Trabalho LBIII

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Universidade de São Paulo – USP

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

O VERDADEIRO PERFIL DA MULHER NA OBRA DE ALENCAR

Trabalho entregue como requisito final para


avaliação da disciplina Literatura Brasileira III
Docente: Marcos Flamínio Peres
Nome: Maysa Garcia Bertti, nº USP 11775090

São Paulo

2022
Um dos temas mais recorrentes das narrativas é o amor. No entanto, o modo como tal
temática se estrutura nos romances não é próprio desse Movimento. Segundo Arnold Hauser,
o romance pastoril do século XVII já traria à tona o conceito de um “verdadeiro romance de
amor”. Ao longo da trajetória percorrida pelo Romantismo, porém, constitui-se o momento de
ápice, pois o amor não se destaca apenas por ser tema central de grande parte dessas narrativas,
como também traz subjacente certa maneira de conceber a existência, o que faz com que se
forme um elo entre o destino das personagens e a realização amorosa. Na Europa do século
XIII, o cenário não era muito civilizado ou limpo, e a grande maioria carregava armas, por uma
concepção cultural. É em tal situação que surge então um movimento de cavaleiros e trovadores,
que questionam os valores sociais impostos na época, a partir de ideais extremamente
revolucionários, como os de que o amor é algo elevado e por isso, enobrece o homem que o
sente. Esse “amor elevado” resultou em belos rituais de cortejo, que influenciaram toda uma
sociedade, aos poucos, a perseguir um novo ideal. Os românticos embarcaram nessa ideia e
agregaram outros conceitos como o de "amor à primeira vista", o de "almas gêmeas" e,
principalmente, o de fusão do homem e da mulher em um só: a mulher torna-se parte do homem,
o seu outro.
No contexto do movimento romântico instaurado no Brasil e de seu público leitor,
apesar de todas as peculiaridades, advindas de um público letrado em processo de consolidação,
um enredo como o de Senhora, de José de Alencar, abre portas para os mesmos matizes
ideológicos das demais narrativas no que se diz respeito ao tratamento conferido ao amor. A
protagonista Aurélia Camargo é movida pelas emoções ligadas a ele, inseridas, evidentemente,
em muitas de suas falas e na detalhada descrição de seus sentimentos e motivações mais
profundas, realizadas por colocações do narrador e em suas próprias falas. 1 Nesse quesito,
tornam-se claras as intenções e desejos femininos por unir-se profundamente ao amado para
que seja feliz e realizada, ou seja, a felicidade estaria arraigada ao casamento.
No presente trabalho, a construção da identidade feminina em Senhora será o principal
enfoque. Desse modo, torna-se perceptível o quão importante e influente é essa identidade para
a construção de esteriótipos de feminilidade, à medida que a salvação e solução para a felicidade
da heroína seria justamente unir-se ao homem amado. Esse ponto de vista já pode ser facilmente
observado no próprio subtítulo perfil de mulher, que carrega grande importância no contexto
em que a obra se insere, pois o termo perfil é polissêmico. O traço da polissemia possibilita

