Tese - Daniela Medina

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF

INSTITUTO DE HISTÓRIA - IHT


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA - PPGH

ROMARIAS E LIBERDADES-JUAZEIRO DO NORTE E O


PÓS-ABOLIÇÃO (1860-1914)

DANIELA MÁRCIA MEDINA PEREIRA AGAPTO

NITERÓI-2021
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

DANIELA MÁRCIA MEDINA PEREIRA AGAPTO

ROMARIAS E LIBERDADES: JUAZEIRO DO NORTE E O PÓS -ABOLIÇÃO


(1860-1914)

NITERÓI – RJ
2020
DANIELA MÁRCIA MEDINA PEREIRA AGAPTO

ROMARIAS E LIBERDADES: JUAZEIRO DO NORTE E O PÓS -ABOLIÇÃO


(1860-1914)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História do Instituto de História
da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de doutor
em História.

Área de concentração: História Social.

Orientadora:
Profa. Dra. Georgina Silva dos Santos

NITERÓI, RJ
2020
Universidade Federal Fluminense

A21r AGAPTO, Daniela Marcia Medina Pereira.


ROMARIAS E LIBERDADES- Juazeiro do Norte e o pós-abolição (1860-1914) /
Daniela Marcia Medina Agapto. – 2021.
253 f. : il. color.

Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Niterói,


2021. Orientação: Prof. Dra. Georgina Silva dos Santos.

1. Pós-abolição . 2. Juazeiro do Norte. 3. Romaria.

CDD

DANIELA MÁRCIA MEDINA PEREIRA AGAPTO


ROMARIAS E LIBERDADES: JUAZEIRO DO NORTE E O PÓS-ABOLIÇÃO
(1860-1914)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História do Instituto de História
da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de doutor
em História.

Área de concentração: História Social.

Aprovada em14/12/2020

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________
Profa. Dra. Georgina Silva dos Santos - Universidade Federal Fluminense – UFF Orientadora

__________________________________________________
Prof. Dra. Larissa Moreira Viana - Universidade Federal Fluminense - UFF
Arguidor interno

__________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Timotheo da Costa – Universidade Salgado de Oliveira- UNIVERSO
Arguidor externo

__________________________________________________
Prof. Dra Régia Agostinho da Silva- Universidade Federal do maranhão- UFMA
Arguidor externo

__________________________________________________
Prof. Dra Renata Marinho Paz- Universidade Regional do Cariri - URCA
Arguidor externo

NITERÓI- RJ
2020
À José Rodrigues Pereira (in memorian) e à Maria Algediva Medina Pereira, meus pais.

À romeira desconhecida que me parou na rua e pediu para rezar por mim e pela minha barriga
com Clarisse dentro. Uma mulher generosa que não sabe quanto chão me deu naquele dia.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao exemplo inesquecível de minha avó Enedina Amâncio Medina: incansável,


enérgica e crente.
À minha mãe e principal incentivadora, Dona Algediva.
Aos meus filhos Antônio e Clarisse que me fazem querer ser melhor, merecedora da
benção de tê-los.
Ao meu companheiro Erick, pelo apoio, inspiração e pela presença carinhosa e constante
em todas as etapas deste trajeto. Foi ao seu lado minha primeira ida ao Horto do padre Cícero,
visita inesquecível que até hoje me emociona, pois é sempre o mesmo choque de claridade
luminosa que me enche os olhos.
Agradeço a minha irmã Diana Medina, que com coragem e boa vontade de ajuda em
tudo e desde sempre. Mãe dos meus amados Simon e Lara, sobrinhos que me enchem meu
coração de carinho, lindos e amados que são.
Sou grata a minha irmã Tetê Medina que sempre me apoiou e foi uma inspiração positiva
e potente.
Registro meu agradecimento aos meus sogros Tico e Gorete, presença acolhedora e
muito carinhosa na divisão dos cuidados com Clarisse.
Tive a honra e a benção de encontrar Georgina Santos, minha orientadora, que acreditou
no meu trabalho e foi fundamental para que eu enxergasse a presença dos pretos e pretas ao
redor do Padre Cícero. Sua leitura apurada, exigente e sensível abriu novo horizontes e renovou
meu ânimo de viver a pesquisa.
Às nossas coordenadoras professoras Giselle Martins Venancio, Maria Verónica Secreto
Ferrera e Sonia Maria de Menezes Silva.
As aulas e as conversas com os professores da UFF foram inspiradoras desde os
primeiros contatos, agradeço especialmente o empenho e o alto nível proporcionados pelos
professores Rodrigo Bentes, Ana Maria Mauad e Giselle Venâncio. Um agradecimento especial
por todo o empenho e entusiasmo que fluem em torno da nossa queridíssima professora Ismênia
Martins.
Agradeço a professora Maria Telvira da Conceição-URCA, pesquisadora pioneira no
diálogo frontal discutindo a fé romeira e presença negra nas romarias.
Sou grata ao querido time Dinter que me auxiliou em diversas etapas e das mais diversas
formas. Grandes colegas, excelentes parceiros no estágio doutoral e, antes de tudo, grandes
historiadores com os quais tive oportunidade de conviver. A Priscilla Régis, sempre disposta
para me ajudar com questões bem práticas e também muito paciente para ouvir minhas queixas.
Minha grande colaboradora Fatinha, agradeço a liberação de acesso a parte de seu rico acervo
documental pessoal. Às historiadoras Rúbia Micheline, Viviane Prado e Sandra Nancy pelos
exemplos de força e garra e pela generosidade acolhedora. Obrigada Simone Pereira, grande
parceira com quem tive oportunidade de discutir alguns temas e partilhar ansiedades e
conquistas nesta jornada. Registro minha gratidão pelo tempo compartilhado com a colega
Jaquelini Viração.
Agradeço a Jucieldo Ferreira Alexandre, generoso e muito paciente com minhas
(des)aventuras pelo XIX. Ao colega Carlos Rafael agradeço a solicitude e o apoio em diversos
momentos. Aos colegas Helonis, Marcos Felipe, Raimundo Araújo e Fagno pela boa companhia
e bom humor nesta árdua trajetória. Agradeço o exemplo do nosso primeiro Doutor da turma,
o colega Airton de Farias, um historiador na “linha de frente” nos mais desafiadores cenários
para nossa profissão, respondendo com pesquisa e trabalho ao turbilhão revisionista e agressivo
que tenta nos cercar.
Ao ex-secretário municipal de Turismo e Romaria de Juazeiro do Norte José Carlos
Santos e à ex-secretária municipal de Cultura e Romaria Marli Bezerra. Ambos, em momentos
distintos, me deram condições de pesquisar e elaborar projetos e ações que estreitaram minha
aproximação com a “nação romeira”.
Aos colegas com os quais convivi na Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte: Leda
Barros, Mazé Alves, Rafaela Benevenuto, Claudinália Rocha, Mano Damasceno, Romão
Canabarro, Vaninha e Francisco Amorim. Todos eles, de um jeito ou de outro, compartilharam
saberes e os significados trabalhar com atendimento aos romeiros e aos mestres de cultura do
Juazeiro.
Ao professor Régis Lopes-UFC pela escuta atenta, pelo incentivo e por ter um pé no
meio deste mundo-Juazeiro. Ao professor e amigo Franck Ribard-UFC, pelas conversas, pelo
apoio e pelos muitos livros emprestados. Ao professor Ítalo Santirocchi-UFMA, pela gentil
colaboração. Ao Professor Petrônio José Domingues-UFS pela atenção nas consultas quando a
ele recorri. Ao sr. José Peixoto Júnior, autor de “ Padre Peixoto- Intelectual, político sacerdote”,
obra esgotada cuja cópia gentilmente me enviou. Ao professor Eurípedes Funes-UFC pelas
conversas e empréstimo de livros.
À professora Martha Abreu que colaborou com minha banca de qualificação. Sua trajetória e
produção já inspiravam muito deste trabalho e sua análise possibilitou um diálogo mais
dinâmico e efetivo com o pós-abolição.
Ao professor Marcelo Timotheo da Costa que, na banca de qualificação, me desafiou a pensar
a complexidade da questão da neo-cristandade. Desafio que ainda começo a trilhar, mas que
muito me ajudou nesta etapa de construção da tese.
À amiga Régia Agostinho pelo estimulo, pela parceria e pela presença.
Ao Ed (Edmilson Alves) por sempre e sempre acreditar em meu trabalho e me animar
no fazer historiográfico. A minha querida amiga Vânia Lúcia, uma amiga tantos anos e que
contribui com afeto sempre muito bem-vindo.
Sou muito grata à minha família em São Gonçalo-RJ pela acolhida no tempo do estágio
na UFF e pelo apoio carinhoso que sempre demonstraram. Obriga especialmente a tia-avó
Alaíde e a Célia, Celina e Ana Maria.
À equipe do Arquivo Público do Ceará.
Aos estudantes com os quais tive a possibilidade de trabalhar, suas dúvidas e ideias
estimulam a necessidade de construir uma historiografia mais articulada com temas para melhor
pensarmos nosso tempo.
Agradeço a Deus pelos meus 50 anos de vida! Completados quando eu finalizava esta
tese.
RESUMO

A presente tese relaciona a gênese das romarias a Juazeiro do Norte e o pós-abolição. Discute
o papel e as estratégias da diocese cearense no estabelecimento de um circuito de ação e
formação clerical submetidas aos preceitos de Roma. Discute também o catolicismo popular
diante dos desafios para uma digna sobrevivência no sertão do XIX tomando por referência as
missões do padre Ibiapina e a instalação de casas de caridade. As missões de Ibiapina são
pensadas também em sua interface com a questão da escravidão. A tese ainda retoma o processo
de abolição cearense, discutindo suas vicissitudes e contradições. Expõe aspectos da
mobilização abolicionista na região sul do Ceará em oposição à construção narrativa de que
houve atraso na divulgação do ideal abolicionista, tratando assim da presença de uma resistência
escravocrata que atuou, inclusive, ao arrepio da lei. Toma o surgimento das romarias a Juazeiro
no contesto do pós-abolição e defende a presença de uma rota de acolhimento, protagonizada
em larga medida, pelo padre Cícero que transitou entre zelo apostólico e articulação política.
Discute aspectos da liberdade vivida e experimentadas por um grupo que, aos olhos de seus
antigos senhores ou dos potentados locais, mereciam controle vigilante e desconfiança.
Considera e problematiza uma matriz racista imbricada nas narrativas de cronistas e
historiadores que legaram parte das descrições de Juazeiro do Norte das primeiras décadas do
século XX. Constrói um léxico baseado nestas falas racistas e expõe suas perversas
peculiaridades e sua duradoura permanência.

