Formas de Tratamento e Cordialidade - Mudanca Linguistica e Conceptualizacoes Culturais

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Palavras dos Editores

Esta publicação, digital e gratuita, compõe o catálogo de livros


digitais da Editora da ABRALIN, uma editora open access, criada
em 2020, que busca oferecer mecanismos efetivos de publicação
e circulação de obras de Linguística no país. A ideia que norteia
seu funcionamento encontra melhor expressão nas palavras de
seu idealizador, Prof. Dr. Miguel Oliveira Jr., então presidente da
ABRALIN: “acreditamos que dar acesso livre à produção intelectual
de excelência, que é fruto – na maioria das vezes – de investimento
público, é o caminho mais democrático no contexto socioeconômico
em que vivemos”. Sem dúvida, essas palavras foram definitivas para
o nosso engajamento na criação da Editora da ABRALIN. Queremos
contribuir para fazer da Editora da ABRALIN um canal permanente
de apoio à divulgação da sólida pesquisa feita nas muitas áreas da
Linguística no Brasil.
Como todos sabemos, a ABRALIN desempenha papel
fundamental na consolidação dos estudos linguísticos no Brasil,
contribuindo de maneira crucial para a criação e a preservação
de espaços de acolhimento da diversidade de ideias linguísticas,
algo que tem urgência ética e é – no nosso entendimento – atitude
necessária para manter o indispensável diálogo entre a sociedade e
a comunidade científica. A Editora da ABRALIN nasce dentro desse
contexto e com esse desígnio maior.
A excelência do trabalho da Editora e das obras por ela
publicadas será garantida – disso temos certeza – pela esperada
contribuição dos associados da ABRALIN. Tal contribuição
constantemente vem em atendimento aos editais e aos critérios
tornados públicos periodicamente, na forma de propostas de
publicação, na colaboração junto ao Conselho Editorial e com as
demais atividades envolvidas no funcionamento da Editora.
Nossa expectativa é que a Editora da ABRALIN possa fornecer
obras de qualidade, acessíveis gratuitamente ao público-leitor
interessado, fomentando, assim, a pesquisa em Linguística,
contribuindo com o diálogo constante entre pesquisadores e
sociedade.

Valdir do Nascimento Flores


Gabriel de Ávila Othero
Editores
Geisa Mara Batista

FORMAS DE TRATAMENTO E
“CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E
CONCEPTUALIZAÇÕES
CULTURAIS

EDITORA DA ABRALIN
PREFÁCIO
A obra Formas de tratamento e “cordialidade”: mudança
linguística e conceptualizações culturais, de autoria de Geisa Batista,
ora disponibilizada para um público mais amplo da nossa área por
meio de sua publicação pela Editora da ABRALIN é, na sua origem,
uma tese de doutoramento defendida, com louvor, na Faculdade
de Letras da UFMG.
Tive a felicidade de acompanhar o trabalho da autora na
condição de orientador do trabalho e a parabenizo de novo por
mais essa conquista.
Geisa Batista reúne qualidades que a tornam uma pesquisadora
singular, o que está refletido na originalidade do seu texto. Ela
consegue, ao mesmo tempo, ter o rigor técnico na descoberta e
análise de dados linguísticos e demonstrar curiosidade e coragem
intelectual necessárias à atitude científica fundamental que
herdamos dos antigos, o que a permitiu, de fato, a gestar, ainda que
de forma embrionária, uma teoria sobre a interdependência entre
aspectos que nomeamos de civilizatórios ou culturais e seu papel
nomológico no que concerne a fenômenos de variação e mudança
linguísticas.
Ainda que intuída por muitos, não logramos ainda, de
forma consistente ou completa, dar um tratamento objetivo, ou
empiricamente fundamentado, à correlação que se estabelece
entre aspectos culturais, nomeados muitas vezes de “visão de
mundo”, “espírito do tempo”, “mentalidade de uma comunidade” e
outros sintagmas, e sua influência e papel causal no que se refere a
propriedades de linguagem de natureza mais abstrata.
Ora, é exatamente nessa tarefa de explicitar a correlação
supramencionada que se insere o trabalho da autora. Ela retoma
o conceito de “cordialidade” visto como um traço cultural da
“civilização” brasileira, tal qual proposto por Sérgio Buarque de
Holanda; reinterpreta esse conceito com a finalidade de eliminar
certas más compreensões que acompanham esse conceito; e
examina de que maneira esse traço cultural nacional interfere nos
fenômenos de mudança dos pronomes possessivos de segunda para
terceira pessoa do singular e da fixação dessa última forma para
o emprego na segunda pessoa. Tratou-se, para dizer em poucas
palavras, de uma cooptação da terceira pessoa, que indica distância
num primeiro momento, para exprimir a proximidade da segunda
pessoa já que temos, culturalmente, resistência ao distanciamento
interpessoal.
A análise criteriosa do emprego dessas formas em peças de
autores teatrais brasileiros, a partir do século XVIII, aportou uma
solidez empírica bastante convincente. O avanço teórico do trabalho
contou com o desenvolvimento da noção de conceptualização
cultural tomada como uma entidade cognitiva e com efeitos
decisivos na variação e mudança linguísticas.
Acrescente-se ao já dito, o fato de que a leitura do livro é fluída
e muito agradável, com recursos gráficos muito bem-vindos, o que
atesta a correção da composição realizada e, tenho certeza, será
de muito proveito para o leitor não apenas da área de linguística,
mas também para leitores de áreas afins como da sociologia, da
psicologia cognitiva e de outras.

Lorenzo Vitral
Universidade
Federal de Minas Gerais
“A verdadeira trajetória de desenvolvimento do pensamento
não vai no sentido do pensamento individual para o socializado,
mas do pensamento socializado para o individual.”
(VYGOTSKY, [1934]/2001, n.p.)
SUMÁRIO

14 1 INTRODUÇÃO

22 2 MAS, AFINAL, O QUE É CORDIALIDADE?

22 2.1 Cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda

38 2.2 O QUE DIZEM OS ESTUDOS ANTERIORES?

38 CORDIALIDADE, HISTÓRIA E LINGUÍSTICA CULTURAL

39 2.2.1 História cultural e a possível relação entre cordialidade e mentalidade

47 2.2.2 Linguística cultural: cordialidade como modelo cognitivo-cultural

69 2.3 Considerações finais do capítulo

71 3 BREVE RECAPITULAÇÃO DE ESTUDOS ACERCA DAS FORMAS DE TRA-


TAMENTO RELACIONADAS AOS POSSESSIVOS EM PB E A SOCIOLIN-
GUÍSTICA COGNITIVA

71 3.1 Estudos sobre o fenômeno de variação/mudança no possessivo de 2a pes-


soa relacionados a formas de tratamento

81 3.2 Estudos linguísticos em variação e cognição

93 3.3 Considerações finais do capítulo

95 4 PASSOS METODOLÓGICOS: COMO OBSERVAR INDÍCIOS EMPÍRI-


COS DA RELAÇÃO ENTRE CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS E LÍN-
GUA?

101 5 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS: O QUE ENCONTRAMOS?

101 5.1 Algumas palavras sobre o teatro brasileiro

103 5.2 Apresentação das peças e análises preliminares dos dados


103 5.2.1 O marido confundido, de Alexandre de Gusmão

119 5.2.2 O juiz de paz da roça, Martins Pena

141 5.2.3 Não consultes médico, Machado de Assis

155 5.3 Aprofundamento sobre os dados levantados e as propriedades de cordiali-


dade

155 5.3.1 Análise comparativa entre os dados dos três textos

161 5.3.2 A gradualidade das propriedades da cordialidade

175 6 CORDIALIDADE E POSSESSIVOS DE 2ª. P EM PB: COMO SE ATI-


VAM E SE MANIFESTAM OS MODELOS COGNITIVOS CULTURAIS

190 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM NOVO OLHAR SOBRE FENÔMENOS


LINGUÍSTICOS

199 REFERÊNCIAS

210 SOBRE A AUTORA


FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

1 INTRODUÇÃO
Esse livro expõe os resultados de uma tese. Contudo, a
referida tese não é uma tese sociolinguística tradicional. O leitor
não encontrará aqui dados para provar o fenômeno de variação/
mudança teu/seu. Os dados aqui possuem caráter ilustrativo, posto
que o fenômeno do qual tratamos é suficientemente documentado.
O que proporemos é uma nova abordagem interpretativa para um
fenômeno conhecido, buscando estabelecer explicação causal para
o fato de os pronomes possessivos de 3a pessoa, seu e as respectivas
variações de gênero e número1, serem usados também para se referir
à 2a pessoa no português brasileiro (PB). Nosso modelo explicativo
considera as contribuições de estudos de abordagem cognitiva,
especialmente, o que nos remete à Linguística Cultural. Contudo,
sabemos que a relação entre propriedades da língua e propriedades
culturais e sociais não é inteiramente clara, o que sempre traz a
necessidade de estabelecê-la cientificamente. Buscaremos então
avançar objetivamente nesse difícil caminho e contribuir também
para os estudos em história social da língua.
Muito, é claro, já foi escrito sobre a cultura brasileira.
Inicialmente, interessa-nos mais de perto o texto Raízes do Brasil,
no qual Sérgio Buarque de Holanda traça um retrato do que seria o
“tipo psicológico do brasileiro”, ou seja, o “homem resultante” das
forças sócio-histórico-culturais que permearam a construção do
país. Tomando tal retrato de identidade como nacional, revelada
no “homem cordial”, o autor nos aponta fenômenos linguísticos
que aparentemente manifestariam a cordialidade, que se porta

1 Para tornar a leitura mais confortável e o texto mais conciso, optamos por citar os pronomes em sua
forma masculina e singular: seu, teu e vosso. Entretanto, naturalmente, eles aparecem nos textos estudados e
em outros exemplos ao longo do trabalho em suas variações de gênero (masculino e feminino) e de número
(singular e plural), próprias do português. Sendo assim, ao ler a forma masculina e singular, é importante ter
em vista que se está considerando as demais variações.

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

como um tipo de traço psicológico e social coletivo, imbricado na


cultura brasileira. O autor sugere, por exemplo, que um dos usos
do sufixo diminutivo -inho seja uma expressão semântico-sintática
dessa cordialidade, afinal, seria afeto, e não somente um aspecto
de grau, o que se transmitiria ao nos referirmos à residência que se
frequenta como nossa casinha ou a um amigo como maluquinho.
Em casos assim, o que estaria em jogo, segundo o autor, seria
uma “aproximação do coração” (HOLANDA, [1936]2015, p. 256).
A cordialidade prefere o tratamento privado em detrimento do
público.
Entendendo, com o autor, a cordialidade como aversão à
impessoalidade nas relações interpessoais, pergunta-se acerca da
possibilidade de sua manifestação linguística especificamente em
formas pronominais do PB enquanto variante do português europeu
(PE) as quais, em última instância, expressam linguisticamente
a relação com um outro. Em outras palavras, uma vez que a
cordialidade possa se expressar linguisticamente, fenômenos de
variação/mudança poderiam ser também manifestações linguísticas
da cordialidade? Se sim, além de manifestar-se linguisticamente,
poderia ser a cordialidade um fator externo provocador de variação/
mudança linguística no sistema pronominal do PB, determinando as
escolhas dos falantes? Além disso, a cordialidade poderia ser o que
outrora se tratou como mentalidade (ARIÈS, [1978] 2011; VOVELLE,
[1987] 1991), como a chama Avelino Filho (1988)? Poderia ser o que
a linguística cultural concebe como modelo cultural (SHARIFIAN,
2011; DʼANDRADE, 1987; STRAUSS; QUINN, 1998; KRONENFELD,
2008; BENNARDO; MUNCK, 2014)?
Para responder a tais questionamentos, consideramos a base
teórico-metodológica dos pressupostos da teoria da variação/
mudança linguística (WEINREICH; LABOV; HERZOG, [1968]
2006), segundo a qual toda variação/mudança na língua responde
a condicionamentos linguísticos e extralinguísticos. Assim,

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

inserimo-nos na história social da língua, no que concerne aos


estudos de mudança linguística, em especial às mudanças no uso
de pronomes possessivos de 2a e 3a pessoas. A partir da possível
aproximação teórica entre os estudos de fenômenos de variação/
mudança linguística e a Linguística cultural, questiona-se, sob o
prisma do conceito de conceptualização cultural, a relação entre
a cordialidade, tal como definida por Holanda ([1936]2015), e
variações no uso da 2a pessoa do possessivo no PB. As formas de
tratamento nominais e pronominais nos interessam porque podem
trazer marcas culturais de tratamento, auxiliando a identificação
do contexto em que o pronome observado ocorre.
As razões que nos levaram à escolha do problema, bem como
a identificar sua relevância, são de ordem teórica. O interesse de
pesquisadores da área de Letras pela principal obra de Holanda
não é original. Na literatura, Dias (2013) investigará o conceito de
cordialidade na correspondência entre os autores Gilberto Freyre e
Manuel Bandeira e apresentará como hipótese que a “sociabilidade
tipicamente brasileira” presente nas cartas estudadas deixou marcas
também na escrita modernista. Rocha (1998) objetiva investigar a
afirmação de Afrânio Coutinho de que o homem cordial revela caráter
brasileiro que incide sobre uma provável singularidade cultural
que deve ter tido repercussões no mundo literário e, para tanto,
analisará a famigerada querela entre José de Alencar e Gonçalves
de Magalhães. A partir da crítica feita à Confederação dos Tamoios,
de Magalhães, texto patrocinado por D. Pedro I, Alencar usaria
de artifícios sociais do “homem cordial” para ingressar no mundo
dos homens letrados. Aguiar (2012) propõe estudo linguístico em
que, pela seleção lexical do discurso político do deputado Roberto
Jeferson, de 2005, busca demonstrar a importância do “homem
cordial” na cultura e no imaginário coletivo brasileiro. A partir da
análise da seleção lexical do discurso, observa a predominância
de dois campos lexicais: o primeiro denominou de “intimidade e

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

afetividade” e o segundo de “agressividade”2, o que, por sua vez,


seria compatível com a ideia de Holanda sobre o “homem cordial
ambíguo, com evocações emotivas opostas e complementares”
(AGUIAR, 2012, pp. 71-2).
Os estudos citados tratam de determinados sujeitos históricos
em situações comunicativas formais. Considerando situações
comunicativas mais diversas, inúmeras pesquisas linguísticas já
relacionaram fenômenos de variação/mudança em formas de
tratamento às propriedades culturais ou a traços semânticos menos
formais. Entretanto, esses estudos não associaram tais fenômenos
à noção de cordialidade de Holanda ([1936]2015). Citamos alguns:
Kerbrat-Orecchioni (2011), que realiza estudo intracultural acerca
de situações conversacionais em francês; Ramos (2011) com estudo
intracultural, comparando formas de tratamento contemporâneas
entre pai e filho no PB; Machado (2011), que realiza estudo
intracultural acerca das formas de tratamento em peças teatrais
em PB e PE dos séculos XIX e XX; Menon (1997), Martins e Vargas
(2014) e Lucena (2016) que, ao estudarem fenômenos de variação
pronominal – entre seu/de você, no primeiro caso, e teu/seu nos
dois seguintes – , de modo geral, apontam como causas da variação
fatores linguísticos como a introdução do você na função de
pronome sujeito.
Segundo Lucena (2016, p. 77), a utilização de seu como
estratégia de referência à 2a pessoa está intrinsecamente
relacionada à inserção de você no quadro de pronomes do PB.
Alguns fenômenos tratados no trabalho de Martins e Vargas (2014),
no entanto, apontam para uma possibilidade pouco abordada pelos
trabalhos predecessores. Elas observam, ao analisar as cartas de
leitores a jornais, que o comportamento do possessivo seu parece
não acompanhar o movimento do pronome sujeito você, o qual, por

2 O que ainda seria a esfera dos afetos em nossa interpretação, como ficará claro mais adiante.

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

sua vez, tem uso crescente a partir da segunda metade do século


XIX. Diante de tal fenômeno, as autoras apontam que seu seria
ainda formal naquele momento, associado a vossa mercê/vossa
excelência e vossa senhoria em situações de maior impessoalidade.
Sob outra ótica, a da nossa proposta, considerando a concepção
de cordialidade – a aversão à impessoalidade – como uma
conceptualização de tipo especial, um modelo cognitivo-cultural,
sugere-se aos dados de Martins e Vargas (2014) outra possibilidade
interpretativa para o fenômeno: o seu que aparece associado ao
vossa mercê/... na verdade já seria o seu cooptado para a 2ª pessoa,
em movimento que o retira do público em direção ao privado, em
processo, portanto, de personalização.
Nossa hipótese parte da ideia de que seu em 2ª pessoa,
fenômeno que ocorre no PB e não no PE, se desloca da 3ª pessoa,
lugar que indica mais distância em relação ao interlocutor, para
a 2ª pessoa. Tal distância está em consonância com Benveniste
(1966, p. 231) quando ele afirma que os pronomes pessoais marcam
“oposição entre pessoa (eu/tu) e não-pessoa (ele)”, posto que eu
e tu/você são, respectivamente, quem enuncia e quem é pelo eu
designado. Já a 3ª pessoa referencia o que está ausente, é a ausência.
Nossa leitura é a de que, uma vez cooptado para a 2ª pessoa, e mais
próximo do eu, pessoalizado, seu, diacronicamente, avança em
sua concorrência com teu e torna-se recorrente em contextos de
afetividade, pessoalidade e menor formalidade. Consideraremos
tais propriedades como características da noção de cordialidade de
Holanda ([1936]2015).
A partir dessa nova hipótese propõe-se, como contribuição
inovadora deste trabalho, que o falante do PB, membro de um
grupo cultural que compartilha e constrói conceptualizações
culturais, teria optado por formas de expressão afetivas, pessoais
e menos formais nessa concorrência por atuar, ao lado de fatores
linguísticos, também a cordialidade como fator extralinguístico,

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

no sentido estrito do termo. Reforçamos que não pretendemos


provar o referido fenômeno, isto é, o uso de seu como pronome
de 2ª pessoa, já exaustivamente documentado, mas propor-lhe um
novo modelo teórico explicativo.
A mesma proposta interpretativa também nos parece passível
de aplicação ao fenômeno de variação/mudança nas formas de
tratamento em PB trazidas por Ramos (2011, p. 296), que afirma
que o crescente uso do você em lugar do senhor no tratamento
entre pai e filho se deve à mudança social pela qual passa a família
atualmente, que estaria trocando uma ideologia hierarquizada por
uma igualitária entre seus membros. Nota-se que a autora também
aponta a opção pelo menos formal. Em sua análise, diz que o
termo senhor perde “respeitabilidade” e, assim, o primeiro traço a
cair seria o que dita formalidade, posto que o uso de senhor ainda
resistiria “onde há formalidade”. Tal conclusão parece corroborar a
nossa ótica de análise, ou seja, há certa tendência de “informalizar”,
aproximar, aquilo que em um primeiro momento surge como
formal, impessoal. Nesse caso, um estudo cuidadoso poderia nos
indicar se, de fato, fenômenos variacionais como os mencionados
ocorrem sistematicamente nessa ordem (do formal ao informal,
do impessoal para o pessoal, etc). Neste trabalho, porém, nos
limitaremos aos fenômenos de variação que envolvem os pronomes
possessivos de 2a pessoa teu/seu observando seus correlacionados
nos dados analisados.
Colocamo-nos ao lado de tais estudos e com eles desejamos
contribuir por meio de uma abordagem original acerca dos fenômenos
de variação/mudança do emprego dos pronomes possessivos de 2a.
pessoa nas formas de tratamento do PB. Para tanto, apresentamos
como hipótese investigativa, ainda, a qual buscaremos confirmar
nas próximas páginas, a de que ao se comparar a construção e as
características teóricas da cordialidade em Holanda ([1936]2015) às
definições encontradas nos estudos culturais é possível a descrição

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

desse conceito como uma conceptualização cognitivo-cultural


brasileira de tipo mais abrangente, isto é, um modelo cultural que
atua como fator de variação/mudança linguística.
O objetivo geral desta pesquisa, pois, consiste em investigar
a possibilidade de a cordialidade, compreendida como
conceptualização cultural, ser um dos fatores causais de fenômenos
linguísticos de variação/mudança pronominal relacionados a
formas de tratamento do PB. Especificamente visa-se: 1) contribuir
com as possíveis relações entre os Estudos Culturais Históricos,
Sociais e Linguísticos; 2) estabelecer a aproximação entre os
Estudos Culturais e a cordialidade, tal como intuída por Holanda
([1936]2015); 3) estabelecer relação entre os Estudos Cognitivos e
Sociolinguísticos e 4) investigar em que medida os fenômenos de
variação/mudança nos pronomes possessivos de 2ª pessoa do PB
relacionados às formas de tratamento podem ser manifestação de
um modelo cognitivo-cultural.
Metodologicamente a pesquisa busca, primeiro, apresentação
e discussão ampla sobre a temática da concepção da cordialidade
no contexto dos Estudos Culturais e em Linguística. Em seguida,
investiga a viabilidade da hipótese teórica elaborada por meio
da qual se comprovaria a tese da possibilidade de a cordialidade
ser compreendida como fator de variação/mudança linguística
pronominal relacionada às formas de tratamento do PB. Quanto
aos meios, a pesquisa foi, em um primeiro momento, bibliográfica
e documental e, em um segundo momento, investigativa, com
a averiguação da hipótese. Utilizou-se para isso, de maneira
ilustrativa, os dados extraídos de três textos teatrais de autores
brasileiros, a saber: O marido confundido, de Alexandre Gusmão
([1737]1841), O juiz de paz da roça, de Martins Pena ([1837]2018)
e Não consultes médico, de Machado de Assis ([1896]2018). As
peças foram escolhidas considerando a possibilidade de acesso
aos manuscritos e/ou às primeiras edições, o período histórico de

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

ocorrência do fenômeno apontado pelos estudos anteriores e o


gênero. Optou-se pela comédia teatral de costumes por ser esse
um texto que busca relação próxima com o público, de forma que,
para alcançar essa proximidade, apresenta certa representação do
falar da época em que se insere.
Não poderia deixar de registrar, nesse momento, meu
agradecimento à Academia Brasileira de Letras, à Biblioteca Nacional
e à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais pela presteza no
atendimento e acesso ao acervo, bem como aos colegas professores
Lorenzo Vitral, Márcia Rumeu, Jussara Abraçado, Ulrike Schröder,
Eliana Tavares, Adriana Barbosa, Milene Oliveira e Gasperim
Ramalho, pela leitura acurada e pelos momentos de interação.
Por fim, este livro está estruturado em Introdução, que
acabamos de expor, e cinco capítulos: o primeiro é o referencial
teórico, no qual apresentaremos os marcos conceituais de nossas
análises; o segundo é uma breve revisão bibliográfica de alguns
dos principais estudos variacionais que tratam do fenômeno que
observamos, bem como a apresentação do quadro teórico da
Sociolinguística Cognitiva (GEERAERTS, 1989; KRISTIANSEN;
DIRVEN, 2008 GRONDELAERS; SPEELMAN; GEERAERTS,
2007; GEERAERTS; CUYCKENS, 2007); no terceiro capítulo
apresentamos mais detalhadamente o percurso metodológico do
trabalho; no quarto temos apresentação e discussão qualitativa dos
dados extraídos dos textos em análise; no quinto apresentamos o
modelo teórico de explicação do fenômeno observado com base
nos parâmetros teóricos expostos. Por fim, apresentamos nossas
considerações finais acerca do que aqui foi abordado.

21
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

2 MAS, AFINAL, O QUE É


CORDIALIDADE?
Neste capítulo apresentaremos o conceito central de nossa
pesquisa, qual seja, a cordialidade como compreendida por
Sérgio Buarque de Holanda ([1936]2015). Na segunda seção (2.2)
discutiremos o melhor tratamento teórico a ser dado à noção de
cordialidade. Nesse contexto assumiremos como base referencial
o trabalho teórico de Sharifian (2011) associado aos estudos de
D’Andrade (1987), D’Andrade; Strauss (1992), Holland; Quinn (1987)
e Bennardo; Munck (2014) por melhor atender ao nosso modelo
explicativo.

2.1 Cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda

Em um contexto de redefinição política, econômica e cultural


do Brasil3, em 1936, Sérgio Buarque de Holanda fez sua principal
publicação, Raízes do Brasil. Procurando respostas para a construção
do ideário de um “Brasil moderno”, intelectuais discutiam o tema
da identidade cultural/nacional e cada autor, para construir sua
tese, elaborou uma gama de conceitos a fim de encontrar uma
racionalidade inscrita no desenvolvimento do Brasil. Como define
Mota (1999), primeiro decompõe-se a realidade histórico-cultural
brasileira, depois ela é organizada segundo conceitos como os de
raça, mestiçagem, patrimonialismo, patriarcalismo e cordialidade.
Um dos primeiros grandes esforços teóricos em desvendar
o passado para a construção do ideário moderno do Brasil foi
realizado por Oliveira Viana ([1920]2005), o qual dedicou anos de
obra intelectual à construção de uma concepção de nação sobre

3 Cf. Herschmann e Pereira, 1994, pp. 35-6.

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

um Estado forte. Em sua principal obra, Populações meridionais


do Brasil, elabora a tese de interpretação do Brasil. Para o autor, são
elementos que influenciam na formação nacional (ecologia social) a
raça, o meio ambiente e a cultura. De maneira racista, afirma que a
influência negra é perniciosa4 e deve ser processualmente superada.
Na ótica do autor, o Brasil é um ser em evolução, um organismo
político. Contudo, obstruindo esse processo, os partidos políticos
são expressões de clãs, pelos quais interesses privados invadem o
espaço público. O problema do Brasil seria o particularismo dos
partidos, dos interesses, revelando-se, na verdade, falsos partidos
com soluções corporativistas:

Partidos políticos, ou ligas humanitárias, sociedades de fins morais


ou clubes recreativos, todas essas várias formas da solidariedade
têm entre nós uma vida artificial e uma duração efêmera.
Organizadas, dissolvem-se logo, ou pela desarmonia interior, ou
pelo esquecimento rápido dos fins visados. [...] Normalmente,
o círculo da nossa simpatia ativa não vai, com efeito, além da
solidariedade de clã. É a única forma de solidariedade social que
realmente sentimos, é a única que realmente praticamos. [...] No
ponto de vista da sua psicologia social ficam, por isso, em plena
fase patriarcal – a fase da solidariedade parental e gentílica. Toda a
sua atuação em nossa história social e política se faz tendo por base
essa mentalidade elementar. (VIANA, [1920]2005, pp. 241-2)

Por sua concepção acerca da contribuição dos negros na


cultura, a obra de Viana será entendida como um anti-Casa-grande
e senzala, de Gilberto Freyre. A interpretação do Brasil, de Freyre
([1933] 2003), partirá do micro-organismo da Casa-grande e senzala.
Também considerará entre os conceitos básicos de sua tese os de

4 Passagem ilustrativa dessa visão: “Os preconceitos de cor e de sangue, que reinam tão soberanamente
na sociedade do I, II e III séculos, têm, destarte, uma função verdadeiramente providencial. São admiráveis
aparelhos seletivos, que impedem a ascensão até às classes dirigentes desses mestiços inferiores, que formi-
gam nas subcamadas da população dos latifúndios e formam a base numérica das bandeiras colonizadoras”
(VIANA, [1920]2005, pp. 172-3).

23
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

raça e cultura. O autor reelabora a cultura brasileira restaurando o


papel de personagens marginalizados:

Foi o estudo de antropologia sob a orientação do professor Boas


que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor
– separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da
experiência cultural. [...] A escassez de mulheres brancas criou
zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre
senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações – as dos brancos
com as mulheres de cor – de “superiores” com “inferiores” [...] A
índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a
quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até
esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no
sentido de democratização social no Brasil. (FREYRE, [1933]2003,
pp. 32-3)

Ao negro cabe papel na cultura brasileira e à mulher na


miscigenação. O conceito de miscigenação possui valor de
democratização e valorização da raça, posto que a miscigenação,
a seus olhos, fornecia um contrapeso à brutalidade da dominação
de brancos sobre negros. A miscigenação não afirma a democracia
racial, mas a torna possível. Para o autor, a miscigenação provoca a
melhoria da raça, sendo o mulato um tipo superior. Encontrando-
se com Viana quando este fala dos clãs e da organização política
brasileira, Freyre também afirma o patriarcalismo em toda
organização social e, ainda, que as iniciativas econômicas e políticas
partiram não do Estado, mas das famílias:

A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um


sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura
latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de
boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família,
com capelão subordinado ao pater familias, culto dos mortos etc.);
de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene
do corpo e da casa (o “tigre”, a touceira de bananeira, o banho de
rio, o banho de gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(o compadrismo). (FREYRE, [1933]2003, p. 36)

Holanda ([1936] 2015), em sua tese sobre a identidade nacional,


dialoga com seus predecessores em pontos que nos são muito caros
nesta pesquisa. O que Viana e Freyre percebiam nas relações políticas
e econômicas – a saber, certa predominância da visão familiar,
privada, sobre a visão de Estado, pública – Holanda enxergará em
todas as relações públicas e sociais no Brasil. A cordialidade faria
parte do “ser brasileiro”, avesso à impessoalidade e desejoso de
intimidade. Por “ser brasileiro” não se entende nenhuma forma de
herança, determinação natural ou genética, como esperamos deixar
claro mais adiante.
Assim como Viana e Freyre, Holanda acredita que entender
o Brasil é entender que há uma visão particularista (pessoal) do
todo social, o que se associa também ao patriarcalismo. No Brasil
haveria uma sociedade patriarcal, não política como em Aristóteles
(384-322 a.C.)5, mas particularista. Para esses teóricos, no Brasil, a
família envolve o Estado:

A família patriarcal fornece, assim, o grande modelo por onde se


hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e
governados, entre monarcas e súditos. Uma lei moral inflexível,
superior a todos os cálculos e vontades dos homens, pode regular a
boa harmonia do corpo social, e, portanto, deve ser rigorosamente
respeitada e cumprida. (HOLANDA, [1936]2015, pp.101-2)

Em Raízes do Brasil, Holanda, metodologicamente, repercute


as obras de Weber ([1904]/2010) e de Dilthey ([1883]/1989). Tal
influência é bastante reconhecida.
Do primeiro autor absorve a construção dos tipos ideais,

5 Zoon polotikon, animal social, ser que se realiza na sociedade, vida política, na cidade (“comunidade
política”) com seus concidadãos. “Não se pode pôr em dúvida que o Estado está naturalmente sobre a famí-
lia e sobre cada indivíduo, porque o todo é necessariamente superior à parte, posto que uma vez destruído o
todo, já não há partes, não há pés, não há mãos” (ARISTÓTELES, 2016, p.11, tradução nossa).

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

definidos como construções racionais, um procedimento


metodológico (WEBER, 2010, p. 11). Monteiro (1999, p. 21) apontará
Weber como principal referência de Holanda, afirmando o “homem
cordial” como um tipo ideal weberiano; porém, diferentemente
de Weber, Holanda “focaliza pares e não pluralidades de tipos”,
dando dinamismo ao processo, como nos ressalta Antônio Cândido
no prefácio de Raízes do Brasil (HOLANDA, [1936]2015, p. 14). A
partir desse método, Holanda monta um conjunto de opostos, a
cada capítulo se observa contrários se enfrentando, e reintroduz
a oposição “iberista versus americanista” nos debates acerca da
construção da identidade nacional.
Se sua abordagem sociológica é weberiana, sua abordagem da
história é dita psicológica, isto é, como Dilthey, ele quer apreender a
vida humana brasileira e ibérica pelo seu interior: “Uma abordagem
histórica, assim como uma abordagem psicológica do ser humano
como um todo, leva-me a explicar até mesmo o conhecimento e
seus conceitos [...] em termos dos múltiplos poderes de um ser que
deseja, sente e pensa” (DILTHEY, 1989, p. 50)6.
Assim, segundo Reis (2006), escaparia de uma visão
exclusivamente passadista, que fixa o Brasil num imaginário em
sua gênese. Como nos apresentará Sallum Jr. (1999, pp. 235-36),
Holanda entenderá a identidade brasileira como problemática,
fraturada e ainda em devir. Tratar-se-ia, dessa forma, de reconstruir
a identidade brasileira tradicional, entendida como um dos polos
de tensão social e política do presente. Acreditando na formação do
Brasil colonial como maneira de entender o Brasil contemporâneo,
Holanda parte da pergunta sobre o modo pelo qual fomos civilizados
e a Península Ibérica será o pilar central dessa identidade em

6 Corroborando nossa leitura, citamos o recorte de Scocuglia (2002): “[...] a experiência humana é vis-
ta como formada por vivências – experiências de caráter histórico [...] Ambos self e mundo real são, portanto,
dados na totalidade da vida psíquica. Cada um existe em relação com o outro e são igualmente imediatos e
verdadeiros”. (DILTHEY,1882, p. 493-94 apud SCOCUGLIA, 2002, n.p.)

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

construção.
Holanda enfatiza em seu texto que compartilhamos uma
“alma comum” com os ibéricos, especialmente com os de Portugal:
“Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura;
o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma”
(HOLANDA, [1936]2015, p. 45). Segundo o autor, temos um
sistema próprio de evolução, o que faz com que as tentativas de
implantação de culturas estranhas ao nosso universo acabem por
nos “desterrar de nossa terra” (HOLANDA, [1936]2015, p. 35). Essa
evolução própria também é ilustrada pelo que dirá em seguida
sobre as regras de organização política brasileira e a caracterização
do papel do patriarcalismo nesse processo:

O quadro familiar [...] torna-se tão poderoso e exigente, que sua


sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico.
A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública [...]
Representando o único setor onde o princípio de autoridade é
indisputado, a família colonial oferecia a ideia mais normal de poder,
da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens.
O resultado era predominarem, em toda vida social, sentimentos
próprios à sociedade moderna, naturalmente particularista e
antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela
família. (HOLANDA, [1936] 2015, p. 96)

Acerca desse aspecto da cultura nacional, já apontado pelos


autores predecessores, é importante destacar que, mais tarde,
Caio Prado Jr. ([1942] 2011, pp. 285-315), em Formação do Brasil
Contemporâneo: colônia, ao tratar da relação Estado-sociedade e
da organização social brasileira, também ecoará tal “pessoalidade”
nas relações e também apontará sua extrapolação para as próprias
relações do Estado, afirmando que se criam intercessores entre os
interesses do Estado e os privados, de tal forma que a empresa passa
a depender dos favores do Estado. Para ele, esse processo também
tem raízes no processo formativo, de quando o Estado “dominava

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

o mercado”, a saber, período de colonização portuguesa.


A aversão à impessoalidade das relações, a qual parece ponto
pacífico entre alguns dos principais teóricos da identidade nacional,
leva Holanda à elaboração do “homem cordial”: o que age com o
coração, é mais sentimento que razão, mais afeto que ordem social.
Logo em suas primeiras edições, o autor se antecipa a recepções
equivocadas do conceito, comumente entendido como polidez,
cortesia e amabilidade. Assim, referindo-se à obra de Cassiano
Ricardo, em nota, Holanda esclarecerá que o termo cordialidade
tal como proposto por esse autor

[...] se antepõe à cordialidade assim entendida, o “capital sentimento”


dos brasileiros, que será a bondade e até certa “técnica de bondade”,
“uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora”.
[...] cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha,
por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não
abrange, por outro lado, apenas e obrigatoriamente, sentimentos
positivos e de concórdia. A inimizade pode ser tão cordial como
a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem
assim da esfera do íntimo, do familiar, do privado. (HOLANDA,
[1936]2015, pp. 240-41)

Ademais do ajuste conceitual oferecido pelo próprio autor a


Cassiano Ricardo, é importante ressaltarmos que, ainda hoje, o
conceito “homem cordial” causa controvérsias. Pinto (2001) afirma
que o brasileiro não “faz” filosofia sistemática como a tradição
inglesa, alemã ou francesa e, como um subproduto do “homem
cordial” de Holanda, cunha para o filósofo brasileiro a expressão
“filósofo cordial”: o filósofo cordial evitaria o debate, já que
representa possibilidade de confronto:

Como personaliza as suas relações, ele transforma aqueles que o


criticam em inimigos mortais. Ora, ele acha preferível ter um amigo
distante do que um inimigo próximo. Daí sua tendência a deslocar o
verdadeiro debate para a intriga de bastidores. Nestas, a condenação

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

sem direito de defesa constitui a regra. No domínio público, o


debate se reduz a intervenções mais ou menos teatrais depois de
alguma conferência, em que a força das objeções é cuidadosamente
medida, para evitar o perigo de o confronto tornar-se pessoal. O
debate escrito deve ser evitado, pois deixa registrada para sempre
a crítica capaz de gerar inimizade. O filósofo cordial sabe que as
palavras voam, mas a escrita permanece. (PINTO, 2001, p. 4)

Reconhecemos aqui também o estudo de Rocha (1998, p.


168), Literatura e cordialidade, no qual o autor defenderá um
conceito funcional de “homem cordial”, ou seja, da cordialidade
como estratégia de sobrevivência ante a instabilidade do Estado,
situando-a no contexto marcado pela hipertrofia do privado como
característica e não como traço psicológico: “a cordialidade deve
ser compreendida menos como índice de uma hipotética índole
nacional do que como estratégia de sobrevivência, criada – e a partir
de então naturalizada – numa sociedade cuja esfera pública sempre
permanece instável” (ROCHA, 1998, p. 171).
Para a leitura dos intérpretes que consideram as contribuições
metodológicas de Dilthey e Weber a Raízes do Brasil, amplamente
expostas por Scocuglia (2002), Monteiro (1999), Carvalho (1997) e
Reis (2006), a leitura de Rocha (1998) negligenciaria, em especial,
a contribuição de Dilthey (1989), segundo a qual Holanda quer
apreender a vida humana brasileira e ibérica pelo seu interior. Nas
palavras de Scocuglia (2002, p. 258) “o mundo histórico de cujo
conhecimento se trata em Dilthey é sempre um mundo formado e
conformado pelo espírito humano”. Assim, o “homem cordial” para
ele se referiria não a uma estratégia do sujeito diante da realidade,
mas sim a uma concepção conformada pelo espírito dos homens
de uma época. Reis (2006) afirma que Holanda procurará destacar,
através da comparação de tipos, como Weber, mas também sob a
ótica de Dilthey, os traços peculiares do Brasil e, assim, reconstruir os
processos de formação da sociedade, o que seria uma reconstrução

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

da mentalidade dos brasileiros: “sua narração é capaz de reconstruir


o espírito de uma época [...] Assim, seu historicismo aparece em
seus temas principais [...] os tipos e conceitos, e não leis históricas”
(REIS, 2006, p. 121).
Outra leitura do conceito, também atual, mas provavelmente
mais mordaz, é feita por Jessé Souza em seu A elite do atraso.
Em poucas palavras, Souza (2017) reconhece a relevância teórica
de Raízes do Brasil, mas identifica o “homem cordial” como um
conceito a serviço dos interesses da elite nacional e de mercado,
uma vez que serve à construção do brasileiro como emotivo, uma
característica não relacionada à racionalidade, em oposição ao
europeu, o racional. Para Souza (2017, p. 104), a ideia de cordialidade
implica a ideia de que “O brasileiro é malformado de nascença por
uma herança cultural pensada como estoque do mesmo modo e com
os mesmos objetivos que o racismo da cor da pele antes cumpria”:

Sérgio Buarque é o pai do liberalismo conservador brasileiro ao


construir as duas noções mais importantes para a autocompreensão
da sociedade brasileira moderna: a noção de homem cordial e a noção
de patrimonialismo. O homem cordial é a concepção do brasileiro
como vira-lata, ou seja, como conjunto de negatividades: emotivo,
primitivo, personalista e, portanto, essencialmente desonesto e
corrupto. O homem cordial deve ser tornado pelo mercado e pela
industrialização um homem tão democrático, produtivo, puro e
honesto como os americanos, o exemplo de homem-divino para
Sérgio Buarque e para a esmagadora maioria dos brasileiros,
intelectuais ou não. (SOUZA, 2017, p. 108)

A crítica de Souza (2017) é aguda. O “homem cordial” seria


uma noção descrita por Holanda e perpetuada por parte da elite
financeira. A cordialidade é algo a ser corrigido pela urbanização e
pela industrialização, aos moldes americanos, noção pertencente a
certo aparato ideológico liberal doutrinário.
Distanciamo-nos do caminho de Souza (2017) buscando nos

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

abster de qualquer juízo de valor. Por mais inquietante que seja, e que
tal inquietação, por si, ateste a relevância da reflexão proposta pelo
autor, nossa intenção primeira, aqui, é a de apresentar um pouco da
diversidade de leituras em torno da cordialidade e da sua atualidade
antes de propormos a nossa própria leitura. A esse respeito, um
interessante apontamento relacionado ao propósito desse livro deve
ser feito, no entanto: a crítica de Souza (2017) refere-se à qualidade
da “noção”, de suas implicações sociais consideradas maléficas, mas
não questiona a sua existência. Ao contrário, acreditamos poder
afirmar que o autor pressupõe que a cordialidade seja um dado da
realidade que se manifesta nas múltiplas produções sociais e, por
isso mesmo, “importante para a autocompreensão da sociedade
brasileira moderna”. Por fim, nesse contexto, outro interessante
apontamento que deve ser feito é o de que, ainda que aceitemos
que a noção de “homem cordial” interesse a um aparato ideológico
doutrinário, dados indicam que a noção de cordialidade pode ser
tomada cognitivamente como um conceito prototípico, concernente
a habilidades de categorização. Possui, pois, implicações mais
abrangentes, como procuraremos demonstrar mais adiante, na
seção A cordialidade e os estudos culturais: da história à linguística
cultural.
Para Avelino Filho (1988), em Raízes do Brasil, Holanda busca
entender a sociedade brasileira a partir de um “tipo próprio de
cultura”, do qual o “homem cordial” seria uma síntese e no qual
“a herança ibérica, específica dentro da Europa, consegue se manter
estruturada enquanto visão de mundo” (AVELINO FILHO, 1988, p.
2). Esse autor concorda com Souza (2017) e com outros intérpretes,
como Hot (2011, p. 9) e Rocha (1998), quanto à interpretação de
“superação” da cordialidade pela urbanização – fato textual em

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Holanda7 – e adverte:

A cordialidade é o resultado direto da materialização da “cultura


da personalidade” na colônia; é somente com o processo de
urbanização que a cordialidade, junto com a influência ibérica,
começa a enfraquecer­se. Herança ibérica, ruralismo e cordialidade
são coisas que andam juntas. O impasse aparece na transição entre
uma mentalidade remanescente e outra por surgir. (AVELINO
FILHO, 1988, p. 3)

A desagregação daquilo que convencionou-se chamar de Brasil


Colônia e o “conseqüente enfraquecimento da cordialidade, apesar
de favorecer, não determina a hegemonia da civilidade entre nós”
(AVELINO FILHO, 1988, p. 3), a qual seria favorecida pelo meio
urbano, mais industrial e menos agrário. O “pobre defunto”8, o
“homem cordial”, está vivo entre nós. E nessa conclusão, Avelino
Filho (1988) é acompanhado por Robert Wegner (2000):

[...] tendo dito que a cordialidade tem como fonte de manutenção


o ruralismo, o segundo conjunto de argumentos aponta para
a sua diluição operada pela urbanização. [...] Mas, por sua vez,
a importância adquirida pelas cidades não é suficiente para a
configuração da civilidade, que significa valores e atitudes mais
adequadas para um país em processo de modernização. (WEGNER,
2000, p. 19)

Os autores ainda concordarão quanto a como deve ser


interpretada a cordialidade. “Viva” entre nós, “a cordialidade

7 “Em palavras mais precisas, somente através de um processo semelhante [ascensão de uma socie-
dade urbana e liberal] teremos finalmente revogada a velha ordem colonial e patriarcal, com todas as conse-
qüências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar [...] Estaríamos vivendo assim
entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz” (HOLANDA, [1936]2015, p.
180)
8 Termo pelo qual Holanda se refere ao “homem cordial” em uma carta a Cassiano Ricardo, publicada
na Revista Colégio, n. 3.