1Passagem de Senhora:“- Aqui estão as chaves de minha alma e de minha vida. Eu te pertenço; fiz-te meu
senhor; e só te peço a felicidade de ser tua sempre!” (ALENCAR, 1974, p. 81).
maior clareza da expressão durante o enredo, além de levar a uma caracterização específica da
protagonista, já mencionada no título em sentido metonímico. A personagem-título é
justamente a “senhora”, que possui determinado “perfil”, trazido no subtítulo, e explorado
frente aos leitores no desenrolar da trama.
Dessa forma, ao criar esse complexo jogo sugestivo, o autor posiciona o leitor na
história, para que o conceito do “perfil” proposto inicialmente seja cada vez mais relevante. Tal
posicionamento é um dos principais responsáveis por levantar questionamentos sobre o papel
dessas narrativas frente à construção de uma identidade feminina fundada nos ideais do
matrimônio, do amor e, especialmente, da figura masculina, segundo os estudos do crítico
literário Jonathan Culler, sobre o papel da literatura na construção da identidade dos leitores.
Um dos pontos essenciais antes de uma análise detalhada é o modo como a personagem é
descrita. Aurélia Camargo repentinamente surge na alta sociedade carioca e arrebata olhares de
admiração e desejo, claramente por sua altivez, mas também por toda sua beleza e riqueza. Esse
cenário que, primeiramente, apresenta uma mulher como protagonista, e tão cobiçada, destoa
do estilo das obras divulgadas anteriormente e assim, rompe com a lógica machista da época,
sob a qual havia a predominância masculina nos romances, a qual ofuscava a feminina e a
colocava em posição de submissão e fragilidade.
Nesse quesito, estabelece-se aqui uma crítica ao restrito leque de possibilidades
destinado à mulher, figura cuja identidade e papel social se estruturava basicamente envolta
pelos ideias do amor e do casamento. Paralelamente, pode-se estabelecer uma forte relação
desse com outros romances, tais como Madame Bovary, do reconhecido escritor francês
Flaubert. No enredo, a protagonista é justamente o retrato da mulher do século XIX, que
assentava sua felicidade singularmente pela união com um homem. Esse aspecto encontra-se
em consonância com teorias recentes sobre essa construção social, principalmente derivadas de
Foucault. De acordo com Culler, já mencionado, ao teorizar sobre as relações existentes entre
poder e conhecimento, Foucault revela uma série de apontamentos que explicitam a
interferência desse tipo de relação na formação da identidade das pessoas, como evidencia-se
na passagem a seguir:
O poder, para Foucault, não é algo que alguém exerce, mas
“poder/conhecimento”: poder sob a forma de conhecimento
ou conhecimento como poder. O que pensamos saber sobre
o mundo – o referencial conceitual dentro do qual somos
levados a pensar sobre o mundo – exerce um grande poder.
O poder/conhecimento produziu, por exemplo, a situação em
que somos definidos pelo nosso sexo. Produziu a situação
que define a mulher como alguém cuja realização como
pessoa deve residir numa relação sexual com um homem.
(CULLER, 1999, p.17)
A teoria proposta por Foucault, de modo genérico, constitui a inversão dos paradigmas
convencionais acerca da figura masculina em sociedade. O sexo se encaixaria como uma
categoria discursiva, que em suas palavras, deslocou-se de um fator social para um fator
atribuído ao discurso. Segundo seus estudos, a ideia de sexo não foi apenas criada pelas distintas
práticas discursivas e sociais, como também passou a representar algo determinante e
fundamental ao se abordar sobre a identidade de uma pessoa. As particularidades nos papéis
sociais de um homem e uma mulher passaram a ser tão sólidas, que os discursos que sustentam
tais distinções as encaram como algo já constituído previamente, ou seja, anterior ao próprio
discurso2 e, consequentemente, banalizado. É a partir dessa construção que a concepção de
mulher como ser predestinado a se relacionar com um homem, ou seja, arraigada a
determinados padrões sociais, passa a ser um forte componente em diversos campos.
Adiante, após uma acentuada contextualização, é de se esperar que a literatura siga uma
linha temática semelhante. Logo, conjuntamente, a identidade passa a ser elemento fundamental
das narrativas românticas. Por estarem de algum modo envoltos pela vida real, esses enredos
reforçam os esteriótipos de feminilidade e o papel que uma mulher exerce: “a literatura é um
dos lugares onde [...] a ideia de sexo é construída, onde achamos promovida a ideia de que as
identidades mais profundas das pessoas estão ligadas ao tipo de desejo que sentem por um outro
ser humano” (CULLER, 1999, p.17). 3
A partir dessas colocações, é possível aprofundar a relação pontual existente entre
Senhora e Madame Bovary, o que inclui similaridades e distinções. Para iniciar a análise, torna-
se necessário posicionar a protagonista do romance de Flaubert. Na obra, Emma não se encontra
em primeiro plano nos capítulos iniciais. Sua figura surge gradualmente como uma jovem
provinciana, cujo interesse se centra em livros da educação romanesca. Inicialmente, ela
idealiza na imagem de Charles Bovary, o herói romântico da literatura, e o vê como um modo
de afastá-la da vida monótona e tediosa do campo. Antes de se casar com ele, quando menina,
fora educada dentro desses padrões. Desse modo, o instrumento utilizado por Emma para
compreender determinados conceitos, como o próprio matrimônio, é o romance. Toda a
subjetividade e idealismo propostos pelos livros tecem crítica a essas leituras, por levarem a
personagem a viver em fantasia e ficção, alienada da realidade que a circunda. É importante

