11 - Carvalho, 2019
11 - Carvalho, 2019
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MÚSICA EM CONTEXTO
BRASÍLIA
2019
AGRADECIMENTOS
Fazer um mestrado na conjuntura de papéis que exerço no meu dia a dia foi uma decisão difícil,
principalmente por ter como objeto de pesquisa a instituição que fundei e por analisar a minha
experiência como gestora. Apesar desses fatores desafiadores, pude contar com o suporte físico
e emocional do meu esposo Rodrigo de Carvalho, do carinho da minha querida amiga Sônia de
Carvalho, dos grandes ombros do meu não só orientador, mas amigo Ricardo Dourado Freire,
que, de forma generosa, dedicou a sua sabedoria e humanidade para me acolher nos momentos
de fragilidade. E a Deus que, em sua onisciência, me escolheu para contar a bela trajetória de
tantas pessoas incríveis que fizeram parte da história do Instituto Reciclando Sons. Recebam,
todos, a minha gratidão.
RESUMO
The purpose of the research is to show the importance of socioinclusive music education in
Tertiary Sector from the points of view of the Public Interest Civil Society Organization called
Instituto Reciclando Sons, of its manager and founder and of the members of its history. For
this reason, the social impact of the music education program which has been developed by
Instituto Reciclando Sons for 18 years in Cidade Estrutural-DF was analyzed from the
perspective of coexistence with other social works and of the organization as a social
phenomenon. The chosen methodology was a case study, and the ethnomethodology allows the
process agents to be identified. The resources are institutional reports, journalistic reports, the
self-report of the researcher, and interviews transcribed in an explanatory level, in other words,
narratives and reflections about them. The narrative of the manager and researcher brings a self-
reflection in harmony with bibliographies about the Tertiary Sector. The result is a description
of the human, social and educational factors which constitute the music education program.
From the presented point of view, music offers the opportunity for the development of
autonomy, identity and learning, which bring up perspectives and discoveries in the human
progress.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
METODOLOGIA ..................................................................................................................... 12
As emoções e a música entre os entes na trajetória de uma gestora social ............................ 107
CONCLUSÃO........................................................................................................................111
A esperança que virou convicção e a convicção que virou a realidade! ................................ 111
INTRODUÇÃO
atuação: a Cidade Estrutural-DF? Como o seu trabalho contribuiu para a inclusão social? Qual
é a percepção dos pares sobre os processos de construção da identidade da organização?
Já as palavras que buscaram responder às questões de pesquisa derivaram das
experiências que se transformam em temática, sendo eu a pesquisadora que se voltou para si
mesma, escavando histórias, lembranças e fatos que conduziram a trajetória histórica do seu ser
e fazer como gestora social, assim como da instituição e dos pares ali constituídos. Certamente,
o processo buscou agregar sentido ao legado da instituição pesquisada, ao observar a trajetória
de forma colateral e espelhada.
[...] São nos ecos de nossas histórias que encontramos as ressonâncias
que são nada mais que processos que fazem avançar em
questionamentos e indagações produzindo a compreensão de uma
relação pessoal com processo de produções de sentidos como seres
sociais e históricos. Entendo que há uma necessidade de um
engajamento de caráter epistemológico colocando no centro do objeto
de estudo da Educação Musical a reflexividade (auto) biográfica do
sujeito que se forma e também dos que formam outros na área,
permitindo-lhe elaborar formas de empoderamento suficiente para se
deixar traduzir como aquilo que representa o campo da Educação
Musical. Portanto, um engajamento ancorado em uma visão pós-
disciplinar, isto é, na liberdade de ir e vir sem se perder no caminho
daquilo que se constitui como campo da Educação Musical, mas
buscando instrumentos heurísticos para além daquilo que pode estar
convencionado ou acomodado. (ABREU, 2017, p.18).
A organização como estudo de caso, a partir de uma visão subjetiva, buscou emblemar
a trajetória de ações historicamente constituídas de uma instituição que construiu um trabalho
pioneiro de educação musical socioinclusiva na região onde está localizado o maior lixão da
América Latina, o lixão da Cidade Estrutural-DF.
O memorial de autoformação esquadrinhou reflexivamente os complexos processos
motivacionais de desenvolvimento profissional e humano que fizeram parte da formação e
atuação de uma gestora social no Terceiro Setor, tendo por característica particular o meu caso.
Os relatos de experiência dos pares foram as transcrições dos depoimentos de um
documentário construído conjuntamente com o IRS dos fatos que mais impactaram a formação
dos pares enquanto participantes da instituição e da minha formação como gestora em questão.
Já os eventos descritos foram oriundos de reflexão sobre as ações, as pessoas e a historicidade
segundo a interdependência das dimensões culturais (coletivas) e subjetivas (individuais), uma
dialogicidade entre plasticidade humana ante os seus contextos. O tempo, irreversível como é,
deixa marcas estruturais a partir das decisões tomadas como possíveis naquele momento. Será
um desafio epistemológico abordar, nesta pesquisa, valores, sentimentos, histórias e vidas.
[...] Os mais recentes trabalhos de abordagens bio-cognitivas vêm
corroborar essa constatação teórica, através da observação do
funcionamento cerebral e levam à construção do conceito de
“autopoïesis”, para dar conta dessa capacidade criadora. Mas, como dar
conta dessa margem de autonomia e de possibilidades, a partir de
metodologias de pesquisa que isolam esta ou aquela característica do
humano ou a partir de disciplinas que traduzem esta mesma
fragmentação do sujeito, que se desconhecem mutuamente e perpetuam
assim uma visão despedaçada do humano? Há ainda um certo paradoxo
em querer falar da identidade no sentido genérico e não ser capaz de
fazê-lo senão por intermédio de aspectos, tais como: identidade
psicológica, identidade social, identidade cultural, identidade política,
identidade econômica. Assim sendo, a existencialidade acaba por
desaparecer do campo reflexivo sobre o humano, precisamente porque
1
All human alternatives facing dominant institutional orders, such as political regimes, and other normative
systems like those that can be developed inside any human institution require strong individual and collective
motivations capable of sustaining projects and avenues, essentially different to the dominant normative social order
[...] nonetheless, motivation, rather than being a punctual function, is one of the distinctive characteristics of
subjectivity as a system. Motivation can never be reduced to one specific motive; it always implies complex
subjective configurations, which appear as a “microcosm” of social and individual life. In such a condition,
motivation is always generated by social and individual agents within the context of their lives.
12
METODOLOGIA
2
The case study is preferred in examining contemporary events, but when the relevant behaviors cannot be
manipulated. The case study relies on many of the same techniques as a history, but it adds two sources of evidence
not usually included in the historian's repertoire: direct observation and systematic interviewing. Again, although
case studies and histories can overlap, the case study's unique strength is its ability to deal with a full variety of
evidence — documents, artifacts, interviews, and observations — beyond what might be available in the
conventional historical study. Moreover, in some situations, such as participant-observation, informal
manipulation can occur.
14
A coleta de dados dos aspectos subjetivos foi realizada por meio de diversos
instrumentos, como: diário de bordo dos participantes da instituição, descrição de entrevistas
narrativas do documentário da instituição, memorial de autoformação da gestora/pesquisadora
e matérias jornalísticas em vídeos, áudio e impressas. Nos relatos de experiências, a construção
dos dados dessa pesquisa esteve relacionada às descrições de experiências vividas, dialogando
com os referenciais teóricos pesquisados, sendo que esses conjuntamente refletiram o papel
ativo da pesquisadora, que fala de dentro para fora.
A subjetividade é uma qualidade específica dos fenômenos humanos
dentro da cultura, e seu funcionamento envolve instâncias individuais e
sociais como agentes que possuem caráter ativo, gerativo e criativo. A
compreensão das realidades humanas como processos simbólicos
culturais tornou a base sobre a qual uma nova concepção de
subjetividade pode ser proposta. Não obstante, a subjetividade não se
reduz ao discurso nem à linguagem; sempre envolve emoções, que são
baseadas no caráter imaginário de processos subjetivos. A subjetividade
funciona com base em sentidos subjetivos e configuração subjetiva, que
não são conduzidos por significados e construções intelectuais
(GONZALEZ REY, 2014, p.2)3
Já os dados quantitativos foram colhidos por meio dos relatórios anuais da instituição
dos anos de 2016 a 2018, matérias jornalísticas impressas e em vídeos, sites oficiais de órgãos
governamentais. Por isso, a reflexão sobre os aspectos quantitativos e qualitativos ocorre por
meio da identificação de marcadores descritivos que elucidam o processo de construção de
conhecimento no contexto da inclusão social.
3
Subjectivity is a specific quality of human phenomena within culture, and its functioning involves individual and
social instances as agents who have active, generative and creative character. The comprehension of human
realities as cultural made symbolical processes the basis on which a new conception of subjectivity can be
proposed. Nonetheless, subjectivity does not reduce to discourse nor to language; it always involves emotions,
which are based on the imaginary character of subjective processes. Subjectivity functions on the basis of
subjective senses and subjective configuration, which are not conducted by intellectual meanings and
constructions.
15
Kleber (2006) discute as práticas musicais em ONGs e apresenta reflexões sobre o valor
da produção do conhecimento, das práticas de sociabilidades e do fomento de políticas sociais.
As ONGs podem ser como lócus de produção de novas formas de conhecimento. Neste
contexto, a educação musical é focalizada em dois aspectos: 1) como as ONGs se constituíram
e se instituíram como espaços legitimados para o ensino e a aprendizagem musicais; 2) como
se instaura o processo pedagógico-musical nesses espaços de práticas musicais. Estes conceitos
aplicam-se na análise da trajetória da organização aqui pesquisada.
A ausência da educação musical é confrontada com a presença de práticas musicais em
projetos comunitários. Santos (2006) questiona a responsabilidade do Estado nesse campo e a
função da indústria cultural na educação do ouvinte no que alude à valorização das
características fundamentais do fenômeno musical, presente nos múltiplos contextos existentes
na sociedade, aproximando-se assim da realidade cultural e musical de cada grupo ou indivíduo.
Nesses espaços, há a ampliação da função do educador musical, para, assim, aproximar-
se das suas necessidades efetivas, bem como das expectativas de setores da sociedade. Kater
(2004) identificou as dialógicas apresentadas na formação e na ação do professor de música, ao
verificar de que maneira esses atuam em projetos de ação social com a finalidade de evidenciar
novas perspectivas de formação humana oferecidas pela educação musical.
Gohn (2009) retrata que o papel do educador social, em uma perspectiva comunitária,
realiza-se em mão dupla – ele aprende e ensina –, sendo o diálogo o meio de comunicação com
a sensibilidade para entender e captar a cultura local.
Na problematização do sentimento de solidariedade que envolve as ações dos projetos
sociais, Mauss (1974, apud BRAGA, 2016, p.12) descreve, “a partir da catalogação de
exemplos práticos, que a generosidade e a cooperação podem inclusive nascer de situações de
conflito, nas quais conflitos, atos violentos e rivalidades agressivas constituem a mola
propulsora do sistema dar-receber-retribuir”.
16
Aspectos musicais
17
A música foi apontada na pesquisa, em termos de referencial teórico, com base nas
reflexões críticas da neurociência cognitiva: a) como uma característica humana fundamental,
dados os seus papéis na evolução e no desenvolvimento humanos (Pearce & Rohrmeier, 2012);
b) desencadeia o envolvimento em funções sociais e está diretamente relacionada ao
cumprimento de necessidades humanas básicas, como contato e comunicação com outros seres
humanos, cooperação, coesão social e apego social (Koelsch, 2014); c) é influenciada pelo
inconsciente genético, assim como ocorre com outras artes ( pintura e poesia, por exemplo), na
medida em que influenciou a estruturação inicial do espaço social, incluindo as convenções e
regras sociais (Damasio, 2011); d) é responsável por promover o uso mais eficiente dos
neurônios, o que ocorre sempre que nos tornamos proficientes em uma habilidade como o treino
musical (Doidge, 2012); e maior conectividade entre redes neurais (REF), além de ativar
inconscientemente a discriminação de estados afetivos por meio de representações mentais ou
imagens cerebrais; e) exerce impacto emocional por meio do mecanismo de arrastamento
rítmico, em que uma emoção é evocada por uma música porque um poderoso ritmo externo na
música influencia algum ritmo corporal interno do ouvinte (Juslin et al., 2008).
Gordon (1997) descreve que o processo de alfabetização musical passa pelos seguintes
estágios: aural/oral (só ouvindo), associação verbal (lendo), síntese parcial (lendo), associação
simbólica (percepção), síntese composta (ditado), improvisação/criatividade. Swanick (1999)
relata que a experiência estética musical faz parte da motivação para a evolução humana, pois
a estética em si torna-se significativa manifestação metafórica e emocional, quer seja individual
ou coletiva.