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

não pode ser compreendida de forma alguma como caráter


nacional ou qualquer tipo de essência imutável” (AVELINO FILHO,
1988, p. 5), mesmo porque Holanda concebe que “herança ibérica,
ruralismo e cordialidade são coisas que andam juntas” (Ibidem,
p. 3). Wegner (2000, p. 57), referindo-se à 2ª edição de Raízes do
Brasil e a seus acréscimos, reafirma o reforço à historicização da
cordialidade, sublinhando sua ancoragem no ruralismo através da
intensificação no recurso à Sociologia.
Tanto Monteiro (1999, p. 200) como Wegner (2000, p. 53)
chamam atenção para a insatisfação de Holanda com a explicação
genética “caráter nacional”, utilizada na primeira edição da obra.
Wegner (2000) nos lembra que Holanda explicitou isso na 2ª
edição da obra, no prefácio, e que realizou ainda outras mudanças
substanciais à obra, sendo o reforço histórico e social da cordialidade
um dos pontos mais relevantes de tais mudanças. Ambos
mencionam, destacadamente, a nota explicativa a Cassiano Ricardo,
à qual voltaremos mais adiante. Concordamos com essa percepção.
Sabemos que, por vezes, Holanda usa termos como “influência
ancestral” ([1936]2015, p. 176, por exemplo), os quais poderiam nos
remeter a aspectos biológicos ou essenciais, o que, certamente, não
era ignorado por ele. Entretanto, os esclarecimentos acrescidos
na 2ª edição indicam que quando o autor, ao nos apresentar o
conceito, se remete aos estudos sociológicos e afirma tratar-se de
“forma cultural, socialmente plasmada de comportamento nas
relações coloquiais” (HOLANDA, [1936]2015, p. 241) o problema
acerca da classificação do “fenômeno” como biológico ou cultural
fica esclarecido interna corpus: a cordialidade é cultural.
Vale, no entanto, destacar ainda alguns termos distintivos entre
os autores: Rocha (1998) chama o “homem cordial” de “estratégia
funcional”; Souza (2017), de “noção”; Pinto (2001) o trata por “tipo”
e Monteiro (1999), como dito anteriormente, chama o “homem
cordial” mais claramente de “tipo ideal”, um recurso lógico e

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

metodológico. Wegner (2000) não nomeia claramente a cordialidade


ou o “homem cordial”, mas se aproxima da interpretação sócio-
histórica de Avelino Filho (1988), que tratará cordialidade pelo
termo “mentalidade”, o qual, por sua vez, nos parece fronteiro ao
que Reis (2006) propõe ao aproximá-lo de “espírito de uma época”.
Se neste ponto nos voltarmos a Holanda, considerada a obra
em suas versões após os esclarecimentos do autor, encontraremos
que o “homem cordial” representa certo tipo social (Cf. HOLANDA,
[1936]2015, p.177; referência a Nietzsche): a “personificação” de
um conjunto de características culturais e psicológicas atribuídas
pelo autor aos brasileiros. O termo “cordial” é compreendido em
sentido etimológico, a cordialidade como “capital sentimento” do
brasileiro (HOLANDA, [1936]2015, p. 240), em quem o sentimental
se sobreporia ao racional inclusive nas relações públicas:

O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja


ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto
da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com
facilidade. E é tão característica, entre nós, essa maneira de ser, que
não desaparece sequer nos tipos de atividade que devem se alimentar
da concorrência. Certo negociante da Filadélfia manifestou a Andre
Siegfried seu espanto ao verificar que, no Brasil como na Argentina,
para conquistar um freguês tinha antes que fazer dele um amigo.
(HOLANDA, [1936]2015, p. 178)

Holanda afirma que o “homem cordial” tende a se enfraquecer


a partir da urbanização brasileira9 e que a cordialidade não se
apresenta como algo fixo, imóvel e imutável, podendo ser modificada
de acordo com as circunstâncias sócio-históricas. É importante
reforçar que esse autor apresenta a crença, corroborada por seus

9 “A crise que acompanhou a transição do trabalho industrial aqui assinalada pode dar uma idéia pá-
lida das dificuldades que se opõem à abolição da velha ordem familiar por outra, em que as instituições e as
relações sociais, fundadas em princípios abstratos, tendem a substituir-se aos laços de afeto e de sangue”.
(HOLANDA, [1936]2015, pp. 142-43)

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

principais interlocutores, de que na interação entre aspectos sócio-


histórico-culturais encontram-se as características psicológicas
que definem um povo. Uma das especificidades do pensamento de
Holanda, entendemos, se dará pela possibilidade de manifestação
desse “modo de ser” nacional pela linguagem.
Essa “identidade”, essa “maneira de ser” do brasileiro, mas não
exclusiva dele (menciona a Argentina, por exemplo), se manifestaria
na vida social, na religiosidade, nos negócios e, inclusive, na
linguagem. Vejamos um exemplo:

No domínio da linguística, para citar um exemplo, esse modo de ser


parece refletir-se em nosso pendor acentuado para o emprego dos
diminutivos. A terminação “inho”, aposta às palavras, serve para
nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo
tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis
aos sentidos e também de aproximá-los do coração. (HOLANDA,
2015, p. 178)

A aversão à impessoalidade, então, tal como apontada pelos


estudos sociológicos brasileiros e por Holanda, parece aproximar-
se da proposta de Ochs e Schieffelin (1989, p. 9) de que há recursos
em linguagens que os falantes usam para afetar os outros e,
com isso, buscar “reconhecimento”10. A expressão de afeto pode
funcionar como recurso que fomenta uma inovação linguística
que, na concepção de Vitral (2012, p. 81), é, em última instância,
buscar “o reconhecimento do outro” não na esfera pública, que se
dá num processo de luta pelo reconhecimento, como pensada por
Honneth (2003), mas num reconhecimento pela “pessoalização”.
Dito de outra forma, nessa acepção, na cultura brasileira, gestos
linguísticos mais afetivos serão mais expressivos e potencialmente
mais reconhecidos.
É importante notar ainda que o uso afetivo do diminutivo,

10 Noção presente em autores da modernidade e, recentemente, em Honneth (2003) e Ricoeur (2004).

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

assim como a própria cordialidade, não é exclusivo do PB. Kerbrat-


Orecchioni, estudando as formas nominais de tratamento do
francês, constatará que:

[...] além do fato de que eles [falantes nativos do inglês] recorrem


constantemente, sem nenhum valor afetivo particular, às diversas
formas diminutivas do nome, elas [formas diminutivas de nomes]
são muito mais utilizadas em inglês que em francês com fins de
cortesia [cortesia que não se confunde com a cordialidade definida
por Holanda], em particular para acompanhar atos rituais (tais
como saudações, agradecimentos etc.), nos quais se fazem mais
sistematicamente presentes. (KERBRAT-ORECCHIONI, 2011, p. 42)

O próprio Holanda afirma que os demais sul-americanos


compartilharam conosco tais características. Contudo, alega
também que há uma diferença de grau, maior em nós: nenhum
povo está mais distante dessa “noção ritualística do tratamento
cordial”, ou seja, daquilo que chamamos de uma cortesia formal,
que o brasileiro (HOLANDA, [1936]2015, pp. 176-7). Assim, quanto
à cordialidade, não se investiga sua exclusividade, mas como ela
existiria e se manifestaria entre nós, na linguagem.
Considerando particularmente o que o autor nos diz sobre
tal manifestação, parece-nos possível, ainda, ao lado do uso do
diminutivo, observar outros fenômenos com uso semelhante, todos
relacionados a formas de tratamento, a saber: preferência pelo uso
do primeiro nome e não pelo sobrenome e, em especial, o fenômeno
de variação/mudança teu/seu em que seu, ao se converter na forma
de terceira pessoa para se dirigir à segunda, indicaria que o falante
estaria tentando evitar a distância que a forma de terceira pessoa
impõe. É essa, como dito, a hipótese que perseguiremos neste livro.
Nota-se que tal aproximação entre afetividade e formas de
tratamento não é estranha à linguística. Kerbrat-Orecchioni (2011, p.
37) nos chama a atenção para o aspecto afetivo das formas nominais

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

de tratamento, que podem corresponder tanto à empatia quanto


à hostilidade, como veremos mais adiante. Todos esses casos nos
parecem expressar pessoalidade e afetividade, entendidas como
uma forma de atribuição de valor11.
Neste momento, poderíamos questionar sobre quais são
as propriedades indicativas e identificáveis de tal manifestação,
entendendo a cordialidade como a prevalência do privado sobre o
público, uma aversão à impessoalidade. Como veremos, é possível
identificar ao menos três propriedades semânticas distintivas do
conceito de cordialidade e perceptíveis na linguagem, tomando
como ponto de partida os exemplos oferecidos por Holanda
([1936]2015) nas páginas 176 a 182 e na nota explicativa número 6 do
capítulo “Homem cordial”, na mesma obra. Nas referidas passagens,
textualmente Holanda associa a cordialidade ao comportamento
informal (menos formal, propriedade 1), íntimo (pessoalidade,
propriedade 2) e afetivo (afetividade, propriedade 3).
A menor formalidade é uma propriedade que está presente no
tratamento que rejeita hierarquia:

[...] nada mais significativo dessa aversão ao ritualismo social [...] do


que a dificuldade em que se sentem, geralmente, os brasileiros, de
uma reverência prolongada ante um superior. Nosso temperamento
admite formas de reverência, até de bom grado, mas quase somente
enquanto não suprimam de todo a possibilidade de um convívio
mais familiar. (HOLANDA, [1936]2015, p. 177)

A pessoalidade está presente na busca por intimidade:

[...] a manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui


sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade.
(HOLANDA, [1936]2015, p. 177)

11 Afetividade como valor, em sentido etimológico, “aquilo que nos afeta”, só tem valor aquilo que nos
afeta. A afetação, nessa acepção, pode ter valor positivo ou negativo. (Cf. DUROZOI; ROUSSEL, 1993, p.
14).

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

[...]
o uso do simples prenome importa em abolir psicologicamente
as barreiras determinadas pelo fato de existirem famílias diferentes
e independentes umas das outras. (HOLANDA, [1936]2015, p. 178)

Todos, fidalgos e plebeus, querem estar em intimidade com as


sagradas criaturas (santos) e o próprio Deus é um amigo familiar,
doméstico e próximo. (HOLANDA, [1936]2015, p. 179)

Por fim, a afetividade está presente na proeminência do


privado e marcada no diminutivo:

A terminação “inho”, aposta às palavras, serve para nos familiarizar


mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes
dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e
também de aproximá-los do coração. (HOLANDA, [1936]2015, p. 178)

Em outras palavras, tomaremos como cordial, em maior ou


menor grau, um comportamento, social ou linguístico, culturalmente
motivado, que possui, parcial ou totalmente, a presença de menor
formalidade, pessoalidade e afetividade como propriedades
semânticas centrais. Por cordialidade, como buscaremos mostrar
a seguir, compreenderemos uma conceptualização cultural,
especificamente, um modelo de cultura.

2.2 O QUE DIZEM OS ESTUDOS ANTERIORES?


CORDIALIDADE, HISTÓRIA E LINGUÍSTICA CULTURAL

A fim de discutirmos a melhor abordagem teórica a ser dada


ao conceito cordialidade, apresentaremos três concepções
norteadoras da nossa abordagem, a saber, mentalidade,
conceptualização cultural e modelo cultural. Partiremos de um
relato historiográfico e seguiremos para a discussão acerca da
correlação que se pode estabelecer entre esses conceitos.

38
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

2.2.1 História cultural e a possível relação entre cordialida-


de e mentalidade

Nesta subseção, apresentaremos um relato historiográfico do


conceito “mentalidade” e exporemos a abordagem histórica que
pode ser dada à cordialidade, como apontado por Avelino Filho
(1988).
Inicialmente, pensemos Hegel ([1837]2008) quando, ao tratar da
história, discorrerá sobre o Zeitgeist ou espírito de um tempo ou de
uma época. Segundo o autor, as ideias que os homens têm em mente
(espírito subjetivo) participam do espírito de sua própria época.
Tais ideias moldam o modo de ser, os costumes, as concepções de
si mesmos e o que eles carregam em sua consciência, pois as ideias
subjetivamente manifestas ganham objetividade e se manifestam
nas criações humanas, criando circunstâncias históricas. A história
então é a marcha do espírito ao longo de todas as épocas. É como
se aquele Zeitgeist se encarnasse nas diversas instituições que
os humanos criam para viver entre si. O Zeitgeist se apoderaria
também da linguagem, perpassando-a e deixando nela uma marca
que pode, por sua vez, ser manifesta.
É interessante notarmos aqui como Dilthey (1989), embora
discorde de Hegel em outros pontos, acabaria por se aproximar
dele ao considerar que o homem na história é determinado
fundamentalmente pela relação individualidade e “espírito
objetivo”, como nos aponta Scocuglia (2002). Não nos parece
absurdo, portanto, afirmar que, em Dilthey, haja uma dialética
entre interno e externo – ao mencionar interior e objetivação do
espírito – e a compreensão da totalidade ou da própria história
como resultante disso. Também se pode especular que Holanda,
por meio de Dilthey, aceitaria isso, reforçando que estaria buscando
essa história construída sob uma mentalidade, como a denomina

39
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Avelino Filho (1988).


Sobre as reflexões históricas acerca da mentalidade, Waeny
(2002) afirma:

Se na Alemanha do século XIX história e psicologia tornam-se


campos de saber e se abordagem histórica e memória tornam-
se temas, o século XX testemunhará a migração da história e da
abordagem histórica para a França: de factual, uma se tornará
história-problema [critica a história política tradicional] – com os
Annales; e a outra, de psicologia dos povos, será psicologia histórica
e história das mentalidades. (WAENY, 2002, p. 15)

As mudanças e transformações das ideias para a escola Des


Annales se relacionam às mudanças de uma mentalidade coletiva.
Ressalva-se aqui que não se compreende ambas teorias (Zeitgeist
hegeliano e mentalidades) como a mesma, como também não quer
Le Goff (2011, p. 125), mas como teorias consecutivas que abordam
em seu cerne a definição do que seria a concepção de mundo ou
mudança das ideias que caracterizam uma época. Le Goff considera
“abstrações perigosas” as reflexões acerca de um Zeitgeist em sua
proposta de abordagem histórica:

Conheço os riscos desta reflexão. Considerar como unidade uma


realidade complexa e estruturada em classes ou, pelo menos,
em categorias sociais distintas pelos seus interesses e cultura ou
supor um “espírito do tempo” (Zeitgeist), isto é, um inconsciente
coletivo; o que são abstrações perigosas. No entanto, os inquéritos
e os questionários usados nas sociedades “desenvolvidas” de hoje
mostram que é possível abordar os sentimentos da opinião pública
de um país sobre o seu passado, assim como sobre outros fenômenos
e problemas [cf. Lecuir, 1981]. (LE GOFF, 1990, pp. 38-9)

Ao mencionar uma das publicações de Febvre nos Annales,


Ariès ([1978] 2011) dirá que as estruturas mentais são constituídas
por visões de mundo herdadas e reconhecidas por grupos ou mesmo

40
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

por uma sociedade global. Para Ariès (([1978] 2011, p. 270), o fato de
não podermos agir da mesma forma que antepassados nas mesmas
situações “indica, precisamente, que uma mudança de mentalidade
interveio entre o tempo deles e o nosso”:

Aqui, porém, descobrir, implica, antes de mais, compreender a


diferença. A compreensão é hoje rara, mesmo entre os homens de
culturas contemporâneas. [...] Quando se trata de duas culturas
afastadas no tempo, o entendimento é igualmente difícil. Se nasce
da identificação, no seio da mentalidade que nos é estranha, de
elementos de semelhança com a nossa própria mentalidade, que
espontaneamente reconhecemos enquanto tal, encontramo-
nos no domínio das permanências. Mas se esse entendimento
nasce da verificação de diferenças irredutíveis, então a diferença
será, simultaneamente, a condição da particularidade e a da sua
compreensão. É ela que separa a outra cultura da nossa, e lhe
assegura a sua originalidade, que aceitamos. Por conseguinte, é,
antes de mais, em função da nossa mentalidade de hoje que uma
cultura diferente assume um outro aspecto. (ARIÉS, ([1978] 2011, p.
291)

Se para Ariès ([1978] 2011, p. 291) a “história das mentalidades


é, sobretudo, uma história das mentalidades de outrora, dos
quadros mentais não-atuais”, deveríamos nos perguntar em
que sentido a cordialidade pode ser tratada como mentalidade
e se foi mantida ou superada na atualidade. E, por fim, discutir
sobre a aplicação do termo. A resposta provavelmente estaria na
compreensão de que, para a Nova História, o tempo da mentalidade
é a longa duração, gera inércia, permanência. É o tempo do que
muda lentamente, mas não do que não muda. Falar de mentalidade
é também falar de cultura:

Certas estruturas [mentais] são dotadas de uma vida tão longa que
se convertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações:
obstruem a história, entorpecem-na e, portanto, determinam o seu

41
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

decorrer. Outras, pelo contrário, desintegram-se mais rapidamente.


Mas todas elas constituem, ao mesmo tempo, apoios e obstáculos,
apresentam-se como limites (envolventes, no sentido matemático)
dos quais o homem e as suas experiências não se podem emancipar.
Pense-se na dificuldade em romper certos marcos geográficos, certas
realidades biológicas, certos limites da produtividade e até reações
espirituais: também os enquadramentos mentais representam
prisões da longa duração [...] assim como o ser humano é limitado
e supera as limitações geográficas (viver na montanha, fundar
cidades...) o mesmo ocorre na cultura “As mesmas permanências ou
sobrevivências dão-se no imenso campo do cultural”. (BRAUDEL,
[1958]1982, pp. 268-9)

A cordialidade, nos parece, se encontraria nessa longa duração


que, para Souza (2017) e Pinto (2001), entorpece, devemos dizer.
Se encontraria em um passado “que ainda permanece”, pois muda
lentamente. A possibilidade de aproximação entre a cordialidade e
a abordagem dessa Nova História fica mais clara à medida que fica
mais claro que essa nova história é cultural. Ariès ([1978] 2011) fala
de uma consciência atual segundo a qual o homem contemporâneo
não está certo de sua superioridade e abre interesse e espaço para a
Nova História:

A nova história das mentalidades tem-se mantido igualmente atenta


às diferenças regionais e às diferenças sociais. É uma característica
comum às três gerações dos Annales, que se deve à influência,
constante, sobre os historiadores franceses, dos grandes geógrafos
da 1ª fase do séc. XX. [...] As teses de geografia sobre as grandes
regiões como a Flandres, da autoria de R. Blanchard ou como a
Picardia, devida a A. Demangeon foram os primeiros modelos de
uma história cultural das regiões [...] Pretendiam, deste modo,
pôr em relevo as “características originais de uma região” – para
parafrasear M. Bloch – pois era nelas que assentava a sua unidade.
(ARIÈS, [1978] 2011, pp. 289-90)

A Nova História das Mentalidades, “atenta às diferenças

42
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

regionais e às diferenças sociais”, torna-se uma Nova História


Cultural com a terceira geração dos Annales. A mentalidade atual,
contemporânea, teria ela própria possibilitado os Estudos Culturais:

A nossa mentalidade atual (contemporânea) que poderemos


designar por modernidade, encontra-se, invariavelmente, na
origem da curiosidade histórica e da percepção das diferenças.
Sem a consciência da modernidade não haveria diferenças. E
também não existiria a história. Mesmo as não-diferenças, isto é, as
permanências, não seriam apreendidas. (ARIÉS, [1978] 2011, p. 291)

Há uma relação entre estudos histórico-culturais e os


sociólogos brasileiros mencionados. Holanda e Freyre são
apontados como historiadores dessa Nova História no Brasil:

É comum dizer-se, entre os que pesquisam a história cultural


no Brasil, que Freyre e Sérgio Buarque “faziam história das
mentalidades sem o saber”, fórmula bem-humorada de reconhecer
o pioneirismo de ambos no tratamento de certos temas de
nossa história que só a custo, e graças à penetração da Nova
História na universidade brasileira, passaram a ser valorizados
pelos pesquisadores. (CARDOSO; VAINFAS, 1997, p. 160)12

Freyre ([1933]2003, p. 32) afirmou que o contato com estudos


antropológicos de Franz Boas, tão caros à linguística cultural,
“abriram seus olhos”. Podemos entender por que, a partir de trabalhos
de Febvre, Raminelli (1990) apresentará uma aproximação entre a
História das Mentalidades e os Estudos Linguísticos, considerando
“visões de mundo” e sua manifestação:

Será a transformação da organização da sociedade que possibilitará


o aparecimento de signos novos e, logo, de um outro modo de pensar.
Com isso, o estudo do campo lingüístico se torna indispensável à

12 Corresponde à página 237 no livro disponível online.

43
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

história das mentalidades, pois a forma mental e a língua correm


paralelamente. E é exatamente a correlação que busca Febvre ao
analisar o vocabulário do pensamento filosófico renascentista.
Sem um inventário sistemático e cronológico de palavras, como
entender os meios de expressão dados ao indivíduo pelo grupo?
(RAMINELLI, 1990, p. 113)

Nessa perspectiva na linguagem, como Febvre13 buscou


ao analisar o vocabulário Renascentista, pode se manifestar a
mentalidade. E assim nos reencontramos com as leituras de Avelino
Filho (1988), de Wegner (2000) e mesmo de Monteiro (1999):

Destarte, “aventura” e “cordialidade” não são configurações reais


da cultura brasileira, nem tão pouco resultado imaterial de uma
personalidade “aventureira” ou “cordial”. São antes instrumentos que
polarizam o real, marcando traços particularmente significativos das
culturas da gente do passado, segundo o ponto de vista irredutível
do historiador. Cultura “não se consubstancia em atitudes pessoais
determinadas, mas são as condutas prevalecentes na sociedade, ao
longo da história”. (MONTEIRO, 1999, pp. 25-6)

Isso parece descrever com precisão que à cordialidade


compete o mesmo que dizem os estudiosos culturais de outrora:
“pôr em relevo as ‘características originaisʼ de uma região” em busca
de sua unidade, como exposto por Ariès ([1978] 2011). A cordialidade
aponta, tipicamente, uma atitude desenvolvida ao longo de um
passado colonial “prevalecente na sociedade, ao longo da história”
(MONTEIRO, 1999, p. 26), que embora seja datado apresenta “uma

13 Como nos adverte Robin (1978, p. 73), Febvre parece querer não se ligar diretamente à linguísti-
ca estrutural de sua época. Por outro lado, talvez seja possível aproximá-lo de teorias gerativistas ao notar
que em sua história, ao estudar a “origem das noções e sua evolução semântica em diacronia”, propunha
as “interrelações entre os diversos elementos do todo social” e que o lugar de tal inter-relação, como atesta
Raminelli, seria o léxico. Sobral (1987, pp. 54-5) proporá uma aproximação ainda maior ao dizer “que não
só há grandes semelhanças nos atributos sensórios dos humanos e uma competência linguística universal,
como as diferenças que se manifestam em algumas formas de organização social e, sobretudo, no ritual, na
mitologia e na cosmologia, parecem redutíveis à especificidade de certos modos de vida e de comunicação
em sociedades”.

44
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

maneira muito peculiar de se pensar a cultura, marcando uma


interpretação histórica que redesenha o passado, não apenas em
busca de um ʻcaráter nacionalʼ, mas almejando alcançar traços
explicativos de atitudes presentes em 1936, quando [Raízes do Brasil]
era editado, e também depois” (Ibidem, p. 23). Essas características,
porque associadas ao meio rural e patriarcal, estariam fadadas ao
desaparecimento, graças à revolução lenta e gradual da urbanização
também tratada por Wegner (2000, p. 56), mas tal modificação é
lenta, porque a cordialidade seria uma estrutura de longa duração
(BRAUDEL, [1958]1982). Entendemos que a historicização desse
“caráter”, bem como das atitudes e comportamentos (filosóficos,
linguísticos, políticos, comerciais, religiosos, etc.)14, aponta para
ideia de cordialidade como subjetividade socialmente construída,
mas ainda difícil de ser explicitada.
Apesar do que dissemos, mentalidade permanece um termo
problemático. Mesmo os historiadores têm preferido chamar a
abordagem de Nova História Cultural15 e evitar a polissemia à
qual o termo está sujeito. Vovelle ([1987] 1991, pp. 14-6) reconhece
tal polissemia afirmando que não há aceitação unânime de um
conceito para mentalidade e chama mentalidade de inconsciente,
mais precisamente de “inconsciente coletivo”. Distanciando-se da
concepção de Vovelle ([1987] 1991), por outro lado, Ariès ([1978]
2011, p. 293) prefere tratar por “desconhecido para nós, por isso
não-consciente”:

Mas o que é o inconsciente coletivo? Seria, certamente, mais

14 Vale lembrar que até ao famigerado “jeitinho” a cordialidade se vê associada. Da Matta (1991 apud
MELLO, 2000, p. 22) nos fala de jeitinho como espécie de síntese/solução do dilema lei universal e cordial-
idade.
15 Cf. Cardoso e Vainfas (1997, p. 624) “a história das mentalidades, ascendente nos anos 60 e coroada
nos anos 70, sobretudo na França, foi pouco a pouco perdendo terreno, viu muitos de seus historiadores aban-
donarem o rótulo das mentalidades e acabou se refugiando em microcampos variados ou na hoje assumida e
reconhecida como Nova História Cultural”.

45
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

adequado falar de não-consciente coletivo, ou seja, coletivo porque


comum a uma sociedade, no seu conjunto e num momento dado. E
não-consciente porque imperfeitamente compreendido ou mesmo
ignorado pelos contemporâneos, a quem aparece como um fato
adquirido, situado no âmbito dos dados imutáveis da natureza. É o
domínio das ideias feitas e das ideias em voga, dos lugares-comuns,
dos códigos da conveniência e da moral, dos conformismos e
dos interditos, das expressões aceites, impostas ou rejeitadas,
dos sentimentos e dos fantasmas. Os historiadores falam de
“estrutura mental” de “visão do mundo”, para designar o conjunto
dos traços coerentes e rigorosos de uma totalidade psíquica que,
se impõe aos homens de uma época, sem que eles disso tenham
consciência. É bem possível, todavia, que os homens de hoje sintam
antes a necessidade de fazer emergir à superfície da consciência
os sentimentos outrora enterrados na memória coletiva profunda.
Nesse caso, não se trataria da procura de uma sabedoria ou de uma
verdade intemporal, mas da pesquisa das sabedorias anônimas,
das sabedorias empíricas que presidem às relações íntimas das
coletividades com cada indivíduo, com a natureza, com a vida, com
a morte, com Deus e com o além. (ARIÈS, [1978] 2011, p. 16)

É na concepção de mentalidade como inconsciente coletivo


que, precisamente, reside o maior problema ao uso do termo, posto
que por definição o “inconsciente coletivo pode ser entendido como
um conhecimento a priori a todo homem e referente às repetidas
experiências humanas, gravadas na psique”, imutável, universal,
como nos lembram Bastos e Oliveira (2015, p. 127), remetendo à
Jung (2000, p. 15).
Como vimos anteriormente, a cordialidade não é imutável
ou universal. Manter a terminologia histórica é manter com ela a
possibilidade de ambiguidade do termo. A proposta de mentalidade é
uma proposta de abordagem histórica que nos atende parcialmente.
Paralelamente a essa abordagem também houve contribuições
linguísticas. Considerando o problema, para propor a existência de
uma relação entre o “homem cordial” de Holanda e a linguagem,
nosso objeto empírico, vejamos as contribuições que nos trazem

46
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

os Estudos Culturais linguísticos desenvolvidos especialmente no


último século.

2.2.2 Linguística cultural: cordialidade como modelo cog-


nitivo-cultural

Como ficará claro ao longo desta subseção, consideramos


contribuições da Linguística cognitiva, como não poderia deixar de
ser, mas tomaremos como base teórica, em especial, algumas das
teses abordadas pela Linguística cultural. É preciso relembrar que
a relação entre língua e cultura também não é nova nos estudos
linguísticos. Na Linguística cultural, Boas (1911), que já foi mencionado
por Freyre ([1933]2003), afirmou que uma sincronia de uma cultura
pode moldar uma língua. Acerca da suposta impossibilidade de as
línguas de indígenas norte-americanos expressarem e construírem
um pensamento abstrato, afirma:

Parece muito questionável o quão a restrição do uso de certas formas


gramaticais pode realmente ser concebida como um obstáculo na
formulação de ideias generalizadas. Parece muito mais provável que
a falta dessas formas se deva à falta de sua necessidade. [...] o modo
de vida das pessoas é tal que não são requeridos; que, no entanto,
se desenvolveriam logo que necessário [...]. Nessas condições, a
língua seria moldada pelo estado cultural. (BOAS, 1911, pp. 64-7,
tradução nossa)16

Dito de outra maneira, a língua seria moldada pelo estado


cultural de um grupo, de tal forma que estariam presentes nela

16 It seems very questionable in how far restriction of the use of certain grammatical form can really
be conceived as a hindrance in the formulation of generalized ideias.it seems much more likely that the lack
of these forms is due to the lack of their need. [...] the mode of life of the people is such that they are not
requered; that they would, however, develop just a soon as needed [...]. That under these conditions the lan-
guage would be moulded rather by the cultural state.

47
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

aqueles recursos que forem de fato necessários à expressão do


pensamento que for requerido, quando e se for requerido a tal
grupo. Haveria, então, uma relação de correspondência entre as
estruturas da linguagem e a cultura. Nessa citação também está
contida a relação entre língua e pensamento. A tríade pensamento-
língua-cultura também já se apresentava nas palavras de Humboldt
([1928]2006) ao dizer que “as diferentes línguas constituem os
órgãos das maneiras singulares de pensamento e sentimento das
nações” (HUMBOLDT, [1928] 2006, p. 199)17. Humboldt definiu
como visão de mundo “a percepção do mundo organizado por uma
língua particular” (Cf. CHABROLLE-CERRETINI, 2007). Assim, não
significa apenas que a língua expressaria os pensamentos conforme
o molde que a cultura lhe dá, mas, ainda, a língua organizaria a
própria percepção do mundo, o próprio pensamento sobre a
realidade.
Provavelmente, a concepção mais célebre formulada nessa
área seja a que ficou conhecida como hipótese Sapir-Whorf. A fim
de se distanciar de uma visão universal, estritamente biológica e
determinista da língua, já nas primeiras páginas de sua obra Language,
Edward Sapir discorrerá sobre a aparente semelhança e diversidade
cultural das interjeições em japonês e inglês, comparando-as ao
que chama “várias maneiras nacionais de pintar” (SAPIR, 1921, p.
6), corroborando a ideia de uma língua moldada pela cultura:

Os dois modos de representação [pintura de uma colina] não são


idênticos, porque precedem de tradições históricas diferentes e
são executados com diferentes técnicas pictóricas. [...] Diferem [as
interjeições], muito ou pouco, porque são construídas de materiais
e técnicas historicamente diversas, as tradições linguísticas
respectivas, os sistemas fonéticos e os hábitos de fala dos dois

17 [...] dass die verschiedenen Sprachem die Orgaane der eigenthümlichem Denk-und Empfindungsar-
ten der Nationem ausmachem.

48
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

povos. (SAPIR, 1921, p. 6, tradução nossa)18

Benjamin Lee Whorf, aluno de Sapir, estudando a língua Hopi,


afirmará que “existe uma relação entre uma linguagem e o resto da
cultura da sociedade que a usa” (WHORF, 1956, pp. 214-15, tradução
nossa)19, de tal forma que, à medida que cultura e linguagem se
mantêm juntas por determinado período histórico, os estudos
poderiam detectar quando a linha que as separa é “atravessada”:

Essas conexões não são encontradas, concentrando a atenção


nas rubricas típicas das descrições linguísticas, etnográficas ou
sociológicas, como examinando a cultura e a linguagem (sempre
e somente quando os dois se mantiveram historicamente por
um período considerável de tempo) como um todo em que as
concatenações que atravessam essas linhas departamentais podem
ser esperadas, e se elas existirem, eventualmente detectáveis pelo
estudo. (WHORF, 1956, p. 215, tradução nossa)20

Em breves palavras, a hipótese Sapir-Whorf é assim retomada


por Kerbrat-Orecchioni (2002, n.p., tradução nossa): “A língua
reflete a cultura, e constitui, portanto, para a análise, um meio de
apreender através dela as realidades culturais, portanto ela é em
certa medida um espelho”21, leitura que indica a possibilidade de
uma ação da cultura detectável pela língua. Essas hipóteses são
compatíveis com a tese de que a cordialidade, como característica

18 The two modes of representation [picture of a hill] are not identical because they proceed from differ-
ing historical traditions, are executed whit differing pictorial techniques. [...] They differ [the interjections],
now greatly, now but little, because they are builded out of historically diverse materials or techniques, the
respectives linguistics traditions, phonetic systems, speech habits of the two people.
19 [...] there is a relation between a language and the rest of the culture of the society which uses it.
20 These connections are to be found not so much by focusing attention on the typical rubrics of linguis-
tic, ethnographic or sociological descriptions as by examining the culture and the language (always and only
when the two have been together historically for a considerable time) as a whole in which concatenations that
run across these departmental lines may be expected to exist, and if they do exist, eventually discoverable by
study.
21 La langue reflète la culture, et constitue donc pour l'analyste un moyen d'appréhender à travers elle
les réalités culturelles dont elle est dans une certaine mesure le miroir.

49
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

cultural, pode se manifestar na língua. Podemos ainda, porém,


investigar também se a teoria corroboraria a cordialidade como,
ela própria, uma “visão de mundo”22 e se a linguagem, em um gesto
mais ativo, poderia, como propõe Humboldt, organizar a própria
percepção da realidade e do mundo. Em certo sentido, uma ação da
língua sobre a cultura.
Considerado por muitos o precursor dos estudos atuais
que relacionam linguística, língua e cultura, G. Palmer (1996),
retomando estudos acerca do aspecto cultural dos conceitos de
emoções e reconhecendo o papel da cultura na conceptualização,
tradicionalmente reservado aos estudos cognitivos, conclui que
“[...] a dança da cultura e da biologia é delicada, e parece não haver
justificativa científica para fazer distinções analíticas nítidas entre
emoções, cognições e discurso.” (PALMER, 1996, p. 109, tradução
nossa)23. A relação entre cultura, linguagem e pensamento é
cognitiva, ou seja, parte da perspectiva de que a mente não é
separada do corpo e refere-se à construção do sentido.
Apoiando essa perspectiva, Lakoff e Johnson ([1980]2003, p.
19, tradução nossa) dirão, acerca das metáforas conceituais, que
“nenhuma metáfora pode ser completamente compreendida ou
adequadamente representada independentemente das experiências
básicas”24. Experiência básica é concebida como uma experiência
corporificada, fundada em nossas interações físicas, sociais e,
também, culturais.
Por essa mesma razão, Ibarretxe-Antuñano (2013, pp. 316-

22 Reconhecemos aqui as críticas dos Estudos Pós-modernos aos Estudos Culturais no que tange as re-
lações de poder. Contudo, acreditamos, com Wolf (2014, p. 449), que o medo de tratar da cultura é o “medo
do essencialismo”, o qual esperamos mostrar suficientemente o quanto está afastado de nossa concepção de
cultura. Acreditamos que uma melhor compreensão da complexidade de fenômenos culturais pode contribuir
para visões mais plurais e não simplistas.
23 [...] the dance of culture and biology is delicate, and there appears to be no scientific justification for
making sharp analytical distinctions among emotions, cognitions and discourse.
24 [...] no metaphor can ever be comprehended or even adequately represented independently of its ex-
periential basis [...] [They] are grounded by virtue of systematic correlates within our experience.

50
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

17) dirá que a cultura cumpre, pois, papel central na construção


do sentido. É fato que a autora escreve pensando, como Lakoff
e Jonhson ([1980]2003), em metáforas conceituais. Entretanto,
entendemos que tal afirmação também possa ser estendida às demais
conceptualizações. Nesse contexto, com a autora, entende-se o
significado em termos de conceptualização fundada na experiência
e no contexto social em que se dá tal experiência corporificada
como backgraund (conhecimento prévio) cultural e social:

O significado é entendido em termos de conceptualização; é


enciclopédico e fundamentado na experiência. O contexto social,
por outro lado, refere-se à natureza social e cultural da linguagem e
sua relação com a cognição situada, variação dentro e entre línguas
e culturas e discurso. (IBARRETXE-ANTUÑANO, 2013, p. 316,
tradução nossa)25

A significação é compreendida assim em termos de


conceptualização fundada na experiência que, por sua vez, refere-se
à linguagem e à cognição situadas social e culturalmente. Ibarretxe-
Antuñano (2013, pp. 324-25) propõe ainda, ao tratar da construção
da base experimental em uma metáfora conceitual, algo que nos
será caro para a compreensão da relação do papel da cultura na
construção do significado. Segundo a autora, a cultura funciona
como uma sieve (peneira, coador) na construção do significado,
ao filtrar os elementos da experiência corporificada e dar como
resultado a base físico-cultural da metáfora conceitual. Trata-se de
uma dupla função:

A peneira cultural não é um elemento passivo; não é apenas


um monte de pedaços de cultura que adicionam informações

25 Meaning is understood in terms of conceptualization; it is encyclopedic and grounded in experience.


Social context, on the other hand, refers to the social and cultural nature of language and its relationship with
situated cognition, variation within and among languages and cultures, and discourse.

51
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

contextuais à metáfora. A peneira cultural deve ser entendida como


um ator ativo na análise de metáforas. Ele manipula os elementos
da cultura de duas maneiras. Por um lado, “filtra” aqueles elementos
que estão de acordo com as premissas de uma dada cultura e, por
outro, “impregna” o mapeamento com toques de uma cultura em
contraste com outros sistemas culturais e sociais. (IBARRETXE-
ANTUÑANO, 2013, p. 324, tradução nossa)26

A dupla função da culture sieve garantiria um papel ativo


da cultura que seleciona elementos e os impregna de sentido
conforme suas premissas. A língua, ou antes, a linguagem como um
todo, considerando a possibilidade de abrangência dos processos
culturais, seria o instrumento pelo qual esse processo se conduz
e se manifesta. Sendo assim, poderia ser essa uma das formas em
que linguagem/língua não apenas expressaria os pensamentos
conforme o molde que a cultura lhe dá, mas, ainda, a língua
organizaria a própria percepção do mundo, o próprio pensamento
sobre a realidade.
Corroborando os autores anteriores, para Yu (2014, p.
231) conceptualizar não é atributo exclusivo da mente (quer
dizer, não ocorre exclusivamente na mente), por isso o sistema
computacional mental não é moldado universalmente e, portanto,
inferências mentais não são únicas em todos os locais do mundo.
A corporificação implica na compreensão de que o corpo não
é puramente biológico, tem uma dimensão cultural e social, é
influenciado pelo meio, e estende-se ao ambiente físico, cultural e
social. Para Yu (2014) a experiência do corpo é base da linguagem e
do pensamento, em uma ideia semelhante à de que a cultura molda
a língua. Para melhor expor sua tese, Yu (2014) cita Gibbs (2006):
26 The culture sieve is not a passive element; it is not just a bunch of pieces of culture that add contextu-
al information to metaphor. The culture sieve has to be understood as an active actor in metaphor analysis. It
manipulates culture elements in two ways. On the one hand, it “filters” those elements that are in accordance
with the premises of a given culture, and on the other, it “impregnates” the mapping with touches of a culture
in contrast with other cultural and social systems.

