Eagleton. Teoria Da Literatura Uma Introducao

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TEORIA DA LITERATURA: ···


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UMA INTRODUÇÃO
Terry Eagleton

Tradução
WALTENSIR OUTRA

' ..

Martins Fontes
São Paulo 1994
Introdução:
,
o que e LiteraturaP

Se a teoria literária existe, parece óbvio que haja alguma coisj.


chamada literatura, sobre a qual se teoriza. Podemos começar, então,
por levantar a questão: o que é literatura?
Muitas têm sido as tentativas de se definir literatura. f. possí-
vel, por exemplo, defini-la como a escrita "imaginativa", no sentido
(y de ficção - escrita esta que não é literalmente verídica. Mas se
refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se
considera literatura, veremos que tal definição não procede. A lite-
ratura inglesa do séc. XVII inclui ~hakesQeare, Webster, Marvell e
Milton; mas compreende também os ensaios de Francis Bacon, os JJ,.
l
.J..

sermões . de John Donne, a autobiografia espirituai de Bunyan, e os


escritos de Sir Thomas Browne, qualquer que seja o nome que se
dê a eles. Eventualmente, ela poderia abranger o Leviathan, de Hob-
bes, e a History of the Rebellion , de Clarendon. A literatura francesa
do séc. XVII conta, além de Corneille e Racine, com as máximas de >"'Í-
La Rochefoucauld, com os discursos fúnebres de Bossuet, com
l
tratado de poesia de Boileau, com as cartas de Mme. de Sevigné à
sua filha, e com a filosofia de Descartes e Pascal. A literatura inglesa
do séc. XIX geralmente inclui Lamb (mas não Bentham), Macaulay
(mas não Marx) e Mill (mas não Darwin ou Herbert Spencer).
- , A distinção entre "fato" e "ficção", portanto, não parece nos
ser muito útil, e uma das razões para isto é a de que a própria dis-
tinção é muitas vezes questionável. Já se diss·e, por exemplo, . que a
oposição que estabelecemos entre verdade "histórica" e verdade "ar-

FA1ô - ...e , , ~
p
TEORIA LITERÁRIA
INTRODUÇÃO : O QUE E LITERATURA? J
2 1
. .. de modo algum se aplica às antigas sagas islandesas. No De fato , esta foi a definição de "literário" apresentada pelos
tfsllca • . sé XVI e princípios do séc. XVI 1, a palavra
in~lês de fins do c.
"
nove
quan
I" foi usada ao que p
f.' , .
to para os 1c1Ic1os, s
.
arece tanto para os acontecimentos reais
, , . d .
endo que até mesmo as noticias e Jorna
ser consideradas fatuais . Os romances e as
1 j formalistas russos, · ent~e ·os quais estavam Vítor Sklovski,. Roman
Jakobson, Osip Brik. Yury Tynyanov, Boris Eichenbaum e Boris
Tomashevski . Os formalistas surgiram na Rússia antes da revolução
bolchevista de 1917; suas idéias floresceram durante a década de
difi~i_lmen'.e poderialm mente fatuais, nem claramente fictícios: a dis- J 920. até serem eficientemente silenciadas pelo Stalinismo. Sendo um
not1c1as nao eram c ara . - 1·
. • f entre estas categorias simplesmente nao era ap 1- grupo de críticos militantes , polêmicos, eles rejeitaram as doutrinas
unçao que azemos . d d h" , •
•e
cada.· ertamen e
t Giºbdon achava que escrevia a ver a e 1stonca,
• . simbolistas quase místicas que haviam influenciado a crítica literária
.fosse este o sentimento dos autores do Genese; tais até então e, imbuídos de um espírito prático e científico, transferi-
e ta1vez tam bém , ., "fº - "
rém são lidas hoje como ' fatos por a 1guns, e como 1cçao ram a atenção para a. realidade material do texto literário em si.
obras, po , d" - I'
Newman sem dúvida achava que suas me 1taçoes teo o- À crítica caberia dissod~r arte e mistério e preocupar-se com a ma-
por ou 1rOS ; . . . . ., .
icas eram verdades, mas muitos leitores as consideram hoJe hte- neira pela qual os textos literários funcionavam na prática: a lite-
~tura". Além disso, se a "literatura" inclui muito da escrita "fatual''. ratura não era uma pseudo-religião, ou psicologia, ou sociologia, mas
também exclui uma boa margem de ficção. As histórias em quadrinhos uma organização particular da linguagem. Tinha suas leis específicas,

!
,J
l do Super-homem e os romances de Mills e Boon são ficção,, mas isso
não faz com que sejam geralmente considerados como literatura , e
muito menos como Literatura. O fato de a literatura ser a escrita
suas estruturas e mecanismos, que deviam ser estudados em si, e não
reduzidos a alguma outra coisa. A obra literária não era um veículo
de idéias , nem uma reflexão sobre a realidade social, nem a encarna-

~
"criativa" ou "imaginativa" implicaria serem a história , a filosofia ção de uma verdade transcendental : era um fato material, cujo fun-
.i e as c1enc1a naturais nao cnat1vas e destituídas de imaginação? cionamento podia ser analisado mais ou menos como se examina

f Talvez nos seja necessária uma abordagem totalmente diferente .


l Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou
uma máquina. Era feita de palavras, não de objetos ou sentimentos,
sendo um erro considerá-la como a expressão do pensamento de um

r
"imaginativa", mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. autor. O Eugênio Onegin, de Pushkin - observou certa vez Osip Brik
Segundo essa teoria, a literatura é a escrita que , nas palavras do com certa ousadia-. teria sido escrito mesmo que Pushkin não tivesse
crítico russo Roman Jakobson, representa uma "violência organizada vivido.
"f.., contra a fala comum". A literatura transforma e intensifica a lingua- Em sua essência , o formalismoJoi a aplicação da lingüística ao
gem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana. Se al- estudo da literatura: e como a lingüística em questão era dotipo
guém se aproximar de mim em um ponto de ônibus e disser: " Tu. formal, preocupada com as estruturas da linguagem e não com o que
noiva ainda imaculada da quietude", tenho consciência imediata de ela de fato poderia dizer, os formalistas passaram ao largo da análise
q_ue estou em presença do literário. Sei disso porque a tessitura. o do " conteúdo" literário (instância em que sempre existe a tendência
ntmo e a ressonância das palavras superam o seu significado abstrato de se recorrer à psicologia ou à sociologia) e dedicaram-se ao estudo
- ou, como os lingüistas diriam de maneira mais técnica existe uma da forma literária . Longe de considerarem a forma como a expressão
desconformidade
. entre Os s1gm• ºf"1cantes e os· s1gnif1cados
. . . ' Trata-se de do conteúdo , eles inverteram essa relação : o conteúdo era simples-
um 11 P_0 ~e _linguagem que chama a atenção · wna e exibe mente a " motivação .. da forma , uma ocasião ou pretexto para um
s_ua ex,1.51en:ia ~•teria! , ao contrano o que ocorre com frases tais
como Voce nao sabe .
tipo específico de exercício formal. O Dom Ouixole não é uma obra 1
que os motoristas de ônibus estão em greve?'" "sobre" o personagem do mesmo nome: o personagem é apenas um
artifício para se re unirem diferentes tipos de técnicas narrativas. Ani-
I. Ver M. 1 S1eblin K k .. mal Farm não seria para os formalistas uma alegoria do Stalinismo :
2. Ver L . d - ~mens IJ, The Saga Mind (Odense . 1973).
ennar 1. Davis "A S . 1 H. pelo contrário , o Stalinismo simplesmente ofereceria uma oportunidade
ria\ Disavowal in lhe E 1 'E r oc,a islory of Fac1 and Fic1ion: Au1ho-
l.itm11ure and So<:iet)'e:'/ ng ish Novel·, cm Edward W. Said (orgs. l.
a llmore e Londres , 1980) .
propícia à criação de uma alegoria. Foi essa insistência obstinada
que conquistou para os formalistas sua denominação depreciativa, a

l
p
TEORIA LITERARIA
INT RODUÇÃ O: O QUE f. l/TERATURA ? 5
4
. , us anta onistas. E embora eles não negassem que a nosso interesse por ela pode se intensificar. A história, como diriam
eles atnbmda por sei _ g m 8 realidade social - de fato alguns
. e uma re açao co . os formalistas, usa artifícios que funcionam como "entraves" ou
arte uvess . ente associados aos Bolcheviques - os for-
"retardamentos" para nos manter atentos; e na linguagem literária ,
deIes estavam . estreitam rovocadoramente, que essa re1açao - f ugta
· ao âm-
malistas afirmavam, P ~sses artifícios revelam-se claramente. Foi isso que levou Vítor Sklovski
b'110 do trabalho do crítico. . , . a observar maliciosamente, referindo-se ao Tristram Shandy de Lau-
. começaram por considerar a obra hterana como
Os forma 11stas .. ·r· . " · lar d e rence Sterne - um romance que cria tais entraves ao desenvolvi-
•- · menos arbitrária de arlt 1c1os , e só mats mento de sua trama , que mal chega a começar - , que se tratava
uma reumao mais ou . d .
artifícios como elementos relac10na os entre s1 : do " romance mais típico da literatura mundial".
passaram a ver esses 1 O " ·r· . " .
.. - " d tro de um sistema textual globa . s arll 1c1os m-
funçoes en é . . , . . Os formalistas, portanto, consideravam a linguagem literária como
cluíam som, imagens, ritmo, sintaxe, m Inca , rima , tecn_1ca~ ~arrall-
·incluíam todo o estoque de elementos hteranos for- um conjunto de desvios da norma, uma espécie de violência lingüís-
vas; na verdade , tica: a literatura é uma forma "especial" de linguagem , em contraste
mais; e O que todos esses element?,s tinha_~ ~m ~o~um era o .
com a linguagem "comum", que usamos habitualmente. Mas para
efeito de "estranhamento" ou de desfam~lt~nza~ao . A espec1f1c1-

ldade da linguagem literária, aquilo que a d1stmgu1a de outras forma s se identificar um desvio é necessário que se possa identificar a norma
de discurso, era o fato de ela "deformar" a linguagem comum de da qual ele se afas ta Embora a " linguagem comum" seja um conceito
várias maneiras. Sob a pressão dôs artifícios literários, a linguagem muito ao gosto de certos filósofos de Oxford, a linguagem comum dos
comum era intensificada, condensada, torcida , reduzida , ampliada , filósofos de Oxford pouca relação tem com a linguagem comum
invertida. Era uma linguagem que · se "tornara estranha", e graças dos portuários de Glasgow. A linguagem usada por esses dois grupos
a este estranhamento, todo o mundo cotidiano transformava-se , subi- sociais para escrever cartas de amor difere da que é habitualmente
tamente, em algo não familiar. Na rotina da fala cotidiana , nossas empregada na conversa com o vigário de sua paróquia. A idéia de
percepções e reações à realidade se tornam embotadas, apagadas, ou que existe uma única )inguagem "normal" , uma espéçje de moeda
como os formalistas diriam, "automatizadas". A literatura, impon- corrente usada igualmente por todos os membros da sociedade. é uma
do-nos uma consciência dramática da linguagem, renova essas reações ~ o. Qualquer linguagem em uso consiste de uma variedade muito
habituais, tomando os objetos mais " perceptíveis" . Por ter de lutar complexa de discursos, diferenciados segundo a classe, região, gêne-
com a linguagem de forma mais trabalhosa, mais autoconsciente do ro, situação, etc., os quais de forma alguma podem ser simplesmente
que o usual, o mundo que essa linguagem encerra é renovado de unificados em uma única comunidade lingüística homogênea .
1alguns consideram norma , para outros poderá significar desy jg· usar
forma intensa. A poesia de Gerard Manley Hopkins oferece um exem-
plo particularmente claro do que se afirmou . O discurso literário "ginnel" (beco) em lugar de "alleygnay" (travessa) pode ser poético
toma estranha, aliena a fala comum; ao fazê-lo, porém , paradoxal- em Brighton, mas constitui linguagem comum em Barnsley. Até mes-
mente nos leva a vivenciar a experiência de maneira mais íntima mo o texto mais "prosaico" do séc. XV pode nos parecer "poético"
~ais mtensa. Estamos quase sempre respirando sem ter consciênci ~ hoje devido ao seu arcaísmo. Se nos deparássemos com um fragmento
d'.sso; como a linguagem, o ar é, por excelência, o ambiente em que escrito isolado de alguma civilização há muito desaparecida , não po-

