Tese - Daniela Medina
Tese - Daniela Medina
Tese - Daniela Medina
NITERÓI-2021
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
NITERÓI – RJ
2020
DANIELA MÁRCIA MEDINA PEREIRA AGAPTO
Orientadora:
Profa. Dra. Georgina Silva dos Santos
NITERÓI, RJ
2020
Universidade Federal Fluminense
CDD
Aprovada em14/12/2020
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profa. Dra. Georgina Silva dos Santos - Universidade Federal Fluminense – UFF Orientadora
__________________________________________________
Prof. Dra. Larissa Moreira Viana - Universidade Federal Fluminense - UFF
Arguidor interno
__________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Timotheo da Costa – Universidade Salgado de Oliveira- UNIVERSO
Arguidor externo
__________________________________________________
Prof. Dra Régia Agostinho da Silva- Universidade Federal do maranhão- UFMA
Arguidor externo
__________________________________________________
Prof. Dra Renata Marinho Paz- Universidade Regional do Cariri - URCA
Arguidor externo
NITERÓI- RJ
2020
À José Rodrigues Pereira (in memorian) e à Maria Algediva Medina Pereira, meus pais.
À romeira desconhecida que me parou na rua e pediu para rezar por mim e pela minha barriga
com Clarisse dentro. Uma mulher generosa que não sabe quanto chão me deu naquele dia.
AGRADECIMENTOS
A presente tese relaciona a gênese das romarias a Juazeiro do Norte e o pós-abolição. Discute
o papel e as estratégias da diocese cearense no estabelecimento de um circuito de ação e
formação clerical submetidas aos preceitos de Roma. Discute também o catolicismo popular
diante dos desafios para uma digna sobrevivência no sertão do XIX tomando por referência as
missões do padre Ibiapina e a instalação de casas de caridade. As missões de Ibiapina são
pensadas também em sua interface com a questão da escravidão. A tese ainda retoma o processo
de abolição cearense, discutindo suas vicissitudes e contradições. Expõe aspectos da
mobilização abolicionista na região sul do Ceará em oposição à construção narrativa de que
houve atraso na divulgação do ideal abolicionista, tratando assim da presença de uma resistência
escravocrata que atuou, inclusive, ao arrepio da lei. Toma o surgimento das romarias a Juazeiro
no contesto do pós-abolição e defende a presença de uma rota de acolhimento, protagonizada
em larga medida, pelo padre Cícero que transitou entre zelo apostólico e articulação política.
Discute aspectos da liberdade vivida e experimentadas por um grupo que, aos olhos de seus
antigos senhores ou dos potentados locais, mereciam controle vigilante e desconfiança.
Considera e problematiza uma matriz racista imbricada nas narrativas de cronistas e
historiadores que legaram parte das descrições de Juazeiro do Norte das primeiras décadas do
século XX. Constrói um léxico baseado nestas falas racistas e expõe suas perversas
peculiaridades e sua duradoura permanência.
This thesis relates the genesis of pilgrimages to Juazeiro do Norte and the post-abolition period.
It discusses the role and strategies of the Ceará diocese in establishing a circuit of action and
clerical formation submitted to the precepts of Rome. It also discusses popular catholicism in
the face of the challenges to a dignified survival in the backlands of the XIX, taking as reference
the missions of priest Ibiapina and the installation of charity houses. Ibiapina's missions are also
tought regarding the issue of slavery. The thesis still resumes the process of abolition in Ceará,
discussing its vicissitudes and contradictions. It exposes aspects of the abolitionist mobilization
in the southern region of Ceará in opposition to the narrative construction that there was a delay
in the dissemination of the abolitionist ideal, thus dealing with the presence of a slave-based
resistance that even acted against the law. It takes the rise of pilgrimages to Juazeiro in the
postabolition contest and defends the presence of a welcoming route, carried out to a large
extent by priest Cícero who transited between apostolic zeal and political articulation. It
discusses aspects of the freedom lived and experienced by a group that, in the eyes of their
former masters or local potentates, waranted vigilant control and distrust. It considers and
problematizes a racista narative intertwined in the narratives of chroniclers and historians who
bequeathed part of Juazeiro do Norte's descriptions of the first decades of the 20th century. It
builds a lexicon based on these racist lines and exposes its perverse peculiarities and its lasting
permanence.
Cette thèse relate la genèse des à Juazeiro do Norte et la. Discute du rôle et des stratégies du
diocèse de Ceará dans l'établissement d'un circuit d'action et de formation cléricale soumis aux
préceptes de Rome. Aborde également le catholicisme populaire face aux défis d'une survie
digne dans l'arrière-pays du XIX, en prenant comme référence les missions du Père Ibiapina et
l'installation de maisons de charité. Les missions d'Ibiapina sont également pensées dans leur
interface avec la question de l'esclavage. La thèse reprend encore le processus d'abolition au
Ceará, discutant de ses vicissitudes et contradictions Expose des aspects de la mobilisation
abolitionniste dans la région sud du Ceará en opposition à la construction narrative selon
laquelle il y a eu un retard dans la diffusion de l'idéal abolitionniste, traitant ainsi de la présence
d'une résistance esclavagiste qui a même agi contre la loi. Reprend l'essor des pèlerinages à
Juazeiro dans le contexte de la post-abolition et défend la présence d'un parcours d'accueil,
réalisé en grande partie par le Père Cícero qui a évolué entre zèle apostolique et articulation
politique. Aborde les aspects de la liberté vécus et expérimenté par un groupe qui, aux yeux de
ses anciens maîtres ou potentats locaux, méritait un contrôle vigilant et une méfiance. Considère
et problématise une matrice raciste imbriquée dans les récits des chroniqueurs et historiens qui
ont légué une partie des descriptions de Juazeiro do Norte des premières décennies du XXe
siècle. Construit un lexique basé sur ces lignes racistes et expose ses particularités perverses et
sa pérennité.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 17
INTRODUÇÃO
“Você não sabe o que está procurando, mas vai chegar pra você através de uma
palavra. Quando escutar a palavra vai entender tudo”. Este trecho finalizou uma breve
conversa com João José A. V. de Jesus1. Ele estava de pé na frente da Matriz de Nossa
Senhora das Dores 2 divulgando o Evangelho e recomendando aos poucos ouvintes a
leitura da Missão Abreviada. Antes de deixar sua mensagem final sobre a minha procura,
conversou comigo e perguntou o que eu fazia ali. Respondi que queria observar a romaria,
de fato me interessava observar intenso movimento ao redor da igreja enquanto a missa
se iniciava, eram as primeiras atividades de campo para a montagem do projeto de
doutorado. O senhor de longas barbas brancas vestido em túnica azul e branca me
aconselhou ler a Missão Abreviada e a decorar os dez mandamentos. Deixou claro, eu não
deveria apenas ler, tinha que decorar, pois decorando eu evitaria o pecado. As palavras
gravadas na memória garantiriam minha proteção. Depois dos conselhos, ele me deu um
cartãozinho com os dez mandamentos impressos e eu segui para fazer algumas fotos. Não
o fotografei, não achei conveniente. Foi aí que me veio à lembrança suas primeiras
palavras :“Você não sabe o que está procurando, mas vai chegar pra você através de uma
palavra, quando escutar a palavra vai entender tudo”.
Muitas vezes me peguei pensando nas tais palavras que me chegariam como
resposta. A realidade é que me chegaram muitas palavras, as conversas com os romeiros,
os benditos, as leituras e diálogos necessários para tornar o tema Juazeiro/Romaria um
trabalho de moldes acadêmicos e, por fim, estas palavras que surgem nesta tela. Minhas
próprias palavras que tentam organizar, expressar e defender as coisas que aprendi e
questionei sobre o passado deste lugar que me inspira e me anima. Dedico-me aqui a tecer
1
Eu já tinha ouvido falar do Ave de Jesus, e que todos os membros assumem o mesmo nome, ou seja, todos
os homens se chamam João José A. V de Jesus e todas as mulheres são Maria A. V de Jesus. Nunca tinha
conversado com nenhum deles. Trata-se de uma comunidade autônoma e isolada que vive em Juazeiro,
mantém um hábito e pregam a leitura da Missão Abreviada. Sobre este tema contribui: CAMPOS, Roberta
Bivar Carneiro “When sadness is beautiful: a study of the place of rationality and emotions within the
social livfe of the Ave de Jesus”- University of St. Andrews, 2000. Ou ainda em CAMPOS, Roberta Bivar
Carneiro: Como Juazeiro do Norte se tornou a Terra da Mãe de Deus .Revista Religião e Sociedade, Rio
de Janeiro, 28(1): 146-175, 2008
2
Na missa matinal de encerramento da Romaria de Nossa Senhora das Dores (setembro de 2016)
18
3
O maior fluxo de romeiros se concentra nos meses de fevereiro, setembro e novembro, em comemoração
às respectivas romarias de Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora das Dores e Finados, o calendário
de romarias é essencialmente o seguinte: 06 de Janeiro, a Romaria de Santos Reis; 20 de Janeiro, a Romaria
de São Sebastião; 02 de fevereiro, a Romaria de Nossa Senhora das Candeias; a semana do dia 16 a 24 de
março, Semana do padre Cícero; 24 de março, comemoração ao nascimento do padre Cícero; período da
Semana Santa, em abril; 20 de julho, aniversário de morte do padre Cícero; 15 de setembro, a Romaria da
Padroeira Nossa Senhora das Dores; 4 de outubro, a Romaria de São Francisco de Assis; 1 de novembro,
dia do Romeiro e dia 2 de novembro, Finados.
19
4
Os ranchos são uma modalidade de hospedagem característica da cidade de Juazeiro do Norte. Abrigo de
romeiros desde o início do século XX, hoje existem, aproximadamente, 500 pela cidade e sempre lotam
durante as romarias. Os ranchos, em alguns casos, recebem gerações de romeiros da mesma família
realizando uma forma de acolhimento muito específico. Hoje, é uma atividade comercial e há denúncias de
superlotação e precárias condições de higiene. Num trabalho específico sobre o tema, idealizei e fui
facilitadora de um Percurso Urbano (Centro Cultural BNB Cariri) denominado “Artes de Acolher” que
tratava do tema e durante o qual visitamos diversos estabelecimentos.
5
RAMOS, Francisco Regis Lopes. O meio do mundo: territórios de sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
2000. 350f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Estudos Pós-Graduação em História – PUC, São
Paulo, 2000.
6
O “BEM-DITOS” previa e realizou o registro oral através de videografia e mantém o acervo digital de todo o
material bruto coletado. Foi ainda concretizada uma edição de 18 minutos.
7
Sendo a Secretária a Sra. Marli Bezerra, a Coordenadora de Romarias a Sra. Leda Barros e eu fui a técnica
responsável. As primeiras coletas do projeto BEM-DITOS ocorreram em setembro de 2014 durante a
Romaria de Nossa Senhora das Dores, numa sala no térreo do Memorial Padre Cícero, Largo do Socorro
SN.
20
bem além da ideia de registrar graças ou milagres, fluíam em vários sentidos, descrevendo
modos de vida e expondo experiências diversas. O mote inicial não foi o elemento central
das conversas, estas passeavam por outros aspectos, muitos deles inesperados mesmo para
quem já tinha certa familiaridade com os romeiros.
Questões sugiram e ganharam sentido a partir da atitude de valorizar estes
personagens e suas narrativas, com as quais me deparei tantas vezes. Foi diante desta
realidade que elaborei o projeto apresentado para seleção do “O olhar dos romeiros do
século XXI: a tradição oral sobre as romarias de Juazeiro do Norte/CE” para o Doutorado
Interinstitucional (DINTER) entre a Universidade Federal do Cariri (URCA) e a
Universidade Federal Fluminense (UFF).
Depois da aprovação e já no curso das disciplinas aconteceu uma guinada que
redefiniu a temporalidade e o objeto do trabalho. Em setembro de 2016, durante a
disciplina ministrada no Ceará pela professora Georgina Santos, minha orientadora,
tivemos oportunidade de circular juntas pelo centro de Juazeiro do Norte, nas imediações
da Matriz de Nossa Senhora da Dores. Naqueles dias, estava exposta no salão do Círculo
Operário São José uma série de fotografias históricas sobre o Padre Cícero Romão Batista.
Ao observar presença de muitos beatos negros ao lado do padre Cícero, a professora
Georgina Santos me questionou sobre a presença de negros como beatos e auxiliares
diretos do padre, perguntado se eram seus escravos. Apressei-me em dizer que não eram
seus escravos porque a abolição no Ceará dera-se antes do restante do Império. Dias
depois, em sessão de orientação, quando a professora interrogava a mim e a si mesma
sobre as “origens” das romarias, lançou a questão do pós-abolição como possível conexão
entre as errâncias dos recém-libertos e a formação do núcleo de homens e mulheres negras
à volta do Padre Cícero. Daí, começamos a especular sobre a presença e circulação de
exescravizados em Juazeiro do Norte.
Meu recorte temporal no projeto inicial era o tempo presente, porém aquele novo
questionamento e aquelas possibilidades de intersecção dos temas (romaria/pós-abolição)
foram sendo amadurecidas. A bibliografa sobre Juazeiro do Norte ou sobre o Padre
Cícero, mesmo ao tratar de aspectos biográficos de personagens negros, não discute o
pós-abolição e nem o tema étnico-racial. O silenciamento começou a incomodar e veio a
construção de um novo projeto, com fins de discutir a presença e o modo de vida destes
sujeitos em Juazeiro do Norte. A transição foi marcante. Depois do burburinho das ruas,
21
os rumos do trabalho me levaram ao silêncio dos arquivos, à leitura dos jornais e à imersão
no século XIX, uma passagem fascinante, mas muito difícil.
Resolvi visitar o Ceará do Oitocentos em busca de elementos da circulação de
peregrinos, missionários, viajantes, militantes abolicionistas, migrantes da seca,
exescravizados, mestiços, camponeses, intelectuais e clérigos. Deparei-me com
encruzilhadas. Onde os caminhos se cortam, mudanças de rota são possíveis, encontros
são potencializados e conflitos expostos. O simbolismo da encruzilhada também carrega
a possibilidade de encontro entre o mundo visível e o invisível. A evocação bem descreve
a intenção do esforço que move este trabalho. Final do século XIX, alvorecer do século
XX, interior do Ceará, pós-abolição, primeiros anos da República, formas devocionais do
catolicismo sertanejo e o anúncio de um milagre.
Cícero Romão Batista (1844-1934), padre formado na primeira turma do
seminário episcopal no Ceará, assumiu como pároco, em 1872, a Capela de Nossa
Senhora das Dores, na povoação do Juazeiro. Em 1889, seria largamente anunciado ali o
“milagre da hóstia vertendo sangue”, fato protagonizado por Maria de Araújo. Ela, uma
jovem beata negra.
Em pesquisa recente, com o tema "A cor da devoção: africanidade e religiosidade
na cultura romeira no Cariri contemporâneo”, a professora Maria Telvira da Conceição,
da URCA, investigou a presença tanto de pessoas pretas como aspectos simbólicos da
cultura afro-brasileira 8 . As considerações da professora Maria Telvira e mesmo a
proposição do grupo de trabalho “Romarias, diversidades e identidade etnico-racial” 9 no
“V Simpósio Internacional padre Cícero-Reconciliação... e agora?”, também coordenado
pela Professora Cícera Nunes da URCA, evidenciam que a historiografia local esboça
interesses neste tema. Mas optando por um recorte ultra contemporâneo, secundarizando
os espasmos iniciais destas rotas de devoção que tomam a cidade de Juazeiro ano após
ano.
8
CONCEIÇÃO. Maria Telvira da, SANTOS. Ingrid Sâmara Félix dos e FERRAZ. Jade Luiza Andrade. A
cor da devoção: Africanidade e religiosidade na cultura romeira no cariri contemporâneo – a problemática
da identidade racial. In XI Encontro Regional Nordeste de história Oral. Disponível em:
http://www.nordeste2017.historiaoral.org.br/resources/anais/7/1493823220_ARQUIVO_Artigocompleto
XIEncontroRegionaldeHistoriaoral-03-05-2017.pdf
9
CONCEIÇÃO, Maria Telvira da. A cor da devoção: africanidade e religiosidade na cultura romeira no
Cariri contemporâneo. In: V Simpósio Internacional Pe Cícero. Reconciliação... e agora?, 2017, Juazeiro
do Norte. V Simpósio Internacional Pe Cícero. Reconciliação... e agora?. Crato-Ce: Universidade
Regional do Cariri, 2017. v. 01. p. 40-53.
22
Carlos Alberto Steil tangenciou essa questão ao tratar das grandes romarias a Bom
Jesus da Lapa, na Bahia, menciona o quão marcante foi a “dos pretos, realizada em junho
de 1888, um mês depois da concessão da liberdade aos escravos”10 .Uma romaria preta
quase que imediatamente após a abolição. O autor realiza um estudo antropológico da
romaria, mas não explora este aspecto da história daquela peregrinação.
Mesmo autores que traçaram relatos biográficos de personagens negros, como a
beata Maria de Araújo, conseguiram elaborar reflexões que não problematizavam o
pósabolição como tempo vivido pela personagem. É o caso do trabalho de Edianne
Nobre11 em sua tese de doutoramento, depois publicada em livro12. A ausência deste tema
não pode ser considerada uma opção ou recorte, especialmente num trabalho com o
esmero e a densidade que a autora se propôs a legar. Entendo que há uma escolha em
silenciar uma questão como esta, em lidar com uma trajetória de vida e seus combates
sem levar em conta o lugar ocupado por aquele sujeito. Como pode ser isso possível em
uma sociedade na qual a cor demarcava posições, determinava imposições, julgamentos
e deflagrava resistências? Aliás, a cor ainda demarca posições até hoje.
Mesmo não explorando a historicidade do lugar atribuído ao negro no Brasil
daquele período, Carlos Alberto Tolovi 13 teve o cuidado de expor a vigência de uma
cultura racista e machista na aceitação do protagonismo de Maria de Araújo. Porém, os
mecanismos destes pressupostos excludentes e sua historicidade não foram trabalhados
pelo autor. Seu foco é discutir a construção do mito em torno da figura do padre Cícero e
sua articulação com o campo político partidário. Mas o autor não deixa de explorar,
inclusive, uma conexão com a presença de mulheres negras como beatas de Ibiapina, ao
problematizar o que chamou de “Reação da Igreja hierárquica”, tentou destrinchar as
resistências à aceitação do milagre.
Muitas vezes até mesmo as fontes ocultam a cor da beata e seu lugar social,
disfarçando o peso que lhe recaía sobre os ombros naquele 1889. Resta ao historiador
enfrentar a questão, problematizá-la, expondo toda sua densidade. O processo instaurado
10
STEIL. Carlos Alberto. O sertão das romarias-Um estudo antropológico sobre o santuário de bom
Jesus da Lapa-Bahia. Petrópolis: Editora Vozes, 1996. (nota 12),p.233 .
11
NOBRE, Edianne S. Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do
Oitocentos. Tese de Doutorado - UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. f.261
12
Causa estranhamento o fato da ilustração da capa do livro publicado pela autora “ Incêndios da alma -A
beata Maria de Araújo e o milagre de Juazeiro” trazer a bela ilustração de uma mulher branca e sensual.
Deslocado do conteúdo, o invólucro-capa demarca mais um apagamento da figura da beata.
13
TOLOVI. Carlos Alberto. Padre Cícero do Juazeiro do Norte: A construção do mito e seu alcance religioso. Tese
de doutorado em Ciência da Religião. PUC-SP, 2015, 233f.
23
pela Diocese do Ceará para investigar o milagre da hóstia atribuído à Maria Araújo não
menciona, nos depoimentos, o fato da personagem ser uma mulher negra e a exata medida
do constrangimento que um feito extraordinário de sua autoria poderia causar. Impõe-se
desde então um silêncio que ecoa. Maria Araújo é descrita ora como virtuosa, ora como
maquiavélica, numa dualidade esvaziada dos sentidos que emudeciam o largo incômodo
de associar santidade e beatitude a uma mulher negra. Será depois, já nos relatos
historiográficos ou nas crônicas dos intelectuais que descreveram Juazeiro que a beata
negra será tratada com suspeição. Sua cor evidenciada aparece associada a diversas
adjetivações negativas. Foi uma “negra ignorante”, nas palavras do padre Antônio
Gomes14; foi o fruto de uma “hibridez horrível”15, para Alencar Peixoto; foi uma “solerte
embusteira”, para o historiador Otacílio Anselmo16.
Em trabalhos mais recentes a personagem foi chamada a ocupar seu lugar de
protagonista e sua trajetória discutida ao lume de novas questões e novos acervos
documentais. Sua trajetória foi devidamente mapeada, ficando, como assinalamos,
ausente a problematização da questão da cor e do contexto do pós-abolição.
Dividida em quatro capítulos, esta tese trata do processo de formação das romarias
em Juazeiro do Norte, em fins do século XIX, início do XX. Relativiza a importância do
milagre da hóstia para a construção da mística em torno do padre Cícero e destaca a
importância da rede de relações assistenciais que se formou à volta do líder religioso e
político no pós-abolição, atraindo forasteiros.
O primeiro capítulo visa ancorar a religião católica no Ceará das últimas décadas
do século XIX. De início, apresenta aspectos da criação e organização da Diocese do
Ceará, a fundação do Seminário Episcopal e do Colégio da Imaculada Conceição,
observados a partir do esforço ultramontano de aproximação com os princípios da Sé
Apostólica. A documentação e o leque de referências comtemplados neste capítulo
compreende Relatórios de Presidentes da Província do Ceará, Álbuns da celebração do
cinquentenário do Seminário do Crato e do Centenário do Seminário Diocesano
(Seminário da Prainha), além da historiografia sobre a Missão Vicentina, o Seminário
Episcopal do Ceará. No fluxo destes itens contempla ainda as trajetórias de Cícero Romão
14
ARAÚJO, Antônio Gomes de.“O Apostolado do Embuste”, Revista Itaytera, Ano II, n° 02. Crato:
Tipografia Imperial, 1956, pp. 03-62
15
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário)
16
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização brasileira S.A, Rio de Janeiro
1968.Coleção retratos do Brasil, volume 66.
24
Batista e de seu primo José Marrocos, à época dois jovens da cidade do Crato, sul do
Ceará (Cariri cearense), que pertenceram à primeira turma do Seminário da Prainha e que
são personagens que alinhavam os conteúdos de toda a tese.
A segunda parte do primeiro capítulo discute a relação entre setores da Igreja e o
movimento abolicionista. Recorta, em particular, as missões do Padre Ibiapina no Sertão
e a instalação das “Casas de Caridade” no interior do Ceará.. O periódico católico a “Voz
da Religião no Cariri” (1868-1872), fundado como órgão de divulgação e das ideias e
ações do Padre Ibiapina, é tomado como fonte para a discussão de diversos aspectos de
sua obra, e para a publicação de textos críticos à escravidão. O periódico deixa clara ainda
a presença de escravizados em diferentes momentos das missões de Ibiapina ou nas visitas
às fontes curativas do Caldas.
O segundo capítulo trata das especificidades da Abolição no Ceará, ali
perseguimos o objetivo de expor um apanhado sobre a questão da abolição no Ceará,
problematizando seus desdobramentos e usos. Discute a ação abolicionista em Fortaleza
e no interior, explora a documentação no sentido de perceber estratégias de ocupação do
espaço público para a divulgação da causa da liberdade. Busca problematizar como foram
tecidas narrativas acerca da abolição cearense, discutindo o destaque de um pioneirismo
aguerrido e benevolente dos abolicionistas, levando em conta que nas narrativas
historiográficas produzidas no Ceará, as formas de resistências dos escravizados
permaneceram invisíveis até as últimas décadas do século XX. A discussão do capítulo
busca ainda tratar das articulações e desdobramentos da abolição cearense na região do
Cariri. Explora as contradições entre a militância abolicionista e o real espaço do liberto,
notando as tensões presentes e até a criação de estratégias de branqueamento. Discute
como a abolição cearense foi precoce na ativação dos mecanismos de desconfiança,
suspeição em torno dos libertos. Até um projeto de branqueamento foi engendrado no
Ceará e apresentado na imprensa da época. Consideramos a abolição cearense como uma
“antessala” do que se efetivará no pós-Lei Áurea.
O terceiro capítulo aborda as narrativas construídas por viajantes, cronistas e
memorialistas sobre o Cariri, sua natureza e sua gente entre fins do século XIX e início
do século XX. Os registros de George Gardner, Joryvar Macêdo, Otacílio Anselmo e
Padre Antônio Gomes apontam cada uma a seu modo e a seu tempo o perfil de grupos
escravizados e de libertos, suas manifestações religiosas e a relação das autoridades civis
e religiosas com um e outro. Analisa ainda a narrativa dos “fatos extraordinários” de 1889,
25
17
Letreiro que circulava a imagem de Jesus ressuscitado numa bandeira levada por uma “irmã de caridade”
das casas de Caridade do Padre Ibiapina na procissão de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, em 8 de
dezembro 1879 em Santa Fé, Paraíba. Cf.HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade
fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza, Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006 p.204.
18
Lei de 10 de Agosto de 1853 “Autorisa o Governo a impetrar a Santa Sé as Bullas de creação de dois
Bispados, hum na Provincia de Minas Geraes, e outro na do Ceará.” Coleção da Leis do Império do Brasil de
1855, Rio de Janeiro: Typografia Nacional, Tomo XIV, Parte I
19
ANDRADE, F Alves de. O Seminário de Fortaleza e a Cultura Cearense. Discursos e Conferências In
Revista do Instituto Histórico e Antropológico do Ceará. p.261-273 ano 1969, número 79 20 A Diocese de
Olinda e Recife é uma das mais antigas do Brasil, sua instalação data de 1614.
20
CAVALCANTE, Geová Lemos. O Centenário da Arquidiocese de Fortaleza. Revista do Instituto do Ceará
Tomo CXXIX-Ano CXXIXpp.97-126
27
Ibiapina, tinha abandonado sua carreira política e jurídica e recebeu as ordens no ano de
1853, sua figura influencia e atua diretamente em diversos temas aqui tratados e sua
trajetória e legado perpassam a narrativa que hora empreendemos.
Seguiu-se um longo período para os trâmites da oficialização da bula que
culminaram com a efetiva criação da Diocese cearense, no ano de 1859. Seis anos após a
bula Pro animarum salut, em 1860, Dom Luís Antônio dos Santos21 (1817-1891) assumiu
a Diocese cearense, sendo que sua nomeação data do ano anterior, 1859. O bispo era
natural de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, ligado ao movimento ultramontano e devia
sua formação ao Colégio Pio Latino-Americano de Roma. Dom Luís, como ficou
conhecido, foi discípulo de D. Antônio Ferreira Viçoso 22 (1787-1875) e atuou como
colaborador da Diocese de Mariana, a cidade que foi um reduto fundamental da missão
dos Lazaristas no Brasil23.
Os Lazaristas, ou Padres da Missão, pertencem a uma congregação com origem
no século XVII e que teve como fundador São Vicente de Paulo 24. Esta congregação
exerceu um relevante papel no fortalecimento da postura ultramontana no Brasil. O
direcionamento ultramontano ou romanizador foi protagonizado no Brasil por religiosos
21
Após deixar a Diocese do Ceará em 1881, Dom Luís Antônio assumiu como Arcebispo de São Salvador
da Bahia, ali permanecendo até 1890, sendo assim Bispo Primaz do Brasil. Recebeu ainda o Título de
Marques de Monte Pascoal.
22
Sétimo bispo da Diocese de Mariana, Minas Gerais e fundador do Seminário local. Ítalo Domingos
Santirocchi expõe a verve de educador de D. Viçoso através da descrição das obras publicadas ou
recomendadas por ele: “publicou várias obras para ajudar na formação e correção do clero e do povo, como:
Guia de Confessores de São Ligório, Jesus ao Coração do Sacerdote, Catecismo de Mariana, Nova Missão
Abreviada, ao lado de jornais como: a Seleta Católica e O Romano. Também animou a publicação do
cotidiano O Bom Ladrão e dirigiu o Ordo diocesano, além de traduzir e difundir importantes obras como:
Tesouro da Paciência de Theodoro de Almeida, Imitação de Maria Santíssima do pe. Marchtallense,
Memorial dos discípulos de Cristo de Arvisent. Ele também prefaciou ou recomendou os seguintes
trabalhos: Tesouro Cristão de D. Luís Antônio dos Santos; Manual da Primeira Comunhão e da Confissão
de Mons. Gaume, traduzida por D. Pedro de Maria Lacerda; Missão Abreviada do pe. Manoel Gonçalves
Couto, e Pratica da Confissão dos padres Silvério Gomes Pimenta e João Batista Conigliotto”.
SANTIROCCHI, Italo Domingos: Os Ultramontanos O Brasil e o regalismo do segundo império
(18401889) Pontifícia Universidade Gregoriana/Faculdade de História e Bens Culturais Da Igreja. Tese de
Doutorado, 2010, 667f. p. 231
23
FRENCKEN, Geraldo. Em Missão. Padres da Congregação da Missão (Lazaristas) no Nordeste e Norte
do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
24
Vicente de Paulo (Vicent de Paul) nasceu em Pouy (França) em 24 de abril de 1581. Foi canonizado em
1737 pelo papa Clemente XII (1652-1740). Em 17 de abril de 1625 fundou a Congregação da Missão,
ordem religiosa masculina católica, também conhecida como Lazaristas ou Vicentinos. O termo Lazarista
é usado em referência à primeira casa da Congregação em Paris, esta chamava-se “Casa São Lázaro”. O
fator central da missão dos Lazaristas, ou Vicentinos, é a evangelização dos pobres. A atuação com caridade
teve o papel destacado de Luiza de Marillac. A viúva Luiza de Marillac conheceu Vicente de Paulo no ano
de 1622 e atuou nas ações de caridade, sendo co-fundadora das Filhas de Caridade, obra que agregava
mulheres dedicadas ao exercício da assistência domiciliar aos doentes. Santa Luisa de Marillac foi
beatificada pelo Papa Bento XV, em 9 de maio de 1920. Foi canonizada pelo Papa Pio Xl, no dia 11 de
março de 1934. Em 1960 foi declarada patrona das Obras Sociais pelo Papa João XXIII.
28
25
PINTO. Jefferson de Almeida. Os lazaristas e a política imperial - a escola, a assistência e a família.
Topoi vol.17 no.32 Rio de Janeiro Jan./Jun 2016p153-175 p.155
26
Ibid.,
29
27
Ignácio Correia de Vasconcelos (? -1859)
28
Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Ceará pelo presidente da mesma província,
o Coronel graduado Ignácio Correia de Vasconcellos em 1. o de julho de 1847 .p.8.
29
Idem
30
Vicente Pires da Mota (1779-1882), padre e jurista. Natural de São Paulo, já era presbítero quando
concluiu o Curso Jurídico. Foi lente de disciplinas de Direito e político. Chegou à Presidência das
Províncias de São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais e Santa Catarina, além do Ceará. O período de 20 de
fevereiro de 1854 a 13 de outubro de 1855 marca sua passagem pelo Ceará. Cf.OLIVEIRA, Carlos Eduardo
França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do
Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834. São Paulo, Universidade de São Paulo, Tese de
Doutorado em História, USP, 2014, 416f.
31
APEC/ Fundo do Palácio Episcopal do Ceará / Caixa 5, pacotilha 3. Ofício de 27 de julho de 1854 33
Como encontramos descrito no índice descritivo elaborado por Leonardo Mota sob o número 2865. 34
HOORNAERT, Eduardo. O cristianismo moreno no Brasil. Petrópolis: Vozes 1990
30
Não foi possível recuperar a data precisa do depoimento do Padre Antônio Tomás
Teixeira Galvão sobre os batuques, danças de São Gonçalo e as noveninhas36. Mas, é
certo que em dezembro de 1851 ele já celebrava casamentos em Granja, até então uma
vila no noroeste da Província do Ceará e que seria emancipada três anos à frente. Segundo
o padre, a maior parte dos pretendentes ao matrimônio sequer eram batizados,
32
Ibid., p.50/51
33
Estes aspectos serão explorados e destacados na discussão sobre as missões do Padre Ibiapina, no próximo item
34
Município cearense localizado a 300km da capital na região noroeste do estado, passou à categoria de Vila
em 1854.
35
MOTA, Leonardo. Notas para a História Eclesiástica do Ceará. Revista do Instituto do Ceará p. 198214
ano LX (1946) p.214. Leonardo Mota (10/05/1891-2/01/1948) celebrizou-se como folclorista e no artigo
aqui discutido apresenta parte do que colheu à partir da incumbência do Interventor do Ceará Beni Carvalho
de coordenar e ementar parte do documentário do Arquivo Público referente à relação entre Igreja e Estado.
Na empreitada chegou a ementar 3.541 documentos.
36
É possível que a prática das noveninhas se refira a iniciativas para familiarizar as crianças com as preces
e os ritos católicos.
31
précondição para a realização das bodas com a benção da Igreja. Entretanto, as formas
de manifestações de fé que vigoravam no Ceará fora da tutela da Igreja estão presentes
neste relato que deixa perceptível outras vivências religiosas e formas de agregação e
festas que animavam os sertões do Oitocentos.
No relatório do Presidente da Província do ano de 1848, é evidente o esforço, ainda
que tímido, para minimizar a precariedade do serviço religioso por meio do aumento das
côngruas 37 , reforçando assim a importância dos agentes da Igreja. Ao descrever as
consequências do referido aumento para o erário público, o relatório adverte que tal
medida não foi baseada numa avaliação da capacidade financeira da Província. Apesar do
alto custo, que não é quantificado e apenas comentado. Fausto Augusto de Aguiar 38
adverte: “não serei eu quem vos venha propor a sua revogação apesar dos meus desejos
de ver reduzida a despesa” 39. Justificando a necessidade da manutenção do auxílio dos
cofres públicos que eram responsáveis também pelas reformas dos templos, pela
renovação dos paramentos, além das já citadas côngruas, o presidente da Província
destaca a importância do papel dos clérigos, não apenas como agentes da fé, mas como
educadores, propagadores da civilização e dos bons costumes:
A fronteira entre os poderes temporais e espirituais era tênue, e muitas vezes tensa
no Ceará do Oitocentos. Em 1848, a Província contava com 34 freguesias, divididas sob
a responsabilidade do bispo diocesano que cuidava de tudo, mesmo residindo em Olinda,
sede da Diocese. Fausto Augusto de Aguiar, no relatório do mesmo ano, defendeu a
autonomia do “poder espiritual” para gerir assuntos referentes à criação ou à divisão de
freguesias, citando o parágrafo 1º. do art. 10 do ato adicional, que dava “direito exclusivo
às assembleias provinciais para legislarem sobre a divisão eclesiástica sem audiência e
37
A côngrua é uma pensão paga aos párocos e o aumento das mesmas foi baseado na resolução nº 399 de 14
de julho de 1847 da Assembleia Legislativa Provincial do Ceará.
38
Fausto Augusto de Aguiar (19 /12/ 1817 -25 /02/ 1890). Foi Deputado geral, presidente de província e
senador do Império do Brasil de 1877 a 1889. E ainda presidente das províncias do Ceará, de 13 de maio
de 1848 a 1 de agosto de 1850, e do Pará, de 13 de setembro de 1850 a 19 de agosto de 1852.
39
Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Ceará em o 1.o de julho de 1848. Ceará, Typ.
de Francisco Luiz de Vasconcellos, 1848.