52
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

A linguagem e o pensamento humanos emergem de padrões


recorrentes de atividade corporificada que restringem o
comportamento inteligente contínuo. Não devemos assumir que
a cognição seja puramente interna, simbólica, computacional e
descorporificada, mas procurar as maneiras brutas e delicadas pelas
quais a linguagem e o pensamento são inextricavelmente moldados
por ação corporificada. (GIBBS, 2006, p. 6 apud YU, 2014, p. 228,
tradução nossa)27

Para Yu (2014) o mundo não é só físico e biológico, o que o


desassocia, portanto, de uma abordagem exclusivamente inatista,
indo em direção ao social e ao cultural, aproximando-se enfim do
proposto por Ariès ([1978] 2011), de uma concepção não determinista
da mentalidade. A “cultura não só informa, mas, também, constitui
experiência corporificada” (YU, 2014, p. 231), ela também não é
uniforme, posto que as várias culturas “pesam suas experiências
incorporadas de forma diferente à medida que interpretam suas
interações sensório-motoras no mundo e tendo-o ao seu redor”
(Ibidem, tradução nossa)28.
A cultura teria, tanto em Yu (2014) quanto em Ibarretxe-
Antuñano (2013), dupla participação na construção do sentido:
fornecer e interpretar as experiências, para o primeiro autor; e
filtrar e impregnar de sentidos, para a segunda. Não se trata da
mesma participação, mas elas são relacionáveis: ao filtro podemos
associar o papel de interpretar e ao fornecimento de experiências o
papel de impregnar de sentidos. Os elementos agora impregnados
de sentido seriam elementos “semantizados” dados à experiência.
E a linguagem? A linguagem e a língua se formam e informam

27 Human language and thought emerge from recurring patterns of embodied activity that constrain
ongoing intelligent behavior. We must not assume cognition to be purely internal, symbolic, computational,
and disembodied, but seek out the gross and detailed ways that language and thought are inextricably shaped
by embodied action.
28 Culture does not just inform, but also constitute, embodied experience [...] they [various cultures]
weigh their embodied experiences differently in how they interpret their sensorimotor interactions in and
whit the world around them.

53
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

na cultura. Manifestariam a cognição corporificada e, por isso, a


identidade histórica e cultural dos grupos pode ser revelada por
elas:

Ao manifestar a cognição corporificada, a língua é, afinal, uma forma


cultural e deve ser estudada no seu contexto social e cultural, como
as conceptualizações subjacentes ao uso da linguagem e da língua
são amplamente formadas e informadas pelo sistema cultural. (YU,
2014, p. 233, tradução nossa)29

Nas palavras de Kövecses (2017), referenciando Gibbs (2006),


Johnson (1987) e Lakoff (1987), esse realismo corporificado
(embodied realism) implica que “as unidades conceituais de
frames30, ou modelos cognitivo-culturais, são estruturas motivadas
experimentalmente, são produtos diretos ou indiretos da experiência
vivida” (KÖVECSES, 2017, p. 309, tradução nossa)31.
Para esse autor a linguagem e a cultura tratam de criar
significado. Em um papel semelhante ao proposto por Boas, Sapir-
Whorf e Yu, língua seria o “repositório de significados armazenados
na forma de signos linguísticos compartilhados por membros de
uma cultura” (KÖVECSES, 2010, p. 742, tradução nossa)32 e, por isso,
responsável pela preservação dessa cultura. A língua como registro
da cultura.
Dessa pequena síntese podemos deduzir três pontos relevantes

29 While manifesting embodied cognition, language is after all a cultural form and should be studied
in its social and cultural context, as conceptualizations underlying language and language use are largely
formed and informed by cultural system.
30 Domínio semântico vinculado a um item, composto por elementos prototípicos, por isso definido por
Kövecses (2006, p. 69) como “elementos da imaginação que não se encaixam diretamente em uma realidade
objetiva preexistente”. Em Kövacses (2010, p. 745): “Frames are important in the study of almost any facet
of life and culture”.
31 [...] the conceptual units of frames, or cognitive-cultural models experientally motivated structures;
they are the products of direct or indirect lived experience.
32 Thus, language can be regarded as a repository of meanings stored in the form of linguistic signs
shared by members of a culture.

54
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

para a aproximação entre cordialidade e conceptualização que


proporemos ao fim da seção: 1) há modelos cognitivo-culturais;
2) a experimentação/vivência motiva o modelo cultural e 3) pelo
compartilhamento da língua se compartilha a cultura, destarte, o
modelo cognitivo-cultural.
Kövecses (2017) defende uma linha, compartilhada pela
maior parte dos autores da atualidade que trabalham com esses
temas, segundo a qual aquilo que antropologicamente chamamos
“cultura” deve ser chamado de “sistema conceptual”, que por sua vez
é um Construal, ou seja, operações e, ao mesmo tempo, resultado
dessas operações cognitivas. Kövecses (2017, p. 308) afirma que,
enquanto produto, resultado, a cultura pode ser igualada ao sistema
conceptual que seria composto por conceptualizações, como uma
teia conceptual (produto) tecida pelas próprias conceptualizações
(operações). O autor cita Geertz (1973) para explicitar melhor suas
ideias: “O homem é um animal suspenso em rede de significados
que ele próprio teceu. Eu tomo a cultura como sendo essas redes, e
a análise dela não é, portanto, uma ciência experimental em busca
de lei, mas uma interpretação em busca de significado” (GEERTZ,
1973, p. 5 apud KÖVECSES, 2017, pp. 308-9, tradução nossa)33.
Assim a cultura, como uma teia, “suspende” o ser humano
ao mesmo tempo em que é produto dessa “suspensão”, produto
desse ser humano suspenso. A exemplo de Ibarretxe-Antuñano
(2013) e Yu (2014), o conceito nos possibilita a compreensão de
um duplo papel da cultura, aqui denominado processo e produto.
Desse modo, sintetizando, podemos dizer que, até o momento, a
cultura é vista como um Construal, um sistema simbólico que é um
processo e também um produto, o qual filtra e impregna de sentido,
fornecendo dados e interpretando, a nossa experiência. A língua é

33 Man is an animal suspended in webs of significance he himself has spun. I take culture to be those
webs, and the analysis of it to be therefore not an experimental Science in search of law but an interpretative
one in search of meaning.

55
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

predominantemente vista, então, como registro e meio pelo qual o


processo se conduz.
Um dos representantes mais conhecidos da teoria de
conceptualização cultural é Farzad Sharifian. Segundo ele,
conceptualização se refere a processos cognitivos fundamentais,
como esquematização e categorização (SHARIFIAN, 2011, p. 4).
O que distingue a abordagem desse autor das demais é o foco na
afirmação de que tais processos são tanto um fenômeno individual
quanto cultural e coletivo. Em outras palavras, seu modelo e sua
abordagem enfatizam a importância de perceber a cognição como
propriedade de grupos culturais e não apenas de indivíduos. Assim,
conceptualizações culturais são vistas como representações que são
distribuídas em cada mente dos membros de um “grupo cultural”.
Essas conceptualizações emergem em grande parte das interações
entre os membros do grupo cultural e são constantemente
negociadas e renegociadas entre as gerações (SHARIFIAN, 2011, pp.
17-21).
Sharifian (2011) faz ainda uma observação importante: as mentes
que constituem a rede cultural não compartilham igualmente
todos os elementos do esquema, nem cada mente contém todos
os elementos dos possíveis esquemas que circulam em uma dada
cultura:

É claramente demonstrado que as mentes que constituem a rede


cultural não partilham igualmente todos os elementos do esquema,
nem cada mente contém todos os elementos do esquema. Os
esquemas culturais são retratados aqui como uma propriedade
emergente da cognição ao nível do grupo cultural e não do indivíduo.
Ou seja, neste modelo, um esquema cultural é visto como emergindo
das interações entre as mentes que constituem o grupo cultural.
Isso mostra que o conhecimento corporificado nesses esquemas é
distribuído pela rede das mentes do grupo. (SHARIFIAN, 2011, p. 6,

56
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

tradução nossa)34

Então, ele mesmo questiona: como é que podemos chamar um


membro com o elemento A do esquema X e aqueles membros com
os elementos BC de mesmo grupo cultural? (Figura 1, à esquerda). E
responde: embora não compartilhem nenhum dos elementos desse
esquema cultural, eles podem compartilhar muitos elementos de
outros esquemas culturais: “Duas pessoas podem compartilhar
mais elementos do esquema cultural X e menos elementos do
esquema cultural Y ou vice-versa (Figura 1, à direita). Assim, não
é em virtude do conhecimento de apenas um modelo que alguém
se torna membro de um grupo cultural” (SHARIFIAN, 2011, p. 7,
tradução nossa)35.

Figura 1 – Modelo de cognição cultural emergente e distributiva

Fonte: Sharifian (2011, pp. 6-7).

Dessa forma, grupo cultural não é uma coleção de indivíduos

34 It is clearly shown that the minds that constitute the cultural network do not equally sha-
re all the elements of the schema, nor does each mind contain all the elements of the sche-
ma. Cultural schemas are depicted here as an emergent property of cognition at the level of cultu-
ral group rather than the individual. That is, in this model, a cultural schema is viewed as emerging
from the interactions between the minds that constitute the cultural group. It shows that the knowle-
dge embodied in these schemas is distributed across the network of the minds in the group.
35 It can be seen that two people can share more elements from the cultural sche-
ma X and less elements from the cultural schema of Y or vice versa.Thus, it is not by vir-
tue of the knowledge of only one schema that one becomes a member of a cultural group.

57
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

que vivem em certa área, mas de pessoas que conceptualizam


experiências de maneira semelhante, em relação a um modelo
que compartilham. Sharifian caracterizará esse processo como
um sistema complexo porque, já que a cognição de um indivíduo
não capta a totalidade da cognição do grupo cultural, “os limites
onde um grupo cultural termina ou outro começa são difíceis, se
não impossíeis, de serem determinados” (SHARIFIAN, 2011, p. 24,
tradução nossa)36. Também é característica de um sistema complexo
uma história única de interaçãoes:

Como outros sistemas complexos, as cognições culturais têm sua


própria história única de interações que constroem e reconstroem
constantemente o sistema. Além disso, pequenas mudanças nas
interações de grupos culturais tiveram uma influência notável na
direção futura de sua cognição cultural. Essa visão é amplamente
refletida nos escritos de Vygotsky (e.g. Vigotsky, 1978), que viu o
fenômeno cognitivo como incorporando as características das
relações socioculturais historicamente ligadas. (SHARIFIAN, 2011,
p. 24, tradução nossa)37

Sendo assim, quando observamos e falamos de grupos culturais


e identificamos suas diferenças, falamos de grupos que negociam e
renegociam suas cognições coletivas por meio de sua história única
de interações, o que equivale à construção única da própria história
e da cultura.
E a linguagem? Essa construção única se faz linguisticamente,
por meio da comunicação:

36 […] the boundaries as to where one cultural group ends or another begins are difficult, if not
impossible, to determine.
37 Like other complex systems, cultural cognitions have their own unique history of interactions that
constantly construct and reconstruct the system. Often, small changes in the interactions of cultural groups
have had a remarkable influence on the future direction of their cultural cognition. This view is largely
reflected in the writings of Vygotsky (e.g. Vygotsky, 1978), who viewed cognitive phenomena as embodying
the characteristics of historically bound sociocultural relations.

58
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

A distribuição da cognição cultural se estende nas dimensões do


tempo e do espaço. Membros de um grupo cultural negociam e
renegociam sua cognição cultural entre gerações, verticalmente
e horizontalmente, através de uma multiplicidade de eventos
comunicativos. (SHARIFIAN, 2011, p. 21, tradução nossa)38

As conceptualizações, assim como o fenômeno da


mentalidade nesse aspecto, refletem-se nos mais diversos
aspectos da vida, como as artes, os rituais, os comportamentos e
a língua (SHARIFIAN, 2017, p. 29). As conceptualizações culturais
têm, assim, abrangência semelhante à observada por Holanda ao
descrever a cordialidade (Cf. página 49 deste livro).
Prosseguindo em nosso exercício de encontrar a nomeclatura
adequada à cordialidade nos Estudos Culturais, posto que propomos
sua inserção em modelo metodológico de análise de um fenômeno de
variação/mudança linguística, constata-se que a conceptualização
mantém as características básicas do conceito de Ariès ([1978] 2011),
condizente com a concepção de cordialidade como culturalmente
construída, escapando, contudo, da controvérsia que o conceito de
mentalidade despertaria com Vovelle ([1987] 1991), por exemplo.
Mantem-se aquilo que nos parece essencial em Ariès e abandona-se
o que há de problemático em Vovelle. Em outras palavras: parece-
nos possível aproximar a conceptualização cultural da mentalidade
expressa por Ariès ([1978] 2011, p. 270) quando ele escreve que o
fato de não podermos agir da mesma forma que antepassados nas
mesmas situações “indica, precisamente, que uma mudança de
mentalidade interveio entre o tempo deles e o nosso”. Com isso o
autor aponta as mudanças de estruturas de pensamento relacionadas
ao movimento da história, no tempo e espaço coletivos, ou seja,
destaca a amplitude da negociação e da renegociação (mediadas

38 The distribution of cultural cognition extends across the dimensions of time and space.
Members of a cultural group negotiate and renegotiate their cultural cognition across generations,
vertically and horizontally, through a multitude of communicative events.

59
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

pelo compartilhamento da língua/linguagem) de conceptualizações


entre os membros de um grupo através das gerações.
Considerando tais ponderações, parece-nos ser possível a
aproximação entre a mentalidade em Ariès, os estudos linguísticos
culturais e a opção por compreender a cordialidade como uma
conceptualização cultural, posto que falar em mentalidade, desde
que nos termos de Ariès, não seria abandonar a ideia de visão
de mundo; entretanto, falar em conceptualização é abandonar
qualquer aproximação com a visão inatista-universalista que o
termo mentalidade poderia sugerir.
Seria possível supor, ainda, em um raciocínio analógico,
que assim como das conceptualizações individuais emergem
conceptualizações coletivas, das conceptualizações culturais
emerge uma rede mais ampla, e é isso o que Sharifian (2011, 2017)
chama de modelo cultural: as conceptualizações culturais que
caracterizam nosso conhecimento intelectual mais elevado. Um
modelo cultural seria um conjunto de diferentes conceptualizações
(esquemas, categorias e metáforas): “Por esse motivo, considero
os modelos culturais como conceptualizações que caracterizam
hierarquicamente os nós mais elevados do nosso conhecimento
conceptual e que englobam uma rede de esquemas, categorias e
metáforas” (SHARIFIAN, 2011, p. 27, tradução nossa)39.
O autor, em seguida, nos fornecerá os conceitos de esquemas,
categorias e metáforas culturais:

Os esquemas culturais capturam crenças, normas, regras e


expectativas de comportamento, bem como valores sobre vários
aspectos e componentes da experiência. Categorias culturais são
aquelas que culturalmente construíram categorias conceituais que
são melhor refletidas no léxico das línguas humanas. Exemplos de

39 For the sake of this writing I view cultural models as conceptualizations that hierarchically
characterize higher nodes of our conceptual knowledge and that encompass a network of schemas,
categories and metaphors.

60
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

categorias culturais são ‘categorias de cores’, ‘categorias de idade’,


‘categorias de emoção’, ‘categorias de comida’, ‘categorias de
eventos’ e ‘categorias de parentesco’. As metáforas culturais estão
entre domínios de conceptuações que têm sua base conceptual
fundamentada em tradições culturais, como folclore, medicina,
cosmovisão ou sistema de crenças espirituais. (SHARIFIAN, 2017,
p. 30, tradução nossa)40

Consideramos aqui que a indissociabilidade entre as


conceptualizações, apontada por Langacker (1987)41, – segundo
a qual as conceptualizações atuam de maneira complementar
na construção do significado – também se aplica a esquemas,
categorias e metáforas culturais, de tal forma que a um esquema
cultural podem-se relacionar categorizações e metáforas culturais.
Batista (2019) corrobora a percepção de proximidade entre
cordialidade e um esquema de comportamento que envolve
valores, bem como a complementariedade entre categorias e
esquemas. Nesse trabalho a autora, a partir das propriedades
semânticas da cordialidade, descreveu situações que continham
as marcas comportamentais e linguísticas da cordialidade dos
exemplos oferecidos por Holanda em Raízes do Brasil, a saber,
como anteriormente por nós definidas: a menor formalidade no
tratamento que rejeita hierarquia; a pessoalidade que se equivale à
busca de intimidade, e a afetividade como proeminência do privado,
marcada exemplarmente pelo uso do diminutivo.
Na pesquisa de campo proposta por Batista (2019), os
respondentes deveriam avaliar dez situações conforme uma escala
40 Cultural schemas capture beliefs, norms, rules and expectations of behavior as well as values about
various aspects and components of experience. Cultural categories are those culturally constructed conceptual
categories that are best reflected in the lexicon of human languages. Examples of cultural categories are
‘color categories’, ‘age categories’, ‘emotion categories’, ‘food categories’, ‘event categories’, and ‘kinship
categories’. Cultural metaphors are cross-domain conceptualizations that have their conceptual basis
grounded in cultural traditions, such as folk medicine, worldview, or a spiritual belief system.
41 Langacker (1987) indica essa indissociabilidade ao apresentar um modelo de representação (network
model) da estrutura de categorias que combinam esquemas e protótipos, em que esquemas são, pois, base da
categorização, e os frames semânticos que compõem protótipos geram metáforas.

61
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Likert de gradação, em que 1 representaria um comportamento


cordial completamente atípico e 7 um comportamento não
cordial. As respostas obtidas confirmaram a expectativa de que
as situações com as três propriedades da cordialidade (menor
formalidade, maior pessoalidade e maior afetividade), tal como
descrito por Holanda, corresponderam às situações reconhecidas
pela maioria dos respondentes como representantes de um
comportamento cordial completamente típico. Ou seja, a presença
das três propriedades, simultaneamente, corresponde à situação
considerada completamente típica por 78%42 dos respondentes
(BATISTA, 2019, pp. 13-4).
Tal resultado confirma a tese de que os indivíduos respondentes
compartilham algo compatível com um esquema cultural de
comportamento, isto é, um esquema cultural de “crenças, normas,
regras e expectativas de comportamento, bem como valores sobre
vários aspectos e componentes da experiência” (SHARIFIAN, 2017,
p. 30), o qual puderam avaliar e reconhecer (ou não) nas situações,
como no reconhecimento de um script. Definido por Kövecses (2006,
p. 70) como “situações estereotipadas em uma cultura”. Scripts são
esquemas conceptuais mais estruturados. Esquemas conceptuais são
padrões “recorrentes em nossa experiência” (LACKOFF; JOHNSON,
1999). O esquema conceptual cultural considera a ampliação dos
diversos fatores culturais quando componentes dessa “experiência”:
valores, crenças, normas e expectativas de comportamento. Assim,
se, por um lado, a testagem apoia a leitura de cordialidade como
conceptualização esquemática, por outro, também a apoia como
categoria, ou seja, a percepção de cordialidade como um conceito
prototípico.
Há, na cordialidade, aspectos de uma categoria cultural
de valoração, por meio da qual se classifica um evento, ou

42 Importante ressaltar que não se esperava um resultado de 100%, posto que, por definição, o modelo
cultural não é universal nem igualmente distribuído.

62
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

comportamento, conforme sua proximidade, ou seja, mais


pessoalidade e afetividade e menor formalidde. Fazem parte
da categoria “cordial” comportamentos de interação social que
sejam, em alguma medida, menos formais, mais pessoais e/ou
afetivos, isto é, uma avaliação positiva, preferencial, do privado em
detrimento do público: cultural é preferir a intimidade, conforme
um esquema conceptual cultural que preservaria essa expectativa
de comportamento. A cordialidade seria, nos parece, um esquema
cultural complexo – relacionável à categorização de fenômenos e até
a elementos metafóricos, como o uso do morfema -inho apontado
por Holanda,– sinônimo de um modelo cultural segundo indicam
Sharifian (2011, 2017) e outros, como buscaremos mostrar a seguir.
Nas palavras de Bennardo e Munck (2014), modelos culturais
são utilizados para ler intenções, atitudes, emoções e contexto
social, tipicamente flexíveis e fluidos, quanto aos quais as pessoas
podem não estar conscientes:

Modelos culturais, simplesmente, são as configurações mentais


de conteúdo cultural minimamente saliente – bits de informação
que usamos para dar sentido à entrada sensorial ou expressar
nossas intenções sensatamente como saída. Eles não são operações
cognitivas; eles são a organização de conteúdo cultural armazenado
em nossos cérebros. (BENNARDO; MUNCK, 2014, p. 5, tradução
nossa)43

A primeira definição de modelo cultural está em DʼAndrade


(1987, p. 112): “Um modelo cultural é um esquema cognitivo que
é intersubjetivamente compartilhado por um grupo social”44. Em
outros termos, é um esquema cultural compartilhado por um
grupo social. Tal definiçao será seguida por outros autores e apoia

43 Cultural models, simply put, are the mental configurations of minimally salient cultural content—
bits of information that we use either for making sense of sensory input or expressing our intentions sensibly
as output. They are not cognitive operations; they are the organization of cultural content stored in our brains.
44 A cultural model is a cognitive schema that is intersubjectively shared by a social group.

63
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

os resultados de Batista (2019). Nas palavras de Strauss e Quinn


(1998):
Muitos esquemas são esquemas culturais – você os compartilha
com pessoas que tiveram experiências como a sua, mas não com
todo mundo. Outro nome para esquemas culturais (especialmente
do tipo mais complexo) é modelos culturais (DʼAndrade, 1995;
DʼAndrade; Strauss, 1992; Holland; Quinn, 1987). (STRAUSS;
QUINN, 1998, p. 49, tradução nossa)45

Tais autores consideram que modelos culturais são esquemas


culturais ampliados, quer dizer, esquemas culturais largamente
compartilhados por indivíduos, como para Kronenfeld (2008, p.
200): “modelos culturais podem ser vistos simplesmente como
esquemas que são amplamente compartilhados”.
A fim de se entender, por fim, o que são esquemas culturais,
uma última distinção deve ser feita. Esquemas culturais não se
confundem com esquemas imagéticos. Quando Langacker (1987,
pp. 132-35) fala em esquemas abstratos, relacionados à habilidade
cognitiva de generalização, não fala exatamente da mesma
perspectiva conceitual de Sharifian (2017) ou DʼAndrade (1987),
DʼAndrade e Strauss (1992), Holland e Quinn (1987), Bennardo
e Munck (2014) e outros. Langacker (1987) pensa em algo como
esquemas imagéticos.
Lakoff e Jonhson (1999, pp. 27-33) propõem esquemas imagéticos
como padrões abstratos e recorrentes em nossa experiência
sensório-motora que servem para estruturar conceitos complexos.
São exemplos de esquemas imagéticos trazidos pelos autores os de
PERCURSO, CONTÊINER, CONTATO, BLOQUEIO, DINÂMICA
DE FORÇAS e EQUILÍBRIO. Os esquemas imagéticos reincidem em
nossa vivência e são usados para fazermos projeções metáfóricas.

45 A great many schemas are cultural schemas – you share them with people who have had some
experiences like yours, but not with everybody. Another name for cultural schemas (especially of the more
complex sort) is cultural models (DʼAndrade, 1995; DʼAndrade; Strauss, 1992; Holland; Quinn, 1987).

64
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Em um dos muitos exemplos que se pode dar, revisitemos uma


das principais metáforas conceituais citadas por Lakoff e Johnson
(1999, p. 10): quando dizemos algo como “o falante coloca as ideias
(objetos) em palavras (contêineres)” a metáfora traz em si o esquema
imagético de contêiner.
Ao tratar de esquema cultural, no entanto, referimo-nos
a esquemas que se fundam em nossas experiências culturais,
posto que “capturam crenças, normas, regras e expectativas
de comportamento, bem como valores sobre vários aspectos e
componentes da experiência” (SHARIFIAN, 2017, p. 30). Conforme
Strauss e Quinn (1998, p. 49, tradução nossa) “esquemas, como
pensamos neles, não são coisas distintas, mas sim coleções de
elementos que trabalham juntos para processar informações em
um determinado momento”46.
Strauss (2014), que trata de modelos culturais a partir da noção
de esquema, assim como DʼAndrade e Strauss (1992, p. 226), afirma
que uma das características dessas conceptualizações é que elas
se conectam com sentimentos e motivações, isto é, elas têm uma
“força diretiva” no sentido de que não são explanações neutras, já
que carregam avaliações e objetivos que motivam a ação:

[...] Outra característica importante dos modelos culturais é que


eles estão ligados a sentimentos e motivações (DʼAndrade, 1981;
DʼAndrade e Strauss, 1992). Nas palavras de DʼAndrade (1984),
esquemas culturais têm “força diretiva”, ou seja, não são explicações
neutras, mas também incluem avaliações e metas que motivam a
ação ou, pelo menos, criam desconforto se não forem cumpridas.
(STRAUSS, 2014, p. 391, tradução nossa)47

46 […] schemas, as we think of them, are not distinct things but rather collections of elements that work
together to process information at a given time.
47 Another important characteristic of cultural models is that they are connected to feelings and
motivations (DʼAndrade, 1981; DʼAndrade; Strauss, 1992). In DʼAndrade’s (1984) words, cultural schemas
have ‘directive force’, that is, they are not neutral explanations but also include evaluations and goals that
motivate action, or at least create discomfort if they are not enacted.

65
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Seguindo a concepção de que modelos culturais são esquemas


culturais de tipo complexo, pouco adiante a autora se refere a
esquemas como modelos:

Temos esquemas para tudo que encontramos ou aprendemos, do


mundano e concreto (como reconhecer e usar objetos do cotidiano)
ao elevado e abstrato (o que é um curso de vida desejável, se existe um
poder superior, psicologia popular, economia e assim por diante).
Os esquemas culturais são derivados de experiências aprendidas
e compartilhadas, aquelas vivenciadas pessoalmente por vários
membros de um grupo ou comunicadas entre eles. Os esquemas
culturais são modelos locais de como o humanamente criado,
natural, sobrenatural, os mundos interpessoais e sociopolíticos
mais amplos funcionam. Uma vez que um esquema é um todo inter-
relacionado, qualquer coisa que evoque parte do esquema trará o
resto para a mente, consciente ou inconscientemente. (Ibidem, p.
391, tradução nossa)48

A afetividade apontada nos apresenta um ponto de contato


relevante com a cordialidade. Afinal, apesar da complexidade
conceitual envolvida no termo cordialidade, exposta na primeira
seção deste capítulo, alguns aspectos nos parecem claros: não se
pode deixar de lado os afetos, a valoração, quando tratamos da
cordialidade. Aquilo que é chamado cordial por Holanda parece-
nos referir-se especialmente a um tipo de comportamento que
está intrinsecamente relacionado a uma concepção de valor (Cf.
nota 13), ou seja, a uma concepção de valor que perpassaria os
comportamentos; um tipo de agir de valor negociado, renegociado e
compartilhado, ainda que não uniformemente, pelos integrantes do

48 We have schemas for everything we encounter or learn about, from the mundane and concrete (how
to recognize and use everyday objects) to the lofty and abstract (what is a desirable life course, whether
there is a higher power, folk psychology, folk economics, and so on). Cultural schemas are derived from
learned, shared experiences, either ones personally experienced by multiple members of a group or ones
communicated among them. Cultural schemas are local models of how the humanly created, natural,
supernatural, interpersonal, and wider sociopolitical worlds work. Since a schema is an interrelated whole,
anything that evokes part of the schema will bring the rest to mind, consciously or unconsciously.

66
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

grupo cultural. Tal comportamento, ainda conforme as definições


de Holanda e outros estudiosos, seria, além de mais afetivo, mais
pessoal e menos formal.
Por essa razão entendemos que o fenômeno de variação/
mudança do possessivo de segunda pessoa no PB se relaciona a
um esquema mental cultural, a uma manifestação linguística de
um esquema cultural, a um esquema de “tratamento cordial”.
Buscaremos evidenciar isso posteriormente, quando da apresentação
da ativação do modelo cultural na apresentação do modelo teórico
de análise do fenômeno.
Parece-nos, pois, existir relação entre os conceitos de
cordialidade e o esquema cultural – entendido como expectativa
de comportamento relacionado a um valor – amplamente
compartilhado e complexo. Por apresentar tais características
pode ser nomeado, mais especificamente, como modelo cognitivo-
cultural. Nossa opção teórica, portanto, é a de cordialidade como
modelo cultural distributivo emergente, compartilhado por um
grupo de maneira heterogênea, negociado e renegociado por seus
membros e por gerações; um esquema de expectativa e valoração do
comportamento interpessoal menos formal, mais pessoal e afetivo.
Entendemos, e buscaremos ilustrar com dados no capítulo 4,
que o fenômeno de variação/mudança do possessivo de segunda
pessoa no PB é uma manifestação linguística desse modelo cultural,
um esquema de “tratamento cordial”. Entendemos também que
esse modelo cultural revela uma visão de mundo, em esquemas
prévios de expectativas de comportamentos em certas situações
sociais, e funciona como categoria que possibilita a classificação
de tais comportamentos conforme um protótipo; contudo, não
com uma categoria de eventos propriamente, mas, antes, como um
tipo de “categoria de valores” que perpassa o modo de perceber os
próprios eventos.
Em outras palavras, propomos que esquema cultural, valores,

67
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

regras e expectativas de comportamento, que servem para


estruturar nossos pensamentos complexos, podem ser mais ou
menos prototípicos de um esquema cognitivo. Todo esse processo
contínuo e complementar compõe, portanto, um modelo cultural,
uma espécie de cultura internalizada cognitivamente pela qual
se filtra e impregna de sentido cultural elementos da realidade
experienciada.
Pensemos nos exemplos trazidos por Holanda, relacionados
ao comércio e ao ritualismo religioso:

Um negociante de Filadélfia manifestou certa vez a André Siegfried


seu espanto ao verificar que, no Brasil como na Argentina, para
conquistar um freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo.
Nosso velho catolicismo, tão característico, que permite tratar os
santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer
estranho às almas verdadeiramente religiosas, provém ainda dos
mesmos motivos. A popularidade, entre nós, de uma santa Teresa
de Lisieux – santa Teresinha – resulta muito do caráter intimista
que pode adquirir seu culto, culto amável e quase fraterno, que se
acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias. [...] Essa forma
de culto, que tem antecedentes na península Ibérica, também
aparece na Europa medieval e justamente com a decadência
da religião palaciana [...] Cristo, Nossa Senhora e os santos já
não aparecem como entes privilegiados e eximidos de qualquer
sentimento humano. Todos, fidalgos e plebeus, querem estar em
intimidade com as sagradas criaturas e o próprio Deus é um amigo
familiar, doméstico e próximo – o oposto do Deus “palaciano”, a
quem o cavaleiro, de joelhos, vai prestar sua homenagem, como
a um senhor feudal. O que representa semelhante atitude é uma
transposição característica para o domínio do religioso desse horror
às distâncias que parece constituir, ao menos até agora, o traço mais
específico do espírito brasileiro. (HOLANDA, [1936]2015, p. 179)

Não nos parece que o autor propõe que haja entre nós uma
concepção diferente do rito ou do negócio em si, mas, antes, uma
decisão deliberada, “por horror às distâncias”, de transposição de

68
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

certas características que ainda se reconhece como parte do evento


(seja comercial ou ritualístico), por outras características, essas
cordiais, a fim de atender melhor a determinados valores culturais.
Uma “categoria de valores” à qual se relacionam os esquemas
cognitivo-culturais.

2.3 Considerações finais do capítulo

Propomos, então, que a cordialidade seja um modelo


cultural, uma conceptualização cultural complexa, amplamente
compartilhada, observada neste livro como diretamente relaconada
a um esquema cultural de comportamento interpessoal, com o qual
se pode organizar, comprender e atuar na realidade. É desigualmente
distribuída, negociada e renegociada com os demais integrantes
do grupo e, por isso, suscetível à mudança. Entretanto, no âmbito
da “longa duração”, apresenta mudanças lentas e similares às da
concepção de mentalidade histórica tal como proposta por Ariés
([1978] 2011).
Esse modelo cultural cordial manifestaria, ainda, uma
cosmovisão em que o privado sobrepõe-se ao púbico, com expectativa
e valoração positiva de certa preferência por comportamentos
menos formais e mais pessoais e afetivos. A cordialidade como
modelo cultural se expressa nas mais diversas esferas da vida, mas
procuraremos investigar suas manifestações especificamente na
língua, já que acreditamos que variações/mudanças verificadas na
língua podem ser causadas pela cordialidade.
Por fim, a cordialidade como modelo cultural atuaria como uma
“peneira” que destaca os elementos conforme o sentido cultural,
mas também impregna de sentido as vivências. Mais adiante, ao
apresentarmos nosso modelo explicativo, buscaremos apontar que
à lingua/linguagem caberia o papel de registrar e também o de

69
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

ativar tal modelo.

70
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

3 BREVE RECAPITULAÇÃO DE
ESTUDOS ACERCA DAS FORMAS DE
TRATAMENTO RELACIONADAS
AOS POSSESSIVOS EM PB E A
SOCIOLINGUÍSTICA COGNITIVA
Este capítulo tem por objetivo apresentar revisão da literatura
relativa a: 1) alguns estudos em variação linguística que abarcam os
fenômenos de variação/mudança do uso do pronome possessivo
seu e de formas de tratamento; e 2) estudos em Sociolinguística que
compartilham de pressupostos da Linguística cognitiva em língua
portuguesa, em especial da modalidade falada no Brasil.

3.1 Estudos sobre o fenômeno de variação/mudança


no possessivo de 2ª pessoa relacionados a formas de
tratamento

Inúmeras pesquisas linguísticas em PB, como Menon (1997),


Ramos (2011), Machado (2011), Martins e Vargas (2014) e Lucena
(2016), e em outros idiomas, já se ocuparam de fenômenos de
variação/mudança em formas de tratamento considerando,
em situações comunicativas as mais diversas, a afetividade, a
pessoalidade e a menor formalidade como propriedades relevantes.
No entanto, não necessariamente consideraram as três propriedades
de forma conjunta; tampouco associaram tais propriedades a
conceptualizações culturais ou à noção de cordialidade.
Antes de comentarmos as análises recém-citadas sobre o

71
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

PB é útil atentarmos para a análise de Kerbrat-Orecchioni (2011)


sobre o francês, a qual tem papel teórico relevante na análise que
desenvolvemos. A autora realiza um estudo acerca de formas de
tratamento nominais no francês em situações de conversação.
Para tanto, cataloga as formas de tratamento e não faz apenas o
inventário delas, mas também a combinação entre elas e ainda as
compara com o inglês, por exemplo, no caso do uso concomitante
do prenome e do título Dr., como em Dr. Roberto. Esse tipo de caso
é denominado pela autora como “relações de proximidade com
deferência” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2011, p. 39). Ainda nesse
estudo, relaciona as formas de tratamento da língua à cultura em
que essa língua está inserida. Deferência seria um caso particular
de cortesia que manifesta certa subordinação simbólica a outro
(KERBRAT-ORECCHIONI, 1992, p. 163).
Em japonês, como nos mostra Oliveira (2020, no prelo) ao
recordar os estudos de Matsumoto (1988), a deferência cultural
também pode ser marcada linguisticamente e indicar proximidade
sem amenizar uma imposição de vontade; representa relação
positiva entre os interlocutores. Um exemplo desse fenômeno
trazido pelo autor seria a expressão Douzo yorosiku onegaisimasu
(Peço que você me trate bem), usada no contexto em que uma
pessoa é apresentada à outra. Matsumoto (1988, p. 409) explica que,
dessa forma, o falante simultaneamente: a) se impõe ao receptor
e se coloca em posição inferior à do receptor; e b) reconhece a
interdependência, considerada uma virtude na cultura japonesa.
Outro tema associado a esse é a ambivalência das formas de
tratamento, que também foi apontada por Kerbrat-Orecchioni, bem
como a função interpessoal das formas de tratamento nominais:

As formas de tratamento nominais são fundamentalmente


ambivalentes [...] a carga emocional que estas formas veiculam
com tanta frequência pode corresponder tanto a afetos positivos

72
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(solicitude, empatia, efusão...) quanto negativos (hostilidade,


aborrecimento, agressividade). [...] a forma nominal aparece como
um camaleão, veiculando o valor do seu meio e, ao mesmo tempo,
intensificando o valor veiculado. (KERBRAT-ORECCHIONI, 2011,
pp. 36-7).

Assim, as formas nominais, ao mesmo tempo em que vinculam


ao tratamento um valor relacionado ao contexto de uso (ao meio),
intensificam tal valor, o qual pode ser associado a afetos positivos
ou negativos. Kerbrat-Orecchioni (2011) aproxima suas observações
dos estudos de Braun (1988) apontando para a variação de
comportamento das formas de tratamento nas diferentes culturas.
Braun (1988, p. 66, tradução nossa) garante que “os fatores que
governam o modo de se dirigir a alguém são tão variados e, em
parte, tão específicos da cultura que é difícil ajustá-los a um quadro
teórico geral”49. Observação relevante para nós, pois é compatível
com as hipóteses de serem as formas pronominais relacionadas com
as formas de tratamento e também de que espaços de manifestação
da cordialidade seriam culturalmente específicos.
Ramos (2011), em um estudo intracultural, compara as formas de
tratamento contemporâneas da díade pai e filho, especificamente o
uso de você e senhor no PB e afirma que “o processo de modernização
da sociedade brasileira que tem lugar a partir dos anos 1950 pode
ser descrito como um percurso que vai, no âmbito da família, de
um ideal hierárquico, ao igualitário” (RAMOS, 2011, p. 294). De
sorte que senhor, uma forma de tratamento mais hierárquica, tem
sido rejeitada, salvo em situações de formalidade, “a medida que
o tratamento por você avança, sinalizando certamente um tipo de
relação social demarcado por outros valores” (RAMOS, 2011, p. 296).
Assim os estudos da autora indicam que o modelo de organização
familiar, e não apenas a variante social como a idade, pode se
49 The factors governing address behavior are so varied and, partly, so culture-specific that it is hard to
fit them into a general theoretical frame.

73
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

constituir como causa ou fator de mudança linguística.