~:os
vivemos. Mas se de súbito ele se tornar mais denso, ou poluído,
~orçados a renovar o cuidado com que respiramos e o resul-
;a~ ~t,ssoL pode se~ a intensificação da experiência de 'nossa vida r
deríamos dizer se se tratava ou não de "poesia" apenas pelo exame
que faríamos dele , já que não teríamos acesso aos discursos "comuns"
daquela sociedade; e mesmo se uma pesquisa revelasse posteriormente
ena · emos o bilhete escrito • que esse texto fosse um " desvio" da norma, ainda assim não ficaria
atenção à sua e . por um amigo, sem prestarmos muito
1
s rutura narrativa ; mas se uma história se interrompe provado que se tratava de poesia, pois nem todos os desvios lin-
e recomeça, p~ssa constantemente de um nível güísticos são poéticos. A gíria , por exemplo. Um simples passar de
e retarda O chmax para nos man narrativo para outro, olhos sobre o texto não se ria suficiente para dizermos que não se
a consciência de com é ter ~m suspense, adquirimos então
0 e1a construida, ao mesmo tempo em que tratava de um excerto da literatura " realista", se não dispuséssemos
.
r 6

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dc maiores ,n ormaç

Nao é que os o
·
Eles recon hec1am que
-
menro escrito no seio da sociedade em ~uestao.
TEORIA L/Tf.RARI A

ões acerca de sua real função , enquanto frag-


-
.
( nnalistas russos nao compreendiam tudo isso.
.
.
. ..
..
as nonnas e os desvios se mod1f1cavam de um
. ,,
.

contexto WÇial _oli. bistórwo · para_-0.utro - que . poesia , ~esse sen- I_.
INTRODUÇÃO : O QUE E LITERATURA ?

mente dizer isso num bar, sem provocar a admiração dos outros pela

o fazem é, na realidade, considerar toda a literatura como poesia.


De fato, quando os formalistas trataram da prosa, simplesmente es-
tenderam a ela as técnicas que haviam utilizado para a poesia. De
7

nossa habilidade literária . Pensar na literatura como os fonnalistas1


J
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nde .de· ndsiS localização' num da~o momento. _/1. estranhe-
.. . . 1 . f I' . t d . um modo geral ,- porém, considera-se que a literatura contenha muitas
za" de um texto não 'é' garantia' dé -que .e e sempre o , em · o a parte , oÍitras coisas alem da poesia - por exemplo, obras realistas ou natu-
"estranho": era-0 apenas eni contraposiç?~ a um certo pano de fundo ralistas que não são lingüisticamente autoconscientes, nem constituem
lingüístico normativo, e se este s~ mod1f1~ava,' _um _tal fragmento es- uma realização particular em si mesmas. Por vezes, um estilo é con-
crito poderia deixar de ser considerado ltterano. Se todos usassem siderado " bom" precisamente porque não atrai sobre si mesmo uma
, ~.J frases como "Noiva imaculada da quietude" numa conversação corri- atenção indevida: admiramos sua simplicidade lacônica ou sua sobrie-
" queira de bar, esse tipo de linguagem poderia deixar de ser poéti co. dade. E o que dizer das piadas, dos slogans e refrões das torcidas
Em outras palavras, para os formalistas , o caráter " literário" advinha de futebol , das manchetes de jornal, dos anúncios, que muitas vezes
das •relações diferenciais entre um tipo de discurso e outro, não sen- são verbalmente exuberantes, mas que, de um modo geral, não são
] do, portanto, uma característica perene. Eles não queriam definir a classificados como literatura?
"literatura", mas a "literaturidade" - os usos especiais da lingua- Um outro problema concernente ao argumento da "estranheza"
gem -, que não .apenas podiam ser encontrados em textos " literá-

'jr
é o de que todos os tipos de escrita podem , se trabalhados com a
• rios", mas também em muitas· outras circunstâncias exteriores a eles. devida engenhosidade, ser considerados "estranhos". Veja-se uma afir-
Quem acredita que a "literatura" possa ser definida por esses usos ' mação prosaica, perfeitamente clara, como a que se encontra por
especiais da linguagem tem de enfrentar o fato de que há mais metá· vezes no metrô: "Cachorros devem ser carregados na escada rolante",
loras na linguagem usada habitualmente em Manchester do que na Isso talvez não seja tão claro quanto pode parecer à primeira vista:
poesia de Marvell. Não há nenhum artifício "literário" - metoní- significará que nós temos de carregar um cachorro na escada rolante?
-
li~ '?ia, sinédoque, litote, quiasma, etc . . . - que não seja usado inten-
sivamente no discurso diário.
Ainda assim, os formalistas achavam que a essência do literá rio
Seremos impedidos de usá-la se não encontrannos algum vira-lata
para tomarmos nos braços, antes de subirmos ou descermos? Muitos
avisos, aparentemente claros, encerram ambigüidades semelhantes:
era o "tomar estranho" . Eles apenas relativizavam esse uso da lin- "Coloque o lixo no cesto" , por exemplo, ou a placa de sinalização
guagem, vendo-o como uma questão de contraste entre um tipo de de uma estrada inglesa que diz "Saída", lida por um americano da
1~ discurso e outro. Mas e se no bar eu ouvisse alguém dizer na mesa Califórnia. Mesmo se deixarmos de lado tais ambigüidades pertur-
ao _lado da minha : "Essa caligrafia é tremendamente floreada !". badoras, certamente é óbvio que o anúncio do metrô poderia ser lido

