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O Pantáculo

Publicação interna destinada aos Membros Ativos da Tradicional Ordem Martinista


Nº 24 – 2016

[1]
X CONVENTÍCULO
NACIONAL
MARTINISTA
Dia 22/09/2016 ás 20hs
Dignitário Irmão Christian Bernard,
Soberano Grande Mestre da Tradicional
Ordem Martinista.

EQUIPE:
Mestre Hélio de Moraes e Marques
Iniciado Rudy Klass
Associado Sergio Levin
Arquivista Lucia Rodrigues Alves
Incógnito Alberto de França Serravalle
Orador José Augusto R. dos Santos
Sentinela Domingos Sávio Telles
TRADICIONAL ORDEM MARTINISTA
GRANDE HEPTADA
Grande Loja da Jurisdição Caixa Postal 4450 – 82501-970
de Língua Portuguesa Fone: (41) 3351-3000
Rua Nicarágua, 2.620 – 82515-260 Fax: (41) 3351-3065 e 3351-3020
Bacacheri – Curitiba – Paraná – Brasil www.amorc.org.br

Sumário
Editorial
Hélio de Moraes e Marques...............................................................................................2

A Reintegração, os caminhos do retorno à Unidade Divina


Didier Laurens..................................................................................................................3
As aplicações práticas da Filosofia Martinista
Édouard Glombard.........................................................................................................15
Instrução para progredir na vida interior
A Imitação de Cristo.......................................................................................................24
A marcha para a Terra Celestial
Didier Gilles.....................................................................................................................25
A Vida para além dos Sentidos
Jacob Boehme..................................................................................................................36
SOHRAVARDÎ: Teósofo Persa
Josselyne Chourry............................................................................................................37
Rumo à Consciência Divina
Jean-Claude Mondet.............................................................................................................47

Capa: Pierre-Amédée MARCEL-BÉRONNEAU (1869-1937), “Cristo pregando”, (Sanguínea; coleção


particular). Pierre-Amédée Marcel-Béronneau foi aluno de Gustave Moreau.
Exceto em caso de menção especial, os artigos publicados nesta revista não representam o pensamento oficial
da T.O.M., apenas o de seus autores. Os manuscritos não incluídos não são devolvidos.
O Pantáculo é editado e impresso na Grande Loja da Jurisdição de Língua Portuguesa – AMORC, Curitiba,
Paraná, e é distribuído anualmente a todos os martinistas da TOM – Tradicional Ordem Martinista, de Língua
Portuguesa. É traduzido do Pantacle, editado pela Grande Loja da Jurisdição de Língua Francesa. Todos os
direitos de reprodução, sob qualquer forma, são reservados à Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis – AMORC.
Editorial
Estimado Irmãos e Irmãs
Saudações diante das Luminárias da Tradicional Ordem Martinistas!
Como todos sabem, editamos todo ano a Revista Pantáculo que é,
na sua maioria, uma tradução do Pantacle – da Jurisdição Francesa,
oportunamente temos incluído alguns artigos de irmãos e irmãs da
nossa jurisdição. Nesta edição a GLF cedeu as imagens com qualidade
de alta resolução e pode-se observar uma melhor nitidez nas gravuras
que ilustram a revista. Registro nosso agradecimento aos Irmãos Serge
Toussaint – Grande Mestre e Christian Bernard – Soberano Grande
Mestre que nos auxiliaram para que isso fosse possível.
Esta edição está também muito especial porque os artigos trazem
reflexões sobre o ensinamento Martinista abrindo o nosso coração para
as verdades ocultas que jazem sob as Luminárias da Tradicional Ordem
Martinista.
Todos os pensamentos contidos nos textos selecionados possuem
elementos que nos auxiliam na compreensão dos ensinamentos tanto
sob o aspecto martinista como rosacruz. É uma oportunidade de reflexão
sobre tudo o que aprendemos e vivemos como estudantes martinistas-
rosacruzes.
Despeço-me desejando uma excelente leitura e destaco um pensamento
do Filósofo Desconhecido:

“O infortúnio atual do homem não é ignorar que possui uma verdade,


mas se enganar quanto à natureza dessa verdade”.
Louis Claude de Saint-Martin

Que a Eterna Luz da Sabedoria Divina nos Ilumine sempre!

Hélio de Moraes e Marques


GRANDE MESTRE
A Reintegração:
os caminhos do retorno à Unidade Divina
Didier Laurens

“A reintegração do homem à Unidade Divina é ao


mesmo tempo o objetivo final e a razão de ser de sua
existência na Criação, que é ela própria o suporte de
sua evolução”. [3]
A
reintegração do homem à Unidade Divina é ao mesmo tempo o
objetivo final e a razão de ser de sua existência na Criação, que
é ela própria o suporte de sua evolução. Posicionado na Terra
pela Inteligência Divina, tudo tende a mostrar ao homem que as coisas
transcorrem segundo um plano específico de evolução, o qual prevê um
conjunto de provações, individuais e coletivas, que são organizadas para
permitir que a humanidade realize um percurso particular durante seu
ciclo de vida.

A visão aqui proposta é a seguinte: “A vida é um drama ritualístico,


mas em escala planetária”. Essa ideia torna então mais interessante
o estudo das mitologias e das lendas que encontramos pela Terra, em
qualquer país e em qualquer época. Além disso, esse estudo também
destaca uma organização universal de certos princípios que agem com
constância e de acordo com leis bem definidas na Criação. Sob esse caos
aparente se oculta uma ordem verdadeiramente perfeita das coisas, em
todos os pontos – um verdadeiro “drama ritualístico” operado de maneira
ordenada e cíclica.

1 – Mitologias e lendas: tradições ancestrais partilhadas

Partindo do postulado que acabamos de enunciar, compreende-se


melhor o significado de certas coisas e de certos acontecimentos que
poderíamos acreditar como sendo unicamente “lendários”, ou seja,
oriundos de improváveis ideias brotadas do pensamento do homem a
fim de organizar a estrutura terrestre à imagem de uma igualmente
improvável hierarquia celeste. Dentre os exemplos mais antigos daquilo
que se poderia talvez classificar rápido demais nessa visão “lendária”
encontramos a mitologia egípcia, com os périplos de Ísis e de Osíris. É
também o caso do mito da Atlântida, ou ainda do mito dos cavaleiros da
Távola Redonda.

Todavia, se olharmos com atenção, encontramos elementos objetivos


que se reportam historicamente a essas antigas lendas. Ao mito da

[4]
Atlântida se opõem os textos do Timeu e do Crítias de Platão, ou ainda a
Arca de Noé do Antigo Testamento. No que tange os cavaleiros da Távola
Redonda, encontramos a realidade dos reis da Bretanha1. Louis-Claude
de Saint-Martin nos dá uma abordagem desse pensamento:

Todas as narrativas históricas, alegóricas e lendárias contidas nessas


tradições falam do primeiro estado do homem em sua pureza e dos
crimes e da punição do homem culposo e degenerado. Apresentam,
com a mesma evidência, as graças das divindades para com ele, a fim
de amenizar seus males e libertá-lo de suas trevas. (Quadro natural das
relações que existem entre Deus, o homem e o universo, p.163)

Nas tradições das civilizações do passado, encontramos relatos antigos


que respondem aos mesmos critérios mitológicos. Em toda parte no
planeta, esquemas idênticos evocam a luta do bem e do mal e veiculam
lendas muito próximas em matéria de organização do panteão de deuses
e deusas. Tanto entre os Astecas como entre os Incas, como também nas
tradições bramânicas, hindu, celta, no culto de Mitra ou no Zoroastrismo,
entre os antigos egípcios ou na tradição grega – tudo evidencia uma
tradição ancestral partilhada.

Esses poucos exemplos nos permitem pensar diferentemente a nossa


história e nela ver, mais do que lendas, fatos que tiveram, no princípio,
realidades tangíveis, mas também fortes repercussões para os povos dessas
sucessivas épocas que os vivenciaram, a ponto de levá-los a perpetuar
suas lembranças – que se tornaram, por conseguinte, lendas. O homem
mais avançado, porém, se espelhará nesses apoios divinos e tentará, por
sua vez, ajudar seu próximo. Encontramos vestígio desse princípio de
“tradições ancestrais partilhadas” entre seres superiores e o homem, e
depois entre o Homem-Espírito e o homem em curso de compreensão
dos princípios superiores, nas obras do doutor Marc Haven, também
pesquisador e membro da Ordem Martinista junto com Papus.

1 Vide DESCHAMPS, Phillipe. Le Graal, une quête intérieure [O Graal, uma


busca interior], Diffusion Rosicrucienne, p.35.

[5]
O Homem-Espírito […] deve ajudá-los, instrui-los e favorecer o
desenvolvimento de cada um conforme sua natureza própria. (O corpo,
o coração do homem e o Espírito, p.29)

Hoje, a tradição filosófica perpetuada pela Tradicional Ordem


Martinista garante a continuidade dessa via do misticismo judaico-
cristão. É, portanto, normal encontrar em seus ensinamentos elementos
que também ajudam na compreensão das coisas.

2 – Importância do tempo no plano de reintegração:


uma continuidade organizada através do tempo
As explicações que acabam de ser desenvolvidas demonstram como
realidades objetivas vividas por homens e mulheres do passado se
transformaram, com o tempo, em lendas, e depois, progressivamente, em
mitologias. Isso tudo, porém, tem uma duração no tempo, e até mesmo
“nos tempos”. Pode-se compreender melhor, agora, a importância das
teorias sobre o “tempo cíclico” e não “linear”. Aprende-se melhor também
a importância do tempo e de sua duração nas narrativas sagradas antigas.
De fato, é preciso tempo para que a obra divina se desenvolva. Ora, o
tempo é justamente um dos “componentes” mais importantes dessa ação.
Com efeito, para que “os tempos se cumpram”, são necessários períodos
de extensão suficiente para que mudanças possam se operar.

Essa visão do ciclo do tempo talvez seja esquecida muitas vezes. Ela
nos sorri quando lemos o Gênesis, ou quando se fala da duração da
vida dos profetas e de seus descendentes. Poder-se-ia, ao contrário, em
nossa época de “imediatismo”, perguntar: “Qual é o papel do tempo na
evolução da humanidade?”. Sabemos que, do ponto de vista místico, o
tempo é organizado de maneira cíclica e não-linear. A própria palavra
“ciclo” vem do grego kuklos, que significa “roda” ou “círculo”. Numa
acepção primitiva, designa um intervalo de tempo que corresponde mais
ou menos exatamente aos retornos sucessivos de um mesmo fenômeno
celeste.

[6]
Mas o que são esses ciclos? De acordo com a cosmogonia hindu, o
mundo existe numa duração de 4.320.000 anos solares (mahâyuga) antes
de se dissolver e ser novamente recriado. O primeiro yuga, Satya, é uma
idade de ouro, e o declínio prossegue até a idade sombria de Kali, na qual
estaríamos atualmente e que precede a dissolução (Pralaya). O sistema
dos quatro yugas lembra, além disso, as quatro idades da Grécia antiga
e por vezes partilha as mesmas denominações de idade de ouro, prata,
bronze e ferro que se encontravam também na Pérsia antiga – o que
indica, mais uma vez, uma origem comum.

A organização do tempo cíclico que acabamos de lembrar traz


argumentos para a ideia segundo a qual o tempo é um elemento
essencial na organização e na operacionalização do projeto divino. De
fato, era preciso que o homem pudesse dispor de tempo suficiente para
compreender e experimentar todas as leis divinas, mas também para
poder se reintegrar individualmente e depois coletivamente na Unidade
Divina.

3 – Jogos de papéis predeterminados:


os “jogos de cena” têm ou não uma realidade concreta?
Após ter estudado o alcance das lendas e dos mitos partilhados no
plano planetário e ter compreendido o lugar e a importância do tempo no
plano de reintegração do homem rumo à Unidade Divina, vejamos agora
como se comporta a humanidade nos planos individual e coletivo e quais
meios foram previstos para testá-la. Noutras palavras, o ser humano e os
grupos agem instintivamente ou são movidos por esquemas ordenados?
Cada caso é diferente ou há similitudes?

No mundo profano, assim como nas tradições iniciáticas, todas


as mitologias e todas as lendas evocam os combates e os confrontos
incessantes das forças do bem contra as do mal – da luz contra as trevas.
Observa-se também que todas as tradições põem em cena e antagonizam
personagens que representam arquétipos precisos e invariáveis os

[7]
quais ainda em nossa sociedade atual sabemos reconhecer: o amor, a
onipotência, o ciúme, a maldade, a morte, a intemperança, a guerra… mas
também a sabedoria, a beleza, as artes, a ciência etc. Em nossa tradição,
esses temperamentos, caráteres, qualidades ou defeitos assumem os traços
de Afrodite para o amor e a beleza, de Zeus para a onipotência, de Hades
para a morte, de Dionísio para a intemperança, a loucura e as drogas, de
Atena para a sabedoria, de Ares para a guerra e a violência, ou ainda de
Apolo para as artes. Que dizer ainda dos personagens Júpiter e Juno? De
fato, na mitologia romana, Júpiter e Juno não se entendiam muito bem –
é o mínimo que se pode dizer – e conflitos incessantes rebentavam entre
eles.