40
Idem
32
(...) toda divisão eclesiástica tem íntima e natural relação com o regime
espiritual dos fiéis, não se pode sem grave injustiça desconhecer a
legítima intervenção que deve caber ao poder espiritual em atos, em que
tanto o poder temporal, como o espiritual, são interessados, e que
devendo por isso estar sujeitos a jurisdição de ambos devem ser feitos
por acordo e interferência de ambos pra ser mantida e guardada a
recíproca independência dos dois poderes.42
41
Idem
42
Idem
43
“Relatório que à Assembleia Legislativa Provincial do Ceará apresentou no dia da abertura da sessão ordinária de
1859, o excellentissimo senhor Dr. João Silveira de Sousa, presidente da mesma Província.
p.11. Este relatório apresenta um mapa com o título Bispado do Ceará-Divisão Eclesiástica, o mapa foi
elaborado pela Secretaria de Governo em 30 de junho de 1854 e assinado por Ovidio da Gama Lobo,
aparece enumerado no índice como “Mapa 5” e traz listadas as 35 Freguesias, com as respectivas
invocações, os nomes dos vigários e as datas das Cartas de Colação. Sobre o Crato registra a invocação a
Nossa Senhora da Penha, data de criação 3 de dezembro de 1740, e como vigário Manoel Joaquim Ayres
do Nascimento. 47 Idem p. 11
33
44
Apud CAVALCANTE, Geová Lemos. O Centenário da Arquidiocese de Fortaleza Revista do Instituto do
Ceará Tomo CXXIX-Ano CXXIX p.111
45
BRASIL. Thomaz Pompeo de Sousa. Ensaio estatístico da província do Ceará. [1863]. Ed. Fac-sim.
Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara,1997. P.299
46
APEC / Fundo do Palácio Episcopal do Ceará Caixa/ Bispado Cearense. Caixa I. Volume I.
47
Idem
34
O dia da Epifania é seis de janeiro, dia de Reis. A viva permanência dos festejos
de reisado, especialmente em Juazeiro do Norte50, onde o festejo culmina numa simulação
de batalha entre grupos de espadas no “Dia de Quilombo”, torna este tema digno de
detidas observações. Em Juazeiro do norte a expressão “tirar quilombo” 51 é usada para
48
CAMPOS, Eduardo. As irmandades religiosas do Ceará Provincial: apontamentos para a sua história. Fortaleza
Secretaria de Cultura e Desporto, 1980.
49
Apec. Fundo Palácio Episcopal do Ceará Bispado Cearense Caixa 1. Compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário da cidade do Crato.
50
A viva permanência dos festejos de reisado e do dia de quilombo na Juazeiro do Norte, especialmente no
Bairro João Cabral, bairro de maioria negra evidenciam, através da festa e da memória, um vínculo com o
universo afro-brasileiro.
51
A pesquisadora Cícera Nunes registrou o depoimento de Renato Dantas, um memorialista e gestor
cultural da cidade de Juazeiro do Norte: “Na década de 1950 a gente tem registro de um quilombo aqui no
Juazeiro. O que é o quilombo no Juazeiro? Eram os grupos de reisado que brigavam entre si. Quando falo
briga não é a violência, mas a brincadeira deles para tomarem uns palácios hipotéticos que eles construíram
na Praça Padre Cícero. Todo dia 6 os quilombos saem aqui correndo a cidade pra tomar um castelo
35
A devoção a Nossa Senhora do Rosário não era uma novidade no século XIX,
Maristela Simão 53 organizou uma tabela na qual sintetiza elementos acerca desta em
distintas regiões africanas, ali fica clara não só a abrangência de espaços conquistados por
tal piedade como sua datação que remontam ao século XVI. 54 As devoções foram
estimuladas e consolidadas pela presença de missionários e pelos processos de
aculturação advindos da intensificação do contato com os europeus. Lucilene Reginaldo
adverte, por sua vez, que a devoção ao Rosário em Luanda “esteve associada
especialmente aos negros cativos e forros. Tratava-se de uma devoção reservada aos
africanos inseridos na experiência da escravidão, seja na condição de cativos ou de
libertos”55. Ou seja, um dos aspectos que caracterizava a devoção do Rosário entre os
africanos, no caso citado, era o binômio “conversão-cativeiro”. Compreender esta
perspectiva que leva em conta a devoção num ambiente historicamente influenciado pelo
de tráfico humano torna mais densa a questão e expõe o esforço dos membros dos
Rosários cearenses numa perspectiva mais ampla.
Atenta à questão do “catolicismo africano” proposta por John Thornton56, Marina
de Mello e Souza61 lembra que em algumas comunidades afrodescendentes brasileiras
hipotético que constroem, onde tá a rainha, aqui no João Cabral.” NUNES, Cícera. O Reisado em Juazeiro
do Norte-CE e os conteúdos da história e cultura Africana e afrodescendente: uma proposta para
implementação da Lei nº. 10.639/03. Dissertação de Mestrado apresentada ao em Educação Brasileira pela
Universidade Federal do Ceará – UFC,2007. 154f. p.117P. 117
52
Sobre o tema também discorreu CAIXETA, Felipe Teixeira Bueno. Dia do Quilombo: cinema e cultura
popular no Juazeiro do Padre Cícero. Dissertação do Mestrado Acadêmico em Cultura e
TerritorialidadesUFF-Universidade Federal Fluminense, Instituto de Artes e Comunicação Social,
Departamento de Arte, 2016.169f
53
SIMÃO, Maristela dos Santos. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário e os africanos no Brasil do
século XVIII. Dissertação de mestrado em História da África. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras,
2010.
54
Confraria do Rosário em Luanda, 1701/ Irmandade do Rosário em Angola, 1784/ Confraria da Virgem
Nossa Senhora do Rosário na Ilha de Moçambique, 1662/Irmandade Nossa Senhora do Rosário em São
Tomé, 1526. Cf. SIMÃO, Maristela dos Santos. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário e os africanos
no Brasil do século XVIII. Dissertação de mestrado em História da África. Universidade de Lisboa,
Faculdade de Letras, 2010.p.36
55
REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: Irmandades negras, experiências escravas e identidades
africanas na Bahia setecentista. Tese de Doutoramento pela Universidade de Campinas-
Unicamp, Campinas, SP, 2005.p.22
56
John K. Thornton é professor de História da África e Diáspora Africana na Universidade de Boston,
36
No caso do Crato e de Barbalha o rei e a rainha negros e sua corte são descritos
tanto no texto dos compromissos da Irmandade, quando na narração de memorialistas que
em algum momento assistiram às celebrações:
Massachusetts (EUA), desde 2003. Doutorou-se em História da África pela Universidade da Califórnia,
Los Angeles (UCLA) em 1979. Obras sobre o tema: THORNTON, John, A África e os africanos na
formação do mundo atlântico (1400-1800), Rio de Janeiro, Ed. Campus, 2004. THORNTON, John, On the
Trail of Voodoo: African Christianity in Africa and the Americas, The Americas, n. 33, jan.1988 61 SOUZA,
Marina de Mello e. Reis do Congo no Brasil, séculos XVIII e XIX. Revista de História [on line]. 2005, (152),
79-98. Consulta 23 de Julio de 2020]. ISSN: 0034-8309. Disponível em:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022040004.
57
SOUZA, Marina de Mello e. Reis do Congo no Brasil, séculos XVIII e XIX. Revista de História [on line].
2005, (152), 79-98. Consulta 23 de Julio de 2020]. ISSN: 0034-8309. Disponível em:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022040004.p.90
37
Capítulo Terceiro
Séquito Régio
Art. 6º. O séquito régio se comporá dos empregados: Rei, Rainha, dois
Mestres de campo, Arauto, duas Açafatas que terão por obrigação
acompanhar a Rainha. A eleição do Rei e Rainha pertencerá de direito
ao segundo núcleo da irmandade; os mestres de campo e Arauto, serão
escolhidos pelo rei; o lugar das Açafatas será conferido pela Rainha, a
quem lhe convier dentre as irmãs escravas.59
58
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Editora da Universidade Federal do Ceará, 2010. pp.238-239
59
APEC / Fundo do Palácio Episcopal do Ceará Caixa/ Bispado Cearense Compromisso Irmandade do
Rosário Crato
60
Atualmente o nome do logradouro é praça Juarez Távora.
38
Mais uma vez ao amenizar a atitude dos senhores o cronista histórico tenta se
desviar da mácula da escravidão, tenta defender seus senhores e silencia sobre os motivos
da desarticulação da Irmandade do Rosário no Crato, descrita como projeto abandonado
sobre o qual não se questiona o “porquê”.
Figura 3 Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Prainha. Aquarela de José dos Reis Carvalho, 1859.
61
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Editora da Universidade Federal do Ceará,
2010.p.276.
39
escolhido para ser o chão de um lazareto 62, distava uma légua (4,8 km) do centro da
cidade 63 . Segundo Dom Luís Antônio dos Santos, embora o número de jovens
interessados no clericato superasse a expectativa, o difícil acesso ao terreno comprometia
os planos da obra.
A dificuldade em conseguir uma sede apropriada adiou a criação do Seminário
Episcopal de Fortaleza. Até que, em 1864, Dom Luís Antônio dos Santos reivindicou o
prédio que estava sendo construído para ser um colégio para crianças órfãs. Quando as
instalações do Seminário, erguido de forma contígua à Igreja de Nossa Senhora da
Conceição da Prainha, ficaram prontas, realizaram a mudança64; ali conseguiu preparar
as instalações para abrigar e instruir os futuros padres.
Como responsáveis pelo seminário episcopal de Fortaleza, vieram da Bahia os
lazaristas Pedro Augusto Chevalier, francês que foi reitor do seminário até o ano de 1891,
e Lourenço Vicente Enrile, italiano. Apesar dos percalços, existia um consistente
direcionamento quanto ao perfil dos educadores que integrariam o corpo docente e a
direção do seminário cearense. Neste sentido, o Bispo Dom Luís Antônio fazia questão
da condução dos Lazaristas65, como descreve Plácido Aderaldo Castelo em 196471:
62
“o governo imperial havia autorizado esta presidência a mandar a lugar algum prédio particular que
provisoriamente serviço de seminário não tendo sido possível encontrar prédio nenhum com as condições
precisas, meu antecessor de acordo com o reverendíssimo prelado fixou suas vistas no próprio nacional da
lagoa funda o governo imperial aprovou a ideia e autorizou os reparos e acrescentamentos necessários na
importância de 1.800$ a qual já foi toda despedida” p.15 Relatorio apresentado à Assembléia Legislativa
Provincial do Ceará pelo excellentissimo senhor dr. Lafayette Rodrigues Pereira, por occasião da
installação da mesma Assembléa no 1o de outubro de 1864.
63
“No ano de 1855, em sessão da Junta Real da Fazenda, enquanto Paes Barreto era Presidente da Província,
foi autorizada a construção de outro lazareto na cidade, ocupando 112 palmos de frente e 142 de fundo 119,
em terreno adquirido pelo coronel Francisco Xavier Torres (...) no local chamado Lagoa Funda, distante
uma légua da cidade, antevendo ao surto de cólera-morbo que grassava várias províncias como Pará, Bahia
e Rio de Janeiro e ameaçava chegar a Fortaleza. O lazareto foi concluído no ano de 1856”. MARTINS.
Hévila de Lima. Lazaretos da Jacarecanga e da Lagoa Funda: varíola, poder e assistência na cidade de
fortaleza (1820-1880). Dissertação de Mestrado em História UFC, 2013.
64
“Naquela representação sugerir a ideia de alugar ao estado para seminário o excelente edifício que a custa
da Caixa pia e desmontá-las está edificado para colégio de órfãos desvalidos instalando-se estabelecimento
em casas particulares para este fim alugadas” Cf. MARTINS. Hévila de Lima. Lazaretos da Jacarecanga
e da Lagoa Funda: varíola, poder e assistência na cidade de fortaleza (1820-1880). Dissertação de
Mestrado em História UFC, 2013.p.15
65
Sobre a opção de Dom Luís Antônio: “O desejo de Dom Luiz era poder formar um seminário no estilo de
Mariana e Caraça tão bem conhecidos por ele” Cf. FRENCKEN, Geraldo. Em Missão. Padres da
Congregação da Missão (Lazaristas) no Nordeste e Norte do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2010. p.106
71
CASTELO, Plácido Aderaldo. O Seminário da Prainha. Revista do Instituto do Ceará t.. LXXVIII
(1964): 57-79.
40
A opção por um corpo docente formado por irmãos lazaristas foi aprovada sob a
ressalva de devida realização de concurso público, pois o exercício da atividade
remunerada e subsidiada pelo Estado exigia tal formalidade. Este pormenor e outros
detalhes estão relatados em carta do então Ministro dos Negócios do Império José
Liberato Barroso68, com data de 28 de setembro de 1864:
66
COSTA FILHO, Luiz Moreira da Filho. A Inserção do Seminário Episcopal de Fortaleza na Romanização do
Ceará (1864 – 1912). Dissertação. Mestrado em História Social UFC, 2004.
67
Idem p.19
68
José Liberato Barroso (21/09/1830-2/10/1885)
69
APEC / Fundo do Palácio Episcopal do Ceará Caixa/ Bispado Cearense. Caixa 2. Volume I. pacotilha
70
.
41
71
FRENCKEN, Geraldo. Em Missão. Padres da Congregação da Missão (Lazaristas) no Nordeste e Norte
do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
72
Ibid., p.113.
73
COSTA FILHO assim descreve a sequência de disciplinas do curso, tendo como fonte o Álbum Histórico
do Seminário Episcopal do Ceará: “O Curso de Preparatórios tinha a duração de seis anos: o primeiro ano
correspondia às primeiras letras; o segundo, terceiro e quarto anos correspondiam a 1 ª, 2 ª e 3 ª divisão de
Latim; no quinto ano, aprendia-se Retórica e no sexto Filosofia. Nas primeiras letras, os seminaristas
aprendiam Gramática Portuguesa, Aritmética (as quatro operações), além de Música Vocal,
correspondendo a quatro horas e meia de aula, entre manhã e tarde; quanto às divisões de Latim: na 1 ª
divisão, que corresponde ao 2 º ano, os alunos estudavam Gramática Portuguesa, Latina e Francesa,
Geografia, Aritmética (números inteiros) e História Antiga; na 2 ª divisão, ou 3 º ano, estudavam-se
gramática portuguesa, latina e francesa, Geografia Geral (menos a América), Aritmética (frações) e História
Geral (Idade Média); na 3 ª divisão, ou 4 º ano, estudavam-se Gramática Portuguesa e Latina, Aritmética,
Geografia (menos do Brasil) e História Moderna. Vale se ressaltar que nessas etapas anteriores todas essas
matérias eram ministradas por um só lente (mestre); no 5 º ano, ensinavam-se Retórica, Prosódia Latina,
Geografia do Brasil e História do Brasil, Álgebra e Geometria. Já aqui havia lentes específicos para uma
ou mais disciplinas, finalmente, no 6 º ano, a Física e a Filosofia eram as matérias ensinadas.” 78 COSTA
FILHO, Luiz Moreira da. A Inserção do Seminário Episcopal de Fortaleza na Romanização do Ceará
(1864 – 1912). Dissertação. Mestrado em História Social UFC, 2004.p.83
42
Eucaristia, Cícero expressou cedo sua inclinação para vocação religiosa, pois vinha de
uma família de padres. Seu primo em terceiro grau, José Joaquim Telles de Marrocos,
dois anos mais velho e nascido em 26 de novembro de 1842, era filho de José Marrocos,
ou melhor, do Padre Mestre João Marrocos. Professor de Latim, padre João recebeu
Cícero como aluno, além de instruir o próprio filho nas primeiras letras. Os primos
prosseguiram os estudos, na mesma instituição, na cidade de Cajazeiras, na Província da
Paraíba, no colégio do Padre Rolim. Sendo dois anos mais velho que Cícero, José
Marrocos já havia concluído a fase inicial dos estudos quando uma tragédia abalou a vida
de ambos. Os dois jovens perderam seus pais na avassaladora epidemia de cólera que
atingiu o Ceará em 1862.
O nível de instabilidade criado pela epidemia na Província pode ser mensurado
pela suspensão dos ritos sacramentais comuns à cabeceira da morte. Padre Marrocos
morreu sem receber a extrema unção, pois os outros clérigos abandonaram a cidade por
medo da contaminação. Consta que ele mesmo foi acometido da doença devido a sua
dedicação aos doentes que o procuravam em busca de consolo ou da absolvição dos
pecados. Diante do dramático episódio envolvendo o pai, José Marrocos iniciou uma
campanha pela criação de um cemitério 7475 na cidade do Crato. Marrocos apelou ao
Presidente da Província e ao Bispo, alcançando seu intento, como atesta a
correspondência trocada com as autoridades leiga e religiosa. Conta-se que esta passagem
marcou de tal maneira sua vida que, anos depois, já como educador estabelecido na cidade
do Crato, todas as semanas levava seus alunos da escola “até o cemitério dos coléricos,
distante cerca de mil e quinhentos metros, e ali, ao pé da sepultura de seu pai, oravam
pelos que tinham morrido da peste asiática nas epidemias de 1862 e 6480.
A perda do pai também foi muito sentida por Cícero Romão, afastando-o dos
planos de continuar os estudos. Sem condições de pagar pelo curso em Cajazeiras e ainda
tendo que apoiar a família, Cícero foi obrigado a voltar ao Crato para ajudar a mãe e as
irmãs que passavam por grave crise de endividamento, devido à perda do mantenedor da
família. Cícero Romão então assumiu postos de trabalho para garantir algum ganho que
contribuísse com o sustento familiar. O quadro de dificuldades comprometia a realização
74
O ritual fúnebre representava uma “transmigração digna para outra vida” ALEXANDRE, Jucieldo F.
Quando o “anjo do extermínio se aproxima de nós”: representações sobre o cólera no semanário cratense
“O Araripe” (1855-1864) Dissertação de Mestrado. João Pessoa, PB: UFPB, 2010. p.34 80
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Editora da Universidade Federal do Ceará,
75
.p.130.
43
76
BARROS. Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza, 2014 3ª Edição
77
Notei que nos laudatórios pronunciamentos por ocasião do centenário em 1964, no qual surgem listas de
proeminentes prelados, juristas, políticos e literatos, todos egressos do Seminário da Prainha não se faz
referência ao Padre Cícero. SUCUPIRA, Luís. Conferência proferida pelo professor Luís Sucupira em
16/10/1864, no auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.p.274-285
78
Livro de Registro de Ocorrências do Seminário da Prainha páginas 5 e 6 citado por BARROS. Luitgarde
Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph, Fortaleza, 2014.
3ª Edição.
79
O padre Antônio Gomes, aventava a possibilidade de José Marrocos ter tido um confronto doutrinal, pois
“sustentava pontos de vista teológicos considerados errôneos” (ARAÚJO, 1956, p. 48). O historiador Irineu
Pinheiro, que foi seu aluno algum tempo depois, conjecturava sobre a possível falta de vocação do professor
(PINHEIRO, 1963, p. 129). Em pesquisa da década de 1980 Luitgarde Barros expôs o parecer do Conselho
do Seminário Episcopal, em de 22 de maio de 1865, segundo qual José Marrocos foi comunicado que não
seria mais aceito por ser “filho ilegítimo e por causa duma pequena mudança que tinha aparecido nele”
tendo por base o Livro de Registro de Ocorrências do Seminário da Prainha (BARROS, 2014) p.130). Há
divergência quanto à data da expulsão de Marrocos Edianne Nobre (NOBRE, 2015) menciona o ano de
1868 e sustenta que apesar das especulações construídas posteriormente, o fato de sua exclusão esteve
44
inserido no contexto da Reforma Ultramontana, com o objetivo de extinguir as práticas usuais de clérigos
constituírem família e protagonizarem outros atos que afrontassem os direcionamentos do Vaticano.
80
ARAÚJO, Antônio Gomes de. “O Apostolado do Embuste”, Revista Itaytera, Ano II, n° 02. Crato:
Tipografia Imperial, 1956, pp. 03-62
81
Tomado como referência o processo de Ordenação do Seminário da Prainha, Edianne Nobre nos oferece
uma genealogia mais detalhada de Marrocos: “Descobrimos ainda que a avó paterna de Marrocos, era ela
mesma, filha de um padre jesuíta português chamado Alexandre Leite de Oliveira com uma mulata chamada
Teresa de tal Cf. NOBRE. Edianne dos Santos. “Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”: um ensaio
biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910) Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015
p. 80
82
ARAÚJO, Antônio Gomes de. “O Apostolado do Embuste”, Revista Itaytera, Ano II, n° 02. Crato:
Tipografia Imperial, 1956, pp. 03-62 p.52
83
A obra tenta reunir elementos conta a pessoa e a conduta de José Marrocos na questão do “milagre” de
Juazeiro: a transformação da hóstia em sangue na boca da Beata Maria de Araújo no ano de 1889, o fato e
seus desdobramentos serão discutido em itens posteriores deste trabalho.
45
feita por Irineu Pinheiro 84 dos moradores do Cariri do final do século XIX ajuda a
compreender o uso dos termos “cabra” e “caceteiros” utilizados por Antônio Gomes de
Araújo:
O termo “cabra” com o qual se refere à mãe de José Marrocos expressa, para além
de uma descrição ética, uma relação senhorial como descreve Ana Sara Irffi ao tratar do
Cariri cearense do Oitocentos:
84
Irineu Pinheiro (1881-1954) Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Foi o primeiro
presidente do Instituto Cultural do Cariri, em 1953, colaborador em jornais e autor de diversas obras sobre
História do Cariri.
85
Estes “jogos de pau” ou também “maneiro pau” como são mais conhecidos no Ceará, são danças
masculinas muito semelhantes ao Maculelê de origem africana.
86
PINHEIRO. Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a revolução de 1914. 2ª Edição Fac-sililar da Coleção
Centenário, Editora IMEPH, Fortalea 2011p.31
87
IRFFI, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez. “Não existe doce ruim, nem cabra bom” – a invenção de um
conceito para os trabalhadores do Cariri Cearense, século XIX. Anais do Simpósio XXVII Internacional
de História, Florianópolis Santa Catarina, 2015. p.12.
88
O tema é aprofundado na Tese da autora“O cabra do Cariri Cearense: a invenção de um conceito
oitocentista” Doutorado em História UFC, 2015.354f. 94 O Araripe, ano VII, 20 de fevereiro de 1864.N o
300. p.4
46
Oliveira, encontramos mencionados os outros filhos do casal. Anna Francisca, que havia
sido madrinha de batismo89 de José Marrocos, deixa para ele e seus irmãos alguns bens
de raiz ali descritos. Diz a Carta de Doação: “aos meus sobrinhos, filhos do finado padre
João Marrocos Telis: José Joaquim Telis Marrocos, Joaquim Marrocos Tellis, Deusdedit
Marrocos Tellis e Abel Marrocos Tellis”. A prole evidencia que o envolvimento entre
João Marrocos e Maria da Conceição do Amor-Divino não se tratou de uma relação
furtiva entre o “padre” e a “cabra”. A aceitação desta família que tem por patriarca um
sacerdote não causava no Crato, até então, escândalo ou constrangimento. Anos antes,
havia saído da cidade um padre casado, pai de treze filhos e que chegou a Senador e
Presidente da Província do Ceará. Refiro-me a José Martiniano de Alencar, pai do célebre
escritor José de Alencar.
A expulsão de José Marrocos do Seminário não causou, até onde se sabe, grande
repercussão local na altura. José Marrocos iniciou uma promissora carreira de professor,
redator de jornal e ativo militante abolicionista, sendo um dos fundadores da Sociedade
Cearense Libertadora. Antes de abraçar a causa da emancipação, Marrocos ligou-se ao
trabalho do Padre Ibiapina no Cariri, sendo redator do periódico católico A voz da
Religião, fundado pelo sacerdote.
Neste interim, Cícero Romão prosseguiu seus estudos no Seminário de Fortaleza,
sem que tenha registrado de alguma forma sua percepção acerca da expulsão do primo. A
conclusão da formação sacerdotal não foi, entretanto, tranquila para o seminarista. Foi
ameaçado de perder o posto de “Anjo da Guarda”, uma espécie de monitor para os
internos mais jovens, e até foi repreendido por não se confessar com a devida frequência.
89
O doutor Manuel Marrocos Teles e D. Ana Francisca de Oliveira constam como padrinhos de José
Marrocos no Livro de registro de Batismo da Paróquia do Crato, 1841-1842, fls. 87 citado por NOBRE.
Edianne dos Santos. “Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”: um ensaio biográfico sobre José
Marrocos (Ceará, 1842-1910) In Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 p. 80
90
BRAGA, Antonio Mendes Costa. Padre Cícero Sociologia de um padre, Antropologia de um santo. tese
de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, 2007, 412 f. p 63.
47
A intervenção do dispo Dom Antônio Luís foi favorável, a questão das tensões em
torno de sua nomeação geraram debates posteriores, houve quem duvidasse de sua
vocação, como é o caso de um biografo que menciona as divergências ocorridas numa
aula de Teologia na qual se discutia a natureza do sangue que pode aparecer na hóstia
consagrada91
Fato é que o jovem Cícero nem era tão rebelde ou inovador, prova disso é que não
havia uma divergência abertamente expressa entre o recém e o ideal dos Irmão da Missão.
Cícero Romão Batista, julgando-se apto a participar das fileiras dos lazaristas submeteu-
se à ordenação, sendo rejeitado. Ver frustrado o anseio de participar da ordem dos
lazaristas, por ter sua candidatura rejeitada por seus superiores, foi certamente um
desgosto. Exibindo um desempenho considerado mediano, Cícero Romão Batista acabou
por receber as ordens em 30 de novembro de 1870, aos 26 anos, dois anos depois da
avaliação negativa do conselho, talvez o tempo necessário para que o bispo formasse uma
opinião.
Figura 4.Croqui do Seminário São José, Crato. A imagem faz parte da capa do Álbum do
Seminário do Crato: Em comemoração ao cinquentenário de sua fundação. (1875-1925) e
representa a edificação tal como se apresentava na década de 1920, data da publicação.
91
Sem mencionar a fonte que embasa sua narração, Azarias Sobreira descreve um embate que teria
acontecido pouco antes da ordenação de Cícero Romão Batista: “Houve uma memorável aula de
Teologialonge, em que se discutiu a natureza do sangue que, de longe em longe, tem aparecido na hóstia
consagrada, notadamente nas dioceses de Orviedo e Sena, onde ainda hoje se presta solene culto a papéis e
paninhos manchados com o portentoso líquido. Seria apenas um sangue miraculoso, manifestado ao gênero
humano com o fim precípuo de nos fortalecer na fé? Ou seria o próprio sangue do Redentor, outra vez
derramando pela salvação do mundo? Contrariamente á decisão do lente, Cícero esposou, ardorosamente,
o parecer que sustentava a identidade do sangue de Jesus Cristo. Foi debalde que o Padre Chevalier invocou
o clássico texto ao apóstolo São Paulo: “_ Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos , já não morre”. A
48
coisa assumiu tal feição que o Reitor do seminário não se atreveu a apresentar o estudante em apreço para
recepção das ordens sacras” Escrito com o expresso objetivo de exaltar e reforçar a crença em torno dos
fatos extraordinários envolvendo a transformação da hóstia em sangue, o autor aproveita para estabelecer
uma precoce defesa de Cícero Romão Batista no caráter místico do sangue nas sagradas partículas,
atribuindo à Divina pessoa de Jesus Cristo. SOBREIRA. Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1969, p.38
possível descobri-lo embora tenha eu feito as diligências possíveis(...)
por ter Semiterio publico (ilegível) só recebo 400 do defunto adulto
como determina a tabela, pois o maior nº dos corpos que anualmente se
sepultam no semiterio sai por velas dos quais a mesma aplica paga dos
400, assim como dos escravos e dos que não são senhores sui juris.92
Sem que este perfil quase simplório descrito pelo padre Ayres tenha sido muito
alterado, a cidade do Crato recebeu a primeira visita dos padres da Missão em 1872. Eram
92
APEC/ Fundo do Palácio Episcopal do Ceará / Caixa 2, Volume II. Documento avulso.
93
APEC/ Fundo do Palácio Episcopal do Ceará / Caixa 2, Volume II. Documento avulso.
49
o padre Guilherme e o Padre Antônio. Para acolher o grupo de fiéis reunidos em torno
dos missionários “improvisou-se na porta da matriz uma latada de folhas de palmeira”94,
a nave do templo não comportava a multidão. Foi depois deste evento que o ainda
recémordenado, Padre Cícero sugeriu ao Bispo Diocesano a criação de um seminário na
cidade do Crato. A sugestão convergia com o projeto dos lazaristas para o interior da
Província do Ceará. Cícero já havia assumido a capela de Nossa Senhora das Dores no
distrito de Juazeiro do Norte, distante aproximadamente 12 km do centro do Crato
94
Álbum do Seminário do Crato: Em comemoração ao cinquentenário de sua fundação. (1875-1925)
.Rio de Janeiro Typ. Revista dos Tribunaes, 1925 p.29 101 Ibid., p. 29-30.
95
No século XIX circularam no Crato os seguintes periódicos: O Ararype (1855), O Cratense (1859), A Caipora
(1860), Gazeta do Cariri (1860), A Glosa (1860), A Camphora (1862), A Lyra (1863), O Tamborim
(1863), Omnibus (1867), União (1868), A Voz da Religião no Cariri (1868), Infância (1869) A Liberdade
(1876), Echo do Cariry e o Ephoca (1877), Cariry (1884), Vanguarda, O Gênio e O Porvir (1887), O
Cratense, O Grilo e O Gremio (1890), O Artista (1891), Correio do Cariri (1892) e A Liça (1895). Cf.
NASCIMENTO, F. S. Crato: Lampejos Políticos e Culturais. Fortaleza: Edições UFC, 1998.
96
CORTEZ, Antônia Otonite. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Dissertação de mestrado.
Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
50
Estou na cidade do Crato para onde vim tratar do Seminário, cuja fábrica
está bem principiada, donde não sairei sem deixá-lo funcionando, de
novo no novo edifício, situado no mais aprazível e salubre bairro desta
cidade. Como não é possível concluir já uma parte da nova casa, vou
nos princípios de março abrir o Seminário em um prédio alugado, a fim
de aproveitar estudantes, que esperam abertura do seminário e não ficar
o ano letivo defeituoso.99
97
Ibid.,
98
Hospedou-se na casa do Coronel Antônio Luíz Alves Pequeno. Este personagem era o padrinho de Crisma do
Padre Cícero e havia custeado seus estudos no Seminário.
99
O interesse do Bispo no Cariri e no investimento concreto através do seminário está relacionado à necessidade de
uma presença mais efetiva da diocese na região. Ali, poucos anos antes floresceu a missão
51
Advirto que este Seminário do Crato não constitui nova fundação, sendo
apenas um suplementar ao Seminário Episcopal da Capital e dele
inteiramente filial, por isso debaixo do mesmo contrato que com o
Superior Geral celebrei.108
do Padre Ibiapina, concretizada nas casas de caridade mantidas por leigos. Tais casas passaram ao controle
da Diocese e serão objeto de análise no próximo item do presente capítulo.
107
COSTA FILHO, Luiz Moreira da. A Inserção do Seminário Episcopal de Fortaleza na Romanização
do Ceará (1864 – 1912). Dissertação. Mestrado em História Social UFC, 2004 145f.p.36
108
Álbum do Seminário do Crato: Em comemoração ao cinquentenário de sua fundação. (1875-1925)
Rio de Janeiro Typ. Revista dos Tribunaes, 1925 p.33 e 34
superiores que autorizaram o Seminário da Prainha. Padre Enrile seria coadjuvado por
alguns seminaristas brasileiros, como informa a mesma missiva ao Visitador. Antes de se
despedir do Visitador, Dom Antônio Luís ainda registra em sua carta:
100
Álbum do Seminário do Crato: Em comemoração ao cinquentenário de sua fundação. (1875-1925) .Rio de
Janeiro Typ. Revista dos Tribunaes, 1925 p.33 e 34
52
padre, que agregou centenas de mulheres ao longo de décadas e que o bispado desejava
ver sob o controle das lazaristas.
Um dos braços da fundação da Congregação dos Lazaristas, na Província do
Ceará, foi o seu ramo feminino, que se serviu do Colégio da Imaculada Conceição em
Fortaleza, fundado em julho de 1865101. A direção da escola dedicada a educar meninas
ficou por conta das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. A obra tinha por objetivo
proporcionar educação básica e fundamentos cristãos para as futuras mães de família,
inclusive para as órfãs. A construção do Colégio da Imaculada Conceição somou-se,
portanto, à instalação do Seminário da Prainha. Os dois empreendimentos efetivavam
aspectos fundantes para a Congregação da Missão, reafirmando os elementos centrais e
norteadores da ação dos lazaristas, através inspiração em Luiza de Marillac
(12/08/159115/03/1660) e São Vicente de Paulo (24/04/1581-27/09/1660).
A direção e o ensino do Colégio da Imaculada Conceição ficaram a cargo da
reverenda Irmã Margarida Bazet111 e de outras sete irmãs da caridade, todas estrangeiras.
A recepção ao grupo de freiras foi descrita pelos cronistas da época como uma ocasião
agitada na qual a população local cercou as irmãs. Conta-se que nunca tinham visto
desembarcando em Fortaleza mulheres em tal função e estranhavam até as roupas usadas
pelas religiosas. Especialmente impressionados com os grandes chapéus, característicos
dos hábitos das vicentinas, os habitantes da Província chegaram a tocá-los por audaciosa
curiosidade112.
O Colégio da Imaculada Conceição dividia-se em pensionato e recolhimento de
órfãs desvalidas. Quanto aos conteúdos, as pensionistas recebiam aulas de: instrução
religiosa, primeiras letras, gramática nacional, aritmética, geografia, história sagrada,
elementos de civilidade, trabalho de agulha e bordados, desenho, música vocal e piano.
Já as órfãs tinham as mesmas matérias, exceto geografia, história pátria, desenho e piano.
No ano de 1868, contava com 126 alunas, sendo 77 pensionistas e 49 órfãs. Sobre a
manutenção das alunas, encontramos no Jornal Cearense a seguinte descrição: “entre
outras há 12 sustentados pelos cofres provinciais com a subvenção de 3:000$00, as outras
101
Em 15 de agosto de 1865 foi fundado o Colégio da Imaculada Conceição. Em 1884, inaugurou-se o
Externato São Vicente de Paulo onde meninas pobres aprendiam música, leitura e trabalhos manuais. Para
os meninos, filhos de operários e das famílias assistidas pelas Senhoras da Caridade, abriu-se o Externato
Jesus Maria José. Logo após, inaugurou-se o Externato São Rafael, em março de 1901, destinado aos irmãos
das meninas do Colégio da Imaculada Conceição, deste Externato surgiu o Colégio Marista Cearense.
CAMPOS, Gerardo José. Colégio da Imaculada Conceição: do gênese ao apocalipse. Fortaleza: Tipogresso, 1999.
458p.
53
são pela caixa pia e economia do estabelecimento” 113. No mesmo periódico, encontramos
a descrição da missão daquele estabelecimento educacional:
A caridade como ideal e prática e o apoio à instrução das meninas órfãs também
foram elementos fundantes das missões pioneiras do Padre Ibiapina. A educação das
meninas pela disciplina e o ambiente de oração e trabalho coletivo era tido como essencial
para formação de boas mães católicas. A experiência das Casas de Caridade de Ibiapina
111
Margueritte Bazet era seu nome de batismo, sendo natural da França como suas outras companheiras de
missão no Ceará.
112
Segundo descreve documento da Arquidiocese de Fortaleza, foram estas as três primeiras Casas
Religiosas femininas a serem instaladas: Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo –
Chegada à Diocese de Fortaleza em 1865; Congregação das Irmãs de Santa Dorotéia de Frassinetti –
Chegada em Fortaleza em 1916 e Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor , chegada à
Arquidiocese de Fortaleza em 1924. ARQUIDIOCESE DE FORTALEZA – Casas Religiosas Femininas
26 páginas disponível em http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/wpcontent/uploads/2011/02/CASAS-
RELIGIOSAS-FEMININAS.pdf acesso em 20 de abril de 2019. 113 BNDigital Jornal Cearense 10 de
novembro de 1868 anno XXIII, no. 2748, p.3. 114 Idem
aproximava-se da inspiração caridosa e da rígida disciplina das filhas de Caridade
Vicentinas, mas possuía elementos peculiares. Nas casas de Ibiapina, houve, desde o
momento da edificação, uma cooperação da comunidade, que mobilizava trabalhadores e
doadores locais dedicados a edificar e manter uma instituição sem vinculação direta com
a Igreja Católica, ou seja, sem autorização para a construção e funcionamento das casas.