Palavras-chave: Romaria, Pós-abolição, Juazeiro do Norte


ABSTRACT

This thesis relates the genesis of pilgrimages to Juazeiro do Norte and the post-abolition period.
It discusses the role and strategies of the Ceará diocese in establishing a circuit of action and
clerical formation submitted to the precepts of Rome. It also discusses popular catholicism in
the face of the challenges to a dignified survival in the backlands of the XIX, taking as reference
the missions of priest Ibiapina and the installation of charity houses. Ibiapina's missions are also
tought regarding the issue of slavery. The thesis still resumes the process of abolition in Ceará,
discussing its vicissitudes and contradictions. It exposes aspects of the abolitionist mobilization
in the southern region of Ceará in opposition to the narrative construction that there was a delay
in the dissemination of the abolitionist ideal, thus dealing with the presence of a slave-based
resistance that even acted against the law. It takes the rise of pilgrimages to Juazeiro in the
postabolition contest and defends the presence of a welcoming route, carried out to a large
extent by priest Cícero who transited between apostolic zeal and political articulation. It
discusses aspects of the freedom lived and experienced by a group that, in the eyes of their
former masters or local potentates, waranted vigilant control and distrust. It considers and
problematizes a racista narative intertwined in the narratives of chroniclers and historians who
bequeathed part of Juazeiro do Norte's descriptions of the first decades of the 20th century. It
builds a lexicon based on these racist lines and exposes its perverse peculiarities and its lasting
permanence.

Key-words: Pilgrimage, Post-abolition period, Juazeiro do Norte


RÉSUMÉ

Cette thèse relate la genèse des à Juazeiro do Norte et la. Discute du rôle et des stratégies du
diocèse de Ceará dans l'établissement d'un circuit d'action et de formation cléricale soumis aux
préceptes de Rome. Aborde également le catholicisme populaire face aux défis d'une survie
digne dans l'arrière-pays du XIX, en prenant comme référence les missions du Père Ibiapina et
l'installation de maisons de charité. Les missions d'Ibiapina sont également pensées dans leur
interface avec la question de l'esclavage. La thèse reprend encore le processus d'abolition au
Ceará, discutant de ses vicissitudes et contradictions Expose des aspects de la mobilisation
abolitionniste dans la région sud du Ceará en opposition à la construction narrative selon
laquelle il y a eu un retard dans la diffusion de l'idéal abolitionniste, traitant ainsi de la présence
d'une résistance esclavagiste qui a même agi contre la loi. Reprend l'essor des pèlerinages à
Juazeiro dans le contexte de la post-abolition et défend la présence d'un parcours d'accueil,
réalisé en grande partie par le Père Cícero qui a évolué entre zèle apostolique et articulation
politique. Aborde les aspects de la liberté vécus et expérimenté par un groupe qui, aux yeux de
ses anciens maîtres ou potentats locaux, méritait un contrôle vigilant et une méfiance. Considère
et problématise une matrice raciste imbriquée dans les récits des chroniqueurs et historiens qui
ont légué une partie des descriptions de Juazeiro do Norte des premières décennies du XXe
siècle. Construit un lexique basé sur ces lignes racistes et expose ses particularités perverses et
sa pérennité.

Mots-clé: Pèlerinages, Période post-abolitionniste, Juazeiro do Norte


LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

• APEC- Arquivo Público do Estado do Ceará


• BNDigital- Hemeroteca da Biblioteca Nacional
• BNRJ- Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
• DHDPG-Departamento Histórico Diocesano Padre Antônio Gomes
• DINTER- Doutorado Interinstitucional
• IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
• SECROM -Secretaria de Cultura e Romaria de Juazeiro do Norte
• UFC- Universidade Federal do Ceará
• UFF-Universidade Federal Fluminense
• URCA- Universidade Regional do Cariri
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Prainha.


Figura 2.Croqui do Seminário São José, Crato.
Figura 3. Irmãs da Casa de Caridade de Santa Fé, Paraíba
Figura 4. Reprodução da parte superior da primeira página do jornal “A Voz da Religião” no
Cariri
Figura 5. Mapa modificado para localizar as casas de Caridade de Ibiapina no Ceará.
Figura 6. Detalhe da primeira página do jornal “Libertador”
Figura 7. Anúncios publicados na primeira página do jornal “Libertador” Figura
8. Beata Maria de Araújo.
Figura 9. Beato José Lourenço.
Figura 10. Zé Pedro
Figura 11- Os voluntários de Juazeiro.
Figura 12- Padre Cícero Romão Batista e Lourenço Filho
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 17

CAPÍTULO 1- O CARIRI DE IBIAPINA: CARIDADE, MANUMISSÃO E MILAGRES ....................................... 26

1.1 A Diocese do Ceará: um divisor de águas ................................................................................. 28


1.2. O Seminário da Prainha ............................................................................................................ 38
1.3. O “seminarinho”: a instalação do Seminário Episcopal no Crato e do Colégio das órfãs
em Fortaleza .................................................................................................................................... 47
1.4. A Voz da Religião no Cariri (1868- 1870) ............................................................................... 61
1.5. Ibiapina e a Fonte Miraculosa .................................................................................................. 72
CAPÍTULO 2- A “TERRA DA LUZ” E SUAS SOMBRAS: ABOLIÇÃO NO CEARÁ ........................................... 80

2.1 Abolição e civilidade: paixões e interesses ............................................................................... 93


2.2 O Ceará ao som da Lira e da Guitarra ..................................................................................... 106
2.3 As sombras da abolição: um projeto de imigração europeia para o Ceará .............................. 110
2.4 Um tardio eco abolicionista no Cariri? .................................................................................... 118
CAPÍTULO 3 - JUAZEIRO DO NORTE: A NOVA JERUSALÉM ................................................................... 128

3.1 O olhar do viajante inglês ........................................................................................................ 128


3.2. A visão dos cronistas locais ................................................................................................... 134
3.3. O Milagre de Maria ................................................................................................................ 138
3.4 O caminho do acolhimento e as armadilhas da política .......................................................... 154
3.5. Pardos, pretos e loucos: o exército de romeiros de Padre Cícero ........................................... 159
3.6. Juazeiro e “sua singular evolução” ......................................................................................... 168
3.7. Entre combates e festas .......................................................................................................... 174
3.8 Romarias .................................................................................................................................. 182
3.8.1 Romeiros/Romarias como objeto de estudo ............................................................. 186
CAPÍTULO 4. NARRADORES DO JUAZEIRO ............................................................................................ 192

4.1 Três narradores do Juazeiro: muita ortografia e pouca fé........................................................ 192


4.1.1. Alencar Peixoto ......................................................................................................... 195
4.1.2 Rodolfo Teófilo ........................................................................................................... 206
4.1.3 Lourenço Filho ............................................................................................................ 211
4.2. O viés racista de um léxico para (des)qualificar o romeiro .................................................... 216
4.2.1. Fealdade .................................................................................................................... 220
4.2.2. Periculosidade ........................................................................................................... 224
4.2.3. Insalubridade ............................................................................................................. 228
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................................... 232

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................ 237

ARQUIVOS CONSULTADOS .................................................................................................... 237


BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................... 241
17

INTRODUÇÃO

“Você não sabe o que está procurando, mas vai chegar pra você através de uma
palavra. Quando escutar a palavra vai entender tudo”. Este trecho finalizou uma breve
conversa com João José A. V. de Jesus1. Ele estava de pé na frente da Matriz de Nossa
Senhora das Dores 2 divulgando o Evangelho e recomendando aos poucos ouvintes a
leitura da Missão Abreviada. Antes de deixar sua mensagem final sobre a minha procura,
conversou comigo e perguntou o que eu fazia ali. Respondi que queria observar a romaria,
de fato me interessava observar intenso movimento ao redor da igreja enquanto a missa
se iniciava, eram as primeiras atividades de campo para a montagem do projeto de
doutorado. O senhor de longas barbas brancas vestido em túnica azul e branca me
aconselhou ler a Missão Abreviada e a decorar os dez mandamentos. Deixou claro, eu não
deveria apenas ler, tinha que decorar, pois decorando eu evitaria o pecado. As palavras
gravadas na memória garantiriam minha proteção. Depois dos conselhos, ele me deu um
cartãozinho com os dez mandamentos impressos e eu segui para fazer algumas fotos. Não
o fotografei, não achei conveniente. Foi aí que me veio à lembrança suas primeiras
palavras :“Você não sabe o que está procurando, mas vai chegar pra você através de uma
palavra, quando escutar a palavra vai entender tudo”.
Muitas vezes me peguei pensando nas tais palavras que me chegariam como
resposta. A realidade é que me chegaram muitas palavras, as conversas com os romeiros,
os benditos, as leituras e diálogos necessários para tornar o tema Juazeiro/Romaria um
trabalho de moldes acadêmicos e, por fim, estas palavras que surgem nesta tela. Minhas
próprias palavras que tentam organizar, expressar e defender as coisas que aprendi e
questionei sobre o passado deste lugar que me inspira e me anima. Dedico-me aqui a tecer