De acordo com a tradição, Juno foi surrada e maltratada mais de uma


vez por seu esposo, por causa de seu humor difícil. Certa vez, Júpiter
chegou até mesmo a suspendê-la entre o Céu e a Terra com uma corrente
de ouro, pondo-lhe uma bigorna em cada pé. Louis-Claude de Saint-
Martin evoca as ações contidas na mitologia da seguinte maneira:

Mas não devemos lamentar que a mitologia se apresente sob aparências


ridículas, tais como os furores, os ciúmes, as paixões dos sentidos, que
parecem ser quase que o único móbil dos deuses e dos heróis; é que,
sendo um quadro universal, ela tem de apresentar os males e os bens,
a ordem e a desordem, os vícios e as Virtudes que circulam na esfera do
homem. (Quadro natural…, p.164)

[8]
Qual seria então o objetivo desse conjunto de lendas e de narrativas
mitológicas senão nos mostrar a existência, para além do tempo e do
espaço, de jogos de cena universais aos quais homens e mulheres se
submetem desde o princípio da queda da humanidade?

A universalidade dessa mensagem mui certamente serviu, antes de mais


nada, para imaginar personagens e cenas reais; depois, por sua repetição
no decurso do tempo, o homem organizou seu panteão, conforme
expresso nas mitologias egípcias, gregas ou de outras civilizações. Com
efeito, por que teria o homem sido apenas observador dos ciclos das
estações e seguidor dos planetas e das estrelas? Por que não teria ele sido
observador de seus contemporâneos – de seus assistentes divinos? Logo,
pode-se imaginar que essas ajudas sucessivas deixaram traços na história
comum dos homens.

Por que não imaginar que o ser humano tenha podido também, por
seu sentido de observação, constatar fenômenos de repetições de ciclos
de vidas nas provações humanas, e por que não teria ele desenvolvido
um saber na observação do caráter e das tendências das “divindades” que
vinham em seu auxílio, a ponto de descrevê-las e organizá-las?

Porém, se por um lado as tradições mitológicas e lendárias atestam


essa probabilidade, os escritos religiosos – dentre os quais, para a
tradição judaico-cristã, o Antigo Testamento – não ficam devendo e
também evocam o princípio dessas provações individuais e coletivas. Isso
nos faz lançar um olhar diferente sobre os profetas, que agora podemos
considerar por outro ângulo: o de apoio aos homens para os quais eles
foram enviados. Podemos citar, dentre as provações coletivas, as seguintes:
a Arca de Noé, Moisés e o Êxodo, ou ainda Daniel. Todavia, se olharmos
bem, não encontramos também no Novo Testamento determinados
traços desse princípio – tendo, aqui, mais provações individuais, como o
cego, o paralítico ou ainda a morte de Lázaro? Esses últimos são evocados
nos textos dos Evangelhos. O presente estudo aqui assume um sentido
completamente diferente, ao mesmo tempo em termos de reintegração e
de ajuda, de provação individual e de provação coletiva.

[9]
4 – Um drama ritualístico em escala mundial:
reintegração e tomadas de consciência individual
Por trás da desordem aparente do caos permanente que reina sobre a
Terra – por trás desse perpétuo recomeço – há uma poderosa metodologia
à qual toda a humanidade está submetida desde sempre e de acordo com
um modo de operação sobre o qual temos cada vez mais elementos,
como acabamos de explicar. A mitologia e as tradições são seus dois
pilares essenciais. A linha diretora dessa metodologia é que cada um de
nós possa ser, no decurso do tempo, submetido às mesmas experiências
– às mesmas provações. Essa metodologia é ela própria uma Lei divina.
Ninguém pode transgredi-la ou a ela se furtar. O próprio filho de Deus,
Ieschouah, submeteu-se plenamente a ela.

Aí está a chave da reintegração: a transformação permanente de cada


indivíduo, e depois de cada grupo, de cada sociedade e, por fim, de toda a
humanidade. De fato, acabamos de ver que, pela definição de um possível
princípio de “jogos de cena”, cada indivíduo poderia viver uma ou mais
situações associadas ao seu papel atual na sociedade. Efetivamente, se
admitirmos a ideia segundo a qual – por diversas razões associadas ao
carma, à genética, ao país ou ainda à família na qual vamos nos encarnar
– viveremos um personagem particular, então aceitamos a ideia de que
temos todos um papel preponderante e ativo a desempenhar na ação de
reintegração, e que essa ação transcorrerá através da via que será a nossa
na presente encarnação.

É por esse trabalho individual feito sobre si mesmo que o homem se


aperfeiçoa e progressivamente se eleva. Porém, é também em seu conjunto
que esse trabalho deve ser observado, pois é pelo trabalho de conjunto
que as coisas vão acontecer. Com efeito, como dissemos, a noção do “jogo
de cena” individual se confrontará, pela diversidade, com as dificuldades
que o homem tem para se adaptar aos outros, pois aí se encontra o maior
obstáculo. Encerrado em seu personagem, ele vai sofrer a influência dos
outros membros dos grupos aos quais pertence e nos quais desempenha
sucessivamente um papel, quer se trate do grupo familiar no qual estará

[ 10 ]
progressivamente como criança, adolescente, esposo ou esposa, pai ou
mãe, irmão ou irmã etc., ou do grupo profissional onde será subordinado,
colaborador ou dirigente, ou ainda no meio associativo, onde será
membro ou empregado etc. Isso aumenta ainda mais a dificuldade.

Porém, ele também fará com que os outros personagens sofram suas
próprias influências, e isso em função do seu caminho. Lembremo-nos
aqui das relações individuais e familiares dos deuses dos panteões grego e
romano: Júpiter e Juno, Ares, Apolo, Dionísio, ou ainda Atena. Lembremo-
nos do lugar deles no seio da família ou na visão da organização celeste.
Lembremo-nos de seus poderes, de suas taras, das condenações eternas
de alguns e das ações positivas de outros em benefício dos homens. Sobre
isso também se exprimiu Louis-Claude de Saint-Martin:
Com efeito, não há homem instruído sobre sua verdadeira natureza
que, se procura penetrar o sentido das tradições mitológicas, não
perceba nelas, com uma espécie de admiração, os símbolos dos fatos
mais importantes para a espécie humana e mais análogos a si mesmo.
(Quadro natural…, p.184)

Porém, Louis-Claude de Saint-Martin não é o único a evocar uma


visão ampliada da reintegração dos seres. Encontramos, aqui também,
através dos trabalhos do Dr. Marc Haven, uma ideia do esquema que ele
propõe através daquilo que chama de os “Eu-Espíritos”:

Haverá, evidentemente, toda uma escala de “Eu-Espíritos”; desde os


mais rudimentares, vizinhos ao eu-vegetal, ao eu-animal, ao bruto – e
esses serão os mais numerosos –, até os mais elevados – sábios, santos;
desde a infinita multiplicidade até a Unidade. O Espírito não se afirmará
por completo, perfeito, desde o começo.

Há um gérmen – como a semente da árvore – contendo todos os seus


poderes de ser, suas aptidões inatas a desenvolver e a realizar o tipo
ideal de sua espécie. Entretanto, é apenas progressivamente – por lutas,
oposições, contatos e adaptações aos outros “Eu-Espíritos” – que ele
conseguirá desenvolver inteiramente em si o Saber e o Ser e refletir
perfeitamente o espírito conforme a espécie que ele manifesta. (O
corpo, o coração do homem e o Espírito, p.18)

[ 11 ]
Pode-se compreender melhor agora que os grupos – familiares,
profissionais, coletivos ou ainda estatais – são trampolins para a
consecução coletiva da reintegração dos seres. Vejamos o exemplo da
Europa. Quer se trate da vontade de reconstrução, de confraternização,
de abertura de fronteiras ou de paz, os esforços foram tais após a
Segunda Guerra Mundial, da parte daqueles a quem se chama de “os pais
fundadores da Europa”, que pela primeira vez em sua história um espaço
geográfico composto de países de línguas, culturas, moedas e religiões
diferentes decidiu realizar voluntariamente a sua unidade e construir um
projeto comum, todos juntos, e depois expandi-lo.

Eis aqui o exemplo de renovação dos princípios fundamentais de


liberdade, de igualdade e de fraternidade, tão caros aos nossos ideais e
dos quais se diz que, associados para formar a divisa da França e então
inspirar outros lemas igualmente belos e fortes, teriam sido inspirados por
Louis-Claude de Saint-Martin. Esse exemplo que vivemos atualmente foi
ademais coroado com a atribuição do Prêmio Nobel da Paz à instituição
europeia, em 10 de dezembro de 2012. É preciso salientar que esse prêmio
lhe foi atribuído por seu papel na “transformação de um continente de
guerra em um continente de paz”.

5 – Retorno ao princípio adâmico:


rumo a uma cavalaria dos tempos modernos?

Se considerarmos as tomadas de consciência individuais e coletivas


como atos de iniciações, então por que não observar nosso percurso
histórico como um percurso iniciático? Tudo nesse “drama ritualístico”
tem escala mundial: um passado longínquo feito de deuses, de deusas,
de Titãs, de gigantes, de mortais divinizados, de patriarcas, de Avatares,
e depois de sábios, de mágicos, de fadas, de cavaleiros, mas também de
trovadores, de cruzados, de monges-soldados, de alquimistas, de místicos,
de filósofos e de grandes dirigentes, sem esquecer o maior de todos –

[ 12 ]
aquele que nenhuma época anterior à nossa havia jamais conhecido: o
Messias, Ieschouah. Tudo está escrito em nossa história.

Então, com todos esses exemplos e auxílios que lhe foram trazidos
pelo passado, sempre e em todos os lugares; com a organização que
lhe fora dada de passar, etapa após etapa, por provações associadas a
figuras impostas; com o tempo que lhe foi dado para poder cumprir sua
missão, o que falta ao homem de hoje para que seja bem-sucedido em
seu percurso? Talvez um novo modelo. Mas onde poderia encontrá-lo?
Talvez em sua história.

Mas que época poderia lhe dar a solução? Talvez uma era de busca
mística? Qual poderia ser essa época de onde viria esse novo modelo?
Olhando bem, para tentar responder a essas perguntas e observando
o conjunto dos valores herdados dos tempos antigos, a instituição que
sempre representa um modelo de nobreza e de valores é a Cavalaria.
Ainda hoje é o cavaleiro quem se beneficia da maior popularidade junto
à população. É na Cavalaria onde ainda se pode buscar valores, como
a retidão, a coragem, o desinteresse, o espírito de sacrifício, a honra, a
investigação e ainda outras qualidades mais. Porém, se a Cavalaria é
evocada no âmbito deste trabalho de reflexão, é também para voltar,
como já dizíamos, ao princípio adâmico e à tradição judaico-cristã que
está no cerne de nossa tradição. Que outra coisa, senão a Cavalaria,
ilustra melhor essa representação inicial? Além da Cavalaria, o que é que
responde à ideia do arquétipo supremo ao qual o homem aspira, senão
sua própria imagem inicial?

Dentre os pontos que caracterizam os poderes do ser que precedia o


homem atual antes de sua queda, encontramos na Tradição Martinista
uma descrição precisa. Em Dos Erros e da Verdade, Saint-Martin anuncia
que “o homem estava revestido, originalmente, de uma armadura
impenetrável e possuía uma lança composta de quatro metais”. Os
quatro metais perfeitamente amalgamados dessa lança representam o
nome sagrado de Deus, composto de quatro letras, assim como a marca
quaternária que caracteriza o homem.

[ 13 ]
6 – E se a reintegração já tiver começado?

E se a reintegração já tiver começado? Como não se fazer essa questão


com os ensinamentos de Jesus? Como não pensar nisso ao escutar
as palavras do Mestre aos seus discípulos: “Na casa de meu Pai há
muitas moradas. Se não, teria eu vos dito que vos preparo um lugar?”?
Numa determinada medida, para imaginar aquilo que poderia ser a
reintegração, talvez poder-se-ia compará-la à Arca de Noé evocada no
Antigo Testamento, sendo Noé aquele que recebeu a mensagem e para o
qual é preciso ir para ser salvo. Então, seria a Terra hoje uma Arca de Noé
em escala planetária para nós?
Por que não vislumbrar a coisa por esse ângulo, posto que aqui
falaremos da personalidade-alma de cada um de nós e, no final… de
toda a humanidade? Em que estado da reintegração estamos nós hoje?
Aí temos um ponto de interrogação. Todavia, parece de fato que hoje,
tendo passado por várias etapas, o homem busca se apoiar sobre um novo
arquétipo.
Talvez se trate da procura de um arquétipo ainda mais poderoso do
que os “jogos de cena” tradicionais, ou seja, sua própria imagem antes da
Queda – aquela da época em que ele ainda estava em seu corpo glorioso,
revestido de sua armadura impenetrável e de sua lança. Talvez seja essa
uma de nossas principais perguntas – mas também, sem dúvida, uma
das vias possíveis para que o homem volte à Unidade Divina e, por
conseguinte… à reintegração.