Depois de instalada a casa, reinava uma administração coletiva e auto-organizada sob os
cuidados do missionário e seus colaboradores, não havia ligação direta com a hierarquia
católica, apesar do rígido respeito aos princípios da Igreja. A Casa de Ibiapina era uma
espécie de variante das Casas de Caridade do modelo vicentino, adaptada ao potencial de
realização dos sertões e à solução de necessidades urgentes.
As casas de Ibiapina começam na década de 1860, cinco anos antes da chega das
Irmãs de Caridade ao Ceará, em paralelo como outras iniciativas que agregavam
trabalhadores para construções de açudes, capelas ou cacimbas. Tal animação para o
trabalho era fruto das pregações e do exemplo dos sacrifícios pessoais do próprio Padre
Ibiapina, que percorria longas distâncias, pregava, aconselhava e demonstrava abnegado
ânimo. Assim, criou-se uma rede assistencial em torno das Casas de Caridade. O grau de
54
autonomia que algumas internas experimentavam provocou muitas reações, tal como
descreve o bispo de Sobral102, Dom José Tupinambá da Frota:
102
A Diocese de Sobral foi criada a 10 de novembro de 1915 pela bula “Catholicae Religionis Bonum” do
Papa Bento XV, sendo desmembrada da então Diocese de Fortaleza, sendo Dom José Tupinambá seu
primeiro bispo.
103
FROTA. Dom José Tupinambá da. História de Sobral, 2ª ed. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno,
1974 p.256
104
As Crônicas de uma coleção manuscrita realizada por autores diversos e em momentos distintos, ao modo
de capítulos reunidos.
105
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza, Museu do
Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006 p. 127
106
HOORNAERT, 2006,p.86
55
107
BARROS. Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza , 2014 .3ª Edição.
56
através da caridade dos senhores, dentro dos parâmetros religiosos” 108 . Esta inversão
simbólica vivenciada no momento do banquete se desdobrava nas diversas maneiras pelas
quais a comunidade unia esforços, organizava recursos e fazia com que as casas de
caridade estabelecessem uma relação orgânica com as comunidades nas quais estavam
inseridas.
Na verdade, ao contrário do que afirma Luitigarde Cavalcanti, as moças com
alguma condição de sustento não estavam afastadas das atividades coordenadas por
Ibiapina; eram internas nas Casas de Caridade com contribuição mensal, na condição de
pensionistas. As pensionistas eram advertidas de que não receberiam tratamento
diferenciado daqueles dados às órfãs, conforme estabelecido no Estatuto das Casa de
Caridade. As jovens, tanto pensionistas quanto as órfãs, eram preparadas para serem boas
esposas e mães católicas, inclusive, porque havia um fundo de caridade para o casamento,
além de arranjos para a escolha de bons maridos109. Neste sentido, a obra de Ibiapina
inspirava-se mais no trabalho das Santas Casas de Misericórdia espalhadas pelo Império
Português durante o período moderno, que previam acolhimento de meninas órfãs, como
a do Rio de Janeiro e a de Macau110. Ao tratar do tema, Gilberto Freyre refletiu acerca da
estrutura física das edificações e identificou traços do predomínio feminino na
administração e na oferta de serviços das Casas de Caridade à comunidade.
108
REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no cariri cearense: terra, trabalho e conflitos na
segunda metade do século XIX. 2014. Tese (Doutorado em História Social) - Programa de Pós-
Graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014 pp.202-203
109
BARROS. Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza , 2014 .3ª Edição
110
Cf. BITTENCOURT, Marta Tavares Escocard.. A infância nos recolhimentos da Santa Casa de
Misericordia do Rio de Janeiro (1890- 1919). Niterói, Universidade Federal Fluminense, Dissertação de
Mestrado, 1991; MANSO, Maria de Deus; SEABRA, Leonor Dias de. Escravatura, concubinagem e
casamento em Macau: séculos XVI-XVIII. Revista Afro-Ásia, Salvador, no. 49, jan/jun.2014.
57
Freyre revela em sua análise um dos motivos que teriam motivado a intervenção
do bispo de Fortaleza na substituição do modelo de gestão mais independente das Casas
de Caridade do padre Ibiapina pelo sistema das Filhas da Caridade de São Vicente de
Paulo, submetido à autoridade diocesana e ao provincial da ordem. O papel da instrução
125
é destacado no Estatuto das Casas de caridade que em seus primeiros artigos do
Capítulo 1 estabelece:
Art.1o. Têm dois fins as Casas de Caridade desta Instituição, e vem a ser
a educação moral e o trabalho.
111
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 16. ed. São Paulo: Global, 2006, p. 51 . TOMO 2 125 Utilizei
aqui a versão dos “Estatutos para as casas de Caridade estabelecidas pelo Padre José Antônio de Maria
Ibiapina para conseguir-se o fim da Instituição” que foi publicada por Irineu Pinheiro no livro “O Cariri”.
O documento foi extraído do arquivo da Matriz de Barbalha. Segundo Irineu Pinheiro a obra foi
disponibilizada para transcrição pelo advogado Bernardino de Carvalho Leite, com autorização do vigário
daquela paróquia, o padre José Correia Lima. Trata-se PINHEIRO, Irineu. O Cariri, coedição Secult/
Edições URCA. Fortaleza Edições UFC, 2010. p.150-154
58
casas da região (Crato, Barbalha e Milagres). Sobre o funcionamento diário desta casa de
Missão Velha em 1865 um cronista escreveu:
112
PINHEIRO, Irineu. O Cariri, coedição Secult/ Edições URCA. Fortaleza Edições UFC, 2010. p.155
113
COMBLIN, J. Padre Ibiapina. Edições Paulinas 1993, p.43
59
quadro descrito décadas depois nos dá conta dos últimos anos das Casas de Caridade. As
do Ceará foram extintas, mas na Paraíba ainda foram vistas por Celso Mariz que descreve
sua visita a Casa de Caridade de Santa Fé, na Paraíba:
A imagem a seguir revela a manutenção do hábito, tanto nas superioras quanto nas
alunas, já idosas como bem descreveu Mariz após sua visita datada de fins da década de
1970. A permanência deste último núcleo, hoje desativado, certamente se deve ao fato de
lá ter sido a última parada do Padre Ibiapina, que ali faleceu. Atualmente, o local abriga
um memorial e não existem mais irmãs.
114
MARIZ, Celso. Ibiapina: um apóstolo do Nordeste. 2.ed. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 1980. p.192.
60
115
MARIZ, 1980, p.32
61
Figura 4. Reprodução da parte superior da primeira página do jornal A Voz da Religião no Cariri
116
Optou-se aqui pela transcrição das fontes em linguagem atualizada.
62
domingos, sendo distribuído nas vilas de Barbalha, Missão Velha, Milagres, Porteiras,
Goyaninha e Jardim117.
Figura 5. Mapa modificado para localizar as casas de Caridade de Ibiapina no Ceará. Construído a
partir da “Carta chorographica da Província do Ceará com divisão eclesiastica e indicação da civil
judiciária” de 1861, disponível na divisão de cartografia do acervo Digital da Biblioteca nacional
(http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia)
VERAS. Elias Ferreira. O “echo das maravilhas”: O jornal A voz da religião no Cariri e as missões do
117
Padre Ibiapina no Ceará (1860-1870) Dissertação de Mestrado em História Social Pontifícia Universidade
Católica São Paulo 2009
63
118
Nasceu em 05 de agosto de 1806, em Sobral, na província do Ceará. Filho de Francisco Pereira e Maria
Thereza de Jesus. Faleceu em 19 de fevereiro de 1883, na Paraíba.
119
RIBEIRO. Josiane Maria de Castro Entre a penitência do corpo e o corpo em festa: uma análise das
missões do padre Ibiapina no Ceará (1860 –1883). Dissertação de Mestrado em História Social. UFC2003
134
Idem
120
O Caldas é um pequeno distrito de Barbalha-Ce, fica bem ao sopé da Chapada do Araripe e possui diversas fontes
de água. (ver localização no mapa/ figura 5)
64
divulgar a missão e as ideias do Padre, por isso o jornal a Voz da Religião no Cariri
publicou em capítulos o Estudo das Missões do Cariri Novo nos anos de 1864 e 1868, de
Bernardino Gomes de Araújo 121 . Além disso, não raro encontramos uma produção
literária diversa contendo discursos, poemas, benditos, narrativas exemplares, cartas e
editoriais de autoria do próprio Padre Ibiapina.
No número de estreia, logo na primeira página, o editorial apresenta e descreve a
missão do jornal. O texto revive o drama dos “dias lutuosos de 92 e 93”, referindo-se ao
período da Revolução Francesa, mas sem recorrer ao uso deste termo. Ressalta o risco da
perda da fé que faz “os homens que antes são bons pais, cidadãos e esposos se tornarem
feras armadas contra si, contra os outros e contra a sociedade”. Em seguida, expõe
claramente a “desgraça” de um país sem a fé católica, apostólica, romana122:
121
Bernardino Gomes de Araújo, era Professor em Missão Velha. Recebeu a insígnia de Cavalleiro de
Christo pela dedicada atuação no combate à epidemia de cólera como enfermeiro. (15/05/1811-?)
Diccionário Bio-bibliográfico Cearense-Barão de Studart.
122
Optou-se nesse trabalho pela transcrição da fonte com atualização da grafia das palavras.
138
A voz da Religião no.1 p.1. 08 dez 1868. Grifo meu.
65
123
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 16. ed. São Paulo: Global, 2006, p. 53 TOMO 2 140
BARROS, Luitgarde. A terra da Mãe de Deus. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.p.123/124
141
MARIZ, Celso. Ibiapina, um apóstolo do Nordeste. João Pessoa: União, 1942.
124
“A Voz da religião no Cariri” doravante VRC.
125
A lei 2040 de 28 de setembro de 1871, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre” ou “Lei Rio Branco”,
criou a figura do “filho livre da mulher escrava”, isto é, as crianças “ingênuas”. LAMOUNIER, Maria
Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre. Campinas, Papirus, 1988,p.114.
66
Reproduzido pelo jornal católico que o padre editava e circulava no sertão do Cariri,
o episódio dava a conhecer nas cidades ao pé da Chapada da Serra do Araripe que meninas
libertas doravante não seriam “perdidas”, comprovando a simpatia do Padre Ibiapina com
as causas abolicionistas. Naquela manhã de verão, na Paraíba, o padre e o juiz de órfãos
romperam alguns “protocolos”. O primeiro foi a solicitação do ingresso de moças órfãs,
já que a casa em seu estatuto previa a admissão de meninas. O segundo protocolo
quebrado foi a pública declaração da manumissão da pequena de oito anos. O nome da
menina não aparece no relato do jornal, mas nas Crônicas das Casas de Caridade
encontramos a seguinte passagem:
126
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 20 de fevereiro de 1870
127
Idem p.04
128
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza,
Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006. p. 133.
129
Encontramos partes do artigo nas edições 41ª. (de 17 de outubro de 1869); 42ª. (de 24 e outubro de
1869) e 43ª (de 7 de novembro de 1849)
67
Mas uma apreensão sombria e triste nos vinha assustar no gosto que
tínhamos presenciando o catecismo diário de mais de duzentos
meninos, alguns dos quais apanhados à carreira e trazidos ao círculo
como recrutas, é que dele eram excluídos os escravos.130
130
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 17 de outubro de novembro de 1869 N O.41.
149
A Voz da Religião no Cariri, 7 de novembro de 1869 N O.43. Grifo meu.
68
131
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 7 de novembro de 1869 N o.43 (Grifo meu)
69
Dr. Antônio Joaquim de Couto Cartaxo, por ocasião da instalação da Santa Casa de
Caridade da Vila de Milagres, em 29 de junho de 1869, discursava:
Neste sentido, o periódico insere-se numa questão que não era nova aos católicos
brasileiros: como lidar com a escravidão? A historiografia trata a questão levando em
132
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 1 de agosto de 1869 N o 31p.3 continuando em A Voz
da Religião no Cariri , 8 de agosto de 1869 No 32, p2.
133
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 2 de outubro de 1870 N o 75. p.2
70
conta as formas pelas quais se legitimou a escravidão, sem deixar que silenciem outras
vozes que se sensibilizaram com a condição dos escravizados.
Para Ronaldo Vainfas 134 , podem ser mapeadas quatro visões essenciais da
legitimidade da escravidão. A primeira toma por referência a escravidão como
consequência do pecado original, sendo o escravo um pecador e consequentemente
submetido à condição de penitente. Tal concepção relaciona-se à maldição sobre Caim,
filho de Noé. Foi Santo Agostinho o primeiro a relacionar a maldição contida no
Gênesis135 à condição dos escravos de seu tempo. Ao explorar a obra Economia Cristã
dos Senhores no Governo dos Escravos, de Jorge Benci136, Vainfas destaca a apropriação
que este autor faz de termo Caim/Canaã para a construção do ideal do “servo cristão”:
“escravo por natureza e fruto do pecado, isto é, africano/negro” 137 . A segunda visão
discutida pelo autor identifica os africanos como filhos de Coré (filhos do calvário),
articula-se à primeira visão, pois aquele pecado original pode ser superado pelo
padecimento, sendo a escravidão possibilidade de salvação. “E na guirlanda barroca de
Vieira, os etíopes (negros) são eleitos de Deus e feitos à semelhança de Cristo para salvar
a humanidade através do sacrifício”138. Uma terceira visão justifica a escravidão como
única possibilidade de gerar riquezas no Brasil. Tal percepção, encontrada no jesuíta
italiano Antonil (1649-1716), teria como base o entendimento do escravo como extensão
física de seu senhor. O fato é que, ao afirmar que os “escravos são as mãos e os pés dos
seus senhores”, toma-os como prolongamento daqueles, ao que Vainfas relaciona a
concepção aristotélica de propriedade. Compreendo que esta interpretação deixa uma
ambiguidade: pode ser percebida como crítica à inércia, à acomodação e aversão ao
134
VAINFAS. Ronaldo. Ideologia e escravidão: Os letrados e a sociedade escravista no Brasil Colonial Petrópolis:
Vozes 1986 Coleção História Brasileira/8
135
Em Gênesis 9:20-27 encontramos a seguinte narrativa: “Estes três foram os filhos de Noé; e destes se
povoou toda a terra/E começou Noé a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha/E bebeu do vinho, e
embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda/E viu Cão, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo
saber a ambos seus irmãos no lado de fora/Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre ambos
os seus ombros, e indo virados para trás, cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos estavam virados, de
maneira que não viram a nudez do seu pai/E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor
lhe fizera./E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos/E disse: Bendito seja o Senhor
Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo/Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã
por servo.”
136
Jorge Benci de Arimino (1650-1708). Jesuíta italiano e autor de obra “Economia Cristã dos Senhores
no Governo dos Escravos”, que inicialmente seria um sermão e foi enviado já como livro para Roma em
1700 e publicado no ano de 1705.
137
VAINFAS. Ronaldo. Ideologia e escravidão: Os letrados e a sociedade escravista no Brasil Colonial Petrópolis:
Vozes, 1986, p.96
138
Idem p. 97
71
Já a pesquisa de Italo Domingos Santirocchi, mesmo não tendo como tema central
a questão da abolição, acaba por registrar diversas iniciativas que evidenciam o ânimo
abolicionista 140 . Um exemplo foi Dom Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão
(18411924), “formou-se na França entre os Padres das Missões de S. Vicente de Paulo e
seguiu o estado eclesiástico, professando na referida congregação em 15 de junho de
1867. Exerceu seu ministério em diversos pontos do Brasil, principalmente no Ceará e
Rio de Janeiro, sendo por algum tempo vice-reitor do Seminário de S. José na Corte”160.
Quando esteve em Goiás protagonizou “uma ação muito brilhante junto aos vigários sobre
a abolição total da escravatura, conseguindo que numerosos padres dessem alforria aos
cativos que possuíam, como homenagem ao jubileu de Leão XIII”141.
139
PEREIRA. Camila Mendonça. Abolição e Catolicismo: a participação da Igreja Católica na extinção
da escravidão no Brasil. Dissertação de mestrado em História. Universidade Federal Fluminense,
2011.p.147.
140
Antônio Maria Correia de Sá e Benevides, (1836-1896), Bispo de Mariana-MG “favoreceu a abolição
da escravidão, alforriando todos os escravos do Recolhimento de Macaúbas e fundando, em Mariana, em
24 de setembro de 1885, a Associação Marianense Redentora dos Cativos, para comprar a liberdade dos
escravos. Em favor deles, no ano sucessivo, escreveu uma circular (19 de outubro de 1887)”
SANTIROCCHI, Italo Domingos: Os Ultramontanos O Brasil e o regalismo do segundo império
(18401889). Pontifícia Universidade Gregoriana/Faculdade de História e Bens Culturais Da Igreja. Tese de
Doutorado. 2010.p.285 160 Ibid., p.289.
141
Ibid p.290.
72
142
Segundo a biblioteca digital do IBGE, A Vila Distinta e Real de Sobral foi criada em 1773. Em 1841 tornou-
se cidade. Está localizada a 230km da capital, Fortaleza.
143
O autor menciona notícia que teria sido publicada pelo Jornal Correio da Semana de SobraL-CE no
ano 1926 e não oferece maiores detalhes. Não foi possível localizar, nos arquivos consultados, esta
notícia em seu contexto original.
144
Trata da questão da saúde do escravizado o trabalho: FERREIRA Priscila d’Almeida. Memórias de
males e curas: escravidão, doenças e envelhecimento no Sertão da Bahia no século XIX. Tese de Doutorado
– Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. 2017.
73
“A fonte do Caldas, que tem sido muito notável pelos milagres que Deus
tem obrado com suas águas, desde as missões de meu pai em 1869,
presentemente se acha rodeada de choupanazinhas de palhas verdes de
palmeiras que fazem os romeiros e os povos que vêm à missão, para se
ampararem da chuva, por que sombra tem em abundância”166
O trecho registra a constância na busca às águas que curam, também deixa ver
um pouco do cenário improvisado para abrigar os “romeiros”. Um relato que se soma
145
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 25 de dezembro de 1868 Ano 1 NO.4 p.2 166
Trecho presente no item “Itinerário do irmão Aurélio”, que descreve uma jornada no ano de 1869
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade.fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza,
Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006
74
ao do Caldas como indicação de lugar para curas é o açude construído durante uma
missão de Ibiapina na cidade de Milagres, ali banhos e unguentos feitos com a lama do
açude são descritos como milagrosos. 146 . Mas não bastava correr aos banhos e os
unguentos argilosos para receber a graça, afinal muitos voltavam sem o alívio de suas
dores. Há uma passagem que adverte acerca da conexão entre a prática dos banhos em
águas curativas e a rigorosa observação dos sacramentos:
A FONTE MIRACULOSA
(...) Mais um curativo milagroso teve lugar na pessoa de uma escrava
do Senhor João do Espirito Sancto Corrreia.
Este pobre sofria a 3 anos de paralisia nas pernas e para dar algumas
passadas servia-se do cacete e de muleta…
Foi tomar banhos na nascente do Caldas, onde se demorou três dias, lá
deixou a muleta.
146
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade.fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza,
Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006 P.114 e p. 122
147
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade.fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza,
Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006 p. 112
148
Idem , p112
75
Ontem aqui veio ouvir missas, trazia o bordão, por que lhe faltava algum
equilíbrio nas pernas, que a tanto tempo não se exerciam.149
Aqui, conhecemos através do registro o nome do senhor, mas a mulher que sofreu
por três anos de uma moléstia que lhe paralisou as pernas, permanece anônima. O fato de
ter permanecido por três dias no Caldas denota que possivelmente houve um acordo para
que se ausentasse, certamente por mais de três dias, se pensarmos no tempo que se levava
para ir e vir, especialmente alguém com saúde precária a percorrer as íngremes trilhas do
sopé da Chapada do Araripe. Mesmo acometida de paralisia, talvez esta mulher ainda
prestasse serviços na casa do seu senhor. A diversidade de formas de aproveitamento do
trabalho feminino é descrita por Eurípedes Funes ao esclarecer que “as mulheres escravas
eram costureiras, rendeiras, fiandeiras”150, além da possibilidade de sazonalmente serem
aproveitadas na labuta da lavoura em épocas de colheita.
Outro registro repete o destaque ao nome do senhor e ausência do nome da
escravizada: “uma escrava do Sr. Capª. João Victorino Gomes, anêmica e opilada,
apresentava todos os sintomas de uma hepatite aguda, tomou banhos e hoje confessa estar
boa”151. Um outro depoimento nos revela que a ida à “Fonte Miraculosa” podia ser feita
conjuntamente, ou seja, senhores e escravizados se deslocavam em grupo em busca dos
alívios:
Aqui ficou registrado o nome de Francisco. Ele fez parte do grupo que reunia o casal
Almeida e sua sobrinha. Todos se dirigiram ao Caldas em busca das graças. O relato
registrado no jornal nos permite questionar se Francisco teria amparado e servido a seus
senhores enquanto o grupo se deslocava em direção à famosa fonte e se lá chegando
aproveitou a chance de banhar-se para livrar-se da asma. Seja como for, entrou para o
149
A Voz da Religião no Cariri, 25 de dezembro de 1868, N O4
150
FUNES, E. A. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone (Org.). Uma nova história do Ceará, 3. ed. Fortaleza:
Edições Demócrito Rocha, 2004, p.113.
151
Voz da Religião no Cariri, 24 de janeiro de 1869 NO 8. Obs: está impresso errado o cabeçalho desta edição, é o
ano de 1869 e consta 1868.
152
A Voz da Religião no Cariri, 11 de novembro de 1869, NO. 44
174
Idem
76
computo dos agraciados. O jornal editado por José Marrocos, primo do Padre Cícero, não
fazia distinção entre os beneficiados. Outra questão que os relatos omitem, mas cabe
colocar diz respeito à organização dos grupos que adentravam a fonte. Imaginar senhores,
escravizados, crianças, idosos, mocinhas e doentes graves revezando-se num banho é
curioso. Quais teriam sido as regras engendradas pelos pudores e pelas hierarquias
vigentes?
O número dos romeiros, que ficam, é bem numeroso, e testemunha do que viu
e ouviu não pode deixar de ser crente (...)
Realizando-se pois mais curativos, peço, Sr. Redactor, que se me permita
registrá-los na imprensa, para deixar ao menos uma memória do muito que se
deve ao Venerável Ibiapina, que legou a pobre humanidade sofredora, a
preciosa fonte de saúde. 174 Caldas 30 de Agosto 1869.
153
BNDigitalA Voz da Religião no Cariri, 20 de junho 1869 No.26
77
MANUMISSÃO.
Mas um ato de caridade evangélica em favor da escravatura.
A Exma. Srª. D. Joanna Palcheria Mascarenhas natural e residente na freguesia
do São José de Missão Velha acaba de dar carta de liberdade a quatro escravos
únicos, que possuía, segundo nos afirmam.
Os libertados eram aptos para todo serviço e na idade a mais florescente, sendo
uma escrava de nome – Joanna, 30 anos, Raymundo, 15, Maria, 12, e João 7
anos.
Imitassem todos estes belos exemplos, e a escravidão desapareceria de todo o
Brasil em menos de um ano.155
154
FUNES, E. A. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone (Org.). Uma nova história do Ceará, 3.
ed.Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004, p..117
155
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 23 de julho de 1870 No 67, p.4
78
156
ABREU, Martha. “Romanização”. In Dicionário do Brasil Imperial. VAINFAS, Ronaldo (org.). Rio
de Janeiro: Objetiva, 2002.p.660-661
79
157
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 20 de dezembro de 1868, no.3
80
158
“Hino à Sociedade Cearense Libertadora. Composto e oferecido com a respectiva música por Frederico
Severo, para ser cantado na tarde de 25 de março por ocasião da libertação dos escravos pela mesma
sociedade.” Libertador 24 de março de 1881, No 7. p.4
159
. Saboeiro fica no sertão dos Inhamuns, no Ceará, e está inserida na paisagem característica do sertão semiárido.
As cidades de Saboeiro e Crato distam aproximadamente 142 Km
160
Um apurado estudo sobre escravização ilegal envolvendo uma mulher chamada Hypolita, que transitou
entre o Crato-CE e Exu-PE, foi desenvolvido por PEDROZA, Antonia Márcia Nogueira. Desventuras de
Hypolita: luta contra a escravidão ilegal no sertão (Crato e Exu, século XIX), RN : EDUFRN, 2018.
(Coleção História e espaços)
161
Órgão da Sociedade Cearense Libertadora criado em 1881, publicação quinzenal que circulou até o ano de
1892.
81
E este crime jaz impune, tem sido denunciado diversas vezes ao chefe
de polícia e ao presidente do Ceará.
Mas nas repartições públicas há uma pedra tumular que se bota em cima
de certos papéis....
E se hoje revivemos a questão, é porque o direito do infeliz não
prescreve e há uma pedra de toque que verifica o caráter oficial.162
162
BNDigital Jornal Libertador 3 de março de 1881 No.5.p.3/4
163
A expressão remete ao uso de material lítico para testar a pureza de ligas, em especial o uso da pedra de
jade para testar a qualidade do ouro.
164
Libertador 3 de março de 1881 No.5.p.3/4
165
SOUZA. Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha Riqueza é Fruto do meu Trabalho”: negros de
cabedais no Sertão do Acaraú (1709-1822), Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,
2015.223f
82
188
BNDigital Jornal Libertador, 3 de março de 1881, Ano I, no. 5. Nesta edição encontramos: Marcos, livre,
vendido por Clementino de Holanda Lima em 1876” p.4; “ Fausta, livre, dada em pagamento de uma dívida”
p.2 e “Benedicto, declarado livre por seu senhor em leito de morte, e depois vendido pelos herdeiros” p.2
188
Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara (1812-1868), foi um magistrado e político
brasileiro que exerceu o cargo de Ministro da Justiça entre os anos de 1848 e 1852. 189 BNDigital Jornal
Libertador em 3 de março de 1881, Ano I, no. 5, p3
busca de amparo possibilitava a perda de documentos, a separação de parentes e outras
circunstancias que podiam facilitar a ação dos que tinham a intenção de tomar pessoas
por escravas e vendê-las.
Mesmo o drama de Francisca tendo começado em 1845, evidencia uma tendência
que se fortalece com o aquecimento do tráfico interprovincial. No caso de José, ocorrido
em 1878 vigorava a Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, que ficou conhecida por Lei
Eusébio de Queiros166. Estabelecia aquele dispositivo a apreensão de embarcações que
transportassem africanos ou que, mesmo sem a presença destes, tivessem características
que evidenciassem terem sido utilizadas para este fim. Todos os envolvidos no transporte
ilegal seriam punidos desde o dono, passando pelo o “capitão ou mestre, o piloto e o
contramestre da embarcação, e o sobrecarga”167 eram considerados cúmplices, inclusive
“os que coadjuvarem o desembarque de escravos no território brasileiro”.
166
Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara (1812-1868), foi um magistrado e político brasileiro que
exerceu o cargo de Ministro da Justiça entre os anos de 1848 e 1852.
167
Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850-Estabelece medidas para a repressão do trafico de africanos neste
Império.(disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM581.htm) acesso às 22:00 do dia
05/07/2020
84
168
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o
Brasil (1800-1850). Campinas, Editora da UNICAMP, 2000.
169
CONRAD. Robert Edgar. Tumbeiros- O tráfico escravista para o Brasil Editora Brasiliense s.a. São
Paulo,1885.p.199.
85
170
Sobre os bens do Coronel Alves Pequeno: “Um dos mais representativos membros da classe senhorial
no Cariri foi o Coronel Antonio Luis Alves Pequeno. Político, juiz, arrendatário do Mercado Municipal por
quase quatro décadas, proprietário de terras em várias localidades - onde criava gado e tinha lavouras, loja
comercial, com o maior patrimônio encontrado nos inventários utilizados nessa pesquisa”. REIS JUNIOR,
Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra, trabalho e conflitos na segunda
metade do século XIX / Tese de Doutorado em História Social, Universidade Federal do Ceará- UFC,2014.
302f. p.149
171
Uma breve descrição dos delitos do Coronel Alves Pequeno: “Resumindo, as principais irregularidades
seriam que, Antonio Luis Alves Pequeno mandara construir um açude no principal rio da Cidade, obra que
não teria boa qualidade, além de utilizar cal comprada em seu armazém. Segundo os vereadores, ao final,
a obra não teve como ser utilizada. Além disso, o presidente da comissão de socorros teria comprado com
recursos públicos, estopa em seu próprio armazém e mandado entregar aos pobres, para que assim,
carregassem terra para a obra do Cemitério público. Por fim, o serviço prestado pelos migrantes estaria
sendo pago com rapaduras de péssima qualidade, enquanto que, as comissões de outras cidades faziam o
pagamento em dinheiro”. REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense
:terra, trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX / Tese de Doutorado em História Social,
Universidade Federal do Ceará- UFC,2014. 302f.p.283
172
CAMPOS, Eduardo. Imprensa abolicionista, igreja, escravos e senhores: estudos. Fortaleza: BNB, 1984. p.23
86
173
A citação do jornal Libertador refere-se ao versículo 39 do capítulo 22 do livro de Mateus da Bíblia
Sagrada, ali lemos: “E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo”. Esta passagem
narra que Jesus, ao ser questionado por fariseus, estudiosos da Lei Judaica, sobre qual seria o maior
mandamento, responde que é amar a Deus. Em seguida fala do segundo mandamento, que é o amar ao
próximo. Textualmente, entre os versículos 36 e 39 do capítulo 22 de Mateus: "Mestre, qual é o maior
mandamento da Lei? "/Respondeu Jesus: " ‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua
alma e de todo o seu entendimento’/Este é o primeiro e maior mandamento/E o segundo é semelhante a
ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’.
87
instituição religiosa, o apelo aos valores cristãos, com destaque para o sentimento de
empatia é sugerido pelo trecho em questão.
A primeira edição que não traz a epígrafe “ama a teu próximo como a ti mesmo” é
a do dia 28 de setembro de 1881. Uma edição que traz homenagem à lei do Ventre Livre,
nesta edição celebrou-se também o apoio dos tipógrafos, grupo expressivo na dinâmica
política da Província. 46 trabalhadores de diversos jornais assinam notas de apoio à
Sociedade Libertadora e à causa da abolição. Seus nomes figuram abaixo do nome dos
respectivos veículos: Cearense, Gazeta do Norte, Constituição, Pedro II, Mequetrefe,
Jornal do Commercio e Equador.
A homenagem aos dez anos da Lei do Ventre Livre, em seu texto de abertura
menciona “Cristo”, mas não se trata de um apelo aos sentimentos cristãos como ocorria
com epígrafe citada anteriormente. Agora o Cristo foi retomado como símbolo de
redenção, evocando um Novo País, uma possibilidade de futuro, uma alegoria teleológica.
174
O libertador 28 de setembro de 1881, p.1/ edição no 19
88
O relato recompõe aspectos dos embates para tornar o Libertador viável, de fato
nesta nova fase surge com design mais limpo e atraente. As aventuras para fazer o jornal
circular revelam uma significativa arena da mobilização anti-escravista, mas este
engajamento arrefeceu depois da abolição cearense (1884), permanecendo ainda presente
até a Lei áurea.
As mudanças no subtítulo do Libertador176, pequeno trecho descritivo que aparece
na primeira página, evidenciam a dinâmica dos acontecimentos políticos e o destino do
grupo. Depois de anos convergindo em torno da causa abolicionista, se dispersa em
correntes políticas diversas.
A trama social do pós-abolição está intercalada por relações tensas, contraditórias e
desiguais. O lugar das elites não foi erodido pela liberdade conquistada por homens e
mulheres, ao contrário, as sólidas bases nas quais os poderosos de apoiavam foram
verdadeiros diques de contenção dos fluxos possibilitados pela conquista da liberdade,
uma estrada palmilhada até nossos dias. “a pungente realidade de uma prática capaz de
suscitar esperanças e ilusões nos homens e mulheres que palmilharam um caminho minado de
armadilhas, o da liberdade177
O raiar da possibilidade da abolição como uma onda que varreria a servidão no país
foi uma ocasião festiva em terras alencarinas, uma “grande ocasião”, cujo fulgor buscou
descrever a seguir. A aquela tarde agitada na capital da província, Fortaleza, pode nos
revelar que marcas de um passado escravistas e as contradições que não se apagam da
noite para o dia. A ocasião festiva é reveladora de tensões.
175
Libertador, 2 de novembro de 1882. ANO II, No. 1. p.2
176
Libertador- órgão da Sociedade Cearense Libertadora (1881) /Libertador – órgão dos interesses do
País (a partir de janeiro de 1885)/Libertador- Diário da Tarde/Libertador – órgão do Centro Republicano (
fevereiro de 1891)
177
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003, pp.180-181.
89
Luvas brancas de pelica com oito botões, grampos de tartaruga, espartilhos de todos
os tamanhos e muitas outras novidades elegantes estavam descritas no anúncio da loja
“Louvre” em Fortaleza. A publicidade ocupava grande parte da primeira página do jornal
“Libertador”178 do dia 18 de março de 1884. Antes de listar os mais de quarenta itens de
moda disponíveis, a loja de artigos finos e importados destacava:
Em vista do programa publicado no “Libertador” de ontem de grande e
deslumbrante festa o Louvre declara a seus fregueses e ao público em
geral que se encontra prevenido com um esplêndido sortimento de tudo
quanto pode ser preciso para bem abrilhanta-la.179
A cidade que se preparava para a festa respirava “novos ares” com a implantação
de um plano urbanístico que alinhou e alargou vias, garantindo a circulação e um padrão
estético para as fachadas, praças e ruas. Fortaleza era a capital da província do Ceará
178
Órgão da Sociedade Cearense Libertadora criado em 1881, publicação quinzenal que circulou até o
ano de 1892.
179
BNDigital Jornal Libertador 18 de março de 1884, página 1.
90
180
Fortaleza passou a Vila de Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção em 13 de abril de 1726. 205
BARBALHO. Alexandre. Corpos e Mentes Dilacerados: O grotesco nas imagens da seca de 1877. In
Trajetos. Revista de História UFC. Fortaleza, vol. 3, na 6, 2005.
181
Fortaleza possuía uma biblioteca pública, contava com instituições como a Academia Cearense de
Letras e a Academia Francesa, além do Instituto Histórico e Antropológico
182
Sobre o tema dispomos das obras de OLIVENOR, José. “Metrópole da fome”: a cidade de Fortaleza
na seca de 1877-1879. In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro (Orgs.). Seca. Fortaleza: Edições
Demócrito Rocha, 2002. (Coleção Fortaleza: história e cotidiano) e VIEIRA. Tanísio. Seca, disciplina e
urbanização: Fortaleza – 1865-1879. In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro (Orgs.). Seca.
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. (Coleção Fortaleza: história e cotidiano).
91
manumissões e de seu jornal, O Libertador, que se tornou uma das principais armas de
combate à escravidão na Província do Ceará.
Criado em 1881, o periódico de publicação quinzenal circulou até o ano de 1892.
Em sua primeira página, em diversos números, encontra-se em tipos grandes e em negrito
a seguinte mensagem: “este jornal é destinado à propaganda de interesses abolicionistas,
órgão da Sociedade Cearense Libertadora, aceita qualquer publicação concebida nos
termos do seu programa [abolicionista] ”183. Eram, entretanto, os eventos organizados
pela própria Sociedade Cearense Libertadora que cobriam a maior parte das notícias do
jornal. 184 A publicação da programação de um evento público organizado pela Sociedade
Cearense Libertadora a ser realizado em 25 de março de 1881 culminou com a entrega de
25 cartas de alforria. Segundo o jornal:
1º. Ás 5 1/2 da tarde, na porta da igreja do Rosário o Rvd. Dr João
Augusto da Frota185 benzerá a bandeira que os escravos vão oferecer à
Sociedade Cearense Libertadora e fará um discurso análogo ao ato. 2º.
À frente da música se dirigiram os libertandos até o Passeio público
onde receberá[sic] uma comissão da redação do Libertador.
3º. Reunido o povo, e, precedendo uma ouverture pela música, o
presidente abrirá a sessão e entregará a cada um dos 25 libertandos a
sua carta de liberdade.
4º.O representante da classe escrava fará então seu discurso de
agradecimento e entregar a bandeira ao presidente da Libertadora . 5º.
