Inconsciente e Causalidade Psíquica em Freud

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INSTITUTO ESPE – ENSINO SUPERIOR EM PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

CURSO: Pós graduação em psicanálise


ALUNO (A): Patrícia de Oliveira Machado
TURMA: Streaming 01
RESENHA CRÍTICA – Módulo II

Inconsciente e causalidade psíquica em Freud

Sigmund Freud é o responsável por consolidar um novo campo do saber: a


psicanálise. Esta é, ao mesmo tempo, um sistema teórico, um método de investigação e
tratamento analítico, utilizados para a compreensão do funcionamento da mente como
um todo. Nesse sentido é que Freud desenvolveu suas teses para a melhor compreensão
do universo psicológico e do sofrimento humano, dentre essas teses está a ideia de que a
mente humana não se reduz a estados conscientes, sendo muito mais complexa, dividida
entre dois sistemas psíquicos: o consciente e o inconsciente. O ineditismo do pensador,
inclusive, não está no fato de defender a existência de estados inconscientes, mas de
estruturá-los em um sistema independente da consciência e dotado de atividade própria
(GARCIA-ROSA, 2019).
Ao estabelecer um domínio próprio para o conceito de inconsciente, Freud não
apenas consolida um conjunto de conceitos (pulsão, recalque, identificação etc.), mas
torna possível, como assinalou Michael Foucault (1969/2001), uma infinidade de
discursos. É nesse seguimento que Freud pode ser visto como um instaurador de
discursividade, uma vez que tantos outros domínios do saber passaram a articular suas
teorias ou fundamentando ou se contrapondo a discurso psicanalítico.
O inconsciente nos estudos de Freud é um conceito essencial e inaugural, haja
vista que marca a especificidade do trabalho psicanalítico, distinguindo-o das demais
psicoterapias, da medicina e da filosofia, isso se deve ao fato de que reside nele a causa
daquilo que a psicanálise estuda e trata (PEREZ, 2012). Enquanto um elemento de uma
nova discursividade, o termo inconsciente em muitos aspectos se opõe ou se distancia
da tradição filosófica contemporânea a Freud.
Um aspecto destacável dos caminhos distintos traçados pela psicanálise e a
filosofia é a concepção de sujeito, enquanto essa defendia um indivíduo centrado, único,
constituído pela razão e a consciência, a psicanálise propõe uma cisão no aparelho
psíquico e, portanto, no próprio sujeito. Malgrado a intenção do pensador austríaco não
tenha sido apresentar uma contraposição às filosofias da consciência, tendo em vista que
seu interesse sempre foi de ordem prática, ao propor ‘outra cena’, outra dimensão da
vida psíquica, sua teoria do inconsciente confronta-se com as teorias da razão e da
consciência, colocando-as em suspeição, apontando-as como essencialmente farsantes
GARCIA-ROSA (2019).
O sujeito freudiano, portanto, é marcado por uma clivagem, possui uma vida
mental dividida que o conduz a um conflito interminável, a uma angústia sempre
crescente, uma vez que os dois sistemas, além de não serem simétricos nem
harmoniosos entre si, são constitutivos da vida psíquica do homem, sendo, portanto,
irredutíveis um ao outro. O conflito está exatamente no fato da natureza desses dois
sistemas, na consciência o material psíquico está em consonância com a moralidade
estabelecidade em um determinado mundo social. Por sua vez, o inconsciente é
composto de pulsões que exercem continuamente pressão para se tornarem
conscientes, isto é, para serem satisfeitas.
Situada entre o mental e o somático, a pulsão não pode ser confundida com
um instinto tal como o existente nos outros animais, isso porque ela não tem sua
origem no exterior nem se trata de em evento pontual, com impacto único e isolado,
para Freud (1915/1996), ao contrário, ela imprime uma pressão constante que só
pode ser eliminada com sua satisfação.
Há pulsões, todavia, cujo conteúdo é tão perturbador que seria capaz de
abalar a estrutura do aparelho psíquico, por não ser condizente com os valores
morais que fundam e sustentam o mundo civilizado, necessitando, desse modo, de
serem retidas. Em O futuro de uma ilusão Sigmund Freud afirmou que apesar da
cultura significar a elevação humana em relação às suas condições animais, ela
implica necessariamente a coação e a renúncia pulsional. Ora, essa coação é feita
pelo recalque, mecanismo extremamente importante e que sofrerá algumas
reformulações ao longo da obra freudiana1.