Bibliografia
SAINT-MARTIN, Louis-Claude de. Quadro natural das relações que existem entre Deus,
o homem e o universo, 2001.
HAVEN, Marc. Le corps, le cœur de l’homme et l’Esprit [O corpo, o coração do homem e
o Espírito], Paris, Paul Derain, 1961.
PASQUALLY, Martinès de. Tratado sobre a reintegração dos seres, Diffusion
Rosicrucienne, 1995.
Ilustrações: p.2, William BLAKE, « A Europa, profeta, ou o Ancião dos dias », 1794 ;
John PETTIE, « A desperta », 1884, Tate Britain, Londres.

[ 14 ]
As aplicações
práticas da Filosofia
Martinista Édouard Glombard

“O infortúnio atual do homem não é ignorar que possui


uma verdade, mas se enganar
[ 15 ] quanto à natureza dessa

verdade”.
E
ste estudo tem por objetivo nos ajudar a refletir sobre as “ferramentas
espirituais” que a Tradicional Ordem Martinista propõe para
transpor, ou então gerir o mais serenamente possível, as provações
de todas as naturezas com as quais poderíamos vir a ser confrontados.
Segundo os princípios fundamentais da Ordem, os trabalhos devem
transcorrer sob a proteção da máscara, do manto e do cordão – símbolos
que devem para sempre permanecer incorporados à nossa consciência.
Se é fato que ainda estamos em evolução entre os “pilares de oposição”,
também é verdade que muitos olhos veem sempre melhor que dois.

Em seu livro Dos Erros e da Verdade, Louis-Claude de Saint-Martin


escreve:

O infortúnio atual do homem não é ignorar que possui uma verdade,


mas se enganar quanto à natureza dessa verdade.

Pode-se, portanto, dizer que todo o problema está aí! Qual é a


natureza dessa verdade? O Martinismo é uma filosofia mística do
âmbito do esoterismo. Ele nos surge como um ensinamento sintético
colocado ao alcance e à disposição dos seres humanos que evoluem
mais particularmente no Ocidente. Ele os ajuda a melhor compreender
as relações existentes entre Deus, a natureza e o ser humano, a fim
de ajudá-los a triunfar sobre seus problemas existenciais e acessar o
estado de felicidade total – essa plenitude interior que alguns chamam
de Nirvana e que deriva de uma comunhão perfeita com a consciência
de Deus e da participação consciente e ativa na manifestação do Plano
Divino. Evidentemente, no plano em que evoluímos “tudo é movimento”,
conforme disse o mestre tibetano Songyal Rimpoche. Assim, as ideias
mudam em seu modo de expressão, assim como os seres humanos e as
estruturas. Este mundo é o da impermanência. Logo, do ponto de vista
de sua organização formal, o Martinismo também sofreu adaptações e
evoluções em função das circunstâncias e das necessidades, mas de forma
alguma o ensinamento fundamental foi modificado. Ele não poderia
ademais ser modificado, pois se situa além do tempo e do espaço – além

[ 16 ]
dos homens. Esse ensinamento é “eterno” em sua essência, pois é uma
perfeita expressão da verdade projetada a partir da Consciência Divina.
Por conseguinte, discorrer sobre aplicações práticas da filosofia martinista
significa abordar ensinamentos que emanam da Tradição Primordial
na formulação específica da Tradicional Ordem Martinista. Isso é,
desse ponto de vista, uma tarefa delicada. Retivemos, portanto, como
estratégia, destacar certas “Ideias-Forças” que nos parecem essenciais, e
tentaremos encontrar o valor que elas podem ter para nós num plano
prático; em outras palavras, o valor que elas podem ter para melhor gerir
nosso cotidiano.

Primeira ideia-força:
o homem é essencialmente um “ser espiritual” caído

Isso quer dizer que no princípio o homem é fundamentalmente de


natureza espiritual e que evoluía num plano de consciência próximo ao
do Divino, beneficiando-se assim de faculdades excepcionais resultantes
de sua relação harmoniosa com as leis e os princípios divinos, ao passo
que era dotado de livre arbítrio. Contudo, num determinado estágio
de sua evolução, teria escolhido pensar e agir de maneira desarmônica
com relação a essas leis e princípios divinos. Isso teria acarretado para
ele consequências negativas, projetando-o sobretudo num processo
de involução no qual ainda evolui, com a perda de suas faculdades
excepcionais… e é a isso que se conveio chamar de “Queda”. Todavia, o
Criador o teria dotado de certos instrumentos e previsto uma estratégia
por meio da qual ele pode triunfar neste mundo material físico e ilusório
para recuperar o plano de onde é originário…

Essa primeira ideia-força da filosofia martinista, bem compreendida e


bem integrada na consciência, já é de uma grande riqueza do ponto de vista
prático. Ela é, de fato, uma resposta a cinco questionamentos essenciais
que desde a noite dos tempos obnubilam o ser humano: Quem sou eu?
De onde venho? Para onde vou? Por quê? Como? Parece, pois, que nossa

[ 17 ]
presença neste planeta Terra tem uma causa, “a Queda”, mas também um
objetivo, a saber, a reconquista do mundo espiritual – a reapropriação
consciente dos direitos e privilégios originais… assim como os meios
para atingir esse objetivo. Isto é, desse ponto de vista, portanto, um
fator de apaziguamento, uma fonte de esperança e, sobretudo, um fator
de motivação. Essa primeira ideia-força explica nossa responsabilidade
enquanto almas individualizadas, parcelas da Alma Divina universal
na trama do plano cósmico… Essa tomada de consciência nos ajuda a
dar um sentido essencial à nossa vida. A responsabilidade que nos cabe,
fundada sobre o livre arbítrio, implica para nós a observação bastante
avançada dos diferentes reinos da natureza, a fim de neles descobrir,
pela justa reflexão e pela meditação, as leis divinas que neles operam.
Em outras palavras, ela implica um estudo atento do grande “Livro da
Natureza” e do “Livro do Homem”. Atentos ao nascer e ao pôr do sol, aos
movimentos cíclicos da Lua e à sua influência sobre os diferentes reinos
da natureza (tanto quanto os dos outros planetas, além disso), atentos aos
ritmos das estações, à multiplicidade das cores e aos cantos dos pássaros,
atentos às pulsações do coração e às emoções que nos envolvem ao sabor
dos acontecimentos, nós descobrimos, no decurso do tempo, a profunda
unidade da Criação na diversidade de suas expressões. Tudo vive numa
profunda harmonia. O homem aí ocupa um lugar excepcional, e um papel
especial lhe é destinado. Essa observação dos diferentes reinos da Natureza,
associada ao nosso raciocínio analítico e à meditação, gera no tempo
uma ampliação de nosso campo de consciência. Se René Descartes pôde
dizer, no século XVII, cogito ergo sum (“penso, logo existo”), poderíamos
então lhe replicar: “Claro, mas nós existimos porque os outros existem,
e nós existimos com os outros…”, sendo “os outros” tudo aquilo que nos
rodeia manifestando as diversas expressões da vida por meio dos diversos
reinos, sobretudo os reinos vegetal e animal. O martinista, tendo acesso à
compreensão do conceito de fraternidade universal, poderia se tornar em
sua prática um fervoroso defensor da Natureza, pois compreendeu que
convém antes de tudo aprender a obedecer-lhe e amá-la.

[ 18 ]
Segunda ideia-força:
o impacto da lei do binário no desdobramento da Criação
No conjunto do universo, tudo está submetido à lei da dualidade.
Assim, a “Vida”, que é movimento, resulta da interação das polaridades
opostas, que são simbolizadas pelas colunas Jaquim e Boaz… Segundo
nossa compreensão, essas polaridades opostas seriam as duas expressões
da vibração divina primordial quando posta em movimento no Fiat
Lux original para se manifestar em frequências pares e ímpares – e
isso em oitavas infinitas. A qualidade dessa “vida” que daí resulta, na
sua conjunção, dependerá da preponderância de uma ou de outra das
polaridades e da relação harmoniosa que deve prevalecer entre ambas –
relação a qual é estabelecida pela Sabedoria Divina. É esse princípio que
os orientais exprimem em termos de yin e yang. Essa lei da polaridade,
bem assimilada e dominada, pode ser muito rica em aplicações práticas,
pois pode nos ajudar a suplantar muitas dificuldades e problemáticas
existenciais de nossa época.

[ 19 ]
A relação entre corpo físico e corpo espiritual ou alma

O corpo físico se nutre das vibrações de polaridade negativa (frequência


ímpar), e o corpo espiritual se nutre das vibrações de frequência par. Uma
vida equilibrada implica que se possa proporcionar ao ser esses dois tipos
de vibração. Assim, compreendemos melhor a injunção do Mestre Jesus ao
declarar (em resposta à pergunta relativa ao pagamento do imposto): “É
preciso dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus!”, ficando
entendido que ele próprio especificou que “o Reino dos Céus [ou de Deus?]
está dentro de cada um de vós”. Noutras palavras, uma vida equilibrada na
escala dos homens implica uma assunção e um justo equilíbrio daquilo que
diz respeito ao plano material e físico e daquilo que é da esfera do plano
espiritual – um justo equilíbrio entre as necessidades do corpo e as da alma.
Uma observação atenta do desdobramento da vida em nosso meio poderia
nos confortar no que diz respeito à justeza dessa lei.

A relação Homem-Mulher

O homem não é de forma alguma superior à mulher do ponto de vista


da ordem natural. O homem exprime a polaridade positiva e a mulher a
polaridade feminina ou receptiva. Emanando do Um, ou seja, do princípio
primeiro ou “Deus”, eles são iguais em dignidade e veiculam atributos
específicos aos seus sexos, que lhes conferem respectivamente papéis e
funções particulares no desenvolvimento da Vida. O homem não pode
se realizar sem a mulher e vice-versa. Pode-se compreender, além disso,
quanto a essa lei do binário, que em todo homem existe certa potencialidade
feminina, assim como em toda mulher há certa potencialidade masculina.
Pensamos que uma justa assimilação desse princípio nos ajudaria a melhor
compreender as problemáticas do casal e aquelas relativas à educação das
crianças ou notadamente das relações sociais.

Por outro ponto de vista, observamos em todo grupo constituído a


manifestação desse princípio de oposição. Assim, conviria aprender a
aceitar essa lei da dualidade e dominá-la. Agitado pela lei do binário (ou da

[ 20 ]
dualidade) em todos os níveis (familiar, social, profissional, espiritual), o
martinista pode reencontrar o equilíbrio graças a um justo discernimento
– uma vontade resoluta de agir e uma reorientação regular, sendo esse
ponto de reorientação o Amor. Nossos pensamentos, nossas palavras e
nossas ações devem ser reconduzidos ao Amor verdadeiro, que não é,
naturalmente, sentimentalismo nem emotividade excessiva. Contudo,
se o Amor verdadeiro pode neutralizar as oposições, permanece a
questão: como exprimi-lo no mundo dos homens? Talvez a resposta seja
encontrada na “senda óctupla” preconizada pelo ilustríssimo Gautama, o
Buda, ou então na injunção do Mestre Jesus: “Ama o teu próximo como a
ti mesmo; não lhe faças sofrer aquilo que não gostarias que fizessem a ti!”.

Terceira ideia-força:
a lei ternária e a constituição triádica do homem
Essa lei ternária é a expressão da criação perfeita. Ela rege a estrutura
do universo, assim como a do homem e a da célula. No universo, ela
se exprime como mundo elementar (mineral, vegetal, animal), mundo
dos Orbes (mundo dos corpos celestes) e mundo do Empíreo (mundo
além do mundo dos Orbes). No ser humano, o ternário se manifesta
da seguinte forma: corpo físico (nível do abdômen – caracterizado
pelo simbolismo da água – Mem), corpo fluídico (nível do peito –
caracterizado pelo simbolismo do ar – Aleph) e corpo espiritual (nível da
cabeça – caracterizado pelo simbolismo do fogo – Shin).

A Cabala expressa isso como sendo três níveis ou três tipos de energias
vibratórias, a saber: Nephesh (no que se refere ao corpo físico), Neshama
(no que se refere ao corpo fluídico) e Rouach (no que se refere ao corpo
espiritual). Esse ternário é simbolizado também pelas três cores: preto,
vermelho e branco, em relação com três planos de consciência. Também
é simbolizado pelas três luminárias, pelos três pontos da insígnia dos
“S.I.”… De modo prático, observamos então que no ser humano se
enredam três campos de vibrações específicas. Quais são, portanto, os
fatores que influem sobre esses diferentes campos de vibrações?
Plano do corpo físico: As energias desse plano são oriundas da Terra
e da polaridade negativa. O consumo de alimentos e a absorção de água

[ 21 ]
trazem ao organismo essa energia. Todavia, certos alimentos geram uma
densificação excessiva das vibrações do corpo, e disso resulta maior
retenção de nossa consciência no nível deste plano, enquanto outros,
ao passo que atendem às necessidades energéticas do corpo, facilitam a
passagem da consciência para campos de vibrações mais sutis. É por essa
razão que é importante controlar bem a alimentação.

Plano do corpo fluídico (ou astral): As energias desse plano, de polaridade


positiva, têm duas fontes essenciais: o Sol e nossos pensamentos.

– Do Sol emana a Força Vital que penetra nossos pulmões pela


respiração e que é veiculada para as células do corpo pelo sangue. Todavia,
um desenvolvimento do corpo fluídico implicaria um sangue puro e
pulmões bem desenvolvidos, o que justificaria como disciplina regular
a prática frequente da respiração profunda, a do esporte, a supressão do
tabaco etc.