Seguir-se-á o canto do hino composto e oferecido a Sociedade Cearense
Libertadora pelo Sr. Frederico Severo186
6º.Terão a palavra os oradores e poetas inscritos e depois terminará o
ato com uma passeata no quadro do passeio público e em frente ao Club
se darão os vivas e dispersará a multidão.
7º. A festa é inteiramente popular não se faz um só convite especial
esperando o comparecimento geral de todos.
183
Libertador 15 de janeiro 1881, No. 2, p.1
184
Libertador 24 de março de 1881. No. 7, p.3
185
João Augusto da Frota (24/01/1849-02/04/1942) foi um clérigo ordenado em Roma no ano de 1874,
também foi Doutor em Filosofia. Ativo abolicionista o intelectual foi ainda membro da Academia Cearense
de Letras e Sócio Fundador do Instituto Histórico do Ceará, do qual foi membro honorário.
186
Frederico Severo, Major honorário do exército. Poeta e compositor. (?-1/05/1906), segundo o “Diccionário Bio-
bibliográfico Cearense” do Barão de Studart.
92
Fortaleza187. Para o Rosário convergiam, até o ano de 1873, celebrações como a coroação
dos reis do Congo, sendo tais festas transferidas, por ordem do Bispo Dom Luís Antônio
dos Santos, para locais mais distantes, na periferia da cidade, como descreve Janote
Marques 188189 . O ato de entrega da bandeira da irmandade à Sociedade Cearense
Libertadora não previa celebração católica, apenas a benção pelo clérigo e doutor João
Augusto da Frota na porta do templo, não em seu interior. O programa contava ainda com
uma caminhada de aproximadamente 700m até o Passeio Público190 de Fortaleza, uma
praça criada a partir do conjunto de reformas urbanas que Fortaleza sofreu na segunda
metade do século XIX. O Passeio era um dos lugares de maior convergência da cidade,
ali atos públicos importantes e concorridos encontros sociais se realizavam191. A opção
por tomar o lugar como ponto culminante e final da caminhada festiva denota um esforço
do grupo que organizou o evento para dar visibilidade a causa da abolição192.
A afirmação manifesta do ideal emancipador fica evidente num outro detalhe do
programa a ser cumprido naquele dia: o discurso pronunciado pelo liberto. Nos números
seguintes do jornal Libertador, procurei relatos sobre o nome do ex-escravo que fez o
discurso, ou ainda se havia registro de suas palavras. Observei que houve uma quebra na
regularidade da publicação, voltando a circular apenas em maio 193 de 1881, segundo
consta devido à ausência de operários gráficos. O fato de não registrarem o nome e nem
187
A Província do Ceará abrigou irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens pretos nas cidades
de Aracati, Sobral, Quixeramobim, Barbalha, Icó, Crato, Lapa (povoação pertencente à freguesia de
Sobral), além da capital Fortaleza.
188
“Na Fortaleza das últimas décadas do XIX, havia dois grandes grupos de Congos que se apresentavam
em espaços já conhecidos pelos munícipes: os Congos de João Ribeiro, também chamado de “Pastoris
Africanas” e que funcionavam num terreno baldio da Rua Major Facundo, próximo à Praça do Livramento;
e os Congos de João Gorgulho, que se apresentavam na Praça de Pelotas.” Cf. MARQUES Janote Pires
Autos de Rei Congo em Fortaleza: Uma prática cultural negra na dinâmica socioespacial da cidade (1873-
189
) Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Nº 4 dez./2009, pp.3449/p. 40
190
Não há exatidão sobre a data de inauguração do Passeio Público. Sabe-se, segundo Liberal de Castro,
que “Em 1882 partes significativas do Passeio já estavam prontas, tais como, a avenida Mororó e a alameda
de acesso pela rua Major Facundo, bem como a arborização e os elementos ornamentais. Apesar dos fatos
ora referidos, na verdade, jamais houve uma inauguração do Passeio Público. A palavra não aparece
mencionada nos relatórios dos presidentes da Província” Cf. CASTRO, José Liberal de. Passeio Público:
espaços, estatuária e lazer. Revista do Instituto do Ceará Revista do Instituto do Ceará - ANNO CXXIII -
ANNO 2009 pp.41-114/ p.78
191
PONTE, Sebastião Rogério. A Bélle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In: Uma Nova História do
Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000
192
O capítulo 8 do código de 1879 tratava da utilização do Passeio Público, “então espaço preferido para a
prática de lazer dos ricos da Cidade”. Cf. ALVES, Marco Aurélio de Andrade e CARVALHO, Alba Maria
Pinho de. As marcas do progresso: Alguns códigos urbanos na cidade de Fortaleza dos séculos XIX e XX.
O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho – 2011 pp.13-24 /p.17
193
Libertador 23 de maio de 1881, No 8, “a demora que houve na edição deste jornal foi motivada pela falta
de operários nas oficinas de sua impressão” p.1
93
Não era a primeira vez que a Sociedade Cearense Libertadora ocupava o Passeio
Público. Alguns meses antes, em 1 de janeiro de 1881, descreve-se no Libertador196 um
bazar com exposição de prendas, ocorrido ainda no final de dezembro de 1880. Na
ocasião, o francês Hypolito Girard, proprietário de um hotel e de um quiosque no Passeio
Público, doou à causa abolicionista “o produto da venda de sorvetes e refrescos
gelados” 197 comercializados durante os atos organizados pela Libertadora. Em 17 de
fevereiro de 1881, o Passei Público foi novamente ocupado por um sarau literário descrito
no jornal como “reunião com diversos oradores e poetas abolicionistas”198. As ações dos
núcleos abolicionista não se concentravam apenas na capital, a causa ganhou projeção em
outras cidades e vilas da Província do Ceará.
194
CASTRO, José Liberal de. Passeio Público: espaços, estatuária e lazer In Revista do Instituto do
Ceará Revista do Instituto do Ceará - ANNO CXXIII - ANNO 2009 pp.41-114
219
Idem p.24
195
Ibidem p.77
196
Libertador, 1 de janeiro de 1881, p.3
197
Libertador, 1º de janeiro de 1881, p.4
198
Libertador 17 de fevereiro de 1881, No4
199
STUDART, Barão de. Datas e factos para a história do Ceará, tomo 2. Edição fac-sim. Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, 2001.
94
Cratense presentes à cerimônia uma carta circular dirigida “aos proprietários de escravos
do município e mais pessoas gradas”:
Os abaixo-assinados, membros da Libertadora Cratense, não podendo
por mais tempo continuarem indiferentes ao nobre e humanitário
sentimento que hoje domina os corações Cearenses, no intuito de fazer
desaparecer de suas plagas o ignomioso nome de -escravo-; vem a
presença de V. Sa. Convida-lo a abraçar tão santa quanto gloriosa ideia.
Sabe V. Sa. que um povo não poderá jamais dizer-se livre, contando em
seu seio esta gangrena social.
O grandioso acontecimento que acaba de dar-se na Capital, centro da
nossa civilização, e em tantos outros municípios da província, nos
garante próximo o termo desse desideratum. Demora-lo seria expor-nos
a uma vergonha sem nome, seria marcharmos à retaguarda dos
caminheiros do progresso civilizador.
E V.Sa. convirá conosco, o Crato, berço das liberdades pátrias, não pode
e nem deve conservar-se mudo à esta santa cruzada, o Crato, cujos filhos
eminentemente católicos.
A Caridade, Ilmo. Sr., essa dileta filha dos céus, não se concilia com a
tirania: dizer Senhor e escravo, é o mesmo que dizer; algoz e vítima.
Portanto, os abaixo-assinados, possuídos da mais sólida esperança,
esperam com o valioso concurso de V.Sa poder declarar livres os
escravos deste município no dia 7 de setembro próximo, aniversário de
nossa independência; a fim de que, orgulhosos, possamos também
dizer- no Crato não existe mais esta mancha social.
Convidamos, pois, a comparecer nesta cidade no dia 8 de julho próximo,
designado para assentar-se nos meios para resolver tão momentoso
assunto.
Somos com estima e consideração de V. Sa.203
200
O nome Redenção foi oficializado em 1889. Em referência à memória do pioneirismo emancipador
fundou-se naquela cidade em 2010 a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(Unilab) e ali funciona o Campus da Liberdade.
201
Gazeta de Notícias (RJ) “No Ceará, fundou-se na cidade do Crato, uma associação por nome de
Libertadora Cratense, que ao instalar-se apresentou 20 cartas de liberdade, todas a título gratuito” p,1 227
Jornal do Recife (PE)” 14 de abril de 1883, no. 85. “No dia 11 do mês findo, fundou-se na cidade do Crato
uma sociedade com denominação Libertadora Cratense que, ao instalar-se, apresentou 20 cartas de
liberdade, todas a título gratuito”. p.1
202
Libertador, 28 de Junho de 1883. No. 150 “Cartas Cratenses-Cidade do Crato” p.3
203
Libertador, 28 de Junho de 1883. No. 150 “Cartas Cratenses-Cidade do Crato” p.3
95
204
Neste caso pancadaria refere-se ao “conjunto dos instrumentos de pancada (bombo, tambores, pratos,
timbales) de uma orquestra ou banda de música.” Segundo Dicionário Aurélio. FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed
205
Libertador, 28 de Junho de 1883. No. 150 “Cartas Cratenses-Cidade do Crato” p.3
96
defendia os interesses dos grandes proprietários rurais, dos ricos comerciantes e dos altos
funcionários do governo. Seu posicionamento a favor da manutenção do trabalho
escravo, apontado como necessidade, especialmente para o fortalecimento do setor
agrícola, foi defendido em uma correspondência aberta ao Imperador Dom Pedro II, em
1867, o conjunto de missivas que ficou conhecido como “Cartas políticas de Erasmo”.
Segundo Joyce, da análise dos argumentos de José de Alencar a favor da escravidão
depreende-se que “por trás dos malabarismos intelectuais feitos por ele para defender o
trabalho servil em termos morais, seu posicionamento estava vinculado à defesa de
interesses políticos e econômicos concretos, sedimentados na história política do Império
e de sua elite dirigente.”206
A resistência local ao fim do trabalho escravo foi sendo minada paulatinamente ao
longo de duas décadas. Mesmo sem a imediata repercussão desejada a Libertadora
Cratense continuou ativa, sendo registrado em 13 de agosto de 1883 um donativo em
dinheiro enviado de São Paulo a favor da agremiação207.
O quadro a seguir foi publicado no Libertador 208 , de 18 de março de 1884, e
representa a cronologia das libertações nos municípios cearenses. A lista aparece impressa
em forma de tabela sob o título “Quadro de Luz”, tendo logo abaixo a frase: “A escravidão
é um roubo”. Informa ainda o número de escravos em cada cidade, de acordo com o
Relatório do Senador Pedro Leão Velloso (1828-1902).
206
JOYCE N. S. José de Alencar e a escravidão: necessidade nacional e benfeitoria senhorial. Dissertação
de mestrado – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2014.124.f p.120
207
BNDigital Jornal Libertador, 13 de agosto de 1883, no.150, p. 2
208
BNDigitalJornal Libertador, 18 de março de 1884 N o.61, p.2
97
No total, segundo a listagem acima, foram libertas 30.492 pessoas, no registro final
das coletorias. A listagem das cidades foi apresentada em diferentes edições do jornal e
exibia o avanço da onda abolicionista pela Província209. Mas nem todas as alforrias foram
fruto da benevolência dos senhores. Mariana Assunção observou que na década de 1870
a maioria das cartas de liberdade passadas em Fortaleza foi comprada, boa parte delas à
custa do suor dos próprios escravos. Também foram elevados os índices de alforrias
condicionais 210 . A autora descreve as alforrias “condicionais” e as “incondicionais
onerosas”. No caso das “condicionais gratuitas” era imposta uma condição, por exemplo,
servir até a morte do senhor, sem que fosse necessário algum pagamento compensatório.
No caso das “condicionais onerosas” havia o pagamento em dinheiro com vistas a
compensar o senhor e ainda era imposta alguma condição. Havia também as alforrias
“incondicionais onerosas”, ou seja, a transação era resumida ao pagamento e a
“incondicional gratuita”, neste caso não havia cobrança alguma. A documentação levou
a autora a totalizar o seguinte quadro:
209
O município de Milagres não consta da lista aqui reproduzida, vindo a figurar depois do “25 de março”,
ali apresentando como data de sua libertação o mesmo “10 de fevereiro” das demais cidades da última fase.
Sobre este caso de Milagres, trataremos em item posterior.
210
ASSUNÇÃO, Mariana Almeida. “Escravidão e Liberdade em Fortaleza, Ceará (Século XIX)”. Tese de
Doutorado, UFBA, 2009. p.235
99
M F M F M F M F
TOTAL 62 108 15,1 20 27 4,1 158 259 37,2 287 198 43,3
Observa-se que na maioria das vezes o pagamento era suficiente para garantir a
alforria, mas a presença de condições impostas esteve presente em alguns casos,
representando um prolongamento da condição servil.
Um momento chave no processo que culminou com a abolição da escravidão no
Ceará foi a promulgação da Lei 2034, de 19 de outubro de 1883, que elevou os impostos
a serem pagos pelos proprietários de escravos e cujo texto diz:
211
Apud SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. História da escravidão no Ceará: das origens à extinção 2ª. Ed.
Fortaleza: Instituto do Ceará, 2011p.301
212
Satyro Dias(12/01/1884) a (18/08/1913). Presidente da província do Ceará por ocasião da declaração de
Abolição Foi cirurgião do exército, Deputado geral pelo Amazonas (1885) e Deputado federal pela Bahia (1900
a 1906)
100
Lei uma taxação sobre a “prestação de serviços” por três anos, condição imposta por
algumas manumissões anteriormente firmadas que impunham a continuidade por mais
três anos de servidão, neste caso a taxa foi de 50 mil réis por pessoa.
Por se tratar de uma mudança nos impostos, a Lei teve o objetivo de inviabilizar o
trabalho servil através dos registros das coletorias. No ano seguinte, o que se comemorava
no 25 de março era a extinção do trabalho servil, tendo como base o que as coletorias
registravam:
O ato comemorativo da extinção da escravatura no Ceará, em 25 de
março de 1884, baseou-se nas certidões fornecidas pelos coletores
municipais, atestando a averbação das alforrias de todos os seus cativos
nos respectivos “livros de matrículas de escravos”213 .
213
SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. História da escravidão no Ceará: das origens à extinção 2ª. Ed. Fortaleza:
Instituto do Ceará, 2011, p.247
214
José Carlos do Patrocínio, jornalista, orador, poeta e romancista (1854-1905). Esteve pela primeira vez
no Ceará entre maio e setembro de 1887, como correspondente da Gazeta de Notícias com o objetivo de
relatar sobre a seca. Esta primeira viagem rendeu também fotografias publicadas em “O besouro’ e um
romance intitulado “Os retirantes”. Sobre este contato com os impactos da estiagem na vida e nas relações
sociais documentados por Patrocínio temos: NEVES. Frederico de Castro: A miséria na literatura: José do
Patrocínio e a seca de 1878 no Ceará. Tempo vol.11 no.22 Niterói, 2007.
215
Sobre a trajetória de José do Patrocínio: MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados: José do
Patrocínio e a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro. Niterói: Editora da UFF, 2014.
101
outros. Por um longo período a tendência foi de apagamento das resistências dos próprios
escravizados, os protagonistas eram os homens e mulheres engajados na causa
abolicionista, associados ou não, a núcleos de expressiva atuação. Este grupo era
heterogêneo e diversos matizes da causa abolicionista estavam misturados. Havia um
núcleo mais aguerrido, engajado em ações diretas e outro mais legalista e conservador
que aspirava uma transição ordeira e pacífica.
O historiador Raimundo Girão indica, como ponto alto dos atos públicos festivos
em memória da abolição dos escravos na Província do Ceará, o cortejo que encerra três
dias jubilosos em março de 1884.
De início vale refletir sobre o uso do termo “raça redimida”. Tal construção confere
um lugar de passividade e sujeição, bem característico do discurso que se construiu sobre
a abolição na Província do Ceará e em todo o país. Aquilo que
SCHWARCZ217 denomina “representação dadivosa” inspira uma hierarquia entre quem
supostamente doa e quem recebe. As relações estabelecidas pela dádiva (real ou suposta)
engessam posições e alimentam uma relação de poder. 218
216
GIRÃO, Raimundo. A abolição no Ceará. 3a. Edição, Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do
Estado do Ceará, 1984, p.210
217
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da Abolição
brasileira In CUNHA, Olívia Maria Gomes da e GOMES, Flávio dos Santos (orgs). Quase-cidadãos;
Histórias e Antropologias pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007
218
Janote Pires Marques menciona parte deste trecho, destacando “ No entanto, é preciso considerar que,
embora houvesse a presença de uma negra na festa maior da abolição cearense, o discurso supracitado deixa
transparecer certo preconceito – Inês é formosa, apesar de negra –, e a visão abolicionista do negro como
elemento passivo – Inês encarna a “raça” que foi libertada (e não a que se libertou)´” MARQUES. Janote
Pires: A invisibilidade do negro na História do Ceará e os desafios da Lei 10.639/20031 In Poiésis – Revista
102
No desfile final, a “negra, mas formosa” Inês Maria seguia elegante pelas ruas a
contemplar os aplausos calorosos, ladeada pelas suas companheiras de cortejo que
levavam à mão símbolos (uma espada e um estandarte219). Ao que parece Inês Maria era
ela própria o símbolo, não empunhava espada ou bandeira. Seu corpo era seu estandarte
e sua presença a marca a ser comunicada: o fato de estar ali deveria ecoar por si. Afinal,
causaria algum burburinho a espada em sua mão? Fica a nossa imaginação povoada de
perguntas, mas o que a ordem que aquele carro alegórico representava era a da passividade
silenciosa, grata e resignada que se esperava do liberto.
A grande festa reservou a cada um seu papel, não era uma comemoração aberta,
expressiva e intensa. Eram solenidades, jantares, missas, paradas e saraus. Ocasiões
propostas e vividas por um grupo que se auto referia de diversas formas, tanto através de
celebrações públicas quanto do registro escrito, correspondências enviadas a periódicos e
outro elementos de visibilidade. A festa foi um ato político pensado e protagonizado pelos
“libertadores” brancos com espaços medidos para a presença dos ex-escravos.
Dom Joaquim estava prestes a assumir a Diocese cearense como seu segundo bispo
quando enviou, da cidade de Campinas em São Paulo, uma carta pastoral ao Ceará datada
de nove de dezembro de 1883. Àquela altura era evidente a adesão total do Ceará à
abolição, mas ainda faltavam alguns municípios (ver tabela 1). Ao escrever prestigiando
a iminente conquista do Ceará, já estabelece um posicionamento acerca da conduta a ser
adotada após a conquista, a carta247 registrava:
221
Para uma referência do uso do termo na forma corrente à época do seu uso no documento, recorremos a
interpretação apresentada no Vocabulario Portuguez & Latino, Volume VII, de Raphael Bluteau-1728. Em
versão atualizada por mim: “Dessas três palavras, ainda que latinas, usamos vulgarmente falando o Ofício
Divino, ou em alegres e festivas solenidades(...) O Te Deum Laudamus é um cântico alternadamente
composto pelos dois Doutores da Igreja, Santo Ambrósio e Santo Agostinho, no dia em que este recebeu o
batismo”p.64
222
Joaquim José Vieira nasceu em Itapetininga-SP. Era filho do major Manuel José Vieira e de Maria
Teodolina de Sousa Vieira. Ingressou no seminário paulista e foi ordenado sacerdote, em 25 de março de
1860. Atuou como vigário-cooperador da paróquia de Paraibuna e em seguida vigário interino em
Campinas. Em 3 de fevereiro de 1883 foi indicado pelo Imperador Dom Pedro II para a Diocese do Ceará
que era Sede Vacante desde que Dom Luís assumiu a Diocese da Bahia. Foi o Bispo cearense que esteve à
frente dos processos que avaliaram os “ Fatos do Juazeiro”. Depois de 31 anos no Ceará retornou a
Campinas em 1914 e ali faleceu em 1917, aos 81 anos. CÂMARA, Fernando. Dom Joaquim José Vieira e
os oitenta anos de sua morte. Revista do Instituto do Ceará. Ceará, v. 91 (1997): 157-174
104
223
Em A força da escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista Sidney Chalhoub ao analisar
uma fonte propõe: “Da ociosidade o autor do documento deslizou rapidamente para o crime, atribuindo-se
aos libertos vários meios “ilícitos” de ganhar a vida, entre os quais se destacava o aliciamento e o furto de
cativos, ofício que exerciam com “sutileza e segurança”. Esse repertório de ideias sobre os africanos libertos
reforçava o comprometimento do país com a escravidão, pois, se a mão de obra de africanos continuava
indispensável à lavoura, postulava-se outrossim que não se podia contar com trabalhadores africanos noutra
condição que não a de escravos”. A obra que trata da vida de africanos livres e de forros no Brasil em um
cenário que impunha àqueles indivíduos um lugar de risco constante. CHALHOUB, Sidney. A força da
escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras. 2012, 251 A
carta foi transcrita e publicada pelo escritor cratense J de Figueiredo Filho. Cf.FIGUEIREDO FILHO. José
Alves. O Ceará antecipa-se à Abolição, no País. Revista Itaytera- Instituto Cultural do Cariri. Ano 1972
no.16p 181-186.
105
224
. FIGUEIREDO FILHO. José Alves. O Ceará antecipa-se à Abolição, no País. Revista Itaytera-
Instituto Cultural do Cariri. Ano 1972 no.16,p 183.
225
SANTOS, Georgina. Ofício e sangue - A irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa Moderna. Lisboa:
Edições Colibri/ ICIA, 2005, p. 49.
226
Antônio Ferreira Vianna (Pelotas, 11 de maio de 1833 — Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1903) foi
um magistrado, jornalista e político brasileiro. Ministro da Justiça entre 10 de março de 1888 e 4 de janeiro
de 1889. Foi um político abolicionista e teria sido o redator do texto da Lei Áurea. 255 CHALHOUB, S.
(1983). Vadios e barões no ocaso do império: o debate sobre a repressão da ociosidade na câmara dos
deputados em 1888. Estudos ibero-americanos, 9(1, 2), 53-68.
Https://doi.org/10.15448/1980-864x.1983.1-2.36351 e CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
106
Eis uma data memorável para as façanhas abolicionistas: Ceará 600 réis
A companhia francesa de navegação Chargeurs Réunis, acaba de
suspender suas viagens ao Ceará.
A importação e exportação daquela província é doravante por uma
jangada.
Quererá o jangadeiro fazer essa viagem por 600 réis!
Agora podem continuar a música. Venha a lyra do Sr. Nabuco e a
guitarra do Sr Patrocínio227
As críticas contidas nestas linhas tentam detratar a figura dos abolicionistas, tratandoos
como entes desligados da realidade, idealistas e esquecidos das questões mais objetivas da
sobrevivência. A abolição estaria levando a província do Ceará à falência e o perfil dos
abolicionistas seria frívolo e irresponsável.
Ainda sobre os tais “efeitos do abolicionismo” sobre o “pobre e infeliz Ceará “elencados em
página do Diário de Pernambuco, observa-se a capciosa descrição da suposta falência econômica
da Província do Ceará ocasionada pela libertação. Um exame das receitas arrecadadas entre os
anos de 1880 e 1885 demonstra que não houve uma grave crise gerada pela abolição cearense,
pelo menos no que tange ao números relativos à exportação:
1880 857:691$450
1881 777:117$900
1882 820:980$760
1883 713:827$304
1884 675:139$485
1885 995:169$857
Um dos itens de exportação mais relevantes para o Ceará naquele período era o
algodão em pluma. O volume de exportações deste item sofreu uma retração, mas tal
227
BNDigital Jornal Diário de Pernambuco de 24 de dezembro de 1884. Hemeroteca Digital.
108
TABELA 4- Exportação de Algodão em pluma do porto do Ceará entre 1880 e 1885 com base no
Anuário Estatístico do Ceará
negros compadecidos e enternecidos com a situação de seus pares e não agentes que
efetivaram uma ação exitosa e ousada. Ora, como um liberto que havia comprado sua própria
alforria como Napoleão poderia estar ingenuamente compadecido da situação dos
escravizados? O movimento dos jangadeiros revela articulação política e planejamento.
Estes fatos passam ao largo das memórias construídas posteriormente228. O fato é que esta
greve se estendeu para o porto de Aracati e no Ceará não se embarcaram mais escravos.
Segundo Carlos Caxilé é possível inferir que esta paralização do vil comércio pode ter tido
algum impacto para os senhores:
228
Patrícia Xavier discute a construção da memória sobre o Dragão do Mar, analisando o período desde a
comemoração do cinquentenário da abolição cearense, 1934, até a publicação da obra “Um herói sem
pedestal” de Roberto Átila do Amaral, em 1956XAVIER. Patrícia P. O Dragão do Mar na “Terra da Luz”:
a construção do herói jangadeiro (1934-1958). Dissertação de mestrado em História PUC-São Paulo,2010
141f.
229
CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. Abolição no Ceará In HOLANDA, Cristina Rodrigues (org) Negros no
Ceará: História memória e etnicidade. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult/Imopec, 2009 p181-198p.185 259
SILVA. Eduardo. Domingo, dia 13: o underground abolicionista, a tecnologia de ponta e a conquista da
liberdade. In Caminhos da Liberdade: Histórias da Abolição e do Pós-Abolição no Brasil. ABREU. Martha
e PEREIRA. Matheus Serva (orgs.) Niterói : PPGHistória- UFF, 2011.
230
Um exemplo de Eduardo Silva sobre o uso do sistema de telégrafos associado ao transporte ferroviário
está na passagem: “Uma mensagem mandada de Recife em 1885 informava, por exemplo, que em certo
110
A abolição cearense, mesmo precoce, evidenciou tensões que se acirraram nos anos
posteriores, especialmente com relação ao emprego da mão de obra do ex-escravizado.
Destaco um exemplo encontrado ao explorar as repercussões das festividades do 25 de
março, efeméride central no processo abolicionista local. O Jornal do Comércio232, no
Rio de Janeiro, publica uma matéria acerca das “festas esplêndidas” e pomposas que
marcaram a passagem do 25 de março de 1887 na Próvincia do Ceará, três anos após a
abolição. O noticioso descreve que, na ocasião, foram saudados os “vultos mais
proeminentes do abolicionismo da província e do Império” e que no salão do Clube
Literário aconteceu a inauguração de um retrato de José Bonifácio.
A descrição da festividade concorrida e aparatosa é seguida de outras notas, que dão
conta de fatos ocorridos na Província do Ceará em março daquele ano 233.Foi entre estas
notas, que aparecem logo depois da descrição da comemoração da abolição no Ceará, um
navio a vapor seguiam “três ingleses de nomes Vicente, Carlota e Estefania”. Outras mensagens falavam
em carregamentos de “abacaxis” ou grupo de “ingleses pernambucanos”, isto é, fugitivos que embarcaram
naquela província e tomaram o rumo da liberdade, no caso, o Canadá brasileiro, a província do Ceará.”
(SILVA, 2011) p.35
231
SILVA, 2011, p.37
232
BNDigital Jornal do Commercio-Rj 17 de abril de 1887/Páginas 2 e 3. Disponível na Hemeroteca Digital
da Biblioteca Nacional.
233
Trata-se de um apanhado de notícias sobre o Ceará, desde as obras do açude de Quixadá, passando pelo trágico
acidente com a embarcação “Bahia”.
111
234
O maciço de Baturité é composto por um conjunto de montanhas e abriga ponto mais alto do Ceará, a
altitude garante um clima ameno, frio, se comparado ao sertão cearense. O acesso via cidade de Baturité
dista 107 km de Fortaleza. No maciço de maciço de Baturité foi registrada a temperatura mais baixa em
cidade cearense. Foram 10o C, na cidade de Guaramiranga, sendo a temperatura média local por volta de
20o C.
235
BNDigital Jornal Libertador 31 de março de 1887 Disponível na Hemeroteca Digital
236
Idem
112
dominada pelo estrangeiro, mas o que estava em jogo eram as também supostas
qualidades morais e laborais dos imigrantes europeus.
Associar a imigração europeia a lugares de clima frio no Brasil não era novidade.
Analisando as três décadas posteriores à Lei Áurea no Rio Grande do Sul, o trabalho de
Marcus Vinícius Freitas Rosa 237 discute as principais consequências da política de
imigração em um país profundamente marcado pela escravidão. Ao discutir as propostas
acerca da imigração de europeus, proposições estas capitaneadas por ilustres bacharéis
gaúchos, destaca o uso do clima frio como fator de justificativa para o estímulo a tal
imigração, dando relevo aos usos racializados desta presença europeia:
237
ROSA. Marcus Vinicius de Freitas . Além da invisibilidade: História social do racismo em Porto Alegre
durante o pós-abolição (1884-1918) Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História, do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título
de Doutor em História, na área de concentração em História Social 2014. P.39
238
Ibid, p.39.
239
RENAN, Ernest. Que é uma nação? Revista Plural; Sociologia, USP, São Paulo, 4, p. 154175, 1. sem.
240
. p. 162. 130.
241
FONSECA. Jamily Marciano. Raça, natureza e sociedade: o pensamento evolucionista em Fortaleza
na década de 1880. Dissertação de Mestrado em História Social UFC, 2015,164f. p142 271 Ibid, p.149.
272
Ibid, 146.
113
242
AZEVEDO, Célia Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987
243
Idem p. 253
244
AZEVEDO, Célia Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 276 Ibid., p254.
114
Djacir Meneses logo esclarece que não tivemos um movimento encabeçado por
“negros alvoroçados” entenda-se aí: negros agitados. A afirmação remete ao temor que
se tinha de revoltas protagonizadas pelos escravizados. No momento da publicação do
artigo de Djacir Meneses na Revista do Instituto histórico do Ceará faltavam apenas 15
anos para que se fechasse um século completo da propalada abolição na Terra da Luz,
mas a interpretação do momento como uma dádiva de ilustrados intelectuais ainda
imperava. A festa pomposa e galante para a qual a sociedade cearense foi convidada tinha
245
MENESES. Djacir. Debate sobre o abolicionismo cearense. Revista do Instituto do Ceará. anno LXXI1967
p-132-139
246
O autor da Synopse histórica foi Antônio Martins, então secretário da Sociedade Perseverança e porvir.
115
seus protagonistas bem definidos. O alarido das lojas a divulgarem seus produtos era a
certeza de atrair consumidores do fino e distinto círculo em torno das elites letradas.
Ao discutir discursos de Rui Barbosa, Wlamira Reis nos inspira acerca da
construção de submissão, alimentada pela ideia de uma “raça emancipada”, que deveria
ser grata a “raça emancipadora”. As distinções guardam a diferença e estabelecem uma
hierarquia de muitas formas reiterada pela sociedade.
O que motivou Djacir Meneses a retomar o assunto abolição e deixar claro o papel
do ilustrado em prol da liberdade do , segundo ele, “escravo atônito” foi a necessidade de
rebater a divulgação em artigo do pesquisador americano Bill Chandler247. O pesquisador
norte americano ao chegar ao Ceará sem vínculos com a assentada linhagem de autores
que teciam louvores à geração dos “emancipadores” publicou artigo discutindo a
permanência de um núcleo de exploração do trabalho servil na cidade de Milagres248249.
O objetivo da réplica de Meneses visa reduzir ou até anular o impacto da divulgação do
caso:
247
CHANDLER, Bill. Os escravistas renitentes de Milagres: um pós-escrito à história da escravidão no Ceará.
In. Revista do Instituto do Ceará, tomo LXXX, 1966.
248
Mais detalhes sobre o caso de Milagres estarão no próximo item.
249
MENESES. Djacir. Debate sobre o abolicionismo cearense. Revista do Instituto do Ceará. anno LXXI-1967 p-
132-139, p.139
116
contestações e deixando clara uma interpretação que negava alguma participação dos
escravizados.
Rafael Caxilé ao discutir a construção do discurso que legitimou um “caráter
empreendedor ao povo cearense, constituído sob os auspícios da abolição e dos
abolicionistas”, destaca o quanto os ecos do abolicionismo cearense são retomados como
referência de distinção e civilidade, e questiona:
250
CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. “Abolição no Ceará” In HOLANDA, Cristina Rodrigues (org) Negros
no Ceará: História Memória e Etnicidade. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult/Imopec, 2009 p181-198p.196
283
CARDOSO, Gleudson Passos. As repúblicas das letras cearenses: literatura, imprensa e política
(18731904). 266p. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2000.
p. 2132. OLIVEIRA, Almir Leal de. Saber-poder – o pensamento social cearense no final do século XIX.
1998. Dissertação (Mestrado em História Social) Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1998.
OLIVEIRA,
117
nenhuma medida a ação do escravizado foi considerada como uma força pró-ativa, capaz
de interferir na dinâmica da exploração colonial e sobre a abolição no Ceará logo foram
tecidas narrativas que tiveram, a princípio, o objetivo de destacar e narrar um pioneirismo
aguerrido e benevolente dos abolicionistas. Nas narrativas historiográficas, as formas de
resistências dos escravizados permaneceram invisíveis por muitos anos, e só ganham
relevo nas produções sobre o tema com uma produção historiográfica mais recente. 287
Cláudia Freitas. Banquete literário: as ideias “científicas” do século XIX nas produções literárias de
Fortaleza (O Club Literário). 2000. 258p. Dissertação (Mestrado em História). Dissertação de Mestrado
Recife, 2000.
284
FERNANDES, Ana Carla Sabino. A Imprensa em pauta: entre as contendas e paixões partidárias dos
jornais Cearenses, Pedro II e Constituição na segunda metade do século XIX/ Ana Carla Sabino
Fernandes. -Fortaleza, 2004.
285
OLIVEIRA, Almir Leal. Universo Letrado em Fortaleza na Década de 1870. In: SOUSA, Simone de e
NEVES, Frederico de Castro (orgs.). Intelectuais. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002, p.38.
286
Atribui-se a José do Patrocínio a criação do epíteto “Terra da Luz”.
287
Algumas obras de referência sobre o tema: SILVA, P. A. O. História da escravidão no Ceará: das
origens à extinção. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2002|SOBRINHO, J. H. F. Catirina, minha nêga, tão
querendo te vendê. Escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza:
SECULT, 2011. (Coleção Nossa Cultura)|SOUSA, A. V. C. Da “Negrada Negada” a Negritude
Fragmentada. O Movimento Negro e os discursos identitários sobre o negro no Ceará (1982-1995).
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006.| CAXILÉ, C. R. V.
Olhar para além das efemérides: ser liberto na província do Ceará. Dissertação (Mestrado em História)
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2005.|FUNES, E. A. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone
(Org.). Uma nova história do Ceará, 3. ed.Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004, p.103-132|
A precoce abolição cearense esteve permeada pelas tensões inerentes a uma
sociedade que conviveu com a servidão, as relações não se dissolvem à força da lei. O
exercício da liberdade era necessário e logo surgiram indícios de que o lugar dos libertos
tinha que ser conquistado para além das festas e solenidades que agitaram a Província.
As complexidades das relações servis não se esvaem por decreto. Há de se
experimentar a liberdade, diante e apesar de, uma sociedade rigidamente moldada pela
exploração do trabalho de pessoas escravizadas. Então, antes de pensar no fato de ter sido
a cidade Milagres um núcleo escravocrata resistente, podemos pensar no tipo de relações
que emergem depois de rompido o laço da posse e que se estabelecem inúmeras formas
de relações nas quais o ex-escravizado esteve mais vulnerável, exposto às circunstancias
e impelido a negociar em novos termos. 251
251
Uma contribuição acerca do tema da abolição percebida a partir de registros memoriais vem de
MARTINS, Paulo Henrique de Souza. Escravidão, Abolição e Pós-Abolição no Ceará: sobre histórias,
memórias e narrativas dos últimos escravos e seus descendentes no Sertão cearense. Dissertação de
Mestrado Universidade Federal Fluminense, 2012 128f,
118
O autor desta interpretação era filiado a uma geração de estudiosos que estavam
dispostos a demonstrar a precoce civilidade do Crato253, destacando o florescimento das
letras e a atuação política. Estranhamente há um silêncio sobre o tema que era
efervescente no debate político da época: a abolição. Não é de estranhar que tentasse
construir argumentos que justificassem o atraso em aderirem à causa da abolição. O
mesmo autor admite em outra passagem:
252
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária,1963 p.436-438.