1
Eu já tinha ouvido falar do Ave de Jesus, e que todos os membros assumem o mesmo nome, ou seja, todos
os homens se chamam João José A. V de Jesus e todas as mulheres são Maria A. V de Jesus. Nunca tinha
conversado com nenhum deles. Trata-se de uma comunidade autônoma e isolada que vive em Juazeiro,
mantém um hábito e pregam a leitura da Missão Abreviada. Sobre este tema contribui: CAMPOS, Roberta
Bivar Carneiro “When sadness is beautiful: a study of the place of rationality and emotions within the
social livfe of the Ave de Jesus”- University of St. Andrews, 2000. Ou ainda em CAMPOS, Roberta Bivar
Carneiro: Como Juazeiro do Norte se tornou a Terra da Mãe de Deus .Revista Religião e Sociedade, Rio
de Janeiro, 28(1): 146-175, 2008
2
Na missa matinal de encerramento da Romaria de Nossa Senhora das Dores (setembro de 2016)
18

como narrativa histórica o que começou com um questionamento acerca da presença de


tantos beatas pretas e beatos pretos.
Todos os dias chegam romeiros ao Juazeiro. São visitas datadas por escolhas e
recortes pessoais “nossa família vem sempre no natal”, “venho pelo aniversário de minha
avó” e, não obstante, existe o grande ciclo de romarias3 que engloba as Romarias de Nossa
Senhoras das Candeias, Nossa Senhora das Dores e de Finados. Estima-se em pelo menos
500 mil pessoas em cada uma, sendo a maior a Romaria de finados. As ruas tomadas pelas
procissões ou pelo vaivém ruidoso, as feiras abertas entrando pela noite, o som dos bares
e serestas nas ruas, fogos, parquinhos iluminados. pelas vias de Juazeiro do Norte corre
um fluxo de vida, esperança e força tremendo, assustador, inquietante.
Em meus primeiros escritos sobre Juazeiro do Norte (notas pessoais e poemas
ruins) usei a palavra caleidoscópio. Há muita luz e um fluxo incessante de cores. Fitas,
flores, chapéus, rosários de contas. A cidade alimenta o olhar e provoca experimentações
únicas a quem simplesmente para um pouco e olha ao redor. Esta pesquisa começou na
rua, em conversas, entrevistas, fotos. Comecei tomando chá de capim santo com senhoras
que me contam suas histórias e que me ensinam muito. A convivência com narrativas de
romeiros suscitou outras inquietações, especialmente os recorrentes relatos que davam
conta da construção de uma memória do Padre Cícero como figura generosa e acolhedora,
“santo em vida”. Afinal, a quem o Padre Cícero acolheu e guiou?
Sou natural de Fortaleza e ali concluí minha graduação em História na UFC e o
mestrado na mesma instituição. Em 2009, assumi como professora substituta na URCA e
passei a residir no Crato, a opção por trabalhar na URCA já vinha do meu contato afetivo
com a região. Eu já conhecia o Horto e a capela do Socorro, por exemplo, mas não pensava
em tornar este tema um objeto de estudos.
No ano de 2011, assumi através de concurso público o cargo de Historiadora na
Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte. Atuei na Secretaria Municipal de Cultura e
Romaria de Juazeiro do Norte e na Secretaria de Turismo e Romaria. Conviver com os
romeiros que chegam à cidade era uma prática cotidiana de trabalho e lidei diretamente

3
O maior fluxo de romeiros se concentra nos meses de fevereiro, setembro e novembro, em comemoração
às respectivas romarias de Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora das Dores e Finados, o calendário
de romarias é essencialmente o seguinte: 06 de Janeiro, a Romaria de Santos Reis; 20 de Janeiro, a Romaria
de São Sebastião; 02 de fevereiro, a Romaria de Nossa Senhora das Candeias; a semana do dia 16 a 24 de
março, Semana do padre Cícero; 24 de março, comemoração ao nascimento do padre Cícero; período da
Semana Santa, em abril; 20 de julho, aniversário de morte do padre Cícero; 15 de setembro, a Romaria da
Padroeira Nossa Senhora das Dores; 4 de outubro, a Romaria de São Francisco de Assis; 1 de novembro,
dia do Romeiro e dia 2 de novembro, Finados.
19

com este público. Foram diversas oportunidades de me deparar com a complexidade e a


profundidade deste tecido social a que usualmente chamamos romaria. Não exerço mais
este cargo, pedi exoneração em 2017, não havia autorização para afastamento com
objetivo de realização dos estudos que confluíram para o desenvolvimento desta tese.
Registro aqui meu protesto contra esta situação.
Ainda nos tempos da atividade na prefeitura tive diversas oportunidades de me
deparar com a complexidade e a profundidade deste tecido social a que usualmente
chamamos romaria. Eu discutia a questão urbana associada ao movimento das romarias,
trabalhei na comissão de atualização do Plano Diretor da cidade e em formações sobre a
recepção e cuidados com os romeiros. Observei que ao conhecerem a história das romarias
muitos profissionais da Saúde ou da Segurança repensavam suas próprias práticas de
atendimento e entendiam as peculiaridades daquele público.
Por muitas vezes, adentrar os ranchos4 e acompanhar a rotina dos atendimentos
nos postos de plantão da romaria foram momentos de estranhamento e descoberta.
Experiências distintas levam pessoas a seguirem lado a lado na procissão, cada uma com
sua graça, seu pedido, seu agradecimento ou saudade. Há muita saudade em Juazeiro,
muita memória a fluir viva e atualizada nas diversas performances coletivas ou
individuais. Juazeiro do Norte é um grande encontro, um cruzamento de mundo, o meio
do mundo como nos inspirou Régis Lopes.5
Um marco inicial da pesquisa foi o projeto BEM-DITOS,6 cuja proposta inicial
tinha o objetivo de originar um acervo de narrativas orais de relatos de romeiros sobre
graças e milagres atribuídos ao Padre Cícero. O projeto foi criado e gerido pela Secretaria
de Cultura e Romaria de Juazeiro do Norte (SECROM)7. Na prática as narrações foram

4
Os ranchos são uma modalidade de hospedagem característica da cidade de Juazeiro do Norte. Abrigo de
romeiros desde o início do século XX, hoje existem, aproximadamente, 500 pela cidade e sempre lotam
durante as romarias. Os ranchos, em alguns casos, recebem gerações de romeiros da mesma família
realizando uma forma de acolhimento muito específico. Hoje, é uma atividade comercial e há denúncias de
superlotação e precárias condições de higiene. Num trabalho específico sobre o tema, idealizei e fui
facilitadora de um Percurso Urbano (Centro Cultural BNB Cariri) denominado “Artes de Acolher” que
tratava do tema e durante o qual visitamos diversos estabelecimentos.
5
RAMOS, Francisco Regis Lopes. O meio do mundo: territórios de sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
2000. 350f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Estudos Pós-Graduação em História – PUC, São
Paulo, 2000.
6
O “BEM-DITOS” previa e realizou o registro oral através de videografia e mantém o acervo digital de todo o
material bruto coletado. Foi ainda concretizada uma edição de 18 minutos.
7
Sendo a Secretária a Sra. Marli Bezerra, a Coordenadora de Romarias a Sra. Leda Barros e eu fui a técnica
responsável. As primeiras coletas do projeto BEM-DITOS ocorreram em setembro de 2014 durante a
Romaria de Nossa Senhora das Dores, numa sala no térreo do Memorial Padre Cícero, Largo do Socorro
SN.
20

bem além da ideia de registrar graças ou milagres, fluíam em vários sentidos, descrevendo
modos de vida e expondo experiências diversas. O mote inicial não foi o elemento central
das conversas, estas passeavam por outros aspectos, muitos deles inesperados mesmo para
quem já tinha certa familiaridade com os romeiros.
Questões sugiram e ganharam sentido a partir da atitude de valorizar estes
personagens e suas narrativas, com as quais me deparei tantas vezes. Foi diante desta
realidade que elaborei o projeto apresentado para seleção do “O olhar dos romeiros do
século XXI: a tradição oral sobre as romarias de Juazeiro do Norte/CE” para o Doutorado
Interinstitucional (DINTER) entre a Universidade Federal do Cariri (URCA) e a
Universidade Federal Fluminense (UFF).
Depois da aprovação e já no curso das disciplinas aconteceu uma guinada que
redefiniu a temporalidade e o objeto do trabalho. Em setembro de 2016, durante a
disciplina ministrada no Ceará pela professora Georgina Santos, minha orientadora,
tivemos oportunidade de circular juntas pelo centro de Juazeiro do Norte, nas imediações
da Matriz de Nossa Senhora da Dores. Naqueles dias, estava exposta no salão do Círculo
Operário São José uma série de fotografias históricas sobre o Padre Cícero Romão Batista.
Ao observar presença de muitos beatos negros ao lado do padre Cícero, a professora
Georgina Santos me questionou sobre a presença de negros como beatos e auxiliares
diretos do padre, perguntado se eram seus escravos. Apressei-me em dizer que não eram
seus escravos porque a abolição no Ceará dera-se antes do restante do Império. Dias
depois, em sessão de orientação, quando a professora interrogava a mim e a si mesma
sobre as “origens” das romarias, lançou a questão do pós-abolição como possível conexão
entre as errâncias dos recém-libertos e a formação do núcleo de homens e mulheres negras
à volta do Padre Cícero. Daí, começamos a especular sobre a presença e circulação de
exescravizados em Juazeiro do Norte.
Meu recorte temporal no projeto inicial era o tempo presente, porém aquele novo
questionamento e aquelas possibilidades de intersecção dos temas (romaria/pós-abolição)
foram sendo amadurecidas. A bibliografa sobre Juazeiro do Norte ou sobre o Padre
Cícero, mesmo ao tratar de aspectos biográficos de personagens negros, não discute o
pós-abolição e nem o tema étnico-racial. O silenciamento começou a incomodar e veio a
construção de um novo projeto, com fins de discutir a presença e o modo de vida destes
sujeitos em Juazeiro do Norte. A transição foi marcante. Depois do burburinho das ruas,
21

os rumos do trabalho me levaram ao silêncio dos arquivos, à leitura dos jornais e à imersão
no século XIX, uma passagem fascinante, mas muito difícil.
Resolvi visitar o Ceará do Oitocentos em busca de elementos da circulação de
peregrinos, missionários, viajantes, militantes abolicionistas, migrantes da seca,
exescravizados, mestiços, camponeses, intelectuais e clérigos. Deparei-me com
encruzilhadas. Onde os caminhos se cortam, mudanças de rota são possíveis, encontros
são potencializados e conflitos expostos. O simbolismo da encruzilhada também carrega
a possibilidade de encontro entre o mundo visível e o invisível. A evocação bem descreve
a intenção do esforço que move este trabalho. Final do século XIX, alvorecer do século
XX, interior do Ceará, pós-abolição, primeiros anos da República, formas devocionais do
catolicismo sertanejo e o anúncio de um milagre.
Cícero Romão Batista (1844-1934), padre formado na primeira turma do
seminário episcopal no Ceará, assumiu como pároco, em 1872, a Capela de Nossa
Senhora das Dores, na povoação do Juazeiro. Em 1889, seria largamente anunciado ali o
“milagre da hóstia vertendo sangue”, fato protagonizado por Maria de Araújo. Ela, uma
jovem beata negra.
Em pesquisa recente, com o tema "A cor da devoção: africanidade e religiosidade
na cultura romeira no Cariri contemporâneo”, a professora Maria Telvira da Conceição,
da URCA, investigou a presença tanto de pessoas pretas como aspectos simbólicos da
cultura afro-brasileira 8 . As considerações da professora Maria Telvira e mesmo a
proposição do grupo de trabalho “Romarias, diversidades e identidade etnico-racial” 9 no
“V Simpósio Internacional padre Cícero-Reconciliação... e agora?”, também coordenado
pela Professora Cícera Nunes da URCA, evidenciam que a historiografia local esboça
interesses neste tema. Mas optando por um recorte ultra contemporâneo, secundarizando
os espasmos iniciais destas rotas de devoção que tomam a cidade de Juazeiro ano após
ano.