– Nossos pensamentos são de natureza vibratória e sua qualidade


influencia nosso corpo fluídico, assim como o nosso meio. Por
conseguinte, do ponto de vista prático, é necessário estar vigilante a fim
de não conservar em si pensamentos que qualificamos como negativos
(ódio, ciúme, angústia, mentira, maledicência…), para desenvolver com
obstinação pensamentos positivos que produzirão um efeito dinamizador
sobre o corpo fluídico, sede de nossas emoções. As vibrações mais
elevadas que poderíamos emitir pelos nossos pensamentos são aquelas
provenientes da meditação, da prece e da prática das virtudes. Parece útil
especificar que, nesse nível, é inútil “fingir”, pois se trata antes de tudo
de uma relação íntima consigo mesmo. É uma relação de verdade com o
Mestre interior – Deus dentro de cada um de nós.

Plano do corpo espiritual: Esse plano é o da realidade pura. É o mundo


do Empíreo. Tem sua correspondência em nós no nível do subconsciente.
Todavia, podemos ter acesso a esse plano através da meditação e dos
sonhos. Assim, do ponto de vista prático, um martinista deveria poder
consagrar um tempo à meditação cotidiana, momento de comunhão
com sua interioridade, bem como um tempo para anotar e decodificar
seus sonhos.

[ 22 ]
Quarta ideia-força: a lei septenária

Os sete dias da Criação, simbolizados pelas sefiroth do mundo inferior


da Cabala, os sete planetas do sistema solar, os sete centros psíquicos,
as sete notas da escala musical, as sete cores do espectro luminoso, os
sete Oficiais da Heptada… Essa lei do septenário destaca as profundas
correspondências que existem entre todas as coisas. “Tudo está no Todo
e o Todo está em Tudo”. “Tudo o que está em cima é como o que está em
baixo, para cumprir os milagres de uma única coisa”. Cada indivíduo
estaria assim em correspondência com uma cor, com uma nota musical,
com um planeta, com um centro psíquico… Cada qual tem, pois,
potencialidades de expressão que lhe são próprias. Assim, de modo prático,
o iniciado martinista poderá pesquisar suas próprias correspondências, o
que lhe dará mais força e poder. O septenário realça toda a importância
da lei de harmonia, primeira página do “Livro da Natureza”. Resulta que,
do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, tudo vibra – tudo
vive numa profunda harmonia, chave da Unidade. Esta não resulta da
uniformidade, mas da harmonia… Assim, portanto, o martinista, tendo
operado sua transmutação alquímica no crisol – no grande laboratório que
é o mundo –, tendo estabelecido por seus esforços incessantes e tenazes
a harmonia entre o corpo, o espírito e a alma, pode se tornar então um
Agente da Divindade no mundo dos homens – um “portador de luz”.

Para concluir, fomos levados a colocar em perspectiva determinados


aspectos daquilo que os ensinamentos martinistas podem nos trazer para
melhor compreender nossas problemáticas existenciais – ensinamentos
os quais se inspiram numa filosofia original que, aplicada com tenacidade
e confiança, pode nos proporcionar a paz e a alegria de viver. Esse
ensinamento não repousa sobre a prática sistemática de “receitas” diversas:
sua essência reside na cultura do amor verdadeiro, a fim de reencontrar
“Deus dentro de si”, de onde a denominação de “via cardíaca”. Contudo, a
conceptualização por si só não bastaria, pois a ela é preciso juntar a ação,
que é aquilo a que nós todos deveríamos nos consagrar infatigavelmente.

[ 23 ]
Instrução para
progredir na vida
interior
Com duas asas se levanta o homem acima das coisas terrenas:
simplicidade e pureza. A simplicidade deve estar na intenção e a
pureza no afeto. A simplicidade procura Deus; a pureza o encontra
e Dele frui. Nenhuma boa obra a ti parecerá difícil se estiveres
interiormente livre de todo afeto desordenado. Se só queres o que
apraz a Deus e o proveito do próximo, gozarás da liberdade interior.
Se teu coração for reto, então toda criatura te será um espelho de vida
e um livro repleto de santas instruções. Não há criatura tão pequena
e vil que não represente de alguma forma a bondade de Deus. Se
fosses interiormente inocente e puro o suficiente, logo verias tudo
sem dificuldade. O coração puro penetra o céu e o inferno.
Cada um julga as coisas de fora segundo o interior de si mesmo.
Se há alegria neste mundo, é o coração puro que a possui; se há
tribulação e angústia, é a má consciência que as experimenta antes
de tudo. Como o ferro metido no fogo perde a ferrugem e se faz
todo incandescente, assim o homem que se entrega inteiramente
a Deus se despoja do langor e se transforma em um novo homem.
Quando o homem começa a cair na lassidão, logo teme o menor
trabalho e recebe avidamente os consolos exteriores. Quando, porém,
começa deveras a vencer-se e a andar com coragem no caminho de
Deus, leves lhe parecem as coisas que antes achava penosas.

(Excerto de A Imitação de Cristo, livro II,


cap. IV “Da pureza de espírito e da retidão de intenção”)

[ 24 ]
A marcha para a
Terra Celestial
Didier Gilles

“Cidade Santa, Cidade Solar, Cidade Luz, Cidade da


Paz, a cidade santa se tornou no decurso do tempo o
símbolo do reino de Deus”.
[ 25 ]
J
erusalém, Jerusalém, Yerushalaim! Cidade Santa, Cidade Solar,
Cidade de Luz, Cidade da Paz! A cidade santa para as três religiões
abraâmicas se tornou no decurso do tempo o símbolo do reino de
Deus. A Jerusalém Celeste, tal como a viu o evangelista, é a morada de
Deus com os homens após o desaparecimento “do primeiro céu e da
primeira terra”. Ela não é o Paraíso, mas a concretização de uma nova
ordem das coisas – a terra no céu, a Terra Celestial prometida a todos
aqueles que têm o coração puro.

Esse conceito, puramente cristão de início, acabou por simbolizar o


futuro de uma nova humanidade inteiramente regenerada em que toda a
Terra será o Templo de Deus; por extensão, ele é também o espaço especial,
no interior de todo ser, nas alturas da psique, onde ele encontra Deus. A
Jerusalém Celeste simboliza também o estado de iluminação que coroa
a busca interior de todo ser humano após uma reintegração completa de
todo o seu ser; é a noiva que desce de seu lugar junto a Deus trazendo a
Paz Profunda a todos aqueles que a procuraram incansavelmente.

De acordo com certos especialistas da língua hebraica, Yerushalaim


proviria de duas palavras: Yeru (raiz caldeia), a qual, tomada num amplo
sentido, significa “cidade”, “morada”, “fundação”; e shalem/shalom, que
hoje significa “paz”, “harmonia”, mas que também faz referência à noção
de completude, de realização e de perfeição. Yerushalaim é então a cidade
perfeita – a morada da paz ou a morada daquilo que é perfeito.

Para tomarmos um conceito de Louis-Claude de Saint-Martin,


podemos afirmar que essa noção de Paz (shalom) pode ser também
ligada ao repouso (shabbat): se a Paz Profunda e a Unidade em Deus são
a finalidade da busca do homem, tendo este reconquistado sua condição
inicial, tem então por dever fazer a paz na Terra, o que Saint-Martin
chama de “o ministério do Homem”. E uma das tarefas mais importantes
desse ministério consiste em “sabatizar” a Terra, pois para o Filósofo
Desconhecido a Criação está em seu leito de dores e espera que o Agente
previamente designado pela Divindade cumpra a sua missão.

[ 26 ]
Revejamos rapidamente esse grande drama que é a queda do homem:
Adão, protótipo da humanidade original, foi emanado pela Divindade
para reconduzir à ordem os espíritos que haviam tentado agir fora dos
preceitos, leis e mandamentos divinos e que foram banidos da Imensidade
Divina para serem aprisionados num lugar de exílio: o mundo terrestre.
O distanciamento desses espíritos prevaricadores, segundo os termos
de Martinès de Pasqually, primeiro mestre de Louis-Claude de Saint-
Martin, pôs em movimento todo um processo concebido e ordenado
no pensamento divino e executado por certas classes de espíritos
emancipados do seio do Eterno: a Criação.

O “quadro universal” de Pasqually nos mostra o desdobramento do


plano divino, os degraus, os limites e os marcos fixados pelo Criador para
permitir que os espíritos prevaricados tornassem a subir para Ele quando
tivessem consentido livremente se reconciliar com Ele por intermédio de
Adão… O próprio Adão, seduzido por esses mesmos espíritos, caiu por
sua vez ao querer criar para si uma posteridade espiritual sem o acordo
de Deus. De um ser puramente espiritual, esposo da Sabedoria Divina
que o ligava a Deus, e revestido de um corpo de glória (de pura luz) que
lhe permitia viajar em latitude e em longitude em toda a Criação, ele se
tornou um ser de carne, encerrado no mundo terrestre – embora sempre
gozando, como ademais todos os espíritos, do amor do Criador que lhe
deixou a possibilidade de trabalhar para a sua própria reconciliação, a fim
de reconquistar sua primeira condição e de cumprir aquilo para o que
havia sido emanado: reconduzir o todo à Unidade!

O homem da torrente
Para Louis-Claude de Saint-Martin, o homem ordinário, submetido
aos furores do destino e que só anda em círculos na floresta dos erros,
é designado pelo nome de “homem da torrente”. Se, pela graça do céu,
nesse ser mergulhado nos meandros da materialidade começa a surgir
um desejo de conhecimento; se, percebendo a luz brilhando nos rostos
daqueles que deixam que cresça em si a Luz Divina, ele próprio deseja
ardentemente receber essa luz, ele será então, segundo o Filósofo
Desconhecido, um “homem de desejo”, manifestando em seu coração o

[ 27 ]
desejo de Deus. Sobre esses é dito que receberam o chamado da Divindade
que ecoa em toda a Criação: ela chama constantemente os homens a se
porem de pé, levantando-se e partindo em busca de si mesmos.
Para além do caráter aparentemente simples de certas narrativas das
maiores tradições da humanidade, podemos perceber, fora da própria
historicidade do que foi relatado, os símbolos da grande aventura
interior que aguarda todo homem de desejo. Os “homens da torrente”,
que ainda não tomaram consciência de seu estado de exílio, não podem
compreender a urgência que nasce no coração daqueles que se sentiram
chamados pela Divindade. Martinès de Pasqually chamava a atenção de
seu discípulo Pierre Fournié para isso ao escrever:
Você vê todos os tipos de pessoa andando pela rua; pois bem! Essas
pessoas não sabem por que caminham. Você, porém, saberá2.

A peregrinação da alma
A caminhada implica um movimento, mas nesse caso trata-se de
uma marcha consciente – uma viagem de um estado a outro: sair dos
condicionamentos reforçados pela vida trepidante atual para ir para esse
outro estado que vai de mãos dadas com a nobreza e a dignidade humana.
A marcha, quando tem por objetivo nos reconectar com nossa natureza
profunda, se reveste do caráter de uma peregrinação feita nos labirintos
de nossas terras interiores.

A ideia de peregrinação, de busca interior, aparece na literatura mística


sob dois aspectos diferentes. O primeiro é a busca do “Tesouro Oculto
que aspira a ser descoberto”. Esta é a “Busca do Graal” quando a
consideramos, sob o ângulo místico, como uma alegoria das aventuras
da alma. A segunda é a viagem longa e árdua para um objetivo ou um
estado conhecido e preciso. […] O objetivo da busca é frequentemente
chamado de “Jerusalém” pelos místicos cristãos […]. Referindo-se
a Jerusalém, eles evocavam não apenas o país celeste, mas a vida
espiritual que é “ela própria o céu”3.

2 FOURNIÉ, Pierre. Ce que nous avons été, ce que nous sommes et ce que
nous deviendrons [Aquilo que fomos, somos e seremos], Londres, A. Dulau,
1801, p.365.
3 UNDERHILL, Evelyn. Misticismo. Diffusion Rosicrucienne, 2011, p.227.

[ 28 ]
À luz da Tradição Martinista, viajaremos para essa Jerusalém Celeste
através das grandes etapas do percurso simbólico de um martinista
contemporâneo. Lançaremos mão daquilo que pudemos obter dos
ensinamentos martinistas, e mais especificamente daquilo que Louis-
Claude de Saint-Martin percebeu interiormente e nos legou por seus
escritos, que concordam perfeitamente com aquilo que dizem as maiores
tradições da humanidade sobre todas as etapas essenciais do percurso
espiritual. A propósito das tradições, é escusado dizer que cada uma
delas, em sua essência, é um pedaço da Eterna Verdade e que elas se dão
as mãos umas às outras, provindo de uma fonte única e revelando cada
qual, no decurso da peregrinação do homem sobre a Terra, um aspecto
da unidade de Deus.