2“[…] o sexo como algo anterior aos próprios discursos.” (CULLER, 1999, p. 16)
3“A literatura não apenas fez da identidade um tema; ela desempenhou um papel significativo na construção
da identidade dos leitores. […] As obras literárias encorajam a identificação com os personagens, mostrando as
coisas do seu ponto de vista. Os poemas e os romances se dirigem a nós de maneira que exigem identificação,
e a identificação funciona para criar identidade.” (CULLER, 1999, p. 110-111)
salientar que o impasse vivido por Emma trata-se apenas de uma parcela da idealização
feminina de uma época, ou seja, é a representação da educação recebida pelas mulheres do
século XIX.
Nesse contexto, Emma fantasia no marido, enquanto figura masculina, um recurso para
ascender socialmente e migrar a uma realidade destituída de tédio. No entanto, Charles não
converte com tais valores, ao contrário, seu modo de agir é embasado em aspectos passivos,
como a monotonia e a subordinação, tão desdenhados por Emma. Exalta-se, então, a
insatisfação de Madame Bovary já no início da vida de casada e a ânsia por se afastar dessa
situação indesejada. Essa angústia e repulsa ocorrem por ela não enxergar nenhuma maneira de
fugir desse cenário fatigante. Vale ressaltar que o cotidiano é descrito dessa forma apenas na
perspectiva de Emma, ao passo que para o marido, não traz desgosto, já que ele mesmo se
molda em tal contexto. Ele é justamente, no olhar da mulher, o centro desse quadro domado
pelo tédio e amargor.
Paralelamente, na obra de Alencar, de maneira evidente atribui-se a caracterização da
mulher como o “outro” do homem, ou seja, apenas uma “extensão” da figura masculina. A
personagem Aurélia, num único movimento, reivindica o amor e renuncia a si mesma, pois, ao
eleger o amor como seu único objetivo de vida, confunde-se com o próprio destino, situação
em que explícita a possibilidade de morrer por tal sentimento. Um aspecto importante a se
abordar nesse sentido é que o espaço privado é praticamente o único cenário em que Aurélia se
move em sua busca amorosa. A fim de justificar essa ideia e associá-la também devidamente à
figura de Emma, coloca-se em pauta os argumentos de Carvalho, a respeito da ideia tradicional
do casamento burguês, monogâmico e indissolúvel:
A história da cultura ocidental, ao consolidar-se segundo a
tradição do saber masculino, destinou à mulher um lugar
marcado feito de silêncio e de estereótipos, introjetando no
psiquismo feminino a expectativa de corresponder
docilmente a esses modelos. É neste lugar que vamos
encontrar a mulher representada, ao longo da tradição
literária, como aquela que deve sempre viver a espera, a
submissão, o sofrimento, a saudade, a resignação. [...] No
romance do século XIX encontramos [...] cenas
inesquecíveis em que a mulher acaba morrendo de amor,
como Marguerite Gauthier [...] ou morrendo por amor, como
Emma [...] que só na morte encontram solução para suas
vidas, já que este é o destino reservado pela sociedade para
aquela que, cedendo a satisfação dos desejos, ousasse
transgredir as leis dominantes. (CARVALHO, 1990, p. 36).

Ademais, outra questão a se avaliar é o funcionamento desse matrimônio da protagonista