253
VIANA. José Ítalo. O Instituto Cultural do Cariri e o centenário do Crato: memória, escrita da História
e representação da cidade. Dissertação de Mestrado UFC. 2011
254
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária,1963 p.275
119
Vale destacar que afirmar o alto custo do escravizado para o senhor e descrever seu
trabalho em sítios ou comércios poderia ser uma estratégia do autor para fazer crer que os
escravizados na área urbana do Crato eram pouco explorados e não submetido a jornadas
exaustivas, pelo menos se comparadas coma a rotina dos engenhos de açúcar que também
existiam no Cariri. A produção de açúcar era relevante no cariri durante o período.
Problematizar a narrativa de Irineu Pinheiro, feita já no século XX e que tenta justificar o
atraso, não é mero rebate às suas colocações, é uma forma de problematizar questões
fundantes sobre o trabalho servil e a abolição. Se trata de perceber o quanto é silenciado
ou relativizado para se construir uma narrativa que justifique ou minimize o que
aconteceu. Também contribui para o questionamento o argumento do “tardio eco
abolicionista”, a ação da Libertadora Cratense, apresentada ainda no primeiro item deste
capítulo. Outro argumento que tentou esclarecer a postura atrasada do Cariri com relação
à onda abolicionista cearense é que na região não existiam muitos escravizados,
especialmente na tentativa de evitar a comparação da atividade açucareira da zona da mata
com a do Cariri:
Parecem duas faces da mesma moeda: poucos escravos e pouca adesão à causa
abolicionista. Trata-se de é um arranjo explicativo falho. Compreendo que diante de uma
província que comemorava o título de pioneira da liberdade e Terra da Luz, admitir que
a sociedade cratense era, com todas as letras, majoritariamente escravocrata não fazia boa
figura.
Mais recentemente Carlos Rafael Dias256 retoma o argumento de um movimento
abolicionista pouco expressivo no Cariri do século XIX, considera que “o movimento
abolicionista não aconteceu no Cariri. Ao contrário, a instituição escravocrata era
255
FIGUEIREDO FILHO. José Alves. O Ceará antecipa-se à Abolição, no País. Revista Itaytera- Instituto
Cultural do Cariri. Ano 1972 no.16p 181-186.p.184
256
DIAS, Carlos Rafael. Encantamento e civilização: construções discursivas de uma região (o Cariri
cearense) Tese de Doutorado UFF Universidade Federal Fluminense, 2019, 554f. 294 DIAS, 2019, p.305.
120
O que podemos deduzir é que houve sim um movimento e que foi silenciado tanto
durante sua vigência quanto nos primeiros levantamentos históricos. Neste sentido muito
bem nos descreve também Carlos Rafael Dias a valoração dada ao tema do Ceará
Pioneiro, Terra da Luz. Sem nada de marcante ter a dizer de si neste contexto silenciou a
primeira geração de historiadores do Cariri?
Otonite Cortez257 ressalta que uma peculiaridade do calendário cívico da cidade do
Crato: era o fato rememorar as ações de caráter liberal dos cratenses, principalmente 1817
e 1824. Ações que são proposituras radicais, cabendo aos seus protagonistas a
denominação de liberais radicais ou exaltados” e que apesar desta postura quase de
vanguarda :
“as práticas liberais dos cratenses pautaram-se sempre num liberalismo
conservador, haja visto o engajamento de um número reduzido de
intelectuais na campanha abolicionista e republicana, assim como a
manutenção de práticas político-eleitorais conservadoras, voltadas para
a manutenção de hierarquias sociais previlegiadoras dos estratos
superiores da sociedade. Exemplo disso é o perfil da Câmara Municipal,
historicamente composta de proprietários de terra e de engenho,
membros dos altos escalões da Guarda Nacional, ricos comerciantes e
profissionais liberais destacados pelo status inerente à profissão.258
257
CORTEZ, Antônia Otonite. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Dissertação de
mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
258
CORTEZ, 2000, p.26
121
259
CORTEZ, 2000, p.38
260
BNDigital Jornal A voz da religião no Cariri, jornal católico que circulou de 1868 a 1870.
261
Jardim 21/03/1860- Fortaleza 24/01/1883
300
Cearense, 19 de fevereiro de 1881, p2.
262
Cidade a 27 Km da capital do Ceará, Fortaleza.
263
BNDigital Jornal Cearense, 28 de maio de 1881 p. 2
122
264
AQUINO. J Lindemberg de. Um abolicionista do Cariri In Revista Itaytera no.30, ano 1996 p 61-62
265
BNDigital Jornal Libertador, ano1. No1. p.3
266
BNDigital Jornal Libertador, 15 de janeiro de 1881, Ano 1, No. 2, p.7
267
A doação de bilhetes de Loteria era muito comum e aparece registrada em várias edições do Libertador.
268
BNDigital Jornal Libertador, 16 de junho de 1881, ano 1, no. 11, p.4
269
BNDigital Jornal Libertador, 19 de junho de 1881, Ano 1, no. 14, p.3
270
Jornal conservador editado em Fortaleza, Ceará, entre os anos de 1840 e1889.
271
BNDigital Jornal Pedro II, 26 de maio de 1881,no.41, p4.
272
Antônio Pereira do Brito Paiva, ou Coronel Brito Paiva foi deputado provincial em várias legislaturas,
foi presidente da Câmara até janeiro de 1881 ( ano da denúncia da fuga).
123
serão bem gratificados; desde já protesta contra quem quer que os tenham furtado ou os
acoitar, fazendo efetiva sua responsabilidade criminal e civilmente”.
Em uma pequena coluna, publicada logo abaixo do anúncio, uma acusação: “Depois
de ter sido publicado o presente anúncio, foram apreendidas em casa de José Joaquim
Telles de Marrocos, nesta capital, as 3 escravas - Carlota, Maria e Anacleta, faltando os
2- Guilherme e Pedro”273. Pedro Alberto Silva274 registra que responderam como réus:
José Marrocos, Francisco José do Nascimento (“Dragão do Mar”), Antônio Bezerra, Isaac
Amaral e Francisco Perdigão, todos estes membros da Libertadora Cearense.
Aconselhado a não levar o caso a diante, posto que conseguiu recuperar as quatro escravas
(Carlota, Maria, Rosa e Anacleta) o Coronel pôs fim ao litígio. O fato deixou possibilidade
para compreendermos que a atuação de José Marrocos poderia não se limitar aos eventos
sociais e às publicações, estando engajado em ações que desafiavam as leis vigentes275.
O engajamento na causa abolicionista não se limitava a José Marrocos, seu irmão,
também cratense, Deusdedit Marrocos em 22 de julho de 1883 participou do ato inaugural
da Libertadora Piauhyense315, proferindo um dos discursos de encerramento do ato
público que inaugurou aquela instituição, encontrei ainda registro do ano de 1886 no qual
Dusdedit Marrocos atuava como correspondente316do jornal Libertador no Piauí.
Mais um nome do Crato é citado no Libertador317. Trata-se de José Luís Arnaut,
considerado “amigo e consorte” da causa abolicionista. Uma nota daquele jornal
menciona acerca do Crato: “a redenção do município que ali realizou-se com muita honra
para o nome Cratense, deve ao inestimável moço serviços mui valiosos”318.
273
Pedro II, 2 de junho de 1881.Ano 41, no. 43 p.4
274
SILVA, P. A. O. História da escravidão no Ceará: das origens à extinção. Fortaleza: Instituto do Ceará,
2002 , p209 e 210
275
Sobre o destino da família de Carlota, pude apurar que pelo menos Anacleta tentou mais uma vez a
liberdade. Um anúncio de 1886 dá conta, não de uma fuga de escrava, mas do desparecimento de uma
criada, menor de idade que deveria, segundo concessão judicial, ficar sob sua autoridade até os 21 anos. O
nome Anacleta e o fato do mesmo Sr. Antônio Pereira de Brito Paiva assinar o anúncio dá a entender que
se tratam das mesmas pessoas. O destino de Anacleta foi pagar com trabalho pela própria liberdade,
tratavase de uma dívida de liberdade por concessão, que àquela altura já era considerada ilegal no Ceará,
daí disfarçar a “escrava” com o termo “criada”. O emaranhado jurídico do caso de Anacleta é tão complexo
que seu desparecimento é relato num jornal abolicionista, pois aparece a público como desaparecimento de
uma menor e não como fuga. / BNDigital Jornal Libertador 17 de abril de 1886, Ano VI, No. 85, p. 3: “
Tendo desaparecido do abaixo assinado a criada Anacleta, que lhe foi concedida pelo juiz competente, visto
ser ela de menor idade, em remuneração de a ter libertado, com uma cláusula de prestar-lhe seus serviços,
enquanto não atingisse os 21 anos; apressa-se em fazer público, certificando a quem quer, em cuja casa ela
se achar, que lhe deve avisar para mandar conduzir, pois protesta haver de quem a ocultar dias de serviço e
todas as despesas que fizer para seu descobrimento e apreensão. Outrossim, o anunciante promete
124
Quando Irineu Pinheiro destaca que “só à última ora quando não havia mais jeito
de fugir ao movimento” deixa claro que seguiriam refratários caso não fossem atropelados
pelos acontecimentos. Isto posto, é possível inferir que a resistência manifestada pelos
senhores de Milagres, que logrou êxito pelo apoio de um Juiz local, poderia ter se repetido
em outros lugares, caso existisse quem acobertasse a farsa.
Além de ter sido a última parcela do Ceará a aderir à causa da liberdade, o Cariri
abriga a cidade de Milagres, palco da já mencionada fraude para manter sob o julgo um
grupo de pessoas. Como vimos no capítulo introdutório, na província do Ceará foi a
majoração do imposto sobre a posse de escravos que tornou tal prática impossível: não
estava escrito “proíbe-se a escravização” estava autorizado um imposto que, feita a
matrícula do escravizado, obrigaria o pagamento de alto valor. Ao ser descoberta a
questão de milagres, logo pensou-se na reparação a ser feita à província, afinal eram antes
de mais nada “sonegadores” os escravistas de milagres.
Escravizados de Milagres
Ao tesouro provincial acabou de determinar o Sr. Desembargador
presidente da Província, que faça efetiva a cobrança judicial do imposto
e multa a que estão obrigados os indivíduos residentes no município de
Milagres que à falsa fé e criminosamente, conservam escravizados sob
seu domínio, depois do dia 25 de março de 1883, com ostentoso
menoscabo da lei de 19 de Outubro e grande escândalo para a província
e para o país.319
generosamente gratificar a quem descobrir onde ela se acha. Fortaleza 17 de abril de 1886. Antônio P. de
Brito Paiva”
315
BNDigital Jornal Libertador, 4 de setembro de 1883, ANOIII, N o. 193, p2.
316
BNDigital Jornal Libertador, 16 de fevereiro de 1886. ANO VI, N o. 38.
317
BNDigital Jornal Libertador 2 de abril de 1884, ANO IV, N o65, p.3 318 Idem
319
BNDigital Jornal Libertador 17 de abril de 1886 Ano VI N o.85
Cobrados pelo erário provincial, os proprietários resistem e tentam evitar o
pagamento das multas, a campanha da imprensa chega a tratar o assunto de forma
irônica276. Mas trata-se de uma questão grave e envolvia a reparação não apenas aos cofres
públicos, mas também aos escravizados. Estava prevista indenização para as pessoas
ilegalmente mantidas em cativeiro, a iniciativa do presidente da província previa uma
indenização a ser paga a estas pessoas, a fonte, um artigo do Libertador de abril de 1886,
276
“O juiz municipal e mais Zés de Milagres opõem-se ao pagamento do imposto legal sobre escravizados
e o Presidente da Província manda cumprir a lei, sem atenção aos contratos feitos pelo Sr. Calmon com o
Sr. Rodrigues por detrás dos reposteiros” Libertador 22 de abril de 1886
125
fala em “quase duzentas” pessoas que teriam direito a pecúlio, registro por completo a
transcrição:
O Sr. Desembargador Barradas ordenou o inspetor do tesouro
provincial, que impusesse a multa de 100$000 réis, em que incorreram
os senhores de escravos do termo de Milagres, visto o art.2º. § 1º. Da
lei provincial no. 2034 de 19 de outubro de 1883, por não terem dado
matrícula especial, criada por esta lei, que aditou a de no. 2031 de 18 de
dezembro de 1882.
Outrossim, mandou sua ex. que se lhes cobrasse o imposto anual de
100$000 réis, a que ficaram sujeitos os escravos na província, ex-vi do
artigo 1º. Da sobredita lei de 1883.
Tem, pois, de pagar cada proprietário de escravos, e por cada um destes:
1º. Multa pela não-matrícula (...) 100$
2º. Imposto relativo a 1884 e 1885 (...) 200$
3º. Multa de 50% pelo retardamento da paga deste imposto
4º. Imposto relativo ao ano de 1886.100$
Total 500$
Consideram-se como pecúlio dos escravos sobreditos, em número de
quase duzentos:
1º. A multa pela não-matrícula (...) 100$
2º. Dois terços do imposto e da multa de 50% pelo não pagamento dos
impostos de 1884 e 1885 (...) 200$
Imposto de 1886 100$
Total 400$277
Chegou o pecúlio à mão destes infelizes? O assunto desparece dos jornais e ressurge
numa espécie de ‘acordo” que levaria em conta os três anos sob cativeiro como uma
compensação pela alforria. Os três anos de servidão eram uma contrapartida que podia
ser cobrada pelo senhor, segundo código anterior e baseados nesta regra justificaram a
burla. Ficou valendo este “arranjo” para escamotear a lei e não assumir a dívida e
simplesmente liberar os escravizados sem mais custas.
O exemplo das atitudes do Juiz de Milagres, que burlou a lei encobrindo a
permanência da exploração da mão de obra servil na pequena cidade colabora para que se
entenda o Cariri, região na qual está situada, como palco de desmandos senhoriais. Lugar
de uma elite apegada ao status de proprietário e articulada com os poderes locais tanto
para blindar a efervescência abolicionista e, em ato extremo, burlar a Lei.
O apego a ideais ilustrados, liberais em contraste com o peso de 300 anos de
escravidão que se espalhava e ramificava em relações tanto distintas, como perversas e,
sem dúvida, insondavelmente graves. Estes fragmentos de passado com os quais lidamos
277
BNDigital Jornal Libertador, 20 de abril de 1886 ano VI No. 87p.3
126
nos dão a ver algo que foi um dos fundamentos da sociedade brasileira: a escravização de
pessoas marcou nossa história, nossa paisagem e as nossas relações.
Há trezentos anos que o africano tem sido o principal instrumento da
ocupação e da manutenção do nosso território pelo europeu, e que os
seus descendentes se misturam com o nosso povo. Onde ele não chegou
ainda, o país apresenta o aspecto surpreendeu seus primeiros
descobridores. Tudo o que significa luta do homem com a natureza,
conquista do solo para habitação e cultura, estradas e edifícios,
canaviais e cafezais, a casa do senhor, a senzala dos escravos, igrejas,
escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro,
academias e hospitais, tudo, que existe no país, como resultado do
trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de
riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que
faz trabalhar. 278
A expressão “nossas armas são brancas e puras” denota uma ligação evidente da
brancura com a pureza, no qual a oposição a esta, infere-se, a negrura com a impureza. A
virtude pintada de branco faz parte dos discursos que podemos caracterizar como
“discursos racistas”, tal como discutido no primeiro capítulo do presente trabalho. Temos
ainda o uso da palavra “perdão”. Seria perdão para os negros ou o perdão dos negros para
278
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.p.60 323 A
contribuição de Eric Foner elucidou aspectos sobre os embates no mundo do trabalho do pós-abolição.
FONER, Eric. Nada Além da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
127
279
Trecho da oração Justo Juiz, anotada por Lourenço Filho durante sua estadia em Juazeiro do Norte,
segundo o autor: “Aqui está, por exemplo, a oração do “Justo Juiz”, para “fechamento do corpo”, com
evidente adaptação”. LOURENÇO FILHO, Manoel Bergstrom. Juazeiro do Padre Cícero. 4ª edição
aumentada. Brasília, DF: Inep/MEC, 2002 p.135
280
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de
Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.49
281
MACÊDO, Joryvar. Origens de Juazeiro do Norte. Revista do Instituto do Ceará, t. XCII (1978):
239251. Sobre o autor: Joryvar Macedo é o pseudônimo de Joaquim Lobo de Macedo (1937-1991), ensaísta
e professor que foi membro da Academias Cearense de Letras e do Instituto Histórico do Ceará. 327 Ibid,
p.49.
129
282
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: EDUSP/ editora Itatiaia, 1975. (Coleção
Reconquista do Brasil volume 13)
283
As incursões exploratórias e descritivas geravam uma literatura das viagens que fascinava leitores e
estimulava viagens como a de Gardner. Para José Carlos Barreiro: “O entusiasmo despertado por leituras
de naturalistas da época, entre os quais os ingleses Cunninghann e Bowie, o africano Burchell e o alemão
Humboldt, foi também decisivo para que Gardner deixasse Glasgow em março de 1836 e desembarcasse,
aproximadamente dois meses depois, no porto do Rio de Janeiro”. BARREIRO, José Carlos. O botânico
George Gardner e suas impressões sobre a cultura escrava no Brasil: Rio de Janeiro,1810-1850. Revista
História, ciências, saúde-Manguinhos vol.24 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2017.Disponível em
https://doi.org/10.1590/s0104-59702017000300002
284
PAIVA, Melquíades Pinto. Os naturalistas e o Ceará II. Revista do Instituto do Ceará ANNO,1993 p.77-95
285
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: EDUSP; Itatiaia, 1975.p.93.
286
Ao tratar, ainda em passagem introdutória acerca da viagem ao Brasil, Gardner deixou registrado que
“os escravos são bem tratados na maior parte das plantações e parecem muito felizes; é com efeito, uma
característica dos pretos oriunda, por certo, de sua disposição apática, a facilidade de se adaptarem à sua
condição. Conversei com muitos cativos em toda a parte do país, e só de poucos ouvi expressões de pesar
por terem sido trazidos de sua terra, ou de desejo de voltarem para lá”. GARDNER, George. Viagem ao
interior do Brasil. São Paulo: EDUSP/ Itatiaia, 1975. p.25
130
O silêncio do inglês sobre a mão de obra que servia à Casa Grande desapareceu
quando relatou sua viagem ao sertão do Piauí. Gardner conta que seguia na companhia do
conterrâneo Walker e alguns outros homens quando um incidente pôs em risco sua
preciosa coleta de espécimes. Para realizar uma travessia, foi obrigado a trabalhar no leito
seco e lamacento de um rio sob um sol inclemente. Gardner adquiriu assim queimaduras
na pele, atribuindo o ocorrido à exposição do corpo quase nu durante a empreitada,
tal “como [fizeram] os pretos”, que se supõe estarem ao seu serviço desde o Crato e “não
hesitaram em expor-se ao sol287”.
Indignos de receberem uma descrição mais pormenorizada, de serem identificados
pelos nomes, os trabalhadores escravizados que acompanhavam a expedição de Gardner
eram um coletivo anônimo, diferenciado apenas pela cor e pela tarefa. Embora privados
da liberdade e sem remuneração, esses homens estavam supostamente ligados a algum
plantel, inseridos na estrutura da sociedade escravista do Oitocentos. Característico do
tratamento dispensado aos segmentos subalternos, o anonimato cedeu lugar à
desqualificação na narrativa de Gardner quando abordou os sujeitos que estavam à
margem do mundo do trabalho. Descritos pelo viajante como rebeldes, propensos ao
desrespeito das leis, os habitantes da pequena Vila do Crato passaram à posteridade como
os “desclassificados” do sertão. Segundo o botânico, o lugar seria um perfeito
“esconderijo de assassinos e vagabundos de toda a espécie, vindos de todos os cantos do
país”. A má impressão sobre os moradores da cidade não impediu, todavia, que
permanecesse no lugar. Gardner ficou no Cariri aproximadamente cinco meses, rendendo
em seu relato homenagens à bela paisagem e ao clima ameno da região, propiciado pela
presença da majestosa Chapada do Araripe. Explorou a flora e comentou sobre aspectos
do patrimônio geológico, além de realizar pioneira coleta de fósseis. Mas interessado
também nos temas da geografia humana, apontou com estranhamento os diversos
núcleos familiares formados por padres, afirmando ter se deparado com tal situação em
toda a província do Ceará, sendo o Crato um dos locais nos quais a prática o impressionou
mais, pois ali um padre “casado” 288 era uma das mais ilustres personas da cidade: o
senador e escritor cratense José Martiniano de Alencar.
287
Idem. p.116
288
Tratava-se do então senador cratense padre José Martiniano de Alencar. Sobre esta questão, comentou
também contribui BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de
Deus. Editora Imeph, Fortaleza, 2014 3ª Edição.
131
289
MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Réus de Batina – Justiça eclesiástica e clero secular no
bispado do Maranhã colonial. São Paulo Alameda, 2017.
290
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: EDUSP/ editora Itatiaia, 1975.
(Coleção Reconquista do Brasil volume 13) p. 97.
291
No mais consistente relato sobre o episódio nota-se que em diversas passagens o autor Antônio Attico
trata João Antônio simplesmente como “mameluco” ou “mameluco João Antônio”, há um reforço constante
ao longo de todo o texto de sublinhar aspectos étnicos do personagem :“No começo do ano de 1836, um
mameluco de nome João Antônio dos Santos, morador do termo de Villa-Bella, então simples distrito de
paz e comissariado de polícia de Serra Talhada, munido de duas pedrinhas mais ou menos formosas, que
mostrava misteriosamente, dizia aos habitantes daquele lugar serem brilhantes finíssimos, tirados por ele
próprio de uma mina encantada, que lhe fora revelada”. Cf. SOUZA. Antonio Attico de Fanatismo
Religioso- Memória sobre o Reino encantado na comarca de Villa Bella. Juiz de Fora: Typographia
Matoso, 2ª. Edição.1898.p23.
292
Atualmente localizada no município de São José do Belmonte.
132
(...) que aquele reino era de muitas glórias e riquezas, mas como tudo
que era encantado só se desencantava com sangue, era necessário
banhar-se as pedras e regar-se todo o campo vizinho com sangue dos
velhos, dos moços, das crianças e de irracionais; que isto, além de
necessário para Dom Sebastião poder vir logo trazer as riquezas, era
vantajoso para as pessoas, que se prestavam a socorre-lo assim; porque
se eram pretos, voltavam alvos como ao lua, imortais, ricas e poderosas;
e se eram velhas vinham moças , e da mesma forma ricas e poderosas e
imortais como todos os seus”296
293
A busca por um tempo/lugar sem males remete ao mito tupi-guarani da chamada “Terra sem males”
descrita por Ronaldo Vainfas. Cf. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios- Catolicismo e rebeldia no
Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das letras 1995 p-41-50) Compreende-se o movimento da Pedra
Bonita como desdobramento do sebastianismo que chegou ao Brasil já nos primeiros tempos da colonização
e se manifestou no que Maria Isaura Queiroz chamou de “movimentos messiânicos rústicos”. Entre tais
movimentos a autora caba por incluir também o Juazeiro do Norte. A crença no reaparecimento de um
salvador, de um rei, de um líder a ser seguido rumo à salvação e o custo de sacrifícios. (QUEIROZ, Maria
Isaura. O messianismo no Brasil e no mundo. 3ª. Edição São Paulo: Alfa e Ômega, 2003)
294
BNDigital Jornal Diário de Pernambuco, 16 de junho de 1838, No. 129 p.2 “Prefeitura da Comarca de
Flores” (carta de Francisco Barbosa Nogueira Paz, endereçada ao Presidente da Província do Pernambuco
Francisco Rego Barros.
295
Segundo o relato de Antônio Attico de Souza, o vaqueiro José Gomes abandonou o serviço na fazenda
Caiçara, cujo dono era o Major Manoel Pereira da Silva. José Gomes deixou o serviço para seguir seu tio
que trouxe as notícias do reino encantado e o convenceu a abandonar tudo e segui-lo. Ao se deparar com
as cenas trágicas, José, que passou apenas cerca de vinte dias no convívio da estranha seita, fugiu assustado.
Certamente, sua experiência de vaqueiro o auxiliou tanto para se alimentar como para se orientar nos dias
de caminhada pela mata até pedir ajuda e levar seu relato ao major Manoel. SOUZA. Antonio Attico de
Fanatismo Religioso- Memória sobre o Reino encantado na comarca de Villa bella”. Juiz de Fora: Typographia
Matoso, 2ª. Edição.1898.
296
SOUZA. Antonio Attico de. Fanatismo Religioso- Memória sobre o Reino encantado na comarca de
Villa bella”. Juiz de Fora: Typographia Matoso, 2ª. Edição.1898.p.45 e 46
297
PAIVA. Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América, entre os séculos
XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 123-
170.
133
298
Em 1875 vem a público o relato o que se passou em Pedra Bonita ou Pedra do Reino que anos depois
inspirou o romance de Ariano Suassuna. Ao escrever o texto de apresentação do livro “Fanatismo
Religioso- memória sobre o Reino encantado na comarca de Villa bella”, de Antonio Attico de Souza, o
intelectual, jurista e político cratense Tristão de Alencar Araripe (7/10/1821-3/6/1908) aponta o socialismo
como um dos males que motivam aquele episódio. Tentando encontrar explicações para o caso comete
anacronismo ao denunciar o socialismo como elemento norteador da seita sebastianista pernambucana. O
intelectual cratense chega a conjecturar que os participantes da Pedra Bonita são levados por “sentimento
que nasce da pouca reflexão, e do desconhecimento das leis sociaes fundadas nos princípios da própria
natureza, que fez o homem para lograr o fruto do seo trabalho, e não para usufruir os cabedais e as fadigas
de outrem”p.11. A interpretação do intelectual evidencia um esforço de tentar circunscrever a questão da
Pedra Bonita num campo político e ideológico, sem deixar de denunciar a questão religiosa: “No
acontecimento da Pedra-bonita não operou somente o fanatismo religioso; ali transparece também o
pensamento socialista” Cf. SOUZA. Antônio Attico de. Fanatismo Religioso- Memória sobre o Reino
encantado na comarca de Villa bella. Juiz de Fora: Typographia Matoso, 2ª. Edição.1898. p.9
299
Dentre os que estabeleceram tal paralelo elencamos: BARROSO, Gustavo. Almas de Lama e de Aço.
São Paulo: Melhoramentos, 1928,p.16. e ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora
Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66. p.12.
134
Neste sentido, o investimento na formação dos clérigos, tema tratado no primeiro capítulo,
desempenhou um papel relevante para que o ideal ultramontano pudesse adentrar a
província, modificando a feição da população citadina descrita pela crônica local.
Foi da primeira turma do Seminário da Prainha que saiu o jovem padre Cícero,
ordenado em 1870, para assumir a vigaria de Juazeiro, distrito do Crato, no ano de 1872.
O núcleo familiar dos Romão Batista também passou a residir em Juazeiro, a matriarca
Joaquina Vicência Romana e as irmãs solteiras do padre chamadas Angélica e
Mariquinhas. Seguiu junto com a família Tereza, uma escrava de nome300. Tereza fora
entregue aos seis anos de idade, junto com a mãe, ao pai do padre Cícero, como
pagamento de uma dívida. Conta-se que, tempos depois, mãe e filha foram alforriadas,
mas continuaram servindo à família e vivendo com os Romão.301
Trata-se de um exemplo da situação de dependência econômica e dos laços
afetivos no complexo tecido da esfera doméstica entre alforriados e seus ex-senhores. Tal
situação será incrementada por novos matizes no cenário pós-abolição. Neste caso,
certamente agravada pelo fato de serem uma mulher solteira e sua filha pequena. Tereza
era mais jovem que Cícero, havia nascido em 1850 e esteve ao seu lado até o dia da morte
do seu “senhorzinho”, assim o chamou por todo a vida, e foi lembrada em seu testamento.
Cronistas da cidade a descrevam como uma colabora ativa, cuidou da mãe e das irmãs de
padre Cícero, ficando ao lado deste até sua morte. “Serva fiel que mesmo com a sua carta
de alforria, preferiu continuar a serviço dos mesmos senhores”302.
E como era, àquela altura, o povoado do que acolheu o clérigo e sua família?
300
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Fortaleza: Editora
Imeph, 2014 3ª Edição.p 137.
301
OLIVEIRA. Amália Xavier de. O padre Cícero que eu conheci. Rio de janeiro: Gráfica Olímpia Editora.1969.
302
Cf.OLIVEIRA, 1969, p.296: Uma santa diariamente na igreja, recebendo a sagrada comunhão tomando
parte ativa em todas as funções religiosas. Uma ótima doméstica no serviço diário da casa que a acolheu.
Uma operária exemplar de enxada ao ombro dirigindo e fazendo os tratos culturais na roça de sua
“sinhazinha” Angélica. Terezinha contava sem complexos: “minha mãe e eu fomos entregues pelo nosso
primeiro senhor, Ioiô Candeia, por cota de uma dívida a Ioiô Romão. (...) que logo nos deu carta de alforria“.
349
PINHO. Maria de Fátima de Morais. Padre Cícero: Anjo ou demônio? -Teias de notícias e
ressignificações do acontecimento padre Cícero (1870-1915). Tese de Doutorado em História. UFF-
Universidade Federal Fluminense, 2019, 416f.p.41
135
303
Os jornais consultados na referida pesquisa foram: A voz da Religião; o Araripe; Jornal do Ceará 351
Foi antecedido pelos vigários do Juazeiro: padres José Joaquim de Oliveira, João Marrocos Teles, Luís
Barbosa Moreira, Antônio de Almeida e Pedro Ferreira de Melo.
304
“O povoado de Juazeiro tinha então apenas uns três trechozinhos de ruas, onde havia cerca de 12
casinhas de telhas, ou taipa e palha de palmeira. A capelinha erigida pelo padre Pedro era toda de tijolos e
telhas, tinha somente uma porta de frente, portas laterais, um sinozinho e um altar com uma estátua de
Nossa Senhora das dores” DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011
(Coleção Centenário)p.32
305
PINHO. Maria de Fátima de Morais. Padre Cícero: Anjo ou demônio? -Teias de notícias e
ressignificações do acontecimento padre Cícero (1870-1915). Tese de Doutorado em História. UFF-
Universidade Federal Fluminense, 2019, 416f.
306
HORÁCIO, Gustavo. “Descrição da cidade do Crato em 1882”. In Itaytera, ano V, noV. Crato: Instituto Cultural
do Cariri, 1959, p.167
136
Os detalhes acerca da casa de caridade que, àquela altura, era gerida pela Diocese,
informam a permanência da missão inaugurada ali por Ibiapina. Detalhes como as vinte
e nove portas na frente da construção e o pomar às margens do rio Granjeiro indicam que
formavam um cenário precioso, em propriedade valorizada, revelando o investimento da
Igreja nas práticas assistenciais dirigidas às jovens. Já o recolhimento fundado pelo
padre Felix merece apurado estudo. Mas pode-se dizer que está inserido no mesmo
conjunto de serviços oferecidos à população feminina local, que combinavam a instrução
formal e a orientação religiosa ou apenas o abrigo necessário em caso de orfandade ou
miséria.
Pelo menos dois aspectos da atuação do padre Cícero Romão como pároco de
Juazeiro revelam que sua inspiração foi o Padre Ibiapina: primeiro, a forma como
mobilizava seus paroquianos em atividades coletivas; segundo, o estímulo à educação
religiosa feminina.
Entre 1877 a 1879, uma grande seca castigou o interior do Ceará. A calamidade
abateu-se sobre Juazeiro e o padre Cícero empenhou-se perante o governo do Império,
pedindo auxílios para muitos famintos que afluíam dos sertões vizinhos, procurando
refrigérios no fértil vale do Cariri. Em entrevista ao jornal cratense Vanguarda, o
sacerdote contou que foi muitas vezes ao tabuleiro vizinho em companhia dos flagelados
tirar macambira, alimento que se costumava oferecer ao gado, com o intuito de
ensinarlhes como deveriam tratá-la para que pudessem comê-la, escapando assim da
fome.308
Padre Cícero começou a desenhar nesta altura o perfil da liderança religiosa que
marcaria toda sua trajetória como homem da Igreja, assumindo-se como advogado dos
errantes flagelados, fragilizados pela fome. Acolhendo os miseráveis, tornou-se pouco a
307
Idem.p.166
308
DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção Centenário).p.30.
137
pouco uma referência para os mais vulneráveis e também para o bispado. No emblemático
ano de 1888, o periódico Vanguarda noticiava aos leitores:
309
BNDigital Jornal Vanguarda, 29 de janeiro de 1888, p.2.
310
Atual cidade de Caririaçu, que fica a 691m acima do nível do mar, um considerável aclive se comparada
a Juazeiro que fica a 377m acima do nível do mar. Serra de São Pedro, emancipou-se do Crato em 18 de
agosto de 1876. Informação disponível em https://caririacu.ce.gov.br/omunicipio.php. Acessado em
20/06/2020.
311
BNDigital- Jornal Vanguarda –15 de abril de 1888 (jornal publicado no Crato)
138
As beatas do padre Cícero eram mulheres leigas que, à semelhança das irmãs das
casas de caridade de Ibiapina, faziam votos de castidade, obediência e mantinham uma
rotina de trabalho e orações. Entretanto, uma grande diferença aparta as duas experiências.
No ambiente das casas de caridade, era bastante estimulado o ensino das letras,
possivelmente por ser uma casa que acolhia meninas que precisavam de instrução
primária. As beatas do padre Cícero não recebiam instrução formal.
As beatas do Juazeiro ganharam, porém, enorme visibilidade depois que uma
delas protagonizou, em 1891, o relato que trouxe um novo sentido para a vivência católica
no Juazeiro. Ao final de uma vigília, quando já amanhecia, um grupo de fiéis recebeu do
padre Cícero a comunhão. Conta-se que, neste instante, a jovem beata Maria Magdalena
do Espírito Santo de Araújo 312 , ao receber a hóstia, sentiu a sagrada partícula
transformar-se em sangue dentro de sua boca. Tentou conter o sangramento e à vista dos
presentes manchou um lenço com sangue, que jorrava em abundância, gotejando no chão.
O acontecido levou os presentes à imediata percepção de que assistiam a um fenômeno
extraordinário313. Padre Cícero, diretor espiritual da beata Maria de Araújo, assim narrou
o episódio:
312
Nasceu em 24/05/1862 e faleceu no Juazeiro em 17/01/1914
313
Copia autêntica do processo sobre os fatos do Joazeiro (1891-1893), folha 1.
139
314
DHDPG Declaração assinada em 18 de julho de 1891 pelo padre Cícero Romão Batista e incorporada ao Inquérito
Episcopal incorporado em Copia autêntica do processo sobre os fatos do Joazeiro (1891-1893)
315
“O sangue que brotava da hóstia assim que ela entrava em contato com a boca de Maria de Araújo era
enxugado com alguns panos que foram sendo guardados pelo padre Cícero em uma urna de vidro depositada
no sacrário da pequena igreja. Aos poucos, os eventos foram ganhando popularidade, e, logo, os panos
manchados de sangue tornaram-se objeto de culto, atraindo romeiros de todas as partes do Nordeste”
NOBRE, Edianne S. “Caminhos e sujeitos da historiografia do Padre Cícero” In BUARQUE, V.A. C. (org.).
História da historiografia religiosa. Ouro Preto: Ed. UFOP, 2012.
316
“Ângela Merícia do Nascimento (28 anos, assinava o nome), Antonia Maria da Conceição (30 anos,
analfabeta), Anna Leopoldina Aguiar de Melo (19 anos, assinava o nome), Jahel Wanderley Cabral (31
anos, alfabetizada), Maria das Dores da Conceição de Jesus (15 anos, analfabeta), Maria Joanna de Jesus
(33 anos, analfabeta), Maria Leopoldina Ferreira da Soledade (29 anos, alfabetizada) e Rachel Sisnando
de Lima (40 anos, assinava o nome)” NOBRE, Edianne S. Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e
a experiência mística no Brasil do Oitocentos. Tese de Doutorado - UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. f.261271
317
Era o bispo do Ceará desde 24 de fevereiro de 1884 Dom Joaquim José Vieira (17/01/1836-8/7/1912).