Merriam (1964) sugere que a música pode ser mais bem explorada em um modelo
tripartite que abrange música como som, comportamento e conceito. Blacking (1995) declara
que a música é um sistema modelado primário do pensamento humano e uma parte de sua
infraestrutura. Cross (2012) afirma que a música pode permitir que os participantes ajam
simultaneamente, em vez de assincronamente, como na linguagem.
Self e subjetividade
(2011) descreve que o processamento do self está intimamente interligado aos aspectos em que
a música transmite informações emocionais que contribuem para a modificação estrutural e
relacional das cognições neurais e amplificam um incosciente/consciente global e subjetivo.
Destacou-se a subjetividade como característica específica do ser humano dentro de
instâncias individuais e sociais para a percepção da realidade. Para Gonzalez Rey (2014), a
subjetividade não pode ser reduzida a discursos e linguagem, pois envolve emoções e
imaginação. Já de acordo Bourdieu (1992), o habitus, que é a própria subjetividade socializada,
é um produto da história dentro de um sistema aberto modificado e confrontado pelas novas
experiências vividas e acumuladas no curso de uma trajetória individual, na noção ativa dos
sujeitos como fruto de sua história.
A consciência emerge na história da regulação da vida, um processo dinâmico
conhecido como homeostase. A mente consciente engendra os instrumentos da cultura e abre
caminho para novos modos de homeostase nas esferas da sociedade e da cultura (Damasio,
2011).
Estrutura da dissertação
A dissertação está estruturada em três capítulos, sendo que o IRS foi analisado de acordo
com três pontos de vista distintos:
No capítulo primeiro, o IRS foi observado do ponto de vista institucional, apresentados
os contextos históricos dos processos de evolução desde o início do trabalho, no ano de 2001,
abrangendo, assim, as condições sociais, institucionais e ambientais em que as vidas das pessoas
se desenrolaram conjuntamente, apresentando dados quantitativos. A descrição e a análise dos
dados quantitativos permitiram observar as decisões e os procedimentos de estruturação
administrativa da instituição na construção do programa musical, o qual foi iniciado com as
oficinas de musicalização infantil, canto coral, formação instrumental, orquestra, cursos
complementares e atividades socioassistenciais.
No segundo capítulo, houve a descrição dos relatos dos pares da instituição no
documentário “As Trilhas da Solidariedade”, que trouxeram pontos de vista sobre a instituição
e seus processos de vida dentro dela. A variedade dos dados buscou exemplificar as
complexidades da vida real e dos seus participantes. A conclusão desse capítulo foi uma
triangulação dos dados apresentados pelas diversas vozes.
A coleta de dados “de campo” – apropriadamente tentando capturar
condições contextuais, bem como perspectivas dos participantes –
19
O Terceiro Setor
O Local de implementação (L.I.) iniciou suas atividades em 2001 no DF, onde está
localizado o maior lixão da América Latina. As primeiras ocupações na Cidade Estrutural-DF,
na época uma favela ainda sem nome, posteriormente nominada como Vila Estrutural,
começaram em 1960, logo após a inauguração de Brasília. Período esse em que foi ocupada por
imigrantes que buscavam no lixo uma fonte de renda, os quais se estabeleceram em torno do
chamado Lixão da Estrutural, com moradias precárias, como as tendas de lonas que abrigavam
numerosas famílias sem quaisquer condições de saneamento básico. Essa situação teve como
cerne de sua formação dois fatores que desestruturam a nossa sociedade: a péssima distribuição
de renda e a falta de políticas públicas eficazes que gerassem emprego nas regiões menos
favorecidas do Brasil.
24
Para conquistar o direito à moradia, os pioneiros “deram a vida” pela fixação na Cidade
Estrutural-DF. Foram necessárias muitas manifestações populares com enfrentamentos à
polícia local, que tentava conter a ocupação com uso de cavalaria e armas de fogo. Famílias
inteiras, incluindo crianças, se posicionavam como “escudos humanos” defronte às suas
moradias para tentar garantir a sua permanência nas habitações, erigidas por meio de
considerável sacrifício. Só após muitas dessas manifestações, até mesmo com barricadas de
pneus queimados, os moradores começaram a receber as primeiras escrituras de seus lotes, em
2013, ao passo que, até 2018, nem todos os moradores foram contemplados com referidos
documentos de propriedade. Exemplo mostrado a seguir, na imagem 1:
Até 2019 a cidade continua se expandindo de forma irregular. Cada conquista territorial
e urbana foi fruto da luta dos fundadores desta comunidade, ora concebida como invasão de
catadores. Segundo os dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (CODEPLAN,
de 2015), a população urbana estimada do SCIA/Estrutural-DF é de 39.015 habitantes. No ano
de 2013, era de 35.094. A última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAP-
2015/2016) realizada na Cidade Estrutural revelou que a população aumentou mais do que a
média geral do Distrito Federal, como mostra a imagem nº 2:
25
A expansão da cidade, uma invasão conhecida como Chácara Santa Luzia, não foi
enumerada nesses dados. A chácara fica fora da poligonal da Cidade Estrutural-DF, em uma
"faixa de tamponamento" que deveria ser preservada para proteger o Parque Nacional. Mais de
quatro mil famílias vivem com a pressão dos riscos sanitários causados pelas condições
precárias de ocupação, com carência de serviços básicos, conforme mostra a imagem nº 3:
4
https://www.youtube.com/watch?v=aWqzEotIkDc
27
O estatuto social do IRS5 descreve sua finalidade como: promover a assistência social
realizando, isolada ou cumulativamente, atendimento, assessoramento ou defesa e garantia de
direito à inclusão social, à capacitação e ao desenvolvimento da pessoa humana, garantindo a
universalidade de atendimento, independente de contraprestação do usuário, atuando com
finalidade pública e transparência nas suas ações.
A missão da instituição é a inclusão socioeducativa para formar profissionais e cidadãos
oriundos de comunidades em situação de vulnerabilidade social por meio de sua tecnologia
social (TS), a fim de instruí-los como educadores sociais que contribuam de forma efetiva e
eficaz para o desenvolvimento intelectual, cultural e financeiro de suas famílias e comunidades.
O foco de atuação educacional da instituição é de inclusão social produtiva e
replicabilidade da sua Tecnologia Social (TS), com o objetivo de expandir o trabalho
socioeducacional em comunidades consideradas em situação de vulnerabilidade social, até que
elas possam se emancipar e se tornar replicadoras desta TS em outras comunidades na mesma
situação econômica e social.
Em 2013 o Instituto recebeu o Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social
(TS) em primeiro lugar na categoria juventude, sendo certificado como tecnologia social
segundo critérios de inovação, interação com a comunidade, poder de transformação social e
potencial de replicabilidade6. O IRS compõe hoje o Banco de Tecnologia Social (BTS) da
Fundação Banco do Brasil (FBB), que é uma base de dados com ações inovadoras replicáveis,
5
http://reciclandosons.org.br/wp-content/uploads/2019/05/ESTATUTO-SOCIAL-IRS.pdf
6
https://www.youtube.com/watch?v=rmaeB26RVPY
28
Até o ano de 2019, o Instituto Reciclando Sons (IRS) atendeu mais de quatro mil
crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social, não só na Cidade
Estrutural-DF, mas também em outras regiões vulneráveis do entorno do DF, com a finalidade
de ser um espaço que assegure a oportunidade de convivência saudável, contribua para a
7
http://tecnologiasocial.fbb.org.br/tecnologiasocial/banco-de-tecnologias-sociais/pesquisar-
tecnologias/tecnologia-social-de-educacao-musical-modular.htm
29
No dia primeiro de agosto de 2001, em um pátio aberto de uma região ora denominada
Vila Estrutural, local de implementação (L.I.), ao lado do lixão ali localizado, um grupo
instrumental formado por violão de sete cordas, pandeiro e violino prenuncia o nascimento de
um projeto social de educação musical ambicioso em seus objetivos, todavia simples em sua
atuação.
As atividades musicais iniciaram em parceria com uma organização ora denominada
Associação VIVER8, que atua no L.I. desde 1990, uma organização não governamental sem
fins lucrativos que tem por finalidade o serviço de assistência social com a promoção da
educação, do esporte e da cultura. O trabalho dessa organização consiste em oferecer atividades
socioeducativas no contraturno escolar.
8
http://viver.org.br/?page_id=3658.
31
sentadas em chão batido, debaixo do sol quente e com várias moscas as rodeando. As crianças
ouviam aquela música, umas com estranheza, outras com indiferença e outras com o olhar
atento. Ao término da apresentação, a violinista de vinte e dois anos, Rejane Pacheco, anunciou
que na próxima semana iniciaria uma turma de música para formar um lindo coral na cidade.
A próxima semana chegou e, em uma quarta-feira, vinte e duas crianças, concentradas
na sala da instituição – pequena, escura e abafada – ouviram Beethoven e Mozart. Surpresas
com a música, também estranha para sua maioria, caíram na gargalhada. Passado um semestre
de convivência musical, por meio da oficina de musicalização infantil, já cantavam e
encantavam as pessoas que as ouviam interpretando temas musicais infantis e natalinos.
O trabalho de educação musical foi iniciado em 2001 com a musicalização infantil para
a formação de um coral infantil. As crianças atendidas tinham muitos problemas de
convivência, manifestados em excesso de timidez ou em comportamentos agressivos. Outro
viés era a baixa autoestima demonstrada no trato com a higiene pessoal e nos sintomas de
doenças de pele, piolhos, doenças respiratórias e estomacais, em razão das dificuldades
financeiras que enfrentavam.
Já em outras situações, crianças apresentavam comportamentos de autoproteção
externados na não aceitação da opinião de outros, na resistência em querer aprender algo novo,
atemorizadas pelas eventuais críticas. Por isso, as estratégias pedagógicas de atuação tiveram
que circundar a aceitação e o zelo consigo e com o outro, trabalhando a respiração, a expressão
corporal, a voz, a apreciação musical e a poesia.
33
Em 2001, ano em que foram iniciadas as práticas musicais, a maioria das crianças
atendidas, senão a totalidade, estava inscrita em programas governamentais assistenciais para a
permanência dos alunos na escola de ensino regular e proteção da criança em relação ao trabalho
infantil. Assim sendo, o público-alvo atendido consistia em crianças a partir de oito anos de
idade que eram “obrigadas” a participar de atividades assistenciais no segundo período, ou seja,
no turno contrário ao da escola de ensino regular.
As atividades oferecidas para a comunidade eram, em sua maioria, voltadas para o
esporte, tais como capoeira e futebol, reforço escolar e confecção de artesanato com materiais
reciclados. Por isso, foi um desafio propor uma formação musical que tivesse em seu bojo de
atuação a música clássica.
A primeira apresentação musical do coral infantil formado ocorreu no final do ano de
2001, no Memorial JK, em Brasília, Distrito Federal (DF). Devido a todo o contexto que
envolvia o trabalho iniciado, o coral que fora denominado de “O Coral do Lixão” pelo jornal
Correio Braziliense, após a publicação da primeira matéria, desencadeou uma grande
repercussão na mídia jornalista impressa e televisiva9. Esse fato sinalizou precocemente como
seria desafiador construir um projeto social de educação musical inclusiva permeado por um
contexto tão complexo sócio, ambiental e politicamente falando. O nome “Coral do Lixão” foi
reiterado durante muito tempo na imprensa, fato que incomodava muito os alunos atendidos, os
quais demonstravam sentimento de diminuição e humilhação ao serem comparados
9
https://www.youtube.com/watch?v=aWqzEotIkDc.
34
O projeto não recebia recursos públicos. Apesar disso, devido ao fato de os atendidos
serem beneficiados por programas sociais governamentais em sua maioria, representantes dos
órgãos governamentais responsáveis pelo cadastro dos alunos em programas de subsídios
sociais traziam para si a “paternidade” do trabalho, circunstância essa que polarizou uma
pressão de domínio entre os interesses da entidade de direita que representava o Governo do
Distrito Federal na época e entre a entidade de esquerda que representava o Governo Federal
em vigência no ano de 2002.
Era nítido o constrangimento criado por esses setores ao “obrigarem” os alunos a
participarem cantando em eventos políticos e em reportagens jornalísticas fantasiosas que
representassem o bem social promovido à comunidade atendida. Quando negada essa atuação,
eram estabelecidas pressões que envolviam reuniões com os pais ameaçando a retirada do
benefício social dos alunos e das alunas inscritos no projeto e a constante vigilância das nossas
ações, a fim de encontrar algum “erro” que comprometesse o trabalho. Nisso, no segundo
semestre de 2002, depois de um ano de trabalho realizado, vinte e dois alunos foram retirados
do projeto por seus responsáveis, por receio de perderem os subsídios sociais que recebiam,
ficando somente cinco alunos advindos de famílias corajosas que priorizaram a educação de
seus filhos. Dessa forma, foi necessário fazer uma campanha na comunidade, com faixas
distribuídas em vários espaços do L.I., para se montar uma nova turma.