8
CONCEIÇÃO. Maria Telvira da, SANTOS. Ingrid Sâmara Félix dos e FERRAZ. Jade Luiza Andrade. A
cor da devoção: Africanidade e religiosidade na cultura romeira no cariri contemporâneo – a problemática
da identidade racial. In XI Encontro Regional Nordeste de história Oral. Disponível em:
http://www.nordeste2017.historiaoral.org.br/resources/anais/7/1493823220_ARQUIVO_Artigocompleto
XIEncontroRegionaldeHistoriaoral-03-05-2017.pdf
9
CONCEIÇÃO, Maria Telvira da. A cor da devoção: africanidade e religiosidade na cultura romeira no
Cariri contemporâneo. In: V Simpósio Internacional Pe Cícero. Reconciliação... e agora?, 2017, Juazeiro
do Norte. V Simpósio Internacional Pe Cícero. Reconciliação... e agora?. Crato-Ce: Universidade
Regional do Cariri, 2017. v. 01. p. 40-53.
22

Carlos Alberto Steil tangenciou essa questão ao tratar das grandes romarias a Bom
Jesus da Lapa, na Bahia, menciona o quão marcante foi a “dos pretos, realizada em junho
de 1888, um mês depois da concessão da liberdade aos escravos”10 .Uma romaria preta
quase que imediatamente após a abolição. O autor realiza um estudo antropológico da
romaria, mas não explora este aspecto da história daquela peregrinação.
Mesmo autores que traçaram relatos biográficos de personagens negros, como a
beata Maria de Araújo, conseguiram elaborar reflexões que não problematizavam o
pósabolição como tempo vivido pela personagem. É o caso do trabalho de Edianne
Nobre11 em sua tese de doutoramento, depois publicada em livro12. A ausência deste tema
não pode ser considerada uma opção ou recorte, especialmente num trabalho com o
esmero e a densidade que a autora se propôs a legar. Entendo que há uma escolha em
silenciar uma questão como esta, em lidar com uma trajetória de vida e seus combates
sem levar em conta o lugar ocupado por aquele sujeito. Como pode ser isso possível em
uma sociedade na qual a cor demarcava posições, determinava imposições, julgamentos
e deflagrava resistências? Aliás, a cor ainda demarca posições até hoje.
Mesmo não explorando a historicidade do lugar atribuído ao negro no Brasil
daquele período, Carlos Alberto Tolovi 13 teve o cuidado de expor a vigência de uma
cultura racista e machista na aceitação do protagonismo de Maria de Araújo. Porém, os
mecanismos destes pressupostos excludentes e sua historicidade não foram trabalhados
pelo autor. Seu foco é discutir a construção do mito em torno da figura do padre Cícero e
sua articulação com o campo político partidário. Mas o autor não deixa de explorar,
inclusive, uma conexão com a presença de mulheres negras como beatas de Ibiapina, ao
problematizar o que chamou de “Reação da Igreja hierárquica”, tentou destrinchar as
resistências à aceitação do milagre.
Muitas vezes até mesmo as fontes ocultam a cor da beata e seu lugar social,
disfarçando o peso que lhe recaía sobre os ombros naquele 1889. Resta ao historiador
enfrentar a questão, problematizá-la, expondo toda sua densidade. O processo instaurado

10
STEIL. Carlos Alberto. O sertão das romarias-Um estudo antropológico sobre o santuário de bom
Jesus da Lapa-Bahia. Petrópolis: Editora Vozes, 1996. (nota 12),p.233 .
11
NOBRE, Edianne S. Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do
Oitocentos. Tese de Doutorado - UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. f.261
12
Causa estranhamento o fato da ilustração da capa do livro publicado pela autora “ Incêndios da alma -A
beata Maria de Araújo e o milagre de Juazeiro” trazer a bela ilustração de uma mulher branca e sensual.
Deslocado do conteúdo, o invólucro-capa demarca mais um apagamento da figura da beata.
13
TOLOVI. Carlos Alberto. Padre Cícero do Juazeiro do Norte: A construção do mito e seu alcance religioso. Tese
de doutorado em Ciência da Religião. PUC-SP, 2015, 233f.
23

pela Diocese do Ceará para investigar o milagre da hóstia atribuído à Maria Araújo não
menciona, nos depoimentos, o fato da personagem ser uma mulher negra e a exata medida
do constrangimento que um feito extraordinário de sua autoria poderia causar. Impõe-se
desde então um silêncio que ecoa. Maria Araújo é descrita ora como virtuosa, ora como
maquiavélica, numa dualidade esvaziada dos sentidos que emudeciam o largo incômodo
de associar santidade e beatitude a uma mulher negra. Será depois, já nos relatos
historiográficos ou nas crônicas dos intelectuais que descreveram Juazeiro que a beata
negra será tratada com suspeição. Sua cor evidenciada aparece associada a diversas
adjetivações negativas. Foi uma “negra ignorante”, nas palavras do padre Antônio
Gomes14; foi o fruto de uma “hibridez horrível”15, para Alencar Peixoto; foi uma “solerte
embusteira”, para o historiador Otacílio Anselmo16.
Em trabalhos mais recentes a personagem foi chamada a ocupar seu lugar de
protagonista e sua trajetória discutida ao lume de novas questões e novos acervos
documentais. Sua trajetória foi devidamente mapeada, ficando, como assinalamos,
ausente a problematização da questão da cor e do contexto do pós-abolição.
Dividida em quatro capítulos, esta tese trata do processo de formação das romarias
em Juazeiro do Norte, em fins do século XIX, início do XX. Relativiza a importância do
milagre da hóstia para a construção da mística em torno do padre Cícero e destaca a
importância da rede de relações assistenciais que se formou à volta do líder religioso e
político no pós-abolição, atraindo forasteiros.
O primeiro capítulo visa ancorar a religião católica no Ceará das últimas décadas
do século XIX. De início, apresenta aspectos da criação e organização da Diocese do
Ceará, a fundação do Seminário Episcopal e do Colégio da Imaculada Conceição,
observados a partir do esforço ultramontano de aproximação com os princípios da Sé
Apostólica. A documentação e o leque de referências comtemplados neste capítulo
compreende Relatórios de Presidentes da Província do Ceará, Álbuns da celebração do
cinquentenário do Seminário do Crato e do Centenário do Seminário Diocesano
(Seminário da Prainha), além da historiografia sobre a Missão Vicentina, o Seminário
Episcopal do Ceará. No fluxo destes itens contempla ainda as trajetórias de Cícero Romão

14
ARAÚJO, Antônio Gomes de.“O Apostolado do Embuste”, Revista Itaytera, Ano II, n° 02. Crato:
Tipografia Imperial, 1956, pp. 03-62
15
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário)
16
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização brasileira S.A, Rio de Janeiro
1968.Coleção retratos do Brasil, volume 66.
24

Batista e de seu primo José Marrocos, à época dois jovens da cidade do Crato, sul do
Ceará (Cariri cearense), que pertenceram à primeira turma do Seminário da Prainha e que
são personagens que alinhavam os conteúdos de toda a tese.
A segunda parte do primeiro capítulo discute a relação entre setores da Igreja e o
movimento abolicionista. Recorta, em particular, as missões do Padre Ibiapina no Sertão
e a instalação das “Casas de Caridade” no interior do Ceará.. O periódico católico a “Voz
da Religião no Cariri” (1868-1872), fundado como órgão de divulgação e das ideias e
ações do Padre Ibiapina, é tomado como fonte para a discussão de diversos aspectos de
sua obra, e para a publicação de textos críticos à escravidão. O periódico deixa clara ainda
a presença de escravizados em diferentes momentos das missões de Ibiapina ou nas visitas
às fontes curativas do Caldas.
O segundo capítulo trata das especificidades da Abolição no Ceará, ali
perseguimos o objetivo de expor um apanhado sobre a questão da abolição no Ceará,
problematizando seus desdobramentos e usos. Discute a ação abolicionista em Fortaleza
e no interior, explora a documentação no sentido de perceber estratégias de ocupação do
espaço público para a divulgação da causa da liberdade. Busca problematizar como foram
tecidas narrativas acerca da abolição cearense, discutindo o destaque de um pioneirismo
aguerrido e benevolente dos abolicionistas, levando em conta que nas narrativas
historiográficas produzidas no Ceará, as formas de resistências dos escravizados
permaneceram invisíveis até as últimas décadas do século XX. A discussão do capítulo
busca ainda tratar das articulações e desdobramentos da abolição cearense na região do
Cariri. Explora as contradições entre a militância abolicionista e o real espaço do liberto,
notando as tensões presentes e até a criação de estratégias de branqueamento. Discute
como a abolição cearense foi precoce na ativação dos mecanismos de desconfiança,
suspeição em torno dos libertos. Até um projeto de branqueamento foi engendrado no
Ceará e apresentado na imprensa da época. Consideramos a abolição cearense como uma
“antessala” do que se efetivará no pós-Lei Áurea.
O terceiro capítulo aborda as narrativas construídas por viajantes, cronistas e
memorialistas sobre o Cariri, sua natureza e sua gente entre fins do século XIX e início
do século XX. Os registros de George Gardner, Joryvar Macêdo, Otacílio Anselmo e
Padre Antônio Gomes apontam cada uma a seu modo e a seu tempo o perfil de grupos
escravizados e de libertos, suas manifestações religiosas e a relação das autoridades civis
e religiosas com um e outro. Analisa ainda a narrativa dos “fatos extraordinários” de 1889,
25

data em que se supõe ter ocorrido a transformação da hóstia em sangue durante a


comunhão da beata negra Maria de Araújo, cujo diretor espiritual era o Padre Cícero. Os
processos episcopais abertos para apurar os fatos servem de referência para esta narrativa
que segue pistas de relatos presentes em jornais, que publicaram cartas, testemunhos e
notícias sobre o tema.
O terceiro capítulo reconstitui, na medida do possível, a cidade de Juazeiro das
primeiras décadas após o milagre/após a abolição. Analisa a presença dos negros e negras
na cidade, sua procedência, circulação e demonstra como o acolhimento oferecido pelo
padre Cícero, transformou-se com o passar dos anos em uma referência para os libertos
de Alagoas, Pernambuco e outras localidades do sertão do Ceará. Motivo de gratidão, as
rotas de acolhimento mantiveram-se como rotas de devoção após o passamento do padre,
constituindo-se no embrião das futuras romarias.
O quarto capítulo trata do grupo de narrativas fundantes acerca da história do
milagre e da história da cidade de Juazeiro do Norte e que expressam uma interpretação
racista da sociedade. Neste sentido, para aprofundar a temática da interpretação racista
acerca do Juazeiro me detenho especificam ente em três autores, destacando uma obra de
cada um: Alencar Peixoto (autor de Joaseiro do Cariry), Rodolfo Teófilo (autor de Sedição
de Juazeiro) e Lourenço Filho (autor de Juazeiro do Padre Cícero). Estes discursos não
gravitam desconectados, estão articulados a uma realidade da qual emergem como
representação. Suas circulações e (re)apropriações efetivam aspectos dos jogos de poder
que os geraram e que determinam seu alcance. uma coleção de adjetivos ou expressões
usadas para qualificar os moradores de Juazeiro do Norte. Aponta para o um léxico, um
acervo de palavras ou expressões adjetiva relativas à cidade e seus moradores,
personagens fundantes de episódios relevantes que marcam a transformação da cidade
num lugar de peregrinação, ponto de chegada das romarias.
26