318
FRANCO JÚNIOR, Hilário A Eva barbada: Ensaios de mitologia medieval, Edusp: São Paulo, 2010.p.46
319
Idem p.45
140
320
CHIQUETTO, Rodrigo Valentim & SANTOS, Valéria Oliveira. 2015. "Sobre o sacrifício". In:
Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia.
Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/sobre-o-sacrifício>
321
No ano de 2018 estimou-se que 500 mil pessoas visitaram Juazeiro do Norte em cada uma das três
principais romarias. O maior fluxo de romeiros se concentra nos meses de fevereiro, setembro e novembro,
em comemoração às respectivas romarias de Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora das Dores e
Finados, o calendário de romarias é essencialmente o seguinte: 06 de Janeiro, a Romaria de Santos Reis;
20 de Janeiro, a Romaria de São Sebastião; 02 de fevereiro, a Romaria de Nossa Senhora das Candeias; a
semana do dia 16 a 24 de março, Semana do padre Cícero; 24 de março, comemoração ao nascimento do
padre Cícero; período da Semana Santa, em abril; 20 de julho, aniversário de morte do padre Cícero; 15 de
setembro, a Romaria da Padroeira Nossa Senhora das Dores; 4 de outubro, a Romaria de São Francisco de
Assis; 1 de novembro, dia do Romeiro e dia 2 de novembro, Finados.
322
NOBRE, Edianne S. Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do
Oitocentos. Tese de Doutorado - UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. f.261-271 p.32
323
Os nomes dos pais registrados no depoimento de Maria de Araújo, em alguns autores sua mãe aparece
como Maria de Tal e seu Pai Antônio Araújo
324
Apontam tal ascendência PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,
2011 e ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização brasileira S.A, Rio de
Janeiro 1968.Coleção retratos do Brasil, volume 66.
325
Copia autentica do processo sobre os fatos do Joazeiro (folha 2)
326
FEITOSA. Padre Nery. Padre Cícero e Juazeiro, textos reunidos. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção
Centenário) p.184
141
327
Diário de Pernambuco, 24 de abril de 1887. No.93, p.3
BNDigital- Jornal
DHDPG
142
Araújo e dos quais tenho sido testemunha, ao menos com maior reflexão desde
mil oitocentos oitenta e quatro até a presente data.328
328
Cópia Autentica. Datada de 18 de julho de 1891 declaração por escrito do Padre Cícero anexada ao
processo, folha 7.
329
Cruzando fontes cartoriais e hemerográficas, a historiadora cearense desconstruiu a célebre narrativa de
que o padre Cícero depois de uma missa de Natal teria sido inspirado por um sonho a fixar-se em Juazeiro.
378
Para este fim, a pesquisadora além de apresentar uma nota publica em jornal sobre o padre Cícero
desembarcando de viagem, também localizou registros de nascimento de crianças por ele batizadas
exatamente no dia 25 de dezembro de 1871.
330
Sanguíneo, Sanguinho ou Purificatório é um objeto litúrgico, trata-se de um pano retangular e comprido
que serve para limpar o cálice, a patena e as ambulas após a Comunhão. Adaptado de
https://www.liturgiacatolica.com/objetos-liturgicos.html
331
NOBRE, Edianne S. “Caminhos e sujeitos da historiografia do Padre Cícero” In BUARQUE, V.A. C.
(org.). História da historiografia religiosa. Ouro Preto: Ed. UFOP, 2012 p.49
143
332
Existem locais de culto ao sangue sagrado, na forma de relíquias, algumas delas conservadas em ampolas
de vidro em Fécamp, Bruges, Neuvye na catedral de Mântua, que foram focos de intensas peregrinações.
Há relíquias também em São João Latrão, em Roma, em Weingarten, Sarzana, Ferrara e Auvergne. Uma
ampola venerada desde os tempos da Sereníssima República de Veneza é conservada na Igreja de São Tiago
em Clauzetto
333
Gaspar del Bufalo nasceu em Roma (Itália) a 6 de janeiro de 1786, morreu em 28 de dezembro de 1837. Foi
beatificado em 1904 e canonizado por Pio XII em 1954.
334
Maria De Mattias nasceu em 4 de Fevereiro de 1805 em Vallecorsa (Itália) e foi beatificada em 1 de Outubro de
1950. Morreu em 20 de agosto de 1866.
335
Bento XIV, 247º Papa da Igreja Católica. Nascido Prospero Lambertini em 31 de março de 1675, morreu
em 3 de maio de 1758. Seu pontificado iniciou-se em de 17 de agosto de 1740 e durou até seu falecimento
385
Pio IX, 255º Papa da Igreja Católica. Nascido Giovanni Maria Mastai Ferretti em13 de maio de 1792,
morreu em 7 de fevereiro de 1878. Seu pontificado iniciou-se em 16 de junho de 1846 e durou até seu
falecimento.
336
Pio XI, 259º papa da Igreja Católica. Nascido Ambrogio Damiano Achille Ratti em 31 de maio de 1857,
morreu em 10 de fevereiro de 1939. Seu pontificado iniciou-se em 06 de fevereiro de 1922 e durou até seu
falecimento.
337
João XXIII, Cartas Apostólicas, 1960-disponível em http://w2.vatican.va
338
BNDigital- Jornal A Constituição -órgão conservador no. 163 de 10 de outubro de 1889 p.2-3
144
Logo naquele primeiro ano da divulgação dos milagres protagonizados por Maria
de Araújo, a comparação remete ao anúncio da esperança de um novo tempo de
abundância e paz, guardadas no Novo Testamento em um cidadela no alto de um monte:
“Mas vós vos aproximastes do monte Sião, e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém
celestial”342. O lugar de júbilo descrito no Livro dos Hebreus também menciona a “pátria
celestial”393 cidade preparada por Deus que receberá os que se reconhecerem estrangeiros
e peregrinos desta terra. Ainda mais vívida e contundente é a referência no livro da
revelação de São João Evangelista, o Apocalipse:
“Vi então um céu novo e uma nova terra – pois o primeiro céu e a
primeira terra se foram, e mar já não existe. Vitambém descer do céu,
de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Jerusalém nova, pronta como
uma esposa que se enfeitou para seu marido. Nisso ouvi uma voz forte
339
Idem. Artigo assinado por Pedro da Costa Nogueira, datado de 10 de setembro de 1889. Calculou-se a
data da sexta feira mencionada no texto como sendo 6 de setembro de 1889. Uma data relacionada às
festividades de Nossa Senhora das Dores na cidade de Juazeiro do Norte.
340
Um exemplo é o verso do poeta João Mendes, artista que improvisava versos pelas ruas de Juazeiro,
cujo principal registro deve-se à transcrição de seus versos no ano de 1914 por Leonardo Mota :“Viva o
Santo Juazêro/Que é nosso Jerusalém/Viva o Padrim Padre Ciço/Para todo sempre, Amém!” MOTA,
Leonardo. Cantadores. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.p165
341
BNDigital Jornal O apóstolo-RJ. 25/12/1889 p.3
342
Hebreus 12:22-24 . Bíblia de Jerusalém, 10ª. Reimpressão, Editora Paulus, 2001. 393
Hebreus 11:16 . Bíblia de Jerusalém, 10ª. Reimpressão, Editora Paulus 2001
145
que, do rono, dizia: “Eia a tenda de Deus com os homens. Ele habitará
com eles; eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus.
Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá
morte, nem luto, nem clamor e nem dor haverá mais. Sim! As coisas
antigas se foram!” 343.
toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor,
pois a antiga ordem já passou"
343
Apocalipse 21:1-4. Bíblia de Jerusalém, 10ª. Reimpressão, Editora Paulus,2001.
344
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992 p.35
345
BNDigital Jornal Libertador20/08/1890, p.2 “aquela meca do padre Cícero”; BNDigital Jornal A
República de 20/04/1896, p.1: “Muitas infelizes que tem ido em romaria àquela Meca”; BNDigital Jornal
A República 5/10/1896: “ O Juazeiro continua a ser a Meca dos fanáticos”. E neste mesmo artigo o padre
é também chamado de “fakir” a angariar fundos para construção de uma “Mesquita”.
346
A viagem pode ser estimada em 65 km, considerando que o grupo rumou à Matriz da cidade. O percurso feito
a pé e em grupo é estimado em 15 horas de caminhada.
146
A fonte revela uma ativa participação do Padre Cícero, tirando o terço, pregando
e descrevendo publicamente a maravilha que tantas vezes presenciou. O grande fluxo de
pessoas e a organização da cidade certamente contou com articulações e planejamentos
com a participação do vigário. Maria de Araújo é descrita como “virtuosa moça” e os
paninhos ensanguentados estavam expostos aos fiéis que os podiam beijar, num contato
inédito e extasiante com a presença materializada do que criam ser parte do corpo de
Cristo. A centralidade que Juazeiro passa exercer e sua metamorfose em lugar sagrado
engendra aspectos únicos e, ao mesmo tempo, eloquentes e vívidos.
347
REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ. Fortaleza: Tomo XX. Ano XX. 3º e 4º trimestres, 1906.
348
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
147
Foi arguida ainda com a seguinte questão: “Tem tido extases e nesse estado
contempla alguns mysterios e quaes sejam estes?”:
Ao que respondeu que sim e que neste estado contempla a Jesus Christo
recommendando-lhe a consagração della a Elle proprio, tanto por si
mesma como por todos os que não o amam;350
Consagrar-se a Jesus era tornar-se sua esposa, assumindo votos de obediência, pobreza
e castidade. Maria de Araújo bem sabia que esta possibilidade não era possível em 1889,
um ano após a abolição nas outras províncias do Império, pois o ingresso de libertas nas
ordens religiosas femininas era ainda uma quimera. Na verdade, o milagre trazia à tona
questões sociais candentes, constituindo em si mesmo um discurso que atentava contra as
regras vigentes na Igreja, pois clamava pela inclusão social das mulheres negras no
serviço religioso. Criado para amparar esposas de Cristo de cor, o beatério do Horto
cumpria a função de substituir os conventos femininos, encerrando, inclusive,
experiências místicas que Maria de Araújo revelou ao inquiridor ao tratar de seus êxtases.
349
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 13.
350
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 11.
148
Quando Maria de Araújo foi perguntada “se nesse estado tem tido revelações
especiaes acerca dos factos occoridos desde mil oitocentos oitenta e nove até a prezente
data nesta povoação do Joazeiro?”351, respondeu:
“ (...) sim; porquanto Nosso Senhor Jesus Christo lhe tem revelado que
tudo isso se opera para a conversão dos peccadores e perseverança dos
justos; chegando até queixar-se amargamente da ingratidão dos homens
para com elle e chamando-os a aproveitarem-se de suas graças
emquanto é tempo de misericórdia.”352
A última declaração de Maria de Araújo não partiu de uma questão dirigida, mas do
desejo de deixar registrado algo que lhe conviesse. Falou então da infância e desde
quando tinha vivenciado os fenômenos hora discutidos, revelando uma longa intimidade
com o sagrado e declarando que não recebera instrução religiosa até o encontro com Padre
Cícero. Declarava assim que a vocação religiosa era-lhe nata, mas sua condição social e
familiar impedira-lhe de vivê-la em plenitude. Maria Araújo era filha de escravos e a
santidade um apanágio dos brancos no mundo luso-brasileiro.354
Os encarregados do primeiro inquérito não tiveram diante de si apenas os
testemunhos orais, compartilharam experiências místicas com a beata Maria de Araújo.
O Monsenhor Monteiro, Reitor do Seminário São José no Crato, ao descrever as
comunhões de sangue por ocasião de um retiro espiritual dado por ele no Juazeiro entre
os dias 9 e 16 de janeiro de 1891, registrou ocorrência diária dos fenômenos:
11 de Janeiro, commungou Maria de Araújo em minha mão direita, á
noite, renovando os seos votos, em pé, no altar onde está o sacrario,
deixando a mão ensanguentada e alguns panninhos.
351
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 11.
352
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 11.
353
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 13.
354
Cf. SANTOS, Georgina Silva dos. “Devoção, Disciplina e Preconceito: a construção da santidade em
conventos e recolhimentos da América portuguesa”. Revista Lusitania Sacra, 2ª. série, julho-dezembro de 2013,
vol.28, pp. 153-172.
149
355
DHDPG Copia authentica do Relatorio de Monsenhor Monteiro sobre os factos do Joaseiro/Relatorio
apresentado a Commissão Episcopal examinadora dos factos maravilhosos do Joaseiro desta Freguesia do
Crato, por Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro, Reitor do Seminário da referida Freguesia. folhas
107 e 108.
356
Idem, folha 107.
150
elementos observados por Edianne Nobre357 do que ela considerou uma espécie de mútuo
convencimento: os investigadores creram nos fatos extraordinários.
O bispo Dom Joaquim não se satisfez com a conclusão, justificou sua insatisfação
acusando de desobediência os membros do primeiro inquérito. Considerou que tanto
Padre Cícero quanto os investigadores teriam sido enganados pela beata. Findou por
nomear outra comissão, em abril de 1892. Desta feita, a segunda comissão negou a
existência de milagres. Em diversas oportunidades, durante a investigação, a hóstia não
havia se transformado novamente em sangue. Em seguida, vieram as imediatas, as
providências do Palácio Episcopal, e Padre Cícero foi proibido de pregar, confessar, dar
conselho aos fiéis e celebrar missa em Juazeiro358.
A interpretação de Carlos Alberto Steil desta questão do milagre no Juazeiro e a
reação oficial da Igreja expõe um contexto que leva em conta para além do milagre em si,
a questão do “onde” aconteceu o fato prodigioso:
357
NOBRE, Edianne S. Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do
Oitocentos. Tese de Doutorado - UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. f.261-271.p.254
358
RAMOS. Francisco Régis Lopes, O meio do mundo: território Sagrado em Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza:
Imprensa Universitária, 2014. p.37
359
STEIL. Carlos Alberto. “Padre Cícero: Tradição e modernidade”. In Anais do III Simpósio
Internacional Padre Cícero... E quem é ele? p.183-185
151
360
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 139
361
Com data de 18 de outubro de 1891. Cópia autentica do Relatório de Mons. Monteiro sobre os factos do
Joaseiro. Relatório apresentado à Comissão Episcopal Examinadora dos factos maravilhosos do Joaseiro,
desta freguesia do Crato. Documento publicado em CASIMIRO. Antônio Renato Soares de (org).Padre
Cícero e os fatos do Joaseiro: a questão religiosa. Fortaleza: Editora Senac Ceará, 2012. p518-525
152
362
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização brasileira S.A74., Rio de
Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.74.
153
363
BNDigital Jornal O Apóstolo-RJ, 30/09/1894, pp.3-4.
364
BNDigital Jornal O Apóstolo-RJ, 30/09/1894, p.4.
365
PINHO. Maria de Fátima de Morais. Padre Cícero: Anjo ou demônio? -Teias de notícias e
ressignificações do acontecimento padre Cícero (1870-1915). Tese de Doutorado em História. UFF-
Universidade Federal Fluminense, 2019, 416f.p.185.
154
A descrição dos que moram fora da cidade é explicada pelo fato do Crato ter um
núcleo urbano central, porém uma vasta extensão territorial formada por sítios, fazendas
e chácaras. Nestes lugares, a elite mantinha suas sedes de fazenda e suas casas de morada,
sendo as propriedades do centro usadas em algumas ocasiões. Observamos que não há
nenhum apelo sobre auxílio ou amparo para a possível calamidade provocada pela
estiagem. Há a possibilidade de recolhimento dos proprietários em casa centrais, menos
isoladas e menos vulneráveis, e o temor assombrado do que potencialmente os romeiros
fariam. Porta-voz da elite local, Monsenhor Alencar nos conta como os romeiros eram
vistos, tratados e relegados à categoria de bárbaros pelos cratenses enriquecidos.
O tratamento hostil contrastava com o papel desempenhado pelas constantes levas
de romeiros para o crescimento da cidade, interrompido pelas secas de 1898 e 1900,
período em que a povoação começou a decair e os imóveis construídos no auge das
peregrinações passaram ao estado de abandono366. Na virada do século, a instabilidade
rondava Juazeiro e a reivindicação da autonomia política ganhou fôlego.
366
SOBREIRA. Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. 1969 .2a. edição Editora VOZES p.72
155
Ao voltar ao Ceará, sem abandonar a defesa dos milagres, o padre Cícero foi
punido com a suspenção das ordens e Maria de Araújo foi recolhida à casa de Caridade
do Crato. As ordens do padre não haviam sido totalmente suspensas àquela altura, estando
ele habilitado ao serviço, desde que fora de Juazeiro. Esta foi a condição imposta pela
revisão do processo que obteve em Roma. Desde então ministrou nos arredores de
Juazeiro, nas localidades de Sítio São José e Sítio Saquinho, tendo recebido autorização
de seu diocesano em 1902. Em março de 1906, tentou apelar sobre tal decisão,
justificando que enfrentava dificuldades por questões físicas para se locomover para
celebrar. Não foi atendido. A decisão final sobre seu afastamento nunca foi por ele
conhecida.367.
O caminho da política começou então a ganhar sentido para o líder de Juazeiro.
Sobre ele já recaía a responsabilidade que exorbitava sua antiga condição de clérigo.
Mesmo sem o estabelecimento de suas plenas funções sacerdotais, Padre Cícero era o
gestor de Juazeiro mesmo antes da conquista da elevação a município. Juazeiro
conquistou sua autonomia em 1911, emancipando-se da cidade do Crato e seu primeiro
prefeito (Intendente) foi exatamente o Padre Cícero Romão Batista. Segundo conta o
Padre Azarias Sobreira, em conversa com Padre Cícero, recebeu do sacerdote a seguinte
explicação acerca da opção pela política:
367
Uma cronologia organizando as principais punições desde o resultado do segundo inquérito, baseada na
bibliografia disponível e na síntese apresentada na matéria “PERDÃO DO VATICANO”, publicada no
Jornal O povo em 13/12/2015”: (6 de agosto de 1892) Portaria do bispo D. Joaquim suspende o Padre
Cícero das faculdades de confessar, pregar e administrar sacramentos. (13 de abril de 1896) O bispo D.
Joaquim acresce a pena ao Padre Cícero, a partir dali estava proibido de celebrar Missas. (10 de fevereiro
de 1897) O Santo Ofício emite um novo Decreto, agora proibindo a permanência de Padre Cícero em
Juazeiro, sob pena de excomunhão. Em junho do mesmo ano deixa Juazeiro passa a uma temporada em
Salgueiro-PE. (22 de junho de 1898). Em resposta ao apelo feito na viagem a Roma. Após novos
interrogatórios os cardeais do Santo Ofício decidem indultar o Padre Cícero das censuras até ali impostas.
Permanece a proibição de pregar, confessar e dirigir as almas e é aconselhando a procurar outra diocese.
(15 de novembro de 1898) Padre Cícero se apresenta a Dom Joaquim em Fortaleza e lhe informa que fora
absolvido em Roma. Mas o bispo, a quem cabia interpretar e efetivar à sua forma a decisão do Santo Ofício,
não permite que ele celebre em Juazeiro.(12 de julho de 1916) O Santo Ofício declara o Padre Cícero
incurso na excomunhão latae sententiate. A comunicação desta decisão ao Núncio Apostólico Dom José
Anversa data de 27 de julho de 1916. (29 de abril de 1920) Passados três anos da comunicação da
excomunhão latae sententiate dom Quintino, bispo do Crato encaminha ao padre Cícero a comunicação da
decisão. Por sua avançada idade seus assessores próximos não o deixaram saber desta notícia que muito o
abalaria. (No dia 23 de fevereiro de 19210 O Santo Ofício analisou a solicitação de Dom Quintino ao Papa,
que pede a absolvição das censuras e a permissão de celebrar, e resolveu atender apenas à primeira parte
(absolvição das censuras, aí incluindo a excomunhão), mas não concedeu o direito de celebrar, podendo o
Padre Cícero receber os sacramentos como simples leigo. Permanece a recomendação deixar o Juazeiro. (3
de junho de 1926) Como Padre Cícero permaneceu em Juazeiro Dom Quintino acatando determinação do
Santo Ofício o suspende novamente, retirando-lhe o uso de ordens. Disponível em OPovo.com.br
156
Uma perda importante nos primeiros tempos da inserção formal de padre Cícero
no campo da política foi a morte de seu primo José Marrocos. No ano de 1909 Marrocos
atuava como professor na cidade do Crato, em diversos números do Jornal o Rebate
podemos encontrar na página 4 um anúncio do Collegio Cratense, do qual era diretor. Seu
zelo como professor não o afastava de constantes visitas ao primo de quem continuou
como amigo chegado. Um jornal de Fortaleza370 noticiou sua partida em 14 de agosto de
1909. A notícia necrológica ainda demarca seu papel como ativo abolicionista, mesmo
passados tantos anos de sua militância no jornal Libertador. Tal fato marcou sua biografia
e o insere no rol de intelectuais cearenses engajados na causa da liberdade. Depois da
abolição seu foco muda, além de cuidar de seus estudantes muito trabalhou no intento de
ver reabilitado o primo e de comprovar que não houve falsificação ou embuste nos fatos
de 1889.
368
SOBREIRA. Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. 2a. edição Editora Vozes, p.93
369
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro
1968.coleção retratos do Brasil, volume 66. p.258.
370
“Faleceu no dia 14 este, em Joaseiro do Cariry, o conhecido jornalista e homem de letras: José Joaquim
Telles de Marrocos.O Ceará lhe deve muito, sobretudo na libertação dos escravos aonde ele ocupou um
papel bem saliente. Foi redator do antigo jornal “Libertador” e professor de muitos moços que hoje ocupam
posições elevadas na sociedade. Morreu pobre, tendo a beira do leito mortuário o seu maior amigo o Rvdo.
Padre Cícero Romão Batista. Pesamos aos seus irmãos e sobrinhos.” BNDigital Jornal do Ceará de
31/08/1910 ,p.2.
157
Nos primeiros anos do século XX, a Jerusalém sertaneja estava enredada numa
teia de relações políticas, deixando de ser um provisório acampamento de fiéis em busca
de aconselhamento e guarida e erguendo-se como núcleo urbano complexo e dinâmico.
O padre, que fora afastado de suas ordens ao defender como milagre os fatos
extraordinários com a virtuosa Maria de Araújo, de quem era orientador espiritual, acabou
se tornado o primeiro prefeito e como tal, teria que responder pela administração, pelas
contas e pelo desenvolvimento da cidade.
Ao entrar na política o padre abraçava a oportunidade de exercer alguma influência
nos destinos daqueles que o procuravam não pelo político que se tornava e sim pelo padre
que sempre foi. A interpretação de Marcelo Camurça aponta o reducionismo das
interpretações que descrevem o padre Cícero como um coronel da primeira república, um
chefe oligárquico a exercer mando e acumular bens. Para este autor, padre Cícero fez
política, mas sempre guiado por uma “cosmovisão católica-sertaneja que organizava sua
postura e ética de vida”371: Padre Cícero funcionava como um “conselheiro” e um “padrinho” para o
povo do sertão, aconselhando centenas de homens e mulheres em todos os aspectos da sua vida cotidiana:
econômico, social, terapêutico, afetivo, moral etc. Esta sua prática era reconhecida pelo povo como um
apostolado e um serviço e não como um exercício de mando e exigência de subserviência, que geravam
temor e o respeito que este mesmo povo nutria pelos coronéis 423
371
CAMURÇA, Marcelo. Padre Cícero: entre a política e a religião popular Anais do III Simpósio
Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro: 2004,pp.132-136 423 Idem
372
DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção Centenário).p.74
158
373
Idem,p.75
374
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza, 2014 3ª Edição p.289
375
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza, 2014 3ª Edição. p.287
159
estritamente político 376 . Apesar dos cargos importantes 377 nunca deixou Juazeiro, não
chegou a ir a Fortaleza para tomar posse do cargo de vice-presidente do estado e jamais
exerceu de fato o mandato de deputado federal para o qual foi eleito.
Compreendemos que soube aproveitar a política a seu modo, atuando como
articulador em defesa de seus interesses locais, ou como admite o próprio Rui Facó: "uma
ambição voltada para o meio em que vivia”. Mas o mesmo autor admite o distanciamento
de Cícero das esferas políticas dos grandes centros, entendendo o comportamento como
uma defesa, posto que o consideravam provinciano e dependente da ingenuidade dos
romeiros. Estes tidos como tolos e fanáticos pelo autor:
376
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: Gênese e lutas Editora civilização Brasileira S.A Rio de Janeiro 1976
4º. Edição p.162
377
Prefeito de Juazeiro do Norte a partir de 1911, filiado ao Partido Republicano Conservador (PRC). Foi
prefeito por 12 anos e, concomitantemente, vice-presidente do estado do Ceará em 1913. Em 1926 foi eleito
deputado Federal.
378
Idem
160
379
Floro Bartolomeu da Costa (17/08/1876-8/03/1926). Médico baiano que se estabeleceu em Juazeiro a
partir de 1908. Apoiador e incentivador do padre Cícero no campo político. Foi deputado Estadual e
Deputado Federal por duas legislaturas (1921-1926), sendo a última interrompida por seu falecimento. Foi
a “mão de ferro” a organizar e disciplinar o Juazeiro em moldes que considerava adequados a uma cidade
em desenvolvimento, neste sentido protagonizou ações polêmicas e autoritárias.
380
SOBREIRA, Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. 1969.2a. edição Editora VOZES p.110
381
As declarações de Floro Bartolomeu aparecem num discurso de defesa do Juazeiro como deputado na
Câmara Federal. A necessidade desta defesa foi provocada pelo depoimento de Paulo Moraes e Barros que
realizou conferência sob o título “Impressões sobre o Nordeste” que criticavam o Juazeiro. Ao defender a
cidade Floro Bartolomeu, entre outras coisas, optou por apresentar casos de pessoas recuperadas das
condições extremas. Paulo de Moraes Barros era médico e político e esteve no Ceará ao lado do deputado
Ildefonso Simões Lopes e pelo general Cândido Mariano da Silva Rondon, como membros de uma
comissão a serviço da Inspetoria Federal de Obras contra a Seca (Ifocs). Cf COSTA, Floro Bartholomeu
da. Juazeiro e o padre Cícero: depoimento para a História. Coedição Secult /Edições URCA. Fortaleza:
Edições UFC, 2010
161
A terrível cena presenciada deixa evidente que havia pelo menos duas graves
questões convergindo. A primeira é o tratamento desumano dado àquelas pessoas,
transportadas por grande distância em condições horrendas. De Jati a Juazeiro são cerca
de 87 km pelas rotas atuais, sendo que se trata de uma pequena localidade na fronteira
com Pernambuco. A descrição sinaliza que estas pessoas vinham desde a outra província
em condições precárias. Esta romaria insana (podemos assim definir pelo seu trágico
cerne) revigorava, como as outras migrações, a centralidade de Juazeiro, que se afirmava
como portal para a cura e a renovação através da assistência à população carenciada, que
382
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio
de Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.260 O grifo é meu 435 ANSELMO,1968,
p.26.
162
383
Apud DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção Centenário) p.195
384
BEZERRA, Rafael Santana. A República dos Incapazes: Nina Rodrigues e a situação legal dos loucos
no Direito Civil brasileiro (1899-1916). Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2017.
163
Racializar as doenças da mente era uma prática vigente e inserida numa realidade
na qual os manicômios eram lugares de isolamento e castigo, tornando-se, praticamente,
um caminho sem volta386. O psiquiatra negro Juliano Moreira387388 fez uma trajetória de
das exceção ao lidar com a questão. Em 1903, passou a dirigir o Hospício Nacional de
Alienados, da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, cargo no qual esteve por vinte e sete
385
MACHIN, Rosana e MOTA, André. Entre o particular e o geral: a constituição de uma “loucura
negra” no Hospício de Juquery em São Paulo, Brasil – 1898-1920.In Interface vol.23 Botucatu 2019
disponível em https://www.scielo.br/pdf/icse/v23/1807-5762-icse-23-e180314.pdf, acesso em 20 de agosto
de 2020
386
Sobre esta questão consultar ENGEL, Magali Gouveia Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios
(Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001; BARBOSA. Rosana Machin. Presença negra
numa instituição modelar: o hospício do Juquery. São Paulo Dissertação de Mestrado em Sociologia- USP,
1992, 188f e DOS SANTOS, Patrick Silva, O pós-abolição e o estigma do alienado no romance social O
cemitério dos vivos, de Lima Barreto. Revista Ensaios, vol. 14, jan-jun de 2019.
387
Juliano Moreira (06/01/1873-02/05/1933). Academia Brasileira de Ciências (Membro Fundador)
388
/05/1916.Doutor em Medicina - Faculdade de Medicina da Bahia (1891). Tendo atuado no Hospital de
Santa Isabel da Faculdade de Medicina da Bahia. Foi Interno da Clínica Dermatológica e Sifilográfica
(1890). Assistente da Cadeira de Clínica Psiquiátrica e Doenças Nervosas (1893-?).Preparador da Cadeira
de Anatomia Médico-Cirúrgica (1894-?).Lente substituto da 12ª Seção de Clínica Psiquiátrica
(1896?).Médico Adjunto do Hospital Santa Isabel. Hospital São João de Deus/Alienista (1893-1903). No
Ministério do Interior e Justiça: Diretor do Hospício Nacional de Alienados (1903-1930). Comissão (1904).
Diretor Geral de Assistência a Alienados (1911-1930). Resumo baseado nos dados da Academia Brasileira
de Ciências, da qual o Dr. Juliano Moreira foi membro fundador. Disponível em https://web.archive.org.
Mais sobre seu trabalho em: Por GALDINI, Ana Maria, ODA, Raimundo e DALGALARRONDO. Paulo.
Juliano Moreira: um psiquiatra negro frente ao racismo científico. Revista Brasileira de Psiquiatria, vol.
22 nº 4. São Paulo, dezembro de 2000.
164
389
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Subsecretaria de Assuntos Administrativos.
Memória da loucura: apostila de monitoria / Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva, Subsecretaria de
Assuntos Administrativos. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. 88 (Série I. História da Saúde no Brasil)
p.26
390
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de
Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.12
165
391
CORTEZ, Antônia Otonite. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Dissertação de
mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
392
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de
Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.87
393
APEC. Chefe de Polícia Samuel Fellipe de Sousa Uchôa. Anotação no. 1576 com data de 22 de
dezembro de 1890. Fundo Chefatura de Polícia.
166
As primeiras análises não dão conta de nenhuma avalanche de delito, mas há muito
a ser palmilhado em busca de compreender esta questão, como este medo foi nutrido e
que bases concretas poderiam justifica-lo. A miséria não era uma novidade, mas tinha um
“lugar” na sociedade, o ajuntamento de miseráveis e sua organização em diversas frentes,
fazendo emergir o que Michel Mollat descreveu como suspeita: “errante, o pobre não é
apenas um não-reconhecido. Apartado do seu quadro social –não seria ele um rebelde?
Um vagabundo, um propagador de epidemias?”448
O Juazeiro não abrigava os pobres “conhecidos”, beneficiários de uma ou outra
ação de caridade praticada com zelo e até alívio pelas elites do Crato. Eram desconhecidos
e a impossibilidade de controle pesava como ameaça constante desde os primeiros anos
após o milagre, permanecendo vivo no momento da emancipação de Juazeiro
Os ânimos estavam exaltados, especialmente depois do momento em que Padre
Cícero abraçou a vida política com a emancipação de Juazeiro do Norte, ocupando cargos
eletivos como prefeito e vice-governador. Seu envolvimento nos conflitos de 1914, que
culminaram no afastamento do governador Franco Rabelo também adensaram as
percepções e reascenderam as dúvidas em torno de sua figura. Foi no campo político que
se engendrou um conflito de grandes proporções envolvendo a então recém-criada cidade
de Juazeiro449. No ambiente político nasce, mas nele não será explicado, o episódio da
“Guerra de 1914” ou “Sedição de Juazeiro”. Em Juazeiro, já estabelecido como liderança
política, o padre articulará o chamado “Pacto dos Coronéis” registrado num documento
que era um verdadeiro armistício, se levarmos e conta as rivalidades e o nível de
394
O acesso ao Arquivo Público do Ceará que guarda os documentos da Chefatura de Polícia foi
interrompido pela quarentena, acessei apenas os livros 1889 e 1890.
167
448
MOLLAT. Michel. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989. P.8
449
CAMURÇA, Marcelo. Marretas, Molambudos e Rabelistas: a revolta de 14 no Juazeiro. São Paulo:
Maltese, 1994
450
Cf .PERICÁS, Luíz Bernardo. Os cangaceiros: Ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo
Editorial, p.179: “No dia 4 de outubro de 1911, reuniram-se em Juazeiro do Norte por volt adas 13h, os
seguintes chefes políticos: Coronel Antônio Joaquim de Santana, chefe do Município de Missão Velha;
Coronel Antônio Luís Alves Pequeno, chefe do Município do Crato; Reverendo Padre Cícero Romão
Batista, chefe do Município do Juazeiro; Coronel Pedro Silvino de Alencar, chefe do Município de Araripe;
Coronel Romão Pereira Filgueira Sampaio, chefe do Município de Jardim; Coronel Roque Pereira de
Alencar, chefe do Município de Santana do Cariri; Coronel Antônio Mendes Bezerra, chefe do Município
de Assaré; Coronel Antônio Correia Lima, chefe do Município de Várzea Alegre; Coronel Raimundo Bento
de Sousa Baleco, chefe do Município de Campos Sales; Reverendo Padre Augusto Barbosa de Meneses,
chefe do Município de São Pedro de Cariri; Coronel Cândido Ribeiro Campos, chefe do Município de
Aurora; Coronel Domingos Leite Furtado, chefe do Município de Milagres, representado pelos ilustres
cidadãos Coronel Manuel Furtado de Figueiredo e Major José Inácio de Sousa; Coronel Raimundo Cardoso
dos Santos, chefe do Município de Porteiras, representado pelo Reverendo Padre Cícero Romão Batista;
Coronel Gustavo Augusto de Lima, chefe do Município de Lavras, representado por seu filho, João Augusto
de Lima; Coronel João Raimundo de Macedo, chefe do Município de Barbalha, representado por seu filho,
Major José Raimundo de Macedo, e pelo juiz de direito daquela comarca, Dr. Arnulfo Lins e Silva; Coronel
Joaquim Fernandes de Oliveira, chefe do Município de Quixadá, representado pelo ilustre cidadão major
acalmados que escondia tensões, especialmente com relação à emancipação do Juazeiro,
mal digerida pelos políticos cratenses, o pacto sela a entrada do padre Cícero para a vida
pública em outro patamar, mais ambicioso e articulado de forma pessoal a grandes
lideranças. Além de prefeito, o Padre Cícero se projetava como liderança.
Uma questão mais ampla evidenciou ambições e tensões latentes: trata-se da
intervenção salvacionista do presidente Hermes da Fonseca que levou à queda o governo
de Nogueira Aciolly, até então governador do Ceará que contava com apoio do Padre
Cícero. Um novo governador, Franco Rabelo, é indicado pelo presidente. O cenário
favorece uma revanche do Crato e, em meio a tensões diversas, Juazeiro encontra-se
ameaçado contando então com a famosa defesa dos romeiros no “Círculo da Mãe de Deus.
A larga vala que protegeu a cidade, uma trincheira de combate, cuja construção coletiva
teve a participação voluntária de centenas de pessoas a cavar noite e dia. O valado, ou
trincheira, ganhou o nome de círculo da mãe de deus em sinal de devotada expectativa e
proteção. Estima-se que Juazeiro contava com cerca de vinte mil habitantes quando
eclodiu o conflito armado451.