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Para Freud o recalque é apenas um dos destinos das pulsões, em As pulsões e suas vicissitudes,
apresenta ainda a reversão a seu oposto, retorno ao próprio eu e a sublimação.
Segundo o próprio autor, ao formular a história da psicanálise, o recalque “é
a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise (FREUD,
1914/1996, p. 26)”. A psicanálise tem, então, o recalque como eixo central para o
seu fundamento e suas análises, tanto por sua relação com o inconsciente quanto
com os sintomas. A afirmação de Freud pode ser entendida, inicialmente, no sentido
de ser o recalque o responsável por impedir que as pulsões indesejadas acessem a
consciência, ou seja, ele é um mecanismo de defesa que consiste basicamente em
“afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a a distância” (FREUD,
1915/1996, p. 152).
Enquanto a pulsão é dotada de força constante, sobre a qual nenhuma ação de
fuga prevalece, o recalque é um mecanismo incessante, parte normal do aparelho
psíquico, assim como o inconsciente, ambos os conceitos se apresentam como
incômodos para o pensamento filosófico da época, não apenas para a filosofia da mente
ou epistemologia, mas também para a ética que se propõe investigar o sujeito moral
como um ser autônomo, livre, inclusive, de impedições internas.
O incômodo está justamente no fato de o trabalho psicanalítico supor um
determinismo no domínio psíquico, como expõe Freud em Cinco Lições de Psicanálise
ao afirmar que “[...] não existe nada de insignificante, arbitrário ou casual nas manifestações
psíquicas” (p. 50). Ora, essa fé em um determinismo universal não é invento dos trabalhos
freudianos, tem suas bases assentadas na própria ciência moderna para a qual o
funcionamento do mundo é passível de matematização e de cálculos. Destarte, os
objetos são por ela entendidos não como casuísticos ou despropositados, e sim como se
ligando por meio de relações causais e regularidades previsíveis (PEREZ, 2012).
Foi da passagem do mundo medieval para a modernidade que a natureza deixou
de entendida como resultado do milagre ou da vontade divinos e passou a ser vista
como governada por causas, ou seja, por fenômenos e elementos definíveis que se
relacionam matematicamente, constituindo o que veio a ser denominado causalidade
natural (PEREZ, 2012).
Ainda na modernidade, especificamente no século XVIII, Kant introduz uma
nova noção de causalidade, não mais no domínio da natureza, e sim da consciência do
ser humano. Não se contrapondo à causalidade natural o filósofo prussiano propõe
outra, a causalidade livre que está fundada na sua teoria moral. Para ele, o homem age
segundo princípios que se sustentam na sua racionalidade, isto é, a lei moral
denominada imperativo categórico se fundamenta na razão que pode ser assim expressa:
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal” (KANT, 2005 p. 51). A causalidade estaria na determinação das
máximas que orientam a ação do sujeito (PEREZ, 2012), entretanto ela é chamada de
causalidade livre porque o indivíduo permanece autônomo, uma vez que a lei à qual ele
obedece é ditada por sua própria razão, e não por outrem.
A causalidade psíquica proposta por Freud, alvo de inúmeras críticas, se
distancia da causalidade elaborada por Kant considerando que esse tem como objeto de
estudo a consciência, enquanto aquele o inconsciente. O caráter determinístico do
inconsciente revela-se por meio dos fenômenos que não podem ser explicados pela
consciência exatamente por operarem como lacunas desta, são “atos psíquicos que só
podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais, não obstante, a
consciência não oferece qualquer prova” (FREUD, 1915/1996, p. 99).
Freud denominou esses eventos de atos falhos ou fenômenos lacunares cuja
origem está nas moções suprimidas da vida anímica (1901/1996), no conteúdo
recalcado. Embora o recalque atue constantemente não é um mecanismo de defesa
totalmente bem sucedido, deixando rastros (FREUD, 1915/1996), ou seja, fendas de
onde emerge o material psíquico incompletamente suprimido, os sintomas, os atos
falhos, os sonhos. Esse material, como observou Freud no trabalho do sonho, utiliza de
mecanismos de contaminação, -as condensações, as formações de compromisso, os
deslocamento- para se expressar ainda que de maneira disfarçada e irreconhecível
(FREUD, 1901/1996). Isso significa que de um modo ou de outro o ato psíquico não
escapa à determinação do inconsciente, pois “toda palavra, como todo ato psíquico, se
encontra sempre situado em uma ou mais cadeias associativas2 determinadas pelo
inconsciente” (HAAR, 1973, p. 52).
Para Freud (1910/1996) nenhum fenômeno psíquico é casuístico ou sem valor,
nada é gratuito nem por acaso, isso vale tanto para coisas aparentemente insignificantes
como brincar com a própria roupa ou parte do corpo, riscar continuamente um pedaço
papel enquanto se espera alguém ou trautear melodias quanto para os sintomas
neuróticos ou histéricos de grande gravidade, todos eles testemunham a existência da
repressão, da substituição, logo, do inconsciente.

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Nesse sentido, a própria regra de ouro da psicanálise, a associação livre, só é aparentemente livre, tendo
em vista que seja qual for a palavra enunciada no setting analítico está em íntima conexão com os
conteúdos recalcados.
Assim, quando refletimos sobre uma de suas estruturas clínicas propostas por
Freud, a neurose obsessiva, devemos, de saída, ter em mente que a repetição de um
gesto por mais aleatória e insignificante que pareça, não o é. Tudo é provido de sentido
e passível de ser interpretado. A ação ritualística do obsessivo, na verdade, expressa
motivos e ideias inconscientes que podem ser revelados, decodificados e interpretados
na clínica. Não apenas os neuróticos obsessivos, mas também os histéricos e os
psicóticos estão submetidos aos ditames da vida pulsional, o que parece não deixar
espaço para categorias tão caras ao pensamento humano, a liberdade, a espontaneidade.

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits 1. 1954-1975. Paris: Éditions Gallimard, 2001.

FREUD, Sigmund. A História do movimento psicanalítico. In Obras Psicológicas


Completas. Tradução Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1914/1996.

____. As pulsões e suas vicissitudes. In Obras Psicológicas Completas. Tradução


Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1915/1996.
____. Cinco lições de psicanálise. . In Obras Psicológicas Completas. Tradução
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1910/1996.
____. O futuro de uma ilusão. In Obras Psicológicas Completas. Tradução Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1927/1996.
____. O Inconsciente. In Obras Psicológicas Completas. Tradução Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1915/1996. In Obras Psicológicas Completas. Tradução
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1901/1996.
____. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana,
GARCIA-ROSA, Luiz. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2019.
HAAR, Michel. Freud: Introduction à la psychanalysie, Freud. Paris: Hatier, 1973.

KANT. Imannuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Leopoldo


Holzbach. São Paulo: Martins Claret, 2005.

PEREZ, Daniel Omar. O inconsciente. Onde mora o desejo. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.

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