Inconsciente e Causalidade Psíquica em Freud
Inconsciente e Causalidade Psíquica em Freud
Inconsciente e Causalidade Psíquica em Freud
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Para Freud o recalque é apenas um dos destinos das pulsões, em As pulsões e suas vicissitudes,
apresenta ainda a reversão a seu oposto, retorno ao próprio eu e a sublimação.
Segundo o próprio autor, ao formular a história da psicanálise, o recalque “é
a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise (FREUD,
1914/1996, p. 26)”. A psicanálise tem, então, o recalque como eixo central para o
seu fundamento e suas análises, tanto por sua relação com o inconsciente quanto
com os sintomas. A afirmação de Freud pode ser entendida, inicialmente, no sentido
de ser o recalque o responsável por impedir que as pulsões indesejadas acessem a
consciência, ou seja, ele é um mecanismo de defesa que consiste basicamente em
“afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a a distância” (FREUD,
1915/1996, p. 152).
Enquanto a pulsão é dotada de força constante, sobre a qual nenhuma ação de
fuga prevalece, o recalque é um mecanismo incessante, parte normal do aparelho
psíquico, assim como o inconsciente, ambos os conceitos se apresentam como
incômodos para o pensamento filosófico da época, não apenas para a filosofia da mente
ou epistemologia, mas também para a ética que se propõe investigar o sujeito moral
como um ser autônomo, livre, inclusive, de impedições internas.
O incômodo está justamente no fato de o trabalho psicanalítico supor um
determinismo no domínio psíquico, como expõe Freud em Cinco Lições de Psicanálise
ao afirmar que “[...] não existe nada de insignificante, arbitrário ou casual nas manifestações
psíquicas” (p. 50). Ora, essa fé em um determinismo universal não é invento dos trabalhos
freudianos, tem suas bases assentadas na própria ciência moderna para a qual o
funcionamento do mundo é passível de matematização e de cálculos. Destarte, os
objetos são por ela entendidos não como casuísticos ou despropositados, e sim como se
ligando por meio de relações causais e regularidades previsíveis (PEREZ, 2012).
Foi da passagem do mundo medieval para a modernidade que a natureza deixou
de entendida como resultado do milagre ou da vontade divinos e passou a ser vista
como governada por causas, ou seja, por fenômenos e elementos definíveis que se
relacionam matematicamente, constituindo o que veio a ser denominado causalidade
natural (PEREZ, 2012).
Ainda na modernidade, especificamente no século XVIII, Kant introduz uma
nova noção de causalidade, não mais no domínio da natureza, e sim da consciência do
ser humano. Não se contrapondo à causalidade natural o filósofo prussiano propõe
outra, a causalidade livre que está fundada na sua teoria moral. Para ele, o homem age
segundo princípios que se sustentam na sua racionalidade, isto é, a lei moral
denominada imperativo categórico se fundamenta na razão que pode ser assim expressa:
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal” (KANT, 2005 p. 51). A causalidade estaria na determinação das
máximas que orientam a ação do sujeito (PEREZ, 2012), entretanto ela é chamada de
causalidade livre porque o indivíduo permanece autônomo, uma vez que a lei à qual ele
obedece é ditada por sua própria razão, e não por outrem.
A causalidade psíquica proposta por Freud, alvo de inúmeras críticas, se
distancia da causalidade elaborada por Kant considerando que esse tem como objeto de
estudo a consciência, enquanto aquele o inconsciente. O caráter determinístico do
inconsciente revela-se por meio dos fenômenos que não podem ser explicados pela
consciência exatamente por operarem como lacunas desta, são “atos psíquicos que só
podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais, não obstante, a
consciência não oferece qualquer prova” (FREUD, 1915/1996, p. 99).
Freud denominou esses eventos de atos falhos ou fenômenos lacunares cuja
origem está nas moções suprimidas da vida anímica (1901/1996), no conteúdo
recalcado. Embora o recalque atue constantemente não é um mecanismo de defesa
totalmente bem sucedido, deixando rastros (FREUD, 1915/1996), ou seja, fendas de
onde emerge o material psíquico incompletamente suprimido, os sintomas, os atos
falhos, os sonhos. Esse material, como observou Freud no trabalho do sonho, utiliza de
mecanismos de contaminação, -as condensações, as formações de compromisso, os
deslocamento- para se expressar ainda que de maneira disfarçada e irreconhecível
(FREUD, 1901/1996). Isso significa que de um modo ou de outro o ato psíquico não
escapa à determinação do inconsciente, pois “toda palavra, como todo ato psíquico, se
encontra sempre situado em uma ou mais cadeias associativas2 determinadas pelo
inconsciente” (HAAR, 1973, p. 52).
Para Freud (1910/1996) nenhum fenômeno psíquico é casuístico ou sem valor,
nada é gratuito nem por acaso, isso vale tanto para coisas aparentemente insignificantes
como brincar com a própria roupa ou parte do corpo, riscar continuamente um pedaço
papel enquanto se espera alguém ou trautear melodias quanto para os sintomas
neuróticos ou histéricos de grande gravidade, todos eles testemunham a existência da
repressão, da substituição, logo, do inconsciente.
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Nesse sentido, a própria regra de ouro da psicanálise, a associação livre, só é aparentemente livre, tendo
em vista que seja qual for a palavra enunciada no setting analítico está em íntima conexão com os
conteúdos recalcados.
Assim, quando refletimos sobre uma de suas estruturas clínicas propostas por
Freud, a neurose obsessiva, devemos, de saída, ter em mente que a repetição de um
gesto por mais aleatória e insignificante que pareça, não o é. Tudo é provido de sentido
e passível de ser interpretado. A ação ritualística do obsessivo, na verdade, expressa
motivos e ideias inconscientes que podem ser revelados, decodificados e interpretados
na clínica. Não apenas os neuróticos obsessivos, mas também os histéricos e os
psicóticos estão submetidos aos ditames da vida pulsional, o que parece não deixar
espaço para categorias tão caras ao pensamento humano, a liberdade, a espontaneidade.
Referências Bibliográficas
PEREZ, Daniel Omar. O inconsciente. Onde mora o desejo. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.