Machado (2011) realiza análise comparativa acerca das formas
de tratamento em PB e em PE em peças teatrais dos séculos XIX
e XX. Seus estudos apontam para o progressivo distanciamento
entre essas variantes, com aumento do emprego de você, na nossa
língua, em lugar do tu. A autora acredita que esse fenômeno tem
relação com mudanças sociais do século XX, segundo as quais as
relações na sociedade brasileira seriam menos assimétricas, menos
hierarquizadas. Dito de outra forma, as pessoas se veriam mais
como iguais, como semelhantes, comparativamente com o século
anterior:

De modo geral, verifica-se que, ao longo dos dois últimos séculos,


as mudanças ocorridas no quadro do tratamento do PB se mostram
muito mais intensas do que as observadas no PE. As alterações
identificadas na variedade lusitana estão ligadas, de modo quase
que exclusivo, a modificações nas relações sociais, que também
se constatam na variedade brasileira. Essas mudanças estão
relacionadas, sobretudo, às transformações vivenciadas no interior
das sociedades que, a partir, principalmente, de meados do século
XX, sobretudo, no espaço da família, tendem a flexibilizar as relações
de poder. [...] [as formas pronominais] aparentemente sobrevivem
como formas cristalizadas pela Tradição, e não por sua semântica
de distanciamento. (MACHADO, 2011, p. 206)

Isso nos parece particularmente interessante, pois indica que


o PB faz a opção pela forma que considera mais íntima e informal.
Uma opção não exclusiva do PB, em certa medida compartilhada
com PE, mas pontuada pela autora como mais intensa entre nós. Por
que mais intensa entre nós já que se constata os mesmos fenômenos
sociais? Esse é um dos nossos questionamentos.
Ainda sobre a concorrência você/tu, Rumeu (2013), através de
análise do PB culto em cartas de família tradicional brasileira dos
séculos XIX e XX, corroborando também os trabalhos de Duarte

74
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(2003) e Machado (2006), atesta que, no século XVIII, você é uma


forma de tratamento, ou seja, ainda não se constitui um pronome.
Segundo a autora, apenas aos fins do século XIX e princípios do
século XX essa forma de tratamento se pronominaliza, suplantando
o tu, de tal forma que, à medida que percorre o caminho da
pronominalização, também percorre o caminho em direção ao
privado, ao íntimo:

O que os diversos trabalhos sobre o tema têm mostrado é que a


partir do século XVIII a forma vulgar Você torna-se produtiva nas
relações assimétricas de superior para inferior, podendo até assumir,
em algumas situações, sócio-pragmáticas, “conteúdo negativo
intrínseco”, em oposição a sua contraparte desenvolvida Vossa
Mercê. Por outro lado, no Brasil do século XIX, a concorrência passa
a ser maior entre Tu e Você em relações solidárias mais íntimas,
não sendo tal estratégia negativamente marcada. Essa aparente
contradição advém da própria origem e do processo de mudança de
Vossa Mercê > Você, na medida em que se tornou gradativamente
divergente do tratamento fonte (Vossa Mercê) e passou a concorrer
com o solidário Tu nos mesmos contextos funcionais. (RUMEU,
2013, p. 51)

Menon (1997), Martins e Vargas (2014) e Lucena (2016)


estudaram fenômenos de variação pronominais entre seu/de você,
no primeiro caso, e teu/seu nos dois seguintes. De modo geral,
as autoras apontam como uma das causas da variação fatores
linguísticos como a introdução do você na função de pronome
sujeito.
Menon (1997) indica a relação do uso do pronome seu a partir
da introdução do você, de tal forma que “a perda do sistema tu/
vós, sobretudo no que diz respeito à segunda pessoa do plural,
acarretou o desaparecimento do possessivo ‘vosso’ ” (MENON, 1997,
p. 79). A autora concentra seus estudos na variação seu/de vocês e,
para tanto, resgata trabalhos de antecessores, como os dados das

75
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

pesquisas de Neves (1993) no corpus do NURC (Projeto da Norma


Urbana Oral Culta), os quais apontam a preferência do falante pelo
uso do pronome seu em detrimento do pronome teu, afirmando
que o uso do seu é da ordem de 68% nos dados globais.
Lucena (2016) corroborará tal análise do fenômeno. A partir
de um estudo de cartas pessoais datadas de 1870 a 1970, a autora
conclui que o uso do seu como estratégia de referência à 2a pessoa
no PB está relacionado à inserção de você no quadro de pronomes
do PB:

[...] os resultados delineados nesta tese parecem apontar para


o efeito “dominó” já tão comentado por diferentes linguistas:
a entrada de você funciona como um gatilho para diferentes
mudanças pronominais que ocorreram e ocorrem no sistema. Assim
sendo, não se pode afirmar de forma categórica que o pronome seu
acompanha a entrada do pronome você no sistema pronominal,
mas seu só passa a referir-se à segunda pessoa a partir do momento
em que você entra nesse sistema como variante de tu (LUCENA,
2016, pp. 171-72)

Lucena (2016, p. 172) faz um apontamento particularmente


interessante sobre certa alteração semântica de seu, delimitando
fases distintas de emprego do pronome, de tal forma que ele, “[...]
no corpus analisado, apresentou indícios de semântica respeitosa ou
reverente apenas no primeiro lapso temporal estudado, isto é, 1870-
1899. Conforme seu emprego vai aumentando na amostra, observa-
se um comportamento neutro”, ou seja, menos formal. Mesmo na
língua escrita o aumento do uso de seu se relaciona à perda de
formalidade no uso do pronome. Esse é um ponto especialmente
importante para nós e o retomaremos mais adiante.
Martins e Vargas (2014) também apontaram o valor original
formal do pronome seu. Alguns dos dados apresentados por eles
podem nos servir para problematizar a relação intrínseca entre

76
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

seu e você. Os autores observam, ao analisar as cartas de leitores a


jornais dos séculos XIX e XX, que o comportamento do possessivo
seu parece não acompanhar o movimento do pronome sujeito
“você” e sugerem que “o ‘você’ entra no contexto sócio-pragmático
do ‘vossa mercê/vossa excelência/vossa senhoria’, sem intervir, ou
influenciar o dimensionamento para mais ou para menos em relação
à presença/ao uso/à ocorrência do possessivo ‘seu’ ” (Martins;
Vargas, 2014, p. 346). Notam ainda a presença de seu na primeira
metade do século XIX, enquanto o você tem uso crescente a partir
da segunda metade:

Quanto à forma você, o cruzamento apontou um aumento


significativo no uso desse pronome ao longo dos séculos: de 4
ocorrências na segunda metade do século XIX para 18 na primeira
metade e 27 na segunda metade do século XX. Tais dados
corroboram o que outros estudos têm mostrado sobre a inserção
de você no sistema pronominal do PB, especificamente em relação
à inserção desse pronome na posição de sujeito [...]. Observe-se,
no entanto, que o comportamento do possessivo seu parece não
acompanhar esse movimento. Esse pronome é já categórico para
expressar a segunda pessoa nas cartas da primeira metade do século
XIX, mesmo quando associado aos pronomes Vossa Mercê/Vossa
Excelência e Vossa Senhoria. Tal resultado parece apontar para um
comportamento diferenciado do pronome possessivo em relação
ao pronome sujeito na diacronia do PB. (MARTINS; VARGAS, 2014,
p. 384)

Diante de tal fenômeno, os autores apontam que seu carregaria


ainda, naquele momento, a formalidade como propriedade,
associado a “Vossa Mercê/Vossa Excelência e Vossa Senhoria”
em situações de maior impessoalidade, variando mais com vosso
que com teu. Para esses autores, a variação com teu se dá, essa
sim, com a inserção do você. Os estudos mais recentes parecem
apontar, pois, para certa gradação de “aproximação” do pronome
possessivo seu em relação ao interlocutor: primeiramente de um

77
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

seu que sintaticamente migra da 3a para a 2a pessoa e que, gradativa


e semanticamente, ganha mais marcas de aproximação, perde
formalidade e ganha intimidade.
Considerando a concepção de cordialidade como um modelo
cultural – que tem a aversão à impessoalidade como seu aspecto
predominante –, ao lado da proposta de Martins e Vargas (2014),
sugere-se, então, uma possibilidade interpretativa para o fenômeno:
o seu que aparece associado a vossa mercê/vossa excelência e vossa
senhoria já é, na verdade, um seu cooptado para a 2a pessoa em um
movimento que o retira do público em direção ao privado, em um
movimento, portanto, de personalização ou mais intimidade.
A mesma proposta interpretativa também nos parece possível
ao já referido trabalho de Ramos (2011) acerca de formas de
tratamento em PB. Para o crescente uso de você em lugar de senhor
no tratamento entre pai e filho, apresenta-se como hipótese a
mudança social pela qual passa a família atualmente, a qual estaria
trocando uma ideologia hierarquizada por uma ideologia igualitária
entre seus membros. Nota-se que a autora também aponta a opção
pelo tratamento mais informal. Em sua análise, diz que o termo
senhor perde “respeitabilidade”; assim, o primeiro traço a cair seria
o que exprime formalidade. Tanto seria esse um traço definidor
que o uso de senhor ainda resistiria “onde há formalidade”, ou seja,
o caminho da variação dessa forma de tratamento seria a perda
da formalidade como propriedade. Tendo a formalidade elemento
de distanciamento, vemos movimento de aproximação entre
interlocutores. Tais conclusões nos parecem fortalecer a nossa ótica
de análise; afinal, trata-se de traços relevantes para descrever o que
entendemos por cordialidade.
Essa tendência de escolha pela pessoalização, pela menor
formalidade, parece-nos ser relevante, como mostra o trabalho de
Scherre et al. (2015), mesmo nas regiões do país em que tu ainda é
produtivo. No PB, mesmo quando o pronome tu é o preferencial, e

78
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

por analogia poderíamos estender ao uso ao possessivo teu, ele o é


por ser considerado o tratamento menos formal.
Em significativa revisita a diversos trabalhos sociolinguísticos
sobre os usos de pronomes de 2a pessoa, Scherre et al. (2015)
reúnem e analisam os resultados globais dos estudos considerados e
sugerem a atualização do mapa brasileiro sociolinguístico proposto
em Scherre (2009) que, até Scherre (2012), contemplava 17 cidades
de 4 regiões brasileiras: Sul, Sudeste, Centro-oeste e Nordeste. O
trabalho de Scherre et al. (2015, p. 135) aponta que “o uso do pronome
‘tu’ é mais geral do que se supõe” e apresenta particularidades que
as levaram a chamá-lo de “ ‘tu’ brasileiro”:

Trata-se de um “tu” brasileiro, que em muitas comunidades,


instaura-se sem concordância expressa na forma verbal (tu fala), de
forma diferente do que registra a tradição gramatical (tu falas). Há
também a presença de um “tu” com concordância, motivada pelo
contexto de mais formalidade ou pelo aumento da escolarização,
especialmente onde o pronome “tu” é reconhecido como de uso
natural à comunidade local como, e em especial, em Santa Catarina,
no Amazonas, no Maranhão e no Rio Grande do Sul. (SCHERRE et
al., 2015, p. 135)

Em outras palavras, tu, quando em uso natural de


determinada localidade, é predominantemente menos formal,
sendo a concordância a marca da formalidade, o que corrobora a
hipótese de que a escolha do falante brasileiro parece geralmente
ir em direção ao tratamento menos formal. A hipótese dos autores
para manutenção do uso de tu como forma de tratamento também
sustenta nossa observação quanto à preferência pela menor
formalidade: “A nossa hipótese é a de que, à medida que desaparece
ou diminui o uso de ʻo senhor/a senhoraʼ, a forma ʻvocêʼ ocupa
espaços deixados por ʻo senhor/a senhoraʼ, e o ʻtuʼ retorna ocupando
novos espaços deixados pelo ʻvocêʼ.” (SCHERRE et al., 2015, p. 167).

79
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Por fim, é importante lembrar aqui as reflexões de Benveniste


(1966):
Agora vemos em que consiste a oposição entre as duas primeiras
pessoas do verbo e a terceira. Eles se opõem como os membros de
uma correlação, que é a correlação da personalidade: “eu-você” tem
a marca da pessoa; “ele” está privado disso. A “terceira pessoa” tem
a característica e função constantes de representar, em termos de
forma, um invariante não pessoal, e apenas isso. (BENVENISTE,
1966, p. 231, tradução nossa)50

Assim, acreditamos que esse deslocamento de pronomes da 3a


pessoa para posição de 2a pessoa, lugar que indica menos distância
em relação ao interlocutor, encontra consonância em Benveniste
(1966, p. 231) ao entendermos que pronomes marcam “oposição
entre pessoa (eu/tu) e não-pessoa (ele)”. Nossa leitura é a de que,
uma vez cooptado para a 2a pessoa, e mais próximo de eu, mais
pessoalizado, seu, diacronicamente, avança em sua concorrência
com teu, como atestam os dados dos estudos sobre o fenômeno
de variação/mudança no possessivo de 2a pessoa relacionados a
formas de tratamento apresentados. Em outros termos, os falantes,
ao empregar o pronome seu como forma de 2a pessoa, evitam a
“distância” interpessoal introduzida, de forma inerente, pelas
formas de 3a pessoa. É esse fenômeno que está no cerne do processo
de variação/mudança envolvendo a cooptação do possessivo de 3a
pessoa para ser empregado como forma de 2a.
É ao lado de tais estudos que nos colocamos e com eles
desejamos contribuir por meio de uma abordagem ainda não
contemplada acerca dos fenômenos de variação/mudança do
emprego das formas pronominais de 2a pessoa relacionadas às

50 On voit maintenant en quoi consiste l'opposition entre les deux premières personnes du verbe et la
troisième. Elles s'opposent comme les membres d'une corrélation, qui est la corrélation de personnalité : “je-
tu” possède la marque de personne; “il” en est privé. La “3a personne” a pour caractéristique et pour fonction
constantes de représenter, sous le rapport de la forme même, un invariant non-personnel, et rien que cela.

80
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

formas de tratamento. Quer dizer, oferecemos o modelo teórico


explicativo para a razão de buscarmos a informalidade e/ou mais
pessoalidade e/ou mais intimidade, o que terá como corolário as
escolhas que fazemos das formas de tratamento e, particularmente,
dos pronomes possessivos.

3.2 Estudos linguísticos em variação e cognição

Nesta subseção, vamos aprofundar a descrição da relação entre


o contexto cultural e o fenômeno de variação linguística, também
apontado por Ibarretxe-Antuñano (2013).
A problematização teórica da relação entre variação linguística,
cultura e cognição é relativamente recente, apresentando-se como
campo de estudos em meados dos anos 2000. Silva (2006) constata
que a variação linguística “não tem sido objecto prioritário das mais
conhecidas linhas de investigação linguístico-cognitiva” (SILVA,
2006, p. 2) mas, ao mesmo tempo, afirma a inevitabilidade de tais
estudos e a emergência de um novo campo de investigação:

A autodefinição da Linguística Cognitiva como modelo baseado


no uso (Langacker (1988, 2000) implica uma orientação
sociolinguística para o estudo da variação da linguagem. A razão é
simples: a variação é a consequência imediata e inevitável do uso
[...]. Constituem excepções os trabalhos de Geeraerts, Grondelaers
& Speelman (1999), Geeraerts (2003, 2005), Kristiansen (2003)
e, muito recentemente, a colectânea de estudos organizada por
Kristiansen & Dirven (2006), institucionalizando a noção emergente
de sociolinguística cognitiva. (SILVA, 2006, p. 2)

Silva (2008b) reconhece que a “orientação sociolinguística


cognitiva” não implica em pacificação teórica e que há certo
conflito. Contudo, o autor nos explica que tal conflito se deve ao que
considera uma compreensão parcial do experimentalismo corpóreo

81
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

e da corporificação, já referida por nós. Para Silva (2008a), a visão do


corpo como universal de experimentação, em uma leitura parcial,
acaba por configurar uma perspectiva solipsista para a Linguística
Cognitiva, a qual só pode ser superada se reconhecida a natureza
sócio-interativa da linguagem:

As estruturas linguísticas exprimem conceptualizações e as


conceptualizações realizadas na e através da linguagem estão
intrinsecamente relacionadas com o modo como os seres humanos
experienciam a realidade, tanto fisiológica como culturalmente.
Constitui este experiencialismo a própria filosofia da Linguística
Cognitiva [...] a tese da corporização (“embodiment”) do
pensamento e da linguagem ou a filosofia na carne foca a vertente
individual e universal da cognição humana (o corpo é um universal
da experiência humana), o seu lado físico e neurofisiológico,
recentemente explorado por Lakoff (2003) na sua Teoria Neural
da Metáfora. Ora, tendo a experiência humana uma dimensão
também colectiva e interactiva, impõe-se não reduzir a filosofia
experiencialista e o princípio da corporização a operações neurais
meramente individuais e reconhecer a natureza socialmente
interactiva da linguagem e o seu ambiente cultural como elementos
igualmente fundacionais da perspectiva cognitiva. [...] Só assim é que
a Linguística Cognitiva poderá evitar cair no perigo do solipsismo
epistemológico ou no que Sinha (1999) designa como “solipsismo
neural”. (SILVA, 2008a, p. 54)

A defesa de Silva (2006, 2008a, 2008b) relativa a uma


Sociolinguística Cognitiva harmoniza-se com nossas afirmações na
seção anterior quanto à possibilidade de um modelo teórico de base
cognitiva para a investigação de fenômenos de variação/mudança. É
justamente ao lado dessa concepção que nos apresentamos. Nosso
estudo pretende contribuir no preenchimento dessa lacuna.
Podemos conceber as conceptualizações construídas pela
experimentação cultural como produtos realizados por meio da
linguagem, da negociação e renegociação entre o grupo cultural,
e manifestas na linguagem, ou seja, expressas por ela. O que

82
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

aqui propomos então é um estudo que toma como quadro de


referências os pressupostos da Sociolinguística Cognitiva tal qual é
compreendida por Kristiansen e Dirven (2008), Guerrearts (2005)
e outros.
Os estudos apresentados por Kristiansen e Dirven (2008)
são fundamentais em relação ao que se propõe desenvolver em
investigações no campo da variação em Sociolinguística Cognitiva:

[...] acredita-se firmemente que a própria Linguística Cognitiva


inevitavelmente se beneficiará de voltar sua atenção para a
linguística variacional e interacionista. [...] uma linguística cognitiva
verdadeiramente baseada no uso não pode ignorar a variação
qualitativa e quantitativa a ser encontrada nas variedades padrão e
não padrão de um idioma. [...] Uma abordagem linguística baseada
no uso toma a linguagem como ela é efetivamente usada por falantes
reais em situações em um momento histórico específico como base
de sua investigação. Como um consequência lógica desse fato, a
Linguística Cognitiva precisa empregar métodos empíricos capazes
de lidar de maneira adequada com a variação social. (KRISTIANSEN;
DIRVEN, 2008, p. 3, tradução nossa)51

A partir de estudos de variação fonética, a aproximação entre


variação linguística e cognição também foi apontada por Labov
(2010). Para ele “[...] os fatores culturais serão diferenciados de
outros fatores sociais em sua generalidade e afastamento dos atos
simples de comunicação face a face” (LABOV, 2010, p. 3, tradução
nossa)52. Nas palavras do autor:

51 […] it is firmly believed that Cognitive Linguistics itself will unescapably benefit from turning its
attention towards variational and interactionist linguistics. [...] a truly usage-based Cognitive Linguistics
cannot ignore the qualitative and quantitative variation to be found within the standard and non-standard
varieties of a language. [...] A usage-based linguistics takes language as it is actually used by real speakers in
real situations in a specific historical moment as the basis of its enquiry. As a logical consequence of this fact,
Cognitive Linguistics needs to employ empirical methods capable of dealing in adequate ways with social
variation.
52 […] cultural factors will be distinguishes from others social factures in their generality and remoteness
from simple acts face-to-face communication.

83
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Fatores sociais designarão os efeitos das interações linguísticas entre


membros de grupos sociais específicos, incluindo o reconhecimento
desses efeitos por membros e não membros. Os fatores culturais
designarão a associação da mudança linguística com parceiros
sociais mais amplos que são em parte, se não inteiramente,
independentes da interação cara a cara. Elas devem envolver
processos cognitivos que reconheçam esses parceiros culturais,
embora este volume tenha menos a dizer sobre elas. (LABOV, 2010,
p. 4, tradução nossa)53

Entendemos que aquilo que Labov (2010) denomina


fatores culturais e processos cognitivos que reconhecem esses
elementos culturais refere-se precisamente ao que tratamos aqui
como conceptualizações culturais. Trata-se, pois, do papel da
conceptualização cultural como fator de mudança.
Grondelaers, Speelman e Geeraerts (2007) propõem a
aproximação entre os estudos linguísticos cognitivos e a variação
sociolinguística, apontando as relações e ganhos da investigação de
variação lexical que considere a semântica cognitiva e concebendo a
linguística cognitiva como caminho para a compreensão dos fatores
que atuam nas escolhas individuais, o que tem como consequência
fenômenos de mudanças lexicais:
As palavras morrem porque os falantes se recusam a escolhê-las, e as
palavras são adicionadas ao inventário lexical de um idioma porque
alguns falantes as apresentam e outras imitam esses falantes; da
mesma forma, as palavras mudam de valor dentro do idioma porque
as pessoas começam a usá-las em diferentes circunstâncias. [...] Para
repetir um argumento exposto anteriormente, essa perspectiva
pragmática e baseada no uso assume automaticamente a forma de
uma investigação sócio-lexicológica: ao escolher entre as alternativas
existentes, o usuário do idioma individual leva em consideração seu

53 Social factors will designate the effects of linguistics interactions among members of specific social
groups, including recognition of these effects by member and nonmember. Cultural factors will designate the
association of linguistic change with broader social patterners that are partly, if not entirely, independent of
face-to-face interaction. These must involve cognitive process that recognize such cultural patterns, though
this volume has less to say about them.

84
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

valor sociolinguístico e não referencial e, inversamente, a expansão


de uma mudança sobre uma comunidade linguística é o efeito
cumulativo de escolhas individuais. Nesse sentido, é apenas através
de uma investigação sobre fatores que determinam essas escolhas
individuais que podemos entender os mecanismos por trás da
mão invisível da mudança lexical. (GRONDELAERS; SPEELMAN;
GEERAERTS, 2007, p. 999)54

A afirmação dos autores em referência aos estudos lexicais


pode ser por nós parafraseada da seguinte maneira: apenas por
meio de uma investigação sobre fatores cognitivos culturais que
determinam essas escolhas individuais podemos entender os
mecanismos por trás da mão invisível de certos tipos de fenômenos
de variação/mudança.
Como bem nos lembram Martins e Abraçado (2015, pp. 294-5),
uma das contribuições relevantes trazida pelos estudos cognitivos
aos estudos sociolinguísticos é a teoria dos protótipos, a qual
oferece uma perspectiva da gradação dos protótipos na composição
do conhecimento semântico dos membros de determinada
comunidade.
Protótipos permitem a formação de conceitos e sua
organização por meio de categorias. Um resultado esperado se
entendemos que a cordialidade cultural também existe na mente,
cognitivamente. Segundo Rosch (1973, p. 112 apud FELTES, 2007,
p. 110), “as categorias são compostas de um significado nuclear
que consiste dos mais claros (melhores exemplos) da categoria,
circundados por outros membros de similaridade decrescente

54 Words die out because speakers refuse to choose them, and words are added to the lexical inventory
of a language because some speakers introduce them and others imitate these speakers; similarly, words
change their value within the language because people start using them in different circumstances. [...]
To repeat a point made earlier, this pragmatic, usage-based perspective automatically takes the form of
a sociolexicological investigation: in choosing among existing alternatives, the individual language user
takes into account their sociolinguistic, nonreferential value, and conversely, the expansion of a change over
a language community is the cumulative effect of individual choices. In this sense, it is only through an
investigation into factors determining these individual choices that we can get a grasp on the mechanisms
behind the invisible hand of lexical change.

85
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

ao significado nuclear”. Os protótipos atuariam como pontos


de “referência cognitivos, isto é, os melhores exemplos de uma
categoria podem servir como pontos de referência com relação aos
quais os outros membros podem ser julgados” (FELTES, 2007, p.
110). Nas palavras de Geeraerts (1989), retomado por Lewandowska-
Tomaszczyk em Geeraerts e Cuyckens (2007, p. 145), as categorias
protitípicas possuem as seguintes características:

a. As categorias prototípicas exibem graus de tipicidade; nem


todo membro é igualmente representativo para uma categoria.
b. Categorias prototípicas são borradas nas bordas. c. Categorias
prototípicas não podem ser definidas por meio de um único conjunto
de atributos criteriais (necessários e suficientes). d. Categorias
prototípicas exibem uma estrutura de semelhança familiar, ou
mais geralmente, sua estrutura semântica assume a forma de um
conjunto radial de leituras sobrepostas e agrupadas. (GEERAERTS,
1989 apud LEWANDOWSKA-TOMASZCZYK em GEERAERTS,
2007, p. 145)55

Grondelaers, Speelman e Geeraerts (2007), considerando essa


perspectiva nos estudos sociolinguísticos, propõem converter as
quatro características da prototipicidade em uma afirmação sobre
a estrutura da mudança semântica, de tal forma que a mudança seja
marcada pela perda de traços centrais que caracterizam os itens
periféricos de um item prototípico:

[...] a teoria do protótipo destaca o fato de que mudanças no intervalo


referencial de um significado específico de uma palavra podem
assumir a forma de modulações nos casos principais dentro desse
intervalo referencial. Em outras palavras, as mudanças na extensão
de um único sentido de um item lexical provavelmente assumirão a

55 a. Prototypical categories exhibit degrees of typicality; not every member is equally representative
for a category. b. Prototypical categories are blurred at the edges. c. Prototypical categories cannot be defined
by means of a single set of criterial (necessary and sufficient) attributes. d. Prototypical categories exhibit
a family resemblance structure, or more generally, their semantic structure takes the form of a radial set of
clustered and overlapping readings.

86
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

forma de uma expansão do centro prototípico dessa extensão. Se os


referentes na faixa de aplicação de um significado lexical particular
não tiverem status igual, os membros mais salientes provavelmente
serão mais estáveis ​​(falando diacronicamente) do que os menos
salientes. As mudanças assumirão a forma de modulação nos casos
centrais. (GRONDELAERS; SPEELMAN; GEERAERTS, 2007, p.
990)56

Os autores nos fornecem o seguinte exemplo, que


representamos esquematicamente na Figura 2, a seguir:

[...] se um significado particular começa como um nome para


referentes exibindo os recursos ABCDE, a posterior expansão da
categoria consistirá em variações desse tipo de referente. Quanto
mais a expansão se estende, menos recursos os casos periféricos
terão em comum com o centro prototípico. Uma primeira camada
de extensões, por exemplo, pode consistir em referentes exibindo
recursos ABCD, BCDE ou ACDE. Um novo crescimento da área
periférica poderia então envolver conjuntos de recursos ABC, BCD,
CDE ou ACD (para citar apenas alguns). (Ibidem, p. 990)57

56 […] prototype theory highlights the fact that changes in the referential range of one specific word
meaning may take the form of modulations on the core cases within that referential range. In other words,
changes in the extension of a single sense of a lexical item are likely to take the form of an expansion of
the prototypical center of that extension. If the referents in the range of application of a particular lexical
meaning do not have equal status, the more salient members will probably be more stable (diachronically
speaking) than the less salient ones. Changes will then take the form of modulations on the central cases.
57 […] if a particular meaning starts off as a name for referents exhibiting the features ABCDE, the
subsequent expansion of the category will consist of variations on that type of referent. The further the
expansion extends, the fewer features the peripheral cases will have in common with the prototypical center.
A first layer of extensions, for instance, might consist of referents exhibiting features ABCD, BCDE, or
ACDE. A further growth of the peripheral area could then involve feature sets ABC, BCD, CDE, or ACD (to
name just a few).

87
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Figura 2 – Propriedades centrais e periféricas

Fonte: Elaborada pela autora (2021)


A partir de Grondelaers; Speelman; Geeraerts (2007).

O modelo permite observar a proeminência (ou não) de algum


traço, bem como a estrutura da categoria em relação ao centro e à
periferia, ou núcleo e raias. Aqui talvez caiba um esclarecimento:
ao tratarmos pela terminologia “propriedades semânticas” e não
“traços semânticos”, comumente observada na literatura, fazemos
deliberadamente para nos distanciar de uma visão binária. Falar
de categorização e tratar de protótipos é falar de uma perspectiva
de superação da binariedade, da dualidade. É substituir “é” [+] ou
“não é” [-], ainda que reconheçamos que Grondelaers, Speelman e
Geeraerts (2007) assim representem seu modelo, por uma gradação.
Na prática isso significa que quando se falava em [+cordial]
ou [-cordial], se estava apontando para duas opções: ser ou não ser
formal, ser ou não ser afetivo, ser ou não ser pessoal, respectivamente.
Ao optarmos pela gradualidade, falamos em cordialidade em maior
ou menor grau. Além disso, enquanto a metodologia de “traços”,

88
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

ligada ao Gerativismo, trata de características simultaneamente


necessárias e suficientes, a visão prototípica nos apresenta que não
há características necessárias para definição de uma categoria ou
de um membro dela, mas aquelas mais comuns ou recorrentes na
experiência observável.
Trabalharemos, pois, com aquilo que chamaremos de
propriedades que, quando atribuídas, possam ser suficientes para
que um elemento seja visto como membro de determinada categoria
em algum grau, ainda que periférico. Quanto mais propriedades
atribuídas, mais central será considerado o elemento. Substitui-se
a oposição por uma gradação, mais representativa da dinamicidade
da mudança linguística tal como propomos.
Acreditamos que o modelo de modulações encontra ecos na
perspectiva diacrônica da gramaticalização trazida por Hopper
(1991), que entende a gramaticalização como um tipo de mudança
linguística sujeita a certos processos e mecanismos gerais de
mudança. Acerca de tais processos e mecanismos, proporá alguns
princípios58.
Acreditamos ser possível estabelecer pontos de contato entre
o modelo de modulações recém-citado e, sobretudo, o princípio da
persistência, a saber, da possibilidade de alguns traços de significado,
resquícios da referenciação extralinguística da categoria lexical
(forma-fonte) serem mantidos na forma gramaticalizada (forma-
alvo):

58 If grammar is not a discrete, modular set of relationships, it would seem to follow that no set of changes
can be identified which distinctively characterize grammaticization as opposed to, say, lexical change or
phonological change in general. The only way to identify instances of grammaticization would be in relation
to a prior definition of grammar; but there appear to be no clear ways in which the borders which separate
grammatical from lexical and other phenomena can be meaningfully and consistently drawn. Consequently,
there seems to be no possibility of constructing a typology of grammaticization, or of constructing principles
which will discriminate between grammaticization and other types of change […] In this paper I will suggest
some further principles, ones which (let it be said at the outset) share some of the same defects as Lehmann's,
in that they also characterize aspects of change in general, and are not distinctive for grammaticization.
(HOPPER, 1991, pp. 19-21)

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Persistência. Quando uma forma passa por gramaticalização de um


léxico para uma função gramatical, desde que seja gramaticalmente
viável, alguns traços de seus significados lexicais originais tendem a
aderir a ele, e os detalhes de sua história lexical podem ser refletidos
em restrições em sua distribuição gramatical. (HOPPER, 1991, p.
22, tradução nossa)59

A fim de esclarecermos melhor o princípio da persistência,


vejamos um exemplo. Hopper e Traugott (2003, p. 97), citando
o trabalho de Bybee e Pagliuca (1987), mostrarão o princípio da
persistência do traço semântico volição em will, que estava presente
desde o inglês antigo:
[...] (38) Wen’ ic ƥæt he wille, gif he wealdon mot, in ƥæm guðsele
think I that he will, if he prevail may, in the war-hall
Geotena leode etan unforhte.
of-Geats men eat unafraid

[Transcrição dos autores para o inglês contemporâneo]:


I believe that he will, if he should prevail, devour the people of the
Geats
without fear in their war-hall
(BEOWULF, pp. 442-4, citado por BYBEE; PAGLIUCA, 1987, p. 113
em HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p. 97, tradução nossa)60

Nas palavras dos próprios autores, “O futuro ʻpreditivoʼ se


desenvolveu a partir da intenção/promessa de uso da vontade”
(HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p. 97), que está ilustrado no exemplo
(38) da citação do inglês antigo, e se estabelece no período do
médio inglês, mas não elimina o sentido volitivo dos termos, que
permanece como um dos sentidos de vontade na Inglaterra até a

59 Persistence. When a form undergoes grammaticization from a lexical to a grammatical function, so


long as it is grammatically viable some traces of its original lexical meanings tend to adhere to it, and details
of its lexical history may be reflected in constraints on its grammatical distribution.
60 Eu acredito que ele irá, se ele prevalecer, devorar o povo da Geats sem medo em seu salão de guerra.

90
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

atualidade. Os autores afirmarão que “tudo o que aconteceu foi que


um novo significado foi adicionado a uma forma já polissêmica e,
portanto, novas possibilidades de distribuição foram abertas para a
forma” (HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p. 97); o trabalho de Bybee e
Pagliuca (1987) ilustra a possibilidade da reconstrução histórica do
termo pelo resquício semântico da forma-fonte.
Entendendo, como querem os autores, esse princípio como o
de um fenômeno de mudança, observamos que também na
perspectiva da modulação há gradação, perda e ganho de
propriedades semânticas que geram formas periféricas (tipos de
forma-alvo) em relação a algo que permanece da forma central, que
aqui associamos à forma-fonte, ou seja, o princípio da persistência
também atuaria no processo de alteração semântica.
Se as mudanças são “modulações nos casos centrais” podemos
entender que os itens periféricos são, pois, as variantes de um
item em mudança, fruto, como afirma, das escolhas individuais
e que pode conter resquícios semânticos da forma-fonte. Os
autores apontam para um dos caminhos que pretendemos traçar
neste trabalho: a observação de perdas, ganhos e, eventualmente,
permanência de propriedades semânticas ou traços no processo de
variação/mudança.
Acerca dos estudos de Sociolinguística Cognitiva em língua
portuguesa devemos destacar as investigações de Batoréo (2000),
Silva (2006, 2008a, 2008b, 2014) e Batoréo e Casadinho (2012),
particularmente sobre estudos comparativos entre PE e PB.
Em Expressão do espaço no português europeu, Batoréo (2000)
desenvolve a proposta de que as línguas refletem diferentemente
a conceptualização de espaço. Mais recentemente, Batoréo e
Casadinho (2012) têm se dedicado a trabalhos que se estendem ao
português falado em Timor Leste, relacionando variantes nacionais
e identidades dos falantes. Silva (2014) realiza estudo sobre
empréstimos e estrangeirismos, nas duas variantes (PE e PB), sobre

91
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

termos sinônimos (de futebol e vestimenta) aplicados a um mesmo


conceito e constata que a influência de línguas estrangeiras como
inglês e francês é mais forte no PB.
No Brasil, destacam-se na Sociolinguística Cognitiva os
trabalhos de Abraçado (2015) e Ferrari (2019). Num estudo
recente, Ferrari (2019) analisa o conectivo lógico “resultado”, em
PB, afirmando referir-se a uma esquematização, isto é, a unidade
linguística “resultado” reflete a esquematização da relação entre as
proposições de causa (P1) e de consequência (P2) a partir da qual
se tem a sinalização implícita de que a perspectiva do falante é a de
que seria indesejável o evento descrito em P2. Por exemplo:

(6) Você está assistindo um seriado na sala e o jantar fica pronto,


mas não tem ponto de TV por assinatura na cozinha. Resultado:
você vê novela e fica sem saber quem era o assassino. No exemplo
(6), o deslocamento de um indivíduo de um cômodo para outro é
apresentado como tendo a consequência de “ficar sem saber quem
era o assassino”, depois de ter assistido à novela. (FERRARI, 2019,
p. 127)

Por sua vez, Abraçado (2015) realizará estudo sobre a ordem


objeto-verbo (OV) no PB. Revisitando pesquisas anteriores acerca
do tema, mas agora com análise de viés cognitivo, demonstra que no
PB essa ordem se realiza em 100% dos casos investigados como marca
de subjetividade, cognitivamente compreendida como “a maneira
como um elemento de uma conceptualização é perspectivamente
construído, ou seja, se objetiva ou subjetivamente” (ABRAÇADO,
2015, p. 561). Transcrevemos a seguir um dos exemplos trazidos pela
autora, que observa (o que é destacado em itálico) a ocorrência do
fenômeno:

(2) Quer dizer que ele (riso) sofreu o diabo, entende? Sofreu! Mas
agora felizmente já está – se se recuperou quase, não é? E ele é muito

92
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

assim, ele é ele é assim muito bom. É até parecido comigo, sabe?
[Ele é muito] – ele é muito de mim. Eu acho que isso eu transmiti
para ele. (FAL 30). (ABRAÇADO, 2015, p. 563)

Conforme constatado pela autora, “as ocorrências da ordem OV


acontecem em momentos em que o participante fala de si mesmo,
de seus sentimentos ou tece comentários sobre alguém ou sobre
algum acontecimento” (ABRAÇADO, 2015, p. 563). Isso, nos parece,
aponta para intimidade, no primeiro caso, e para pessoalidade, no
segundo. Temos no exemplo de Abraçado mais uma manifestação
das propriedades que estamos investigando.
Enfim, apesar das contribuições comentadas, estudos que se
dediquem à proposição de um modelo cognitivo-cultural relativo
ao PB e sua associação com fenômenos de variação/mudança ainda
são escassos ou, nas palavras de Silva (2008b, p. 204), “incipientes
entre nós”.

3.3 Considerações finais do capítulo

Nesta seção pudemos observar, em estudos quantitativos de


PB como Menon (1997), Ramos (2011), Machado (2011), Martins e
Vargas (2014) e Lucena (2016), fenômenos de variação/mudança
nas formas de tratamento e nos pronomes possessivos de 2a pessoa.
A revisão das formas de tratamento nos ajudará, mais tarde, a
contextualizar o uso do pronome possessivo, bem como a analisar as
hipóteses de motivação linguística e extralinguística para mudança
do uso do pronome seu. Todos os estudos atestaram preferência em
PB pela realização de formas que implicam menor formalidade de
tratamento, em que prevalece não apenas a perda de formalidade,
mas ainda certo ganho de intimidade. Os dados de Martins e Vargas
(2014, p. 346) indicam ainda certa autonomia da cooptação do seu
para o lugar da 2a pessoa em relação à inserção do você em PB.

93
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Considerando o exposto principalmente por Grondelaers,


Speelman e Geeraerts (2007) e Kristiansen e Dirven (2008), vimos
que compreender o que motiva essa mudança exige compreender o
que motiva a escolha dos falantes e que os aspectos cognitivos devem
ser considerados nessa busca por compreensão. Com Labov (2010),
assim como os fatores sociais, a cultura também deve ser considerada
fator de mudança. Dessa forma, acreditamos que explicitar a razão
da variação/mudança teu/seu passa pela compreensão de fatores
cognitivos e culturais. Contudo, estudos que relacionem cultura,
cognição e variação linguística, que levem em conta nossa língua,
ainda são incipientes.

94
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

4 PASSOS METODOLÓGICOS:
COMO OBSERVAR INDÍCIOS
EMPÍRICOS DA RELAÇÃO
ENTRE CONCEPTUALIZAÇÕES
CULTURAIS E LÍNGUA?
Descrevemos, neste capítulo, os pressupostos metodológicos
adotados na nossa pesquisa. Como visto, buscou-se, inicialmente,
apresentar e discutir, em alguma extensão, a noção de “homem
cordial” e os Estudos Culturais em linguística, passando pela
exposição do fenômeno de variação acerca do emprego dos
pronomes de 2a e 3a pessoas. Em seguida, discutiu-se a adequação
da hipótese teórica proposta, isto é, que a forma seu cooptada para
exprimir a 2a pessoa, em um movimento que a retira do público em
direção ao privado, à medida que, diacronicamente, avança em sua
concorrência com o teu, ocorre em contexto de maior afetividade
e pessoalidade. Por meio do desenvolvimento dessa proposta,
pretende-se comprovar a hipótese de tomar a cordialidade como
conceptualização cultural, a qual se manifesta na língua e atua
como fator causal extralinguístico de variação/mudança. É o que
pretendemos demonstrar na nossa análise empírica exposta no
próximo capítulo.
Nessa análise, procedeu-se a uma pesquisa documental em três
textos teatrais de autores brasileiros, a saber, O marido confundido,
de Alexandre Gusmão ([1737]1841) – texto 1; O juiz de paz da roça,
de Martins Pena ([1837]2018) – texto 2, apontada como precursora
do teatro nacional; e Não consultes médico, de Machado de Assis
([1896]2018) – texto 3. Os motivos e os critérios para seleção dos

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

textos podem ser organizados em três tópicos:


• Gênero textual: optou-se por peças teatrais por se tratarem
de reconhecida tentativa de reconstrução da oralidade, as quais,
ainda que não sejam o retrato fiel de um contexto sócio-histórico,
são “uma representação de uma realidade com a qual o público
se identificava”61. Berlinck, Barbosa e Marine (2008) acrescentam,
inclusive, que se se levar em conta a característica “plurilingue” do
gênero teatral,

[...] podemos identificar relações entre usos linguísticos e papéis


sociais. Se esse tipo de texto é construído para representar várias
vozes, a linguagem deveria ser empregada pelo autor de modo a
definir os diversos personagens. Assim, existe uma possibilidade
de se estabelecer uma relação pertinente entre as características
não-linguísticas de cada personagem – idade, sexo, ocupação,
grau de escolaridade – e a expressão variável de aspectos fonético-
fonológicos, morfológicos, sintáticos, lexicais. (BERLINCK;
BARBOSA; MARINE, 2008, pp. 187-88)

Além disso, a escolha por comédias de costumes considerou


fundamentalmente as características do texto teatral que buscam
retratar a fala cotidiana ou, dito de outro modo, que representam
as “interações cotidianas e coloquiais dos falantes de uma mesma
comunidade” (BERLINCK; BARBOSA; MARINE, 2008, p. 186).
• Período histórico: os textos selecionados situam-se no
momento histórico que vários estudos – como os de Machado (2011),
Moreira (2013), Rumeu (2013), Martins e Vargas (2014) e Lucena
(2016) – associam ao fenômeno linguístico relacionado à mudança
no emprego de formas de tratamento.
• Acessibilidade: Foi possível o contato com os textos originais
manuscritos e/ou em suas primeiras edições impressas. Além disso,
outras edições das peças selecionadas estão disponíveis em domínio

61 Cf. Lopes, 2006, p. 191 apud Machado, 2011.

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

público e já foram objeto de análise de outros trabalhos, fornecendo


material para comparações e/ou relações que se fizerem possíveis
ou necessárias.
Ainda sobre o acesso às obras, o manuscrito de O juiz de paz
da roça (1837) foi fotocopiado em visita técnica à Biblioteca
Nacional (BN) e a primeira edição dos textos impressos de Juiz de
paz da roça e Não consultes médico, em visita técnica à Academia
Brasileira de Letras (ABL). Ambas as visitas ocorreram em 15 de
agosto de 2017, na cidade do Rio de Janeiro. Com a indicação do
profissional da ABL, foi localizada no acervo da Sociedade Brasileira
de Autores e Artistas de Teatro (SBAT) versão datilografada dos
manuscritos de Não consultes médico e O Marido confundido.
Contudo, lamentavelmente, fomos informados de que a peça
O Marido confundido faz parte dos 15% de textos que não foram
digitalizados e estão em mau estado de conservação, por isso tivemos
o acesso vetado. Trabalhamos, nesse caso, com a primeira versão
impressa do texto, publicada no primeiro livro de obras completas
do autor, de 1841. Acessamos ao volume pertencente à biblioteca da
Universidade da Califórnia, digitalizado e disponibilizado on-line
pelo Google.
Quanto a Juiz de paz da roça e Não consultes médico,
trabalhamos com os manuscritos, sendo o primeiro o original e o
último a versão digitalizada pelo projeto Biblioteca Digital de Peças
Teatrais (BDteatro) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)62.
De posse das obras, procedeu-se à coleta dos dados pertinentes.
Os textos foram, primeiramente, acessados ou convertidos em
formato PDF, com o auxílio do programa Abbyy Fine Reader 15 Ocr. Em
seguida, com o mesmo software converteu-se os textos de PDF para
o formato TXT, para que pudessem ser processados pelo programa
AntConc 3.5.8 (2019). Com os recursos foi possível a comparação

62 Projeto financiado pela FAPEMIG (convênio EDT-1870/02) e pela UFU.

97
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

entre o texto original e o “lido” pelo programa, fundamental para


que, em texto com baixa qualidade da digitalização ou da transcrição
do manuscrito, fosse feita a conferência e, simultaneamente, a edição
manual da conversão realizada pelo programa, com a finalidade de
viabilizar a correta leitura dos dados.
Uma vez convertidos em TXT os textos foram, como dito,
submetidos ao programa AntConc. Com ele procedeu-se à contagem
do vocabulário, identificando e contabilizando os pronomes
possessivos usados como 2ª pessoa, observando lista de lexias
ranqueamento de frequência e ao número de ocorrências de cada
item relacionado ao possessivo investigado. Através do programa,
pode-se identificar o contexto de ocorrência do termo em estudo e
demais termos com os quais se relaciona na ocorrência. Interessa-
nos, no contexto, observar as ocorrências de diminutivos, alcunhas,
uso do primeiro nome em detrimento do nome de família ou
sobrenome e os pronomes de tratamento.
Não desenvolvemos uma abordagem quantitativa no
tratamento dos dados. Os dados observados foram expostos de
maneira a ilustrar o fenômeno, mas são analisados qualitativamente,
em uma perspectiva pragmática e intencional do falante num
dado contexto comunicativo. Em outras palavras, o temo seu, por
exemplo, não é observado apenas isoladamente, mas de maneira
associada a formas de tratamento nominais e pronominais com
as quais se relaciona no texto, bem como a possíveis marcas de
afeto, como o diminutivo. Essa observação se dá a fim de averiguar
e ilustrar a possível relação entre a ocorrência do pronome seu na
2a pessoa e elementos que trazem marcas de (maior ou menor)
formalidade, (maior ou menor) pessoalidade e (maior ou menor)
afetividade ao contexto textual.
Entendemos que é razoável supor que em conjunto os
fenômenos (cooptação do seu para 2ª pessoa e seu contexto de
ocorrência considerando as formas de tratamento nominais e

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

pronominais) façam parte de mesmo evento se manifestando


conjunta e diversamente na língua, a saber, da cordialidade como
conceptualização cultural. Mais que a frequência da ocorrência,
interessa-nos a sua qualificação. Interessa-nos, na análise, o
aprofundamento das questões que nos norteiam (formalidade,
pessoalidade e afetividade no comportamento interpessoal) em cada
dado observado. A dimensão e a seleção da amostra se adequam a
essa intenção qualitativa.
Na interpretação dos fenômenos observados buscamos, como
se verá, dialogar com as conclusões dos estudos trazidos na revisão da
literatura, considerar a aplicação dos estudos cognitivos e culturais
e trazer à análise dos dados os apontamentos de Geerarts (1989)
e Grondelaers, Speelman e Geeraerts (2007) acerca da hipótese
de que as mudanças são modulações do centro, ou seja, que se
pode analisar o fenômeno de mudança pelas perdas e ganhos de
propriedades das formas que se distanciam ou se aproximam das
propriedades de um item prototípico. Em nossa análise, tentaremos,
mais precisamente, observar as perdas e ganhos de propriedades da
forma seu em sua concorrência com a forma teu, especificamente
no que se refere às propriedades já associadas à cordialidade, quais
sejam, formalidade, pessoalidade e afetividade.
Dito ainda de outra maneira, buscaremos observar se os
dados corroboram a hipótese de que a forma seu adquire traços
da cordialidade à medida que a língua avança no tempo. Para
tanto, a fim de observarmos mais atentamente cada dado e o que
nos revela sobre o contexto de uso do pronome possessivo de 2a
pessoa, especificamente sobre o contexto em que se dá o fenômeno
de variação/mudança observado, tomamos por pressuposto para
o aprofundamento qualitativo dos dados obtidos o que Kerbrat-
Orecchioni (2011, p. 37) propôs sobre a ambivalência das formas
de tratamento (a saber, aspecto afetivo das formas nominais de
tratamento, que podem corresponder tanto à empatia quanto

99
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

à hostilidade) e qualificamos as formas de tratamento conforme


sua morfologia (pronominais ou nominais) e carga semântica,
considerando o contexto de uso, ilustrado na apresentação dos
dados de cada texto.
Para realizar a comparação, levou-se em conta que os textos
têm tamanhos diferentes e certas nuances comunicativas: a primeira
peça é um texto em 3 atos, a segunda e a terceira em atos únicos.
A fim de diminuir possíveis distorções advindas das diferentes
extensões, trabalhamos com os dados relativos quando analisado
o pronome possessivo. Por exemplo, calculamos o uso do pronome
seu não em relação aos pronomes em geral, mas aos pronomes de
2ª pessoa. E assim ilustramos a escolha por esse pronome quando
se queria se referir à 2ª pessoa, especificamente. Seguindo a mesma
lógica, entre os tratamentos pronominais e nominais, calculamos
quando se preferia tratamentos pronominais, como senhor e você,
ou nominais, como primeiro nome, alcunha e/ou diminutivo.