J
Q
Ser,~ uma linguagem literária, ou não-literária? Na verdade , trata-se
de linguagem "literária", pois vem do romance A Fome de Knut
Hamsun . _Mas ~mo poderia eu saber que é literária? Aíin~I de con-
como literatura. Poderíamos nos deixar levar pelo staccato abrupto,
ameaçador, dos primeiros monossílabos ponderosos; poderíamos sur-
preender nossa mente , no momento em que ela se deparasse com a

j~ tas, ela nao ex,ge que nenhum t -


enquanto desempenho verb I U
. .
. 1 •
a a ençao part,cu ar lhe seia dispensada
d
a • ma as respostas a essa pergunta
~ria dizer que a frase provém do romance A Fome, de Knut Hamsun .
parte de um texto que leio "f' - "
rica alusão suscitada pelo vocábulo "carregados", divagando entre res-
sonâncias que sugerem o salvamento de cães coxos; e talvez pudés-
semos até mesmo detectar na própria melodia e inflexão da palavra
"rolante", uma alusão ao movimento de subir e descer da coisa em
um u " como icçao , que se anuncia como
f assim ropomadn~ ' qoue pode fazer parte do currículo universitário , e si. Tal exercício pode ser infrutífero, mas não será significativamente

r
r ,ante. contexto most é . , . mais infrutífero do que pretender ouvir o entrechoque dos sabres na
gem cm si não t h ra-me que hterano , mas a lingua-

t
1
inga de outros ;i~ ne~ u;a propriedade ou qualidade que a dis-
s e •scurso, tanto que poderíamos perfeita•
descrição poética de um duelo, e pelo menos, tem a vantagem de
sugerir que a " literatura" pode ser tanto uma questão daquilo que as
TEORIA LlTERARIA
i~ INTRODUÇÃO : O QUE E LITERATURA? ,i_

H
8
fazem com a escrita, como daquilo que a escrita faz com . ~, importante para o efeito geral. Contudo, mesmo em se considerando
pessoas .
as pessoas. • · d · i que o discurso "não-pragmático" é parte do que se entende por "lite-
Mas mesmo que alguém lesse o aviso dessa_ mane1r~, am a assim ratura'', segue-se dessa "definição" o fato de a literatura não poder
seria uma questão de lê-lo como se fosse poesia, que e apenas uma ser, de fato, definida "objetivamente". A definição de literatura fica X

'j
/
parte do qUe a literatura comumente abrange. Vamos,,, portanto,
. exa- 6: dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natu-
minar uma outra maneira de "ler erroneamente o av1s~, que nos 11 reza daquilo que é lido. Há certos tipos de escritos - poemas, peças
de levar um pouco mais além em nossa análise. Imaginemos um de teatro, romances - que, de forma claramente evidente , preten-
:bedo tarde da noite, segurando-se no corrimão da escada rolante Ó dem ser "não-pragmáticos" nesse sentido, mas isso não nos garante J1
e que 'lê o aviso com dificultosa atenção durante vários minutos Ti que serão realmente lidos dessa maneira. Eu poderia muito bem ler
para depois dizer a si mesmo: "Como é verdade!" Que tipo de erro a descrição que Gibbon faz do império romano não porque esteja
se verifica neste caso? O que o b.êbedo faz é considerar o aviso como , suficientemente equivocado para achar que ela será uma fonte fide-
uma espécie de afirmação dotada de uma significação geral, até mes- digna de informações sobre a Roma antiga, mas porque gosto do
mo cósmica. Aplicando certas convenções de leitura às suas palavras, estilo da prosa de Gibbon , ou porque me agradam as imagens da
ele as elogia sem relacioná-las com o seu contexto imediato, genera- corrupção humana , qualquer que seja a sua fonte histórica. Ma§ eu
lizando-as além de sua finalidade pragmática e dando-lhes uma sig- poderia ler o poema de Robert Burns porque não sei - supondo-se

l
nificação mais ampla e provavelmente mais profunda. Isto sem dú- que eu fosse um horticultor japonês - se a rosa vermelha floresceu
vida parece ser uma operação envolvida naquilo que as pessoas cha- na Inglaterra do séc. XVII 1. Isso, pode-se dizer, não significa ler Burns
mam de literatura. Quando o poeta nos diz que seu amor é como como "literatura" : mas será que minha leitura dos ensaios de Orwell
uma rosa vermelha, sabemos, pelo simples fato de ele colocar em como literatura só será possível se eu generalizar o que ele diz sobre
,'t verso tal afirmação, que não lhe devemos perguntar se ele realmente a guerra civil espanhola, interpretando-o como um tipo de observa-
teve uma namorada que, por alguma estranha razão, lhe parecia ser • ção cósmica sobre a vida humana? Se é certo gue muitas das obras
"{ 1
t
semelhante a uma rosa. Ele nos está dizendo alguma coisa sobre as estudadas como literatura nas instituições acadêmicas foram •·cons-
mu~heres e sobre o amor em geral. Poderíamos dizer, portanto, que ir;;'ídas'' para st:rem lidas como literatura. também é certo gue muitas
· a hteratura é um discurso "não-pragmático"; ao contrário dos ma- não o foram . Um segmento de texto pode começar sua existência
, nuais de biologia e recados deixados para o leiteiro ela não tem como his1ória ou filosofia , e depois passar a ser classificado como
-..? nenhuma finalidade prática imediata, referindo-se apen~s a um estado literatura ; ou pode começar como literatura e passar a ser valorizado
j ~i:al de coisas. _Por vezes, ma~ nem sempre, ela pode empregar uma por seu significado arqueológico. ~ uns textos nascem literários, ou-
. ~uagem pecuhar como se quisesse tornar evidente esse fato - para tros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é im-
1 in dicar que se trata de uma maneira de falar sobre a mulher e não posta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante
f do que o seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do