CAPÍTULO 1- O CARIRI DE IBIAPINA: CARIDADE, MANUMISSÃO E


MILAGRES.
Venceu Jesus, venceu
Sempre manso com bondade
E a arma que empregou
Foi sempre a caridade
Autor desconhecido 17

Em 10 de agosto de 185318, o Imperador Dom Pedro II decretou a criação da


Diocese do Ceará. A implantação não foi imediata; seguiu os trâmites que previam a
referida autorização e a posterior publicação de bula pontifícia. Quase um ano depois da
autorização do Imperador foi que a bula Pro animarum salute19, expedida pelo Papa Pio
IX em 6 de junho de 1854, estabeleceu que o Ceará deixasse de ser uma vigaria forânea
da Diocese de Olinda20. Esta subordinação à província de Pernambuco não existiu apenas
no campo eclesiástico. No âmbito político, o Ceará conquistou autonomia por
desmembrar-se de Pernambuco em 17 de janeiro de 1799.
A primeira iniciativa oficial com vistas a dotar o Ceará de uma diocese própria
data de 18 de julho de 1834. O 16º. Arcebispo da Bahia, Dom Romualdo Antônio de
Seixas, exercia mandato de Deputado Geral e nesta condição apresentou na Câmara dos
Deputados a proposta da criação de três bispados: um no Ceará, outro no Rio Grade do
Sul e um terceiro na Comarca de Minas Novas, englobando algumas freguesias
pertencentes aos bispados de Mariana e de Pernambuco. A proposta de Dom Romualdo é
considerada a iniciativa pioneira para a efetiva criação da Diocese cearense 20 . Era
companheiro de legislatura de Dom Romualdo, representando Ceará, o Dr. José Antônio
Pereira Ibiapina. Anos depois, no momento da efetiva instalação da Diocese cearense o
Dr. Ibiapina havia assumido outro nome, passando a se chamar José Antônio Maria

17
Letreiro que circulava a imagem de Jesus ressuscitado numa bandeira levada por uma “irmã de caridade”
das casas de Caridade do Padre Ibiapina na procissão de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, em 8 de
dezembro 1879 em Santa Fé, Paraíba. Cf.HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade
fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza, Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006 p.204.
18
Lei de 10 de Agosto de 1853 “Autorisa o Governo a impetrar a Santa Sé as Bullas de creação de dois
Bispados, hum na Provincia de Minas Geraes, e outro na do Ceará.” Coleção da Leis do Império do Brasil de
1855, Rio de Janeiro: Typografia Nacional, Tomo XIV, Parte I
19
ANDRADE, F Alves de. O Seminário de Fortaleza e a Cultura Cearense. Discursos e Conferências In
Revista do Instituto Histórico e Antropológico do Ceará. p.261-273 ano 1969, número 79 20 A Diocese de
Olinda e Recife é uma das mais antigas do Brasil, sua instalação data de 1614.
20
CAVALCANTE, Geová Lemos. O Centenário da Arquidiocese de Fortaleza. Revista do Instituto do Ceará
Tomo CXXIX-Ano CXXIXpp.97-126
27

Ibiapina, tinha abandonado sua carreira política e jurídica e recebeu as ordens no ano de
1853, sua figura influencia e atua diretamente em diversos temas aqui tratados e sua
trajetória e legado perpassam a narrativa que hora empreendemos.
Seguiu-se um longo período para os trâmites da oficialização da bula que
culminaram com a efetiva criação da Diocese cearense, no ano de 1859. Seis anos após a
bula Pro animarum salut, em 1860, Dom Luís Antônio dos Santos21 (1817-1891) assumiu
a Diocese cearense, sendo que sua nomeação data do ano anterior, 1859. O bispo era
natural de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, ligado ao movimento ultramontano e devia
sua formação ao Colégio Pio Latino-Americano de Roma. Dom Luís, como ficou
conhecido, foi discípulo de D. Antônio Ferreira Viçoso 22 (1787-1875) e atuou como
colaborador da Diocese de Mariana, a cidade que foi um reduto fundamental da missão
dos Lazaristas no Brasil23.
Os Lazaristas, ou Padres da Missão, pertencem a uma congregação com origem
no século XVII e que teve como fundador São Vicente de Paulo 24. Esta congregação
exerceu um relevante papel no fortalecimento da postura ultramontana no Brasil. O
direcionamento ultramontano ou romanizador foi protagonizado no Brasil por religiosos

21
Após deixar a Diocese do Ceará em 1881, Dom Luís Antônio assumiu como Arcebispo de São Salvador
da Bahia, ali permanecendo até 1890, sendo assim Bispo Primaz do Brasil. Recebeu ainda o Título de
Marques de Monte Pascoal.
22
Sétimo bispo da Diocese de Mariana, Minas Gerais e fundador do Seminário local. Ítalo Domingos
Santirocchi expõe a verve de educador de D. Viçoso através da descrição das obras publicadas ou
recomendadas por ele: “publicou várias obras para ajudar na formação e correção do clero e do povo, como:
Guia de Confessores de São Ligório, Jesus ao Coração do Sacerdote, Catecismo de Mariana, Nova Missão
Abreviada, ao lado de jornais como: a Seleta Católica e O Romano. Também animou a publicação do
cotidiano O Bom Ladrão e dirigiu o Ordo diocesano, além de traduzir e difundir importantes obras como:
Tesouro da Paciência de Theodoro de Almeida, Imitação de Maria Santíssima do pe. Marchtallense,
Memorial dos discípulos de Cristo de Arvisent. Ele também prefaciou ou recomendou os seguintes
trabalhos: Tesouro Cristão de D. Luís Antônio dos Santos; Manual da Primeira Comunhão e da Confissão
de Mons. Gaume, traduzida por D. Pedro de Maria Lacerda; Missão Abreviada do pe. Manoel Gonçalves
Couto, e Pratica da Confissão dos padres Silvério Gomes Pimenta e João Batista Conigliotto”.
SANTIROCCHI, Italo Domingos: Os Ultramontanos O Brasil e o regalismo do segundo império
(18401889) Pontifícia Universidade Gregoriana/Faculdade de História e Bens Culturais Da Igreja. Tese de
Doutorado, 2010, 667f. p. 231
23
FRENCKEN, Geraldo. Em Missão. Padres da Congregação da Missão (Lazaristas) no Nordeste e Norte
do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
24
Vicente de Paulo (Vicent de Paul) nasceu em Pouy (França) em 24 de abril de 1581. Foi canonizado em
1737 pelo papa Clemente XII (1652-1740). Em 17 de abril de 1625 fundou a Congregação da Missão,
ordem religiosa masculina católica, também conhecida como Lazaristas ou Vicentinos. O termo Lazarista
é usado em referência à primeira casa da Congregação em Paris, esta chamava-se “Casa São Lázaro”. O
fator central da missão dos Lazaristas, ou Vicentinos, é a evangelização dos pobres. A atuação com caridade
teve o papel destacado de Luiza de Marillac. A viúva Luiza de Marillac conheceu Vicente de Paulo no ano
de 1622 e atuou nas ações de caridade, sendo co-fundadora das Filhas de Caridade, obra que agregava
mulheres dedicadas ao exercício da assistência domiciliar aos doentes. Santa Luisa de Marillac foi
beatificada pelo Papa Bento XV, em 9 de maio de 1920. Foi canonizada pelo Papa Pio Xl, no dia 11 de
março de 1934. Em 1960 foi declarada patrona das Obras Sociais pelo Papa João XXIII.
28

oriundos de conventos europeus, especialmente franceses25. O intento deste movimento


era intervir no clero nacional, envolto numa série de "vícios" de origem. Jefferson Pinto26
descreve que tais "vícios" podem ser entendidos a partir da própria formação do clero
imperial, de influências regalistas e estritamente envolvido com a política como, por
exemplo, no movimento independentista brasileiro e estendendo-se pelo período
regencial afora.
Os sertões cearenses, àquela altura, já se mobilizavam em torno de eloquentes
missionários cujas pregações eram interpretadas em conjunto com outros elementos da fé
popular que se misturavam em um caldeirão, unindo referências milenaristas, devoções
locais propagadas por irmandades e práticas religiosas oriundas dos povos indígenas e
afro-brasileiros que aqui viviam. A hierarquia eclesial era constantemente desafiada e a
necessidade de controle e organização passava pelo conveniente preparo teológico e
moral dos seus agentes.
Alguns costumes considerados “desviantes” para a conduta de um representante
da fé católica eram comuns no Ceará da época. Por aqui era grande o número de padres
dedicados aos negócios da política, padres vivendo maritalmente e com prole. Já as
missões eram jornadas autônomas cruzando o sertão e gerando consternação, mas também
esperança em doses sempre imensuráveis. A necessidade de estabelecer o protagonismo
clerical na condução das relações com o sagrado era impositiva aos olhos das autoridades
eclesiásticas. A reafirmação do clérigo como ministrante dos sacramentos, seu papel de
absolver pecados e conduzir as atividades litúrgicas ou festivas, além de estimular a
organização de irmandades entre os fiéis, era necessária para que a autoridade da Igreja
se manifestasse e não fosse corroída, distorcida ou desafiada.