100
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

5 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE
DOS DADOS:
O QUE ENCONTRAMOS?
Este capítulo tem por objetivo apresentar e analisar os dados
coletados. Para tanto, o subdividimos em três seções: 1) na breve
seção introdutória, indicou-se a relação entre as peças em análise
e o contexto histórico em que foram escritas; 2) na segunda seção,
temos a apresentação de cada peça (autor, enredo e personagens)
e do recorte de dados em análise (pronomes possessivos em uso
na 2a pessoa); 3) na terceira seção é apresentada a análise dos
dados agregados das três peças, considerando o contexto de uso
definido na forma de tratamento. Os dados são observados à luz das
propriedades semânticas da cordialidade, destacadas anteriormente.
Pela apresentação e análise dos dados evidencia-se a nossa hipótese
de pesquisa, ou seja, que os fenômenos de variação/mudança nos
pronomes possessivos de 2a pessoa, relacionados às formas de
tratamento do PB, são motivados por um modelo cognitivo cultural
específico, que caracteriza as relações interpessoais expressas em
PB, cujas implicações teóricas serão melhor exploradas no capítulo
seguinte.

5.1 Algumas palavras sobre o teatro brasileiro

A história do teatro brasileiro se confunde com a história


do próprio Brasil63. Em um Brasil colônia portuguesa, o primeiro
momento do teatro brasileiro, século XVI, é marcado por peças

63 Cf. Fausto, 2002, pp. 557-67.

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

religiosas com fundo catequético, escritas pelos padres jesuítas


que aqui vieram no processo de colonização. O segundo momento,
ainda colonial, século XVII, é marcado pela pouca produção, dados
os conflitos da época, dos quais se destacam a invasão holandesa,
cujo tratado de paz foi reconhecido por Portugal e Holanda em 1661,
e os núcleos de resistência quilombola, com a derrota do Quilombo
de Palmares em 1695.
Apenas no século XVIII se avoluma a produção teatral secular,
de palcos de rua, mas ainda voltada para traduções de autores
europeus. Não por acaso, a próxima etapa, no século XIX, é de
um teatro propriamente com as “cores nacionais”. O século XIX
é marcado, dentre outros acontecimentos relevantes, pela vinda
e instalação da família real portuguesa no Brasil (1808), o que
elevará a então colônia à categoria de reino (1815) e, em seguida, à
independência (1822). Faria (2012) esclarece:

O teatro brasileiro, entendido como um sistema integrado por


escritores, artistas, obras dramáticas e público, constituiu-se apenas
no período romântico, quando os nossos poetas, romancistas,
dramaturgos e intelectuais, estimulados pela independência da
pátria e pelo fervor nacionalista, dedicaram-se à criação de uma
literatura própria, autônoma em relação à de Portugal. A poesia,
o romance e as peças teatrais “vestiram-se com as cores do país”,
poderíamos dizer, lembrando palavras de Machado de Assis.
(FARIA, 2012, p. 7)

É, pois, no contexto da independência e da busca por


autonomia, sob as influências de ideias de identidade e nação, que
surge o teatro brasileiro. Dito de outro modo, em meio à busca por
si mesmo enquanto país, por suas próprias peculiaridades culturais,
surge um teatro nacional que, a nosso ver, registra na linguagem
retratada um modelo cultural caracterizado por propriedades
cordiais, como ilustraremos adiante.

102
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

5.2 Apresentação das peças e análises preliminares


dos dados

Dedicamos as próximas subseções à apresentação e análise


dos dados. Apresentamos os dados relativos à cada peça: contexto
histórico, breve resumo, pronomes possessivos de 2ª e 3ª pessoas
identificados bem como as formas de tratamento a eles relacionadas.

5.2.1 O marido confundido, de Alexandre de Gusmão

A peça O marido confundido, é uma comédia em 3 atos.


Escrita por Alexandre de Gusmão, diplomata e literato brasileiro,
nascido em Santos em 1695, foi interpretada pela primeira vez em
1737. Por não termos acesso ao manuscrito original, é importante
destacar a observação feita pelo editor ao final do prefácio da
obra, que garante a “exatidão” do texto: “Pusemos todo o cuidado
em recolher o melhor e mais exato, e em grande parte o teremos
conseguido. – vimos tudo o que a semelhante respeito se encontra
no Códices Manuscritos da real Bibliotheca Pública Portuense”
(GUSMÃO, [1737]1841, p. X).
A peça foi escrita quando o Brasil era ainda colônia
portuguesa. Como de Portugal teria vindo a forma de nossa cultura
(HOLANDA, [1936]2015, p. 46), esse é considerado um momento
de relevância para nossa pesquisa. A obra é a reescrita da peça
homônima de Molière feita por Gusmão para um nobre português,
mas não deve ser chamada de tradução, pois, como bem nos aponta
o editor da coleção ao apresentar a peça, “He versão do francez,
mas o autor de tal modo a transformou, e a alterou introduzindo-
lhe algumas partes próprias ao nosso paiz, que se pode dizer que
mais parece um original” (GUSMÃO, [1737]1841, p. 252).
O texto conta as desventuras do marido (Buterbac),

103
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

comerciante e vilarejo que, desconfiado de sua esposa (D. Ângela),


de origem nobre, tenta provar aos pais da moça (Morgado de
Bestiães e D. Pabuleta) a infidelidade dela e de seu amante (Visconde
Leandro). Pascoela (criada de D. Ângela) e Lambaz (criado de
Leandro) também aparecem como personagens de relevância.
A temática afetiva se revela uma vez que os personagens em sua
maioria têm relação familiar ou doméstica, o que não impedirá
o tratamento formal, com hierarquia marcada. Os cenários são
públicos e privados.
Compreendido o contexto da obra, vejamos os dados globais.
São 50 ocorrências do pronome possessivo seu. Destas, 27 são de
seu em 3ª pessoa (3ª p.) e 23 de seu interpretado como pronome de
2ª pessoa (2ª p.). Considerando os pronomes possessivos originais
de 2ª pessoa, apresentam-se 9 ocorrências de teu e 47 de vosso,
conforme se vê no Gráfico 1:

Gráfico 1 – Ocorrências de seu/teu/vosso – texto 1

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Isolados os dados que se referem ao pronome possessivo seu,


podemos observar que os dados globais confirmam os dados e as
conclusões de Martins e Vargas (2014, p. 384) quando afirmam que
o espraiamento do pronome seu parece não acompanhar, nesse
momento ao menos, o espraiamento da forma você, e que o uso desse
possessivo antes da segunda metade do século XIX “é já categórico
para expressar a segunda pessoa, mesmo quando associado aos
pronomes Vossa Mercê/Vossa Excelência e Vossa Senhoria”. Há
apenas 12 ocorrências de você ante 23 de seu na 2ª pessoa, e apenas 3
das ocorrências de seu acontecem acompanhadas de você, das quais
trataremos adiante. Confirma-se assim a proposta de Lucena (2016,
p. 171) quando diz que “não se pode afirmar de forma categórica que
o pronome seu acompanha a entrada do pronome você no sistema
pronominal”. Os dados aqui colhidos indicam uso significativo de
seu como pronome de 2ª pessoa, ainda que não chegue a ultrapassar
o uso de seu na 3ª pessoa.
Isoladas as ocorrências de pronomes possessivos de 2ª pessoa –
seu, teu e vosso –, podemos notar mais claramente a proeminência
de cada pronome. Apresentaremos agora os dados anteriores de
maneira relativa apenas aos usos de 2ª pessoa: 47 usos de vosso,
que correspondem a 59,49%, seguido por 23 usos de seu, que
correspondem a 29,11%, e 9 usos de teu, que correspondem a 11,84%.
O Gráfico 2 apresenta os dados em números percentuais:

105
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Gráfico 2 – Ocorrências de pronomes em 2a pessoa – texto 1

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Os dados indicam, quando mostram a preferência pelo uso


de vosso, a opção por uma estratégia mais formal de tratamento
entre os interlocutores. Detalhamos a seguir os contextos de uso
das formas com base nas ocorrências analisadas: das 47 ocorrências
do possessivo vosso, 26 se dão em diálogos entre Buterbac e D.
Ângela (o marido e a esposa, esta nobre), 18 em diálogos entre
Buterbac e Morgado de Bestiães ou D. Pabuleta (genro e sogros,
homem comum e fidalgos) e 3 entre D. Ângela e o Visconde Leandro
(amantes fidalgos).

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Gráfico 3 – Ocorrências de vosso – texto 1

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Vejamos alguns exemplos de ocorrência dos três tipos de


interação. Observa-se que o vosso é o lugar da hierarquia (marca
da fidalguia) e dos tratos formais, portanto um vosso que denota
maior formalidade conforme o modelo cultural.

• Marido/mulher
(1) But. – Apesar de vossos disfarces, bem conheci a verdade do
que tinhão referido; e a pouca atenção que faseis do laço que nos
une. (faz Leandro cortesia a Angélica) Valha-me Deus! Deixemos
por ora essas cortesias. Não he dessa casta de attenções, que fallo; e
assim escusai de faser escarneo.
Ang. – Eu faser escarneo? De nenhum modo. (GUSMÃO,
[1737]1841, p. 284)

• Genro/sogros

(2) But. – Oh que desesperação! Como! minha mulher não he


minha Companheira?

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

D. Pab. – Sim, Genro, está na vossa companhia mas he para


a venerares como sois obrigado, e não para teres a confiança de
chama-la vossa Companheira. Que mais podereis vos dizer, se vos
houvésseis recebido com uma de vossa ralé? (GUSMÃO, [1737]1841,
p. 263)

• Amantes (nobres)

(3) Lean. – Por certo que as vossas prendas se fasião merecedoras


de melhor dias e quando a naturesá vos formou tào perfeita, não foi
para ser mulher de um vilão ruim. [...]
Pasc. – Senhora, se tem ainda que diser mal de seu marido,
avie, que já he tarde.
Lean. – Ah Pascoela, que assim hes cruel!
Ang. – Ella tem rasâo; he preciso apartarmo-nos. (GUSMÃO,
[1737]1841, p. 306)

Os dados indicam que o possessivo vosso marca formalidade


e hierarquia, ocorrendo entre personagens que mantém relações
formais mesmo em relações de afeto (personagens nobres) e maior
proximidade. Se observarmos o contexto, as formas de tratamento
também revelam formalidade. Nota-se que “Genro”, no exemplo
(2), é a expressão usada pela proximidade parental, mas ainda é
utilizada para marcar o distanciamento de posição hierárquica
social entre o genro e a sogra, posto que o tratamento não pode
ser recíproco, ou seja, Buterbac não pode chamar D. Pabulea de
sogra; seria impróprio devido ao título de nobreza dela, como fica
evidenciado no diálogo da página 261:

• Genro e sogra

(4) But. – Essa nâo está má; a quem me chama de seu Genro,
parece-me que me será licito chamar-lhe minha Sogra.
D. Pab. – Ahi ha muito que diser, o as cousas não são iguaes.
Haveis de saber que vos não compete a vós usar desse nome
com uma pessoa do meu nascimento; que supposto sejais nosso
Genro, vai muita differença de vós a nós, e devereis conhecer-vos.

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(GUSMÃO, [1737]1841, p. 261)

Assim, mesmo na situação em que o diálogo é entre amantes,


deve-se destacar duas circunstâncias de contexto: ambos são nobres
e podem ser ouvidos por seus criados enquanto se falam.
As 9 ocorrências de teu estão assim distribuídas, em números
absolutos, no Gráfico 4:
Gráfico 4 – Ocorrências teu – texto 1

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Os usos do pronome teu revelam que, de maneira oposta ao


vosso, teu é lugar da intimidade (solilóquio), afetividade (amantes)
e informalidade (ausência da hierarquia senhor/criada). Vejamos
exemplos extraídos do texto:

• Solilóquio

(5) But. – E pois Buterbac! Olha de que modo te trata tua


mulher. Eis aqui em que parou o quereres casar com uma fidalga.
Faz de ti o que-bem lhe parece, sem que te possas vingar; porque
a fidalguia te ata as mãos. Quando um homem casa com mulher

109
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

da sua igualha, tem ao menos a honra do marido a consolação de


um livre desafogo: se te acháras com uma da tua esféra, nenhum
obstaculo terias agora para te faser, justiça com um bom arrocho;
porem tu quiseste provar, que gosto tinha uma mulher nobre: já
estavas enfadado de seres dono da tua casa? Ora toma. (GUSMÃO,
[1737]1841, pp. 259-60)

(6) But. – Oxalá fôra ela tua! Tu mudaras de parecer. Porem


já basta; quero recolher me. (entra e fecha a porta). (GUSMÃO,
[1737]1841, p. 306)

• Amantes (criados Pascoela e Lambaz, a sós)

(7) Lamb. – Nâo faltemos mais nisso, escuta.


Pasc. – Que he o que hei de escutar?
Lamb. – Volta essa tua carinha para mim
Lamb. – Olha cá, para que estamos com ceremomas? Se tu
quiseres serás minha mulher, e eu serei teu marido; e assim seremos
ambos marido, e mulher. (GUSMÃO, [1737]1841, pp. 280-81)

• Senhor e criada (Buterbac fala a Pascoela)

(8) Pasc. – Pela minha vida, que he forte aleive.


But. – Cala-te, Birbantona; que tenho boas noticias tuas, e
bem sei, que foste a que introdusiste o mensageiro.
Pasc. – Quem eu?
But. – Sim, tu mesma; nâo te faças tâo delambida.
[...]
Pasc. – Ah Senhor, eu tive.
But. – Cala essa boca patifona; parece que não me queres
entender, olha que bem poderás pagar pelos outros, que teu Pai
não he fidalgo. (GUSMÃO, [1737]1841, p. 275)

Os dados apresentam um teu que ocorre em contexto mais


pessoal, mais afetivo e com menor formalidade. As formas de
tratamento trazem primeiro nome e mesmo alcunhas carregadas
de valor pejorativo. É teu, pronome possessivo de 2a pessoa, o
escolhido pelos amantes não fidalgos que se declaram a sós (menor

110
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

formalidade e maior pessoalidade); é o escolhido também para


expressar a fúria (maior afetividade) e falta de respeito e hierarquia
da parte de quem fala em relação a com quem se fala, que dispensa,
pois, a formalidade do senhor para a criada (menor formalidade);
é igualmente o pronome escolhido para expressar os pensamentos
a si mesmo, na intimidade consigo (maior pessoalidade). Enfim, é
com teu que encontramos um diminutivo, carinha, relacionado a
uma forma de tratamento (maior afetividade).
Se vosso é lugar de hierarquia e formalidade e teu o lugar
de pessoalidade e afetividade, seu ocupará, mais claramente,
naquele momento, conforme os dados analisados, o lugar de
vosso, corroborando o observado por Lucena (2016, p. 172). As 23
ocorrências do pronome possessivo seu estão assim distribuídas:
Gráfico 5 – Ocorrências de seu de 2a pessoa – texto 1

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

O primeiro ponto a notar é a diversidade de diálogos –


situações comunicativas – à qual o possessivo seu se aplica. Os dados
indicam que a tal polivalência está correlacionada maior amplitude
semântica. Observemos os diálogos:

111
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

• Amantes (diante do marido, dissimulando a falta de intimidade)

(9) D. Pab. – Pelo que toca a isso o ciume há terrivel cousa; aqui
trago minha filha para deslindar o enredo em presença de todos.
Lean. – He V. Sa., minha Senhora, quem disse a seu marido,
que eu estava namorado da sua pessoa?
Ang. – Eu? A que proposito lho havia eu de diser? Porque? Por
ventura isso he assim? Tomara eu vê-lo certamente, que V. S.a se
namorasse de mim. Não fará o favor de se metter nisso; eu lhe déra
esse conselho. Olhe recorra ás traças dos amantes, e experimente
assim por brinquedo de me enviar recadinhos, escreva-me
ocultamente escritos d’atnores, espreite os instantes em que meu
marido não estiver em casa, ou as occasiões em que eu for fora para
me vir fallar de seu amor; venha, sim, venha, que eu lhe prometto,
que será recebido em fórma que lhe lembre para muito tempo.
Lean. – Viva descançada, minha Senhora, que comigo nâo
tem que recear: eu nâo sou homem que cause o minimo dissabor
ás Senhoras, e venero muito a V. S.a e aos seus Parentes, para quo
houvesse de intentar namorar-me da sua gentilesa. (GUSMÃO,
[1737]1841, p. 273-74)

• Genro e sogro (para o Visconde Leandro)

(10) Morg. – E peço a V. S.a que me tenha.


But. – E peço a V. S.a que me tenha.
Morg. – Na conta dos seus criados.
But. – Ora Senhor, V. S.a está zombando; quer que eu me
chame criado de quem me quer faser cornudo? (GUSMÃO,
[1737]1841, p. 276)
[...]

(11) Morg. – Nâo Senhor, quero que acabe, e que as cousas vão em
fórma. Disei: na conta dos seus criados.
But. – Na... na... na... na conta dos seus criados.
Lean. – Eu que o sou de V. M.cs, e o passado passado. V. S.a
se fique embora, e sinto que tivesse este detrimento. (GUSMÃO,
[1737]1841, pp. 278-79)

• Marido e mulher (nobres)

112
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(12) Morg. – D. Pabulea vai ter com sua filha, em quanto eu, e
meu Genro imos faltar ao tal mancebo. (GUSMÃO, [1737]1841, p.
269)

• Criada e senhor (Pascoela fala a Buterbac)

(13) Pasc. – Por certo que merecia que a Senhora fisesse o seu dito
verdadeiro, se fora comigo não me havia de faser de rogar. Sim, meu
Senhor, será muito bem feito, para o ensinar, que V. S.a namore
minha ama. Vá por minha conta, que he bem empregado; aqui me
tem V. S.a muito á sua ordem para o servir, já que o Senhor assim
mo imputa. (Vai-te.). (GUSMÃO, [1737]1841, p. 275)

• Outros
(14) Lean. – Com que he seu Genro de V. S.a quem...
Morg. – Sim Senhor, elle foi mesmo quem me fez a queixa.
Lean. – Por certo que pôde agradecer a Deus a vantagem que tem
de ser cousa sua; quando não, eu lhe ensinara a diser semelhantes
cousas das pessoas como eu. (GUSMÃO, [1737]1841, p. 272)

Nesses casos, o possessivo seu marca hierarquia, formalidade,


como o vosso, ocorrendo com os mesmos falantes: marido e
mulher, genro e sogros, amantes quando podem ser ouvidos, todos
diálogos com a participação de personagens fidalgos. Destaca-se
no caso dos amantes que no momento do uso de vosso o objetivo
parece ser o de manter formalidade coerente com o status social,
todavia no momento da escolha de seu o objetivo foi dissimular a
falta de intimidade, menor pessoalidade. Nota-se que aqui, a fim
de dissimular a verdadeira relação que os envolvia, D. Ângela e
Leandro optam pelo uso de seu, não de vosso. Parece-nos, pois,
indicativo de diferença semântica e pragmática, outra propriedade
cordial associada.
Há também um elemento novo no uso de seu, que aqui
chamaremos de deferência: “seus criados”, presente nos trechos
10 e 11, recém-citados. Nota-se que deferência, ao menos um dos

113
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

aspectos da afetação ou com valor de afetividade (definido na nota


13), não é o mesmo que formalidade. O formal promove a distância,
mas na afetação há certa proximidade, indesejada se dirigida de um
“homem ordinário” a um nobre.
Os dados indicam ambivalência do pronome seu havendo,
assim, um traço a mais observado, isto é, certa formalidade
associada à deferência, semelhante ao que Kerbrat-Orecchioni
(2011) e Matsumoto (1988) observaram em relação ao japonês, ou
seja, formalidade, mas que exibe valor afetivo e de proximidade.
No caso brasileiro, entretanto, diferentemente do japonês, tal
deferência parece amenizar uma imposição. Todavia, seu ocupa
majoritariamente espaços de vosso, preponderantemente formal.
Isso posto, pode-se afirmar, com Lucena (2016), que o possessivo
seu, naquele momento, concorre com vosso. O contexto de maior
formalidade em que seu é usado pode ainda ser evidenciado se
observadas as formas de tratamento preponderantes: V. S.a. e
Senhor.
É interessante, além disso, refletir sobre os elementos
trazidos pelo texto referentes ao você. Os dados confirmam os
trabalhos de Duarte (2003), Machado (2006) e Rumeu (2013) que
apontam você, naquele momento, como forma de tratamento e
ainda não como pronome. Observamos também que, como tal,
permanece formal. Citamos uma passagem para ilustrar o exposto:

(15) Morg. – Sim, Genro, assim se começa. Ao exemplo dos de casa,


se movem os de fora. Que melhor podemos nós faser do que ir
seguindo o que se costuma na Côrte. Ouvi me vós. Bem vejo que
isto nâo serve para vós, que sois homem ordinario; mas sempre
convem que vo-lo explique para poder ensinar vossos filhos. Eis aqui
o que eu observo, e que me consta que se estila na Côrte. Eu dou a
Senhoria a Fulano, a fim de que Fulano ma torne. Esta he já a regra
geral: mas na pratica della he preciso usar de algumas precauções.
Solta-se primeiro por chamariz um Vossia, que he certa
palavra hermafrodita, que se pôde igualmente interpretar por

114
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Senhoria, e por Vossê. Manda se esta á fortuna, como uma guarda


avançada a descubrir se ha no campo amigos, ou inimigos. Se me
respondem ao Santo he sinal que estamos d’acordo, largo atraz
daquella expressão a de Vossia, que he o segundo explorador,
já com menos rebuço, e se este encontra boa correspondencia,
ficâo seguras as amisades, e correm livremente de parte a parte as
Senhorias claras, e esburgadas. (GUSMÃO, [1737]1841, pp. 262-63)

Observa-se que nesse excerto temos um discurso meta


linguístico que nos ajuda a compreender de maneira clara o uso
no memento de escrita da peça. Trata-se Vossê de um termo
pronominal mais formal, equivalendo-se a Senhoria e a Vossia no
tratamento na “Côrte”, entre fidalgos.
O vossê pronominal pode ser observado também nas
ocorrências com seu. O diálogo a seguir se passa entre Lambaz
(criado de Leandro, o amante) e Buterbac (o marido traído).
Contudo, ao contrário de Buterbac, Lambaz não sabe com quem
fala, pois acaba de conhecer o senhor que acredita ser um vizinho de
Buterbac, não o próprio. Assim, parece-nos que vossê representa um
tratamento genérico, como apontado no diálogo anterior, mas sem
proximidade, e seu, com o qual ele concorda, um tratamento que
guarda certa impessoalidade. Observa-se ainda que, em resposta ao
tratamento vôsse, o interlocutor parece tentar estabelecer vínculo,
buscar maior proximidade, com o tratamento amigo, no que parece
não lograr êxito.

(16) Lamb. – Sim, vossê. Logo o foi pôr no bico ao marido, e por sua
culpa andou lá tudo asul. Estimo muito saber, que he linguarudo,
escusarei de lhe coutar mais nada.
But. – Ora escuta, meu amigo.
Lamb. – Se vossê não fosse mexeriqueiro, saberia agora o que
vai; mas escusa-lo-ha para seu castigo. (GUSMÃO, [1737]1841, p.
290)

Note-se, ainda, que os trechos com ocorrência de vossê no

115
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

texto parecem confirmar Rumeu (2013) quando se refere às relações


assimétricas de superior para inferior e ao conteúdo semântico
negativo que a expressão pode assumir em algumas situações sócio-
pragmáticas: vossê, acompanhando de seu, é o pronome escolhido
por Lambaz para se dirigir com irritação ao recém-conhecido. Em
outro momento, Buterbac dirigindo-se a Leandro, tomando este na
condição de amante de sua esposa, não de um fidalgo, dirá:

(17) But. – Não, não, não pôr o mel pelos beiços com tanta facilidade,
e bem sei que tudo o que me disserão foi muita verdade. Não sou
tão cego como vossês cuidão, e não lhe pareça que me capacito dos
seus artificios. (GUSMÃO, [1737]1841, p. 284)

Ou quando Buterbac se dirige à esposa e à criada: (18) “But. –


Como assim se atrevem vossês...”. (GUSMÃO, [1737]1841, p. 315).
O texto da peça, na voz das personagens, captura também
que o tratamento em 3a pessoa assume, naquele momento histórico,
sinal de prestígio e distanciamento. Vejamos um excerto ilustrativo
do fato. Em mais uma passagem metalinguística o fidalgo conta ao
genro como nobres se tratam entre si:

(19) Morg. – Ora ouvi, que isto importa mais do que vos parece.
Se o sujeito me falia por terceira pessoa, adargo-me na mesma
forma, e nella me mantenho até que o tempo faça o milagre. Mas,
se me responde por mercê (que só algum melancólico se encontra
hoje, que se obstine nessa antigualha) assento-o em lembrança,
para evitar d’aliem diante a sua conversação. Isto que vos tenho
dito, se entende com os que são Cavalheiros, ou com aquelles de
quem dependo; porque com essoutros escudeirotes e peões de tres
ou quatro avós, e com outra gente inferior, se duvidam dar-me
Senhoria, fujo de fallar-lhes, e dessa sorte são elles os que ficão peor,
porque se privam da honra de tratar comigo. (GUSMÃO, [1737]1841,
p.263)

As ocorrências de seu acompanham vossê, mas também o

116
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

V. Mces., V. S., Senhor e Senhoria, corroborando o que propõem


Martins e Vargas (2014). Entretanto se deve notar que, entre marido
e mulher, ambos fidalgos, também se registra a ocorrência do uso
do prenome acompanhado de título: D. Pabuleta, por exemplo.
O uso do prenome indica uma situação mais pessoal – apontado
inclusive por Holanda como marca de pessoalidade, conforme
anteriormente expresso – e é chamado por Kerbrat-Orecchioni (2011)
de “proximidade com deferência”, que a linguista não encontrou em
seus estudos sobre o francês. A ocorrência desse comportamento de
aproximação com deferência já havia sido registrada na expressão
“seus criados”. Esse é mais um dado compatível com a possibilidade
de seu como modulação de vosso, uma variante concorrente, ou seja,
um termo da periferia que guarda diferenças de propriedades em
relação ao centro, em termos de Sociolinguística Cognitiva, como
em Grondelaers, Speelman e Geeraerts (2007). É especialmente
relevante apontar que essa modulação se dá em direção à maior
proximidade com o interlocutor, quer dizer, a marca da cordialidade
como a compreendemos.
Por fim, acreditamos que a apresentação quantitativa dos
dados relativos às formas de tratamento pode nos revelar mais
claramente o contexto de uso de seu. Destaca-se que temos 249
formas de tratamento totais em números absolutos; 93 delas,
que correspondem a 36,84% do total, são nominais; e 156, que
correspondem a 63,15% do total, são pronominais.
Dentre as ocorrências das formas de tratamento nominais (93),
temos: 54 alcunhas, que correspondem a 61,5%; 35 primeiros nomes,
que correspondem a 35,2%; e 4 diminutivos, que correspondem a
3,3%.
Dentre as formas de tratamento pronominais (156), temos:
64 Vossa Senhoria/V. S., que correspondem a 41,03%; 17 Vossa
Mercês/V. Mcês, que correspondem a 10,89%; 12 vossê/vossês, que
correspondem a 7,69%; 3 vossia, que correspondem a 1,92%; 8

117
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

ocorrências de título, que correspondem a 5,13%; 4 Dona/D., que


correspondem a 2,56%; e 48 senhor/senhora, que correspondem a
37,77%. Vejamos na Tabela 1 a expressão desses resultados:

Tabela 1 – Tipos de pronomes em relação ao total de formas de tratamento (249) –


texto 1

Formas de Número relativo


Número absoluto
tratamento (%)
Diminutivo 4 1,6
Primeiro nome 35 15,05
Alcunha 54 21,68
Vossa Senhoria/V. S. 64 25,06
Vossa Mercês/V. Mcês 17 6,8
Vossia 3 1,2
Vossê/Vossês 12 4,8
Dona/D. 4 1,6
Título (Morgado) 8 3,2
Senhor/Senhora 48 19,2
Total 249 100

Fonte: Elaborada pela autora (2020).

Quando olhamos o total das ocorrências de diminutivos


no texto em números absolutos, 17, observamos que apenas 4,
que correspondem a 23% do total de ocorrências, são utilizados
como forma de tratamento. Esse dado ilustra a escolha do autor
independentemente do estilo, pois aponta, dentre os diminutivos
usados, quantos funcionam como formas de tratamento. Em
outras palavras, não se capta se o autor faz maior ou menor uso
do diminutivo, mas qual contexto ou função sintática/semântica
de tratamento na relação interpessoal. Esse dado mede a escolha

118
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

do diminutivo como forma de tratamento, ou seja, o diminutivo


dirigindo-se à pessoa. Associando esse dado aos números gerais
das formas de tratamento expressos na Tabela 1 e considerando seu
total, o texto 1, em que seu aparece como concorrente de vosso, pode
ser caracterizado como um texto com mais marcas de formalidade
no tratamento.

5.2.2 O juiz de paz da roça, Martins Pena

Dramaturgo e diplomata, Martins Pena, considerado o


fundador do teatro nacional (COSTA, 1989, p. 2), nasceu no Rio
de Janeiro em 5 de novembro de 1815. O juiz de paz da roça é sua
primeira peça, uma comédia em ato único. Escrita em 1837, foi
encenada pela primeira vez em 4 de outubro de 1838, no Teatro
de São Pedro, na cidade do Rio de Janeiro. O Brasil acabava de
se tornar independente (1822) e iniciar seu período Imperial. Em
consequência de seu primeiro imperador, D. Pedro I, que também
era o príncipe herdeiro português, retornar a Portugal para assumir
o trono, e de D. Pedro II, príncipe brasileiro, ainda ser uma criança
de 5 anos, o país viveu o período de governos regenciais (1831-1840):

A tendência vencedora após 7 de abril [de 1831] foi a dos liberais


moderados, que se organizavam de acordo com a tradição maçônica
na Sociedade defensora da liberdade e Independência Nacional.
Entre eles havia uma alta proporção de políticos de Minas, São
Paulo e do Rio de Janeiro. Havia também uma presença significativa
de padres e alguns graduados por Coimbra. (FAUSTO, 2002, p. 162)

Dentre os clérigos da tendência vencedora estava Padre Feijó,


primeiro regente uno (1831-1837). Contudo, o Período Regencial
foi um dos mais conturbados da história brasileira, marcado por
conflitos separatistas e ideológicos. Não apenas a unidade territorial,

119
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

mas também a conceitual de país estava em ebulição:


Na oposição ficavam, de um lado, os “exaltados”, e de outro os
absolutistas. Os exaltados defendiam a federação, ou seja, a efetiva
autonomia das províncias, e as liberdades individuais; alguns como
Cipriano da Mata e Borges da Fonseca eram adeptos da república. Os
absolutistas, chamados de “caramurus”, muitos deles portugueses,
com postos na burocracia, no Exército e no alto comércio, lutavam
pela volta ao trono de Dom Pedro I. (Ibidem, p. 162)

Travava-se, pois, de um conflito de concepções de país e


de ideias de nação que, em última instância, oscilavam entre os
interesses dos nascidos em território brasileiro e dos portugueses
que aqui estavam. É nesse contexto que Martins Pena escreve O
juiz de paz da roça. Silva (2018) citando Basile (2009, p. 97) nos
lembra a importância de um juiz de paz como personagem, porque
“ele traduzia a ordem em meio aos conflitos entre os poderes locais
e o poder central dos regentes, a fim de manter uma almejada
estabilidade político-social” (SILVA, 2018, p. 25).
A peça se desenvolve em ambiente rural, no interior do país
da primeira metade do século XIX, e nos narra de maneira bem-
humorada o dia-a-dia de um juiz de paz, suas decisões e a relação
com os moradores do lugarejo. Os personagens principais são:
o Juiz de paz; o Escrivão do Juiz de paz; Manuel João, lavrador e
guarda nacional; Maria Rosa, esposa de Manuel João; Aninha, filha
de Manuel João; e José da Fonseca, amante de Aninha. Interessante
notar que apenas o Escrivão e o Juiz de paz 64 são tratados pelas
demais personagens pelo nome do cargo. As demais, ainda que
tenham cargo conhecido, como o caso de Manuel João, que seria
guarda nacional, são tratadas por primeiro nome, diminutivo

64 Manteremos em letras maiúsculas as iniciais das funções profissionais que se equivalem à identificação
do personagem, a saber, o Escrivão e o Juiz de paz. O Escrivão não tem nome, é identificado exclusivamente
pela sua função. Do Juiz, só saberemos o nome na última cena.

120
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(Aninha), ou um tipo de epíteto ou alcunha, como menina, rapaz,


homem, mulher, amigo e bruxa.
Pode-se dizer que a peça tem dois núcleos: o privado,
representado pela família de Manuel João, e o público, representado
pelo Juiz de paz e pelo Escrivão. Há cenários públicos e privados,
mas o destaque é a mistura dos dois relacionada ao Juiz: a sala de
casa é tribunal e também salão de festas; requerentes são também
convidados da festa; o Juiz recebe presente de requerente, passando
a ideia de possibilidade ou intenção do requerente de mostrar-lhe
apreço e ganhar-lhe o afeto. Um Juiz que pede ao Escrivão que se
revogue a constituição para que se possa caçar os direitos de um
desafeto. Esse trato afetuoso e pessoal, onde se deveria esperar maior
distanciamento formal, especialmente enquanto personagens que
exercem função pública e por ela são tratados, é parte fundamental
do humor da peça.
Compreendido o enredo, vejamos os dados. Os dados globais
dos pronomes possessivos seu, teu e vosso já indicam maior uso do
pronome possessivo seu na 2ª pessoa (19) que na terceira pessoa (15),
assim como sua proeminência em relação aos demais pronomes
de 2ª pessoa: 9 ocorrências de teu e 3 de vosso. Esse aumento está
provavelmente relacionado à queda do uso de vosso, já registrada
por Menon (1997). Em outras palavras, os dados ilustram a paulatina
cooptação de seu para a 2ª pessoa, conforme se vê no Gráfico 6:

121
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Gráfico 6 – Ocorrências de seu/teu/vosso – texto 2

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Ainda na primeira metade do século XIX confirma-se o uso já


consistente de seu na 2ª pessoa, o que também está de acordo com
Martins e Vargas (2014, p. 384): “[...] tal resultado parece apontar
para um comportamento diferenciado do pronome possessivo
em relação ao pronome sujeito [você] na diacronia do PB”, como
dito anteriormente. Isso corrobora nossa tese de que o pronome
você certamente influencia o seu de 2ª pessoa, mas não deve ser
considerado como único fator motivador do fenômeno de variação/
mudança.
No Gráfico 7, em dados relativos, observa-se mais claramente
a incidência de cada pronome em ralação aos usos da 2ª pessoa: 19
ocorrências do pronome seu, que correspondem a 61,29% do total; 9
de teu, que correspondem a 29,03%; e 3 de vosso, que correspondem
a 9,68%:

122
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Gráfico 7 – Ocorrências de pronomes em 2a pessoa – texto 2

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Observando mais de perto as ocorrências de cada pronome,


nota-se que as 3 de vosso são, respectivamente: 1 entre Escrivão
e Manuel João (guarda nacional), estando o escrivão no papel
de transmitir a ordem do Juiz; 1 entre o genro e o sogro, quando
o genro se apresenta a ele; 1 entre o Juiz e o guarda, quando o
primeiro toma conhecimento do casamento da filha do guarda.
Todas, pois, situações com marcas de maior formalidade, o que se
pode aferir pela associação à forma de tratamento senhor em (20)
e (22), e senhor e Vossa Senhoria em (21). Em (20), chama atenção
a formalidade do vosso no tratamento do genro a Manuel João, em
oposição à preferência pelo teu quando, no mesmo diálogo, Manuel
João dirige-se à filha.

• Genro para sogro

(20) ANINHA – Meu pai, aqui está meu marido.


MANUEL JOÃO – Teu marido?!

123
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

JOSÉ – Sim senhor, seu marido. Há muito tempo que nos


amamos, e sabendo que não nos daríeis o vosso consentimento,
fugimos e casamos na freguesia.
MANUEL JOÃO – E então? Agora peguei com um trapo
quente. Está bom, levantem-se; já agora não há remédio. (ANINHA
E JOSÉ LEVANTAM-SE. ANINHA VAI ABRAÇAR A MÃE). (PENA,
[1837]2018, p. 26)

• Juiz e Manuel João (guarda nacional)

(21) MANUEL JOÃO – Vossa Senhorita não se aflija, êste


homem está casado.
JUIZ – Casado?!
MANUEL JOÃO – Sim senhor, e com minha filha.
JUIZ – Ah, então não é rebelião... Mas vossa filha casada com
um biltre dêstes?
MANUEL JOÃO – Tinha-o prêso no meu quarto para levá-
lo amanhã para a cidade; porém a menina, que foi mais esperta,
furtou a chave e fugiu com êle. (PENA, [1837]2018, p. 28)

• Escrivão e Manuel João (guarda nacional)

(22) ESCRIVÃO – (zangado) O senhor juiz manda dizer-lhe que


se não fôr irá prêso.
MANUEL JOÃO – Pois diga com todos os diabos ao senhor
juiz que lá irei.
ESCRIVÃO – (à parte) Em boa hora o digas. Apre! Custou-me
achar um guarda... Às vossas ordens.
MANUEL JOÃO – Um seu criado. (PENA, [1837]2018, p. 8)

Observando mais amplamente o contexto do diálogo


parcialmente exposto em (22), no diálogo completo exposto em (24)
é significativo que vosso apareça justamente quando a possibilidade
de alcançar êxito por um tratamento menos formal, mais afetivo
e pessoal, meu amigo, não obtêm sucesso no convencimento.
Nesse momento de insucesso da pessoalidade, recorre-se à via da
imposição da autoridade, da formalidade da ordem e, não por acaso
em nossa perspectiva, o falante opta pelo vosso. Tudo se passa

124
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

como se houvesse estágios ou etapas na condução do tratamento:


de afetividade e pessoalidade (primeira estratégia) à formalidade
trazida pela imposição hierárquica da posição oficial:

(24) ESCRIVÃO – Mas, meu amigo, os rebeldes têm feito por lá


horrores!
MANUEL JOÃO – E que quer o senhor que se lhe faça? Ora é
boa!
ESCRIVÃO – Não diga isto, senhor Manuel João, a rebelião...
MANUEL JOÃO – (gritando) E que me importa eu com isso?...
e o senhor a dar-lhe...
ESCRIVÃO – (zangado) O senhor juiz manda dizer-lhe que se
não fôr irá prêso.
MANUEL JOÃO – Pois diga com todos os diabos ao senhor
juiz que lá irei.
ESCRIVÃO – (à parte) Em boa hora o digas. Apre! Custou-me
achar um guarda... Às vossas ordens.
MANUEL JOÃO – Um seu criado. (PENA, [1837]2018, p.8)

Os usos do possessivo teu, 9 registros, prevalecem em


situações de menor formalidade e maior pessoalidade, como nas
situações comunicativas familiares e domésticas, entre os pais e a
filha, na forma dos pais se dirigem à filha. Dos 9 registros temos:
5 entre pais e filha; 2 entre amantes; 1 do Juiz para seu provável
escravizado doméstico, chamado de prêto na rubrica do autor65; 1
entre personagens secundárias de mesma classe social.

65 Apesar de escrita no Período Regencial (1831-1840), a peça de Martins Pena, em relação ao papel do
negro na sociedade, retrata bem a continuidade de uma herança cultural e social colonial no Brasil Império.
Com o escravagismo colonial, que permanecerá legal ainda por todo o Império, tem-se um dos traços visíveis
da permanência de um modelo cultural colonial, no qual a cordialidade encontra suas raízes, segundo Holanda
([1936]2015).