t\
sobre_ alguma mulher da vida real em particular. Esse enfo~ue na
maneira de falar, e não na realidade daquilo de que se fala é por texto, mas o modo elo ual as essoas o consideram. Se elas deci-
vezes considerado como u · d' • d ' irem que se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será
. . ma m 1caçao o que entendemos por lite-
ratura: uma espécie de l' literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado.
que ra1a de s1. mesma. inguagem auto-referencial, uma linguagem ;,<. Nesse sentido, podemos pensar na li teratura menos como uma
Mas também essa d f' · • d 1. qJJalidade inerente, ou como um conjunto de qualidades evidenciadas
tre t . e imçao a 1teratura encerra problemas En-
ou ras coisas teria sido · por certos tipos de escritos que vão desde Beowulf até Virginia
que seus ensai'o ' d uma surpresa para George Orwell saber
s evem ser lidos com0 , . Woolf, do que como as várias maneiras pelas quais as pessoas se 1\
nados fossem m . se os t6picos por ele exam1-
1 relacionam com a escrita. Não seria fácil isolar, entre tudo o que \
ll minou. Em gra:;:s ~po~tant~s do que a maneira pela qual os exa- se chamou de ''literatura", uin conjunto constante de características
ij o valor verídico e par~ .ªq~ilo que é classificado como literatura,
ª re evancia prática do gue é dito é considerado inerentt:s. Na verdade. seria tão impossível quanto tentar isolar uma

h
TWR<A LITCRA'IA
INTRODUÇAO : O QUE E: LITERATURA ?
11

" ~ i c a c~racterísti;,ª que _identificasse todos os tipos de jogos. Portanto, ainda não descobrimos o segredo que faz com que
Não existe uma essencia da literatura. Qualquer fragmento de es- Lamb . Macaulay e Mill sejam literatura, mas não . falando em ter-
cri ta pade ser lido "não-pragmaticamente", se é isso o que signífic mos gerais , Bentham, Marx e Darwin . Uma resposta simples talvez

j ler um texto como literatura. assim como qualquer escrito pode se:
!~do "poeticamente". Se examino o horário dos trens não para des-
cobrir uma conexão, mas para estimular minhas reflexões gerais sobre
seja o fato de os três primeiros serem exemplos de "escrever bonito",
ao passo que os três últimos. não. Essa resposta tem a desvantagem
de ser em grande parte inverídica, pelo menos em minha opinião,
a velocidade e complexidade da vida moderna, então poder-se-ia dizer mas encerra a conveniência de sugerir que, de modo geral , as pessoas
que o estou lendo como literatura. John M. Ellis argumentou que a consideram como "literatura·• a escrita que lhes parece bonita. Uma
palavra "literatura" funciona como a palavra "mato": o mato não objeção óbvia é a de que se tal definição tiwsse validade geral, não
é um tipo específico de planta, mas qualquer planta que , por uma haveria a " má literatura". Posso achar que Lamb e Macaulay são
razão ou outra, o jardineiro não quer no seu jardim.ª "Literatura" sobrestimados, mas isso não significa necessariamente que eu deixe
talvez signifiqu~ exa_tamente o oposto: qualquer tipo de escrita que. de considerá-los como literatura. Podemos achar Raymond Chandler
por alguma razao, seia altamente valorizada. Como os filósofos diriam "bom em seu género", mas não exatamente literatura. Por outro lado,
"literatura" e "mato" são lermos antes fu11cio11ais do que ontológico/ se Macaulay fosse um autor realmente ruim - se não tivesse nenhu-
ma capacidade de percepção da gramática. e parecesse interessado
falam do que fazemos , não do estado fixo das coisas. Eles nos falam
apenas em ratos brancos - sua obra poderia ser considerada não-lite-
do papel de um texto ou de um cardo num contexto social suas
rária, não · chegando nem mesmo a ser má literatura. Os julgamentos
relações com o ambiente e suas diferenças com esse mesmo ambiente
de valor parecem ter, sem dúvida , muita relação com o que se con-
a maneira pela qual se comporta. as finalidades que lhe podem se;
sidera literatura , e o que não se considera - não necessariamente
dadas ..e ~s práticas h~manas que se acumularam à sua volta. "Li te- no senlldo de que o estilo tem de ser "belo" para ser literário, mas
U ratura e, nesse sentido, uma definição puramente form al, vazia . sim de que tem de ser do tipo considerado belo: ele pode ser um •
• Mes~o se prete~dermos _que ela seja um tratamento não-pragmático exemplo menor de um modo geralmente considerado como valioso.
f da l_mguagem. amda assim não teremos chegado a uma " essência" Ninguém diria que o bilhete de ônibus é um exemplo menor de
1. da.. ,literatura
. • porque isso Iam b,em acontece com outras praticas , . .
lm- literatura, mas alguém poderia dizer que a poesia de Ernest Dowson
o.n gmSlic~s: _como as piadas. De qualquer modo, está longe de ser clara constitui tal exemplo. A expressão " bela escrita", ou belles lettres ,
Ili_ ª. P?,ssib,1.h~ade ~'.stinguirmos nitidamente entre as maneiras " prá- é ambígua nesse se ntido : denota uma espécie de escrita em geral
tica e nao-pratlca de nos reacionarmos 1 · com a linguacrem . A lei- muito respeitada, embora não nos leve necessariamente à opinião de
'-- lura
'- leit de d um romance
. ' elta por prazer, evidentemente seº difere da
f . que um determinado exemplo dela é " belo". ,,
L cl 'f' ura e um .sinal rodo ·, · em b usca de informação ; mas como
viano Com essa ressalva, a sugestão de que " literatura" é um tipo
l ass1
am r icar a 1 enura de . um manua I de b'1ologia . que tem por objetivo de escrita altamente valorizada , é esclarecedora. Contudo , ela tem