A defesa era necessária pois em janeiro de 1914, depois da deposição do
governador do Ceará, o conservador e oligarca Antônio Pinto Nogueira Aciolly
(18401921), assume o coronel Marcos Franco Rabello (1851-1940) e agravaram-se as
168
hostilidades contra o Juazeiro, porque o novo governador foi convencido a ver o Juazeiro
como insurgente e ameaçador, um abrigo da criminalidade e do fanatismo, as
comparações com Canudos eram constantes. Em janeiro de 1914, tropas leais a Franco
Rabelo juntaram-se à polícia do Crato e acamparam nas periferias do vilarejo planejando
uma impiedosa invasão. Juazeiro foi defendido pelos seus moradores e por inúmeros
voluntários. Um dos elementos centrais para o sucesso da defesa foi a construção de um
valado construído às pressas. O valado cercou a cidade e garantiu sua proteção até que
dali partiu uma leva de defensores de Juazeiro a enfrentar cidades vizinhas, e de combate
em combate chegar a Fortaleza depondo o governo de Franco Rabelo. Em março de 1914
o presidente Hermes da Fonseca nomeou interinamente Fernando Setembrino de
Carvalho, em seguida novas eleições foram convocadas, no pleito Benjamin Liberato
Barroso foi eleito governador e Padre Cícero voltou assumiu como vice-governador.
José Alves Pimentel; e o Coronel Manuel Inácio de Lucena, chefe do Município de Brejo dos Santos,
representado pelo Coronel Joaquim de Santana”.
451
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a revolução de 1914. 2ª. Edição. Fortaleza: Editora
IMEPH, 2011 (Coleção centenário) p.23.
Os combates no campo político correram em paralelo com os combates em torno
da fé: do direito ao reestabelecimento das ordens clericais, algo perseguido pelo Padre
Cícero até seus últimos dias. As tentativas da Igreja de controlar ou conter as práticas dos
romeiros. Tal cenário inspirou narrativas, algumas consideradas fundantes e explicativas
acerca do Juazeiro. Mas bem antes dos intelectuais deixarem registradas suas impressões,
antes de Juazeiro ser objeto de estudo era lugar de convergência, devoção e acolhimento.
“ Quem matou não mate mais. Quem roubou não roube mais” de inúmeras
formas e em diversos contextos essas palavras do Padre Cícero são lembradas. São a
redenção e o renascimento explicados de maneira simples e direta, de um jeito que todos
entendem. Uma oportunidade para viver, recomeçar ou simplesmente acreditar, sendo que
a esperança era um pássaro raro nos sertões de finais do XIX.
Os romeiros aparecem diluídos nos grupos de adventícios, e são muitas vezes
“bando”, “multidão”. Tentar uma aproximação com estes personagens é uma questão que
169
funda a proposta desta Tese: a questão do Juazeiro como possível destino e esteio para
migrantes inseridos no processo de sociabilidade do pós-abolição.
Proponho voltarmos a uma as primeiras personagens relacionadas ao contexto
pós-abolição, a Teresa do Padre, uma liberta que permaneceu com seus senhores e veio
junto com a família Romão ao Juazeiro:
Teresinha, como era conhecida escrava que foi dos pais do padrinho
Cícero desde pequena criada por eles, depois liberta e continuando a
servir os seu ex-senhores com a mesma amizade e amor que lhe votava.
Era uma criatura mulata e solteira, honesta e fiel no cumprimento de
seus deveres, na obrigação de serventuária, exímia lutadora, constante,
de uma firmeza exemplar aos seus amigos ex-senhores que a estimavam
de um modo honroso (...) sabia ler e era inteligente, de uma memória
invejável ( ...) era de estima de padrinho Cícero e de toda confiança,
afinal era uma criatura de predicados tais que não se levava em conta a
sua baixa condição (...)”395
395
GUIMARÃES, Fausto da Costa. Memórias de um romeiro. Fortaleza: Editora IMEPH- Coleção
Centenário, 2011. p.79
396
Trata-se do testemunho de Fausto da Costa Guimarães, um romeiro que chegou de mudança com a
família a “Joaseiro”, no ano de 1909. Era natural de Soledade na Paraíba e como devoto visitava o Joaseiro
170
martírios e muito lhe auxiliavam nos grandes ataque e deveres de casa.”455 Quem seria
estas “mulatinhas romeiras”? Eram beatas, castas e dedicadas à religião ou realizavam um
trabalho doméstico de alguma forma recompensado?
O ano de 1914 não marca apenas os combates da guerra civil cearense, foi naquele
ano que faleceu a beata Maria de Araújo. Seus últimos anos foram vividos com o peso
das punições a que foi submetida como penalidade por sua participação no que a Igreja
chamou de participação em supostos milagres. Maria de Araújo continuou a viver em
Juazeiro e não estava totalmente isolada ou recolhida, lembra um contemporâneo que a
descreve como uma mulher pobre que “não tinha uma choupana onde morasse” e vivia
desde o ano de 1905, ao estabelecer morada atuou como modesto comerciante. Nos conflitos de 1914
colaborou na resistência do e nos embates perdeu o pouco que tinha, ficando também debilitado fisicamente.
Passou a ocupar um cargo na coletoria, atuou no serviço público por um período e depois reergueu seu
pequeno comércio. Colaborou como auxiliar direto o padre Cícero, servindo por doze anos (1916 a 1928)
como escrivão das cartas do Padre em resposta aos romeiros, depois de forma menos regular continuou
colaborando com o padre.
454
“A Irmandade da Terra Santa é o órgão oficial instituído pela Igreja, responsável pela manutenção e
divulgação dos chamados Lugares Santos. Os Lugares Santos assinalam o palco dos Mistérios de nossa
Redenção: Nascimento, Vida, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, filho de Deus. Na sua pregação,
sofrimento na cruz, gloriosa ressurreição e vinda do Espírito Santo” Assim é atualmente descrita o
comissariado da Terra no site institucional
www.comissariadoterrasanta.com.br/comissariados/historiasanta. Teve origem no século XII e está
vinculada à Ordem Franciscana. É necessário pesquisar sua presença em Juazeiro do Norte, sem fontes
localizadas até presente momento.
455
GUIMARÃES, Fausto da Costa. Memórias de um romeiro. Fortaleza: Editora IMEPH- Coleção
Centenário, 2011.p74
sob da proteção de Padrinho Cícero: “Era Maria de Araújo que tirava grande quantidade
de esmolas em legumes e dinheiro para a Casa de Caridade do Crato todos os anos”397.
Ironicamente, aquela casa na qual permaneceu forçada por imposição de ordem do
Diocesano.
Mais exemplos nos chegam de mulheres negras vivendo ao redor do padre e
dedicadas a cuidados vários, desta vez mulheres beatas, como a própria Teresa do Padre.
Estas eram castas, dedicadas a serviços diversos que iam de zeladoria do templo a
trabalhos que passavam pela portaria, copa e cozinha ou cantar em momentos solenes:
Maria das Malvas: como era conhecida era uma beata solteira e parda,
porém sem valor. Servindo sempre a padrinho Cícero como
serventuária da casa nas coisas para padrinho Cícero e muito fiel no
cumprimento de seus deveres. Honesta e forte, enérgica no emprego de
397
GUIMARÃES p,73
171
abrir a porta para o povo entrar em casa de padrinho, o que muitas vezes
se via obrigada a agir.398
Martinha do Espírito Santo e Maria Preta foram descritas como sendo criadas do
padrinho Cícero que gozavam de toda de toda sua confiança. Martinha era natural do Rio
Grande do Norte, era uma “mulatinha de costumes puros e amiga da religião. Cozinheira
exímia do padrinho Cícero e de tão bons modos que era estimada por todos” 399. Já Maria
Preta era da Paraíba, copeira e ativa colaboradora nas recepções na casa do padrinho.
Ambas foram alfabetizadas ainda crianças e também participavam das atividades
religiosas e celebrações. Eram duas migrantes, e pelo que se pode deduzir teriam sido
instruídas nas letras e na fé já no Juazeiro, ainda crianças. Maria Preta era também cantora
nas celebrações. Estes trânsitos que articulam migração, instrução básica para meninas e
trabalho revelam, através do relato das vidas de Martinha e Maria Preta um lugar possível
para jovens negras, de cujas famílias originais não há menção, talvez fossem órfãs.
Estes exemplos nos encorajam a pensar na peculiaridade daquele tempo/espaço,
uma porosidade, uma possibilidade alcançar relevância ou evidência para mulheres
migrantes, pobres e pretas que em poucos lugares seria possível. No começo do século
XX as atividades que agregavam os fiéis eram sustentadas e animadas por figuras assim,
que iam da roça ou da cozinha para a frente de círculos de oração, para a organização de
festas. A tentativa da Igreja de reprimir o avanço da mística do Juazeiro acabou por
estimular que em canais invisíveis e silenciosos esta mítica criasse raízes profundas.
Ao tentar isolar ou reprimir o que se germinava em juazeiro a Igreja deixou por
anos, depois das punições infligidas ao padre Cícero, entre 1895 até 1916 (21 anos!) a
igreja Matriz de Nossa Senhor das Dores sem autorização de receber nenhum sacerdote.400
Todos os serviços eram oferecidos por religiosos que faziam visitas esporádicas. A opção
398
Idem.p.77
458
Idem p.76
399
GUIMARÃES, Fausto da Costa. Memórias de um romeiro. Fortaleza: Editora IMEPH- Coleção
Centenário, 2011.p.82
400
PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de Juazeiro do Norte.
Fortaleza, IMEPH, 2011.p123.
172
do Bispo de não nomeia um vigário fixo para tender o Juazeiro é explica por um risco à
segurança deste clérigo que seria mal visto, estaria ameaçado. Só o faria com o apoio do
Estado (força policial?).
Pois o Juazeiro, na sua singular evolução, já havia se transformado num
perigoso antro de ladrões, desordeiros e criminosos da pior espécie,
onde só uma voz era ouvida e acatada, a do Padre Cícero (...)
Considerando-se a situação anômala em que achava o Juazeiro no limiar
deste século, sobretudo com a ausência de garantia pessoal para um
representante do Clero, avesso às superstições locais, chega-se à
conclusão que Dom Joaquim mais uma vez demonstrara bom senso e
agudeza de espírito ao cancelar o envio de Missionários à turbulenta
população.401
Nem por isso as preces silenciaram. As rezas não pararam, eram beatas que
diariamente ocupavam o espaço deixado pela Igreja: terços, ofícios, novenas, benditos,
benzeduras, orações...O rio da diversidade e da fé fluía, a ausência de assistência oficial
deixou margem para o fortalecimento destas práticas e de seus agentes, beatas e beatos
reunidos sob a proteção do “padrinho”. Juazeiro germina e floresce assim, sem a direção
formal da Igreja, sabe-se hoje, destaca Renata Paz, que o os primeiros fluxos intensos de
romeiros a Juazeiro, com muitos deles fixando morada na cidade, acontece no período de
maior separação da religiosidade popular perante a Igreja oficial, esta perspectiva reforça
o caráter popular das romarias ao Juazeiro, as romarias seguiram os fluxos praticados
pelos romeiros402 .
401
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro
1968.coleção retratos do Brasil, volume 66. p255
402
PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza,
IMEPH, 2011.p123.
173
Figura 9 .Beato José Lourenço. José Lourenço Gomes da Silva nasceu em 22/01/1872 em PilõesPB
e faleceu em 12/02/1946 em Exu-PE. Líder do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, comunidade
organizado sob as ordens do padre Cícero, que encarregou José Lourenço da liderança. O grupo
que chegou a agregar centenas de pessoas foi violentamente desarticulado em 1937, três anos
depois da morte do padre Cícero.
Estes agentes que liderados pelo padre Cícero e motivados pela fé eram de diversas
origens, vindas de distintas regiões, com forte presença de mestiços. Então importa saber
as cores destes romeiros, suas vivências, seus sincretismos, suas esperanças depositadas
numa terra que era considerada terra de pessoas sem nome, onde um deserdado poderia
tentar ser alguém, onde fé e esperança em dias melhores se conjugam.
403
FILHO FIGUEIREDO, José de. Engenhos de Rapadura do Cariri. Fortaleza: Edições UFC 2010,
p.24.(Fac-símile da edição original de 1958)
174
década de 1920404 e que em 1935 publicou “Mistérios do Joaseiro”, obra na qual afirma
que “os romeiros são o complexo da mestiçagem nordestina”405, relatando ainda que:
404
RAMOS. Francisco Régis Lopes. O meio do mundo: Território Sagrado em Juazeiro do Padre
Cícero. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.p.212
405
DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção
Centenário) p.55 466 Idem p.56
406
O uso de objetos litúrgicos como a hóstia ou a pedra d’ara em rituais de magia foi descrito em
CALAINHO, Daniela. Metrópole das Mandingas - religiosidade negra e Inquisição portuguesa no antigo
Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
175
Não há nordestino que ignore que antigamente era quase comum o furto
de hóstias consagradas, para emprega-las na cerimônia macabra de
fechamento do corpo de cangaceiro407
407
DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção Centenário).p.99.
469
Antônio Xavier de Oliveira nasceu em Juazeiro do Norte no dia 9 de outubro de 1892.Médico Psiquiatra
formado no Rio de Janeiro. Dedicou-se ao estudo dos problemas brasileiros, em particular do Nordeste. Em
maio de 1933 elegeu-se deputado pelo Ceará à Assembleia Nacional Constituinte na legenda da Liga
Eleitoral Católica. Na Constituinte, defendeu vigorosamente, ao lado de Miguel Couto, a proibição da
entrada de imigrantes japoneses e de todos os grupos de cor, especialmente negros, no Brasil. Promulgada
a nova Carta (16/7/1934), teve o mandato prorrogado até abril de 1935. Em outubro de 1934 foi eleito
deputado federal pelo Ceará, exercendo o mandato de junho de 1935 a novembro de 1937, quando, com o
advento do Estado Novo, os órgãos legislativos do país foram suprimidos. Retornou à política elegendo-se
no pleito de outubro de 1950 suplente de deputado federal pelo Ceará na legenda da União Democrática
Nacional (UDN). Faleceu no Rio de Janeiro no dia 6 de fevereiro de 1953. Autor de: Beatos e cangaceiros
(1920), O magnicida Manso de Paiva - um aspecto clínico e médico-legal de sua psicopatia (tese, 1928),
Intercâmbio intelectual americano (1930), Espiritismo e loucura (1931), O Exército e o sertão (1932),
Resumo biográfico baseado em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionario
408
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920,.p.47
176
“era um cabra calmo quando brincava, e valente e perverso quando tinha raiva.
Tinha o aspecto asqueroso de um demônio: negro, alto, forte, robusto, era o
tipo bem acabado de um perfeito homem de luta.
Apostoa à cara lisa, com raros pelos apenas, era-lhe um chato nariz de grandes
asas abertas, um nariz “apragatado”, por cima de uns lábios grossose roxos,
que se nunca fechavam bem, deixando ver permanentemente de fora todosos
seus dentes, todos caninos e falhos, e pequenos, pregados, enterrados, nas
gengivas grossas, vermelhas sanguinolentas, horrivelmente feias”.409
A descrição, mesmo feita em por volta de 1920 mais lembra uma descrição de
escravizados, à semelhança dos anúncios de fuga ou de compra e venda, onde se levava
em conta os dentes dos indivíduos. O fato dos dentes aparentarem ser “todos caninos”
pode revelar que se tratasse uma pessoa que recorreu à modificação corporal de limar os
dentes, uma prática de alguma regiões africanas.410
Pedro Pilé era um combatente sobrevivente de canudos, mancava de uma perna
por conta de um tiro “foi uma bala de carabina que um macaco de Febrônio me pregou
no joelho”473contava. O autor testemunhou algumas arruaças, na feira ou na rua,
envolvendo o Pedro Pilé. Sobre uma das brigas, que estava prestes a acabar em morte,
conta da interferência pessoal do padre Cícero para acalmar os ânimos:
E seguiram os clássicos conselhos do velho sacerdote.
Os meus ouvidos ainda conservam nítido, o som de sua voz pausada e
grave:
-Pedro, não beba mais. Quem bebe obedece a satanás, e quem obedece
a satanás não se salva, vai pro inferno.
O negro fitava o padre, com um olhar morto, a balançar afirmativamente
a cabeça.474
No Juazeiro nem todos os ex-matadores, ou cangaceiros, que buscavam uma
nova vida faziam arruaças. Antônio Vaqueiro era um “mulato”411 de Pernambuco, viveu
na cidade de Salgueiro e ali cometeu vários crimes por servir aos Carvalho numa guerra
de famílias contra os Pereira. Este tipo de combate envolvendo milícias ligadas a
potentados locai não eram raros nos sertões. Foi, em certa altura, recomendado ao padre
409
OLIVEIRA,1220,p.127
410
“Essa prática de mutilar os dentes, principalmente os incisivos, ou seja, os dentes da frente, é muito
antiga, sendo ela observada em alguns restos mortais do período Neolítico. Encontrada em diversas partes
do mundo, tal prática existiu ou existe em algumas partes da África, como Moçambique, Congo e Angola”
resumiu DIAS. Elainne Cristina Jorge. Dentes limados: a saúde bucal dos escravizados a partir dos
anúncios de fuga, Paraíba (1850-1888) In Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.2, n.1, 2012. p.6 473
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920. p.128 474 Idem
.p.135
411
Idem. p.245
177
Cícero que o levou ao Juazeiro. Regenerado nunca mais se meteu em nenhuma confusão.
O autor de “Beatos e Cangaceiros” o menciona pelas proezas de seu cruel passado de
combates em Pernambuco, pois, em Juazeiro era “regenerado e convertido”, um homem
pacífico: “ Mesmo pra os incréus, foi esse um dos milagres do Pare Cícero”412.
Mesmo chegando ao Juazeiro com a perspectiva de uma vida nova, as querelas
entre grupos ou indivíduos rivais podiam reascender como uma faísca. Nestes casos,
como vimos, o padre Cícero pessoalmente intervia para calmar os ânimos, como
estratégia aconselhava orações, que evitassem a bebida e procurassem ocupação.
Algumas desavenças se iniciavam longe do olhar vigilante do padre. Na periferia do
Juazeiro viveu um dos valentões mais dispostos a para a confusão, Antonio Calangro,
assim descrito:
Era um negro de mais de dois metros de altura, corcunda, e com um
pescoço de um palmo e meio, a suster a sua cabeça minúscula, face
regular, tendo, porém, as orelhas, os olhos e a testa muito pequenos.
Tinha dentes alvos e regulares implantados nas gengivas roxas. Era um
pernalta, de pernas finas, mas bom corredor, braços longos também. 413
No capítulo dedicado ao Calangro, muitos detalhes sobre a cidade como os sambas
que agitavam os arrabaldes de Juazeiro e as diferenças entre grupos de romeiros de origem
distinta. Antonio Calangro vivia com Maria Conceição “ uma mulata gorda, e simpática,
dentes alvos de marfim, de grossos lábios rubros e roxos, sempre a sorrir, e cujo maior
orgulho era ser amante do mais valente cangaceiro da zona”478. Numa das noites de samba
Calangro rasgou com uma punhalada a harmônica de Antônio Calasans, músico e poeta
improvisador, conhecido como Cavalo Lasão. A rixa entre os dois ficou marcada tanto
por combates, nos quais Calangro golpeava e fugia em velocidade e agilidade únicas,
como pelos versos que se disseminaram de boca em boca sobre a ameaça de vingança.
Segundo Xavier, o próprio Calasans era o autor dos versos e o cantava nas noites em rodas
festivas, enquanto esperava um combate final:
De teu coro faço a sola,
Da sola é pra fazer peia
Das quixada é pra apragata
Da barriga é pra correia
Tua carne eu arretalho
E nisso faço muito bem
Vendo a arroba a quatro patacas
E a libra a quatro vintém
412
Idem. p.155
413
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920.p111 478
Idem p.116.
178
Os versos ecoaram repetidos de boca em boca enquanto o desfecho final não vinha.
Felizmente o caso não acabou em morte, Calangro fugiu e ainda viveu em Joaseiro por
um tempo, só ficaram os causos e versos que rememoravam o fato. Morreu anos depois
numa emboscada, numa estrada de Pernambuco, tendo como testemunha a companheira
Maria Conceição.
O livro de Xavier de Oliveira, com fatos e causos presenciados ou conhecidos por
ele, em algumas passagens fala das festas que movimentavam seus personagens centrais:
os cangaceiros convertidos pelo “Padrinho”. Em diversas passagens se refere a estas festas
como sambas: “desrespeito à mulher de outrem com quem dançou nos sambas de lá”
(p.112), “em certa noite de samba no Arisco, onde houve um casamento (p.113)” e “num
samba, numa choupana dos subúrbios, vestido como gente, mas armado como sempre(...)
eu vi dançando Pilé” (p. 130). Na descrição das festas dançantes observamos que um
grupo animado em torno de modinhas ou ao som da harmônica poderia ser descrito como
“samba”. No exemplo de Pedro Pilé a dançar, Xavier de Oliveira diz que
“ao som da harmônica, numa marcha arrastada, era ele quem marcava a quadrilha:
Balancez...já..sangez...travessez”(p.130). Contribui para tal análise a seguinte reflexão:
“O termo samba pode, assim, metaforicamente se referir a diferentes tipos de diversões
populares à base de música”415
414
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920.p.114.
415
DOMINGUES. Petrônio, NUNES. Cláudia e ALVES. Edvaldo. O “cativeiro se acabou”: experiências
de libertos em Sergipe no pós-abolição In Revista História, Histórias Brasília, vol. 4, n. 8, 2016. ISSN
2318-1729 p.107
179
Vale salientar que para fazer suas “imersões” e presenciar cenas como as descritas
em seu texto Xavier se dirigia para locais distantes, movido pela curiosidade se escondia
para observar o que chamava “antros das feras”, sua observação pueril, é retomada na
escrita que produz na maturidade. Havia fascínio e temor pelas figuras dos cangaceiros:
416
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920.p.131 482
Idem.p.87
417
OLIVEIRA,1920,p.89
180
Figura 10. Pedro, o único homem negro cuja fotografia aprece em “Beatos e Cangaceiros”(
página 86). A foto maior é a que está reproduzida no livro, a do detalhe mostra o flagrante original
de onde foi “recortado” o retrato de Zé Pedro. Acima das cabeças lemos: “Zé Pedro, tomador do
Crato”; “ Dr, Floro. Chefe dos combatentes” e “Turco Armando.”
A foto nos revela um homem negro, arma em punho, lenço no pescoço, chapéu
virado em duas abas à moda dos cangaceiros (ou ao modo de Napoleão Bonaparte). Nos
pés alparcatas e um cigarro no canto da boca. Uma das poucas fotos de corpo inteiro de
um personagem negro de Juazeiro. Talvez pelo bravo feito. A única foto demarca as
fronteiras de um silêncio incômodo. Na realidade a foto incluía mais dois homens e foi
anteriormente reproduzida em menor escala. Sendo que a imagem de Zé Pedro aparece
ampliada e cortada no livro de Xavier de Oliveira, tal como reproduzimos aqui. Nem os
fatos heroicos na guerra de civil retiram a da análise Xavier de Oliveira o tom racista:
Seu físico de um perfeito cafuz, e seu trajo são o do comum dos
cangaceiros da zona.
Negro alto, corcunda, tem a cabeça chata e os cabelos encarapinhados.
Testa estreita e franzida horizontalmente, a que se sobrepõem uns olhos
pequenos e vivos, tem um nariz não muito chato, mas de asas muito
abertas.
181
Face boca, orelhas regulares, a não ser a cabeça, aliás conforme para os
de sua raça, não tem nenhum outro estigma físico aparente de
degenerescência.
(...) Apesar de normalmente carrancudo, está sempre alegre e risonho
Outra imagem, desta feita uma fotografia de grupo e deixa evidente o contingente
negro dos homens que lutaram em 1914.
418
“O Maneiro Pau é uma dança máscula, que dispensa qualquer entrecho dramático e, até mesmo,
acompanhamento musical, isto porque o entrechoque dos cacetes, e o coro dos dançarinos, produzem a
musicalidade e a percussão necessárias. Quanto à origem, alguns autores justificam a influência árabe e
outros a influência africana, face a existência, na Espanha, de uma dança semelhante à esta, chamada
182
Na dança “à baiana” e no canto do maneiro pau ecoaram as memórias dos homens pretos
enquanto comemoravam mais uma conquista, sem saber o que lhes aguardava amanhã.
Depois de combater, afastados do Juazeiro, festejam com o que conhecem, com o canto
de guerra que os aliviou durante a jornada. Seu canto de festa era a casa que podiam levar
consigo e um remoto eco da África.
O grupo partiu em janeiro de 1914 entre combates, orações e festas. No mesmo grupo
também houve que praticasse saques, invasões e outros delitos ao logo do conflito até a
vitória em março de 1914.
3.8 Romarias.
Brasil, caso quase idêntico se processa na Bahia, onde o Maculelê, dança de características semelhantes ao
Maneiro Pau, poderia ter sofrido influência e consequentemente árabe ou então africana. De qualquer modo,
é o Maneiro Pau uma dança surgida e desenvolvida na região do Cariri, entre os próprios elementos
resultantes da fusão das raças. Quanto à expressão à corruptela de “Manejo”, que resultou “Maneiro”, ou
ainda à leveza dos cacetes, no sentido de “Pau Maneiro”, e a segunda, à penetração de elementos de Minas
“Espatadanzaris” que tanto poderia ter influência árabe, uma vez que este povo ali dominou durante quase
oito séculos, como poderia, também, ter recebido influência africana, dada a localização geográfica. No
183
Gerais, daí o termo “Mineiro”. CEARÁ. Secretaria de Indústria e Comércio. Manifestações do Folclore
Cearense. Fortaleza, 1978. Trabalho Elaborado pelo Departamento de Artesanato e Turismo e empresa
cearense de Turismo. Acessado através do site www.digitalmundomiraira.com.br.
485
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920.p 162
romarias do Juazeiro reside no fato de serem elas praticamente criadas
e sustentadas autonomamente pelo povo e até, durante muito tempo
indesejadas e reprimidas pela Igreja oficial ou sua hierarquia.419
419
MENESES Eduardo Diatahy Bezerra. Romarias e o Juazeiro do Padre Cícero. In: Anais do III
Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro-CE, 2004, p. 114-122.
420
STEIL. Carlos Alberto. Padre Cícero : Tradição e modernidade. In Anais do III Simpósio Internacional Padre
Cícero... E quem é ele?p.183-185p.184
184
mestiço, pobre, vulnerável às estiagens e comandado pela mão severa dos coronéis421. As
vidas que se cruzam nos caminhos ao Juazeiro e as que por lá frutificam possuem em
larga medida a marca da resistência e da fé. Uma das primeiras coisas que foi negada a
estas pessoas foi o reconhecimento ao seu direito de terem fé, simplesmente foram
tratados como “manipulados” ou “fanáticos”
Desde os primeiros grupos que rumaram ao Juazeiro, ainda em 1889, logo após
a divulgação dos fatos extraordinários, já se utilizava o termo “romaria”. Inicialmente
tratarei de explorar dados sobre do uso da palavra “romaria”, tal como circulava no Ceará
no momento aproximado daqueles primeiros fluxos de romeiros a Juazeiro do Norte. Com
este fim, realizei uma breve pesquisa do uso do termo “romaria” nos jornais da década de
1890. Utilizei como referência um jornal diário, que circulava em fortaleza, o “A
República”. Foi ali que encontrei diferentes conotações para a palavra422.
Um dos mais recorrentes usos da palavra refere-se a uma reunião de pessoas que
realiza uma vista solene póstuma. “ Os amigos do nosso querido e malogrado confrade
M. d’Oliveira Paiva vão amanhã, sétimo dia de seu passamento, em romaria ao túmulo
deste infeliz companheiro”423 . A palavra aparece com mesma acepção em “O diretório
do Partido Republicano manda sufragar a alma do nosso pranteado amigo senador major
Manoel Bezerra de Albuquerque (...) Depois do ato religioso seguir-se-á uma piedosa
romaria ao túmulo onde repousam os sagrados despojos do grande cearense”424. Ocorreu
também, com o mesmo sentido de visita solene a jazigos, a possibilidade para do uso da
421
Sobre o tema: LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no
Brasil.São Paulo: Alfa-Omega, 1975, QUEIROZ, M. I.P. de. O mandonismo local na vida política
brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfamega, 1976. p.163-216. (Biblioteca Alfa-Omega de Ciências
Sociais. Série 1., v.5) e ainda OLIVEIRA, Janaina Florêncio de. Origens, desenvolvimento e aspectos do
coronelismo.In Rev. Sem Aspas, Araraquara, v.6, n.1, p. 74-84, jan./jun. 2017. e-ISSN 2358-4238.
422
“Romarias, ou o termo de origem provençal romagens como se dizia no passado (e romerai no século
XIII, quando o termo foi incorporado ao vernáculo), é a palavra que se usa mais comumente em português
para designar o fenômeno das peregrinações. ” Cf. MENESES Eduardo Diatahy Bezerra. Romarias e o
Juazeiro do Padre Cícero. In: Anais do III Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro-CE,
2004, p. 114-122.
BNDigital- Jornal
BNDigital- Jornal
BNDigital- Jornal
BNDigital- Jornal
423
A República, 4 de outubro de 1992,p.1
424
A República 10 de abril de 1893, p.2
185
expressão “romaria cívica”, reforço que tal uso aparece no contexto da visita ao túmulo
de um jovem militar, em plena era republicana: “Realizouse ontem a romaria cívica ao
túmulo do Aluno João Epaminondas de Vasconcelos morto na noite de seis de fevereiro
do ano passado” 425 . Outra possibilidade descreve uma viagem cíclica ou retorno
periódico, como a visita a terra natal e retorno periódico às origens: “De volta, em janeiro
de 1892, de sua romaria filial a Cajazeiras, o padre José Thomáz seguiu para Camocim”426
. Também foi possível observar o uso mais solene e ligado a grandes celebrações coletivas
do calendário litúrgico: “O dia dos mortos- Sextafeira, 2 de novembro, haverá como de
costume a grande romaria dos vivos à cidade dos mortos” 427 . Foi interessante encontrar
ainda o termo para tratar de reunião em homenagem pública a uma figura política, com
sentido eminentemente cívico, como por ocasião da comemoração do aniversário de
nascimento do então vice-presidente Floriano Peixoto: “ (...) Hoje ele completa mais uma
no de existência, e por isso mesmo de trabalhos consagrados, todos, á pátria; por conseguinte é
dia de festa nacional.
Reproduzir a romaria antiga é o nosso dever_ Arrenegado , o brasileiro
que faltar à grande romaria da Pátria.428
425
A República, 18 de fevereiro de 1893 ,p.2
426
A República, 22 de fevereiro de 1893, p.3
427
A República, 31 de outubro de 1894, p.2
BNDigital- Jornal
BNDigital- Jornal
BNDigital- Jornal
428
A República 30 de abril de 1894, p.2
429
A República, 9 de outubro de 1895,p.1
186
vezes pode ter conotação religiosa, mas pode significar ajuntamento festivo, celebração
coletiva ou multidão afluindo a um evento ocasional, sem possibilidade de repetição ou
renovação.
Esta brevíssima explanação evidencia que o uso da estrita conotação de
peregrinação mística ou religiosa já não cabe àquela altura. Nem mesmo evidenciou-se
algum apego à tradução mais básica do termo Romaria relacionado à “cidade eterna”:
Roma, origem etimológica da palavra romaria. No âmbito das peregrinações
protagonizadas pelos católicos sertanejos cearenses vimos inclusive no caso da Fonte do
Caldas, associada à figura do Padre Ibiapina, a utilização da expressão romaria para fazer
referência à afluência de pessoas à “Fonte Miraculosa”.
430
SANCHIS. Pierre. Peregrinação e romaria: um lugar para o turismo religioso In Ciencias Sociales y
Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 85-97, outubro de 2006.p.86
187
431
RAMOS. Francisco Régis Lopes. O meio do mundo: Território Sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.p.210
188
de lugares sagrados. Para Sanchis “as promessas apresentam-se, portanto, como a prática
concentrada e sintética da religião popular, a sua principal manifestação na romaria”432
Pensando o caso específico de Juazeiro do Norte, mais uma vez Pierre Sanchis
contribui para discutirmos a complexidade que sustenta esta constatação da centralidade
da promessa. Desenvolve a percepção de uma “economia de troca” associada à promessa
e aos gestos e esforços de agradecimento: despesas, sacrifícios físicos e invenções
diversas para alimentar a fé e efetivar a gratidão. O autor também ajuda a entender como
a instituição Igreja se projeta no controle das práticas de agradecimento e devoção dos
romeiros estabelecendo formas mais “organizadas” de gastar o dinheiro (missa, ofertório)
ou festejar (cortejos, quermesses).
Proibir, limitar, regrar, disciplinar. Estas palavras acompanham as ações da
Igreja e dos poderes públicos desde o início das romarias a Juazeiro do Norte. Desde
março de 1889 a cidade se tornou alvo da corrente de fiéis em busca de contato com o
sagrado e com a possibilidade de um recomeço, especialmente para os despossuídos.
Desde então, ao Juazeiro do Norte acorre este fluxo contínuo, descontrolado, intenso,
inventivo. Como ressalta Renata Marinho Paz, as romarias a Juazeiro do Norte são
eminentemente populares, efetivadas em torno de um santo não canonizado oficialmente,
e à revelia da igreja.433
Para a Carlos Alberto Steil, apesar do clero tentar estabelecer uma única
racionalidade “o culto nos santuários se caracteriza particularmente por sua capacidade
de acomodar a diversidade dos discursos, rituais e das práticas que os grupos que,
compõem a romaria estabelecem neste espaço”434. Esta tensão pode ter chegado a um
extremo em Juazeiro, ali as romarias chegaram a ser proibidas como reforça a seguinte
carta pastoral produzida no congresso regional dos bispos do Nordeste em 1912:
(...)Proíbem terminantemente fazer Romarias ao Juazeiro e
recomendam aos Revmos. Vigários que tornem esta resolução
conhecida de seus paroquianos, que devem se obedientes, visto como,
sem obediência, não pode haver verdadeira religião sim grosseiro
fanatismo.435
432
SANCHIS. Pierre. Arraial- Festa de um povo: As romarias portuguesas. Lisboa: Publicações Dom Quixote.1983.
p.97
433
. PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza,
IMEPH, 2011.
434
STEIL. Carlos Alberto. O sertão das romarias-Um estudo antropológico sobre o santuário de bom Jesus
da Lapa-Bahia. Petrópolis: Editora Vozes, 1996. p.50
435
Jornal Unitário n.1312, de 05.09.1912. In: PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja
Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza, IMEPH, 2011.p. 127
189
Abordando aspectos atuais das romarias a Juazeiro do Norte, Maria Paula Jacinto
Cordeiro desenvolveu um estudo no qual investigou as perspectivas de continuidade e
mudança no conteúdo das práticas romeiras.436 Trabalha e problematiza os conceitos de
“peregrinação”, “turismo” e “festa” como possibilidades para o entendimento das
romarias. Cordeiro repensa o papel dos agentes públicos e da Igreja na percepção da
romaria como evento de massas. Sua pesquisa também encontra espaço para adentrar os
ranchos e perceber os jogos de hierarquias ali engendrados. Para a autora:
A categoria romeiro é aberta a releituras continuadas. Isso acontece
porque sua construção como classificação social permanece em
movimento. Pensar a noção de romeiro e romaria como categorias
móveis, possibilita trabalhar a dinâmica que envolve essa formação
social, que embora frequentemente acessada através de classificações
idealizadas e compreendida como recorrência cultural, não se congela
num retrato e permanece fluindo na história.504
Mesmo sendo pesquisas que dialogam com o tempo presente e com leituras da
questão no campo da Antropologia, os estudos recentes sobre as romarias ao Juazeiro
deixam margem para a percepção de sua relação com as dinâmicas sociais ao longo do
tempo. A transformações constantes e a manutenção de laços afetivos e de memória
revelam a viabilidade da problematização histórica. Compreendendo ainda a romaria
como um “palco de trocas culturais”, onde agir/crer se conjugam de forma dinâmica ao
longo do tempo. Como contribui Carlos Alberto Steil:
“Ponto de encontro entre crenças ortodoxas e dissidentes, um universo
de difusão de costumes e valores antigos e novos, um lugar de
transações rituais e econômicas e uma arena d disputas de discursos
seculares e religiosos”437
Quando Sachis438 nos provoca a pensar sobre nas romarias como “resistência ao
monopólio religioso do clero” e mais: “ uma reivindicação de autonomia nas relações com
o mundo sagrado”439 nos lega uma possibilidade de abordagem que é uma chave para
discutirmos as primeiras romarias a Juazeiro e sua relação com o pós-abolição e dos
primeiros anos da república. O que até 2019 se materializava num fluxo estimado num
436
CORDEIRO, Maria Paula Jacinto. Entre Chegadas e Partidas: Dinâmicas das Romarias em Juazeiro
do Norte. Tese de Doutorado em Sociologia-UFC- Universidade Federal do Ceará, 2010. 504 Id. Ibidem,
p.230.