35
Manter somente o grupo coral era muito mais cômodo devido aos aspectos facilitadores
de controle do trabalho e dos resultados. Também, por consistir em uma atividade única para a
qual não era necessário adquirir e manter instrumentos, em face das limitações de recursos
financeiros e de espaço para armazenar. Entretanto, a formação instrumental era um atrativo à
comunidade ali presente, muito envolvida em movimentos religiosos e de rua, que valorizavam
a expressão musical instrumental.
Nisso, é interessante observar até que ponto podem existir semelhanças entre as pessoas
e culturas, nas formas em que a música aciona imagens mentais e cria uma consciência
individual e coletiva. Merriam (1964) sugere que a música pode ser mais bem explorada em um
modelo tripartite que abrange música como som, comportamento e conceito. Blacking (1995)
declara que a música é um sistema modelado primário do pensamento humano e uma parte de
sua infraestrutura. Cross (2012) afirma que a música pode permitir que os participantes ajam
simultaneamente, em vez de assincronamente, como na linguagem.
Outro aspecto é o impacto emocional da música na fisiologia humana, chamado de o
arrastamento rítmico (Rhythmic entrainment). De acordo com Juslin et al. (2008), esse se refere
a um processo pelo qual uma emoção é evocada por uma música, porque um poderoso ritmo
externo na música influencia algum ritmo corporal interno do ouvinte. Como exemplo, a
frequência cardíaca, na qual observaram que o reforço do pulso marcado gerava nos ouvintes
uma sincronia da sua frequência cardíaca ou da sua respiração. Outro exemplo, de acordo com
Levitin (2010), é a música de marcha e certos tipos de música de filmes, que podem aumentar
a excitação, evocar sentimentos e criar uma sensação de “ligação social”.
Buscando, assim, oferecer uma oportunidade de estímulo musical instrumental mais
socioinclusiva e intuitiva, em 2006 foi criado o grupo de percussão, que oportunizou a
integração musical motora entre os participantes do coral, que nesse período era misto, formado
37
por crianças, adolescentes, jovens e adultos. Essa ação contou com o apoio do Comitê de
Funcionários da Câmara dos Deputados, o CD-Cidadania.
Imagem nº 15: Grupo coral em uma apresentação na Ermida Dom Bosco-DF, em 2006.
O trabalho educativo estava inserido na dialética social de uma comunidade que gostava
muito de música, mas não valorizava a educação musical. Os responsáveis legais dos menores
de idade atendidos, devido à própria condição financeira em que se encontravam, muitas vezes
beirando a miserabilidade, desejavam aumentar a renda familiar e, por isso, o estudo de música
não se enquadrava em suas expectativas de meio para a formação profissional, ocasionando
assim índice de evasão bastante alto dos inscritos no projeto.
Era difícil conseguir a adesão de outros profissionais que pudessem contribuir com o
desenvolvimento do trabalho. Ressaltam-se as conjunturas precárias de sanidade do local em
que ocorriam as aulas, muito próximo ao lixão, onde em vários momentos o cheiro do chorume
e a quantidade de moscas eram quase insuportáveis. Além disso, a falta de urbanização das ruas,
que misturavam lama, poeira, esgoto e entulho, o que dificultava em muito o acesso ao local de
atuação. As condições da sala onde aconteciam as aulas, com estrutura precária, cheia de
grandes rachaduras, pequena para a quantidade de alunos atendidos e de calor intenso, já que
não possuía ventilação. Ao mesmo tempo, a falta de material didático para a aplicação do
trabalho e a vulnerabilidade de segurança do local, sendo que em alguns momentos foi
necessário que todos se deitassem no chão devido aos tiroteios que havia entre facções
criminosas rivais bem em frente à sala; todos esses grandes fatores adversos repeliam o interesse
de participação de outros profissionais de educação musical.
Pela conjuntura desses fatores, houve, desde o início, a necessidade de se formar os
futuros profissionais que dessem prosseguimento ao trabalho. Todavia, o fato de não haver, em
2006, outras referências de projetos no L.I. voltados para educação musical tornou o trabalho
de convencimento das famílias sobre a importância da música para o desenvolvimento humano,
39
profissional e social dos atendidos ainda mais difícil. A fim de superar essa situação, foram
criados os projetos “Apadrinhamento Contra a Fome” e “Bazar Show”. O primeiro consistia
em uma campanha com os parceiros para o sustento dos alunos-destaque do projeto com uma
bolsa financeira mensal, projeto que em 2012 se tornou uma bolsa incentivo para a formação
em nível superior; o segundo foi um movimento sociocultural voltado para as famílias dos
atendidos, no qual era realizado um bazar com as doações arrecadadas e apresentações musicais
com a participação de músicos convidados.
Com os dois projetos, iniciou-se uma fase de maior envolvimento dos familiares no dia
a dia da instituição e a formação de referenciais para a comunidade, ao identificarem nos
monitores o espelho de novos modelos de atuação e possível profissão a se seguir.
No ano de 2007, foi reacendido o desejo de retomar o trabalho com cordas, após a
pesquisa de metodologias mais abrangentes e criativas. Foi possível vivenciar o método Suzuki
40
em um curso no Instituto Casa de Cultura Rio de Janeiro, “Os Pequenos Mozart” e “Amadeus”
10
, que fazem parte da escola de música Instituto Casa de Cultura, no Rio de Janeiro, instituição
que ensina violino e piano a crianças a partir de dois anos de idade, foi fundada em 1988 e é
dirigida pela violinista Suray Soren, da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro. Inspirados por essa vivência, o trabalho de ensino técnico pôde ser retomado com
violino para a formação de uma orquestra de cordas na instituição. Como só tinha violinos, os
arranjos de quarteto de cordas – violino, viola, violoncelo e contrabaixo de arco – foram
adaptados para violinos tocados a quatro vozes.
O método Suzuki foi um grande facilitador no processo de aprendizagem. O uso de
cores, frases, números e simbolizações aproximou os alunos do instrumento, como se não
houvesse barreiras para a aprendizagem, que acontecia em um processo de colaboração mútua
intuitiva e lúdica. O Monitor Bruno Araújo compunha os arranjos com base no livro I e em
algumas músicas clássicas mais populares para o grupo musical formado na época, que consistia
em coral, orquestra de violinos, teclados, violão e percussão. A experiência de ensaios era como
um laboratorial de conhecimento compartilhado.
10
https://www.facebook.com/pages/category/Song/Os-Pequenos-Mozart-174065636084354/.
41
2011, atendeu em média quatrocentos alunos e alunas, com resultados bastante significativos
de integração humana e performance musical.
Nesse período, foi necessário imergir de forma experimental no método Suzuki, devido
ao fato de o método só ser disponibilizado no idioma inglês e com canções populares que não
fazem parte da cultural brasileira, adaptando-o para as nossas necessidades. Iniciou-se um
processo de adequação cultural do livro I, com objetivos estritamente pedagógicos. Foram feitas
inserções de textos explicativos em português (bula), imagens do folclore brasileiro e variações
dos temas musicais com ritmos também brasileiros.
As simbolizações típicas do método, tais como cores, frases e números, acompanhara a
escrita do método. O trabalho realizado possibilitou maior interatividade e ludicidade educativa
por parte dos alunos e professores, conforme a imagem nº 20 abaixo.
Entre 2009 e 2011, a produção artística estava a “todo vapor”, no aspecto criatividade.
O movimento jovem presente nessa época inspirava ações e planejamentos coletivos que
incluíssem estratégias pedagógicas voltadas para produções, nas quais cada participante era
responsável por uma tarefa (cena, coreografia, cenário, figurino, produção audiovisual). No
mesmo momento de aula, era ensaiada a música, a cena, a coreografia; acontecia o
planejamento sobre figurino, cenário, produção gráfica, alimentação, local de apresentação etc.
42
O trabalho técnico musical acontecia no final da aula, pois o gancho motivacional dos alunos
era produzir.
Tanto as aulas quanto as apresentações afetavam muito as emoções dos participantes:
os momentos tornavam-se terapêuticos, no sentido de expor as emoções de várias formas,
fazendo-se necessário, em muitas situações, parar tudo e conversar. Essas reações
demonstravam um tipo de comunicação social intrínseca. Devido ao fato de ter sido trabalhado
o corpo nas expressões cênicas, na dança, na voz cantada e na produção instrumental, houve
momentos individuais espontâneos de ressignificação comportamental na relação do “eu” com
o “outro”, quando exposto às emoções e posturas corporais em favor de uma cena e/ou de um
personagem.
De acordo com Pearce e Rohrmeier (2012), a música serve às funções emocionais como
autorregulação, interação social, cura, bem como experiência estética. Essa influência pode
induzir e alterar estados psicológicos; excitar emoções fortes e regular atenção, emoção e
humor; trazer melhora cognitiva e no influir do desempenho físico, gerando assim bem-estar.
Damasio (2011) descreve: a subjetividade humana foi responsável pela expansão prodigiosa e
evolucionária da linguagem para a elaboração da consciência que hoje possuímos, que gerou a
criatividade.
Se a subjetividade não tivesse surgido, ainda que bastante modesta no
início, em seres vivos bem mais simples do que nós, provavelmente a
memória e o raciocínio não teriam logrado uma expansão tão
prodigiosa, e o caminho evolucionário para a linguagem e a elaborada
versão humana de consciência que hoje possuímos não teriam sido
abertos. A criatividade não teria florescido. Não existiriam a música, a
pintura, a literatura. O amor nunca seria amor, apenas sexo. A amizade
seria apenas uma cooperação conveniente. A dor nunca se tornaria
sofrimento, o que não lamentaríamos, mas a contrapartida dessa dúbia
vantagem seria que o prazer nunca se tornaria alegria. Sem o
revolucionário surgimento da subjetividade, não existiria o
conhecimento e não haveria ninguém para notar isso;
consequentemente, não haveria uma história do que os seres fizeram ao
longo das eras, não haveria cultura nenhuma (DAMASIO, 2011, p. 16).
(propósitos coletivos) e contribuir, assim, para maior eficácia na construção de uma consciência
social.
Estar no palco com produção de cenário, luz, figurino e som e ter o reconhecimento da
plateia eram importantes estímulos para o fortalecimento da autoestima dos alunos atendidos.
Entretanto, não havia recursos materiais para tal ação. Por essa razão, foi iniciado um projeto
experimental de produção de musicais, com fins educativos. Esse projeto contou com o apoio
inicial da empresa Memora. Como antes proposto, os alunos participavam de todos os processos
de preparação e montagem, desde o cenário, iluminação, figurino, arranjos, gravação,
interpretação e ensaios.
Foram produzidos três musicais (“A Lenda do Fantasma da Ópera”, “O Rei Leão” e
“Aquele Instrumento é Como Eu”); vários clipes musicais, CDs, DVDs, shows, concertos e
materiais didáticos (videoaulas e arranjos musicais). Nessas produções, foi possível contar com
o apoio de vários profissionais, que fortaleceram o trabalho. Dentre esses, havia dançarinos de
rua da cidade; professores de Brasília, tais como: Renato Vieira (percussão), Maria Alice Braga
(correpetidora pianista), Manuela Matusquela (cênica), Wilzy Carioca (preparadora vocal),
Marcus Moreno (violino), Egon Matos (música de câmara), Mario Romanini (viola clássica),
Kátia Almeida (violoncelo) e Emílio de Cesar (Maestro); produtores musicais de Brasília, tais
como: Paulo Bufaráh, Toninho Zemuner e Rodrigo Carvalho; produtores de vídeo de Brasília:
João Inácio e Bruno Sant'ana; produtores gráficos e fotógrafos de Brasília: Calebe Pacheco
(produção gráfica e fotografia), Magda Fernanda (fotografia), Wagner Ramirez (produção
gráfica).
Com a chegada dos instrumentos, o desafio enfrentado foi a falta de recursos para
contratar professores de viola e violoncelo. Nesse período, o violista da Orquestra Sinfônica de
Brasília, Mario Romanini, ofereceu o seu trabalho voluntário. Já em relação ao violoncelo, não
foi possível, sendo necessário aplicar um trabalho intuitivo em relação à técnica do instrumento,
uma ação na qual o já educador Bruno Araújo se destacou, pesquisando na internet videoaulas
ao longo desse ano. No mesmo ano, foi possível montar uma oficina musical de formação
orquestral, expandindo a quantidade de alunos atendidos.