Humildade, silêncio e união


No próprio começo de sua busca e na solenidade acentuada pela
presença das três luminárias, três ferramentas fundamentais são entregues
ao peregrino martinista: elas devem ser compreendidas, assimiladas e
integradas o máximo possível a fim de que lhe sejam úteis em sua marcha
ascensional. Esses três símbolos constituem os elementos indispensáveis
que, tal como uma couraça, o protegerão das incessantes flutuações e
dos perigos iminentes da peregrinação, pois a estrada que conduz ao
absoluto é perigosa e todo homem desejoso de se lançar à conquista de
Si deve estar bem armado. Fora essas qualidades, esses três símbolos têm
também o poder de transformá-lo, proporcionando-lhe o conhecimento
e as virtudes maiores necessárias a toda progressão espiritual. Suas
correspondências com as fases e as etapas de toda grande transformação
só lhe aparecerão como uma evidência se ele tomar o cuidado de se
abrir para eles, pois a linguagem simbólica se situa fora do palavrório da
consciência não-purificada.

Que nos trazem, então, essas três ferramentas?

A Humildade: é a fundação e a base que permite que todas as outras


qualidades e virtudes se exprimam corretamente; somada ao desapego, ela
permite que se tome consciência do fato que, mesmo que os princípios de

[ 29 ]
nosso desenvolvimento espiritual se encontrem em nós, o conhecimento
que nos permitirá empreender esse trabalho é impessoal e que não
temos de forma alguma o direito de nos envaidecer dos progressos que
teremos feito ou das benesses que poderemos proporcionar aos outros
graças a esse conhecimento. Cada qual deve aprender a permanecer um
Incógnito… pois os nomes, os atavios e as glórias terrestres devem ser
apagados a fim de permitir que a consciência adquira certa clareza…
O Silêncio: o conhecimento das grandes verdades, o princípio e a
ordem de todas as coisas só podem chegar à consciência no silêncio. Na
solidão e no isolamento, o martinista aprende a imergir, graças ao seu
manto, no silêncio de sua alma; lá ele poderá perceber, se souber escutar
bem, o canto do Verbo Divino que ressoa em toda a Criação desde a
sua emanação do Princípio até as profundezas da Terra. No coração do
silêncio repousa o Verbo – o Nome –, mas também essa presença elusiva,
furtiva no começo, mas que se distinguirá ao longo de toda a sua busca…
O sentimento de união com o Divino: o martinista, à medida que
caminha, ganha em certeza: seu desejo de Deus aumenta e o gérmen de
luz recebido no começo de sua busca parece crescer, assim como esse laço
invisível que o religa a todos aqueles que, como os elos de uma corrente,
transmitiram o Conhecimento.

[ 30 ]
Ajudado pelo conhecimento encontrado no caminho quanto às
suas origens, as da Criação, seu objetivo e suas múltiplas subdivisões
e graças a dois misteriosos livros os quais deverá aprender a ler, o
peregrino martinista descobrirá a grandeza de sua missão. Ele tomará
conhecimento da existência do corpo de luz que ele perdeu, mas que
pode reencontrar; mas também e sobretudo a existência de uma ajuda
preciosa e inevitável, a força mais poderosa em ação em toda a Criação: o
Reparador, o Reconciliador, o Cristo Cósmico Ieschouah, que ele deverá
aprender a invocar, pois ele é “o caminho, a verdade e a vida”. No silêncio
de seu coração, no amor e pela santa prece, o Cristo será seu único apoio,
sua única força e seu único suporte nesse processo de santificação total
do ser.

Como ir mais longe se não se alivia? Na Idade Média, o peregrino


era reconhecido pelo desapego que demonstrava com relação às coisas
efêmeras da existência deste plano; um dos objetivos de sua busca é
aliviar-se, depor tudo aquilo que não coaduna com as exigências da vida
espiritual: libertar-se do medo, desviar-se dos sistemas de valores baseados
sobre uma compreensão errônea dos princípios universais, desfazer-se
do peso do olhar do outro e das zombarias dirigidas contra si. Com amor,
coragem e paciência, será preciso também se abrir às provações evolutivas
que desembocam indubitavelmente em metamorfoses salutares.

Os sete pilares do Templo

Noutra etapa de sua peregrinação, nosso martinista em busca de


regeneração se lembra, conforme os ensinamentos recebidos, de que
o Cristo Cósmico regenerou os sete pilares do Templo universal; da
mesma forma, se quiser se regenerar inteiramente e conhecer a paz,
deverá cumprir um trabalho similar que se anuncia exigente e laborioso.
Sabendo que, pela Queda, o homem desceu para o mundo terrestre, todo
“homem de desejo” deve fazer o caminho inverso, e é nesse momento
que nosso peregrino se dá conta de que essa ascensão da montanha
celeste por etapas sucessivas é a obra mais delicada e mais difícil de toda
a peregrinação.

[ 31 ]
No caminho do Templo, certos guias, tendo percebido seu desalento
diante de uma tarefa tão grande, dar-lhe-ão as chaves que o ajudarão a
dissipar suas dúvidas. Porém, não serão apenas as suas dúvidas a serem
dissipadas… Tendo partido do irreal, ele caminha para a Realidade
última das coisas e, graças ao longo caminho já percorrido, ele começará a
perceber a Unidade além da dualidade aparente de todas as manifestações
e que não pede mais do que ser revelada. Desenvolvendo a inteligência do
coração, ele poderá captar o sentido por trás do véu que cobre a realidade
de todos os fenômenos… Ele então se dará conta, enquanto “pequeno
macrocosmo”, de que trazia em si um templo em ruínas desde a Queda.
As maiores tradições da humanidade utilizaram muitos símbolos para
descrever essas etapas especiais da peregrinação espiritual: a ascensão da
escada de Jacó, os sete vales do poeta sufi Attar na Cantiga dos pássaros,
a escada cerimonial de sete degraus (representando os sete céus) a ser
escalada nos Mistérios de Mitra… Para Martinès de Pasqually, os sete
planetas da Imensidade Celeste simbolizam a distância que o homem
deve percorrer para reencontrar esse estado de aliança anterior à Queda.
Esses sete planetas (Sol, Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno),
pilares do Templo universal, foram as testemunhas da descida do homem
para o mundo terrestre e constituem os sete níveis da montanha celeste
que ele deve escalar para se reconciliar com Deus e encontrar a paz.
Quaisquer que sejam a tradição e os elementos utilizados, esse
septenário faz referência a um sete arquetípico – a um modelo divino que
os grandes místicos perceberam e que é encontrado sob múltiplas formas:
são os sete Espíritos de Deus do Apocalipse ou ainda os sete agentes da
“natureza eterna” de Jacob Boehme. O Filósofo Desconhecido, em sua
Carta sobre as relações da Harmonia com os Números, escreveu:
Creio, pois, que aí podemos reconhecer os sete principais agentes da
criatura universal dos quais conheceis os nomes corporais, todos os
produtos, virtudes, divisões, sinais e propriedades que pertencem a
esses sete agentes, assim como tudo aquilo que os homens empregam
todos os dias para representá-los sem deles conhecer o princípio nem
os efeitos. Enfim, encontrareis provas desse septenário natural em tudo
aquilo que compõe e que contém a criatura em sua ação temporal, pois
ele a divide e a ocupa por inteiro desde a superfície até o centro.

[ 32 ]
Esse septenário também faz referência a essa força espiritual poderosa
que modela a Criação e que penetra tudo até as profundezas da Terra;
desde tempos imemoriais ela foi vista como representando as causas
segundas que governam essa Criação. Os termos “espíritos-princípios-
planetas” refletem a atividade poderosa dessa energia segundo os diversos
graus em que manifesta sua ação. Escalando a montanha, o peregrino
martinista deve reconquistar com uma vontade inabalável todo o
potencial de sua alma harmonizando-se com os sete planetas, reflexos
desses princípios superiores da Alma do mundo na Imensidade Celeste.
Ao ouvido de sua alma, a “voz de sua consciência” não cessará de lhe
murmurar prontamente: “Solve et Coagula! ”.

[ 33 ]
A prece

De fato, sendo que cada energia possui um poder duplo, o peregrino


deverá se abandonar com prudência a uma lenta e sutil alquimia,
corrigindo e retificando todas as suas imperfeições e suas desarmonias
nos diversos aspectos que o compõem; cada planeta do Mundo Celeste
lhe trará então uma virtude maior após ter purificado seus sete canais
espirituais. Os dois principais motores dessa alquimia espiritual são,
por um lado, essa faculdade central da alma que os antigos místicos e
os filósofos modernos, em particular Henry Corbin, chamaram de “a
imaginação ativa”, e por outro lado a prece.

O próprio Louis-Claude de Saint-Martin nos deixou, em um de seus


textos, uma ideia justa da prece e dos efeitos que ela pode produzir:

O segredo do progresso do homem consiste em sua prece, o segredo


de sua prece na preparação, o segredo da preparação numa conduta
pura, o segredo de uma conduta pura no temor a Deus e o segredo do
temor a Deus em seu amor, pois o amor é o princípio e a fonte de todos
os segredos, de todas as preces e de todas as virtudes. (O Homem de
Desejo, excerto do nº 101)

Certo dia, certa hora, quando não estará mais pensando nisso e
quando não terá nenhuma ideia de seu grau de progresso rumo ao
cume da montanha, quando sua regeneração estiver completa e ele não
tiver sequer consciência disso – pois para ele as trevas o rodeiam e ele
experimenta a terrível noite da alma… –, num sopro que dissipará todas
as sombras, ele receberá “o beijo do anjo”.

O céu escondido no coração

A “porta superior do coração” será aberta e, como dizia Jacob Boehme:

[ 34 ]
O céu está escondido no coração […] a porta do céu se abre em meu
espírito, pois o espírito vê o Ser Divino e Celeste, não fora do corpo,
mas o clarão se eleva na fonte fervilhante do coração, na sensibilização
do cérebro, na qual o espírito contempla. […] O clarão está encerrado
na fonte fervilhante do coração, e então sobe das sete fontes-espíritos
ao cérebro como uma aurora, e lá se encontram o objetivo e o
conhecimento.4

Por sua vez, o Filósofo Desconhecido especifica: “Então, verás a


cidade santa, a nova Jerusalém que, vinda de Deus, descerá do céu sobre
ti, ornada como uma esposa que se enfeita para seu esposo5”.

Graças à sua vontade, e esclarecido pela luz da Providência, nosso


peregrino martinista pôde, num caminho triplo, reconciliar os contrários
dentro de si, reunir os retalhos dispersos de seu ser, transcender a
dualidade matéria-espírito e reencontrar a harmonia entre sua natureza
terrestre e sua natureza divina. Assim, regressando de entre as colunas,
estando os gérmens divinos em sua atividade e em seu desenvolvimento,
ele poderá se manter próximo a essa divina imensidade, diante da Luz
infinita que todos procuraram tão penosamente e, partilhando em toda a
sua plenitude a Sabedoria daquele que não pode ser nomeado, ele poderá
então obedecer à injunção original: reconduzir tudo à Unidade!

Como nosso peregrino, cada qual deverá descer às profundezas de seu


ser e escalar sua própria montanha, a fim de se tornar “um” e permitir
que a Jerusalém desça para o seu coração. Que importa se o caminho que
falta percorrer ainda é longo? Caminhe! Continue a caminhar! Pela prece,
pelo exemplo e pelos reflexos da luz da montanha que será notada em seu
rosto, você poderá carregar consigo em sua ascensão uma multidão de
seres; seus passos contribuirão para esclarecer aqueles que, nos tempos
futuros, estarão em busca da Jerusalém Celeste!

4 BOEHME, Jacob. A Aurora Nascente, cap. XXV nº67 e 68. Consultar


também ALBRECHT, Pierre-Yves. Cheminer avec l’Ange [Caminhar com o
Anjo], Paris, 2011, Éditions du Relié, p.228.
5 SAINT-MARTIN, Louis-Claude de. O Novo Homem, nº 71.

[ 35 ]
A Vida para além dos
Sentidos
“Como posso ter acesso à vida além dos sentidos, de modo que eu
veja Deus e O ouça falar?
Se podes por um instante penetrar esse lugar que nenhuma criatura
habita, então ouves aquilo que Deus diz.
Esse lugar é perto ou longe?
Ele está em ti, e se podes por uma hora silenciar todo o teu querer e
todo pensamento, então compreenderás as palavras inexprimíveis de
Deus.
Como posso ouvir se me mantiver no repouso do pensamento e do
querer?
Quando estás no repouso do pensar e do querer de tua própria
existência, então a audição, a visão e a palavra eternas se manifestam
em ti, e Deus ouve e vê por ti. Tua própria audição, teu próprio querer,
tua própria visão; eis aquilo que te impede de ouvir e de ver Deus.
Por qual meio devo ouvir e ver Deus se Ele está além da natureza e
da criatura?
Quando te calas e repousas, então és aquilo que era Deus antes da
natureza e antes da criatura; aquilo do que Ele fez tua natureza e tua
criatura. Então tu O ouves e O vês por aquilo através do que Deus via
e ouvia em ti antes que começassem teu próprio querer, tua própria
visão e tua própria audição.
O que então me impede de ter acesso a esse lugar?
Teu próprio querer, tua própria visão e tua própria audição, e que
tu te esforces contra isso de onde vieste. Por tua própria vontade te
separas da vontade de Deus. Por tua própria visão tu só vês em tua
própria vontade, e tua vontade obstrui tua audição pela sensualidade
própria das coisas terrestres e naturais. Essa vontade te põe no fundo e
te recobre com a sombra daquilo que queres, de modo que não podes
ter acesso àquilo que está além da natureza e além dos sentidos.”
[ 36 ]
Jacob Boehme
(excerto de “Da Vida para além dos sentidos,
ou o colóquio de um Mestre com seu discípulo)
SOHRAVARDÎ:
Teósofo Persa
Josselyne Chourry

“Sohravardî se vê herdeiro da grande tradição hermética.