, 1
l da piar
r nossos conhecimentos?
mguagem,
ções ab ou
.
nao? ·. .Em
so1utamente praticas com f
m
· Sera, isso
·1
. um tratamento "pragmático"
. d d
m as socie a es a literatura teve fun ·
• . .
uma conseqiíência bastante devastadora. Significa que podemos aban-
donar, de uma vez por todas , a ilusão de que a categoria " literatura"
é " objetiva", no sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa
ção entre "prático" ., _ · , . ~. unçao rehg1osa ; a nítida distin·

J
- e nao-prat1co talve , · pode ser litera tura, e qualquer coisa que é considerada literatura , inal-
, ciedade como a no . . z so se1a possível numa so·
- ssa, na qual a literat d · terável e inquestionavelmente - Shakespeare, por exemplo - , pode
lão prática. Podere . ura e1xou de ter grande fun-
. . mos estar oferecendo d . . _ deixar de sê-lo. Qualquer idéia de que o estudo da literatura é
sentido do "literá • " , como efm1çao geral um
no que e, na verdade , h 1stoncamente' · , . .
espec1f1co (/ o estudo de uma entidade estável e bem definida , tal como a ento-
mologia é o estudo dos insetos. pode ser abandonada como uma
quimera . Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da
l. The rlteory o/ L '
pp. 37-42. llerary Criticism: A Log,cu/
. Ana/ysis (Berkeley. 1974) . lit era tura é ficcional, e parte não é ; a literatura pode se preocupar

1
L__
TEORIA LITER ÁRIA
12 INTRODUÇJ.O: O QUE E LITERATURA? 13
. tange ao aspecto verbal, mas muita retórica
consigo mesma no que 'd d 1 - cupava-se com a razão pela qual a arte da Grécia antiga mantinha
elabora da nao - é l'teratura
1 · A literatura, no senti
. o e uma co eçao •
real e inalterável, distinguida por certas propne- um "encanto eterno", embora as condições sociais que a tinham pro-
b
de o ras e d Valor ~-- d' ·1·
- existe · Quando • deste duzido há muito tivessem desaparecido. Mas como poderemos saber
dades comuns, nao ,, ponto . em 1ante, eu . uu I· se ela continuará sendo "eternamente" encantadora, já que a história
1 zar as palavras "literário" e '~itera~ura _ neste hvro, eu o fare'. com
8 reserva de que tais expressoes nao sao de fato as melhores, mas
ainda não terminou? Imaginemos que, graças a alguma hábil pesquisa
não dispomos de outras no momento: . _ .
A dedução, feita a partir da defm1çao de ht~ra~ura como . uma
, Q
'::i
arqueológica, descobríssemos muito mais sobre o que a antiga tragé-
dia grega realmente significava para seu público original, se reco-

escn'ta altamente valorativa, de que ela .não constltm. , uma


estável resulta do fato de serem notonamente vanave1s os JUIZOS
. entidade
. , j nhecêssemos que tais interesses estão muito distantes dos nossos, e
começássemos a reler esta peça à luz desse novo conhecimento. Como
,JI conseqüência, poderíamos deixar de apreciá-las. Poderíamos passar
de val~r. "Os tempos se modificam, os valores, não", diz o anúncio
de um jornal, como se ainda acreditássemos na necessidade de se
..:Í a ver que delas gostávamos porque involuntariamente as líamos à
, luz de nossas próprias preocupações; quando tal interpretação tornou•
matarem bebês que nascem defeituosos, ou de se exporem doentes
se menos possível, o drama deixou de ter significado para nós.
mentais à curiosidade pública. Assim como uma obra pode ser con•
siderada como filosofia num século, e como literatura no século se-
~f o fato de sempre interpretarmos as obras literárias, até certo
\) ponto, à luz de nossos próprios interesses - e o fato de, na ver•
guinte, ou vice-versa, também pode variar o conceito do público sobre
dade, sermos incapazes de, num certo sentido, interpretá-las de outra
o tipo de escrita considerado como digno de valor. Até as razões
maneira - poderia ser uma das razões pelas quais certas obras lite-
que determinam a formação do critério de valioso podem se modifi-
car. Isso, como disse, não significa necessariamente que venha a
J I rárias parecem conservar seu valor através dos séculos. Pode acon-
tecer, é claro, que ainda conservemos muitas das preocupações ine-
ser recusado o título de literatura a uma obra considerada menor:

1
rentes à da própria obra, mas pode ocorrer também que não esteja-
ela ainda pode ser chamada assim, no sentido de pertencer ao tipo mos valorizando exatamente a "mesma" obra, embora assim nos pa•
de escrita geralmente considerada como de valor. Mas não significa
reça . O "nosso" Homero não é igual ao Homero da Idade Média,
que o chamado "cânone literário", a "grande tradição" inquestionada
da "literatura nacional", tenha de ser reconhecida como um constru•
H nem o "nosso" Shakespeare é igual ao dos contemporâneos desse
autor. Diferentes períodos históricos construíram um Homero e um

f
to, modelado por determinadas pessoas, por motivos particulares, e -l Shakespeare "diferentes", de acordo com seus interesses e preocupa-
num determinado momento. Não existe uma obra ou uma tradição ções próprios, encontrando em seus ~extos elem ntos a serem valori-
literária que seja valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou 7
zados ou desvalorizados, embora nao necessanamente os mesmos.
'1-. se venha a dizer, sobre isso. "Valor" é um termo transitivo: signi- Todas as obras literárias, em outras palavras, são " reescritas", mesmo
fica ~udo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas
v que inconscientemente, pelas socie~ade~ que ~s lêem; ..na ve_rdad~,
em situações específicas, de acordo com critérios específicos e à luz I\ não há releitura de uma obra que nao seia lambem uma reescntura .
de determi~ados objetivos. Assim, é possível que, ocorrendo uma Nenhuma obra , e nenhuma avaliação atual dela , pode ser simplesmen•
~ransformaçao. bastante profunda em nossa história, possamos no te estendida a novos grupos de pessoas sem que , nesse processo, sofra