A formação da Orquestra de cordas friccionadas trouxe à instituição uma visão
diferenciada quanto ao seu tipo de atuação. Apesar de o trabalho com instrumentos de cordas
já existir, a formação de uma orquestra, em 2010, era incomum dentro de instituições
socioeducacionais que atuavam em regiões vulneráveis do Distrito Federal. Nesse mesmo
período, o foco da captação de recursos voltou-se para editais mais amplos que pudessem
atender à demanda financeira para a ampliação do trabalho. Conjuntamente, houve uma busca
para consolidar a pessoa jurídica da instituição, objetivando, assim, a credibilidade ante a órgãos
financiadores. Posteriormente, em 2012, conquistou-se a certificação como Organização da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
46
A demanda de alunos era crescente e, em vista disso, foi necessário lançar, em 2013,
uma campanha para arrecadação de instrumentos e acessórios musicais. A campanha foi
abraçada pelo Rotary Club Tiverton (UK) e pelo Rotary Clube União Planetária, que
proporcionaram a compra de setenta instrumentos de cordas, divididos entre violinos, violas
clássicas, violoncelos, contrabaixo acústico e acessórios (breus, cordas e estantes musicais)11.
O espaço de aula, uma pequena sala comercial, não comportou a quantidade de alunos
e de alunas, tendo sido necessário distribuir as turmas no meio da rua, em frente à sala12, fato
que gerou outra campanha para alugar um espaço maior. Uma questão a se observar no
desenrolar das necessidades advindas do crescimento do trabalho foi a conquista do valor que
a comunidade do L.I. demonstrava em relação à educação musical. Contudo, a educação em
regiões periféricas não parece estar na pauta de investimento do poder público brasileiro, haja
vista não haver projetos de implementação de núcleos de educação musical e/ou de
financiamento dos já existentes no Distrito Federal. Por isso, em 2016 foi necessário criar uma
campanha para a construção da sede do IRS.
Em 2011 foi iniciado o polo de expansão de formação orquestral, a Orquestra do SESI-
DF13, em Taguatinga Norte-DF, parceria que vigorou ao longo de quatro anos. Foi um projeto
voltado para os trabalhadores e para as trabalhadoras da indústria e seus familiares e que atendeu
quinhentos alunos e alunas ao longo de quatro anos. A orquestra que lá existia estava desativada
há dez anos e foi necessário realizar uma seletiva dos instrumentos estocados que apresentassem
pequenos danos possíveis de recuperação e assim recuperá-los, pois não havia recursos
11
https://www.youtube.com/watch?v=79qdIQ_J64A.
12
https://youtu.be/t6PSobwGRnA.
13
https://www.youtube.com/watch?v=mirqnrnWxz0.
47
14
https://www.youtube.com/watch?v=pE0Tvm_v5HM&t=17s.
48
Imagem nº 25: Projeto de Expansão (2015) Águas Lindas Em-Canto, em Águas Lindas de
Goiás.
Ao longo de sua evolução, o PSE/IRS centrou cada vez mais o seu planejamento na
contextualização com a vivência cotidiana, dialogando com os problemas e com as soluções
que os alunos apresentavam para a criação de um ambiente em que esses pudessem ser
alfabetizados e letrados musicalmente ao mesmo tempo. A finalidade inicial foi tentar envolver
o estudante com a música, da mesma forma que ele se envolve com a linguagem verbal e com
a sua vivência cotidiana, para depois desenvolver uma linguagem cognitiva neural. Tudo isso
partindo do princípio de que a capacidade não é inata, que o talento pode ser criado e que a
educação musical pode trazer soluções para as vulnerabilidades que os alunos enfrentam
diariamente.
Tendo a música como ímã para atração do público-alvo dos projetos aplicados dentro
do programa educacional do Instituto Reciclando Sons, foi necessário construir várias táticas
para a produção artística que envolvessem os alunos nos processos de planejamento e execução.
O início dessas ações foi contornado por receio e constrangimento, dada a singeleza das
produções musicais. Contudo, ao longo das experiências vividas, o trabalho foi criando corpo,
fortalecendo a divulgação da instituição, a convivência entre os envolvidos, o engajamento no
planejamento e na execução das ações, a quantidade de alunos atendidos, o financiamento das
ações e o reconhecimento tanto da comunidade assistida como das pessoas que assistiam às
apresentações ou convidavam os integrantes do Instituto para os eventos.
51
O PSE/IRS trabalha sob a perspectiva de que qualquer pessoa tem potencial para
desenvolver habilidades musicais, desde que incentivada. Baseado nessa premissa e no perfil
da comunidade alvo do Instituto, o PSE/IRS foi formulado de maneira personalizada e
contextualizada às necessidades dos atendidos. Na formação, os educandos têm a oportunidade
de ter seu primeiro contato com a Tecnologia Social de Educação Musical Modular do IRS. A
metodologia parte do princípio de que qualquer informação educacional deve basear-se na
vivência local dos educandos, dialogando com problemas propostos por eles e com soluções
descobertas, testadas e aprovadas por eles.
É da máxima importância reconhecer e estimular todas as variadas
inteligências humanas e todas as combinações de inteligências. Nós
todos somos tão diferentes em grande parte porque possuímos
diferentes combinações de inteligências. Se reconhecermos isso, penso
que teremos pelo menos uma chance melhor de lidar adequadamente
com os muitos problemas que enfrentamos neste mundo. Se pudermos
mobilizar o espectro das capacidades humanas, as pessoas não apenas
se sentirão melhores em relação a si mesmas e mais competentes; é
possível, inclusive, que elas também se sintam mais comprometidas e
mais capazes de reunir-se ao restante da comunidade mundial para
trabalhar pelo bem comum. Se pudermos mobilizar toda a gama das
inteligências humanas e aliá-las a um sentido ético, talvez possamos
ajudar a aumentar a probabilidade da nossa sobrevivência neste planeta,
e talvez inclusive contribuir para a nossa prosperidade (GARDNER,
1995, p.17).
15
Freire, 2015. Ensino de teoria musical no contexto da música popular PRINT. Artigo submetido ao I Encontro
Brasileiro de Ensino da Música Popular, UFRGS, 2015.
54
Ainda de acordo com a reflexão crítica de Gohn (2009), o Educador Social atua em uma
comunidade nos marcos de uma proposta socioeducativa, de produção de saberes a partir da
tradução de culturas locais existentes, e da reconstrução e ressignificação de alguns eixos
valorativos, tematizados em confronto com o novo que se incorpora.
Já a metodologia pedagógica atende às especificidades de comunidades vulneráveis, a
partir das necessidades, costumes e linguagem local. Por isso, o planejamento pedagógico e sua
55
aplicação são divididos em quatro módulos: iniciação (módulo Azul), formação continuada
(módulos Verde e Amarelo), formação técnica (módulos Marrom e Preto), que, em seu bojo,
buscam uma maior interatividade com os atendidos, de forma contextualizada a inter-
relacionar-se com o sistema sensorial humano, com os temas do dia a dia e com os problemas
advindos da vulnerabilidade social dos atendidos.
Esse ensino modular possibilita o acompanhamento do desenvolvimento cognitivo do
aluno, concentrado mais em suas habilidades do que nas suas inabilidades, e centrando
conjuntamente nas relações interpessoais nos espaços educacionais. Outro fator de importância
é o trato individual de cada disciplina, uma vez que o aluno será avaliado em cada uma de forma
individual, e não genericamente.
Imagem nº 28, dados de 2017: Percentual dos Educandos nos tipos de módulos.
Imagem nº 29, dados de 2017: Percentual quantitativo de educandos por oficinas aplicadas.
Imagem nº 30, dados de 201: Percepção da mudança comportamental dos filhos por parte dos
responsáveis.
59
Imagem nº 31, dados de 2017: Percepção da mudança comportamental dos alunos por parte
deles mesmos.
60
Imagem nº 32, dados de 2017: Percepção da mudança comportamental dos alunos por parte
dos educadores.
O objetivo dessas ações é avaliar os resultados obtidos na semana anterior, para que, a
partir destes resultados, possa se planejar adequadamente as semanas seguintes, definindo as
estratégias sociopedagógicas para aplicar de forma mais eficiente e dinâmica o conteúdo,
levando em conta as diferentes faixas etárias, níveis educacionais e dificuldades de
aprendizagem. Assim, será obtida uma avaliação qualitativa e quantitativa mais específica, a
61
Imagem nº 33: Foto de uma aula do projeto Notas & Canções, em 2018.
a) Público-alvo:
b) Característica do projeto:
O Projeto Notas & Canções é fruto do convênio entre o Instituto Bancorbrás e o Instituto
Reciclando Sons, firmado no ano de 2012. É estruturado nos quatro primeiros módulos da
formação musical do PSE/IRS. Desde sua primeira turma, o projeto já atendeu 668 crianças e
adolescentes, com idade entre sete e dezesseis anos, no contraturno escolar.
Atende semestralmente setenta alunos interessados em musicalização infantil, formação
básica em música e em inglês. Os atendidos pertencem a famílias de baixa renda que residam
em comunidades socialmente vulneráveis e/ou com risco social, a exemplo dos moradores da
Cidade Estrutural-DF, sendo o foco do projeto oferecer socioeducação musical,
acompanhamento socioeconômico e iniciação ao mundo do trabalho;
16
http://www.mds.gov.br/cnas/legislacao/resolucoes/arquivos-2009/cnas-2009-109-11-11-2009.pdf/view.
17
http://www.agenda2030.org.br/ods/4/.
63
de cada fase. Consideramos cada fase a partir dos seguintes aspectos do desenvolvimento
humano/cognitivo:
i) Faixa etária de sete a dez anos – Fase do encantamento, a metodologia é lúdica, mas
ao mesmo tempo ricamente articulada com os sentidos humanos, em especial com
o tato, a audição e a visão. É uma fase em que os alunos e as alunas que chegam a
nós sofrem muitas mazelas sociais relacionadas à violência doméstica e, por isso,
apresentam vulnerabilidades emocionais e físicas ao toque. Por isso, são oferecidos,
nesses momentos acolhimento, diálogo e interação social;
ii) Faixa etária de onze a treze anos – Fase da construção mais acentuada do alter ego
para a formação regulatória do “eu” relacional. É uma fase em que os alunos e as
alunas apresentam vulnerabilidades emocionais relacionadas à consciência de qual
é o seu papel na sociedade. Por isso, buscamos promover um espaço de
conhecimento contextualizado com as práticas de ética e de cidadania, a fim de
promover a quebra de ciclos sociais vulneráveis de opressão social e construir o
caminho para a autonomia consciente do aluno.
iii) Faixa etária de catorze a dezesseis anos – Fase da produtividade, na qual os desafios
sociais, tais como responsabilidade de gerar renda, trabalho e apelos diversos físicos
alteram muito a autoestima do aluno e da aluna; por isso, buscamos oferecer uma
educação para a inclusão socioprodutiva e convivência saudável, fortalecendo os
grupos, a fim de livrá-los de apelos maléficos sociais relacionados a violência,
sexualidade precoce, drogadição e tantos outros.
º
Gráfico nº 4, dados de 2018: Motivação dos alunos para se inscreverem no projeto.
a) Público-alvo:
b) Característica do projeto:
18
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13018.htm.
66
d) Faixa etária:
Atende alunos e alunas entre catorze e vinte e seis anos, considerando alguns aspectos
que diferenciam os processos de desenvolvimento cognitivo que correspondem a cada fase. A
adolescência e a juventude representam a fase da produtividade, na qual desafios sociais, tais
como responsabilidades com trabalho e geração de renda para a família e os apelos diversos
físicos e sociais alteram muito a autoestima desse público-alvo, por isso as ações
socioeducacionais buscam oferecer oportunidades de inclusão socioprodutiva e convivência
saudável, a fim de protegê-los dos apelos maléficos que constituem a vulnerabilidade social em
que estão inseridos.
Imagem nº 35: Momento de aula do projeto En-Canto & En-Cordas, turma de 2017.
68
a) Público-alvo
Jovens e adultos residentes em áreas vulneráveis e/ou em risco social, com idade a partir
de dezesseis anos. A fase adulta é a fase da contextualização. Os educandos, em sua maioria,
não possuem muito tempo para estudos e podem até possuir algumas limitações físicas. Por
isso, o processo educativo tem por meta principal ser terapêutico e valorizar a intuição dos
educandos, e nisso o canto coral é um importante instrumento de aprendizagem.
b) Características do projeto:
O projeto En-Canto & En-Cordas teve seu início em 2015, fruto da parceria de
cooperação entre o Instituto Reciclando Sons e a ONG Moradia e Cidadania-DF. Ele faz parte
da Formação inicial do PSE/IRS, ou seja, o primeiro módulo, no qual os alunos realizam o
primeiro contato com a educação musical. Desde seu início, o projeto atendeu 162 alunos com
idade a partir de dezesseis anos, residentes em comunidades em situação de vulnerabilidade
social e de baixa renda.
a) Público-alvo:
Pessoas e/ou instituições que queiram participar das ações socioeducacionais e/ou
socioculturais artísticas musicais, de fomento da instituição e/ou de expansão do modelo de
educação modular do IRS.
b) Característica do projeto:
Foram centenas de eventos realizados por esse projeto, além dos polos de expansão da
metodologia de educação modular.