Ele ressuscita o Zoroastrismo, o hermetismo, o orfismo e
o platonismo sob o sigilo do[ 37Islã”.
]
S
hihâboddîn Yahyâ Sohravardî nasceu na arabizada e muçulmana
Média (região situada no noroeste do Irã), em 549 da Hégira, ou seja,
em 1155 de nossa era. Nós o conhecemos graças ao seu discípulo e
biógrafo Shahrazôri, e mais próximo a nós através dos trabalhos sobre o
Islã iraniano feitos por Henry Corbin (sucessor de Louis Massignon em
1954 como diretor de estudos sobre o Islamismo e as religiões da Arábia
da École Pratique des Hautes Études, e que em 1974 fundou um centro
internacional de pesquisa espiritual comparada na Universidade São João
de Jerusalém). Sohravardî estudou no Azerbaijão com o xeque Majdoddîn
Gîlî, e depois em Isfahan, onde havia vivido o célebre filósofo e médico
Avicena (980-1037). Além disso, foi nessa cidade que ele descobriu a
tradição aviceniana ao estudar sua obra, e sobretudo um tratado místico
que ele próprio traduziu para o persa, A Epístola dos Pássaros: “Irmãos
da Verdade! O mais valente é aquele que ousa afrontar o seu porvir; o
mais covarde é aquele que permanece atrasado em sua própria perfeição”.
(Avicena – A Epístola dos Pássaros).
Essa epístola foi a trama de uma fabulosa literatura sobre o mito do
pássaro que atravessará o mundo árabe-persa, e foi essa narrativa que
serviu de inspiração para o Mantiq at-Tayr (A linguagem dos pássaros),
o conto mais poético das obras gnósticas do xeque ‘Attâr Neyshâbouri,
poeta místico iraniano dos séculos XII e XIII. Essa encenação dos
pássaros que procuram seu rei, o mítico pássaro Simorgh, é a própria
descrição de um percurso místico sufi. O título A linguagem dos pássaros
foi escolhido por ‘Attâr em referência ao versículo 16 da surata An-Naml
do Alcorão (“As formigas”): “E Salomão foi herdeiro de David, e disse:
‘Ó humanos, tem-nos sido ensinada a linguagem dos pássaros e tem-nos
sido proporcionada toda graça. Em verdade, esta é a graça manifesta’”.
No tempo de Sohravardî, as comunidades de sufis eram numerosas
e sabe-se que o jovem as frequentava assiduamente a fim de galgar,
pela meditação, os degraus da Via Mística. Permaneceu no sudeste da
Anatólia (na atual Turquia) e depois, de uma peregrinação a outra, foi
a Alepo, na Síria. No decurso de suas viagens, Sohravardî frequentou
círculos de filósofos helenistas e se familiarizou com os pensamentos de
Platão, Aristóteles e Avicena.

[ 38 ]
Em Alepo, Sohravardî encontra o governador al-Malik al-Zahir, que
se revela como sendo um dos filhos de Salâhoddîn, o famoso Saladino,
vencedor dos cruzados. O biógrafo de Sohravardî relata que em Alepo
ele teve desacordos e disputas veementes com os juristas ou doutores
da lei. O takfir, sentença que condena a impiedade para com o Islã, cai
sobre ele; porém, no momento em que a prudência aconselharia que
deixasse Alepo, sua lealdade para com uma causa que ele considerava
maior do que si próprio fez com que ficasse, continuando a pregar a
santa linhagem dos sábios teósofos e de seu imã6 oculto. Inquieto com
aquele poder esotérico, Saladino, então em combate contra os Francos,
temia qualquer veleidade de sucessão, mesmo que espiritual e inofensiva,
capaz de perturbar mesmo em pensamento o poder religioso sob sua
férula política ambiciosa. Saladino deu ordem a seu filho Malik para que
executasse Sohravardî, não hesitando diante de suas procrastinações de
ameaçá-lo de retirar-lhe o posto de governador. Não se conhece com
exatidão as circunstâncias de sua morte (provavelmente por decapitação),
mas Sohravardî, o Sheikh al-Ishrâq (“mestre do Oriente”), morreu em 29
de julho de 1191 (a data mais comumente aceita) na cidadela de Alepo,
na idade de 36 anos. Por essa execução, Sohravardî conservará o triste
título de Shaykh Maqtul, ou seja, “o Mestre assassinado”.

Mestre simbólico do nascer do Sol

Alcunhado “Sheikh al-Ishrâq”, Sohravardî é o mestre simbólico do


nascer do Sol, o mestre da iluminação matinal, o doutor em mística da
theosophia matutina em latim. O adjetivo ishrâqi significa “o auroral”,
“o oriental”. Assim como o sol que se ergue no Leste, o Conhecimento
se enraíza no Oriente místico. Seus discípulos são os Ishrâqîyûn, que
professam a doutrina de seu venerado mestre por uma espiritualidade em
conivência secreta com a teosofia xiita. Muitos serão os pensadores xiitas a
se declararem Ishrâqîyûn. Sohravardî é autor de mais de cinquenta obras,

6 «Imã» ou «Imame» é o título dado ao sacerdote muçulmano ou ao chefe de


certos estados árabes (N. do T.)

[ 39 ]
muitas das quais permanecem inéditas. Esses livros são repartidos em
três compêndios: O livro das elucidações inspiradas da távola e do trono;
O livro das encruzilhadas e colóquios; e O livro das resistências.

O pensamento sohravardiano

No pensamento de Sohravardî encontraremos a confluência e a


inspiração de várias culturas. Média foi por muito tempo uma região
fiel ao Mazdeísmo (ou Zoroastrismo), e não é surpreendente que seus
escritos – sobretudo sua obra principal, Kitab hikmat al-Ishrâq (Livro da
teosofia oriental) – se inspirem na sabedoria de Zoroastro (mas também
na de Platão e na de Hermes). Sohravardî retoma a sabedoria do antigo
Irã. Para penetrar em seu pensamento, é preciso ler o Kitab hikmat al-
Ishrâq, que também podemos chamar de “Teosofia do Oriente das Luzes”.
Mais uma vez, foi Henry Corbin quem melhor desempenhou essa tarefa.
Desse livro, Sohravardî dirá: “Este livro foi o Espírito Santo que inspirou
ao meu coração, de uma só vez, num dia maravilhoso, ainda que eu só
tenha conseguido colocá-lo por escrito ao cabo de vários meses, por
causa das dificuldades ocasionadas pelas minhas viagens”.

É preciso dizer que, para os filósofos do Islã, o Espírito Santo é


representado pelo anjo Gabriel (Djibrail), considerado ao mesmo tempo
como anjo da revelação e anjo do conhecimento. Esse livro é um tratado
esotérico destinado a “eruditos”, seus irmãos místicos, companheiros das
Grandes Obras. Além disso, Sohravardî diz ter usado nesse livro uma
escritura secreta. Henry Corbin encontrará um manuscrito escrito com
um alfabeto empregado pelos ismaelitas e suporá se tratar dessa escritura.
Em seus escritos, Sohravardî evoca o “mantenedor do livro” (expressão
que figura nos hadiths xiitas), esse imã depositário da doutrina da Luz do
Oriente e que domina a hermenêutica secreta do Livro, como é dito: “O
Livro é o imã mudo; o imã é o Livro falante”.

Sohravardî se vê herdeiro da grande tradição hermética no Islã,


oriunda da sabedoria dos persas. Para ele, Hermes (comparado a

[ 40 ]
Idriss) é o ancestral de todas as sabedorias. Seth, filho de Adão, por
sua vez, é considerado como o iniciador dos Ishrâqîyûn. Os gnósticos
sethianos também viam em Jesus Cristo uma epifania de Seth, que
alguns comparavam a Zoroastro. Com efeito, Sohravardî ressuscita o
Zoroastrismo, o hermetismo, o orfismo e o platonismo sob o sigilo do
Islã. A Pérsia e os países adjacentes foram o berço, a passagem e a fusão
de diversas tradições, doutrinas religiosas e teorias filosóficas.

A influência ismaeliana de Sohravardî apresenta a alma em busca de


um meio de encontrar a proximidade de luz após a queda inicial. Para
ele, a vida consiste em fazer com que a alma cresça para que ela irradie
o corpo e o transfigure em matéria espiritualizada. Ele faz do homem o
recipiendário da Luz Divina. Ele escreve: “Eu celebro a liturgia da Luz
vitoriosa, o Forte, o Arcanjo da teurgia que é o homem”. A escritura de
Sohravardî é bela, poética e inspirada. Nele, o esforço purificador de
cada alma é comparável a um eclipse; mais uma bela imagem poética
para invocar a revelação necessária. O pleroma arcangélico constitui as
etapas pelas quais a alma passa para se iniciar. Cada “céu” é um anjo que
abre uma porta para a Luz. A Queda retarda a contemplação da primeira
Inteligência, mas o exílio é importante para que a alma se torne senhora
do corpo e da inteligência. A necessidade de passar pelo exílio é um dos
temas do ismaelismo. O tema da prisão (tal como a “noite negra” de São
João da Cruz ou a “travessia do deserto”) também é um tempo de solitude
que precede a iluminação. Por que o homem se separou assim da Luz
primordial?

Processo da Inteligência de luz

Segundo a cosmologia de Avicena, retomada por Sohravardî, a


Primeira Inteligência é o Primeiro Criado. É o ato de contemplação de seu
Princípio que faz eclodir a Segunda Inteligência. O primeiro emanado é
a Segunda Inteligência ofuscada e cegada diante do abismo que a separa
de seu Princípio. Essa Segunda Inteligência, ou primeiro emanado, é uma
profusão do Primeiro Criado. Dessas duas primeiras Inteligências emana

[ 41 ]
uma Terceira Inteligência, ou segundo emanado: o Adão espiritual. A
hierarquia das inteligências é rompida dramaticamente pela Terceira
Inteligência – o Adão celeste que recusa a linha das luzes e perde então
seu lugar, caindo como Décima Inteligência. O processo da Inteligência
de luz é o reconhecimento da primazia da Inteligência que a precede.
Adão, o segundo emanado, recusa-se a passar pelas Inteligências que o
precedem. O Adão celeste é ofuscado diante de si mesmo: “A regressão
do Adão celeste da Segunda à Décima Inteligência é um retardo de
eternidade – da “eternidade retardada”. Esse retardo é mensurado pelas
sete outras Inteligências que procederam durante a vertigem do Adão
celeste. É a queda de Adão que engendra Luz e Trevas.
Essas visões ismaelianas das hierarquias celestes e do Adão que cai para
a segunda posição da visão cósmica são retomadas por Sohravardî, ainda
que a liturgia conserve sua importância como meditação necessária ao
desdobramento das múltiplas Inteligências. É o rito perpetuado que nos
põe na presença e harmonizados com as luzes da Inteligência. Sohravardî
evoca também a sakîna, equivalente árabe da palavra hebraica shekinah.
O conceito é quase o mesmo. Esse termo, que significa “morada, estância”,
é utilizado para designar a presença divina em todas as coisas, mas os
cabalistas a ele acrescentam uma noção de aspecto feminino, habitado
por uma dinâmica potencial que só pede para ser orientada para o Divino.
A sakîna árabe é também hipóstase da presença de Deus; contudo, se a
raiz triliteral S K N comporta a ideia de permanência e de morada, ela
também se inclina a uma presença tranquila. No Islã, a sakîna é uma
“tranquilidade” divina ou uma “paz” que desce sobre aquele que crê –
o submisso (a Deus, pois o termo “muçulmano” significa “submisso”)
– quando da recitação do Alcorão. Quando Sohravardî fala de “sakîna
maior” (al-sakînat al kobrâ), ele designa aqueles em quem a sakîna se
instala para que as Luzes espirituais persistam.

A teosofia oriental
Pela iluminação de seu nascer, o Sol é o símbolo da luz pura.
O fundamento da teosofia oriental é a experiência íntima de uma
percepção mística. O astro que ilumina a Terra é a contrapartida física

[ 43 ]
do conhecimento pelo qual o ser se eleva ao seu próprio Oriente.
A preocupação maior do Sheikh al-Ishrâq é garantir ao mundo um
“fermento espiritual” – uma transmissão encarnada pela figura do imã
oculto, o vicário (califa) de Deus sobre a Terra, ele próprio rodeado por
um grupo de sábios que são as colunas do céu, os catalisadores através
dos quais penetra a graça divina. Reencontramos essa noção entre os
cabalistas judeus com a ideia de que são necessários ao menos trinta e
seis justos para que o Mundo subsista. Seja no conceito sohravardiano ou
no da Cabala, em cada época considera-se que um grupo de “perfeitos”
mantém o Mundo. A função do imã, enquanto “polo místico”, é essencial,
mas ele não precisa ser reconhecido publicamente. Os imãs do Ishrâqîyûn
operam na maior humildade, invisíveis no visível. Assim, a investidura do
manto (khirqa), que simboliza o estado Sufi, remontaria a um dos doze
imãs. Os escritos de Sohravardî se dirigem ao buscador cuja aspiração
é pura. O sufismo é uma senda de iluminação interior. O objetivo do
sufismo é o conhecimento da verdade pela senda do coração, e não por
intermédio de teorias e de raciocínios filosóficos ou racionais. O khirqa é
o manto de honra do dervixe, pois ele simboliza a natureza divina e seus
atributos. Diz-se que o manto é tecido com a agulha da devoção e com o
fio da lembrança permanente de Deus.