125
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Gráfico 8 – Ocorrências de teu – texto 2

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Interessante destacarmos aqui que esses usos de teu


decorrem de situações em que aparecem marcas de maior
intimidade. Além da própria situação doméstica/familiar,
destacada em (27) na rubrica do texto, linguisticamente, associada
às personagens a quem o falante se dirige usando o pronome teu,
apresentam-se usos de diminutivo – (25) e (26) – e de primeiro
nome e/ou alcunha –­ (25) e (28) – como formas de tratamento.
Vejam-se os exemplos:

• Pais e filha

(25) ANINHA – Abençoa, meu pai.


MANUEL JOÃO – Adeus, rapariga. Aonde está tua mãe?
ANINHA – Está lá dentro preparando a jacuba.
MARIA ROSA – Aninha, vai buscar a janta de teu pai. (ANINHA
SAI)
MANUEL JOÃO – Senhora, sabe que mais? É preciso casarmos
esta rapariga. (PENA, [1837]2018, p. 6)

126
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

• Amantes

(26) JOSÉ – Minha Aninha, não chores. Oh, se tu soubesses como


é bonita a Côrte! Tenho um projeto que te quero dizer.
ANINHA – Qual é?
JOSÉ – Você sabe que eu agora estou pobre como Jó, e então
tenho pensado em uma cousa. Nós nos casaremos na freguesia, sem
que teu pai o saiba; depois partiremos para a Côrte e lá viveremos.
ANINHA – Mas como? Sem dinheiro? (PENA, [1837]2018, p. 3)

• Senhor e criada(o)

(27) (Sala em casa do JUIZ DE PAZ. Mesa no meio com papéis;


cadeiras. Entra o JUIZ DE PAZ vestido de calça branca, rodaque de
riscado, chinelas verde e sem gravata).
[...]
(BATEM À PORTA) – Quem é? Pode entrar.
(ENTRA UM PRÊTO COM UM CAICHO DE BANANAS E UMA
CARTA, QUE ENTREGA AO JUIZ. JUIZ, LENDO A CARTA: [...] –
Bom, tenho bananas para a sobremesa. Ó pai, leva estas bananas
para dentro e entrega à senhora. Toma lá um vintém para teu
tabaco. (SAI O NEGRO) O certo é que é bem bom ser juiz de paz cá
pela roça. De vez em quando temos nossos presentes de galinhas,
bananas, ovos, etc., etc. (PENA, [1837]2018, p. 12)

• Personagens secundárias de mesma classe social

(28) GREGÓRIO – É mentira, Sr. Juiz de paz, eu não dou embigada


em bruxas.
JOSEFA JOAQUINA – Bruxa é a marafora de tua mulher,
malcriado! Já não me lembra que me deu uma embigada, e que
me deixou uma marca roxa na barriga? Se o senhor quer ver, posso
mostrar. (PENA, [1837]2018, p.14)

Ao observamos os usos do possessivo seu na 2ª pessoa, nota-


se que eles se fazem no texto 2 em situações que se assemelham às
ocorrências de teu, a saber: entre amantes, exemplo (29), e dirigindo-
se a personagens tratadas por diminutivo, exemplos (29) e (32), que é

127
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

marca de afetividade; mas também, significativamente, nos diálogos


de maior formalidade, entre personagens com relações simétricas –
2 das 19 ocorrências, exemplos (30) e (31) – e assimétricas – 15 das 19
ocorrências, exemplo (33). No Gráfico 9, vemos a distribuição dos
usos de seu em 2ª pessoa, conforme descrito:

Gráfico 9 – Ocorrências de seu em uso de 2a pessoa – texto 2

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Observando-se os exemplos textuais, destaca-se no (29), um


diálogo entre enamorados, o uso da forma de tratamento senhor,
a qual se associa a um distanciamento desejado, distanciamento
físico, acentuado linguisticamente pelo uso dessa forma de
tratamento e pela opção da personagem por seu. Seu também é
usado em momento de afetividade, seja em contexto de busca de
simpatia, (32) e (33), seja em contexto de desagravo, (30) e (33),
mas não raro envolvida certa valoração, ou seja, atribuição de valor
expressa por meio de avaliação positiva ou negativa de uma pessoa.
Em (34), assim como no texto 1, vemos a expressão de deferência
“seu criado” em contexto semelhante, isto é, de irritação contida,

128
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

uma formalidade (mal) dissimulada, como pode-se observar mais


claramente no diálogo completo, transcrito em (24). Atentemo-nos
aos próximos exemplos:

• Enamorados

(29) JOSÉ – Adeus, minha Aninha! (QUER ABRAÇÁ-LA.)


ANINHA – Fique quieto. Não gosto dêstes brinquedos. Eu
quero casar-me com o senhor, mas não quero que me abrace antes
de nos casarmos. Esta gente quando vai à Côrte, vem perdida. Ora,
diga-me, concluiu a venda do bananal que seu pai lhe deixou? Se
o senhor agora tem dinheiro, por que não me pede a meu pai?
(PENA, [1837]2018, p. 3)

• Personagens secundárias

(30) TOMÁS – É verdade que o leitão era dêle, porém agora é meu.
SAMPAIO – Mas se era meu, e o senhor nem mo comprou,
nem eu lho dei, como pode ser seu? (PENA, [1837]2018, p. 15)

(31) INÁCIO JOSÉ – (PARA MANUEL JOSÉ) Estimarei que sua


filha seja feliz. (PENA, [1837]2018, p. 29)

• Escrivão e personagens comuns

(32) ESCRIVÃO – Um criado da Senhora Dona e da Senhora


Doninha.
MARIA ROSA E ANINHA – Uma sua criada. (COMPRIMENTAM)
(PENA, [1837]2018, p. 8)

• Escrivão e Manuel João (guarda nacional)

(33) ESCRIVÃO – (à parte) Em boa hora o digas. Apre! Custou-me


achar um guarda... Às vossas ordens.
MANUEL JOÃO – Um seu criado
ESCRIVÃO – Sentido nos seus cães;
JOÃO MANUEL – Não mordem. (PENA, [1837]2018, p. 8)

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

O uso de seu é o preferencial entre Juiz e personagens


secundárias, tanto quando o Juiz se dirige a elas (top down),
chamadas roceiros, 6 ocorrências, quanto quando essas personagens
se referem ao Juiz (down top), 6 ocorrências. Nota-se também que,
ainda que assimétrica a relação social, o contexto de tratamento
que prevalece não é de pura formalidade. Há pessoalidade no
tratamento e expectativa de reciprocidade dessa pessoalidade na
relação entre Juiz e moradores da roça, o que fornece humor, ou
seja: a expectativa de quem presenteia o Juiz é a de receber, em
troca, o aceite de seus requerimentos (34) e (36).
Por outro lado, o mesmo Juiz, que recebe e delibera os
requerimentos em sua própria residência (34) e (35), no momento
seguinte, nessa mesma residência, organiza uma festa de casamento
e os requerentes se tornam convidados (37) e (38). Enfim, a relação do
Juiz com os lavradores mostra o tratamento privado, valorativo, em
um espaço público, que deveria preservar o distanciamento formal.
O Juiz em si não se comporta institucionalmente, não se prende à
forma da lei: não reconhece a autoridade da constituição e chega a se
colocar em posição de ser ele próprio a lei. Nas opções de uso dessa
personagem, o seu em 2ª pessoa é exclusivo. Sua prevalência nesse
contexto provavelmente se relaciona com a posição ambivalente
e intermediária em que o pronome se encontra. Na seção 2.2,
de seu num contexto de modulação de vosso em direção a teu,
demonstramos o que acreditamos explicar esse caso: prevalece o
uso formal, mas a ele se agrega mais pessoalidade e mais afetividade
(Grondelaers; Speelman; Geeraerts, 2007). Vejamos os exemplos:

• Juiz de paz e personagens secundárias

(34) JUIZ – Vamo-nos preparando para dar audiência. (ARRANJA


OS PAPÉIS.) O escrivão já tarda; sem dúvida está na venda do
Manuel do Coqueiro... O último recruta que se fêz já vai-me
fazendo pêso. Nada, não gosto de presos em casa. Podem fugir, e

130
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

depois dizem que o juiz recebeu algum presente.


(BATEM À PORTA) – Quem é? Pode entrar.
(ENTRA UM PRÊTO COM UM CAICHO DE BANANAS E UMA
CARTA, QUE ENTREGA AO JUIZ. JUIZ, LENDO A CARTA:) “Ilmo.
Sr.? Muito me alegro de dizer a V.Sa. que a minha ao fazer desta é
boa, e que a mesma desejo para V.Sa. pelos circunlóquios com que
lhe venero”. (DEIXANDO DE LER:) Circunlóquios... Que nome em
breve! O que quererá êle dizer? Continuemos. (LENDO:) “Tomo
a liberdade de mandar a V.Sa. um caicho de bananas maçãs para
V.Sa. comer com a sua bôca e dar também a comer à Sra. Juiza e aos
Srs. Juizinhos. V.Sa. há-de reparar na insignificância do presente;
porém, Ilmo. Sr., as reformas da Constituição permitem a cada um
fazer o que quiser, e mesmo fazer presentes; ora, mandando assim
as ditas reformas V. Sa. fará o favor de aceitar as ditas bananas,
que diz minha Teresa, ova serem muito boas. No mais, receba as
ordens de quem é seu venerador e tem a honra de ser ‘Manuel
André de Sapiruruca’.” Bom, tenho bananas para a sobremesa. Ó
pai, leva estas bananas para dentro e entrega à senhora. Toma lá
um vintém para teu tabaco. (SAI O NEGRO) O certo é que é bem
bom ser juiz de paz cá pela roça. De vez em quando temos nossos
presentes de galinhas, bananas, ovos, etc., etc.
(BATEM À PORTA) – Quem é? (PENA, [1837]2018, p. 12)

(35) JUIZ – Bom. Agora vamos nós preparar a audiência.


(ASSENTAM-SE AMBOS À MESA E O JUIZ TOCA A CAMPAINHA.)
Os senhores que estão lá fora no terreiro podem entrar. (ENTRAM
TODOS OS LAVRADORES VESTIDOS COMO ROCEIROS, UNS
DE JAQUETA DE CHITA, CHAPÉU DE PALHA, CALÇAS BRANCAS
DE GANGA, DE TAMANCOS, DESCALÇOS; OUTROS CALÇAM
OS SAPATOS E MEIAS QUANDO ENTRAM, ETC. TOMÁS TRAZ
UM LEITÃO DEBAIXO DO BRAÇO) – Está aberta a audiência. Os
seus requerimentos? (PENA, [1837]2018, p. 13)

(36) JUIZ – Ordena alguma cousa?


JOSEFA JOAQUINA – Trazia êste presente para o Sr. Juiz.
Queira perdoar não se cousa capaz. Não trouxe mais porque a peste
deu lá em casa, que só ficaram estas que trago, e a carijó que ficou
chocando.
JUIZ – Está bom; muito obrigado pela sua lembrança. Quer
jantar?

131
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

JOSEFA JOAQUINA – Vossa Senhoria faça o seu gôsto, que


êste é o meu que já fiz em casa.
JUIZ – Então com sua licença.
JOSEFA JOAQUINA – Uma sua criada. (SAI.) (PENA,
[1837]2018, p. 20)

(37) JUIZ – Senhora Dona, queira perdoar se ainda a não cortejei.


(COMPRIMENTA)
MARIA ROSA – (COMPRIMENTANDO) Uma criada de sua
Excelência.
JUIZ – Obrigado, minha senhora... Aí chegam os amigos.
(PENA, [1837]2018, p.28)

(38) JUIZ – Sr. Escrivão, faça o favor de ir buscar a viola. (SAI O


ESCRIVÃO.) Não façam cerimônia; suponham que estão em suas
casas... Haja liberdade! Esta casa não é agora do juiz de paz? é do
João Rodrigues. Sr. Tomás, faz-me o favor? (TOMÁS CHEGA,
SEPARA O JUIZ E ESTE O LEVA PARA UM CANTO) O leitão ficou
no chiqueiro? (PENA, [1837]2018, p. 28)

O exemplo (38) é ilustrativo da ambivalência do uso de seu


bem como do uso “simetrizante” de senhor. O pronome possessivo
e a forma de tratamento são usados entre Juiz e Escrivão, duas
personagens com cargos oficiais hierarquizados. Essa hierarquização
que percorre o tratamento Sr. Juiz, por exemplo, fica explícita pela
fala “Esta casa não é agora do juiz de paz? é do João Rodrigues”,
que indica que o Juiz deve ser tratado pelo primeiro nome, “sem
cerimônias”, apenas a partir daquele derradeiro momento da
festa. Contudo, ao mesmo tempo, se observamos o exemplo (39),
senhor e o possessivo que ele acompanha, seu, também ocorrem
no tratamento do Juiz a uma personagem secundária – tratada pelo
primeiro nome e a quem o Juiz espera convencer de uma tarefa
sem uso direto da autoridade investida do cargo, momento que
busca aproximação por uma saída conciliatória, ainda que não
sejam íntimos.

132
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

• Juiz de paz e João Manuel (guarda nacional)

(39) (ENTRA JOSÉ)


JUIZ – Aqui está o recruta; queira levar para a cidade. Deixe-o
no quartel do Campo de Santana e vá levar esta parte ao general.
(DÁ-LHE UM PAPEL)
MANUEL JOÃO – Sim senhor. Mas, Sr. Juiz, isto não podia
ficar para amanhã? Hoje já é tarde, pode anoitecer no caminho e o
sujeitinho fugir.
JUIZ – Mas aonde há-de êle ficar? Bem sabe que não temos
cadeias.
MANUEL JOÃO – Isto é o diabo!
JUIZ – Só se o senhor quiser levá-lo para sua casa e prendê-lo
até amanhã, ou num quarto, ou na casa de farinha.
MANUEL JOÃO – Pois bem, levarei.
JUIZ – Sentido que não fuja.
MANUEL JOÃO – Sim senhor. Rapaz, acompanha-me.
(SAEM MANUEL JOÃO E JOSÉ). (PENA, [1837]2018, p.18)

Como dito anteriormente, paralelo ao uso de seu, que


continua a ocupar lugar mais formal, mas avança em direção
a contextos de maior pessoalidade e afetividade, observa-se
simplificação do sistema formal de tratamento, isto é, senhor
parece substituir formas como Vossa Senhoria e Vossa Excelência,
a exemplo do tratamento ao Juiz visto em (36) e em (39).
Importante destacar aqui que nessa simplificação do sistema
pronominal senhor não é sistematicamente utilizado para marcar
distanciamento formal de hierarquia, como Vossa Excelência
e Vossa Senhoria faziam no texto 1 em relação às personagens
nobres, marca linguística das relações assimétricas (down top).
Parece, antes, marca de não-intimidade usada nos tratamentos
simétricos e assimétricos (top down e down top), à semelhança de
marcas pronominais de tratamento não-íntimo presentes em outras
línguas como Sie, no alemão, Vous, no francês e Lei, no italiano. No
próximo capítulo voltaremos a esse tipo de ocorrência.

133
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Sempre marcando não-intimidade, a maior ou a menor


formalidade de senhor será definida pelo contexto: se acompanhado
por título ou função, como Sr. Juiz (36) ou Senhora Dona (32) – maior
formalidade; se acompanhado do primeiro nome, como Senhor
João Manuel – menor formalidade. Um senhor que guarda valor
ambivalente acompanhando sempre por um seu. Assim, o seu que
acompanha este senhor, além de situações de maior formalidade,
também ocorre em situações de maior proximidade, como no
tratamento em um diálogo com o futuro noivo, tratado sem título,
como no exemplo (29) ou junto com diminutivo (32).
Ao analisarmos mais de perto as formas de tratamento, a fim
de entendermos melhor o grau de formalidade, pessoalidade e
afetividade do contexto de uso de seu interpretado como de 2ª pessoa,
vemos um número total de 145 registros de formas de tratamento.
Desse total temos: 79 formas de tratamento nominais, que
correspondem a 54,48%; e 66 formas de tratamento pronominais,
que correspondem a 45,52%%.
Das 79 ocorrências de formas de tratamento nominais temos: 7
diminutivos que correspondem a 8,86%; 17 usos de primeiro nome,
que correspondem a 21,52%; e 55 alcunhas, que correspondem a
69,62%.
Das 66 ocorrências de formas de tratamento pronominais
temos: 1 Vossa, que corresponde a 1,51%; 18 Vossa Senhoria, que
correspondem a 27,27%; 3 Ilustríssimo/Ilmo. e 3 Dona/D., que
correspondem, cada um, a 4,54%; 35 Senhor, que correspondem a
53,03%; e 6 você, que correspondem a 9,09%.
Do total dos diminutivos do texto 2, 21 ocorrências, 7 são
usadas como formas de tratamento, o que corresponde a 33,33%.
O dado revela crescimento, em relação ao texto 1, da escolha pelo
uso do diminutivo como forma de tratamento.
Comparando o uso das formas nominais de tratamento e de
seu com a peça de Gusmão, há aumento da opção por diminutivos e

134
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

pelo primeiro nome. Há indícios também de que teu ainda é o lugar


preferencial da fala entre pais, namorados e senhores se dirigindo a
criados, enfim, do privado, do ambiente doméstico, da intimidade,
da pessoalidade em Holanda.
Quanto às formas pronominais de tratamento, Ilustríssimo/
Ilmo. tem todos os seus registros em requerimento escrito dirigido
ao Juiz. Na comunicação oral o tratamento formal preferido, para
Juiz ou personagens secundárias na peça e no status social, é Senhor:
35 ocorrências totais. Nota-se que, ainda que formal, Senhor não
é o tratamento oficial a um Juiz no exercício de sua função, que
seria Meritíssimo. Senhor é um tratamento dado também às demais
personagens a quem se quer mostrar respeitabilidade, sem associação
imediata à função pública, e seu consequente distanciamento.
Destaca-se ainda Senhora Dona, 3 ocorrências, e Senhora
doninha, 1 ocorrência dirigida à personagem Aninha, filha solteira.
Ambas seriam “superlativação” da forma de tratamento vindas do
Juiz ou do Escrivão a personagens secundárias, portanto, comuns,
mas ocorrem em contexto de pedido de desculpas. Na Tabela 2
encontra-se a classificação dos nossos dados:

Tabela 2 – Tipos de pronomes em relação ao total de formas de tratamento (145) –


texto 2

Formas de tratamento Número absoluto Número relativo (%)


Diminutivo 7 4,83

Primeiro nome 17 11,72

Alcunha 55 37,93

Vossa Senhoria 18 12,41

Vossa 1 0,69

Ilustríssimo/Ilmo. 3 2,07

Você 6 4,17

135
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Dona/D. 3 2,07

Senhor 35 24,14

Total 145 100

Fonte: Elaborada pela autora (2020).

Vejamos agora em mais detalhes as ocorrências do pronome


você cujo uso se mantém estável, considerando o percentual de
ocorrências. Não se observou relação de proporção com seu, ou seja,
o aumento observado no uso de seu em 2a pessoa não corresponde a
aumento semelhante nas ocorrências de você. A maior parte, 5 dos 8
usos, se dá no contexto mais íntimo, em ambiente de familiaridade:
entre enamorados, exemplo (41), e marido e mulher, exemplos (42)
e (44). Nota-se 1 uso em (43), durante uma audiência de avaliação de
requerimento, portanto, num momento formal, para aparentemente
apoia a demarcação de assimetria social: o Juiz de paz é tratado por
Sr. e Vossa senhoria, enquanto trata o personagem Manuel André
por você. Entretanto, o referido momento é também de animosidade
(afetividade), já que o Juiz está tendo um desentendimento com
Manuel André. Trata-se, ainda assim, de você em contexto de uso
cordial, como se também sobre ele atuasse o modelo cultural.
É interessante notar que, quando acompanhado de
possessivo, você apareceu com teu, exemplos (40) e (44), mais
um indicativo de familiaridade e intimidade do contexto de uso.
Tal ocorrência aponta ainda para a concorrência você/tu, já
indicada por Duarte (2003) e Machado (2006). Contudo, não houve
ocorrência de você com seu, o que aponta, mais uma vez, para relação
de complementariedade, mas não de causalidade intrínseca, ou
pelo menos de condição suficiente, entre a ocorrência do pronome
sujeito você e o possessivo seu cooptado para a 2a pessoa. Vejamos
a seguir os exemplos mencionados:

136
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(40) JOSÉ – Minha Aninha, não chores. Oh, se tu soubesses como


é bonita a Côrte! Tenho um projeto que te quero dizer.
ANINHA – Qual é?
JOSÉ – Você sabe que eu agora estou pobre como Jó, e então
tenho pensado em uma cousa. Nós nos casaremos na freguesia, sem
que teu pai o saiba; depois partiremos para a Côrte e lá viveremos.
ANINHA – Mas como? Sem dinheiro?
JOSÉ – Não te dê isso cuidado: assentarei praça nos Permanentes.
ANINHA – E minha mãe?
JOSÉ – Que fique raspando mandioca, que é ofício leve. Vamos
para a Côrte, que você verá o que é bom.
ANINHA – Mas então o que é que há lá tão bonito? (PENA,
[1837]2018, p. 3)

(41) ANINHA – Quando é que você pretende casar-se comigo?


JOSÉ – O vigário está pronto para qualquer hora. (PENA,
[1837], p. 4)

(42) Entra MARIA ROSA com uma tigela na mão, e ANINHA a


acompanha.
MANUEL JOÃO – Adeus, Senhora Maria Rosa.
MARIA ROSA – Adeus, meu amigo. Estás muito cansado?
MANUEL JOÃO – Muito. Dá-me cá isso.
MARIA ROSA – Pensando que você viria muito cansado, fiz a
tigela cheia.
MANUEL JOÃO – Obrigado. (BEBENDO) Hoje trabalhei
como gente... Limpei o mandiocal, que estava muito sujo... Fiz uma
derrubada do lado de Francisco Antônio... Limpei a vala de Maria
de Rosário, que estava muito suja e encharcada, e logo pretendo
colhêr café. Aninha? (PENA, [1837]2018, p. 5)

(43) MANUEL ANDRÉ – Mas, Sr. Juiz, êle também está ocupado
com uma plantação.
JUIZ – Você replica? Olhe que o mundo para a cadeia.
MANUEL ANDRÉ – Vossa senhoria não pode prender-me à
toa; a Constituição não manda.
JUIZ – A constituição!... Está bem!... Eu, o Juiz de paz, hei
por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome têrmo que a
Constituição está derrogada, e mande-me prender êste homem.
MANUEL ANDRÉ – Isto é uma injustiça! (PENA, [1837]2018, p.

137
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

14)

(44) MARIA ROSA – E quando é que eu não hei-de perdoar-te? Não


sou tua mãe? (ABRAÇAM-SE)
MANUEL JOÃO – É preciso agora irmos dar parte ao juiz de
paz que você já não pode ser soldado, pois está casado. Senhora, vá
buscar minha jaqueta. (SAI MARIA ROSA) Então o senhor conta
viver à minha custa, e com o meu trabalho?
JOSÉ – Não senhor, também tenho braços para ajudar, e
se o senhor não quer que eu aqui viva, irei para a Côrte. (PENA,
[1837]2018, p.26)

Como observado, mais uma vez o aumento do uso de seu


cooptado para 2ª pessoa não parece proporcionalmente vinculado
às ocorrências de você, como já apontado por Martins e Vargas
(2014) e ilustrado no exemplo (40), no qual o possessivo escolhido
para acompanhar você é teu.
É interessante notar que dos 8 usos de você, 2 se dão em uma
música cantada pelos personagens ao final da peça (45), durante
a celebração pelo casamento de Aninha. Aparentemente, ocorre
como referência anafórica a um sujeito nulo tu, onde esperava-se
encontrar contigo. Encontrar o você como pronome pessoal com
uso anafórico chama atenção dado ser este um contexto em que
ele ainda não está completamente inserido como pronome sujeito,
anunciando a pronominalização que, segundo Rumeu (2013),
ocorrerá apenas ao fim do século XIX e princípio do século XX,
suplantando o tu.
Importante notar ainda que, para Duarte (2016, p. 533), esse
uso de você pode se dar pelos falantes “para a obtenção de efeitos
expressivos, entre os quais se inclui o envolvimento emocional
entre os interlocutores”, o que, a nossos olhos, seria um uso
cordial: à medida que percorre o caminho da pronominalização,
também percorre o caminho em direção ao privado. Apesar disso,
a ocorrência anafórica específica, trazida pelo texto, parece-nos um

138
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

caso de duplo tratamento por estilística, em razão da rima e da


harmonia sonora dos versos, de você com comê:

(45) TOCADOR – (canta


Ganinha, minha senhora,
Da maior veneração;
Passarinho foi-se embora,
Me deixou penas na mão.
TODOS – Se me dás que comê,
Se me dás que bebê,
Se me pagas as casas,
Vou morar com você. (DANÇAM.)
Não há homem neste mundo Como o nosso juiz de paz.
TODOS - Se me dás que comê,
Se me dás que bebê,
Se me pagas as casas,
Vou morar com você. (PENA, [1837]2018, pp. 29-30)

Considerando a propriedade afetiva do diminutivo e seu uso


como forma de tratamento, destacam-se os casos em que ele está
indissociável do nome próprio da personagem, como vimos nos
exemplos (25), (26), (29), (40), (42) e ainda no exemplo que segue:

(46) MANUEL JOÃO – Vai dizer que traga, pois estou com muito
calor.
(ANINHA SAI. M. JOÃO, PARA O NEGRO) – Olé, Agostinho,
leva estas enxadas lá para dentro e vai botar êste café no sol.
(O PRÊTO SAI. MANUEL JOÃO SENTA-SE) – Estou que não
posso comigo; tenho trabalhado como um burro! (PENA, [1837]2018,
p. 7)

Não é possível saber se Aninha e Agostinho são alcunhas para


Augusto e Ana ou se são mesmo os nomes das personagens, que
são tratadas assim tanto pelas demais personagens com quem
interagem como pelo próprio autor da peça nas rubricas. Percebe-se
que essa forma de tratamento é utilizada para as duas personagens

139
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

tuteladas: a filha não casada e um escravizado da família, o que


pode ser, em nossa leitura cordial do fenômeno, indicativo de que
estariam ocupando os lugares mais distantes de um tratamento
formal, logo, do espaço público. Acreditamos que a escolha da
forma de tratamento não se deu ao acaso, e sim conforme certa
valoração, isto é, certa atribuição de valor, prestígio ou desprestígio
às pessoas.
O que chamamos de atribuição de valor é um elemento para
caracterizarmos o uso do diminutivo e o uso da alcunha que os coloca
em um ambiente de expressão de afetividade pois demonstram
valoração, que, como falado anteriormente (p. 23), pode ser
positiva ou negativa. E isso ocorre não só quando há o diminutivo,
sujeitinho, ou uma expressão claramente ofensiva, como bruxa, mas
também em negro para referir-se a um escravizado, ou menina para
a personagem filha solteira, como temos no exemplo (21). Menina
é usado 4 vezes: 3 pelos seus pais e 1 pelo próprio Juiz. Todos são
autoridades em relação à dependente ou tutelada, que ocupa o
lugar de filha. Tais termos trazem o locus social das personagens, o
que também ocorre com o uso da função pública para designá-las,
como se nome fosse; é o caso de Juiz e Escrivão. A posição deles é
tão definidora de seu valor e, pois, da forma como se deve com eles
se comportar e tratar, que seus nomes não são sequer mencionados.
Outro sinal de afetividade são os diálogos pautados por
sentimentos ou, antes, por sentimentos simulados, assim como
acontece com os amantes que simularam distanciamento e
impessoalidade com o uso do seu no texto 1. Aqui a alcunha meu
amigo simula uma proximidade, um afeto estratégico, por vezes
logo desvelado com o formalismo trazido pelo uso de vosso e/ou
senhor, como no exemplo (24). Na mesma carta, exemplo (34), em
que se usa Ilmo. Sr. – tratamento de maior formalidade e hierarquia,
destinado só ao Juiz em toda a peça, e por escrito – também há
uso excessivo do diminutivo, que busca mostrar apreço como

140
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

simulação de proximidade. Em ambos os casos a simulação de afeto


proporciona movimento de distanciamento do público em direção
à proximidade do privado.
A análise dos dados do segundo texto ilustra o progressivo
percurso do pronome possessivo de 3ª pessoa (seu) em direção à
2ª pessoa em estágio mais avançado: seu aparece como pronome
possessivo preferencial na posição de 2ª pessoa, praticamente
suplantando a forma vosso. As formas de tratamento que
contextualizam as ocorrências do pronome cooptado indicam, no
entanto, que se trata ainda de opção pelo possessivo em contexto
de maior formalidade ou, ao menos, não intimidade. Teu é ainda
o pronome preferencial em contextos de maior pessoalidade e
intimidade.
Os dados não indicaram a possível relação diretamente
proporcional entre o uso de seu e você. Em relação ao texto 1, as
ocorrências de você permanecem estáveis e, quando acompanhado
por um possessivo, é por teu.

5.2.3 Não consultes médico, Machado de Assis

Não consultes médico é uma comédia em ato único escrita


pelo jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo
carioca Machado de Assis (1839-1908) em 1896. Assim como a
peça de Martins Pena, Não consultes médico é escrita em um país
já independente, mas que naquele momento acaba de se tornar
República, proclamada em 1889. Podemos compreender tal
momento como um passo a mais na construção identitária, com
recentes debates sobre liberdade e direitos sociais. Enfim, o caldo
do caldeirão de conceptualizações, negociadas e renegociadas pelo
grupo quanto ao país que se espera construir, está mais encorpado,
mas ainda em ebulição: em 1896, a recente República conhece seu

141
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

terceiro presidente, Prudente de Morais, e se dará início às incursões


a Canudos. Mas como nos dirá Calzavara (2008, n.p.) as comédias
machadianas ficam no nível quotidiano e não nos levam a reflexões
extremas:

Enquanto comediógrafo, Machado permitiu-se o exercício da leveza,


criando enredos simples para pôr em cena tanto o amor sincero
e os bons sentimentos quanto a sátira a certos tipos e costumes
sociais e políticos de seu tempo. O universo apresentado é quase
sempre o da alta burguesia, com personagens cultos, espirituosos e
elegantes, que mantêm diálogos aos quais não faltam chistes, bom
humor e ironia refinada. (CALZAVARA, 2008, n.p.)

Não consultes médico não foge à regra. A peça traz a história


de D. Leocádia, que se apresenta como especialista na cura de
enfermidades amorosas. Autointitulada “médica”, vê o jovem
e desiludido Dr. Cavalcante como um paciente que precisa de
seus “remédios”. Contudo, na busca pelo tratamento, Cavalcante
descobre que mais vale o ditado grego, que dá nome à peça: “Não
consultes médico, consulta alguém que tenha estado doente”. As
personagens são: D. Leocádia, tia de D. Adelaide; D. Carlota, filha de
D. Leocádia; D. Adelaide, esposa de Magalhães; Cavalcante, amigo
de Magalhães; Magalhães, funcionário do serviço diplomático, a
quem D. Leocádia toma por sobrinho.
É importante dizer que nessa terceira peça tem-se um
ambiente semelhante ao da primeira, quando pensamos na classe
social das personagens, no círculo familiar e na temática amorosa.
Porém, aqui a intimidade se estabelece mais claramente, como
se poderá observar, na opção por uma forma de tratamento mais
pessoal e menos formal entre os parentes e amigos, bem como pelo
próprio cenário: ao contrário das peças anteriores que se passam
tanto em lugares públicos (rua) quanto privados (interior das casas),
essa peça concentra-se em uma sala, no interior de uma casa.

142
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Uma vez conhecidos enredo e personagens, vejamos a


quantificação dos dados obtida. No Gráfico 10, em números
absolutos, encontra-se a distribuição de ocorrências de possessivos
de 2ª e 3ª pessoas: 6 seu em 3ª pessoa, 24 seu em 2ª pessoa e 2 teu.
Não se encontra no texto o uso da 2ª pessoa do plural, vosso.

Gráfico 10 – Ocorrências de seu/teu/vosso – texto 3

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Como se vê no Gráfico 10, o uso de seu interpretado na 2ª


pessoa se consolida. Os dados apontam para o desaparecimento
de vosso, como já mostrado por Menon (1997), indicando forte
redução dessa forma para o tratamento formal. Nota-se, ainda,
expressiva redução de teu. Parece, assim, haver correlação entre a
redução muito consistente de teu e o aumento significativo de seu,
que ocupa agora lugar de 2ª pessoa do singular. Como prevalecem
diálogos diretos entre duas personagens discutindo assuntos
pessoais, íntimos, deve ter se instaurado também um contexto
favorável em relação aos resultados encontrados. No Gráfico 11

143
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

indicamos os percentuais de cada ocorrência:

Gráfico 11 – Pronomes usados em 2a pessoa – texto 3

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Como fizemos nos textos 1 e 2, analisando mais de perto cada


pronome, observa-se que não há ocorrências do possessivo de 2a
pessoa do singular no plural, teus/tuas. Há apenas 2 ocorrências do
possessivo de 2ª pessoa do singular, ambas no singular, teu/tua, e
em contexto de menor formalidade e maior afetividade, como nos
textos anteriores: entre tia e sobrinha e entre amigos que nutrem
laços de afeto significativos no enredo.

• Tia e sobrinha

(47) D. Leocádia – Em dez anos.


D. Adelaide – Misericórdia! Dez anos?
D. Leocáida – Talvez dois; e moço, e robusto, a natureza ajudará
a medicina, conquanto esteja muito atacado. Aí vem teu marido.
(ASSIS, [1896]2018, cena X)

144
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

• Amigos

(48) Magalhães – Bem, não há remédio senão entregar-te a minha


tia.
Cavalcante – À tua tia?
Magalhães – Minha tia crê que tu deves padecer alguma
doença moral, e adivinhou, – e fala curar-te. Não sei se sabes que
ela vive na persuasão de que cura todas as enfermidades. (ASSIS,
[1896]2018, cena IV)

A novidade apresentada pelo texto 3 em relação ao pronome


possessivo seu foi que, dando continuidade ao processo de uso
desse pronome na posição de 2ª pessoa, aparece como escolha
preferencial do falante em contexto mais pessoal e afetivo, isto é,
num ambiente familiar, discutindo assuntos íntimos.
Como nos mostra o Gráfico 12, das 22 ocorrências do pronome
seu em uso de 2ª pessoa, 14 são em contexto afetivo, entre
enamorados ou parentes. Das 3 ocorrências do possessivo de 2ª
pessoa em diálogos entre familiares, 2 manifestam a opção por seu,
como no exemplo (52), o que ilustra clara concorrência com teu.
No contexto do diálogo entre familiares e amigos, como mostram
(47) e (48), também usou-se teu.

145
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Gráfico 12 – Usos de seu em 2a pessoa – texto 3

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Ao mesmo tempo em que aparece como preferencial em


contextos mais pessoais e afetivos, observou-se que seu torna-se
presença exclusiva quando o diálogo se dá entre as personagens sem
vínculo direto de parentesco ou laço de amizade, como nos exemplos
(54), (55) e (56), o que não é contraditório. Tais usos indicam que
esse pronome ainda apresenta, naquele momento, resquícios de
distanciamento, certa persistência da propriedade formalidade,
como diríamos com Hopper (1991) e Hopper e Traugott (2003). A
esse respeito pode ser observada, além do mais, a ocorrência da
forma de tratamento senhor, como nos exemplos (49), (50) e (51),
entre enamorados, mas que ainda não oficializaram o romance.

• Enamorados

(49) Cavalcante – Certamente que não, mais ainda há pouco,


falando-lhe de um tio meu, que morreu no Paraguai, tio João Pedro,
capitão de engenharia...

146
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

D. Carlota (atalhando) – Por que é que o senhor quer ser


apresentado a um cardeal?
Cavalcante – Bem respondido! Confesso que fui indiscreto
com a minha pergunta. Já há de saber que eu tenho distrações
repentinas, e quando não caio no ridículo, como hoje de manhã,
caio na indiscrição. São segredos mais graves que os seus. É feliz,
é bonita, pode contar com o futuro, enquanto que eu... Mas eu não
quero aborrecê-la. O meu caso há de andar em romances. (Indicando
o livro que ela tem na mão) Talvez nesse. (ASSIS, [1896]2018, cena
XII)

(50) D. Carlota – Doutor! (Cavalcante para) Não se zangue comigo;


sou um pouco tonta, e senhor é bom...
Cavalcante (descendo) – Não diga que sou bom; os infelizes
são apenas infelizes. A bondade é toda sua. Há poucos dias que nos
conhecemos e já nos zangamos, por minha causa. Não proteste; a
causa é a minha moléstia. (ASSIS, [1896]2018, cena XII)

(51) D. Carlota – (Indo a êle) – De frade? O senhor vai ser frade?


Cavalcante – Frade. Sua mãe aprova-me, contanto que eu vá à
China. Parece-lhe que devo obedecer a esta vocação, ainda depois
de perdida?
D. Carlota – É difícil obedecer a uma vocação perdida.
Cavalcante – Talvez nem a tivesse, e ninguém se deu ao trabalho
de me dissuadir. Foi aqui, a seu lado, que comecei a mudar. A sua
voz sai de um coração que padeceu também, e sabe falar a quem
padece. Olhe, julgue-me doido, se quiser, mas eu vou pedir-lhe
um favor: conceda-me que eu a ame. (Carlota, perturbada, volta
o rosto) Não lhe peço que me ame, mas que se deixe amar; é um
modo de ser grato. Se fôsse uma santa, não podia impedir que lhe
acendesse uma vela.
D. Carlota – Não falemos mais nisto, e separemo-nos.
Cavalcante – A sua voz treme; olhe para mim...
D. Carlota – Adeus; aí vem mamãe. (ASSIS, [1896]2018, cena
xii)

• Tia e sobrinho

(52) Magalhães – Pois conhece a república.


D. Leocádia – Então mentiu.

147
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Magalhães – Não, porque nunca lá foi.


D. Leocádia (a D. Adelaide) – Mau! seu marido parece que
também está virando o juízo. (ASSIS, [1896]2018, cena ii)

(53) Magalhães – Coração do ouro.


D. Leocádia – Espírito elevado?
Magalhães – Sim, senhora.
D. Leocádia – Espírito elevado, coração de ouro, saudades...
Está entendido.
Magalhães – Entendido o quê?
D. Leocádia – Vou curar o seu amigo Cavalcante. (ASSIS,
[1896]2018, cena II)

• Cavalcante e D. Leocádia

(54) D. Leocádia – Muito bem. A sua doença é tal que só com


remédios fortes. Vá; dez anos passam depressa.
Cavalcante – Obrigado, minha senhora.
D. Leocádia – Até logo. (ASSIS, [1896]2018, cena vii)

(55) Cavalcante – O seu remédio é muito amargo! Por que é que


me não manda antes para o Egito? Também é país de infiéis.
D. Leocádia – Não serve; é a terra daquela rainha... Como se
chama?
Cavalcante – Cleópatra? Morreu há tantos séculos!
D. Leocádia – Meu marido disse que era uma desmiolada.
Cavalcante – Seu marido era, talvez, um erudito. Minha
senhora, não se aprende amor nos livros velhos, mas nos olhos
bonitos; por isso, estou certo de que êle adorava a V. Excia. (ASSIS,
[1896]2018, cena vii)

(56) D. Leocádia – Que é isto, doutor? Então o senhor quer só um


ano de China? Vieram pedir-me que reduzisse a sua ausência.
Cavalcante – D. Carlota lhe dirá o que eu desejo.
D. Carlota – O doutor veio saber se mamãe conhece algum
cardeal em Roma. (ASSIS, 2018, cena xiii)

Como se vê, os fenômenos analisados indicam que o sistema de


formas de tratamento formal aponta para a continuidade de uma

148
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

simplificação, com senhor, mas também com Dona/D. e Doutor/


Dr., tornando-se formas preponderantes do tratamento formal
em lugar de V. S.a., comum no texto 1. Senhor, Dona/D. e Doutor/
Dr. mantêm ainda a mesma característica observada no texto 2,
marca de não-intimidade, e podem ocorrer junto ao diminutivo,
em contexto de afetividade, como no exemplo (56), e, em contextos
de maior pessoalidade, junto ao primeiro nome. No último caso
tem-se a deferência, indicada por Kerbrat-Orecchioni (1992, p.
163), como subordinação simbólica do sobrinho à tia, no exemplo
(53). Em ambos os casos, temos o uso da expressão de tratamento
formal agregada à proximidade trazida pelo diminutivo e pelo uso
do primeiro nome.
Num olhar mais atento às formas de tratamento presentes no
texto, as quais nos ajudam a contextualizar os usos do possessivo
seu na 2ª pessoa, observa-se que, dentre o total das formas de
tratamento, isto é, das 90 ocorrências, 26, que correspondem a
28,88% do total, são formas nominais; e que 64, que correspondem
a 71,11% do total, são formas pronominais de tratamento.
Em relação às formas de tratamento nominais temos um
total de 26 ocorrências, como dito. Destas, 5 são diminutivos,
que correspondem a 19,23%; 8 são ocorrências do primeiro nome,
que correspondem a 30,77%; 6 são alcunhas, que correspondem a
23,08%; e 7 são sobrenomes acompanhados (2 ocorrências) ou não
(5 ocorrências) do título Dr./Sr., que correspondem a 26,92%.
Dentre as formas de tratamento pronominais, do total de 64
ocorrências, temos: 1 V. exce., que corresponde a 1,56%; 2 Dona/D.,
que correspondem a 3,13%; 40 senhor, que equivalem a 62,5%; 10
Doutor/Dr., que correspondem a 15,63%, e 11 você, que correspondem
a 17,19%.
Das 14 ocorrências de diminutivos no texto, 7 (50%) são
usadas como forma de tratamento. Esse percentual ilustra um
contínuo aumento na escolha pelo diminutivo como forma de

149
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

tratamento em relação aos textos anteriores; esse aumento,


captado diacronicamente, representa incremento da manifestação
de afetividade.
A seguir, vejamos os dados percentuais dispostos na Tabela
3, considerando cada forma de tratamento em relação ao total das
formas de tratamento encontradas no texto 3:

Tabela 3 – Tipos de pronomes em relação ao total de formas de tratamento (90) –


texto 3

Formas de tratamento Números absolutos Números relativos (%)

Diminutivo 5 5,56
Primeiro nome 8 8,89
Alcunha 6 6,67
Sobrenome 7 7,78
Vosso/V.S. 0 0
V. exce. 1 1,12
Doutor/Dr. 10 11,12
Você 11 12,22
Dona/D. 2 2,22
Senhor 40 44,44
Total 90 100

Fonte: Elaborada pela autora (2020).