e o quanto os aspectos econômicos o contornam. A relação amorosa estabelecida entre Aurélia
e Seixas explana certa subjetividade. No contexto do romance, a protagonista o escolheu sob
um típico modo de apresentar a epifania da retórica do amor romântico, ambos ainda pobres,
ainda que ao desenrolar do texto, evidencia-se que essa pobreza era apenas aparente. Ele, no
entanto, a rejeita, justamente pela condição social. Para agradá-lo a noiva ideal deveria estar à
altura de suas veleidades aristocráticas para ascender socialmente às custas de terceiros.
Não obstante, a crítica social de Alencar se consolida ainda mais intensamente sob a
inserção de um elemento específico, responsável por modificar os rumos do enredo e quebrar
as expectativas do leitor: uma herança destinada à protagonista, inesperada, em partes, por sua
condição social no início, mas principalmente, por tratar-se de uma mulher. No momento em
que enriquece, e Seixas portando-se desde sempre de atitudes aparentes da alta sociedade,
Aurélia reincide na escolha, e ele a aceita, por possibilitar-lhe conjugar sentimento e interesse
econômico, os quais moldam o matrimônio da época. Na realidade, a tal escolha, aparentemente
livre, só é possibilitada pelo poder econômico incidente em uma sociedade interesseira e
hipócrita.
Nesse contexto, traça-se aqui uma inversão de papéis por parte da mulher, que agora, ao
invés de frágil e sem voz, torna-se o centro de tudo que a contorna. Para explicar tal ponto,
pode-se inserir a teoria de Ellen Douglas, em seus estudos sobre a busca feminista, a partir da
qual faz referência a um dos textos de Clarice Lispector. Segundo ela, há sim uma inversão de
papéis, todavia, que permanece inserida nos parâmetros de gênero das narrativas do patriarcado,
pois os estereótipos de masculinidade e de feminilidade, apesar de questionados, são mantidos,
já que a busca anti-feminista modela-se nos moldes da busca do herói masculino. Nesse sentido,
o conceito da tal busca feminista rompe com o patriarcado e com a identidade feminina nele
construída, que de modo um pouco contradito, é a mesma que ajuda a estruturá-lo. Já a busca
feminina insere-se no contexto mais amplo da tradição patriarcal da busca masculina – uma
subnarrativa atribuída à narrativa dominante de um “herói buscador” (cf. DOUGLAS, 1990,
p.73), fator que reforça os papéis de mulher nele previstos. Em Senhora, Aurélia busca essa
nova perspectiva. 4 Para apresentar essas mudanças, vale ressaltar que Alencar já dividiu o
romance cronologicamente de acordo com cada fase da vida da protagonista. No presente
trabalho, serão comentadas duas dessas partes.
Nesse quesito, a fase inicial se faz pelos tipos esteriótipos da típica mulher deteriorada
por determinados valores sociais. A personagem é retratada pelo narrador como todas as
mulheres sonhadoras e sentimentais, à essência mesma da feminilidade: “como todas as

4“Espelha esta narrativa a busca estritamente feminista que cabe dentro da busca patriarcal do herói
masculino? Ou configura-se como uma nova busca da mulher, uma busca que rompe com a narrativa
patriarcal, uma busca feminista?” (DOUGLAS, 1990, p.73)
mulheres de imaginação e sentimento, [Aurélia] achava dentro de si essa aurora d’alma que se
chama o ideal, e que doura ao longe [...] os horizontes da vida.” (ALENCAR, 1974, p.63) A
esse feminino, o narrador associa o ideal do amor e o sonho do casamento, forjando, para
Aurélia, uma identidade de mulher assentada no desejo de união com um homem. Ao longo do
enredo, mais especificamente após receber a herança, entretanto, esse entorno é modificado. É
importante evidenciar que essa mudança trata-se de algo mais externo do que interno, pois
remete a algo material. Nessa nova etapa de sua vida, no plano narrativo, deflagra-se a grande
mudança no destino da personagem, que em determinado momento, tornou-se herdeira única e
universal do avô, um homem muito rico. Imediatamente, passa a ser disputada por muitos
pretendentes, dentre eles, o próprio Seixas, e a dominar as pessoas, manipulando-as conforme
seus interesses, submetendo-as à sua vontade. A figura rebaixada por sua condição social, é
instantaneamente substituída por uma mulher desdenhosa e de grande poder. A figura do
narrador é muito importante nessa situação por acentuar que a personagem, todavia, em sua
essência não se modificou, pois não foi “no caráter nem nos sentimentos que se deu a revolução,
estes eram inalteráveis, tinham a fina têmpera de seu coração. A mudança consumou-se apenas
na atitude [...] dessa alma perante a sociedade.” (ALENCAR, 1974, p.85).
Para concluir, pode-se inferir que ao considerar os parâmetros teóricos analisados nesse
trabalho sobre identidade e esteriótipos arraigados à figura da mulher, a tal busca, estritamente
atribuída à figura da mulher, pela quebra dos padrões preestabelecidos socialmente, torna o
romance de Alencar, Senhora, uma obra que teria contribuído para a construção da identidade
das leitoras brasileiras do século XIX, pois a literatura é capaz de moldar, construir e reconstruir
a identidade de quem usufrui dela, logo, algo maleável, que pode constituir-se por várias fases,
assim como as da vida da protagonista, apresentadas na narrativa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCAR, José de, Senhora, 1974, Domínio Público pdf.
BARONE, Leda, Literatura e construção da identidade.
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo:
Beca Produções Culturais, 1999.
DOUGLAS, Ellen H. A busca feminista em Perto do coração selvagem. In: GOTLIB, Nádia
Batella (Org.). A mulher na literatura. Vol. II. Belo Horizonte: UFMG, 1990. p.71-79.
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Publifolha, 1998.

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