Ao longo dos últimos três anos, o número de mulheres atendidas pelo PSE/IRS foi sendo
ampliado em relação ao de homens, graças a uma campanha de inclusão do gênero feminino,
devido a um mapeamento do grande número de evasão desse gênero, em razão das causas de
vulnerabilidade que as cercam. Há, portanto, atualmente, um público predominantemente
feminino no PSE/IRS. Por isso, desde 2017 o trabalho com o público feminino é prioritário,
como propósito de investir em atividades e projetos nos quais as mulheres sejam protagonistas,
e não receptoras das ações. É uma forma de propiciar o empreendedorismo feminino, dentro e
fora da instituição.
A socioeducação musical praticada no PSE/IRS é multifuncional e já se consolidou
como ente de formação de pessoas, de músicos profissionais, de renda e de emprego na
comunidade. Por isso, posiciona-se no cenário cultural de Brasília como espaço de formação
musical, buscando continuamente elevar o nível técnico instrumental e teórico dos atendidos, a
71
fim de que esses possam conquistar o seu lugar no mercado de trabalho. Nesse sentido, tenta
romper com o preconceito não fundamentado da ação socioeducacional amadora dentro dos
projetos sociais no Terceiro Setor.
Sempre com o objetivo de atuar junto à população descentralizada, ou seja, que reside
em regiões à margem das poucas estruturas públicas de educação musical no Distrito Federal
(DF), o PSE/IRS é fiel a sua proposta de oportunizar crescimento humano, cognitivo e
profissional a crianças, adolescentes e jovens vulneráveis. Por isso, busca uma autoimagem que
se consolide como instituto musical que possa ser competitivo na sua produção musical e
atuante no mercado musical brasiliense.
Mantida a metodologia educacional contextualizada e consolidada por resultados
expressivos, o espaço localizado na Cidade Estrutural-DF atrai cada dia mais estudantes e
desperta, na comunidade, um envolvimento crescente com a educação musical. A sede do
Instituto é, além de um lugar de estudos, espaço de interação social, formado por cidadãos
conscientes das oportunidades, da responsabilidade, da relevância da participação na
comunidade e na difusão de conhecimento.
Muito além da educação musical, as crianças e os adolescentes atendidos são avaliadas
e apoiadas nas atividades externas referentes à educação básica e ao ensino superior, bem como
no envolvimento com outras ações comunitárias e no comportamento social, graças às parcerias
estabelecidas com outras entidades afins. Segue, nas imagens abaixo, a linha do tempo histórica
do IRS.
19
https://www.youtube.com/watch?v=gk29w-bKPRA.
74
O grande esforço para viabilizar o local e a sua construção foi realizado em busca de
convênios, patrocínios e parcerias com diversas empresas, institutos de investimento social e
doações de representantes da sociedade civil. Esse investimento social foi fruto de uma
trajetória histórica de conquista devido à credibilidade do Instituto na prestação de contas, na
integridade e no valor de suas ações socioeducacionais e na mediação de sua imagem. Conheça
o espaço assistindo ao vídeo que se encontra no link do YouTube20 .
A estratégia primeira concentrou-se em adquirir o espaço para a construção junto aos
parceiros já existentes. Posteriormente, foram buscados novos parceiros para a construção, que
envolveu uma campanha de doações on-line, ampla divulgação via imprensa jornalística,
promoção de peças publicitárias em site próprio, Facebook, Instagram, YouTube. As estruturas
construídas foram (imagem nº 40):
a) Hall com capacidade para oitenta pessoas;
b) Sala para instrumentos e aula com capacidade para até dez pessoas;
c) Sala de aula com capacidade para até vinte pessoas;
d) Secretaria para atendimento com ocupação de três a seis pessoas;
e) Sanitários feminino e masculino para até três pessoas por vez, com
acessibilidade para pessoas com deficiência;
f) Sala para produção audiovisual com capacidade para até seis pessoas;
g) Cozinha com capacidade para até vinte pessoas.
20
https://www.youtube.com/watch?v=2UNmz7U7ytY.
75
O capítulo que se seguiu buscou ressaltar, a partir dos dados apresentados, a importância
de se promover a inclusão social por meio da educação musical e, de igual modo, atuar como
multiplicador das melhores práticas junto à população brasileira socioeconomicamente
desfavorecida, já que as crianças, os adolescentes e os jovens estão ávidos por oportunidades
para avançarem na compreensão da sua existência e dos processos da vida.
Todavia, ainda foi possível perceber que, mesmo com a realização de estudos, pesquisas
e buscas de novas possibilidades de ensino da música nos diferentes contextos, sobretudo no
âmbito da inclusão social, ainda é constatado, em diversos casos, enorme distanciamento entre
as ações educativas e a inclusão social, em conformidade com as atuais investigações da área e
sua efetiva aplicação prática. Como afirma Souza:
A música ainda aparece como um objeto que pode ser tratado
descontextualizado de sua produção sociocultural. Nos discursos e nas
práticas ainda temos dificuldades de incluir todos aqueles ensinamentos
das mais recentes pesquisas da área de musicologia, etnomusicologia e
mesmo da educação musical (SOUZA, 2004, p. 8).
A descrição dos dados quantitativos deste capítulo foi relacionada aos processos de
evolução histórica da instituição, tais como: local de implementação, característica da
comunidade atendida, estrutura física, número de alunos atendidos, estrutura administrativa e
pedagógica, oficinas de formação do Programa Educacional (vocal, instrumental e teórica).
Entretanto, este trabalho não se limitou a ser apenas ferramenta de coleta de dados, mas sua
estruturação teve o condão de condensar “uma visão de mundo” da pesquisadora, apoiada em
suas experiências intuitivas e empíricas.
O trabalho dialogou com os pressupostos teóricos apresentados através de estudo de
caso construído em narrativas descritivas de autoformação da instituição. Os resultados foram
uma interlocução entre os fatores históricos sociais e os de formação, na estruturação de um
programa socioeducacional musical.
Cuidou-se de reflexões realistas ao contexto e um espaço para descrever os processos
da construção da autonomia, da identidade e da aprendizagem, e de que forma esses aceleram
e abrem múltiplas perspectivas e descobertas de uma dimensão humana e socioeducacional
inclusiva. Além disso, tratou-se de um olhar de como a inclusão social parte em perceber,
através da transmissão da música, uma oportunidade para vencer a vulnerabilidade social, bem
como de que forma essa acelera e abre múltiplas perspectivas e descobertas de uma dimensão
socioeducacional inclusiva.
76
21
The documentary method offers – on the level of an observation of the second order – an access to the pre-
reflexive or tacit knowledge, which is implied in the practice of action. Asking for the documentary meaning can
– as I already mentioned – be understood as asking for how: how is practice produced or accomplished. That
means, asking for the modus operandi of practical action. This question has to be distinguished from asking what
(on the level of the observer of first order), for the immanent or literal meaning.
78
às causas sociais e suas complexidades, além de expandir a visão sobre a voz da comunidade
onde o Instituto está sediado, e da própria instituição, por meio das histórias de vidas
transformadas pela educação socioinclusiva oferecida pelo Instituto.
Roteiro do documentário
Imagem nº 41: ELCIELMA DOS SANTOS, aluna formada pelo IRS e Diretora Financeira da
instituição.
Imagem nº 42: LILIA KÉZIA LOPES, aluna formada pelo IRS e Ex-Assistente Social da
instituição.
Imagem nº 43: DAMON ERIC PACHECO, aluno formado pelo IRS e Educador Social da
instituição.
79
Imagem nº 44: MARIA ALICE BRAGA, Pianista acompanhadora dos grupos musicais do
IRS, é a professora voluntária que está há mais tempo no IRS.
Imagem nº 46: MATEUS MOURÃO, aluno formado pelo IRS e Monitor na instituição.
Etiquetas Contextos
! Enunciados exclamativos
? Enunciados interrogativos
// Pausa longa; diferente de silêncio.
<silêncio> Superior à pausa longa.
Segue agora a transcrição das narrativas dos pares, na qual ficam evidentes a sua visão
individual sobre o Instituto Reciclando Sons22.
EDITOR DOS VÍDEOS - Me chamo Jhosué, eu tenho vinte e seis anos e, de Instituto
Reciclando Sons, eu tenho onze. Antes eu já me orgulhava para caramba do trabalho que o
Instituto desenvolvia, porque eu fui afetado por isso, eu entrei aqui aos catorze anos de idade.
É onde eu aprendi a tocar um instrumento, onde eu aprendi o que é música. E agora me orgulho
muito mais desse grande projeto que é o “Trilhas da Solidariedade”.
“Trilhas da Solidariedade” é, de longe, o projeto da minha vida, né! Parece que tudo até
hoje meio que me preparou para esse momento. Assim, eu sempre gostei para caramba de
edição, gostei muito de cinema. Quando me foi apresentada essa oportunidade, eu fiquei ao
mesmo tempo feliz, entusiasmado, preocupado, porque é um projeto muito sério! E contar essas
histórias, né, contar e editar de maneira que pudesse agradar, de forma bonita, assim como o
trabalho do Instituto, que é muito bonito.
Eu sou responsável pela parte de edição do documentário, e estou muito feliz por isso!
Eu tenho aprendido muito como é esse universo de edição e como é contar histórias. Esse
projeto é muito importante porque ele vai mostrar os dezoito anos de atuação do Instituto. Bom,
eu espero que, com a lembrança desses dezoito anos de atuação do Instituto, a gente possa
22
Nesta seção, cada sujeito será identificado no início do seu discurso sobre um determinado tema.
81
cidade que tem muitas habilidades, e a gente precisa explorar a habilidade de cada um aqui na
cidade.
MARIA ALICE BRAGA - Aqui é diferente porque eu estou dentro da comunidade
carente, né! Não estou lá na minha região, eu estou aqui junto com eles, então eu acho mais
legal porque eu participo mais da vida deles. E cada um tem talento mais para uma coisa. Tem
um que tem talento para arranjo, tem um que tem talento para cantar, tem um que tem talento
para escrever, tem um que tem talento para tocar um violino, né!
A primeira vez que eu vim aqui, que a Rejane me trouxe, eu fiquei chocada! Porque era
ao lado do lixão. Ela fazia tudo sozinha, ela trazia o lanche que ela fazia, ela dava aula de
violino, ela dava aula de teoria, não, de teoria ela não dava, por isso eu me propus, eu vim pra
tocar piano com o coral e me propus a dar aula de teoria, para eles poderem conhecer, não fazer
só de ouvido, saber o que estavam fazendo.
RICARDO DOURADO FREIRE - Cada um tem o seu papel na criação dessa
comunidade, que é uma comunidade de apoio para o crescimento individual. A partir do
momento em que ele acredita em si mesmo, ele começa a acreditar no outro. E com isso nós
temos monitores que são excelentes, professores que são excelentes, amigos que são excelentes.
E toda essa estrutura ajuda a fortalecer a comunidade.
23
https://www.youtube.com/watch?v=ouqInO9AaUU.
83
história através da música, né! Eu apresentei e foi assim o momento mais emocionante para
mim (suspiro).
LILIA KÉZIA PEREIRA - A instituição acredita em nós, a instituição nos dá
oportunidade de sermos melhores (reflexão), independente dos nossos talentos, daquilo que a
gente tem de facilidades na nossa vida. Na época em que a Rejane chegou aqui na Estrutural,
ela veio para trabalhar com vinte e duas crianças, então ela veio assim na raça e na coragem,
né!
DAMON ERIC PACHECO - Uma coisa muito interessante do Instituto é o acolhimento,
né. Por exemplo, quando entra aqui já sente esse clima diferente, já sente que é divertido, vê
que as pessoas estão aqui, todo mundo, fazendo o mesmo propósito de conversar um com o
outro, de estar aqui ajudando um ao outro. Então, você sente já acolhido, não é aquele clima
pesado que, ah, (ênfase) está ruim, não! Está divertido, por mais que passam várias coisas, mas
está todo mundo lá, sorrisão aberto, está se divertindo, está vendo maneiras de passar por
situações, então pra mim foi tipo uma forma de estar interagindo nisso, estar dentro da equipe,
de ter alguém com quem contar, um grupo.