O arcanjo empurpurado
Fora o célebre Kitab hikmat al-Ishrâq, já citado, outra obra merece
a nossa atenção: A narrativa do arcanjo empurpurado, que foi objeto
de uma tradução apresentada e comentada por Henry Corbin. Essa
narrativa eminentemente mística começa com um longo prólogo cujo
tema de partida é a preexistência da alma. A linguagem dos pássaros com
o famoso Simorgh é o primeiro motivo evocado. Por que o pássaro é
emblemático da alma? A alma é efetivamente sugerida e comparada ao
aparelho alado do pássaro, o qual lhe dá a faculdade de se locomover
nos ares, bem acima da terra, e de assim ver de modo mais elevado.
Reencontramos aqui as figuras angélicas de seis asas da cristandade, os
fravashis (anjos/guardiões internos) do Zoroastrismo e as asas da antiga
Mâat egípcia. Isso nos evoca também o Fedro de Platão, onde a alma é
representada com uma carruagem alada conduzida por um anjo também
alado.

[ 44 ]
O tema seguinte do prólogo é a queda da alma. O terceiro tema é o
da evasão, talvez inspirado pela solidão dos altos planaltos iranianos,
tal como o mito do deserto como lugar de expiação ou de libertação.
É nesse lugar que encontramos o Anjo. A obra é quase uma iniciação à
angelologia, mas é também a produção de um visionário. O Espírito Santo
é Gabriel, o arcanjo de duas asas: a direita, que é pura luz; e a esquerda,
que tem uma marca tenebrosa. Dessa última asa se projeta uma sombra
que mantém o mundo da ilusão. As almas de luz emanam da asa direita.

Após o prólogo, a narrativa propriamente dita relata um percurso no


deserto e o misterioso encontro de um personagem jovem chamado de “o
mais velho dos filhos do Criador”, o anjo Gabriel, “o anjo da humanidade”.
A visão é caracterizada pela cor púrpura, de onde o nome da obra: “Alq-e
sorkh” (sorkh significando “vermelho-púrpura”). É o vermelho-púrpura
do crepúsculo. Nesse particular, Sohravardî permanece fiel ao simbolismo
das cores na teosofia islâmica. Encontramos quase exatamente a mesma
hierarquia das cores na Cabala com a degradação da luz à medida de sua
descida nas sefiroth. Gabriel é um anjo condutor de humanidade que o
discípulo vai interrogar. Segue-se uma verdadeira narrativa de iniciação
destinada a reconhecer as etapas da longa viagem que deve conduzir o
exilado a transpor a montanha cósmica do KaF.

A liturgia do dia

Em nenhum momento a erudição e a busca mística de Sohravardî se


expressaram a despeito da autoridade dos poderes espiritual e temporal.
Sohravardî foi injustamente condenado em tempos de instabilidade
política. Com todas as formas da poesia e do amor cortês à moda dos
trovadores do Ocidente, a retórica de Sohravardî dá testemunho do
cuidado manifestado de respeitar as hierarquias das Luzes e o Islã,
enquanto suporte litúrgico do mundo celeste. Assim, “A liturgia do dia”
de Sohravardî é um texto magnífico – uma verdadeira invocação à luz:

[ 45 ]
Que Deus purifique aqueles que aqui estão de pé, e que Ele os aproxime.
Que Ele conceda a liturgia da Luz que se ergue em seu Oriente.
Que Sua bênção esteja sobre o cone da chama da Luz.
Que Ele envie o influxo celeste sobre a lâmpada do santuário.
Que Ele consagre a oferenda e o ato digno de louvor. Ele fez do arauto
da Luz do Levante o cavaleiro do Oriente, o confidente dos sacrossantos,
aquele que faz descer o socorro e dá a ordem, proclamando do alto das
ameias do mundo da Glória:
Ó, Príncipe do Universo, termo final dos movimentos dos sóis que se
erguem em seu Oriente quando declinam no Ocidente! Faz erguer a
litania da Luz. Vem em auxílio do povo da Luz. Guia a Luz para a Luz.

Assim como Jesus em sua época, Sohravardî não se encarnou para


abolir, mas para purificar a fé de sua plebe.

Bibliografia
CORBIN, Henry. En Islam iranien [No Islã iraniano], 4
vol., Paris, Gallimard, 1971.
CORBIN, Henry. Histoire de la philosophie islamique
[História da filosofia islâmica], Paris, Gallimard, 1964.
CORBIN, Henry. Trilogia ismaeliana [Trilogia
ismaeliana], Paris, Adrien Maisonneuve, 1994.
CORBIN, Henry. L’homme de lumière dans le soufisme
iranien [O homem de luz no sufismo iraniano],
Chambéry, Présence, 1971; reed. Médicis, 2014.
CORBIN, Henry. Avicenne et le récit visionnaire
[Avicena e a narrativa visionária], Lagrasse, Verdier,
1999.
SOHRAVARDÎ. L’archange empourpré [O arcanjo
empurpurado], Paris, Fayard, 1976.
SOHRAVARDÎ. Le livre de la sagesse orientale [O livro
da sabedoria oriental], Lagrasse, Verdier, 1986.
ATTAR, Le langage des oiseaux [A linguagem dos
pássaros], Paris, Sinbad, 1982 ; reed. Albin Michel,
1996.

[ 46 ]
Rumo à Consciência
Divina Jean-Claude Mondet

“Nada pode provir de nada. Em outras palavras, o nada


não pode dar origem a coisa
[ 47 alguma”.
]
N ada pode provir de nada. Em outras palavras, “o nada não pode
dar origem a coisa alguma”. Ora, a existência do ser é alguma
coisa, sobretudo para si mesmo e para aquilo que está ao seu
redor. O postulado é, pois, que existe um Criador. Isso implica que a
existência tenha um sentido, pois esse Criador agiu forçosamente com um
objetivo, mesmo que o ser humano não o conheça. Aristóteles classificou
o objetivo, que ele chamava de “causa final”, entre as quatro causas que
definem todas as coisas. Contudo, essa noção de causa final não foi retida
pela ciência moderna, e por conseguinte por nossa sociedade, para as
quais uma entidade só se explica por aquilo que ela foi e pelo que ela
é, e não pelo que ela será, pois isso redundaria em lhe atribuir uma
intencionalidade.

Existe, portanto, um Princípio criador. Crer nisso é um ato de fé, da


mesma natureza que o de um ateu negando a existência desse mesmo
Princípio. Fora do tempo e do espaço, ele é indefinível, a ponto de não se
saber se ele é imutável. Será que ele ainda é aquilo que foi? Será ele amanhã
aquilo que é hoje? Em outras palavras, está submetido também à evolução
que fez de nós aquilo que somos? Estando só, enquanto Criador de tudo,
ele é Um, ele é na verdade “o Um”, pois ele é tudo o que existe – ele é a
totalidade daquilo que existe; ele é o Tudo. Mas o que é esse tudo? Sem
duração, sem forma, sem dimensões, sem substância, ele não é nada senão
uma essência – um princípio. Os cabalistas o chamam de Ain – “nada”.

Está entendido que sua natureza escapa à nossa compreensão, mas isso
não deve nos impedir de refletir. Existe uma entidade que, ainda que não
seja nada, é Tudo. Só existe ela, sem que haja um não-ela, nem mesmo
possibilidade de existência de alguma coisa que não seja ela. Nessas
condições, ela pode ter consciência de sua existência, consciência de si
mesma, saber que existe? Tomemos uma analogia, nós, falíveis humanos.
Imaginemo-nos sem nossos sentidos, sem nenhuma percepção do
exterior, daquilo que não somos nós e que, por conseguinte, não existiria
para nós. Sem comunicação, não teríamos podido desenvolver linguagem
e não saberíamos desenvolver um raciocínio, nem mesmo experimentar
um sentimento, sem nenhuma aplicação. Não tendo consciência daquilo
que não somos nós, não podendo raciocinar nem sentir o que quer que
seja, teríamos consciência de nós mesmos? Seríamos uma inteligência

[ 48 ]
sem função – uma vontade sem ponto de ação. Estaríamos na situação
do Criador sem criação. Para nós mesmos, seríamos ao mesmo tempo
Tudo e Nada.
Postular a existência de uma Inteligência universal redunda em admitir
que ela própria é infinita. Ela sabe que, para existir realmente, deve criar
algo que não seja ela e com o qual ela poderia se comparar para ter uma
ideia daquilo que ela é. Esse algo lhe devolveria sua imagem, pois ele
seria a imagem de seu criador, necessariamente, haja vista que o conteria.
Todavia, se refletirmos sobre isso, na realidade o Criador não tinha de fato
necessidade de criar o mundo. Para ser, ele não precisa de nada – nem
mesmo da criação. Ao realizá-la, ele criou com o mesmo gesto algo para
amar. É o gesto mais perfeito de amor, pois, ao criar o outro, ele criou o
próprio Amor. Foi, de alguma forma, o Amor que criou o Universo.

A teoria científica atualmente mais disseminada pretende que a energia


infinitamente grande contida num espaço infinitamente pequeno tenha
sido bruscamente liberada, criando o universo que nós conhecemos,
em perpétua expansão, ao menos até agora. As cosmogonias dizem
todas praticamente a mesma coisa a propósito do ato criador. Para os
cabalistas, o Um – o sem limite, Ain Soph – se retrai para dar lugar ao
não-ele em dez etapas no decurso das quais a densificação progressiva
culmina na matéria que conhecemos: Ain, “nada”, culmina em Ani, “eu”.
Para os gregos havia originalmente Caos, que é o abismo sem fundo, onde
a Noite origina Eros, a grande força das origens que provoca a reunião de
todas as coisas e que os homens depois rebaixaram pouco a pouco ao
status de simples vontade de copular. Na Bíblia, o Criador parte do Tohu
bohu inicial. Explosão, Caos, Ain Soph, Tohu bohu – nada disso significa
desordem, mas simplesmente uma ordem que não compreendemos,
constituindo a própria natureza do Princípio criador, a essência de seu
ser, que nos escapa completamente.
O Elohim bíblico começa por separar as águas de cima das de baixo,
ou seja, a matéria do Espírito; de um não-ele que ele cria, por divisões
sucessivas, chega ao homem. Para operar, o Criador fez uma invenção
maior, a dualidade, permitindo chegar à complexidade a partir de sua
própria unidade. Ele criou a vida e depois o summum dela, o humano,
feito de matéria – a poeira do solo – e de Espírito, o Sopro Divino, o
Rouah dos judeus. Ao espírito do homem ele deu o poder sobre o animal,

[ 49 ]
ou seja, sobre a animalidade dentro de si; também separou o masculino
do feminino, o corpo e a alma, e é aí que nos encontramos.

Estamos no sétimo dia. O Criador se deteve, deixando à sua criatura


autonomia para realizar aquilo que ela ainda traz apenas em potencial, e
que a Bíblia chama de tornar-se semelhante a ele. Isso consiste em tomar
consciência do Criador; tentar elevar-se em pensamento até ele para,
se não compreendê-lo – coisa que está fora das capacidades de nosso
intelecto –, ao menos conhecer sua existência e se harmonizar com ele.
Conseguiremos isso nos harmonizando com o universo, reaproximando-
nos da unidade com a beleza do mundo numa espécie de comunhão
universal, com o sentimento de fazer parte dele, de participar de sua paz
e de sua beleza. O Criador está ligado à sua criação por laços simbióticos
semelhantes àqueles da mãe com seu filho recém-nascido. É o amor
superior, chamado ágape, que o homem busca. Aí se encontra talvez a
fonte de seu desejo espiritual, de sua angústia metafísica – a necessidade
de reencontrar sua unidade perdida.

A consciência humana
Paremos aqui com essas especulações para observar mais diretamente
o objeto dessa reflexão: nós mesmos. Como, a partir da matéria de que
somos concebidos, nossa consciência nasceu? Como pode ela atingir a
Consciência Cósmica? E inicialmente, o que é a consciência? Dizer que é
aquilo de que temos consciência não nos adianta muito, e a sabedoria das
nações não se equivocou quanto a isso, falando de uma voz da consciência
nem sempre fundamentada, parecendo por vezes emergir de uma parte
de nós mesmos situada fora do domínio consciente.
Somos conscientes daquilo que se passa ao redor de nós graças
às mensagens de nossos sentidos, ainda que sejam imperfeitos. Essa
consciência é chamada de “objetiva”, pois ela se relaciona a objetos. Somos
também conscientes de nós mesmos, de nossa individualidade; emitimos
pensamentos permanentemente. É, portanto, uma consciência que pode
ser qualificada de “subjetiva”, relacionando-se a nós enquanto sujeitos.