Com relação às formas nominais de tratamento, há que se


notar a distinção entre o uso do sobrenome não seguido de título –
como amigos se tratam, exemplo (59), e como D. Adelaide trata o
marido, em (58) – e o uso do sobrenome seguido de título – como D.
Adelaide trata o amigo do marido, em (57). Tal relação se assemelha
com o que acontece entre o uso do primeiro nome – maneira como
as primas se tratam (57) – e do primeiro nome com título – modo
como Cavalcante trata a prima em (56):

150
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(57) D. Adelaide (que ouviu D. Carlota) – Entendo eu. O Dr.


Cavalcante contou as suas tristezas a Carlota, e Carlota, meia
curada do seu próprio mal, expôs sem querer o que tinha sentido.
Entenderam-se e casam-se. (ASSIS, [1896]2018, cena iv)

(58) D. Leocádia – Apanham-se moléstias.


D. Adelaide – Uma tarde, fitando eu os olhos de Magalhães...
D. Leocádia – Perdão, nariz.
D. Adelaide – Vá lá. A senhora disse-me que ele tinha o
nariz bonito, mas muito solitário. Não entendi; dois dias depois,
perguntou-me se queria casar, eu não sei que disse, e acabei casando.
D. Leocádia – Não é verdade que estão curados?
Magalhães – Perfeitamente. (ASSIS, [1896]2018, cena ii)

(59) Cavalcante – Não, Magalhães; reconheço agora o que vale o


mundo com as suas perfídias e tempestades. Quero achar um abrigo
contra elas; êsse abrigo é o claustro. Não sairei nunca da minha cela
e buscarei esquecer diante do altar... (ASSIS, [1896]2018, cena iv)

Parece haver certa gradação de pessoalidade: o sobrenome


sem título indicaria maior proximidade (a esposa trata assim o
marido) que o sobrenome com título (maneira como a esposa trata o
amigo do marido). O sobrenome no tratamento masculino equivale
ao primeiro nome no tratamento feminino, sendo Sr./Dr., nesses
casos, marca de não-intimidade, como apontado anteriormente.
Os diminutivos permanecem no contexto pessoal, como
marcas linguísticas de afeto nas relações interpessoais. Destacam-
se doentezinhos, no exemplo (69), forma de tratamento constante
entre tia e sobrinhos; titia, como em (60) e (65), forma de tratamento
constante dos sobrinhos para com a tia; mamãe, em (64), forma
de tratamento pela qual Carlota trata D. Leocádia. E há também
mocinha, que é a maneira pela qual Magalhães faz referência à
mulher que teria iludido o seu amigo. Dos 4 diminutivos do texto,
3 são usados como forma de tratamento, o que é compatível com
nossa abordagem qualitativa dos usos destacados.
Quanto às formas pronominais de tratamento, o texto

151
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

apresenta, em relação aos textos analisados anteriormente, maior


uso de você, o que era esperado considerando o ano em que é escrito,
conforme já observado por Duarte (2003), Machado (2006) e Rumeu
(2013). Indica-se também emprego de você mais “pronominalizado”,
sintaticamente sujeito, como nos exemplos (60), (62), (63), (64),
(65), (67) e (68), e portador de maiores pessoalidade e afetividade.
Sua ocorrência se dá em contexto de menor formalidade, entre
personagens com laços familiares, em que formas de tratamento
nominais como primeiro nome, nos exemplos (61), (65), (68) e
(69), e diminutivos, em (60), (64), (65) e (69), são também usadas.
Vejamos as ocorrências de você destacadas:
(60) D. Adelaide – Parece que não. Já saíram há um bom pedaço;
felizmente o dia está frasco. Titia estava tão contente ao almoço! E
ontem? Você viu que risadas que ela dava, ao jantar, ouvindo o Dr.
Cavalcante? E o Cavalcante sério. Meu Deus, que homem triste!
que cara de defunto!

(61) Magalhães – Talvez ela pense que a Grécia é em Paris. Eu aceitei


a legação de Atenas porque não me dava bem em Guatemala e não
há outra vaga na América. Nem é só por isso; você tem vontade
de ir acabar a lua de mel na Europa... Mas então Carlota vai ficar
conosco?

(62) D. Adelaide – Bravo! está mais corada agora!


D. Carlota – Foi do passeio.
D. Adelaide – Do que é que você gosta mais, da Tijuca ou da
cidade?
D. Carlota – Eu por mim, ficava metida aqui na Tijuca. (ASSIS,
[1896]2018, cena iv)

(63) Magalhães – Mas, em suma, aqui ou na cidade, o que é preciso


é que você ria, êsse ar tristonho faz-lhe a cara feia.
D. Carlota – Mas eu rio. Ainda agora não pude deixar de rir
vendo o Dr. Cavalcante.
(64) D. Carlota – Mamãe ia-me falando da Grécia, do céu da Grécia,
dos monumentos da Grécia, do rei da Grécia; tôda ela é Grécia, fala

152
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

como se tivesse estado na Grécia.


D. Adelaide – Você quer ir conosco para lá?

(65) Magalhães – Consentiu, titia?


D. Leocádia – Em reduzir a China a um ano? Mas ele agora
quer a vida inteira.
Magalhães – Estás doido?
D. Leocádia – Sim, a vida inteira, mas é para casar. (D. Carlota
fala baixo a D. Adelaide) Você entende Magalhães? (ASSIS,
[1896]2018, cena xiv)

(66) D. Leocádia – A princípio, cuidei que era. Mas o melhor foi


quando se serviu o peru. Perguntei-lho que tal achava o peru. Ficou
pálido, deixou cair o garfo, fechou os olhos o não me respondeu. Eu
ia chamar a atenção de vocês, quando ele abriu os olhos e disse com
voz surda: “D. Leocádia, eu não conheço o Peru...” Eu, espantada,
perguntei: “Pois não está comendo?...”. “Não falo desta pobre ave;
falo-lhe da república”.
Magalhães – Pois conhece a república.
D. Leocádia – Então mentiu. (ASSIS, [1896]2018, cena ii)

(67) Magalhães – Não, porque nunca lá foi.


D. Leocádia (a D. Adelaide) – Mau! seu marido parece que
também está virando o juízo. (A Magalhães) Conhece então o Peru,
como vocês estão conhecendo a Grécia... pelos livros. (ASSIS,
[1896]2018, cena iv)

(68) Magalhães – Entendido o quê?


D. Leocádia – Vou curar o seu amigo Cavalcante. Do que é
que vocês se espantam?
D. Adelaide – De nada.
Magalhães – De nada, mas...
D. Leocádia – Mas quê?
Magalhães – Parece-me...
D. Leocádia – Não parece nada; vocês são uns ingratos. Pois
se confessam que eu curei o nariz de um e a hipocondria do outro,
como é que põem em dúvida que eu possa curar a maluquice do
Cavalcante? Vou curá-lo. Êle virá hoje? (ASSIS, [1896]2018, cena ii)

(69) Magalhães (a D. Leocádia) – Cavalcante disse-me que vai

153
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

embora; eu vim correndo saber o que é que lhe receitou.


D. Leocádia – Receitei-lhe um remédio enérgico, mas que há
de salvá-lo. Não são consolações de cacaracá. Coitado! Sofre muito,
está gravemente doente; mas, descansem, meus filhos, juro-lhes, à
fé do meu grau, que hei de curá-lo. Tudo é que me obedeça, e êste
obedece. Oh! aquêle crê em mim. E vocês, meus filhos? Como vão
os meus doentezinhos? Não é verdade que estão curados? (Sai
pelo fundo). (ASSIS, [1896]2018, cena ix)

A análise dos dados do texto 3 atesta jornada gradual do


pronome possessivo de 3a pessoa rumo a um uso mais pessoal e em
contextos mais afetivos, ou seja, uma jornada de “cordialização”.
A forma seu, cooptada para 2ª pessoa no texto 1 e concorrente de
vosso, ocorre em contextos de formalidade no texto 2, mas também
de menor formalidade. Agora, no texto 3, aprofunda o avanço em
direção à 2ª pessoa, concorrendo com teu, e torna-se predominante
em contextos de maior pessoalidade e afetividade. Trata-se, assim, de
um estágio mais avançado em seu caminho cordial de aproximação.
Considerando as formas de tratamento que acompanham e
marcam o contexto textual, nota-se o significativo aumento das
ocorrências de você, que agora aparece mais proporcional em relação
ao aumento do uso de seu na 2ª pessoa e passa a ocorrer em contextos
mais pessoais e afetivos, sugerindo propriedades cordiais. Mantém-
se o indicativo acerca da simplificação do emprego das expressões de
tratamento formais, percebida no texto 2, assim como a deferência
com a construção Sr./Dr. como marca de não-intimidade, mas sem
alterar a afetividade quando associada, por exemplo, a contextos
com diminutivo. Trata-se, pois, de formalidade não hierarquizada
pelo status social.

154
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

5.3 Aprofundamento sobre os dados levantados e as


propriedades de cordialidade

Apresentados os dados e devidamente identificados os


pronomes possessivos em uso de 2ª pessoa e seus contextos de
ocorrência em cada texto, daremos prosseguimento nas próximas
subseções à análise comparativa e qualitativa desses dados.

5.3.1 Análise comparativa entre os dados dos três textos

O comparativo das ocorrências analisadas nos três textos


aponta na direção das hipóteses deste trabalho: a cooptação de seu
para a 2ª pessoa e a relação entre essa cooptação e determinadas
propriedades semânticas identificadas no contexto de uso de seu
interpretado na 2ª pessoa, ou seja, as propriedades semânticas que
associamos à noção de cordialidade. É digno de nota também que,
não por acaso, essa mudança acompanha o movimento histórico
do país em direção à construção de sua própria identidade.
As situações comunicativas são semelhantes, mas há algumas
diferenças de contexto. No primeiro texto o ambiente parece
urbano com pessoas de diferentes estratos sociais. No segundo,
o ambiente é rural ou interiorano, também com pessoas de
diferentes estratos, e no terceiro, ambiente aparentemente urbano,
como na primeira peça, mas com personagens de estratos sociais
assemelhados. O padrão que encontrarmos quanto ao uso de uma
forma de tratamento, que gradativamente se afetiva e pessoaliza,
não pode ser imputado, então, exclusivamente, aos aspectos sociais
de classe ou contexto social. Mas é possível inferir que os três
textos, que refletem também três momentos históricos distintos
da língua portuguesa, “carregam” com a língua e por meio dela, as
conceptualizações coletivas culturais que lhes são inerentes.

155
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Considerando a formalidade no tratamento, quanto maior,


menor o uso de seu em 2ª pessoa. Ao ser cooptado para a 2ª pessoa,
em princípio, seu concorre com vosso, que é mais formal, isto
é, ocorre em contextos de maior formalidade. Em seguida, após
suplantar vosso, concorre com teu, migrando para contextos de
maiores afetividade e pessoalidade. Observe-se o Gráfico 13:

Gráfico 13 – Relação entre seu em 2a pessoa e formas de tratamento pronominas


nos três textos (%)

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

De acordo com a forma de tratamento escolhida, podemos


perceber o comportamento das personagens no que tange ao maior
distanciamento (maior formalidade) ou aproximação (maiores
pessoalidade e afetividade) no trato interpessoal. Foi possível
notar clara relação entre o uso de seu e de senhor como forma de
tratamento. Tanto os usos dos possessivos quanto os das formas
de tratamento aumentaram com o passar do tempo: seu passa de
29,90% das ocorrências de possessivo de 2ª pessoa no texto 1 para

156
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

57,14% no texto 2 e 85,71% no texto 3, enquanto senhor passa de


19,20% no texto 1 para 24,31% no texto 2 e 44,94% no texto 3.
Ao mesmo tempo, foi possível ver a relação inversamente
proporcional entre seu e formas de tratamento como Vossa Senhoria:
enquanto os percentuais de seu crescem no uso de 2ª pessoa, como
vimos, Vossa Senhoria, que correspondia à forma predominante de
tratamento no texto 1 (25,06%), cai para 12,50% no texto 2 e chega
a 0 no texto 3.
Contudo, não foi possível estabelecer essa relação tão clara
com a forma você, cujo uso permanece estável nos 2 primeiros
textos estudados: 4,78% das formas de tratamento do texto 1 e 4,17%
no texto 2. O uso de você cresce, aparentemente acompanhando
o crescimento do possessivo, apenas a partir do texto 3, quando
registra 12 ocorrências, ou 34% das formas de tratamento escolhidas
pelos falantes. Tal como observado por Martins e Vargas (2014), o
pleno uso do seu em 2ª pessoa é anterior ao pleno uso de você. A
relação de uso proporcional entre os dois pronomes só pôde ser
verificada a partir da segunda metade do século XIX. Entretanto,
foi possível notar relação inversamente proporcional entre, por
um lado, o maior uso de seu e o uso decrescente de formas de
tratamento mais formais, como Vossa Senhoria; e, por outro lado,
relação proporcional entre o uso de seu na 2ª pessoa e o crescimento
do uso de senhor, que substitui Vossa Senhoria e outras expressões
de tratamento mais formais.
Quando analisamos mais de perto os diminutivos e seu uso
no contexto dos tratamentos nominais, obtemos: texto 1, de 93
ocorrências, 4 são diminutivos (4,3%); texto 2, de 79 ocorrências,
7 são diminutivos (7,75%); e texto 3, de 26 ocorrências, 5 são
diminutivos (19,23%). Ou seja, ocorre uso proporcional crescente
não do número total de diminutivos, mas do uso do diminutivo
como forma de tratamento. Somados esses dados referentes ao uso
do diminutivo aos usos de primeiro nome como forma de tratamento

157
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(a saber, 13,60% no texto 1, 15,86% no texto 2 e 17,98% no texto


3), e comparados aos dados do uso de seu em 2a pessoa, obtém-
se o Gráfico 14. Destaca-se que chamamos “formas de tratamento
pessoais e afetivas” a soma do uso do diminutivo com o do primeiro
nome como formas de tratamento:

Gráfico 14 – Relação entre seu em 2a pessoa e formas de tratamento pessoais e afetivas


nos três textos (%)

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Desse modo, os dados acerca das formas pronominais e


nominais indicam que seu não perde a possibilidade de uso mais
formal, mas agrega propriedades mais afetivas e pessoais, que
foram medidas pelos usos de diminutivo e de primeiro nome como
formas de tratamento em relação às formas de tratamento nominais.
Observa-se que assim como o uso de seu cresce no decorrer das obras,
os usos de diminutivo e de primeiro nome, dentro do montante das
formas de tratamento, aumentam. Em outras palavras, os dados

158
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

ilustram o que entendemos ocorrer: que dentre as maneiras de tratar,


escolhe-se cada vez mais o primeiro nome; e, dentre os usos do
diminutivo, escolhe-se aquele direcionado às pessoas (tratamento
afetuoso). O uso do diminutivo, marca de afetividade para Holanda
([1936]2015), cresce assim como o uso do primeiro nome, marca de
pessoalidade, e crescem carregando de cordialidade o contexto.
A comparação dos dados apresentados até aqui ilustra,
portanto, o percurso de seu: o movimento dele, cooptado para
a 2a pessoa, em consonância com um contexto comunicativo
cordialmente mais prototípico, quer dizer, menos formal, mais
afetivo e mais pessoal, o que vem em apoio à hipótese proposta
neste livro.
Sobre o uso da alcunha como forma de tratamento, nota-se
que está ligado à construção do humor do gênero textual. Nesse
sentido, as alcunhas parecem acompanhar mais a quantidade de
personagens que o texto teatral possui que o uso do pronome
possessivo de 2a pessoa ou recursos de aproximação (afetividade e
pessoalidade), isto é: quanto menor o número de personagens do
texto, menor o número de alcunhas sendo usadas como forma de
tratamento. De sorte que, ainda que o texto 1 seja mais extenso, e
o texto 3 tenha apresentado mais marcas pessoais, será o texto 2,
com maior número de personagens, o com maior ocorrência de
alcunhas, diferentemente da tendência que seguem o primeiro
nome e o diminutivo. Não exploraremos essa correlação neste
trabalho.
Lembramos mais uma vez nosso foco e nossa abordagem
qualitativa dos dados. Ao indicar a possibilidade de se estabelecer
correlação diretamente proporcional entre aumento do uso do
diminutivo e do primeiro nome nas formas de tratamento, constata-
se o incremento de um tratamento mais afetivo e pessoal, o que
parece se refletir também no aumento do uso do pronome seu na
2a pessoa, assim como é possível indicar correlação inversamente

159
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

proporcional quando se observam as ocorrências das formas de


tratamento mais formais e o uso do pronome na 2a pessoa. Nossa
análise parece, portanto, sustentar a proposta de que um modelo
cultural, no que se refere aos modos como se dão as relações
interpessoais, pode contribuir para a gestação de fenômenos de
variação/mudança linguística.
A cordialidade como modelo cultural, cuja aversão à
impessoalidade e consequente busca por proximidade, a qual se
manifesta, por exemplo, na preferência por forma de tratamento
menos formal, mais afetiva e mais pessoal, apresenta-se, assim,
como recurso explicativo para os fenômenos aqui descritos. Dessa
maneira, seu, que aparece associado a vossa mercê/vossa excelência
e vossa senhoria no texto 1, já é, na verdade, um seu cooptado para
a 2a pessoa, em movimento que o retira do público em direção ao
privado, em um processo, portanto, de personalização.
Os dados dos textos 2 e 3 indicam a continuidade de tal
movimento de “aproximação”. À medida que a própria cultura
brasileira se constitui, distanciando-se da de Portugal, seu completa
o “movimento cordial”, ou seja, se torna portador de maior
afetividade, maior pessoalidade e menor formalidade, propriedades
características de um modelo cognitivo-cultural intuído por
Holanda por meio da noção de cordialidade.
Essa noção está presente no esquema cognitivo-cultural
brasileiro, mas não é exclusiva dele (HOLANDA, [1936]2015) nem
tampouco universal ou igualmente distribuída entre os membros
do modelo cultural (SHARIFIAN, 2011). Em outras palavras,
entende-se que dos falantes do PB emergem conceptualizações
cognitivas culturalmente construídas, negociadas e renegociadas
na interação, sendo a cordialidade uma dessas conceptualizações
ou um esquema cultural de comportamento, compatível com a
definição de um modelo cultural (DʼANDRADE, 1995; DʼANDRADE;
STRAUSS, 1992; HOLLAND; QUINN, 1987; STRAUSS; QUINN,

160
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

1998; BENNARDO; MUNCK, 2014) que se manifesta em várias


esferas da vida, inclusive na língua, e que pode ser observado tanto
no fenômeno de variação/mudança quanto nas concorrências dos
usos dos pronomes possessivos de 2a pessoa teu e seu.
Um sinal dessa manifestação se dá pela migração de usos
desses elementos que modulam, ganhando propriedades, mas
também mantendo resquícios do distanciamento que exibiam
na forma original (HOPPER, 1991; HOPPER; TRAUGOTT, 2003;
GRONDELAERS; SPEELMAN; GEERAERTS, 2007). Os fenômenos
de variação/mudança observados não são outra coisa senão
resultantes das manifestações do processo de renegociação de uma
conceptualização coletiva.

5.3.2 A gradualidade das propriedades da cordialidade

Como dito anteriormente (seção 2.2), estudos cognitivos


relacionados à variação linguística entendem que compreender o
que motiva uma variação/mudança linguística exige compreender
o que motiva a escolha dos falantes e, entre esses motivos, os
aspectos cognitivos devem ser considerados. Esse pressuposto,
apontado por Grondelaers, Speelman e Geeraerts (2007) e por
Kristiansen e Dirven (2008), ecoa na tese de que conceptualizações
culturais possam ser tomadas, como estamos propondo, como
fatores de variação/mudança linguística. Além disso, Grondelaers,
Speelman e Geeraerts (2007, p. 990) desenvolvem a aplicação da
perspectiva de gradação prototípica aos estudos sociolinguísticos,
convertendo as características da prototipicidade em uma afirmação
sobre a estrutura da mudança semântica, ou seja: a variação/
mudança linguística se faz pela perda de propriedades centrais que
caracterizam os itens periféricos de um item prototípico. Dito de
outro modo, uma variante é uma modulação de um caso central, de

161
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

um item prototípico.
Assim, com o intuito de explicitar o processo de variação/
mudança que nos ocupa, buscaremos apontar de que maneira
se pode (ou não) dizer que no fenômeno de variação/mudança
estudado, as formas teu e seu perdem ou adquirem propriedades
semânticas à medida que avançam no tempo e passam a
concorrer com os pronomes possessivos de 2ª pessoa. Para tanto,
primeiramente, vamos classificar semanticamente cada forma de
tratamento utilizada em cada texto. A partir dessa classificação,
esperamos evidenciar o contexto semântico de cada texto em
relação às propriedades semânticas da cordialidade já identificadas,
a saber, menor formalidade, maior pessoalidade e maior afetividade.
Para classificar semanticamente o contexto como de maiores ou
menores pessoalidade e afetividade, considerou-se que as formas
de tratamento, em especial as nominais, são marcas de afetividade
e pessoalidade (Kerbrat-Orecchioni, 2011, p. 37). Em um segundo
momento, buscaremos relacionar o uso do pronome possessivo seu
como de 2ª pessoa e o contexto semântico identificado e classificado
em cada texto e, assim, evidenciar a quais propriedades semânticas
se associa. Se associa-se às propriedades semânticas da cordialidade,
associa-se à cordialidade (modelo cultural). Evidencia-se, pois, a
motivação cognitiva cultural na manifestação das propriedades
agregadas ao contexto do possessivo.
No Quadro 1, apontamos, de início, o conjunto de formas de
tratamento identificadas e extraídas de cada texto. Essas formas
foram classificadas morfologicamente como pronominais ou
nominais e semanticamente conforme suas propriedades cordiais:
maior formalidade e menor formalidade (maior pessoalidade e
maior afetividade). Diante de cada termo, entre colchetes, temos
os números absolutos de ocorrência em cada texto:

162
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Quadro 1 – Formas de tratamento (FT) classificadas

Pronominais Nominais
Mais formais Menos formais Mais formais Menos formais

Senhor [25]; Vossê [12] Genro [29]; amigo [5] Salcim [10]
Dona [4]; Meu Senhor [23] Primeiro nome Meu Rico/a [9] Paisinho [1]
Morgado/a (título) Vossia [3] precedido de Sra. Meu pai [1] Maridinho [1]
TEXTO 1 FT TOTAIS: 249

[8]; (Sra. Pabulea) [3]; Minha filha [8] Amorzinho


Vossa senhoria [64]; Alcunha Lambaz [3] [1]
Vossa mercê [17] precedida de Pascoela [17] Amasinha [1]
pronome de Leandro [2] Mofina [1]
tratamento (Sra.
Mulher) [1]

Vossa senhoria [18] Você [6] (Sr.) Juiz [9]; amigo [6] mulher [2]
Senhor [31] (Sra.) Doninha [1] (Sr.) Escrivão homem [6] rapaz [2]
Dona [3] Meu Senhor [3] [12]; menina [2] sujeito [1]
Ilmo. [3] Primeiro nome malcriado [1] Manuel João
Vossa [1] precedido de Sr./ brejeiro [1] [1]
TEXTO 2 FT TOTAIS: 145

Sra. (meu) pai [5] Antônio [1]


(Sra. Maria Rosa; mãe [7] Aninha [5]
Sr, Manuel João, rapariga [1] Agostinho [1]
Sr. Inácio José,
Sr. Tomas; Sr.
Gregório) [16]

Vossa excelência [1] Você [11] Sobrenome marido [1] mamãe [1];
Senhor [35] Minha senhora [5] precedido de Dr. amigo [1] doentezinhos
Dona [2] (Cavalcante) [3] sobrinho [1] [3];
Doutor [10] primo [1] Leocádea [2];
TEXTO 3 FT TOTAIS: 90

(minha) tia [1] Carlota [5];


(meus) filhos [1] Adelaide [1];
titia [1] Sobrenome
não precedido
de Sr. ou Dr.
(Magalhães)
[4]

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Os dados recém-mencionados permitem-nos observar que,

163
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

no interior das formas de tratamento nominais e pronominais, é


possível estabelecer subclassificações com base em uma gradação
quanto à formalidade, o que favorece, como veremos, uma
abordagem renovada acerca dos dados apresentados nas Tabelas
1, 2 e 3. Trata-se de dados já contemplados, mas que, por meio da
classificação do Quadro 1, favorecem análise semântica que leva em
conta a noção de gradualidade de propriedades.
A análise da gradação das propriedades semânticas atribuídas
à cordialidade pode ser explicitada por meio da Figura 8, na qual
detalhamos a classificação das formas de tratamento distinguindo,
dentre as menos formais, aquelas de maior pessoalidade e de
maior afetividade, bem como a junção de propriedades, ou seja,
quando, de uma forma de tratamento, é possível destacar mais
de uma propriedade semântica. Um exemplo do que chamamos
de junção de propriedades é o uso da forma senhor relacionada
ao primeiro nome que, apesar de ser um tratamento formal, que
guarda, portanto, algum distanciamento, perde o caráter de marca
hierárquica que era inerente às formas de tratamento que substitui
(V. S.a./V. Exce.), passando a ser uma forma de tratamento de menor
formalidade e maior pessoalidade. Nessa descrição, considerou-
se, mais uma vez, a intuição e alguns dos exemplos trazidos por
Holanda ([1936]2015, pp. 176-82): a menor formalidade refletida no
tratamento que rejeita a hierarquia, porque o tratamento formal é,
sobretudo, o que marca a hierarquia; a pessoalidade, que equivale à
busca de intimidade; e, por fim, a afetividade, que está presente na
proeminência do privado e nas emoções, marcada linguisticamente,
especialmente, pelo diminutivo. Dessa forma, classificou-se e
distribuiu-se as formas de tratamento em, predominantemente
formais (F), pessoais (P), afetivas (A) ou, quando não foi possível
distinguir uma propriedade predominante, classificou-se a junção
ou a mescla delas: formal e pessoal (FP), afetiva e pessoal (AP), e
formal e afetiva (FA).

164
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Assim, na Figura 8 representamos a distribuição das formas


de tratamento em gradações de azul, sendo os tons mais fortes
associados aos traços formais e os mais fracos associados a
propriedades mais pessoais e afetivas. Com sublinhado destacamos
as expressões que ocorrem no texto 1, com itálico as do texto 2 e
com negrito as do texto 3. Quando essas marcações se apresentam
de maneira acumulativa, significa que a expressão ocorre em mais
de um texto, conforme as marcações que apresentar:

Figura 8 – Formas de tratamento (FT) classificadas conforme propriedades


semânticas

Fonte: Elaborada pela autora (2021).

165
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

A partir das classificações apresentadas no Quadro 1 e na Figura


8, elaborou-se os Gráficos 15, 16 e 17 com o intuito de observar a
distribuição das propriedades semânticas, em percentual, em cada
texto. Para tanto, combinando essas classificações, calculou-se os
percentuais de cada propriedade em cada texto. Vejamos os gráficos:

Gráficos 15, 16 e 17 – Distribuição de ocorrências de propriedades semânticas nos


três textos (%)

166
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Fonte: Elaborados pela autora (2020).

Ao avaliar tais gráficos nota-se a permanência da formalidade


como item mais proeminente nos 3 textos; contudo, nos textos
2 e 3, em que a forma seu avança para a posição da forma vosso
e, em seguida, concorre com a forma teu, temos um desenho
semelhante: um pico na incidência de formas de tratamento
dotadas de pessoalidade. Além disso, somados os percentuais
de incidência das propriedades com algum grau de formalidade,
(F), (FP) e (FA), e os das propriedades (P), (A) e (PA), excluída a
formalidade, os números indicam maior dispersão das formas de
tratamento em direção às propriedades informais: o texto 1 tem
22,1% de incidência de formas de tratamento pessoais e/ou afetivas;
sobre as mesmas propriedades, as incidências nos textos 2 e 3 são,
respectivamente, 34,1% e 33,8%. O incremento de pessoalidade
associado ao esvaziamento de FP parecem ser os principais fatores
que explicariam tais percentuais. A pessoalidade, nos gráficos,
apresenta-se como primeira propriedade a se evidenciar no modelo
cordial.
O Gráfico 18 pretende alcançar dois objetivos – 1) compreender
o papel de cada propriedade em cada texto; e 2) comparar possíveis

167
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

alterações relacionadas a graus de proeminência da propriedade


de um texto em relação a outra – e foi elaborado com a seguinte
representação: as seis propriedades são esferas de cores e tamanhos
que variam conforme a propriedade a que se referem; além disso,
relaciona-se a incidência a partir dos percentuais expressos nos
Gráficos 15, 16 e 17 e cada propriedade foi ordenada conforme sua
maior incidência em cada da texto. A propriedade mais incidente
em um texto recebeu o número 6, a segunda mais incidente,
o número 5, sucessivamente até o número 1. No eixo y temos o
tempo (anos em que as peças foram escritas) e no eixo x temos os
números de 1 a 7, representando cada incidência conforme a ordem
estabelecida. Observando a relação entre a posição ocupada por
cada propriedade e o tempo, representado pelos textos, ilustra-se
– embora a formalidade permaneça – o referido incremento das
marcas de pessoalidade e constata-se, ainda que mais discreto, um
incremento na afetividade:

Gráfico 18 – Posição das propriedades semânticas nos três textos

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Ao observar o Gráfico 18 é possível relacionar o percurso das

168
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

formas de tratamento com o avanço do uso do possessivo seu na


posição de 2ª pessoa: onde ele se torna a opção preferencial dos
falantes na função de 2ª pessoa, texto 2 e texto 3, há avanço mais
expressivo do posicionamento da propriedade de pessoalidade,
mas também da afetividade, mesmo que em menor escala naquele
momento, tomando-se como base a posição que a afetividade
ocupava no texto 3.
Com o intuito de explicitar essa relação, propomos utilizar
o Gráfico 19. Nele, cada propriedade é representada por uma cor.
Nos vértices do triângulo mais externo temos cada texto. Aqui
também se considerou os números apresentados no Quadro 1 e a
classificação apresentada na Figura 8 para o cálculo dos percentuais
de cada propriedade em cada texto e se classificou os percentuais
de cada propriedade conforme sua incidência em cada texto, sendo
6 a propriedade de maior percentual e 1 a de menor. Dessa forma,
cada propriedade (linha colorida) se aproxima ou se distancia de
cada vértice conforme sua incidência em cada texto. Vejamos o
Gráfico 19:

Gráfico 19 – Distribuição de ocorrências de propriedades semânticasnos três textos

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

No Gráfico 19 podemos observar que as linhas que

169
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

representam as propriedades sem marcas mais formais (P, A, PA)


aproximam-se mais dos vértices da base do triângulo, ou seja, são
mais incidentes nos textos 2 e 3; e que a formalidade (F) permanece
em ambos os textos com a mesma posição de incidência do texto 1,
ou seja, como propriedade mais incidente. Esse desenho das linhas
que representam (P), (A) e (PA) ilustra que nos textos em que seu é
a escolha preferencial do falante para ocupar a posição de 2a pessoa
há também contexto de maiores afetividade e pessoalidade.
Considerando a classificação de 1 a 6 estabelecida em relação
às ocorrências do pronome possessivo seu já analisadas em cada
texto (Cf. seção 4.2), o Gráfico 19 indica a gradualidade que se pode
estabelecer entre a maior ocorrência desse pronome no uso em
2ª pessoa e as propriedades semânticas cordiais: a pessoalidade é
mais evidente nos textos 2 e 3. A afetividade parece pouco mais
significativa no contexto do texto 3 em relação aos demais. Apenas
no texto 3 temos duas propriedades afetivas (A e FA) ocupando 2
das 4 primeiras posições de incidência.
Ao mesmo tempo, a formalidade não desaparece ou não é
perdida completamente, em consonância com o princípio de
permanência de Hopper (1991) e Hopper e Traugott (2003). Seu, ao
ser cooptado para ser empregado em lugar das formas de 2a pessoa,
tem uso formal, mas passa a ser a escolha do falante também em
contexto menos formal, com maior presença de propriedades que
compõem a cordialidade. Importante lembrar que isso se dá num
contexto histórico-social de reflexão e construção da identidade
nacional (texto 2, escrito pós Independência do Brasil, no Período
Regencial, e texto 3, no contexto da Proclamação da República),
momento de negociações e renegociações de conceptualizações
coletivas, propício à emergência de um modelo cognitivo-cultural.
Retomando os pressupostos da Linguística Cultural, posto que
linguagem e língua se formam e informam na cultura e manifestam
a cognição corporificada, afirmamos novamente com Yu (2014, p.

170
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

233) que a língua pode revelar essa identidade histórica e cultural


do grupo.
Nota-se que, mesmo que possa ser vista como inovadora na
perspectiva dos estudos da História Social da linguagem, nossa
proposta, especialmente no que tange a perda de propriedades mais
formais e ganho de propriedades menos formais, encontra ecos
em fenômenos já observados anteriormente por outros autores.
Menon (1997), Ramos (2011), Machado (2011), Martins e Vargas
(2014) e Lucena (2016) atestaram preferência em PB pela realização
de formas que implicam menor formalidade de tratamento, em que
prevalecem não apenas a perda de formalidade, mas ainda ganho
de intimidade.
Um sinal de manifestação do modelo cultural da cordialidade
se daria, então, pela movimentação de elementos que migram da
expressão de propriedades mais formais para menos formais, para
o uso em contexto de maiores pessoalidade e afetividade, o que,
como vimos, é uma aplicação do modelo de Grondelaers, Speelman
e Geeraerts (2007). Retomando Hopper (1991), Hopper e Traugott
(2003) e Grondelaers, Speelman e Geeraerts (2007), a mudança pode
ser concebida então como gradação de propriedades, acrescidas ou
excluídas, que distinguem o item central (prototípico) do periférico
(variante).
Na Figura 9, é possível visualizar essa proposta de modulação
de seu na posição de 2ª pessoa e do fenômeno de variação/mudança
envolvendo teu/seu e vosso/seu a partir da perspectiva de perdas e
ganhos gradativos de propriedades semânticas associadas às formas
de tratamento:

171
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Figura 9 – Modulação do contexto de seu no uso de 2ª pessoa

Fonte: Elaborada pela autora (2021).

A partir da mesma classificação ilustrada nas figuras


anteriores, agora, na Figura 9, temos a representação da gradação
semântica relacionada a perda e ganho de propriedades semânticas
no contexto de ocorrência do possessivo seu, nos termos de
Grondelaers, Speelman e Geeraerts (2007), como anteriormente
interpretado na Figura 2. Em outras palavras, nota-se no contexto
ganho de propriedades semânticas que distanciam seu do item
central (prototípico) no processo de variação/mudança.
Poderíamos, assim, falar de um primeiro momento de
concorrência em que seu é como uma modulação de vosso, cujo
contexto semântico prototípico estaria representado no círculo à
esquerda; e, em um segundo momento, torna-se modulação de
teu, cujo contexto prototípico estaria representado no círculo à
direita, pois a propriedade semântica (pessoalidade) que conduz a
forma possessiva seu de 3ª pessoa para o uso como 2ª pessoa parece

172
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

gradativamente conduzi-la também da concorrência e suplantação


de vosso à concorrência com a forma teu.
Pensando ainda na prototipicidade, poderíamos questionar se
ao usarmos seu sempre há manifestação de todas as propriedades
ou se o que ocorre é um tipo de apagamento de eventual distância
hierárquica e incremento da pessoalidade. A Figura 9 ilustra a
resposta a essa questão. Não necessariamente todas as propriedades
coocorrem. A análise qualitativa dos dados indica que seu passa ser
a opção preferencial de pronome em uso de 2ª pessoa em situações
de maior ou menor formalidade (textos 1 e 2) e em situações de
maior pessoalidade (textos 2 e 3). Percebe-se que essa evidência
apoia um caminho de “pessoalização” do pronome de 3ª pessoa: a
maior incidência do uso da forma seu cooptada para a 2ª pessoa é
um caminho do público em direção ao privado.
Na concorrência que seu estabelece com teu, a qual observamos
especialmente no texto 3, está a concorrência, entre os pronomes,
pela preferência de uso em contexto de maior pessoalidade, mas
também, de maior afetividade, posto que a análise dos três textos
estudados caracteriza o contexto de uso da forma teu como não
apenas mais pessoal, mas também mais afetivo. Apesar disso, os
dados não asseguram que o pronome se torna mais afetivo.
Outra pergunta que se pode colocar é se a forma teu também
será suplantada por seu, em 2ª pessoa. Na perspectiva da análise
cognitivo-cultural proposta a resposta seria provavelmente
negativa, salvo se outros fatores de ordem sociológica passarem a
atuar. Afinal, se o fator motivador da variação/mudança observado
é a cordialidade, na forma de suas propriedades semânticas, onde
e quando teu conservar tais propriedades continua a prevalecer a
cordialidade como conceptualização cultural, como observado por
Scherre et al. (2015) nas regiões em que teu é usado.
Concluímos que a análise realizada se mostrou compatível
com a hipótese proposta e atesta que os fenômenos de variação/

173
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

mudança no uso dos pronomes possessivos de 2a pessoa relacionados


às formas de tratamento do PB podem ser concebidos como
motivados por um modelo cognitivo-cultural.
A conceptualização relevante é, como visto durante nosso
percurso neste trabalho, a cordialidade percebida como modelo
cultural – ou seja, há mudanças linguísticas associadas a processos
cognitivos de reconhecimento de parceiros culturais, como dirá
Labov (2010) – e como fruto da escolha do falante por uma forma
culturalmente mais aceita, como em Grondelaers, Speelman e
Geeraerts (2007). A análise dos textos, enfim, apoia nossa tese: à
medida que a forma seu é cooptada para a 2a pessoa, tornando-se
mais produtiva e concorrente com teu, perde formalidade e ganha
pessoalidade e afetividade, tornando-se “cordial”.
A partir dessa proposta, uma das questões relevantes é se o
caminho da formalidade para a informalidade é “natural” ou se,
nas palavras de Abraçado66, “à medida que [o termo] se populariza,
perde a força”. A essa questão propomos a reflexão seguinte:
estamos apontando não apenas “perda de força”, entendida como
perda de formalidade, mas também ganho semântico. Além disso,
descrevemos um percurso de mudança específico, mas que a
popularização ou, mais tecnicamente, o espraiamento da forma
num uso determinado, se deu pela influência da conceptualização
cultural, quer dizer, os falantes implementam a mudança para se
adequar a um modelo cultural.

66 Observação feita durante a banca de qualificação desta tese em 28/2/2020.

174
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

6 CORDIALIDADE E POSSESSIVOS
DE 2ª. P EM PB: COMO SE ATIVAM
E SE MANIFESTAM OS MODELOS
COGNITIVOS CULTURAIS.
Vejamos agora mais detalhes sobre o modelo teórico utilizado,
o qual considera a cultura enquanto produto de operações
cognitivas, isto é, corpórea situada, como um sistema conceitual
(KÖVECSES, 2017), e que também incorpora os elementos dos
estudos históricos e antropológicos, em especial como proposto
por Ariès ([1978] 2011) e Braudel ([1958]1982). Nessa perspectiva,
chamamos grupo cultural um grupo de pessoas que conceptualizam
mais ou menos da mesma maneira, compartilhando os mesmos
modelos culturais (SHARIFIAN, 2011). Nessa visão, o que se chama
de cultura é um sistema conceitual de valores, crenças e tradições.
Esse sistema torna-se um modelo cognitivo à medida que é composto
por conceptualizações culturais negociadas e renegociadas pelos
membros do grupo (SHARIFIAN, 2011, 2017).
Em síntese, nossa proposta de modelos culturais são modelos
distribitivos emergentes, distribuidos de maneira heterogênea
entre a comunidade de fala ao mesmo tempo que dela emerge
(SHARIFIAN, 2011). Modelos culturais devem ser compreendidos
como sinônimos de esquemas culturais ampliados (DʼANDRADE,
1987; STRAUSS; QUINN, 1998; KRONENFELD, 2008; BENNARDO;
MUNCK, 2014), quais sejam, espécies de repositórios de crenças,
valores e expectativas de comportamento baseados em nossas
experiências vivenciadas e compartilhadas.
Posto isso, a cordialidade, tal como intuída por Holanda
([1936]2015) e por outros pensadores do Brasil, antes e depois dele

175
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

(VIANA, [1920]2005; FREYRE, [1933]2003; PRADO JR., [1942] 2011,


para citar alguns), é para nós um modelo cultural no qual esquemas
de crenças, valores e comportamentos esperados são avessos à
impessoalidade. Quando Holanda, por exemplo, expõe sobre a
reorganização da sociedade brasileira rumo à urbanização ou, nas já
referidas palavras de Avelino Filho (1988), da “desagregação daquilo
que se convencionou chamar de Brasil Colônia e o consequente
enfraquecimento da cordialidade”67, entendemos que a isso podemos
associar Sharifian (2017, p. 31, tradução nossa) ao definir que “[...] um
aspecto importante de nossa vida conceptual é o que pode ser chamado
de reconceptualização de conceptualizações culturais”68. Contudo,
como também exposto anteriormente, tal reconceptualização está
no tempo histórico da longa duração (BRAUDEL, [1958]1982), ainda
registrado e identificável linguisticamente, posto que negociado e
renegociado pelos membros do grupo cultural com e pela linguagem
(SHARIFIAN, 2011).
A Figura 10 permite visualizar a proposta do modelo teórico
como trabalhado por Sharifian (2017), especificamente no que tange
a linguagem. Na Figura 11, em seguida, cotejamos a representação
da Figura 10 com o fenômeno de variação/mudança analisado
considerando a cordialidade como modelo cultural:

67 A intenção aqui é mostrar que a cordialidade entendida como modelo cultural compreende a percepção
(já trazida por outros autores) de que é mutável, “não essencial”, mas não necessariamente defender seu
enfraquecimento com a urbanização.
68 […] an important aspect of our conceptual life is what can be referred to as the reconceptualization
of cultural conceptualizations.

176
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Figura 10 – Modelo teórico e analítico da Linguística cultural

Fonte: Sharifian (2017, p. 31).