l
-/- uturo produzir uma sociedade incapaz de atribuir qualquer valor
a Sha~espeare. Suas obras passariam a parecer absolutamente estra-
nhas: impreg~ad_as de modos de pensar e sentir que essa sociedade
considerasse hmitados ou irrelevantes Em tal s1'tuaç-ao Sh k
modificações , talvez quase imperccptíveis. E essa é uma das razões
pelas quais o ato de se classificar algo como literatura seja extre-
mamente instável.
não t · · 1 · , a espeare Não quero dizer que seja instável porque os juízos de valor se-
. ena mais va or do que muitos grafitas de hoje. E embora para
munos essa condição social 0 jam "subjetivos". De acordo com tal interpretação, o mundo é divi-
creio que seria dogn13 t' p ~sa pare_cer tragicamente empobrecida, dido entre fatos sólidos, "exteriores" , como a estação ferroviária
ela resultasse de um ismo
. nao
. considerar a poss1'b'l'd
1 1 ad e de que Grand Central, e arbitrários juízos de valor " interiores", como gos-
1 enr1quec1mento humano geral. Karl Marx preo-
tar de bananas ou achar que o tom de um poema de Yeats vai da

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1
14
TEORIA LITERARIA

fanfarronice defensiva até a resignação sombria. Os fatos são públi-


cos e indiscutíveis, os valores são privados e gratuitos. Há uma dife-
\ rença óbvia entre descrever um fato, como "Esta catedral foi cons-
INTRODUÇÃO : O OVE E LITERATURA ?

um punhado de pessoas teimosas se apegam à crença de que a data


de construção de um edifício seja significativa, e minha afirmação
seja tomada como uma maneira codificada de assinalar essa posição.
15

' 1 truída em 1612". e registrar um juízo de valor, como "Esta catedral Todas as nossas afirmações descritivas se fazem dentro de uma rede,
é um exemplo magnífico da arquitetura barroca". Vamos supor, po- freqüentemente invisível. de categorias de valores; de fato, sem essas
it' rém, que a primeira afirmação tenha sido feita a um visitante es- categorias nada teríamos a dizer uns aos outros. Não que tenhamos
j4: trangeiro que percorre a Inglaterra , e o tenha intrigado muito. Por alguma coisa chamada conhecimento fatual que possa ser deformado
que, ele poderia perguntar, você insiste em mencionar as datas da cons- por interesses e juízos particulares. embora isso seja perfeitamente
trução de todos esses edifícios? Por que essa obsessão com as ori- possível ; ocorre , porém , que sem interesses particulares não tería-
gens? Na sociedade em que vivo, ele poderia continuar, não mante- mos nenhum conhecimento. porque não veríamos qualquer utilidade
mos um registro desses acontecimentos; nossos edifícios são classifi- em nos darmos ao trabalho de adquirir tal conhecimento. Os inte-
cados de acordo com sua posição em relação ao noroeste ou ao resses são constitutivos de nosso conhecimento, e não apenas precon-
sudeste. Isso demonstraria parte do sistema inconsciente de juízos de ceitos que o colocam em risco. A pretensão de que o conhecimento
valor que sublinha minhas próprias descrições. Esses juízos de valor deve ser "isento de valores" é, em si, um juízo de valor.
não são necessariamente do mesmo tipo que "Esta catedral é um Pode ocorrer que a preferência por bananas seja uma questão
exemplo magnífico da arquitetura barroca" , mas ainda assim são juí- meramente particular, embora tal fato seja questionável. Uma análise
z?s de v~lor, e nenhuma afirmação relacionada com fatos pode evi- exaustiva de minhas preferências por alimentos provavelmente reve-
ta-l~s. Afmal, as afirmações sobre os fatos são afirmações que pres- laria a profunda relevância que elas têm para certas experiências
s~poe'." alguns juízos questionáveis: os juízos de que tais afirmações formativas de minha infância. para as relações com meus pais e ir-
sao dignas de serem feitas, talvez mais dignas do que algumas ou- mãos e para muitos outros fatores culturais que são tão sociais e
tras, de que eu sou a pessoa indicada para fazê-las e talvez a pessoa '"não-subjetivos" quanto as estações ferroviárias. Isso é ainda mais
capaz de_ assegurar sua veracidade, de que você é a pessoa indicada válido no que diz respeito à estrutura fundamental de crenças e
pa~a faze-las.' de que se obtém algo de útil com essa afirmação, e interesses que me envolve desde o nascimento, como membro de
8 ~s1 m por diante. Uma conversa num café pode transmitir informa-
uma determinada sociedade, tais como a convicção de que me devo
çao, mas o ~ue predomina nesse tipo de conversa é o um forte ele- manter em boa saúde. de que as diferenças dos papéis sexuais têm
mento_ daquilo que os lingüistas chamariam de "fa'tº1co" , uma preo- suas raízes na biologia humana . ou de que os seres humanos são
cup~çao com o ato da comunicação em si mesmo. Ao conversar com mais importantes do que os crocodilos. Podemos discordar disso ou
voce.;obred' as condições do tempo , estou assinalando .também que daquilo, mas tal _,discordân~'.ª só é possível porque partilhamos de
const ero tgna de valor a conversa com você , que o considero uma certas maneiras _prnf u_l!da~ _ de ver e valorizar. que estão ligadas
pessoa com quem vale a pena conversar - . .
que não estou inclinad f '. _que nao sou ant1-soc1al e \ à nossa vida soc ial . e que não poderiam ser modificadas sem trans-