MARIA ALICE BRAGA - Nunca imaginei! Porque, quando a Rejane falava “vamos
ter uma sede, nós vamos fazer isso”, eu pensava, coitada, legal, legal, Rejane, mas eu não
acreditava na hora (risos), sinceramente aqui para você! Eu nunca pensei onde a gente fosse
chegar, saindo de onde a gente saiu, um barraco horrível (ênfase), horrível, uma sala só, sabe
aquele monte de aluno. Eu pensava, meu Deus aonde que ela vai, como ela vai conseguir, foi
aos poucos, foi mudando de lugar, passando para um lugar um pouco melhor, passando pra
outro e ela atrás de patrocínio e tudo, ela é incansável! A Rejane, realmente, eu acho ela uma
pessoa formidável. Porque eu venho aqui, mas eu vinha duas vezes por semana, agora eu venho
uma vez, é pouco o meu trabalho, não é perto do que ela faz e do que os meninos hoje fazem,
eles trabalham muito mais que eu. Eu sou apenas uma coadjuvante, mas fico feliz de ser assim.
A ajuda que o Instituto dá é muito importante, porque os meninos precisam ter um ganho
para ajudar a família. Já teve alunos meus que hoje é o meu aluno de piano aqui, o único aluno
de piano que tenho aqui, ele parou por tempo de estudar, porque ele precisava ajudar em casa,
trabalhar, e voltou agora recentemente e está trabalhando aqui, ganhando um pouco para poder
se sustentar. Então, essa facilidade que eu tive, eles não têm, então o que o instituto dá é
importantíssimo, essas bolsas para os alunos estudarem e poderem se manter com o mínimo
para poderem estudar e também ajudar em casa um pouco. Aqui é gostoso se ver que eles vêm
para se reunirem, para cantar, para conversar, sabe, é um local bom para eles virem, saudável.
84
Então eu vejo eles bem alegres aqui. Além de estudarem, eles também se divertem aqui, um
ponto de encontro.
RICARDO DOURADO FREIRE - Eu enxergo o Instituto como um oásis! Aquele local
no qual, com um pouquinho de água, eles conseguem transformar tudo em volta, com um
pouquinho de carinho, de dedicação e amor, vão se plantando, vão se cultivando atitudes,
valores, perspectivas, sonhos e, a partir disso, transformando as pessoas. O Instituto, (reflexão)
ele oferece um início, uma oportunidade para a transformação da pessoa, procurando um futuro
que nem ela mesma imaginava.
DAMON ERIC PACHECO - A música me trouxe oportunidade, né, e cada vez foi
chegando, foi ampliando o mundo da música. Não tinha noção do que poderia acontecer, ah,
(ênfase) música! O que que é música? O que é fazer música, simplesmente tocar? Não é tocar!
Acaba que nesse ramo você vai recebendo as coisas a mais. Por exemplo, foi a viagem, consegui
a viagem, consegui a forma de replicar o que eu sei para outras pessoas. Então, de sair, de levar
a música para outras pessoas que necessitam. Né, convida, ah, toca isso para gente lá numa
apresentação, que é muito importante tanto para a gente quanto para eles. Imagina chegar um
grupo de instrumentistas no meio do trabalho, uma surpresa enorme! Nossa, não é comum ficar
vendo o tempo todo alguém tocar. E a música ao vivo, essa coisa da terapia nos locais de
apresentação. Então cada vez mais vão aparecendo coisas, funções do que a gente vai fazer com
a música, vai ampliando esse universo, profissão, eu diria assim, não é só tocar, tem as outras
coisas de compartilhar a música.
O momento em que estou fazendo música é o momento de extravasar, de jogar para
fora, né! O tanto que nos dias de hoje a gente fica numa carga horária que é muito pesada, faz
isso, faz aquilo, então a música é uma forma de eu, pera aí, vamos liberar aqui, já que é uma
forma de eu falar, é uma forma de eu jogar pra fora, um momento de relaxar, vamos dizer assim.
MARIA ALICE BRAGA – Olha, eu acho que eles pegam com muita força! Eu, hoje,
que estou aposentada, eu dou aula particular. Os meus alunos daqui, eles agarram com muito
mais força, com muito mais vontade. Isso aqui para eles pode dar um rumo à vida deles. Para
esses alunos daqui, eles já veem como uma oportunidade de trabalho e de sustento, então eles
encaram a música com muito mais seriedade também. Não como uma coisa assim, para alegrar,
para passar o tempo, para não ficar em casa, como eu já vi pessoas me falando, né! Para a pessoa
não ficar em casa é bom estudar piano, entendeu? Para preencher o tempo, para não ficar no
computador. Aqui não! É para eles se sustentarem, é para eles terem um meio de vida. E isso
aqui eu acho importantíssimo para eles, por cauda disso eles se dedicam. Eu, pela minha
experiência, acho que eles se dedicam muito mais.
MATEUS MOURÃO - Quando eu consigo decorar a música e fecho os olhos, é como
se eu estivesse dentro da música, consigo me sentir voando. Tipo, eu sinto a música assim,
dentro do meu corpo, por isso que eu tento às vezes decorar a música pra poder fechar os olhos
e sentir assim de verdade como é estar dentro da música, e eu acho que é um sentimento muito
bom, que todo ser humano deveria passar um pouco por isso.
Eu gosto de tocar, porque gosto da emoção, assim, é muito bom você saber que você
pode, não sei (risos), é uma coisa que não dá para explicar. Que você pode tocar, pode aprender
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mais, você nunca vai estar perfeito, você sempre vai ter que se esforçar mais cada dia, para
tentar ser melhor.
Pelo contato com a música, eu acho que fui curado de uma doença que eu tinha quando
era criança. E, desses anos para cá, a doença era alopecia, desses anos para cá, acho que sete
anos mais ou menos, eu completei aqui o meu curso, estou formado pela Ordem dos Músicos e
espero um dia poder replicar tudo o que me foi ensinado para poder ajudar outras pessoas
também.
RICARDO DOURADO FREIRE - A música é muito forte porque ela oferece a
oportunidade para as pessoas se colocarem em locais em que elas não se imaginavam antes. De
repente você está no palco, você é o centro das atenções, você tem um destaque que às vezes
você não teve em outras oportunidades e você vê a ação do que você faz diretamente na reação
das pessoas. Esse feedback é muito direto, ele se torna transformador exatamente no sentido de
que já mostra para a pessoa o seu próprio valor. Quando a pessoa toca na orquestra e vê a reação
do público, se aquelas pessoas valorizam ela, ela também tem que se valorizar! Se as pessoas
veem que o que ela faz é bonito, ela também tem que ver essa beleza dentro de si. Ela começa
a ver o seu próprio valor, a descobrir o próprio valor, que às vezes estava despercebido nas
ações cotidianas.
Você sai de uma ação ordinária comum para, de repente, ter oportunidades
extraordinárias. E essas oportunidades criam sonhos. Eu posso fazer mais, eu posso ser mais
valorizado, eu posso acreditar em mim mesmo. E os mais novos também fazem essa leitura,
nossa, que legal aquela pessoa tocando! Que legal aquela pessoa que fez aquele solo, que
bonito! Nossa, eu também quero tocar bonito desse jeito! Eu também quero participar desse
grupo! Eu também quero crescer!
porque lá na minha casa eu fui a primeira pessoa, na minha família em geral, fui a primeira
pessoa que tive uma formação superior, então isso não foi importante só pra mim, mas impactou
muito eles também, porque a partir disso outras pessoas, eles tiveram vontade também de
estudar, de correr atrás de sonhos que já estavam assim esquecidos, então a música trouxe essa
transformação, né!
DAMON ERIC PACHECO - Fui tocando, fui começando a me apresentar até que
(ênfase) Damon dá aula! Então, opa, pera aí! Agora dar aula, passar música para outras pessoas?
Então, primeiro, a parte importante foi o meu primeiro contato na sala de aula, na forma de
educador. Depois tem as apresentações, os locais que a gente estava tocando, o conhecimento
do Instituto crescendo. Depois o intercâmbio (intercâmbio na Accademia Nazionale Di Santa
Cecilia di Roma) foi um susto! Tipo, nossa, eu tenho um intercâmbio, e agora? Como
coordenador do projeto na parte instrumental, responsável por isso. Então a responsabilidade ia
crescendo, ia subindo, melhorando e ajudando muito mais.
Eu estou estudando, sou estudante ainda na faculdade, né! Estou procurando uma
experiência de aprender um pouco mais sobre a questão de ser Maestro. De como funciona essa
função no meio da música, sendo que é uma coisa muito importante, Maestro não é qualquer
coisa, né! Uma simples pessoa que está na frente balançando a vareta, não! É como se fosse
uma forma de direcionar o grupo. Não tenho muita experiência nisso, estou aos poucos
descobrindo, estou aprendendo e, depois, botar em prática aqui no projeto, como forma de ajuda
mesmo.
MARIA ALICE BRAGA – Olha, quando eu comecei, eu acompanhava o coral, hoje eu
estou novamente acompanhando o coral. Já dei aula de teoria, de outras coisas também,
acompanhei os instrumentistas. Mas, as primeiras vezes que eu vi os meninos cantarem, eu
chorava, agora acostumei (risos). Mas eu acho muito emocionante, eu acho lindo. Porque é uma
coisa que eu pude ajudar, mas o que eu fiz é muito pouco, eles têm muito talento, né! (lágrimas
nos olhos).
MATEUS MOURÃO - A música mudou a minha vida totalmente! Na maneira de
pensar, na maneira de agir, porque ela me trouxe calma, antes a minha mãe falava que eu era
muito agitado quando eu era criança. Eu acho assim, que veio mudando por causa da música,
já quando eu era pequeno eu gostava muito de música e eu acho que isso foi muito bom para
mim. Que hoje eu sou uma pessoa calma, pode-se dizer (risos), é isso!
RICARDO DOURADO FREIRE - O trabalho com a música é exatamente isso, é
trabalhar esse elemento lúdico do sonho, da fantasia, mas isso que se torna realidade. O trabalho,
88
para chegar ao seu resultado, você tem que tocar todo dia o seu instrumento. Quanto mais você
se esforça no dia a dia, melhor você vai se desenvolver e melhor vai ser o seu futuro, vai ser a
sua perspectiva. E essa relação entre trabalho do dia a dia com o futuro é o que forma os
cidadãos que realmente acreditam que podem fazer a diferença.
Na formação do jovem e da criança, a coisa mais importante é sonhar. Ele se esforça
mais no presente para poder receber no futuro. É exatamente a questão da semente e do fruto,
você precisa ter a semente para poder ter o fruto. Mas a semente é a própria pessoa!
Visão da gestora/fundadora
diferente da minha e que não me incluía. Eu entrei em crise, entrei num processo depressivo
considerável e desisti da minha carreira como violinista, o que, para mim, foi muito ruim,
porque eu nunca gostei de desistir de nada. Para mim, né... Foi uma falência da minha própria
existência. Aí, eu fiquei um ano tentando fazer uma autorreflexão de quais eram os meus reais
valores. Por que que a música significava tanto para mim? Por que que era tão importante ser
instrumentista de orquestra? E aonde eu queria chegar com aquilo tudo? Te juro que eu não
conseguia chegar a lugar nenhum. Eu já não conseguia nem me reconhecer mais. Aí, teve um
maestro que me conhecia, conhecia meu trabalho, eu tocava na orquestra que ele regia. Ele
pegou e me fez um telefonema:
MAESTRO - Rejane, o que que tá acontecendo? Você sumiu... Você nunca falta... (eu
sempre fui muito disciplinada com tudo, até exageradamente). Você nunca falta... o que que
aconteceu? Você sumiu...
REJANE PACHECO - Eu falei: Eu não suporto mais. Não dou conta mais. Eu cheguei
no meu limite pessoal.
MAESTRO - O que que tá acontecendo?
REJANE PACHECO - Eu sonhei em ter uma carreira, eu sonhei em ser feliz, eu sonhei
crescer, eu sonhei desenvolver e eu me vi falhando nesse processo. Eu me vi me diminuindo
nesse processo. Eu me vi me desumanizando nesse processo.
MAESTRO - E ele falou assim:
- Eu vou te dar uma sugestão. Você quer?
REJANE PACHECO - Eu falei:
- Por favor. Para quem tá no escuro, né... Qualquer lanterna ajudaria.
MAESTRO - Assiste a um filme: Música do Coração, com a Meryl Streep, que fala
sobre uma história verídica que aconteceu no Harlem, em Nova Iorque.
REJANE PACHECO - E eu assisti ao filme e chorei do início até o fim. E aí eu comecei
a lembrar de alguns valores pessoais meus. Eu sempre fui uma criança muito sonhadora, uma
criança que gostava muito de arte, gostava de incluir as pessoas. Eu tinha por volta de dez anos
de idade e eu juntava as crianças todas da rua e fazia um musical para apresentar no final do
ano para os pais. Era disso que eu gostava: eu gostava de ter todo mundo junto. E aí eu fui me
lembrando disso, fui me recuperando, fui-me reidentificando. A minha mãe, ela tinha um
projeto... Ela participava de um projeto todos os sábados pela manhã, ao lado do lixão da Cidade
Estrutural. Era um projeto... Mãe solteira, quatro filhos... Ela acordava por volta de cinco horas
da manhã, depois de uma sexta-feira árdua de trabalho. Ela ia... Ela fez um acordo com as
90
padarias da vizinhança e pegava os pães amanhecidos dessas padarias para levar o café da
manhã, no sábado de manhã, para essas crianças. Para ajudar no café da manhã de mais de cem
crianças ao lado do lixão. E eu acompanhei ela em poucas vezes, mas eu estive com ela. Quando
eu estive nesses momentos com ela, eu fiquei, assim, chocada com o nível de insalubridade do
espaço e com o nível de felicidade dessas pessoas que estavam recebendo aquele café da manhã.