Observa-se na Figura 10 que o modelo cultural é representado


pelo autor como conceptualizações culturais mais complexas,
compostas de esquemas, metáforas e categorias culturais.
Tais construções conceptuais realizam-se e/ou manifestam-se
linguisticamente na morfologia, na sintaxe, na semântica e na
pragmática. Consideramos, como já explicitado, o fenômeno de
variação/mudança do uso em PB do pronome de 3a pessoa seu no
tratamento da 2ª pessoa diretamente motivado por um esquema
cultural. O fenômeno de cooptação de um pronome de 3ª pessoa
para o lugar da 2ª é, assim, resultado da manifestação de um modelo
cultural de aversão à impessoalidade. Parafraseando Boas (1911, p.
67), temos o modelo cultural moldando a língua.
A representação gráfica do modelo cultural, considerando a
proposta deste livro, que acaba de ser resumida, é como segue:

177
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Figura 11 – Modelo cultural linguístico e a forma seu

Fonte: Elaborada pela autora (2021) A partir de Sharifian (2017).

Dito de outra maneira, na Figura 11, considerando que a


cognição é individual, mas também processo coletivo, temos que a
cordialidade ocupa o lugar de modelo cultural na cognição coletiva
cultural e é constituída por um esquema cultural cordial, o que
significa que apresenta valores e expectativas de comportamento
menos formal, mais afetivo e mais pessoal. Tal construção conceptual
realiza-se e/ou manifesta-se linguisticamente na cooptação de seu
para posição de 2ª pessoa.
Se, então, a cordialidade é um modelo cultural e um mesmo
indivíduo pode compartilhar de mais de um modelo cultural
com outros indivíduos (SHARIFIAN, 2011), como funcionaria a
“ativação” desse modelo específico na construção do sentido? A
resposta pode se beneficiar das reflexões de Müller (2008, p. 190)
acerca da ativação de metáforas cognitivas na comunicação para

178
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

compreender a ativação das conceptualizações em geral. Para a


autora, a ativação de uma metáfora depende de contextos verbais
específicos e de formas de uso específicas:

A lógica subjacente a este argumento é inspirada por uma visão


fundamental fornecida pela etnometodologia e análise de
conversação: os coparticipantes em uma interação mostram
reciprocamente o que é pertinente para eles no momento da fala.
Portanto, sugiro que uma expressão metafórica tornada saliente
por um falante ou escritor para um coparticipante deve ser de
alguma forma saliente para o próprio falante também. Colocando
de outra forma, o que é construído como interativamente (ou
interpessoalmente) saliente pode ser considerado intrapessoalmente
saliente (e tal saliência implica ativação dos conceitos salientes no
falante). (MÜLLER, 2008, p. 202)

Ao tratar da metaforicidade no caso da ativação de metáfora


verbal, Müller (2008) considera que, ao usarmos uma expressão
metafórica ela já está ativa conceitualmente para quem a comunica.
Nas palavras de Barbosa (2020, p. 21) “O emprego dos indicadores
de metaforicidade serve para salientar os elementos semânticos
presentes no domínio-fonte da metáfora”. Esses indicadores
poderiam ser gestuais ou linguísticos, conforme o tipo de interação,
considerando a multimodalidade da linguagem. Esses elementos
ressaltados pelo falante ativariam a metáfora para o interlocutor e,
consequentemente, o sentido. Por exemplo, ao processarmos o uso
do diminutivo com sentido de afeto como metafórico, já estaria
saliente no falante, quando se emprega o morfema -inho, a metáfora
que relaciona tamanho reduzido com proximidade e afeto (apenas
como suposição: o que pode sustentar essa metáfora, no sentido de
Lakoff e Johnson ([1980]2003), pode ser o uso de diminutivo comum
na interação com crianças). O que propomos é dar um passo além
e afirmar que quem fala tem em si ativo o modelo cultural, e o uso

179
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

do -inho, por exemplo, seria uma indicação verbal para ativar, por
meio da metáfora, o modelo cultural no outro.
Assim, por similaridade, propomos que elementos linguísticos,
verbais ou não-verbais, possam ativar conceptualizações culturais.
E pela ativação de uma conceptualização cultural pode-se ativar
o modelo cultural ao qual pertence. Na interação comunicativa
haverá, então, elementos linguísticos salientados pelo emissor que
ativam o modelo cultural do qual se parte, que é também ativado
no interlocutor, ainda que os coparticipantes não estejam, é claro,
plenamente conscientes disso (ARIÈS, [1978] 2011; BERNNADO;
MUNCK, 2014; SHARIFIAN, 2011).
Há, contudo, uma divergência entre nossa visão e o que
propõem Bernnado e Munck (2014): aquilo que chamamos de
modelo cultural não é um repositório, aparentemente estático, como
querem esses últimos. Aproximando-nos de Ibarretxe-Antuñano
(2013), afirmamos que uma vez ativado o modelo cultural, inicia-se
o processo pelo qual se filtra a realidade, ocorrendo participação do
modelo na construção do significado. A construção e a compreensão
do sentido bem-sucedidas dependeriam, assim, dessa ativação.
Esses elementos de ativação, verbais ou não-verbais69, devem, pois,
trazer em si características desse modelo cultural, tal como na
metaforicidade trazem elementos semânticos do domínio-fonte. No
caso da ativação da cordialidade, seria preciso que tais elementos
trouxessem pessoalidade (intimidade), afetividade e/ou ausência
de formalidade. Assim, mais uma vez chegamos aos fenômenos de

69 Sobre a possibilidade de elementos verbais ou não-verbais manifestarem e salientarem elementos


para ativação do modelo cultural, pensamos em um estudo de Shöreder e Silva (2020) acerca do “jeitinho”.
Nele os autores discutem a cultura brasileira sob a perspectiva cognitivo-interacionista. A partir dos estudos
do antropólogo Roberto Da Matta, que define o brasileiro como aquele que sabe “que não existe jamais um
‘não’ diante das situações formais e que todas admitem um ‘jeitinho’ pela relação pessoal e pela amizade”
(DA MATTA, 1986, p. 12 apud SHÖREDER; SILVA, 2020, p. 120), os autores identificam esse traço cultural
com o conceito de cordialidade de Holanda ([1936]2015), que seria um tratamento mais amplo do “jeitinho”
(SHÖREDER; SILVA, 2020, p. 121). Em seu trabalho, os autores observam que os participantes da interação
analisada na pesquisa constroem o conceito em questão de forma multimodal.

180
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

variação, em especial ao nosso objeto de estudo: a variação/mudança


seu de 3a pessoa/seu de 2a pessoa como indicador linguístico verbal
do esquema cultural cordial de tratamento; em outras palavras,
o descolamento, a cooptação de um pronome de 3a pessoa para
expressar 2a pessoa, mais próxima e pessoal, como ativadora de um
esquema cultural, isto é, do modelo cultural cordial.
Se nos pedissem para criar uma imagem a partir da proposta
de ativação de um modelo cultural que impregna de sentido os
elementos dados à experiência, proporíamos que se imaginasse
um coador cujo tecido que filtra fosse feito de um sabor próprio
de açúcar, ou de um corante, de tal forma que aquilo que por ele
passasse se tornaria adocicado ou adquiriria certa nuança de cor. O
“doce” é apenas um dos sabores com os quais a realidade pode nos
aparecer. Os modelos culturais podem ser tantos, e diversamente
compartilhados, quantos os sabores ou cores que podemos imaginar
para esse tecido. A cordialidade seria uma dentre muitas maneiras
de experimentar a realidade por um determinado “sabor”.
Outro resultado ao qual chegamos e que merece destaque
refere-se ao desenvolvimento da proposta do papel da linguagem e
da língua na codificação do que normalmente se chama concepção
de mundo. Como proposto, a linguagem, além de um repositório da
cultura, está ligada à construção do sentido, em um papel mais ativo,
de organização do mundo ou, antes, de nossa percepção do mundo
(HUMBOLDT, 2006), acionando um modelo cognitivo, uma visão
de mundo (IBARRETXE-ANTUÑANO, 2013). O próprio modelo
cultural emerge de conceptualizações individuais negociadas e
renegociadas comunicativamente (SHARIFIAN, 2011).
Ampliada a reflexão de Müller (2008), o modelo cultural é
linguisticamente ativado e, uma vez ativo, com ele pode-se filtrar
e impregnar de sentido, como em Ibarretxe-Antuñano (2013),
interpretando as experiências na interação e fornecendo experiências
significativas à interação. Se “o mundo como o experimentamos

181
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

é sempre o produto de alguma categorização e enquadramento


anteriores por nós e por outros” (KÖVECSES, 2010, p. 745, tradução
nossa)70, o mundo é produto de conceptualizações coletivas e de
modelos culturais. A linguagem, por seu papel cognitivo e por sua
relação íntima com o modelo cultural, é elemento constitutivo da
realidade fenomênica das coisas como nos aparecem, carregando
o sentido o qual e pelo qual vamos perceber as “coisas do mundo”.
Carrega, pois, os sentidos pelos quais se impregnam as percepções.
O que Ibarretxe-Antuñano (2013) chama de culture sieve aqui
entendemos como cultural model sieve. A diferença básica está no
esclarecimento quanto à concepção de que um mesmo indivíduo
compartilha com outros mais de um modelo cultural, compartilhando
também mais de uma “peneira perceptiva” que pode ser ativada na
interação. Na Figura 12 apresentamos, na forma de um esquema, a
relação entre a cordialidade, como modelo cultural, e a realização
linguística.
Figura 12 – Cordialidade como conceptualização cultural do tipo modelo cultural

Fonte: Elaborada pela autora (2020).

70 The world as we experience it is always the product of some prior categorization and framing by
ourselves and others.

182
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Especificamente sobre a língua, em nosso modelo, aquilo que


é tratado por mudança linguística traz não apenas o registro de
mudança de conceptualização cultural de longue durée, mas também
elementos que ativam essa conceptualização e significam o discurso
e as vivências corpóreas sob a malha de um modelo cultural. Em
última instância, a “visão de mundo”, uma perspectiva cultural das
experiências vivenciadas, da realidade, emerge de conceptualizações
individuais negociadas e renegociadas comunicativamente
(representado na Figura 12 pelas setas em duplo sentido).
A cordialidade é um modelo cultural e o fenômeno de
cooptação de seu para 2a pessoa é um de seus registros, sendo,
por isso, um de seus elementos ativadores gramaticalizados71
cognitivamente. A própria linguagem é um produto e um processo
da cognição. Como produto, reflete a estrutura cognitiva, as
experiências corpóreas, mas também, como processo, ativa modelos
culturais na interação e participa, assim, da construção do sentido
de nossas experiências. Em última instância, sob esse aspecto,
participa da construção fenomênica, perceptiva, do mundo ao
nosso redor.
Na Figura 13 ilustramos, na forma de um esquema, o fluxo
entre linguagem, processos mentais e nossas experiências de vida:

71 Com Langacker (1987) e outros, por “gramaticalizado” entende-se o termo que é do inventário de
construções linguísticas organizadas conceitualmente.

183
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Figura 13 – Ativação do modelo cultural e produção de sentido

Fonte: Elaborada pela autora (2020).

Como dito anteriormente e agora ilustrado pela Figura 14, um


modelo cultural também funciona como um “coador” ou “peneira”
que filtra os elementos dados ao mesmo tempo que os impregna
de sentido (IBARRETXE-ANTUÑANO, 2013), interpretando e
fornecendo dados à experiência vivida, em um movimento duplo.
Uma vez que os membros de um mesmo grupo compartilham
diferentes modelos culturais, a linguagem possuirá um papel duplo
e essencial na ativação do modelo cultural pelo qual a experiência
será “peneirada”. A própria realização linguística resultante
realimenta o sistema. Por meio de gestos e/ou mesmo de elementos
linguísticos como uma forma de tratamento associada à escolha do
pronome, a linguagem e a língua elegem elementos que servem
como chave do processo de ativação do modelo. A linguagem
tem papel ativo na construção dos sentidos do mundo que nos
cerca, estando intrinsecamente ligada à cultura nesse processo.

184
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

De acordo com Velozo (2013), as palavras orientam a construção


do significado, continuamente produzido a partir de interações de
estruturas cognitivas e modelos culturais compartilhados:

O significado é entendido, portanto, como uma construção mental,


em um movimento contínuo de categorização e recategorização do
mundo, a partir da interação de estruturas cognitivas e modelos
compartilhados de crenças socioculturais. Sob essa ótica, acredita-
se que as palavras não contêm significados, mas orientam a
construção do sentido. (VELOZO, 2013, p.76)

Propomos, como já amplamente alegado, que a cordialidade


é uma conceptualização cultural, do tipo modelo cultural,
que emerge dos membros de um grupo pela e na linguagem,
comunicativamente, onde também é ativada. O modelo cultural
seria como a internalização de aspectos da cultura dada/manifesta/
percebida na experiência. Por esse modelo cultural também se
“peneira” a realidade vivenciada, ou seja, filtra e impregna de
sentido a vivência experienciada. A realidade que percebermos
seria resultante do filtro dessa internalização.
Na Figura 14 vamos aplicar o que já foi exposto sobre o uso
de seu como 2a pessoa, quer dizer, seu cooptado para a 2a pessoa,
por melhor se adequar a um modelo cultural que busca a
proximidade, a pessoalidade:

185
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Figura 14 – Ilustração do processo de ativação do modelo cultural pelo uso de seu

Fonte: Elaborada pela autora (2020).

A Figura 14 apresenta o fluxo em que se dão os processos e


produtos da ativação do modelo cultural, conforme proposto. As
setas representam esse fluxo comunicativo. A mudança de teu/seu
estudada manifesta uma mudança de conceptualização cultural
quanto às experiências vivenciadas de tratamento interpessoal.
O uso do possesivo seu na 2a pessoa, em contexto menos formal,
pessoal e afetivo, pode ser concebido como um dos elementos de
saliência de ativação do modelo cultural, que ativa cognitivamente
o modelo na interação comunicativa. A partir dessa ativação, em
um processo de filtragem e impregnação de sentido, a realidade
é interpretada conforme as propriedades semânticas do modelo
cordial.
Se a cordialidade é um modelo cultural, seria ela um fenômeno

186
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

exclusivamente brasileiro? Parece-nos problemático falar em


exclusividade, mais que isso, equivocado. Falarmos em termos
de um modelo cultural, compartilhado por comunidades de fala,
que conceptualizam mais ou menos da mesma forma, parece
plausível. Lembremos: como modelos culturais não são exclusivos
nem hegemônicos em uma comunidade de fala, podem ser
compartilhados por várias delas; dessa forma, as pessoas podem
ter maior ou menor participação em determinado modelo cultural.
Então falemos de uma visão de mundo cordial, um modelo cultural
cordial, o qual pode também ser observado em maior ou menor
grau entre membros de comunidades de fala que conceptualizam
mais ou menos da mesma forma. Por ser emergente e distributiva,
a cordialidade é, afinal, prototípica, havendo graus de cordialidade,
posto que o modelo cultural não é igualmente compartilhado pela
comunidade de fala.
Como os dados ilustraram, usamos formas de tratamento
como senhor para expressar maior ou menor grau de formalidade,
conforme o contexto, e marcamos isso pelo termo que o acompanha,
se título ou primeiro nome. É bom lembrar que, apesar de não ter
sido foco deste trabalho, o uso de senhor, quando se quer manter a
formalidade, relaciona-se para autoridades constituídas e também
para faixas etárias diferentes, sendo direcionado ao tratamento de
pessoas mais velhas, fenômeno apontado em estudos anteriores,
como o de Ramos (2011).
A preferência no PB pela aproximação fica mais clara se a
compararmos com outras línguas, cuja opção mais saliente é pela
marcação da formalidade e, consequentemente, pelo distanciamento.
Podemos relembrar exemplos bastante conhecidos, três inclusive
mencionados anteriormente, cuja sistematicidade de formas de
tratamento que expressam hierarquização é mais significativa que
em PB: 1) Sie, forma pela qual, em alemão, se marca formalidade
e impessoalidade na forma de tratamento, usado para mostrar

187
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

respeito, polidez ou se dirigir a quem não se conhece72; 2) Vous,


forma pela qual em francês se marca formalidade e impessoalidade
na forma de tratamento73; 3) Lei, de cortesia, forma de tratamento
em italiano que marca a não-intimidade e uma forma cortês comum
com estranhos74 e 4) uso não reflexivo dos pronomes oblíquos
tônicos consigo/se em PE. Por exemplo, Em breve estarei consigo.
Nesse uso há algo interessante a se notar: temos a 3a pessoa
migrando para uso de 2a, à semelhança de seu; entretanto, nesse
caso, manifesta-se propriedade semântica oposta, isto é, o uso de
consigo, mais formal, em lugar de contigo, que seria o de maior
proximidade (TEYSSIER, 1989). Aqui ocorre o que é esperado se
levarmos em conta a intuição de Benveniste (1966): a 3a pessoa
como recurso de distanciamento.
Registra-se que estamos cientes da ocorrência do uso do
pronome clítico lhe, de 3ª pessoa, como complemento de 2ª pessoa
em algumas regiões do nordeste brasileiro (Alagoas, Pernambuco e
Bahia) e do Rio de Janeiro como marca de formalidade. Quer dizer,
o uso da 3ª pessoa como recurso de distanciamento, a exemplo
do citado em PE, e em oposição ao observado em PB quanto à
variação/mudança teu/seu (GAMA, 2018, p. 111), o qual estaria
inclusive em desuso no Rio de Janeiro em razão da formalidade
que representa (RAMOS, 1998 apud RUMEU, 2015, p. 88). A esse
respeito observamos que cada fenômeno é único em seu processo

72 Interessante notar que a Dra. Adriana Fernandes Barbosa, em vídeo conferência em 5/12/2020,
apontou recente fenômeno que pode estar em curso no alemão e que envolve certa flexibilização do uso de
Sie e de Du (forma mais formal e mais pessoal de tratamento, respectivamente), o que também é apontado
em matéria do Portal DW (disponível em https://www.dw.com/pt-br/sie-ou-du-quando-usar-o-tratamento-
formal-ou-%C3%ADntimo-na-alemanha/a-16494417?maca=pt-BR, acessado em 18/3/2021). Podemos
então talvez dizer que o fenômeno de “pessoalização” e “afetivização” da língua pode não ser exclusivo do
PB, mas nele estaria em processo mais adiantado.
73 Portal Larousse. Disponível em: https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/vous/82569.
Acessado em 18/3/2021.
74 Interessante notar que no século XV Lei foi usado como Vossa Senhoria, marca de hierarquia. Istituto
della Enciclopedia Italiana fondata da Giovanni Treccani S.p.A. Disponível em: https://www.treccani.it/
enciclopedia/lei/. Acessado em 01/05/2021.

188
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

de variação/mudança: um mesmo fator pode impactar de maneira


distinta diferentes processos e também se deve considerar que um
modelo cultural é heterogeneamente distribuído.
Para finalizar, ainda que heterogeneamente distribuído,
parece-nos existir um modelo cultural de pensar e um olhar
cultural sobre o pensamento. É isso que a intuição de Holanda nos
aponta, em última instância, e são os indícios disso, pelo estudo da
variação do pronome de 3a pessoa em PB, que nos colocam ao lado
os estudos da Linguística Cultural.

189
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM
NOVO OLHAR SOBRE FENÔMENOS
LINGUÍSTICOS.
Neste trabalho, propomos e ilustramos a relação entre
conceptualização cultural e fenômenos de variação/mudança
linguística.
No primeiro capítulo definimos a cordialidade, a qual significa
aversão à impessoalidade, que caracterizaria o brasileiro como
um “ser mais emoção que razão”. A cordialidade, no entanto, não
é caráter essencial. Com Avelino Filho (1988), Monteiro (1999),
Wegner (2000) e outros intérpretes, concordamos que a cordialidade
é cultural. Lembramos que em Raízes do Brasil o próprio Holanda
([1936]2015, p. 241) nos remete a estudos sociológicos e afirma
textualmente que a cordialidade é uma “forma cultural” constituída
de comportamentos sociais. Essa “forma cultural”, segundo
Holanda, manifesta-se nas mais diversas áreas de atuação humana,
inclusive na linguagem (HOLANDA, [1936]2015, p. 178).
Contribuímos com o campo das relações entre os estudos
culturais históricos, sociais e linguísticos, nosso primeiro objetivo
específico, no primeiro capítulo quando discutimos que, apesar de
alguns de seus principais intérpretes, como Avelino Filho (1988),
tratarem a cordialidade como “mentalidade”, a terminologia é
problemática. Mentalidade é um termo ambíguo que, se para Ariès
([1978] 2011) é sócio-histórico-cultural, para Vovelle ([1987] 1991)
é universal e imutável, um “inconsciente coletivo”. Após incursão
teórica, conclui-se a possível aproximação da mentalidade em Ariès
com os estudos linguísticos culturais e o tratamento da cordialidade
como conceptualização cultural: falar em conceptualização é

190
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

abandonar qualquer aproximação com uma interpretação inatista-


universalista que o termo mentalidade pode sugerir. Assim, tomando
a cultura como sistema conceptual, com Kövecses (2017), entende-se
que ela é internalizada como modelo cultural de conceptualizações
culturais, tal como em Sharifian (2011).
Propomos, então, que a cordialidade seja um tipo especial de
conceptualização cognitivo-cultural, amplamente compartilhada,
nos moldes de DʼAndrade (1987), DʼAndrade; Strauss (1992),
Strauss (2014) e Holland; Quinn (1987), e assim, em nosso segundo
objetivo específico, estabelecemos a aproximação entre os Estudos
Culturais e a cordialidade tal como intuída por Holanda.
Com Geeraerts (1989), Grondelaers, Speelman e Geeraerts
(2007) e outros, buscamos estabelecer relação entre os estudos
cognitivos e sociolinguísticos, nosso terceiro objetivo específico, e
concordamos que apenas com a aplicação da perspectiva cognitiva
aos estudos sociolinguísticos se pode investigar “a mão invisível”,
as causas ainda não determinadas, que motivam os fenômenos de
mudança linguística. Por isso procuramos apresentar, com alguma
explicitação dos módulos semânticos e pragmáticos da faculdade da
linguagem, como se daria a representação cognitiva da cordialidade.
Com a revisão dos estudos, apresentamos as propostas de
Menon (1997), Martins e Vargas (2014) e Lucena (2016) para a
interpretação da variação teu/seu. Apesar de, em geral, os estudos
apontarem como causa da variação/mudança alguns fatores
linguísticos como a inserção de você no sistema pronominal do PB,
os dados dos estudos de Martins e Vargas (2014) e Lucena (2016)
já indicavam que, em seu movimento em direção à 2a pessoa, o
possessivo seu sofre certa modificação de traços semânticos e
ganha mais pessoalidade. Contudo, nenhum desses estudos associa
tal pessoalidade à manifestação e à determinação da cordialidade
como modelo cultural. Constatou-se que os estudos variacionais
em PB que consideram pressupostos cognitivos em suas análises,

191
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

sejam semântico-cognitivos ou linguístico-culturais, ainda são


incipientes. Destacam-se nesse cenário os trabalhos de Silva (2006,
2008a, 2008b), Batoréo (2000), Abraçado (2015) e Ferrari (2019).
Por fim, para cumprir o quarto objetivo específico e
investigar em que medida os fenômenos de variação/mudança nos
pronomes possessivos de 2a pessoa do PB relacionados às formas
de tratamento podem ser manifestação de um modelo cognitivo-
cultural, apresentaram-se os dados e nossas análises relativas às
obras examinadas.
A partir da análise da versão publicada em meados do século
XVIII de O marido confundido ([1737]1841), de Alexandre de Gusmão,
os dados indicaram que vosso é o pronome de 2a pessoa mais utilizado
pelos falantes representados. Observou-se que a característica desse
tipo de estratégia de referência à 2a pessoa é mais formal, presente
no tratamento em relacionamentos hierarquizados, constituindo-
se, portanto, como marca de um esquema de tratamento não
cordial, ou seja, dotado de mais formalidade, menos pessoalidade
e afetividade. Os dados indicam ser essa a estratégia padrão de
tratamento entre fidalgos, mesmo quando amantes, pelo menos se
podem ser alvo de testemunhas, isto é, limitados em sua expressão
de afeto.
A forma teu, por outro lado, é o lugar da pessoalidade, da
intimidade e da afetividade e ocorre na expressão de afetividade
dos amantes, única ocorrência de pronome acompanhado por
diminutivo, uma das marcas de afeto apontadas por Holanda. Teu
também é a opção na intimidade da conversa consigo mesmo e
aparece em situações em que o senhor quer mostrar à criada que
a ela não deve haver tratamento hierarquizado. O lugar de teu é
portador de pessoalidade, afetividade. Destaca-se que o texto foi
escrito no período colonial.
A análise das peças O juiz de paz da roça ([1837]2018), de
Martins Pena, e Não consultes médico ([1896]2018), de Machado

192
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

de Assis, a primeira pós-Independência (1822) e a segunda pós-


Proclamação da República (1889), indica o contínuo e gradativo
movimento de cooptação do pronome possessivo seu, que se torna
a escolha preferencial do falante quando quer se referir à 2a pessoa.
Nesse movimento, primeiramente se suplanta a forma vosso e, em
seguida, há a concorrência com teu. É importante dizer que tal
fenômeno foi devidamente identificado e conhecido nos estudos
históricos de PB, com destaque para Menon (1997), Martins e Vargas
(2014) e Lucena (2016). O que este trabalho acrescenta a tais estudos é
a observação, considerando o contexto de uso indicado pelas formas
de tratamento, de que nesse percurso o pronome seu não apenas
perde formalidade, como já apontado, mas ganha pessoalidade e
afetividade, propriedades características da cordialidade.
Observando, comparando e qualificando os dados globais dos
três textos, nota-se também que o pronome possessivo seu não
parece acompanhar simetricamente a evolução do pronome você.
A forma seu se faz presente com outros pronomes de tratamento,
como Vossa Mercê, Vossa Senhoria, Senhor, Senhoria e Doutor, isto
é, seu tem uso consolidado já na primeira metade do século XIX;
e você, ao aparecer escassamente no texto 2, é acompanhado pelo
possessivo teu, confirmando os dados de Martins e Vargas (2014) e
corroborando nossa tese de que outro fator, neste caso o modelo
cultural, também atuou na motivação do fenômeno de mudança.
Os dados dos três textos indicam maior possibilidade de
situações comunicativas de usos para seu, dentre elas destacam-
se: ocorrências do pronome acompanhado de título (D. Pabulea,
Sr. Tomás e D. Leocádea, respectivamente); aproximação com
deferência (KERBRAT-ORECCHIONI, 2011) de valoração semântica
positiva e negativa; proximidade e pessoalidade.
Nota-se que no primeiro texto, no caso de valoração semântica
negativa, o pronome que o acompanha é você, confirmando, nesse
ponto, Rumeu (2013, p. 51) ao falar desse pronome como forma de

193
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

tratamento “às vezes com conteúdo negativo”. Mas nos textos 2 e


3, diminutivos como sujeitinho e mocinha, respectivamente, marca
linguística que caracterizaria a afetividade da cordialidade, também
acompanham o pronome seu no uso de 2a pessoa. Observou-
se, assim, que seu mantém a possibilidade de uso formal e mais
distante, como manutenção de um traço originário (HOPPER, 1991;
HOPPER; TRAUGOTT, 2003), e ainda agrega a possibilidade de uso
em contextos mais afetivos e pessoais.
O texto 1 é do Brasil Colonial e os outros dois do Brasil pós-
Independência; um do Período Regencial e outro do fim do
Segundo Reinado, já com todas as aspirações de uma República
(FAUSTO, 2002). Entretanto, podemos considerar que os dois
últimos textos são relacionados à criação de um ideário de nação,
o que inclui a construção de um modelo cultural nacional. A
ironia é essa: uma das propriedades que caracteriza esses textos é
justamente a permanência de certa mentalidade colonial, e é o que
nos distinguiria de Portugal, provavelmente porque nessa relação
nós somos colônia, não metrópole. Aquilo com o que identificamos
nossas peculiaridades e consequente distanciamento é, também ou
ainda, colonial.
E não há de se surpreender que se tenha, já tão próximo da
mudança histórica datada, alterações na língua. O que estamos
mostrando é que a alteração na língua já vinha acontecendo porque
a alteração “das ideias” já vinha acontecendo. As ideias já circulavam
antes da alteração datada, a conceptualização já estava em
formação e já existiam conceptualmente a ideia de independência
no primeiro momento e a ideia de república no segundo momento.
Então é isso que estamos capturando: o momento que a língua
manifesta a mudança das ideias e, ao mesmo tempo, o momento
que essa mudança na língua, essa manifestação da língua,
ativa o modelo cultural correspondente. O modelo conceitual-
cultural correspondente a essa dança: uma mudança linguística/

194
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

conceitual que se retroalimenta. A permanência da cordialidade é


a permanência de uma mentalidade do período colonial.
Conclui-se que o movimento de seu para a 2a pessoa é um
movimento de “cordialização” do pronome, isto é, um movimento
em direção ao tratamento menos formal, mais pessoal e afetivo. Se
vosso é o lugar da impessoalidade e da formalidade e teu é o lugar
da pessoalidade e da afetividade, se pudermos observar a cooptação
de seu para o lugar do vosso, temos já uma primeira aproximação,
conforme Benveniste (1966). E, na sequência, com o movimento de
seu para o lugar de teu, vemos que ele modula, sendo uma variação
periférica de vosso e, em seguida, uma variação periférica de teu,
aos moldes do proposto por Grondelaers; Speelman e Geeraerts
(2007).
Podemos afirmar, então, que seu migra de lugar de distância
para começar a ocupar, em PB, lugar de proximidade. Um seu
que, quando cooptado para a 2ª pessoa e concorrendo com teu,
ocorre em contextos de maiores pessoalidade e afetividade e
menor formalidade. Ganha, dito de outra maneira, propriedades
de cordialidade, indicando que o PB escolhe a pessoalidade,
o que possibilitou o cumprimento do objetivo geral, a saber,
investigar a possibilidade de a cordialidade, compreendida
como conceptualização cultural, ser fator causal de fenômenos
linguísticos de variação/mudança pronominais relacionados a
formas de tratamento do PB. Consequentemente, admite-se a tese
de um modelo cognitivo-cultural cordial que atua como fator de
mudança linguística.
Importante notar, contudo, que a propriedade mais evidente
no contexto de uso de seu em 2ª pessoa é a pessoalidade. As razões
que contrariaram a expectativa original e tornaram a afetividade não
tão evidente quanto a pessoalidade nos dados observados precisam
ser melhor investigadas. Para tanto, propomos duas hipóteses: 1) a
opção por abordagem que priorizou a análise qualitativa dos dados,

195
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

não ancorada em um corpus numeroso, limitou o resultado; 2) a


afetividade não se manifestaria pronominalmente; a pessoalidade
é destacada por ser (ainda que associada à formalidade) uma
propriedade que o pronome seu adquire no processo de variação/
mudança. Essa perspectiva é indicada nos dados, mas também na
teoria, posto que a cooptação de seu para a 2ª pessoa, esse primeiro
movimento do pronome, é um movimento da posição de “não-
pessoa” para “pessoa” (BENVENISTE,1966, p. 231).
Reconhecemos as dificuldades de se evidenciar a incidência
de aspectos sócio-histórico-culturais na língua e, nesse sentido,
o caráter experimental da pesquisa realizada, mas também
reconhecemos que o trabalho dá passos adiante e contribui para
esse esforço em pelo menos quatro pontos: a) na necessidade de
se investigar o fenômeno de variação/mudança de teu/seu em seus
múltiplos aspectos motivadores, de modo complementar à relação
sintática de seu com você; b) na compreensão de que abarcar a
complexidade dos fenômenos de variação/mudança exige olhar a
partir dos aspectos linguístico-cognitivo-culturais; c) na proposição
de uma leitura linguística-cognitiva-cultural da cordialidade,
inédita até então; d) por fim, contribui com o amadurecimento da
Linguística Cultural no Brasil.
Os dados aqui apresentados de maneira ilustrativa indicaram,
como esperado, que antes da concorrência teu/seu, em um
momento que o país ainda era colônia portuguesa e mais próximo
culturalmente desse país, seu foi uma forma majoritariamente formal
e impessoal e teu ocupava o lugar de pessoalidade, informalidade e
afetividade. Esse lugar muda após a Independência e a Proclamação
da República, períodos de ebulição sob um ideário de nação.
Os dados corroboram, portanto, a hipótese de que seu se
desloca da 3a pessoa, lugar que indica mais distância em relação
ao interlocutor, para a 2a pessoa (fenômeno que ocorre no PB
e não no PE), ou seja, que sai do público para o privado. Seu é

196
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

cooptado para a 2a pessoa e passa a concorrer pelo lugar de teu


devido, como mostrarmos, à escolha do falante determinada por seu
modelo cultural: o movimento do possessivo em direção ao mundo
privado, como algo que manifesta a opção do falante de PB pela
busca da pessoalidade, demonstrado no fato de que a mudança do
pronome seu para a 2a pessoa não é uma mudança sintática apenas,
mas semântica, de aquisição de propriedades em adequação a um
modelo cognitivo-cultural compartilhado pelo grupo cultural ao
qual o falante pertence. Isso traz nova perspectiva teórica a ser
considerada nas análises variacionistas: o(s) modelo(s) cognitivo(s)
cultural(is) em atuação.
Procuramos mostrar como isso se dá na língua portuguesa,
em sua variante PB. A partir da identificação das propriedades
semântico-culturais (menor formalidade, maiores pessoalidade e
afetividade) características da cordialidade, compreendida como
aversão à impessoalidade, propusemos um modelo cultural-cordial.
Tal modelo, não exclusivo de um grupo cultural, foi identificado
por conjunto significativo de pensadores, em especial por Holanda
([1936]2015).
Assim, a cordialidade como esse agrupamento de propriedades
que Avelino Filho (1988) chama de “mentalidade”, Rocha (1998)
de “estratégia funcional”, Souza (2017) de “noção”, Pinto (2001) e
Monteiro (1999) de “tipo” e Reis (2006) aproxima de “espírito de
uma época”, aqui denominamos como “modelo cognitivo-cultural”,
o qual se manifesta na língua a partir, inclusive, dos fenômenos
de variação/mudança que motiva. Afirmamos, por fim, que esse
modelo cultural pode ser ativado por meio de elementos verbais ou
não-verbais e que, uma vez ativo, por ele se “coa” e se impregna de
sentido as experiências vivenciadas.
Dessa maneira, apresentamos um modelo teórico-explicativo
complementar aos estudos variacionistas, com base na ratificação
da hipótese de que seu em 2a pessoa, fenômeno que ocorre no PB e

197
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

não no PE, se desloca da 3a pessoa, lugar que indica mais distância


em relação ao interlocutor, para a 2a pessoa, por uma escolha do
falante, motivada pelo modelo cultural do qual participa. Uma vez
cooptado para a 2a pessoa, e mais próximo do eu, pessoalizado, seu,
diacronicamente, avança em sua concorrência com teu, lugar de
mais afetividade e pessoalidade e menor formalidade; enfim um
lugar mais cordial.
Entretanto, devido sobretudo ao tempo e à abordagem teórica
a que se propôs, esta pequisa teve suas limitações. Destacamos
algumas que consideramos principais: não ter submetido a tese
à pesquisa de base quantitativa, observando número maior de
dados; não ter realizado reflexão mais aprofundada sobre as
metáforas culturais, em que se investigue as implicações do uso
do diminutivo -inho como metáfora cognitivo-cultural-cordial; e
não ter investigado detidamente os possíveis impactos da tese aqui
apresentada na teoria da Gramática Cognitiva, do gesto e prosódia.
Por fim, para pesquisas futuras sugere-se, ainda, a investigação
de outros fenômenos sintático-semânticos em que o PB se comporta
de maneira diferente do PE, como na colocação pronominal. Um
estudo cuidadoso poderia investigar se em outros fenômenos de
variação/mudança já documentados nos estudos linguísticos, muitos
deles enumerados por Biderman (2001), ocorrem sistematicamente
o movimento de maior para menor formalidade, aumentando
pessoalidade e afetividade, deslocando-se de tratamento impessoal
para pessoal, o que poderia indicar ser uma tendência do falante o
deslocamento comunicativo do público para o privado, coerente
com o modelo cultural aqui apresentado.

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209
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

SOBRE A AUTORA
Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), Geisa Mara Batista é Mestra em Filosofia,
Bacharela Licenciada em Filosofia, além de Licenciada em Língua
Portuguesa. Profissional da educação desde 2002, atua na Educação
Privada e na Educação Pública como professora da Educação Básica
e Superior (Graduação e Pós-graduação). Com experiência nas
áreas de Filosofia e Letras, é autora de artigos acerca dos temas
Metafísica, Ética, Leitura, Língua e Cultura. Com contribuições
aos estudos em leitura, letramento e ensino, coorganizou os livros
Hoje tem Clube? e Releituras em Belo Horizonte: leitura e produção
escrita. Atualmente debruça-se, especialmente, sobre o tema
Filosofia, Língua e Cultura.

210
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

EDITORES
Gabriel de Ávila Othero (UFRGS)
Valdir do Nascimento Flores (UFRGS)

CONSELHO EDITORIAL
Adeilson P. Sedrins (UFRPE/UAG)
Adelia Maria Evangelista Azevedo (UEMS)
Ana Paula Scher (USP)
Aniela Improta França (UFRJ)
Atilio Butturri Junior (UFSC)
Carlos Alberto Faraco (UFPR)
Carlos Piovezani (UFSCar)
Carmem Luci Costa e Silva (UFRGS)
Cassiano R. Haag (MPSC)
Cátia de Azevedo Fronza (Unisinos)
Cláudia Regina Brescancini (PUCRS)
Claudia Toldo Oudeste (UPF)
Dermeval da Hora (UFPB)
Eduardo Kenedy (UFF)
Edwiges Maria Morato (Unicamp)
Eliane Silveira (UFU)
Elisa Battisti (UFRGS)
Esmeralda Negrão (USP)
Heloisa Monteiro Rosário (UFRGS)
Heronides Moura (UFSC)
Ingrid Finger (UFRGS)
Jairo Nunes (USP)
Janaína Weissheimer (UFRN)
João Paulo Cyrino (UFBA)
Juciane Cavalheiro (UEA)
Leonel Figueiredo de Alencar (UFC)
Luiz Francisco Dias (UFMG)
Mailce Mota (UFSC)
Marcelo Ferreira (USP)
Marcos Lopes (USP)
Marcus Lunguinho (UnB)
Maria Eugenia Duarte (UFRJ)
Mariangela Rios de Oliveira (UFF)
Pablo Ribeiro (UFSM)
Plínio Barbosa (Unicamp)

211
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Rafael Minussi (Unifesp)


Renato Basso (UFSCAR)
Ronice Muller de Quadros (UFSC)
Ruth Lopes (Unicamp)
Simone Guesser (UFRR)
Simone Sarmento (UFRGS)
Sirio Possenti (Unicamp)
Sonia Cyrino (Unicamp)
Tânia Maris de Azevedo (UCS)
Ubiratã K. Alves (UFRGS)
Vitor Nóbrega (UFSC)
Viviane de Melo Resende (UnB)

OBRAS JÁ PUBLICADAS
COLEÇÃO ALTOS ESTUDOS EM LINGUÍSTICA
A aventura de Saussure
Eliane Silveira

“Ai, se seu te pego...”: aspectos prosódicos de estruturas desgarradas em língua


portuguesa
Aline Ponciano dos Santos Silvestre

Aquisição atípica da linguagem: modelos linguísticos e prática clínica


Cristiane Lazzarotto-Volcão, Marian Oliveira e Maria João Freitas

Educação intercultural, letramentos de resistência e formação docente


Rodriana Dias Coelho Costa, Kléber Aparecido da Silva e Edinei Carvalho dos Santos

Formas de tratamento e “cordialidade”: mudança linguística e conceptualizações


culturais
Geisa Mara Batista

Gramaticalização e gramática gerativa


Lorenzo Teixeira Vitral

Linguagem, cognição e ensino: reflexão sobre a linguagem em crianças com e sem


diagnósticos

212
FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

Thalita Cristina Souza Cruz e Fernanda Moraes D’Olivo

Manual de Prosódia Experimental


Plinio A. Barbosa

Monotongação de ditongos orais no português brasileiro: uma revisão sistemática da


literatura
Nancy Mendes Torres Vieira

O caso mais grosseiro da semiologia: o que Saussure pode nos dizer sobre os nomes
próprios?
Stefania Montes Henriques

Uma abordagem da cena genérica como embreante paratópico: em pauta as cartas


privadas de Mário, Drummond, Freud, Sêneca e John Wesley
Manuel Veronez

COLEÇÃO LINGUÍSTICA EM AÇÃO


Introdução à estatística para linguistas
Livia Oushiro

Investigando os sons de línguas não nativas: uma introdução


Felipe Flores Kupske, Ubiratã Kickhöfel Alves e Ronaldo Mangueira Lima Jr.

Linguística no feminino. Vozes femininas que fizeram a linguística no Brasil


Danniel Carvalho e Raquel Freitag

Manual de Morfologia Distribuída


Ana Paula Scher, Indaiá de Santana Bassani e Paula Roberta Gabbai Armelin

REVISÃO
Monah Karime El Kadri

CAPA E PROJETO GRÁFICO


Ad&a Studio

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FORMAS DE TRATAMENTO E “CORDIALIDADE”:
MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

FICHA CATALOGRÁFICA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Batista, Geisa Mara


Formas de tratamento e “cordialidade” [livro eletrônico] : mudança
linguística e conceptualizações culturais / Geisa Mara Batista. -- 1. ed. --
Campinas, SP : Editora da Abralin, 2022. --(Altos Estudos em Linguística)
PDF

Bibliografia.
ISBN 978-85-68990-27-8

1. Língua e linguagem 2. Linguística 3. Literaturabrasileira - Escritores -


Brasil - História e crítica4. Semântica 5. Sociolinguística I. Título. II. Série.

23-144522 CDD-401.4

Índices para catálogo sistemático:

1. Sociolinguística 401.4
Henrique Ribeiro Soares - Bibliotecário - CRB-8/9314

DOI 10.25189/9788568990278

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MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

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MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

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MUDANÇA LINGUÍSTICA E CONCEPTUALIZAÇÕES CULTURAIS

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