Além dessas duas formas, Freud evidenciou toda uma atividade da


consciência situada, de modo paradoxal, no inconsciente, a qual chamou
de “subconsciente”. Ela existe no sono e, ainda mais profundamente, sob
[ 50 ]
uma forma que permite a atividade das funções vitais do organismo.
Trata-se de uma consciência particular. Como o organismo poderia
regular seu funcionamento em suas diversas partes sem ter consciência de
suas funções? Não temos consciência dessa consciência em nós, situada
em um nível não-centralizado. Ademais, é bom que seja assim; nossa
vida seria um inferno sem esse automatismo! Essas diferentes formas de
consciência são comuns ao ser humano e aos animais, ao menos entre os
mamíferos. Entretanto, no ser humano existe uma especificidade que faz
dele, talvez, ser humano: sua consciência está consciente de si mesma. O
Homo sapiens sapiens é aquele que sabe que ele sabe.
Remontemos agora às origens e vejamos como essa consciência
surgiu na Criação. O mais fácil é dizer que existe uma consciência eterna
e universal que se teria manifestado progressivamente no universo em
expansão – consciência esta proveniente do Criador e que penetra a
Criação pouco a pouco. É uma maneira de vislumbrar Deus sob forma
de Princípio criador. Ou se crê nisso ou se prefere acreditar no acaso. Em
todo caso, é razoável postular que a vida seja o suporte da consciência.
Ela surgiu naquilo que se costuma chamar de “sopa primitiva”, na qual se
formaram as moléculas da vida, DNA e RNA, a partir de proteínas e de
ácidos nucleicos. Os primeiros seres vivos foram bactérias, separadas da
“sopa” por uma membrana à base de lipídios. A composição química no
interior da membrana era idêntica à do exterior, com a diferença de que
no exterior as proteínas e os açúcares eram repartidos aleatoriamente, ao
passo que no interior eles eram organizados.
É aí que tudo se situa. A vida nasceu da organização da matéria sob a
influência de uma força de origem desconhecida. A vida é definida como
a capacidade de se manter – ou seja, de ter um metabolismo – associada à
capacidade de se reproduzir. O funcionamento de nossa bactéria é simples.
Ela se nutre dos elementos da sopa que lhe convêm, e os dejetos atravessam
a membrana no sentido oposto. Pode parecer abusivo falar de consciência
para uma bactéria; no entanto, a célula primitiva sabe o que deve fazer para
se manter e se reproduzir. Essa consciência celular primitiva nasceu há
doze bilhões de anos e vai durar por muito tempo. Efetivamente, a etapa
seguinte aconteceu há apenas um bilhão e meio de anos. Um novo meio
se origina, bactérias se adaptam a ele e novas células surgem, semelhantes
às nossas, contendo um núcleo e – novidade! – funções especializadas na
reprodução, na eliminação de dejetos ou na nutrição.

[ 51 ]
A consciência também dá um novo passo. Acredita-se que essas
funções especiais possam ser exercidas por bactérias ingeridas que tenham
conservado sua consciência primitiva, ao passo que a célula possui uma
consciência mais global que lhe permite, por exemplo, afastar-se de um
perigo ou atacar uma presa. Por sua vez, as células se agrupam, dotam-
se de um esqueleto, os anfíbios e depois os répteis aparecem tendo pela
primeira vez um embrião de cérebro – o hipotálamo, que ainda temos,
nosso cérebro reptiliano sendo especializado na gestão de nossas funções
vitais. Depois a evolução prossegue com a aparição dos mamíferos, há
duzentos milhões de anos, trazendo novas características cerebrais, como
a aparição do sistema límbico, dedicado às emoções, ao gostar/não gostar
e à memória. A característica essencial é a presença de um córtex cerebral
desenvolvido, resultante da invenção e da fabricação dos neurônios e de
suas conexões, conjunto capital em matéria de memória e de raciocínio.

[ 52 ]
Desde a aparição da vida, a consciência não deixou de se desenvolver
graças a suportes cada vez mais eficazes. Isso continuará no ser humano,
em quem o número de neurônios e de conexões ainda aumentará
consideravelmente. O avanço primordial ocorreu quando, pela primeira
vez, a consciência tomou consciência de si mesma.

A sequência da aventura humana


Graças à ampliação de sua consciência, o homem conseguiu vantagens
consideráveis. Dentre elas, retenhamos o livre arbítrio do qual ele goza ao
menos parcialmente. Graças à sua consciência, ele tem a possibilidade de
conceber o Bem; e graças a seu livre arbítrio ele tem a possibilidade de
não fazê-lo, ou até mesmo de fazer o contrário. É bem evidente que essa
liberdade fica limitada pela pressão social: educação, moda, incitações
diversas, “pensamento correto” – o “Id” de Freud –, mas é flagrante que o
homem não se priva de agir contra as leis naturais e morais. De um simples
ponto de vista biológico o homem está inteiramente integrado ao seu
meio ambiente natural. Dele provém e dele vive. Porém, diferentemente
dos outros habitantes do planeta, ele se situa ao mesmo tempo no exterior
dele. Com efeito, ele tem consciência disso, o observa e, para tanto, se
distancia, de certa forma isolando-se dele.
Que queremos fazer de nossa consciência? No momento, chegamos
a um ponto em que as sociedades são compostas de individualismos
exacerbados ainda que, paradoxalmente, nós não tenhamos jamais sido
tão formatados, nivelados e uniformizados pela sociedade e por seus
meios de informação de massa. Na realidade, tudo se parece, qualquer que
seja o continente: a praia de nossas férias, o hotel onde nos hospedamos,
aquilo que lá comemos, as distrações noturnas e as conversas que temos.
As empresas, multinacionais ou estatais, se comportam como organismos
que absorvem tudo o que lhes é útil e que rejeitam o resto, como bactérias
gigantes, com sua consciência própria subtraindo-se dos minúsculos
constituintes que somos nós. Que evolução nos aguarda?
Durante séculos, o religioso incluía o científico; a separação foi feita
na idade das Luzes, quando se criou uma barreira estanque entre eles.
Contudo, no fundo, por que se privar da razão para abordar o domínio
espiritual quando este está na base das preocupações humanas em toda
a superfície da Terra? Chegamos assim a uma terceira via, libertada de

[ 53 ]
todo dogma e de todo “a priori”: a espiritualidade, e é o que propõe nossa
Ordem, em consonância com muitos pensadores atuais. O processo
de evolução começa a ser bem conhecido, apesar de muitas falhas. O
como é claramente do âmbito científico com suas demonstrações, mas o
porquê não pode ser abandonado ao âmbito religioso com suas verdades
reveladas. Ficamos aí reduzidos às hipóteses, então por que nos privarmos
de postulá-las? A do acaso parece difícil de defender, pelas próprias
leis probabilistas. Permanecem por explorar, portanto, aquelas de uma
vontade diretriz, de uma inteligência ou de uma lei físico-matemática
que podemos chamar de Deus.
Quanto à sua natureza, confesso minha ignorância e minha capacidade
de até mesmo imaginá-la. Porém, funciono com hipóteses e, com a ajuda
da minha razão, tento encontrar elementos que as confirmariam ou as
invalidariam. Agindo assim, tenho verdadeiramente a impressão de
prosseguir minha evolução de acordo com as leis naturais, expandindo
minha consciência em dimensões superiores. Aproximo-me então
da compreensão desse Princípio que me escapa. A alma humana é
maravilhosa; é capaz de vislumbrar a existência de algo totalmente
estranho àquilo que ela conhece. Mesmo aquele que de pronto refuta a
sua existência admite implicitamente essa possibilidade!

Sobretudo, conservemos nossas diferenças, aceitemo-las como fontes


de progresso para nossas consciências e não nos deixemos encarcerar no
pensamento único, seja ele conservador, racional, científico ou religioso.
As injustiças de nossas sociedades são muitas e por vezes gritantes. Elas
não são mais expressivas do que antes; parece até mesmo que seja antes
o contrário e que não se deve confundir o aumento de um fato com o
acesso ao conhecimento que se tem dele. Tomamos consciência dessas
desigualdades e temos cada vez mais dificuldades para suportá-las. Eis aí
um efeito positivo da evolução do homem pela expansão de sua consciência.

Para o tratamento do problema, é mais uma vez pela expansão da


consciência que se chegará ao resultado. O que vamos encontrar no
fundo da consciência? Um sentimento, proveniente talvez do sistema
límbico, nasce no mais profundo do indivíduo, na parte inconsciente de
sua consciência. Até então só se fez menção desse sentimento como uma
das causas da Criação: o amor, evidentemente.

[ 54 ]
Alguns pensam que ele é de natureza divina, ao passo que outros o
consideram como sendo de natureza puramente sexual. Talvez seja então
nele que se cruzam matéria e espírito, que ele une e transcende? No
entanto, é ele que permite que nossos problemas, atuais e vindouros, sejam
solucionados, orientando nossa consciência na direção que convém. Agir
sempre no sentido do amor por outrem é provavelmente aquilo que dá
à espécie humana sua grandeza. Graças a ele, a espécie se orienta para a
paz e a harmonia. Imaginemos o advento abrupto de um mundo no qual
reinaria sobre todos o amor pelo outro. O efeito seria mágico: o conjunto
de nossos problemas seria resolvido imediatamente. Simples assim.
Sócrates, em O Banquete, de Platão, se pergunta sobre o amor e descobre
que, ao procurá-lo, aspira ao Belo e, portanto, ao Bem. Essa beleza é a
do corpo, da alma e do espírito, que permite alcançar a beleza absoluta
– a beleza divina. Essa é outra forma de exprimir aquilo que tentamos
partilhar aqui. Para Sócrates, o Belo, o Bom e o Bem estão intimamente
ligados. O amor de que falamos tanto é em geral feito apenas de palavras,
ao passo que ele precisa de atos e de provas. Estes consistirão em fazer o
belo e o bem, o que redunda em criar a harmonia em todos os planos do
ser e do grupo.

Para concluir…
O martinista busca se espiritualizar tomando consciência
sucessivamente dos diversos planos de seu ser: o corpo, a alma que o
anima e que contém seu intelecto e seus sentimentos, e por fim o espírito,
que os religa ao além. Agindo assim, ele modifica sua percepção de si
mesmo, dos outros, da natureza e de todo o universo. Ele se dá conta de
que é apenas uma ínfima parcela de um todo, com o qual ele se sente cada
vez mais em harmonia. Ele sente amor por alguém, depois por outros e
então, talvez, por esse Tudo do qual ele faz parte. Ele pode então esperar
atingir o Amor Universal – o agapè dos gregos –, que é o sentimento de
Deus por Sua criação e que as criaturas devem chegar a sentir por Ele
e entre elas, a fim de que a Criação cumpra seu objetivo. O amor por
outrem conduz ao amor divino, o que poderíamos traduzir, em termos
mais neutros, pela harmonia com o universo ou, na senda rosacruz, pela
Paz Profunda.

[ 55 ]
O objetivo é reencontrar o Amor Universal – agapè – e o caminho leva
a subir os degraus do amor humano, desde a satisfação da necessidade
física mais elementar até o sentimento de harmonia cósmica mais elevado.
Talvez seja isso o que se chama de “espiritualização da matéria”. Ela exige
as especulações intelectuais mais elevadas e as contemplações mais
pacíficas diante da beleza, tanto a material como a espiritual. Devemos,
portanto, nos equilibrar sempre entre razão e sentimento.

Quanto à evolução da espécie, salvo catástrofe causada pelo homem


– coisa que não deve ser descartada –, a humanidade pode, a mais ou
menos longo prazo, tornar-se um grande corpo complexo, como uma
gigantesca bactéria integrando cada um dos indivíduos que a compõem,
com sua consciência pessoal. O seu objetivo não seria poder, riqueza,
mercados financeiros ou produção de energia, como ocorre hoje. A
humanidade teria uma consciência muito mais expandida do que as dos
indivíduos, pois seria coletiva. Seria uma consciência passível de atingir
o universal e que talvez pudesse receber o nome de “Deus”. Nesse caso, a
finalidade da evolução seria a humanidade tornar-se Deus, de quem cada
ser humano teria consciência de fazer parte. O objetivo da Criação seria
então cumprido e o processo seria sem fim, através de uma infinidade de
mundos, pois o Criador é infinito.

A hipótese a se postular sustenta que a expansão do universo é uma


tentativa, pelo Criador, de expansão de Sua consciência no objetivo
de tomar consciência de Si mesmo graças ao Amor Universal. A vida e
a consciência que ela traz são oriundas disso, e o homem tenta tomar
consciência do Criador. É a única maneira que Ele tem de conseguir seu
objetivo: tomar consciência de Si, pois a criatura – o ser humano – é o
reflexo do Criador, tendo tomado distância para observá-lo. É dessa forma
que podemos interpretar o teto da Capela Sistina, no centro da qual o
dedo de Deus aponta para o dedo do homem, num esforço de ambos para
reunirem-se, conhecerem-se e, dessa forma, conhecer a si mesmo.

Ilustrações:
p.46, (montagem), William Blake, “HEAVEN”, Birmingham, City Museum
and Art Gallery;
p.51, Nicomedes Gómez, “A Árvore da Vida”.

[ 56 ]
Carta de Inspetor do Supremo Conselho da Ordem Martinista, n° 3
para o ano de 1897, com a assinatura e a fotografia de Papus.
(Extraída dos arquivos da TOM)
[4]

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