Aí, eu comecei a escrever tudo no papel, tudo o que eu queria, sabe? Sem mentir para
mim mesma. Sem máscara. Escrevi à mão e fui visitar essa instituição onde minha mãe oferecia
esse trabalho voluntário aos sábados, e falei:
Olha, eu quero fazer um trabalho voluntário com vocês aqui, um trabalho de
musicalização infantil.
INSTITUIÇÃO - Eles falaram:
- Nós não temos nada.
REJANE PACHECO - Eu falei:
- Vocês têm as crianças.
E aí, em 1º de agosto de 2001, eu comecei um trabalho com vinte e duas crianças ao
lado do lixão. Eu vou ser honesta: no início, eu queria, pelo menos, me encontrar, sabe? Eu
desenhei um projetinho muito simples, mas eu queria me encontrar. Foi um grande desafio para
a comunidade me aceitar, para eu aceitar a comunidade nas suas necessidades. Foi difícil
conviver com tantos problemas, mas foi a coisa mais importante que eu fiz em toda a minha
vida: ter tido coragem de ser honesta comigo mesma e escrever aquilo em que eu acreditava em
detrimento de toda uma carreira. E assim começou o Instituto Reciclando Sons: de uma busca
pessoal.
REJANE PACHECO - São dezoito anos passando por todo tipo de situação, das mais
inimagináveis, vendo uma comunidade toda superando situações que você não acreditava que
pudessem acontecer. Vendo a música ajudar a criar laços entre os alunos, entre mim e os alunos,
entre os pais, ao se surpreenderem nas primeiras apresentações dos filhos. Ver crianças que
estavam mergulhadas num processo extremamente complicado de violência começarem a
descobrir novas possibilidades de relacionamento, de amorosidade, de arte, de autoestima. Ver
famílias dando valor aos seus filhos por serem o que são.
Ao passar dos anos, pessoas extremamente importantes foram fazendo parte dessa
história. Pessoas que foram verdadeiros marcadores, foram vozes únicas. E é muito interessante
lembrar dessas pessoas, de como elas fizeram parte de mudanças, de momentos incríveis. Essas
pessoas foram me ajudando a ter novas estratégias, a criar novos laços, a criar novas
91
possibilidades. Mas o que eu mais aprendi ao longo desses anos todos é saber que a esperança
não é um sentimento, é uma convicção de existência humana, e eu aprendi com eles.
Independentemente da situação, tudo pode ser diferente. E essa é a história do Instituto. A
esperança que virou uma convicção, que virou uma realidade.
REJANE PACHECO - Dizem que as fotos retratam a alma das pessoas, né? É até
perigoso tirar foto, você pode expor um pouquinho da sua alma em cada foto. Nessas fotos, tem
matérias de jornais e... tem tanta coisa aqui. Mas, por exemplo, matérias de jornais: “Do lixão
para os palcos”, “Cantores do lixão”. Olha, isso pode ser até agressivo, sabe? Minhas crianças
não saíram do lixão para os palcos. Elas moravam em uma região que tinha um lixão perto, mas
elas não saíram dele, elas nasceram da sua grandeza.
“Cantores do lixão”.
Eles não eram cantores do lixão.
“Fazendo música no lixão”.
É assim que eles encaravam a gente.
É engraçado que, assim, eu não sabia a repercussão que o trabalho ia ter. A primeira vez
que o Instituto saiu em uma matéria televisiva teve uma repercussão de mídia, teve um boom
de mídia. Teve um dia que teve até uma coletiva de imprensa, na imprensa nacional e na
imprensa regional.
No início da história, devido a características da própria comunidade, da situação
extremamente vulnerável em que eles viviam, as matérias começavam mais ou menos assim:
“Do lixão para os palcos”, “Cantores do lixão”. Mas é impressionante ver a linha de evolução.
Uma outra matéria: “Fazendo música no lixão”.
De repente, eu começo a perceber uma certa evolução nesse processo de consideração
da comunidade, que era uma comunidade que sofria um preconceito muito grande pela sua
situação, pela sua origem. Uma comunidade que nasceu, em sua maioria, de catadores. Aí
começa a mudar um pouco essa história, né?
“A música supera dificuldades”.
“Artistas mirins voltam da Estrutural para o palco”.
“Uma invasão de talentos”, fazendo um paralelo com a própria comunidade, que nasceu
de uma invasão.
92
se vivos a partir dos relatos de vida dos depoentes, repletos de complexidades em suas
descrições. Cada depoimento carregou em si contextos individuais de superação social, o
impacto da socioeducação musical, a importância da boa convivência, a paixão pela música e
como a missão da instituição para inclusão social em busca futuro melhor tornou um propósito
coletivo. Sua abordagem poética demostrou em belas imagens os cenários de educação musical,
convivência social e produção artística. Como instrumento de coleta de dados complementou
na construção da pesquisa a visão institucional apresentada no primeiro capítulo e a visão
subjetiva da gestora apresentada no terceiro deste capítulo.
94
Nesse capítulo a motivação pessoal sobre educação musical socioinclusiva, objeto desta
pesquisa, decorreu do meu entusiasmo como gestora de um programa socioeducacional musical
em relatar respectivas experiências na fundação e no desenvolvimento do Instituto Reciclando
Sons (IRS). Cuidou-se, portanto, de uma diligência reflexiva em entender e reconhecer a própria
voz dentro da história de evolução da instituição e, conjuntamente, interpretar a subjetividade
de suas percepções e ações e dos pares que fizeram parte desta história, tudo a partir dos dados
e dos relatos de experiência apresentados neste trabalho. A reflexibilidade desta intenção partiu
para a construção de um memorial de autoformação que vai ao encontro das ideias de Josso
(2007, p. 420):
Abordar o conhecimento de si mesmo pelo viés das transformações do
ser – sujeito vivente e conhecente no tempo de uma vida, através das
atividades, dos contextos de vida, dos encontros, acontecimentos de sua
vida pessoal e social e das situações que ele considera formadoras e
muitas vezes fundadoras, é conceber a construção da identidade, ponta
do iceberg da existencialidade, como um conjunto complexo de
componentes. De um lado, como uma trajetória que é feita da colocação
em tensão entre heranças sucessivas e novas construções e, de outro
lado, feita igualmente do posicionamento em relação dialética da
aquisição de conhecimentos, de saber-fazer, de saber-pensar, de saber-
ser em relação com o outro, de estratégias, de valores e de
comportamentos, com os novos conhecimentos, novas competências,
novo saber-fazer, novos comportamentos, novos valores que são
visados através do percurso educativo escolhido.
24
[...] autobiographical memory helps to locate and define the self within an ongoing life story that, simultaneously,
is strongly oriented toward future goals. (MCADMS, 2001, p.107)
96
Toda essa história confunde-se com a minha história no papel de gestora e fundadora do
IRS. Traçando um paralelo entre a história da organização, as narrativas dos pares envolvidos
e a minha narrativa enquanto gestora social, chego à percepção que para atuar no Terceiro Setor
é preciso ter estrutura psicológica e resistência para encarar o improvável, com estabilidade,
diante do caos. É preciso ter visão e coragem de arriscar, é preciso ter resiliência ante as crises
internas e externas. É preciso ter criatividade nas estratégias de atuação adotadas com muita fé.
É preciso não se desumanizar diante das burocracias impostas para alcançar os objetivos e
conquistas e, por fim, é preciso, acima de tudo, ter muita convicção naquilo que tange a missão
a ser desempenhada.
Já para continuar empreendendo como liderança social no tanger das múltiplas funções
a ser exercidas no Terceiro Setor, é necessário vencer as barreiras do amadorismo, conhecer
ferramentas administrativas diversas, saber formar e motivar uma equipe de trabalho e ter muita
consciência do valor da sua ferramenta de atuação, a fim de convencer e apoiar os pares
envolvidos. É necessário ter uma busca informacional atualizada sobre as conjunturas políticas,
econômicas e sociais, nacionais e internacionais, que o contornam. É necessário ter uma boa
oratória, saber dialogar com as diferentes lideranças que o representam, conhecer ferramentas
de comunicação social, aprender a interpretar editais dos mais diversos tipos e escrever projetos.
É necessário saber o papel de cada órgão governamental em relação às burocracias e políticas
sociais, se informar sobre os detalhes técnico-materiais das necessidades que a instituição
possui, ostentar a malícia moral de se livrar de situações que sejam eticamente
comprometedoras e se posicionar socialmente com representatividade política no setor no qual
decidiu atuar.
Por isso, a autorreflexão apresentada nesse capítulo sobres ações e papeis
desempenhados no desenvolvimento de um projeto socioeducativo musical inclusivo que vai
além do desenvolvimento de habilidades técnicas e artísticas. Foi o ato de me empoderar por
meio de um memorial de autoformação, um espaço para a reflexão, descrição, identificação e
o aprimoramento de ações. No caso aqui proposto, a consciência sobre o papel exercido como
gestora e fundadora do Instituto Reciclando Sons (IRS).
97
Nesse sentido, Doidge (2012) afirma que há uma interminável guerra de células acontecendo
dentro do cérebro de cada um, no qual os neurônios que disparam conjuntamente se ligam, ou
se sincronizam e se conectam. Se pararmos de exercitar nossas habilidades mentais, não só nos
esquecemos delas, como o espaço no mapa cerebral para essas habilidades é entregue às
habilidades que praticamos.
O conhecimento musical sempre exerceu uma atração toda especial para mim. Quando
criança, ainda bem nova, na casa da minha avó, ouvindo os temas clássicos dos discos de vinil,
ou nas rotinas musicais da igreja evangélica, ou nos temas das novelas espetaculares que me
faziam sonhar, ou conjuntamente, de forma muito sui generis, as trilhas dos filmes que me
embarcavam para o mundo da fantasia.
Conquanto, as situações sociais me obrigaram a iniciar o estudo de música de forma
tardia, uma experiência que devastou a minha autoestima. Aos quatorze anos, quando iniciei
meus estudo musicais, fui submetida a uma educação musical enrijecida no seu modelo de
transmissão, elitista na qualidade dos relacionamentos interpessoais e excludente em seus
valores éticos. Ao longo dos anos da minha formação, o meu “eu musical” sentia-se incapaz de
cumprir o nível de performance musical que me era cobrado, tanto na técnica do violino, quanto
no repertório das orquestras das quais fazia parte. Era como se existisse um tipo de “DNA
musical” específico que habilitasse uns e desabilitasse outros para a carreira musical, fato que,
após dez anos de estudo e insucesso performático nos grupos musicais dos quais participava,
me levou à depressão.
Segundo Damasio (2011), podemos descrever essa lenta aprendizagem como um
processo de transferir parte do controle consciente para um servidor inconsciente, e não como
uma desistência do controle consciente em favor de forças inconscientes que, com certeza,
podem causar uma devastação no comportamento humano. A consciência é feita de imagens
mentais, imagens que não se restringem somente ao plano visual, mas aos planos táteis,
auditivos, motores, ou seja, sensoriais como um todo. Quando essas imagens ficam nítidas no
plano consciente, induzem a um processo de raciocínio em nível não consciente, e esse
raciocínio produz um tipo de conhecimento em camadas intermediárias, equivalentes ao que
nominamos de intuição ou o "estalo", que rapidamente nos ajuda a encontrar uma solução para
um dado problema. Damasio (2011) descreve que o inconsciente genético influenciou a
configuração inicial das artes, como a música, a pintura e a poesia. Influenciou, também, a
estruturação inicial do espaço social, incluindo as convenções e regras.
As artes foram uma compensação imperfeita para o sofrimento humano,
para a felicidade não alcançada, para a inocência perdida, mas ainda
99
A intuição que me motivou a ser gestora social foi inspirada pela filosofia que
impregnou a mentalidade de vida que adotei: dividir as conquistas, quer sejam materiais ou
imateriais, ao ponto de me sentir incomodada quando desfrutava de algo para o meu bel-prazer.
Por inspiração da minha avó, mãe e igrejas que eu frequentava, desde nova me aproximei das
ações socioassistenciais. Essas ações me chamavam muito a atenção, sentia algo especial, como
se o “cenário mudasse”. O clima do local, o rosto das pessoas, tanto das que doavam algo,
quanto das que recebiam e, no final, apesar do trabalho exigido e do aparente cansaço que
tomava conta dos voluntários, algo novo caminhava junto, como se fosse uma nova motivação,
uma nova inspiração para viver fosse criada.
