tornar visível, escrutinando melhor os reflexos condicionados e
novo: ensaios de história política e cultural, as focagens selectivas em relação à memória histórica. No contexto extrema-
vol. 1 (Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra, 2009), p. 38. mente polarizado que definiu estes meses em Angola, é preciso chamar a aten-
103
Shawn Michelle Smith, At the Edge ção para “o modo como as fotografias criam ângulos mortos ao instigarem os
of Sight: Photography and the Unseen
(Durham: Duke University Press, 2013)
observadores a focarem-se naquilo que está retratado em prejuízo daquilo que
p. 192. não está, ou não pode ser representado fotograficamente” 103.
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Conclusão
“– Filhos da puta!
– Hão-de pagá-las todos e com juros!”
“Rola
Sangrenta
Uma bola
No chão
De Angola.”
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