j
rência pessoal. o a azer uma cnt1ca detalhada de sua apa- formarem ~ a . Ninguém me castigará seriamente por não gostar
de um dete rminado poema de Donne. mas se. em certas circunstâncias,
Nesse sentido, não há possibilidade d
totalmente desinteressada N t e se fazer uma observação eu arg umentar que Donne não é literatura , eu correria o risco de
· a ura Imente O fato d . perder meu emprego . Sou livre para votar a favor dos trabalhistas
d ata em que uma catedral f01. construida,' e se mencionar a
é cons d d
cu 1tura, como uma afirmação . . . t era o, em nossa ou dos conse rvadores, mas se eu tentar agir com a convicção de que
opinião sobre sua arquitetu ~ais tmparc1~l do que expressar uma essa escolha apenas mascara um preconceito mais profundo - o
situações nas quais a afi r~ , mas _podenamos também imaginar preconceito de que o significado da democracia limita-se a colocar
" rmaçao antenor est· . . ..
va 1or do que a segunda Tal "b ana mais carregada de uma cruz num voto de tantos em tantos anos - então , em certas
· vez arroco" " 'f' ,.
trans formado mais ou m . • . e magm tco se tenham circunstâncias excepcionais. eu poderia acabar na cadeia.
enos em smomm os , ao passo que apenas
TEORIA LITERARIA
16 INTRODUÇÃO : O QUE E LITERATURA? 17
A estrutura de ~ • em grande parte ~ . que informa e
uma questão de culpa: não há reação crítica que não tenha tais
enfatiza nossas afirmações fatuais , é parte do que entendemos por
ligações. e assim sendo, não há nada que se assemelhe a um julga-
"ideologia". Por "ideologia" quero dizer , aproximadamente, a ma-
mento ou interpretação crítica puramente "literária". Se alguém é
neira pela qual aquilo que dizemos e no que acreditamos se rela- culpado, será 1. A. Richards, que como um professor de Cambridge,
ciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da
sociedade em que vivemos. Segue-se, dessa grosseira definição, que
,
1 , jovem, branco, de classe média alta, foi incapaz de objetivar um
contexto de interesses do qual ele partilhava em consideráveis pro-
nem todos os nossos juízos e categorias subjacentes podem ser pro- porções, sendo por isso incapaz de reconhecer plenamente que as
veitosamente considerados ideológicos. Temos a convicção profunda diferenças locais, "subjetivas", de avaliação, funcionam dentro de
de que avançamos para o futuro (pelo menos uma outra sociedade uma maneira específica, socialmente estruturada, de ver o mundo,
acha que está recuando para o futuro) , mas embora essa maneira Se não é possível ver a literatura como uma categoria "obje- \
de ver possa se relacionar de modo significativo com a estrutura de tiva", descritiva, também não é possível dizer que a literatura é ape-
poder de nossa sociedade, isso necessariamente não ocorre sempre e nas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. Isso
e'.11 tod? a parte. Não ente_ndo p?r "ideologia" apenas as crenças que porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor:
tem ra1zes profundas, e sao munas vezes inconscientes; considero-a eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão
mais particularmente, como sendo os modos de sentir, avaliar, per'. evidentes e inabaláveis quanto o edifício do Empire State. Portanto,
cebe~ e acreditar, que se relacionam de alguma forma coma manu- o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe
te_nçao_ e reprodução ~o poder social. O fato de que tais convicções da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a 1
nao sao apenas capnchos particulares pode ser ilustrado com um constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles
exemplo literário. próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se refe-


. Em seu famoso estudo Practical Criticism (1929) o crítico I A rem, em última análise, não apenas ao gosto particular mas aos pres- \ ?'-
vR1cha r.ds, ,d Cambn'd ge, procurou demonstrar como' os juízos · de· supostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder
alor hteranos podem ser caprichosos e subjetivos distribuindo aos sobre outros. Se tal afirmação parece exagerada, ou fruto de um
seus alunos , · d • preconceito pessoal, podemos testá-la através de uma exposição sobre
autores e du_mda slehne e poemas , sem os títulos e os nomes dos 1'
1 pe m .o-d es que os ava r13ssem. o s Julgamentos
·

h
foram muito resultantes a ascensão da "literatura" na Inglaterra.
tas b . varia os: poetas consagrados pelo tempo receberam no-
porém
a1xas e autores obscuros f
aspecto . .
1 .
oram e ogiados. Na minha opinião, ~u,,,J.c.,_..-...L-~
' O mais interessante d ·
não percebido pelo p . R' h esse pro1eto, e ao que parece e.( Á~Lo~
6 rd 0
.>I~ co~s~~so de avaliaçõ:s pi:~ont ª s, foi_
"l' op1moes. Lendo as
de demonstrar c?mo um
. ·- dc1entes esta presente nessas diferentes
/\" ....__c.,t..L
. . opmioes os alunos d R' h
j 11terárias ' surpreend em-nos os hábitos e 1c ards -
sobre as obras
.
.::$ que, espontaneamente tod • de percepçao e mte cpretaçã,o
IJ rtI eratura seja, quais o
• os tem em comum - o que esperam que a
,< sat1s· f açoes
- esperam obte s pressupostos
d I que 1evam a um poema e que ti
te · r e e. Nada d'1 é
. • pois todos os participantes da _:so . realmente surpreenden-
Jove~s, brancos, de classe méd' elxpenenc1a eram , presumidamente,
particular 13
. es ·mg1esas da décad d a ta ou méd'13 , ed ucados em escolas
giram 8 um poema dependeu ad e 1920· . • e a maneira . pela qual rea-
iiugradmente "literários" Suas re e ~ultas_ ?utra coisas além de fatores
a as aos seu s preconceitos e açoes cre criticas . es tavam profundamente
nças mais gerais. Não se trata de

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