437
STEIL. Carlos Alberto. O sertão das romarias-Um estudo antropológico sobre o santuário de bom Jesus
da Lapa-Bahia. Petrópolis: Editora Vozes, 1996. p.86
438
SANCHIS. Pierre. Arraial- Festa de um povo: As romarias portuguesas. Lisboa: Publicações Dom Quixote.1983.
p.50
439
Idem
190
fluxo estimado de 500 mil pessoas em cada uma das três principais romarias, não
aconteceu de forma pacífica. As romarias a Juazeiro são um vivo ato de insubordinação e
resistência. A resistência do romeiro impressiona, mas não ocorre de forma linear, vai
respondendo a demandas, pressões. Responde de forma criativa, inventiva e até
inesperada. As criações e artes de fazer destes grupos nos remetem às contribuições de
Michel de Certeau.440
A maior romaria, a mais expressiva em número de peregrinos é a Romaria de Finados,
realizada em dois de novembro. Surgiu de forma espontânea em torno da visitação ao
túmulo do padre Cícero que está no centro da capela do Socorro. Depois da morte do
patriarca, em 1934, as reverências à sua figura se projetam a outros patamares. O padre
ausente deste mundo povoa a memórias e corações com renovada intensidade. A maioria
das pessoas veste preto, o patamar dos templos fica lotado de velas, é uma romaria de
saudade. Sem muitas cores ou carros enfeitados. Mas não é triste, é reverente diante da
finitude.
Padroeira da cidade e merecedora da devoção do padre Cícero em vida, Nossa
Senhora das Dores estimula uma romaria, como vimos nas fontes que tratam do momento
do milagre, que se fortalece já em 1889. A festa já era relevante antes da chegada do
padre, com novena e procissão concorridas. 15 de setembro marca a data, que atualmente
é precedida de um desfile de carros e ônibus pelas ruas da cidade. Enfeitados e com faixas
demarcando a cidade original de onde veio cada grupo, distribuem doces, jogados dos
carros ao longo da travessia rumo à Matriz. É muito semelhante a festejo de Cosme e
Damião que também festejados em setembro.
Em janeiro vive-se a romaria das Candeias. Também foi uma manifestação
apoiada pessoalmente pelo padre Cícero. O ponto culminante é dois de fevereiro. Senhora
das Candeias, da Luz, da Candelária, ou da Purificação. A origem da devoção refere-se
ao momento da da apresentação do “Menino Jesus” no Templo e da purificação de Nossa
Senhora, quarenta dias após o seu nascimento. Em Juazeiro adquiriu uma feição especial,
as noites são tomadas por velas e lamparinas em procissão.
São estes os três eixos principais do ciclo das romarias, mas existem motivações
pessoais que levam grupos a fazerem suas romarias em datas de aniversário, Natal,
aniversário de casamento e outros.
440
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
191
441
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2009, p. 49.
193
442
O perfil do autor será contemplado em item posterior deste capítulo
443
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergstrom. Juazeiro do Padre Cícero. 4ª ed. aumentada. Brasília-DF: Inep/MEC,
2002, p. 55.
444
Ibid., 54.
445
Ibid., loc.cit.
194
Além do exercício de autoafirmação pelo contraste com Juazeiro, tida como cidade
de aventureiros, composta de gentes dispersas e consideradas “sem origem”,
empreendendo o esforço em diferenciar-se e colocando-se em patamar superior, os
intelectuais cratenses ainda tomam esse “outro”, o Juazeiro do Norte, como tema de
diversas obras e objeto de estudos. Ou seja, há uma tensão, pois de um lado estão os
letrados, autores e analistas da história e, do outro, aqueles a quem tentam sobrepujar
valendo-se de sua produção intelectual. O “outro”, no entanto - o romeiro -, não está
engajado em uma produção formal de literatura ou memória de si, não é uma disputa com
equivalências. Noutras palavras, o grupo letrado assume o protagonismo de narrar.
Nesse esforço, a crítica às condutas dos devotos do Padre Cícero se dava em nome
de um projeto civilizador capitaneado pela cidade do Crato. O projeto tinha ainda como
objetivo estruturar um aparelho policial e judicial que exercesse o monopólio do controle
da violência, normatizando as condutas sociais segundo o modelo de civilidade a ser
imposto a Juazeiro515.
Os autores aqui discutidos foram elencados partindo do interesse de aproximar-se
dos migrantes/romeiros que buscam Juazeiro do Norte no contexto histórico do
pósabolição e início do século XX. O objetivo central foi perceber suas presenças,
conflitos e esperanças numa terra anunciada como milagrosa e acolhedora. A partir dos
fatos e personagens e da projeção de Juazeiro do Norte como centro de peregrinações, o
mestrado) Rio de Janeiro, RJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000, p. 192. 515 Ibid., p.193.
195
447
SILVA, Amanda Teixeira da. Juazeiro sem Padre Cícero: uma cidade que não se esqueceu (1934-1969) (Tese)
Doutorado em História - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018. 298 f. p. 64.
448
CAMURÇA, Marcelo. Marretas, Molambudos e Rabelistas: a revolta de 14 no Juazeiro. São Paulo: Maltese,
1994, p.40.
449
Pertencem à família Alencar de origem pernambucana e com forte influência e presença no Crato:
Bárbara de Alencar, considerada a primeira mulher republicana e presa política do Brasil, Tristão
Gonçalves, morto durante a Confederação do Equador, em 1824 e o político José Martiniano de Alencar,
senador do Império e presidente da província do Ceará em duas ocasiões e o escritor e político, José de
Alencar.
196
religiosa no Seminário S. José do Crato, em 1891. Quando ainda era seminarista, ocorreu
a suspensão das atividades naquela instituição. Alencar Peixoto, então, partiu para
Pernambuco e matriculou-se no Seminário de Olinda. Na sequência, deixou esse
estabelecimento e voltou ao Ceará, seguindo para o seminário da Prainha. Mais uma vez,
mudou de instituição e concluiu seus estudos na Paraíba até que, finalmente, foi ordenado
em 14 de novembro de 1897450. Foi um padre erudito, dedicado às letras e profundamente
envolvido com a política local. Tornou-se fundador, diretor e redator-chefe do periódico
O Rebate451, o primeiro jornal publicado em Juazeiro, à época ainda distrito do Crato. O
jornal destaca-se como um relevante veículo na causa de emancipação do referido distrito.
Como o próprio nome indica, surgiu com a incumbência de rebater especialmente o
conteúdo do periódico Correio do Cariry452. Mas, para além das querelas locais, O Rebate
aspirava altos ideais, com uma missão ao mesmo tempo nobre e audaciosa. Por meio dos
editoriais de Alencar Peixoto, tais pretensões ficam claras:
450
STUDART . Guilherme. Diccionário Bio-bibliográfico Cearense versão digital disponível em
http://portal.ceara.pro.br/index.php?option=com_content&view=category&id=292&Itemid=101(acessado
em10/06/2016)
451
A primeira edição d´O Rebate circulou em 18 de julho de 1909. A partir de então, circulou semanalmente
com alguma regularidade, aos domingos, até 3 de setembro de 1911. Somou ao todo 104 edições. O Rebate
nasceu com o objetivo de defender a causa da autonomia de Juazeiro conquistada no ano de 1911.
OLIVEIRA Naiara Carneiro de e SANDES José Anderson Freire. O Rebate- Um relato sobre o primeiro
jornal impresso de Juazeiro do Norte. Anais digitais do Intercom-Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – João
Pessoa, 2014.
452
O Correio do Cariry era publicado no Crato. Em edições dominicais, era um órgão do Partido
Republicano naquela cidade. Teve como diretor político o coronel Antônio Luiz Alves Pequeno e como
gerente, Antônio Nogueira Pinheiro. “[...] Esse jornal viveu cerca de oito anos, influindo diretamente nas
lutas políticas de então. Manteve acre polêmica com O Rebate de Juazeiro. Circulou de 11 de setembro de
1904 a 1912”. (PINHEIRO, Irineu. O Cariri- Seu desenvolvimento, povoamento, costumes. Coedição
522
Secult/Edições URCA- Fortaleza Edições UFC,2010. p. 180. O Rebate, 18 de julho de 1909.
p.1.
197
453
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. São Paulo: Paz e Terra, 1985. p.167.
454
GUIMARÃES. Fausto da Costa. Memórias de um romeiro. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção
Centenário), p.183.
455
Alusivo ao centenário da cidade de Juazeiro do Norte, patrocinado pelo Banco do Nordeste e Governo Federal,
realizada pela Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte e impressa pela Editora IMEPH.
199
456
O termo “cabra” com que se refere à mãe da beata expressa uma relação senhorial como discutido no capítulo
anterior deste trabalho.
457
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário), p.
41.
200
Até aqui a descrição aponta para a gênese familiar como elemento definidor dos
traços da personagem, traços estes não apenas físicos, mas também morais. A descrição
grotesca e caricata de Peixoto não é mera insolência, é um apelo direto aos argumentos
racistas que compreendiam a miscigenação como degradação458. O texto segue, então,
descrevendo detalhes da própria Maria de Araújo:
[...] A cabeça que, por casa, como por toda a parte, traz sempre
descoberta, tem a configuração de um corredor de boi, escarnado. O
cabelo que não é preto nem branco, pelo que supor-se pode ter ela
quarenta e poucos anos, é cortado à escovinha.
Os olhos pequenos, e sem um raio sequer de expressão que lhe
ilumine o semblante, mexem-se histericamente nas faldas de uma testa
estreita e protuberante.
O nariz irrompe dentre os olhos, sem base, e, levantando-se, a
pouco e pouco, alarga-se das asas chatas até os ossos malares
achamboirados, estúpidos, nas galhentas bochechas cavas. Os beiços
moles e relaxados deixam a descoberto em um dos cantos da cacostoma
boca, à competência com a pele cor de azeitona em estado de putrefação,
denegridos, os dentes laniares.
A saliência do maxilar inferior, desafiando-lhe a protuberância do
frontal, semelha-se ao de um homem de Darwin.
O pescoço como que quer desaparecer à forquilha que lhe formaram os
ombros alterando-se ao nível das orelhas sem pingentes. Eis, meu
458
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças; cientistas, instituições e questões raciais no Brasil (18701930).
São Paulo: Companhia das Letras. 1993.
459
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário), p.
42.
201
460
Ibid., loc. cit.
461
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário),
p.43.
462
GUIMARÃES. Antonio S. A. Preconceito de cor e racismo no Brasil. In: Revista de Antropologia. São Paulo,
USP, 2004, vol. 47, n. 1.
202
Sobre a condição do pai da beata, dito “mancípio” do Padre Pedro Ribeiro, vale
destacar o capítulo que abre a obra, no qual Peixoto descreve e exalta a contribuição
daquele:
463
PEIXOTO, op. cit., p. 21.
464
Segundo o Dicionário Houaiss, larada significa: 1. Cinzas de lareira, borralho 2. Qualquer mancha
produzida por substância que se derrama e se espalha 3. Porção de coisas que cobre a lareira 4. Serão ao pé
da lareira 5. Grande quantidade abundância 6. (Ilha das Flores) Cama estendida no chão 7. (Algarve) grande
quantidade de excrementos semilíquidos, diarreia.
203
O intuito era apresentar a menina, mas enxergamos além, vemos como se vestiam
e se comportavam as crianças pobres naquela cidade, interessa-nos o “borraçal”. Destaco
o estranhamento causado pelo fato de uma menina limpa e arrumada se dirigir a crianças
na rua. Se é estranho para o narrador ver Stellita dando atenção aos outros, a ponto de ser
uma cena tocante, decerto não era usual e, talvez, fosse até proibido ter contato com o
“rancho” de crianças pobres. Será que a palavra “rancho466” sugere romeiros, aqui? Falar
e sorrir é sinal da magnificência da pequena, de sua virtude e brilho. A presença das
crianças na rua provoca o contraste, o claro-escuro criado pelo autor para reforçar o brilho
de Stellita.
O conto “Malparia” relata o caso de uma dona de casa que, “[...] em plena floração
da carne [...]”, apaixonou-se por “[...] um pretinho de, pouco mais ou menos, quinze anos,
franzino, remanchão, vagaroso, estupido, Martinho de nome”. O rumo da narrativa
converge para um crime cometido pela mulher. Sem nenhuma menção ao que poderia
existir de atraente em Martinho, o autor desata um desfile de adjetivações pejorativas.
“Rafa” é um capítulo cujo título não fica claro, pois apesar de parecer o nome de
alguém, trata de um diálogo entre dois personagens: Djalma e Pantosa. É Pantosa quem
descreve o que viu em Juazeiro depois de passar lá cinco anos, quem o interpela é o
curioso Djalma, que expressara seu desejo de “[...] formar um conceito seguro acerca
dessa pobre vila sertaneja”.
— Uma das coisas que mais impressiona, aos que, pela primeira vez que
visitam o Juazeiro, é, com efeito, aquela aglomeração de gente
maltrapilha e suja aqui e ali pelas ruas, principalmente em frente à casa
do padre Cícero.467
465
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção
Centenário), p.75.
466
Os ranchos são uma modalidade de hospedagem característica da cidade de juazeiro do Norte. Abrigo
de romeiros desde o início do século XX, hoje existem aproximadamente 500 pela cidade e sempre lotam
durante as romarias. Em alguns casos, recebem gerações de romeiros da mesma família realizando uma
forma de acolhimento muito específico. Hoje é uma atividade comercial ativa e há recorrentes denúncias
de superlotação e precárias condições de higiene. Num trabalho específico sobre o tema, idealizei e fui
facilitadora de um Percurso Urbano (Centro Cultural BNB Cariri) denominado “Artes de Acolher”, que
tratava do tema e durante o qual visitamos diversos estabelecimentos.
467
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário), p.48.
204
468
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011
(Coleção Centenário), p.49. 539 Ibid., p.170.
205
Mais uma vez, destacou a condição da cidade como polo dos migrantes que ali se
assentavam e define, novamente, um quadro de degeneração que defende ao longo da
obra.
A leitura do livro evidencia a insatisfação e revolta de Peixoto contra o Padre
Cícero. Entremeadas às críticas apelativas e exageradas encontramos a descrição das
pessoas que viviam em Juazeiro ou que para ali acorriam.
Interessou-nos observar a dinâmica dos que buscam morada ou consolo em
Juazeiro do Norte. O exagero dos argumentos e a radicalidade de Peixoto o tornaram um
autor esquecido, abandonado pela historiografia recente, dado o excesso apaixonado e a
ânsia de difamar Juazeiro e o Padre Cícero.
Compreendemos que nem por isso merece o ostracismo, pois seu texto revela
muito da cidade: o que nos conta de Juazeiro? Como se engendra a construção do
206
469
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergstrom. Juazeiro do Padre Cícero. 4ª ed. aumentada. Brasília-DF: Inep/MEC,
2002,52.
207
Mas o que Rodolfo Teófilo foi, antes e acima de tudo, foi escritor. A
poesia, o romance, o conto, a história, o panfleto, o jornalismo, a mesma
ciência, teve nele tudo isso um cultor apaixonado, que morreu sem
depor a pena.
Historiador dos flagelos climáticos que periodicamente assolam o
Ceará, bem como das peripécias políticas a que assistiu, não pode
eximir-se do partidarismo a que se acorrenta a natureza humana, e
muitos juízos seus hão de ser talvez reformados pela posteridade.470
470
Necrológio. Revista do Instituto do Ceará - ANNO XLVII - 1933
471
VALE NETO. Isac Ferreira do. Batalhas da Memória: A escrita militante de Rodolfo Teófilo. Mestrado em
História Social - Universidade Federal do Ceará – UFC, 2006.
208
472
TEÓFILO, Rodolfo. A Sedição de Juazeiro. Sebo Vermelho Edições: Natal, 2004. Edição fac-similar
da edição do ano de 1969 da Editora Terra do Sol. p.15. 544 O termo “Guerra de 1914” foi usado em 2014
nos eventos organizados pela Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte em alusão ao centenário dos
episódios.
473
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a revolução de 1914. 2ª ed. Fortaleza: Editora IMEPH,
2011 (Coleção Centenário).
474
CAMURÇA, Marcelo. Marretas, Molambudos e Rabelistas: a revolta de 14 no Juazeiro. São Paulo:
Maltese, 1994.
209
Observa-se que ao narrar o episódio o autor logo apresenta a cor de seus vizinhos
como um predicado: os Caetanos “pardos” se associam aos “jagunços do Padre Cícero”
numa ação delituosa e ousada. Teófilo chegou a relatar o ocorrido, mas a autoridade
responsável, para sua incontida revolta, disse tratar-se de “[...] grupo de beligerantes
cobrando imposto de guerra”. O que fica evidente é o racismo do autor, que sem pudor
nenhum rebaixa, iguala pela cor e condição mestiça de seus vizinhos aos invasores
agressivos. Para ressaltar o prejuízo que teve ao perder os cavalos, não se contém em
475
TEÓFILO, Rodolfo. A Sedição de Juazeiro. Natal: Sebo Vermelho edições, 2004. Edição fac-similar
da edição do ano de 1969 da Editora Terra do Sol. p. 93.
476
TEÓFILO, Rodolfo. A Sedição de Juazeiro. Natal: Sebo Vermelho edições, 2004. Edição fac-
similar da edição do ano de 1969 da Editora Terra do Sol. p. 95. 549 Ibid., p. 164.
210
registrar um comentário racista. O ultraje maior não era o roubo e sim, saber que foram
homens negros que levaram suas preciosas montarias.
No capítulo final, já em tom de conclusão, Teófilo sintetiza seu pensamento em
uma projeção acerca do futuro. O que esperar do Ceará? Ele considera a nossa capital uma
“coberta de tacos”549, referindo-se à variedade das origens das pessoas que ali foram viver.
A analogia dos tacos nos remete à diversidade de cores, tons. Há uma conotação
étnicoracial evidente. Ao desenvolver seu argumento, adere a um tom pessimista, fundado
em uma abordagem racial, à mestiçagem como “mal” a ser vencido pela educação e
civilidade:
Os nossos males não terão fim tão cedo. A sua origem é a mestiçagem,
todos os vícios e defeitos das raças inferiores. O reestabelecimento da
paz, da ordem no Ceará, seria possível se os que dirigem o Estado
cumprissem seus deveres, tivessem educação doméstica e cívica. São
homens e mulheres, em sua maioria, vindos das baixas camadas sociais,
sem merecimento e com todos os defeitos de sua origem. Que esperar
de tais indivíduos sem civismo, cujos pais e avós eram analfabetos,
senão que, uma vez no poder, oponham o direito da força à força do
Direito. O atavismo tem de cumprir-se.
477
NINA RODRIGUES, Raimundo. (1862-1906). Atavismo psíquico e paranoia (1902) Texto
originalmente publicado como Atavisme psychique et paranoïa, nos Archives d’Anthropologie Criminelle,
de Criminologie et de Psychologie Normale et Pathologique, de Lyon (ano 17, n. 102, p. 325-355, 1902).
In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 766-789, dezembro
2009.
478
ALENCAR. Manoel Carlos Fonseca de. Rodolfo Teófilo: o sertanejo entre o ideal e a raça. Anais do
XXVII Simpósio Nacional de História. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org (p. 4)
211
A obra Sedição de Juazeiro foi tomada como referência por diversos autores para
tratar do Juazeiro. Seu conteúdo eivado de elementos racistas e/ou eugenistas teve
repercussão entre os que buscaram um parâmetro para tratar da história daquele
município.
479
Os outros personagens secundários, negros, índios, mestiços, são todos degenerados por defeitos
atávicos de raça e, por isso, desonestos, assassinos, libidinosos, traiçoeiros, feios, etc. (Ibid., p. 6) 553
MOREIRA, Harley Abrantes. A reinvenção do sertão do Ceará por uma Fortaleza nova. Rev.
Espacialidades [online]. 2008, vol. 1, nº. 0, 28p. p. 17.
212
Figura 12- A imagem possui a seguinte legenda: Padre Cícero Romão Batista ladeado, à direita, por
Lourenço Filho, em Juazeiro-CE, 1922 e foi publicada na página 6 de “Juazeiro do Padre Cícero (obra
premiada pela Academia Brasileira de Letras, em 1927) / Manoel Bergström Lourenço Filho – 4. ed. aum.
– Brasília: MEC/Inep, 2002”.
Foi como diretor geral de Instrução Pública do Ceará, que Manoel Bergström
Lourenço Filho480 chegou à Juazeiro do Norte no ano de 1922. Viajava ao interior do
estado liderando a missão de organizar um cadastro com o objetivo de planejar uma
reforma no ensino público cearense. Recebido pelo Padre Cícero, deste solicitou
autorização para a realização de um cadastro escolar. Em ocasião anterior tal
consentimento havia sido negado, porém, nessa tentativa logrou êxito e obteve a
aprovação.
Além da experiência de adentrar os plenos sertões, o jovem intelectual, em sua
breve passagem pelo Ceará, teve a oportunidade de conviver com importantes nomes da
intelectualidade cearense. Lourenço Filho ficou no estado entre os anos de 1922 e 1924.
480
Manoel Bergström Lourenço Filho nasceu na Vila de Porto Ferreira, interior de São Paulo, em 1897.
Filho do imigrante português Manoel Lourenço Júnior e de Ida Cristina Bergström, uma imigrante sueca.
Falece em 1970 na cidade do Rio de Janeiro. Sobre sua formação inicial: graduou-se na Escola Normal,
cursou Medicina com interesse em Psiquiatria, depois de dois anos deixou o curso e ingressou em Ciências
Jurídicas. Foi um intelectual, personagem de projeção nacional, articulador fundamental do movimento
“Escola Nova”.
481
MONARCHA, Carlos. Lourenço Filho. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, (Coleção
Educadores), p. 44.
482
A obra Joaseiro do Padre Cícero – cujo subtítulo da primeira edição é “scenas e quadros do fanatismo
no Nordeste” – foi publicada, em 1926, pela Companhia Melhoramentos, de São Paulo (Weiszflog Irmãos
Incorporada), com 301 páginas, ilustrado e tiragem de três mil exemplares.
213
483
D´AVILA, Jerry. O valor social da brancura no pensamento educacional da era Vargas. Educar, Curitiba, n. 25,
2005, p. 111-126, Editora UFPR, p.117.
214
O autor discute como o pensamento que inspirou reformas educacionais da Era Vargas
estava fundamentado no eugenismo, destacando ainda o papel de Lourenço Filho nos
projetos de expansão escolar objetivando a educação para o trabalho, vista aí como
possibilidade para uma devida adequação dos pobres e mestiços. 484
A contribuição de Marcelo Camurça problematiza o fato de ter sido a experiência
em Juazeiro do Norte uma espécie de marco negativo a ser ultrapassado pela
racionalidade. Para o autor, esse enfrentamento pode soar simplista, pois pretende
implementar uma solução racional.
A crítica de Camurça pertence aos estudos recentes acerca das relações de poder
no sertão e problematiza a Sedição de Juazeiro, levando em conta aspectos culturais e
políticos. A crítica a Lourenço se deve à insistência do discurso cientificista deslocado e
à visão superficial e preconceituosa que imprimia ao sertanejo e ao romeiro. As críticas e
revisões do trabalho de Lourenço Filho não repetem a retumbante aceitação da obra
premiada:
484
Ibid., p. 121.
485
CAMURÇA,1994, p. 35.
486
MONARCHA, 2010, p. 15.
215
Observando o encaminhamento que deu ao seu trabalho, Juazeiro era o local no qual o
caos e a doença se irmanavam na decadência que só o embrenhar-se nos sertões poderia
proporcionar ao jovem viajante. Adentrar o sertão e afastar-se do litoral era uma espécie
de recuo no tempo:
A relação homem/meio é tomada por Lourenço Filho como um mote, mas o que descreve
ao percorrer diferentes espaços em seu percurso, que vai do litoral ao sertão, é a
diversidade étnica. No litoral, a presença branca, descrita como preponderante, é
numericamente inferior. A influência de Euclides da Cunha e Monteiro Lobato fica
bastante evidente, sendo descrita e explorada em diversos trabalhos. O caráter
científicoliterário acabou marcando esta que é uma das narrativas fundamentais dos
estudos sobre Juazeiro do Norte, aqui problematizada por seu conteúdo racista.
O esforço descritivo ao modo dos relatos de viajantes, conFigura uma forma de literatura
que vinha suprir a necessidade de compreensão da região, tão afamada pelos fenômenos
climáticos e ainda desconhecida quanto aos seus personagens e práticas. Aos seus leitores,
487
LOURENÇO FILHO, 2002. p. 28.
488
Ibid., loc. cit.
216
489
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed. Recife: FJN;
Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009, p. 279.
217
490
VAN DIJK, Teun. A Discurso y racismo. In: GOLDBERG, David & SOLOMOS. John (Eds.), The
Blackwell Companion to Racial and Ethnic Studies. Oxford:Blackwell, 2001. Derechos sólo para la edição
traduzida por Christian Berger, Escuela de Psicología, Universidad Alberto Hurtado. PERSONA Y
SOCIEDAD Universidad Alberto Hurtado/Instituto Latinoamericano de Doctrina y Estudios Sociales
HADES. p.194.
218
No caso aqui estudado, nos deparamos com uma elite letrada cujos sujeitos se
propõem a ser autores e deixar um legado. Tal elite protagoniza o testemunho sobre fatos
e pessoas acerca dos quais lançam seus preconceitos e juízos de valor. Tais testemunhos
emergem impregnados dos termos (des)qualificantes ou limitantes daqueles que são
tomados como os “outros”. No que tange os autores aos quais nos dedicamos no presente
item, destaca-se o texto de Lourenço Filho, reconhecido com um importante prêmio
nacional, tendo sido publicado em capítulos e em jornal de grande circulação.
A contribuição de van Dijk auxilia no reconhecimento das formas privilegiadas de
reprodução do discurso racista. Dentre as descritas pelo autor, estão algumas que incluem
a “entonação” da fala e/ou emissões sonoras que se efetivam na oralidade. Existe ainda a
forma de “interação” durante um debate, por exemplo, o silenciamento, a limitação do
tempo de resposta, etc. Possibilidades que não cabem na nossa análise, que se fundamenta
exclusivamente no legado escrito.
Sobre o registro escrito podem ser discutidos, de acordo com os pressupostos do
autor, os aspectos relativos a:
491
VAN DIJK, 2001, p. 193-194.
219
492
SILVA. Paulo Vinícius Baptista da; E ROSEMBERG, Fúlvia. Brasil, lugares de brancos e negros na
mídia. In: Van Dijk, Teun (org) Racismo e discurso na América Latina, São Paulo, 2ª ed. São Paulo:
Contexto, 2019. p.73-118.
493
Ibid., p. 74.
494
São discutidos pelos autores os estereótipos que tanto se aplicam a personagens masculinos ou
femininos. Em síntese são: “bom crioulo”, este próximo do “preto velho”: passivo, conformista e
supersticioso; o “escravo nobre” que aceita a submissão é um trabalhador incansável; o “negro revoltado”,
este seria cruel, rebelde ou bandido; “negro pervertido”, associado à promiscuidade e à virilidade; o
“moleque”, brincalhão, infantilizado e bobo; o “crioulo doido”, imprevisível, risível e afetado. (p. 84-87)
220
4.2.1. Fealdade
495
TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza. Preconceito racial em Portugal e no Brasil Colônia. 2 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
496
SILVA. Bruno. Inventários do homem americano: viagens, teorias, degeneração e composição das
raças nos séculos XVII e XVIII. (Tese) Doutorado em História. UFF - Universidade Federal Fluminense,
2015, 369f. p. 229.
221
497
ECO, Umberto. História da feiura. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007.
222
sobre a aparente feiura de Sócrates498 e, ao mesmo tempo, exalta sua própria beleza com
o intuito de seduzi-lo. A resposta de Sócrates à investida do belo Alcebíades ressalta a
distinção entre a visão do pensamento e a dos olhos:
498
Em sua obra O Nascimento da Tragédia, Nietzsche explora a oposição apolíneo x dionisíaco. Nessa
obra, Sócrates é descrito como uma figura-chave para compreender que “ser” passa a ser mais relevante
que “parecer”.
499
PLATÃO. O banquete; ou Do amor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 53.
223
O destaque à beleza da jovem cuja tez era “menos tisnada” revela que o olhar do
visitante estava atento ao reconhecimento do belo, relacionado à cor da pele. Tisnado
significa manchado, escurecido, enegrecido. O realce que Lourenço Filho deu à figura da
500
SILVA. Verônica Guimarães Brandão da. A Cultura Brasileira do Feio: Por uma noção de beleza
ampliada. (Tese) Doutorado em Comunicação Social - linha de Imagem, Som e Escrita. Brasília, 2007,
UNB, p. 199.
501
LOURENÇO FILHO, 2002, p. 45.
224
jovem de pele clara, nos leva a crer que uma multidão predominantemente mestiça estava
em Juazeiro por ocasião de sua visita.
4.2.2. Periculosidade
502
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das
225
o ponto de não ser mais possível se delimitar as fronteiras entre o que era ser ‘pobre’ e o
que era ser ‘perigoso’”. A noção de “periculosidade” surge daí, numa nova configuração
que aciona e amplia o potencial risco da presença dos pobres, vistos como criminosos em
potencial, adverte Robert Pechman578.
Formada por pessoas oriundas de diversas partes, vindas sob as mais diversas
circunstâncias e aglomeradas de forma quase improvisada, a emergente urbe dos romeiros
era considerada um lugar perigoso. O Padre Cícero teria dito estas palavras numa prédica
presenciada por uma testemunha que as registrou:
Recuperar o medo como dimensão da história não é tarefa fácil. Não é fácil,
em primeiro lugar, porque esta dimensão dificilmente se encaixa
503
AZEVEDO, Célia Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 19.
226
504
MOREIRA, 2008, p. 17.
505
CHALHOUB, 1996, p. 20.
506
“A escritora inglesa Mary Carpenter, por exemplo, em estudo da década de 1840 sobre criminalidade e
“infância culpada” – o termo do século XIX para os nossos "meninos de rua” –, utiliza a expressão
claramente no sentido de um grupo social formado à margem da sociedade civil. Para Carpenter, as classes
perigosas eram constituídas pelas pessoas que já houvessem passado pela prisão, ou as que, mesmo não
tendo sido presas, haviam optado por obter o seu sustento e o de sua família através da prática de furtos e
não do trabalho”. (Ibid., p. 20)
507
Ibid., loc. cit.
227
508
BNDigital Jornal do Commercio, RJ, Nº 362, 30/12/1913, p. 8/Coluna Revista dos Estados, Ceará.
228
romeiros, na verdade se refere aos grupos armados, ditos jagunços, que se engajaram no
conflito e atravessaram o Ceará do sul ao litoral em combates, pilhagem e crimes. Daí o
que, no período descrito, era um temor ou rejeição, passa a ser um fato para as vítimas do
confronto.
4.2.3. Insalubridade
A obra Cidade Febril, de Sidney Chalhoub 509 , inscreve a questão da saúde numa
perspectiva ampla considerando as tensões de classe e as políticas de dominação, tomando
o tempo histórico em sua complexidade. Inspirando a necessidade de perceber a história
da ciência dentro desses parâmetros, evidenciando que saberes e práticas científicas não
orbitam isoladamente, estão inseridos nas tensões e contradições do tempo histórico. Para
o historiador Jucieldo Alexandre:
O autor discute a epidemia de cólera no Crato nos anos de 1855 a 1864, baseado
no periódico cratense O Araripe. Durante a epidemia que dizimou milhares de vidas,
também faleceram o pai do Padre Cícero Romão Batista e de José Marrocos. Foram duas
ondas epidêmicas do Cholera morbus na província do Ceará; em 1862 chegou a deixar
11 mil mortos, sendo aproximadamente 1.100 no Crato; já em 1864, estima-se em 1.252
vidas ceifadas pela doença naquela cidade.
A pobreza, as precárias condições de saneamento e o constante fluxo de pessoas,
indiscutivelmente transformavam Juazeiro do Norte num ambiente propício para os
problemas de saúde pública. O propósito dos autores discutidos neste capítulo, ao falarem
de aspectos da saúde dos romeiros e moradores de Juazeiro, não é discutir ou denunciar
as tais condições precárias. A doença ou a debilidade física são mencionadas enquanto
características dos sujeitos descritos como parte de um cenário doentio e infeccioso.
A saúde mental dos personagens é foco de muitos dos comentários, com destaque
para a percepção de Lourenço filho, que defende claramente a ideia de Juazeiro do Norte
como um ambiente propício ao desenvolvimento e ao agravamento dos males
psiquiátricos. Como vimos no terceiro capítulo, a afluência de pessoas com transtornos
mentais era real, porém, não ficava sem resposta. Eram, na medida do possível, acolhidas
com um mínimo de dignidade e liberadas para circular pela cidade.
509
CHALHOUB, 1996.
510
ALEXANDRE, Jucieldo F. Quando o “anjo do extermínio se aproxima de nós”: representações sobre
o cólera no semanário cratense “O Araripe” (1855-1864). Dissertação de Mestrado. João Pessoa, PB:
UFPB, 2010.
230
511
Antônio Gomes de Araújo (6/01/1900- 26/01/1989). Sua formação foi no Seminário Menor do
Seminário Arquiepiscopal do Ceará (Fortaleza). Em 1922 ingressou no curso superior do Seminário Maior
no Seminário Episcopal do Crato. Ordenado em 17 de abril de 1927. No período de 1927 a 1932 lecionou
História Eclesiástica e Filosofia nos cursos secundário e superior do Seminário do Crato. De 1929 a 1930,
História, na Escola da Associação dos Empregados no Comércio, e de 1930 a 1960, História, Latim e
Português, no Ginásio do Crato, atual Colégio Diocesano. 589 LOURENÇO FILHO, 2002, p. 40.
231
Em seu livro Almas de lama e aço, Gustavo Barroso falou da necessidade de uma
pesquisa mais apurada sobre os fenômenos místicos do Nordeste brasileiro. Sua
percepção do assunto está baseada numa causalidade, relacionada às condições inerentes
ao sertanejo e suas formas de ser e de crer. No capítulo intitulado “Dom Sebastião no
Nordeste”, depois de relatar os trágicos fatos da seita em torno da Pedra bonita/Pedra do
reino, consegue enxergar um paralelo com o Juazeiro:
512
Gustavo Adolfo Luiz Guilherme Dodt da Cunha Barroso (29/12/1888–3/12/1959), advogado, professor,
político, folclorista e escritor. Destacou-se como um dos líderes nacionais da Ação Integralista Brasileira,
sendo considerado um ideólogo do movimento.
513
BARROSO, Gustavo. Almas de Lama e de Aço. São Paulo: Melhoramentos, 1928, p.16.
514
Ibid., p. 23.
232
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ARQUIVOS CONSULTADOS
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• The Ralph della Cava Gift on Padre Cícero and Popular Religion in Brazilian
Northeast
• Ralph della Cava collection of microfilms on Padre Cicero and popular religion
in Brazil
Hemeroteca da Biblioteca Nacional (BNDigital)
• A Constituição- CE
• A República- CE
• A voz da Religião no Cariri-CE
• Cearense-CE
• Jornal Diário de Pernambuco-PE
• Jornal do Ceará
• Libertador-CE
• O Apóstolo-RJ
• Pedro II-CE
• Vanguarda
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