A formação do meu “eu social” iniciou-se na atração toda especial que a música sempre
exerceu sobre mim. Quando adolescente, no ano de 1995, acompanhei algumas atuações da
minha mãe como voluntária em uma associação socioassistencial, ação que consistia na busca
de doações para a confecção de café da manhã destinado a mais ou menos cem crianças, nos
sábados de manhã, em um local extremamente vulnerável, localizado ao lado do Lixão da
Estrutural-DF. Sua rotina era buscar doações de pães amanhecidos nas padarias vizinhas nas
sextas-feiras, ou na madrugada de sábados. As doações eram generosas, as padarias dispunham
de sacos de todo tipo de panificação (roscas, bolos, pães de vários tipos), e toda essa doação era
distribuída, as crianças recebiam café da manhã e atividades de recreação.
A ação era linda do ponto de vista social, o sorriso das crianças, as brincadeiras, o
movimento era inspirador. Todavia, do local onde aconteciam as atividades, não posso dizer o
mesmo, pois o cheiro forte de chorume que vinha do lixão, a quantidade de moscas enormes
sobrevoando o lanche das crianças era assustadora. Para uma mulher de classe média baixa que
sustentava sozinha quatro filhos, esse tipo de atuação não era nada simples, devido a sua rotina
de trabalho diário já ser muito pesada. Por todas essas questões, aquela experiência me
impactou.
Já em 2001, afastada das atividades musicais e sociais que participava devido a um
processo depressivo que me afetou, fui impactada ao assistir o relato verídico do filme Música
do Coração (1999), de Wes Craven, com Meryl Streep no papel principal, filme esse indicado
pelo Maestro Joel Barbosa, por saber da minha condição emocional. O enredo contava como a
educação musical trouxe impacto positivo para uma comunidade de East Harlem, um bairro de
100
afeta as emoções de pessoas do mais alto escalão social e, por isso, conquistava a sua admiração
e seu reconhecimento, trazendo o caso dos alunos vulneráveis do IRS. De igual forma, os que
investem e vestem os melhores trajes sentem-se orgulhosos de fazer parte desse movimento de
inclusão e arte, motivo pelo qual exigem a atenção a suas preferências e o direito de divulgar
as suas boas ações, como é o caso de alguns financiadores do IRS.
A tomada de consciência individual e coletiva parte do processamento do self e pode ser
vista por duas perspectivas: a do objeto dinâmico e a do conhecedor que dá um foco reflexivo
sobre suas vivências. Damasio (2011) descreve que o self-conhecedor se originou do self-
objeto. Na vida cotidiana, cada noção corresponde a um nível de funcionamento da mente
consciente, na qual o self-objeto tem um escopo mais simples do que o self-conhecedor. Nesse
processamento, os sentimentos funcionam como marcadores somáticos que se juntam ao fluxo
mental como uma imagem que o desencadeou, no qual uma mente consciente depende, em
vários estágios, da geração desses sentimentos. Damasio (2011, p.06) diz que “quanto à minha
definição prática do self material/self-objeto, ela é a seguinte: uma coleção dinâmica de
processos neurais integrados, centrada na representação do corpo vivo, que encontra expressão
em uma coleção dinâmica de processos mentais integrados.”
Todas as questões, quer sejam as próximas ou as mais distantes, colocavam à prova o
meu eu, baseado na eficiência ou eficácia de como eu conseguiria resolver as problemáticas
que iam aparecendo. Nos primeiros anos do trabalho, que posteriormente se configuraram no
Instituto Reciclando Sons (IRS) e no seu Programa Socioeducacional de Educação Musical
(PSE/IRS), foi perceptível a minha dificuldade em contar com profissionais que se dispusessem
e/ou tivessem estrutura para atuar no local de implementação (L.I.), devido à visão negativa de
insegurança sobre o L.I., perpetuada pela imprensa. A única exceção foi a do trabalho voluntário
da pianista correpetidora Maria Alice Braga, que se tornou também professora de teoria no
Instituto e atua até o presente momento. Esse fato foi moldando a consciência do meu papel
como gestora às necessidades de caráter mais social do que educacional musical e artístico do
IRS. Assim sendo, as dificuldades diárias vivenciadas em vários aspectos me levaram a um
compromisso de formar pessoas para dar continuidade ao trabalho.
Por isso, foquei a atuação com os alunos e alunas atendidos em discutir posturas
comportamentais profissionais, na formação de multiplicadores (monitores) da metodologia,
gestores/coordenadores dos projetos, conjuntamente com o trabalho musical. Incialmente, os
monitores tinham que cuidar de tudo o que era necessário: limpeza, lanche, material didático,
aulas, planejamento de atividades, compras, escrita de projetos, relatórios, prestação e
104
No espírito de gestora que governa versus educadora que ensina, percebi que os
processos educativos musicais em sua organicidade não devem buscar somente os resultados
propostos. Esses processos também podem provocar efeitos no desenvolvimento humano, que
são sempre imprevisíveis.
As instituições públicas e privadas e os movimentos sociais estão sendo
dinamizados por demandas multiculturais que resultam de articulações
que configuram um novo desenho social caracterizado pela redefinição
de novos papéis e espaços de ação, produzindo-se superposições,
contradições e convergências. Nesse contexto, a cultura se constitui
como uma espécie de “ordem normativa” interagindo com as dimensões
de ordem simbólica e estratégica. (KLEBER, 2006, p. 22).
Uma trajetória de vida não se constrói sem emoções, e as emoções são a energia que
motiva o ser dentro do existir. Nessa existência há um caminhar para dentro de si, “o self dentro
de uma história de vida”, e nessa ação há o falar de si mesmo, cheio de significados. A música
e a emoção são grandes indutores dos processamentos de discriminação inconscientes que
contribuem subjetivamente para a formação de uma consciência social e individual.
De acordo com Pearce e Rohrmeier (2012), a música serve às funções emocionais, como
autorregulação, interação social, cura, bem como experiência estética. Essa influência pode
induzir e alterar estados psicológicos; excitar emoções fortes e regular atenção, emoção e
humor; trazer melhora cognitiva e no influir do desempenho físico, gerando assim bem-estar.
Para Juslin et al. (2008), os eventos musicais envolvem processos subconscientes, não
intencionais, que refletem uma interação complexa entre o ouvinte, a música e a situação. O
reflexo do tronco encefálico é um dos processos pelo quais uma emoção é evocada no ouvinte,
sendo que o sistema auditivo foi projetado para alertar rapidamente o cérebro sobre um evento
potencialmente importante.
No meu caso, a solidariedade foi o sentimento gerado pela emoção do fazer música, foi
a motivação que sustentou a promoção de ações sociais organizadas de forma paralela à ação
estatal em benefício de uma comunidade prejudicada pelos serviços públicos deficitários em
educação, cultura e saúde, a partir de ações democráticas que puderam ser realizadas das mais
variadas formas.
Contudo, é importante a reflexão sobre o preconceito purista que envolve o ato da
“solidariedade”, ao atrelarmos essa a uma ação/emoção desinteressada e, por isso, uma “boa
ação”. Para Mauss (1974, apud BRAGA, 2016, p.12), “a dádiva, entre outras coisas, é uma
relação de poder e, de certo modo, uma relação “para além do bem e do mal”, uma relação ao
mesmo tempo, “interessada e desinteressada”. Descreve, ainda, a partir da catalogação de
exemplos práticos, que a generosidade e a cooperação podem inclusive nascer de situações de
conflito, “onde conflitos, atos violentos e rivalidades agressivas constituem a ‘mola propulsora’
do sistema dar-receber-retribuir”.
Para Mauss, o circuito dar-receber-retribuir configura sempre relações
de poder em que o maior beneficiado é o doador, o agente que domina
a relação com o destinatário do dom, pois o destinatário obriga-se a
retribuir e nem sempre há como retribuir a contento. Por isso, as
relações dadivosas são também, em alguns contextos, relações de dívida
e de dependência. Enquanto quem recebe obriga-se a retribuir, o doador
108
No caso do corpo de trabalho que constituí, tanto da gestão quanto dos educadores e das
educadoras, o desafio foi ainda maior, pois quase a sua totalidade era formada por adolescentes
que iniciaram os estudos comigo e se aperfeiçoaram, dedicaram anos ao desenvolvimento da
instituição e, por isso, sobre as minhas costas estava o peso de lhes trazer um retorno satisfatório
para as suas vidas profissionais e também sobrevivência financeira.
Em relação à qualidade dos relacionamentos interpessoais entre a gestora, a equipe de
trabalho formada e os atendidos direta e indiretamente, um olhar externo à instituição, em
princípio, parece ter a certeza de haver cumplicidade entre os agentes, devido à sinergia
solidária que cerca a missão institucional à qual todos pertencem. Todavia, de forma dialética,
essa cumplicidade envolve individualidades, em um processo em que todas as partes querem
ter chances de serem reconhecidas sob a forma de benesses e inclusão. Tanto por parte de quem
é aluno beneficiado e, por isso, superou suas vulnerabilidades, sobretudo por parte dos outros
agentes que construíram os processos para os beneficiados, no lugar em que todos foram
moldados para atender às necessidades coletivas e construírem essa cumplicidade.
A música é o elo que nos une? De acordo com Kleber (2006), a música é social não só
porque está sendo produzida através do mundo material e social, mas, também, por sua
capacidade de simbolizar o mundo externo material e social tal qual está estruturado. Ou seja,
uma simbolização comunicativa de prática social culturalmente constituída. Por ter vivido um
processo excludente na minha formação musical, ao começar tardiamente os meus estudos sem
recursos financeiros para adquirir o instrumento, os materiais didáticos e realizar os cursos e
intercâmbios necessários, busquei construir um trabalho de inclusão socioeducacional musical
partindo da valorização da autoestima do aluno atendido.
Foi necessário criar zona de desenvolvimento proximal do conhecimento musical em
sua complexidade rítmica, melódica, harmônica, sonora, timbrística, histórica e artística;
atrelando as emoções como o indutor da cognição e não simplesmente à formação de um
conhecimento puramente racional. Um lugar em que a música colabora com a introspecção
humana como aceleradora de memórias, em um caminho que nos dá visão direta daquilo que
desejamos explicar e que vem a ser uma tradução na mente de um processo que os cérebros
complexos vêm praticando há muito tempo na evolução, tal como o ouvir internamente ou
cantar uma música aleatoriamente, assim como o falar consigo mesmo é, também, uma
linguagem na atividade neural.
Nesse processo, houve casos em que alunos e as alunas em situação de risco e/ou
vulnerabilidade social, devido à própria conjuntura de sua realidade, tinham sérios bloqueios
110
CONCLUSÃO
Para esse trabalho, depois de transcrever os relatos e me conceder o direito de, através
do self, contar a minha própria história, “in verbis”, inicio a minha conclusão, com a citação de
Josso (2007):
A variabilidade e a singularidade das pessoas no plano psíquico,
contrapostas aos modelos oferecidos pelas ciências sociais, criam um
campo de liberdade possível na formação da identidade psico-
sociocultural. Os mais recentes trabalhos de abordagens bio-cognitivas
vêm corroborar essa constatação teórica, através da observação do
funcionamento cerebral e levam à construção do conceito de
“autopoïesis”, para dar conta dessa capacidade criadora. Mas, como dar
conta dessa margem de autonomia e de possibilidades, a partir de
metodologias de pesquisa que isolam esta ou aquela característica do
humano ou a partir de disciplinas que traduzem esta mesma
fragmentação do sujeito, que se desconhecem mutuamente e perpetuam
assim uma visão despedaçada do humano? Há ainda um certo paradoxo
em querer falar da identidade no sentido genérico e não ser capaz de
fazê-lo senão por intermédio de aspectos, tais como: identidade
psicológica, identidade social, identidade cultural, identidade política,
identidade econômica. Assim sendo, a existencialidade acaba por
desaparecer do campo reflexivo sobre o humano, precisamente porque
essa dimensão do ser não é passível de fragmentação (JOSSO, 2007, p.
419).
manifestam em suas vidas. Em vista disso, torna cada um uma partícula de mudança e agente
para o acolhimento mútuo.
A história do instituto foi descrita com a marca de muita garra que o possibilitou
sobreviver ao longo de seus dezoito anos e realizar suas conquistas. Na formação dos jovens e
das crianças que fizeram parte da instituição, a coisa mais importante destacada foi a capacidade
de inspirar os alunos a sonhar, visto que assim, eles se esforçaram mais no presente para poder
receber no futuro. Por isso, o apoio que o Instituto oferece na formação educacional e na
assistência social contribui para a construção de um novo futuro que oportunizará a melhoria
de vida das famílias atendidas.
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