1.1 A Diocese do Ceará: um divisor de águas

A criação da Diocese do Ceará significou um novo momento para a vida religiosa


na província, que era marcada pela carência tanto de clérigos, quanto de uma estrutura
para o conveniente exercício da fé católica. O quadro de dificuldades que precedeu a

25
PINTO. Jefferson de Almeida. Os lazaristas e a política imperial - a escola, a assistência e a família.
Topoi vol.17 no.32 Rio de Janeiro Jan./Jun 2016p153-175 p.155
26
Ibid.,
29

instalação da Diocese foi registrado no Relatório do Presidente de Província do Ceará do


ano de 1847, apresentado pelo Coronel Ignácio Correia de Vasconcelos 27 : “matrizes
continuam no deplorável estado de decadência em que estavam, achando-se umas em
completa ruína, outras não tendo alfaias nem paramentos, e muitas sem verdadeira
decência para a celebração dos ofícios divinos”28.
Naquele mesmo Relatório de 1847, ainda no item “Culto público”, encontramos
dados sobre as missões do Frei João do Lado de Christo Pinheiro e do Frei Serafim da
Catania. Ambas missões tinham sido autorizadas nesta Província e suas atividades
estavam claramente divididas em territórios distintos: a um missionário coube a região
central da Província e ao outro a atividade na capital, Fortaleza. A necessidade de
demarcação territorial fica clara ainda quando o Presidente da Província declara sobre o
Frei Serafim: “e na província dei-lhe a competente autorização, marcando-lhe o lado
oposto ao que andava missionando Fr. João” 29.
O apoio do governo provincial para a realização da atividade de missionários podia ser
solicitado pelos párocos. Assim demonstra o ofício de 27 de julho de 1854, no qual o
vigário Pe. Antônio Tomaz Teixeira insiste “junto ao Presidente da Província Vicente
Pires da Mota 30 sobre a conveniência de missão pregada por um Capuchinho de
Pernambuco”31. Infere-se que em outro ofício teria solicitado o empenho do Presidente
da Província e naquele voltava a perseverar em seu intento. Talvez uma primeira tentativa
tenha sido registrada, pelo mesmo vigário, em ofício de 9 de setembro de 1853 onde pede
ao presidente da Província “que se dirija ao Presidente de Pernambuco no sentido de
conseguir a vinda de um Capuchinho para pregar missão em Granja”33. Neste exemplo
fica mais uma vez explicitado um papel de mediação do Estado nas questões relacionadas
à realização das missões.

27
Ignácio Correia de Vasconcelos (? -1859)
28
Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Ceará pelo presidente da mesma província,
o Coronel graduado Ignácio Correia de Vasconcellos em 1. o de julho de 1847 .p.8.
29
Idem
30
Vicente Pires da Mota (1779-1882), padre e jurista. Natural de São Paulo, já era presbítero quando
concluiu o Curso Jurídico. Foi lente de disciplinas de Direito e político. Chegou à Presidência das
Províncias de São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais e Santa Catarina, além do Ceará. O período de 20 de
fevereiro de 1854 a 13 de outubro de 1855 marca sua passagem pelo Ceará. Cf.OLIVEIRA, Carlos Eduardo
França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do
Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834. São Paulo, Universidade de São Paulo, Tese de
Doutorado em História, USP, 2014, 416f.
31
APEC/ Fundo do Palácio Episcopal do Ceará / Caixa 5, pacotilha 3. Ofício de 27 de julho de 1854 33
Como encontramos descrito no índice descritivo elaborado por Leonardo Mota sob o número 2865. 34
HOORNAERT, Eduardo. O cristianismo moreno no Brasil. Petrópolis: Vozes 1990
30

O século XIX foi profundamente marcado pela formação de expedições


missionárias. Descritas por Eduardo Hoornaert34 como a forma mais efetiva de
evangelização dos sertões, as missões desempenharam um papel fundamental na
caracterização do “cristianismo sertanejo”. Hoornaert elenca aspectos que marcam o
cristianismo católico e que tiveram origem no contato com a diversidade e a dinâmica das
missões32: um aspecto é o caráter penitencial, chegando aos extremos da mortificação no
caso dos penitentes; outro aspecto seria a sacramentalização, sendo a quantidade de
sacramentos ministrados registrada como um verdadeiro troféu das conquistas
missionárias; e ainda a agregação das comunidades não só no sentido de unir o povo que
normalmente vivia tão isolado nas imensidões do sertão, mas sobretudo, realizando obras
de máxima importância para as comunidades interioranas, como pontes, estradas, canais
de irrigações, açudes, cemitérios, tanques ou cacimbas33.
Para os padres que aqui chegavam para assumir paróquias já consolidadas, as formas de
manifestação e as vivências sertanejas da fé católica causavam estranhamento, como é o
caso do Padre Antônio Tomás Teixeira Galvão, enviado a Granja34:

Ao Padre Antônio Tomás Teixeira Galvão, vindo de um paroquiato em


Maceió para o de Granja, muito escandalizaram os batuques, danças de
São Gonçalo e “noveninhas” dos seus paroquianos. Não escondo que
muitos dos seus escritos me regalam pelo pitoresco e pelo interesse
folclórico dos assuntos versados. Ele sabia descrever com certa
vivacidade as famigeradas danças de São Gonçalo, que deram muita dor
de cabeça aos vigários nordestinos.35

Não foi possível recuperar a data precisa do depoimento do Padre Antônio Tomás
Teixeira Galvão sobre os batuques, danças de São Gonçalo e as noveninhas36. Mas, é
certo que em dezembro de 1851 ele já celebrava casamentos em Granja, até então uma
vila no noroeste da Província do Ceará e que seria emancipada três anos à frente. Segundo
o padre, a maior parte dos pretendentes ao matrimônio sequer eram batizados,

32
Ibid., p.50/51
33
Estes aspectos serão explorados e destacados na discussão sobre as missões do Padre Ibiapina, no próximo item
34
Município cearense localizado a 300km da capital na região noroeste do estado, passou à categoria de Vila
em 1854.
35
MOTA, Leonardo. Notas para a História Eclesiástica do Ceará. Revista do Instituto do Ceará p. 198214
ano LX (1946) p.214. Leonardo Mota (10/05/1891-2/01/1948) celebrizou-se como folclorista e no artigo
aqui discutido apresenta parte do que colheu à partir da incumbência do Interventor do Ceará Beni Carvalho
de coordenar e ementar parte do documentário do Arquivo Público referente à relação entre Igreja e Estado.
Na empreitada chegou a ementar 3.541 documentos.
36
É possível que a prática das noveninhas se refira a iniciativas para familiarizar as crianças com as preces
e os ritos católicos.
31

précondição para a realização das bodas com a benção da Igreja. Entretanto, as formas
de manifestações de fé que vigoravam no Ceará fora da tutela da Igreja estão presentes
neste relato que deixa perceptível outras vivências religiosas e formas de agregação e
festas que animavam os sertões do Oitocentos.
No relatório do Presidente da Província do ano de 1848, é evidente o esforço, ainda
que tímido, para minimizar a precariedade do serviço religioso por meio do aumento das
côngruas 37 , reforçando assim a importância dos agentes da Igreja. Ao descrever as
consequências do referido aumento para o erário público, o relatório adverte que tal
medida não foi baseada numa avaliação da capacidade financeira da Província. Apesar do
alto custo, que não é quantificado e apenas comentado. Fausto Augusto de Aguiar 38
adverte: “não serei eu quem vos venha propor a sua revogação apesar dos meus desejos
de ver reduzida a despesa” 39. Justificando a necessidade da manutenção do auxílio dos
cofres públicos que eram responsáveis também pelas reformas dos templos, pela
renovação dos paramentos, além das já citadas côngruas, o presidente da Província
destaca a importância do papel dos clérigos, não apenas como agentes da fé, mas como
educadores, propagadores da civilização e dos bons costumes:

“sem religião não há verdadeira civilização e sem esta bons costumes,


e sociedade feliz (...) a nossa época é a da indiferença religiosa, desse
mal terrível, que nos mirra o coração, conviria acaso distrair o clero de
seus cuidados religiosos?”40

A fronteira entre os poderes temporais e espirituais era tênue, e muitas vezes tensa
no Ceará do Oitocentos. Em 1848, a Província contava com 34 freguesias, divididas sob
a responsabilidade do bispo diocesano que cuidava de tudo, mesmo residindo em Olinda,
sede da Diocese. Fausto Augusto de Aguiar, no relatório do mesmo ano, defendeu a
autonomia do “poder espiritual” para gerir assuntos referentes à criação ou à divisão de
freguesias, citando o parágrafo 1º. do art. 10 do ato adicional, que dava “direito exclusivo
às assembleias provinciais para legislarem sobre a divisão eclesiástica sem audiência e

37
A côngrua é uma pensão paga aos párocos e o aumento das mesmas foi baseado na resolução nº 399 de 14
de julho de 1847 da Assembleia Legislativa Provincial do Ceará.
38
Fausto Augusto de Aguiar (19 /12/ 1817 -25 /02/ 1890). Foi Deputado geral, presidente de província e
senador do Império do Brasil de 1877 a 1889. E ainda presidente das províncias do Ceará, de 13 de maio
de 1848 a 1 de agosto de 1850, e do Pará, de 13 de setembro de 1850 a 19 de agosto de 1852.
39
Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Ceará em o 1.o de julho de 1848. Ceará, Typ.
de Francisco Luiz de Vasconcellos, 1848.
40
Idem
32

consentimento do poder espiritual” para, em seguida afirmar que discordava de tal


prerrogativa: “tenho para mim que é errônea essa doutrina” 41. A interpretação que Fausto
Augusto Aguiar fez questão de deixar registrada em seu relatório evidenciava o
reconhecimento da necessidade de equilíbrio entre os poderes temporal e espiritual
quando se tratasse de decisões que iriam interferir diretamente na organização das
paróquias:

(...) toda divisão eclesiástica tem íntima e natural relação com o regime
espiritual dos fiéis, não se pode sem grave injustiça desconhecer a
legítima intervenção que deve caber ao poder espiritual em atos, em que
tanto o poder temporal, como o espiritual, são interessados, e que
devendo por isso estar sujeitos a jurisdição de ambos devem ser feitos
por acordo e interferência de ambos pra ser mantida e guardada a
recíproca independência dos dois poderes.42

A defesa da “recíproca independência dos dois poderes” alegada por Fausto


Augusto Aguiar poderia ser efetiva se à época existisse uma Diocese local que pudesse
acompanhar de perto a realidade cearense.
A criação de uma Diocese implicava no investimento para a formação de novos
agentes que tanto estariam ligados à hierarquia católica quanto cumpririam um papel
imprescindível de educadores. Mesmo antes de ter sob sua direção a Diocese cearense, o
recém nomeado Bispo Dom Luís Antônio dos Santos já era considerado um “sacerdote
ilustrado e virtuoso” 43 . Formado, em Roma, em Direito Canônico, sua nomeação
alimentava a esperança do estabelecimento de um seminário local. Pelo menos parecer ter
sido esta a expectativa do Presidente da Província João da Silveira e Souza ao relatar a
necessidade de ver “melhorada a educação intelectual, moral e religiosa do nosso clero
que em verdade é atualmente imperfeitíssima”47. A já citada Bulla Pro animarum satut
expressava a necessidade de um Seminário em Fortaleza:

41
Idem
42
Idem
43
“Relatório que à Assembleia Legislativa Provincial do Ceará apresentou no dia da abertura da sessão ordinária de
1859, o excellentissimo senhor Dr. João Silveira de Sousa, presidente da mesma Província.
p.11. Este relatório apresenta um mapa com o título Bispado do Ceará-Divisão Eclesiástica, o mapa foi
elaborado pela Secretaria de Governo em 30 de junho de 1854 e assinado por Ovidio da Gama Lobo,
aparece enumerado no índice como “Mapa 5” e traz listadas as 35 Freguesias, com as respectivas
invocações, os nomes dos vigários e as datas das Cartas de Colação. Sobre o Crato registra a invocação a
Nossa Senhora da Penha, data de criação 3 de dezembro de 1740, e como vigário Manoel Joaquim Ayres
do Nascimento. 47 Idem p. 11
33

É de suma importância que os adolescentes destinados à defesa e estudo


da Teologia e das ciências. Por isso, conforme a norma das demais
dioceses e sobretudo de acordo com a prescrição do sagrado Concílio
Tridentino, ordenamos que o Seminário seja construído e administrado
o mais brevemente possível. Recomendamo-lo aos cuidados eficazes do
mesmo Imperador. Assim, nessa vastíssima vinha de Cristo, Senhor
Nosso, crescerão muitos bons obreiros que a cultivarão com entusiasmo
e poderão colher abundantes frutos.44

A necessidade premente não se converteu, porém, em celeridade. Entre a criação


da Diocese e a fundação do Seminário, observamos a passagem de nove anos. Neste
intervalo, enquanto não tínhamos um seminário local, a Diocese providenciou para que
alguns jovens cearenses fossem enviados à Bahia para realizarem seus estudos. Assim,
entre os anos de 1861 e 1864, chegaram à ordenação dezesseis cearenses.
Aguardava a instalação do Seminário diocesano uma província com mais de
meio milhão de habitantes. Os dados censitários de 1860 davam conta de 503.759
habitantes, sendo 468.308 livres e 35.441 escravos 45 . As marcas da distinção social
estavam presentes no “Compromisso da Irmandade do Divino Espírito Santo, da Capella
de Nossa Senhora da Conceição do outeiro da Prainha da cidade de Fortaleza”46, local
considerado apto para a construção do Seminário, que inclusive passou a ser conhecido
como “Seminário da Prainha”. No já mencionado Compromisso de Irmandade, em seu
Capítulo 1, artigo 2, lemos:

Podem ser admitidos à irmandade quaisquer pessoas de um e outro sexo,


uma vez que professem a religião Católica Apostólica Romana, que
sejam maiores de dezoito anos os varões e quatorze as mulheres, que
tenham bons costumes, e não pertençam a classe dos homens pretos.47

No Ceará, até aproximadamente a década de 1870 existiam cerca de 72


irmandades ativas. O número vem de um levantamento feito por Eduardo Campos no
começo da década de 1980. A irmandade do outeiro da Prainha, como expressa o
documento firmado em 8 de novembro de 1856 estabelece como elemento de exclusão a
questão racial, ali definindo como recusada em seus quadros a “classe dos homens

44
Apud CAVALCANTE, Geová Lemos. O Centenário da Arquidiocese de Fortaleza Revista do Instituto do
Ceará Tomo CXXIX-Ano CXXIX p.111
45
BRASIL. Thomaz Pompeo de Sousa. Ensaio estatístico da província do Ceará. [1863]. Ed. Fac-sim.
Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara,1997. P.299
46
APEC / Fundo do Palácio Episcopal do Ceará Caixa/ Bispado Cearense. Caixa I. Volume I.
47
Idem
34

pretos”. Porém, na província do Ceará algumas irmandades se dedicavam a receber e


agregar pessoas negras e pardas. No cômputo de Eduardo Campos o Ceará teria
irmandades de pretos em Quixeramobim (instituída em 1854); Sobral (instituída
em1869); Fortaleza (instituída em 1845); Barbalha (instituída em 1860); Aracaty
(instituída em 1853); Icó (instituída em 1870)48. Desta lista apenas a de Barbalha está
localizada no Cariri cearense, região na qual situa-se o município de Juazeiro do Norte,
que no período descrito era um distrito da cidade de Crato. Sobre a questão da presença
de irmandades de pretos no Crato, existiu uma avançada articulação que não logrou êxito.
No Arquivo Público do Ceará, pude explorar o conteúdo do Compromisso da Irmandade
do Rosário do Crato:

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do rosário da cidade do


Crato.
Capítulo 10. da Irmandade
Art. 10. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário nesta cidade do
Crato tem por fim principal manter, quanto lhe for possível, o Culto
catholico sob a mesma invocação, e erigir nesta cidade em lugar
conveniente a Capella da mesma Senhora. Art.2 º. A irmandade se
comporá de dois núcleos.
Ant. 3 º. O primeiro núcleo comprehenderá todos os homens e mulheres,
livres, de todas as cores, e dele se comporá Mesa regedora da
Irmandade, cuja eleição terá lugar todos os anos em dia da Epiphania.
Art. 4º. O segundo núcleo se comporá de todos os pretos escravos, com
licença de seus Senhores; e dentre eles se comporá o séquito Regio, cuja
eleição terá igualmente lugar no dia supra indicado depois da eleição da
Mesa.
(...) Crato 26 de Dezembro de 1869.49

O dia da Epifania é seis de janeiro, dia de Reis. A viva permanência dos festejos
de reisado, especialmente em Juazeiro do Norte50, onde o festejo culmina numa simulação
de batalha entre grupos de espadas no “Dia de Quilombo”, torna este tema digno de
detidas observações. Em Juazeiro do norte a expressão “tirar quilombo” 51 é usada para

48
CAMPOS, Eduardo. As irmandades religiosas do Ceará Provincial: apontamentos para a sua história. Fortaleza
Secretaria de Cultura e Desporto, 1980.
49
Apec. Fundo Palácio Episcopal do Ceará Bispado Cearense Caixa 1. Compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário da cidade do Crato.
50
A viva permanência dos festejos de reisado e do dia de quilombo na Juazeiro do Norte, especialmente no
Bairro João Cabral, bairro de maioria negra evidenciam, através da festa e da memória, um vínculo com o
universo afro-brasileiro.
51
A pesquisadora Cícera Nunes registrou o depoimento de Renato Dantas, um memorialista e gestor
cultural da cidade de Juazeiro do Norte: “Na década de 1950 a gente tem registro de um quilombo aqui no
Juazeiro. O que é o quilombo no Juazeiro? Eram os grupos de reisado que brigavam entre si. Quando falo
briga não é a violência, mas a brincadeira deles para tomarem uns palácios hipotéticos que eles construíram
na Praça Padre Cícero. Todo dia 6 os quilombos saem aqui correndo a cidade pra tomar um castelo
35

expressar a circulação dos brincantes do reisado de porta em porta, pedindo donativos e


festejando o ciclo de Reis. Por que se chamam quilombos? Não se pode definir com
precisão, a referência clara à memória da matriz afro-brasileira fica evidente. Resta
questionarmos sobre em que medida estaria relacionado ao festejo das Irmandades do
Rosário?52

A devoção a Nossa Senhora do Rosário não era uma novidade no século XIX,
Maristela Simão 53 organizou uma tabela na qual sintetiza elementos acerca desta em
distintas regiões africanas, ali fica clara não só a abrangência de espaços conquistados por
tal piedade como sua datação que remontam ao século XVI. 54 As devoções foram
estimuladas e consolidadas pela presença de missionários e pelos processos de
aculturação advindos da intensificação do contato com os europeus. Lucilene Reginaldo
adverte, por sua vez, que a devoção ao Rosário em Luanda “esteve associada
especialmente aos negros cativos e forros. Tratava-se de uma devoção reservada aos
africanos inseridos na experiência da escravidão, seja na condição de cativos ou de
libertos”55. Ou seja, um dos aspectos que caracterizava a devoção do Rosário entre os
africanos, no caso citado, era o binômio “conversão-cativeiro”. Compreender esta
perspectiva que leva em conta a devoção num ambiente historicamente influenciado pelo
de tráfico humano torna mais densa a questão e expõe o esforço dos membros dos
Rosários cearenses numa perspectiva mais ampla.
Atenta à questão do “catolicismo africano” proposta por John Thornton56, Marina
de Mello e Souza61 lembra que em algumas comunidades afrodescendentes brasileiras

hipotético que constroem, onde tá a rainha, aqui no João Cabral.” NUNES, Cícera. O Reisado em Juazeiro
do Norte-CE e os conteúdos da história e cultura Africana e afrodescendente: uma proposta para
implementação da Lei nº. 10.639/03. Dissertação de Mestrado apresentada ao em Educação Brasileira pela
Universidade Federal do Ceará – UFC,2007. 154f. p.117P. 117
52
Sobre o tema também discorreu CAIXETA, Felipe Teixeira Bueno. Dia do Quilombo: cinema e cultura
popular no Juazeiro do Padre Cícero. Dissertação do Mestrado Acadêmico em Cultura e
TerritorialidadesUFF-Universidade Federal Fluminense, Instituto de Artes e Comunicação Social,
Departamento de Arte, 2016.169f
53
SIMÃO, Maristela dos Santos. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário e os africanos no Brasil do
século XVIII. Dissertação de mestrado em História da África. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras,
2010.
54
Confraria do Rosário em Luanda, 1701/ Irmandade do Rosário em Angola, 1784/ Confraria da Virgem
Nossa Senhora do Rosário na Ilha de Moçambique, 1662/Irmandade Nossa Senhora do Rosário em São
Tomé, 1526. Cf. SIMÃO, Maristela dos Santos. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário e os africanos
no Brasil do século XVIII. Dissertação de mestrado em História da África. Universidade de Lisboa,
Faculdade de Letras, 2010.p.36
55
REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: Irmandades negras, experiências escravas e identidades
africanas na Bahia setecentista. Tese de Doutoramento pela Universidade de Campinas-
Unicamp, Campinas, SP, 2005.p.22
56
John K. Thornton é professor de História da África e Diáspora Africana na Universidade de Boston,
36

existiram reis negros, especialmente naquelas mobilizadas em torno de irmandades leigas


de devoção a determinados santos, com destaque para Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito. Esta autora destaca que a principal atividade dessas irmandades, além daquelas
relacionadas ao funeral dos irmãos, era a “realização da festa anual em homenagem ao
seu orago, ou seja, santo de devoção, e nela o rei desfilava em cortejo pela cidade, seguido
de sua corte, de seus músicos, de seus dançadores, que podiam também apresentar
encenações:

Conforme a minha interpretação, nessas danças dramáticas estavam


simbolizados elementos centrais na formação da identidade negra
católica das comunidades que se uniam em torno de reis, que serviam
de catalisadores das diferentes identidades africanas anteriores, diluídas
com a passagem do tempo, transformando-se numa identidade africana
una, ligada ao campo do mítico e do imaginado. O rei congo católico,
além de sinalizar para uma integração à sociedade escravista na qual o
catolicismo tinha um papel de destaque, lembrava tempos de glória em
terra natal, associada ao poderoso reino do Congo, aliado de povos
europeus e cujos chefes tiveram poder invejável. A rememoração
simbólica do reino africano católico afirmava uma “africanidade”, ou
seja uma conexão com a África construída a partir do Brasil e da
experiência aqui vivida, que indicava uma particularidade da
comunidade negra, uma identidade própria que a distinguia mesmo
quando adotava o catolicismo e outras tradições de origem portuguesa
como a organização em irmandades leigas.57

No caso do Crato e de Barbalha o rei e a rainha negros e sua corte são descritos
tanto no texto dos compromissos da Irmandade, quando na narração de memorialistas que
em algum momento assistiram às celebrações:

Teve a Irmandade do Crato sua época de esplendor, na segunda metade


do século XIX. No dia da festa de sua padroeira assistiam à missa, junto
ao altar, do lado da Epístola, o rei e a rainha, com suas coroas enfeitadas
à cabeça e acompanhados de uma corte.
Durante anos fez papel de rei um escravo do Coronel Antônio Luiz
Alves Pequeno, de nome Rafael, e de rainha, cordões de ouro no
pescoço e pulseiras também de ouro, aos punhos, uma escrava do

Massachusetts (EUA), desde 2003. Doutorou-se em História da África pela Universidade da Califórnia,
Los Angeles (UCLA) em 1979. Obras sobre o tema: THORNTON, John, A África e os africanos na
formação do mundo atlântico (1400-1800), Rio de Janeiro, Ed. Campus, 2004. THORNTON, John, On the
Trail of Voodoo: African Christianity in Africa and the Americas, The Americas, n. 33, jan.1988 61 SOUZA,
Marina de Mello e. Reis do Congo no Brasil, séculos XVIII e XIX. Revista de História [on line]. 2005, (152),
79-98. Consulta 23 de Julio de 2020]. ISSN: 0034-8309. Disponível em:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022040004.
57
SOUZA, Marina de Mello e. Reis do Congo no Brasil, séculos XVIII e XIX. Revista de História [on line].
2005, (152), 79-98. Consulta 23 de Julio de 2020]. ISSN: 0034-8309. Disponível em:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022040004.p.90
37

vigário Manoel Joaquim Aires do Nascimento chamada Sabrina ou


então Felipa, mais aberta de cor que o rei, escrava do Capitão Domingos
Lopes de Sena.58

Na ocasião descrita deduz-se que a corte dos membros da irmandade celebrava o


sete de outubro, data dedicada à Nossa senhora do Rosário, mas este dado não fica
evidente no texto. A presença em destaque de escravizados cujos senhores eram
autoridades locais (coronel, padre, capitão) certamente se justifica ao status que estes
mesmo personagens gozavam no período. A festa instaura novos usos do espaço sacro,
mas um rigor hierárquico subjaz. O fato é que, em determinadas ocasiões, e inseridos
num rito católico, homens e mulheres escravizados ocupavam um lugar de destaque,
formando um corte. Pessoas pretas, mais ou menos “abertas de cor”, estavam no altar e
mesmo que o relato do cronista silencie acerca de seus atos para a organização da festa,
que decerto tinha cortejo, foguetório, etc.
Segundo regia o Compromisso da Irmandade do Rosário do Crato, era através de
uma eleição que eram escolhidos o Rei e a Rainha, cabendo a estes definir a sua corte:

Capítulo Terceiro
Séquito Régio
Art. 6º. O séquito régio se comporá dos empregados: Rei, Rainha, dois
Mestres de campo, Arauto, duas Açafatas que terão por obrigação
acompanhar a Rainha. A eleição do Rei e Rainha pertencerá de direito
ao segundo núcleo da irmandade; os mestres de campo e Arauto, serão
escolhidos pelo rei; o lugar das Açafatas será conferido pela Rainha, a
quem lhe convier dentre as irmãs escravas.59

No exemplo abaixo o mesmo autor parte do objetivo de descrever um logradouro


no centro do Crato, a antiga “Praça do Rosário” 60 . Trata-se do templo que seria
consagrado a Nossa Senhora do Rosário e que nunca foi concluído, o nome da praça ficou
conhecido como praça do rosário por décadas, mesmo sem nunca se efetivar a construção.

Nunca se concretizou no tijolo e na cal essa ardente aspiração dos


escravos cratenses.
Por muitos anos viram-se a um dos cantos da praça alguns alicerces do
templo, por eles projetado, ao lado de grandes rumas de pedras para o
resto da edificação, que não foi levada avante.
Serviram as pedras para construção de prédios particulares.

58
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Editora da Universidade Federal do Ceará, 2010. pp.238-239
59
APEC / Fundo do Palácio Episcopal do Ceará Caixa/ Bispado Cearense Compromisso Irmandade do
Rosário Crato
60
Atualmente o nome do logradouro é praça Juarez Távora.
38

Essas confrarias de negros, no Brasil, eram às vezes como já se tem dito,


um meio de defesa contra a crueldade dos Senhores.
No Cariri eram os escravos, regra geral, tratados benevolamente, alguns
alforriados em vida dos seus possuidores, por liberalidade destes.61

Mais uma vez ao amenizar a atitude dos senhores o cronista histórico tenta se
desviar da mácula da escravidão, tenta defender seus senhores e silencia sobre os motivos
da desarticulação da Irmandade do Rosário no Crato, descrita como projeto abandonado
sobre o qual não se questiona o “porquê”.

1.2. O Seminário da Prainha

Figura 3 Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Prainha. Aquarela de José dos Reis Carvalho, 1859.

A instalação do seminário episcopal no Ceará deparava-se com uma carência


estrutural. A princípio, buscou-se um prédio em contrato de aluguel para abrigar o
seminário, mas como não foi encontrado na capital nenhum que servisse a este fim, o
Bispo decidiu então investir no beneficiamento de um prédio público na Lagoa Funda. O
local mostrou-se impróprio, mesmo contando com o investimento de 1.800$ em obras de
beneficiamento. Era distante e insuficiente. Na altura, era tão isolado que havia sido

61
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Editora da Universidade Federal do Ceará,
2010.p.276.
39

escolhido para ser o chão de um lazareto 62, distava uma légua (4,8 km) do centro da
cidade 63 . Segundo Dom Luís Antônio dos Santos, embora o número de jovens
interessados no clericato superasse a expectativa, o difícil acesso ao terreno comprometia
os planos da obra.
A dificuldade em conseguir uma sede apropriada adiou a criação do Seminário
Episcopal de Fortaleza. Até que, em 1864, Dom Luís Antônio dos Santos reivindicou o
prédio que estava sendo construído para ser um colégio para crianças órfãs. Quando as
instalações do Seminário, erguido de forma contígua à Igreja de Nossa Senhora da
Conceição da Prainha, ficaram prontas, realizaram a mudança64; ali conseguiu preparar
as instalações para abrigar e instruir os futuros padres.
Como responsáveis pelo seminário episcopal de Fortaleza, vieram da Bahia os
lazaristas Pedro Augusto Chevalier, francês que foi reitor do seminário até o ano de 1891,
e Lourenço Vicente Enrile, italiano. Apesar dos percalços, existia um consistente
direcionamento quanto ao perfil dos educadores que integrariam o corpo docente e a
direção do seminário cearense. Neste sentido, o Bispo Dom Luís Antônio fazia questão
da condução dos Lazaristas65, como descreve Plácido Aderaldo Castelo em 196471:

Começaram, então, as instâncias junto aos Superiores da Congregação


da Missão dos Lazaristas. Repetidas cartas enviara D. Luís ao Visitador,
Padre Pedro Benit, no Rio de Janeiro, e ao Superior Geral, Padre Batista

62
“o governo imperial havia autorizado esta presidência a mandar a lugar algum prédio particular que
provisoriamente serviço de seminário não tendo sido possível encontrar prédio nenhum com as condições
precisas, meu antecessor de acordo com o reverendíssimo prelado fixou suas vistas no próprio nacional da
lagoa funda o governo imperial aprovou a ideia e autorizou os reparos e acrescentamentos necessários na
importância de 1.800$ a qual já foi toda despedida” p.15 Relatorio apresentado à Assembléia Legislativa
Provincial do Ceará pelo excellentissimo senhor dr. Lafayette Rodrigues Pereira, por occasião da
installação da mesma Assembléa no 1o de outubro de 1864.
63
“No ano de 1855, em sessão da Junta Real da Fazenda, enquanto Paes Barreto era Presidente da Província,
foi autorizada a construção de outro lazareto na cidade, ocupando 112 palmos de frente e 142 de fundo 119,
em terreno adquirido pelo coronel Francisco Xavier Torres (...) no local chamado Lagoa Funda, distante
uma légua da cidade, antevendo ao surto de cólera-morbo que grassava várias províncias como Pará, Bahia
e Rio de Janeiro e ameaçava chegar a Fortaleza. O lazareto foi concluído no ano de 1856”. MARTINS.
Hévila de Lima. Lazaretos da Jacarecanga e da Lagoa Funda: varíola, poder e assistência na cidade de
fortaleza (1820-1880). Dissertação de Mestrado em História UFC, 2013.
64
“Naquela representação sugerir a ideia de alugar ao estado para seminário o excelente edifício que a custa
da Caixa pia e desmontá-las está edificado para colégio de órfãos desvalidos instalando-se estabelecimento
em casas particulares para este fim alugadas” Cf. MARTINS. Hévila de Lima. Lazaretos da Jacarecanga
e da Lagoa Funda: varíola, poder e assistência na cidade de fortaleza (1820-1880). Dissertação de
Mestrado em História UFC, 2013.p.15
65
Sobre a opção de Dom Luís Antônio: “O desejo de Dom Luiz era poder formar um seminário no estilo de
Mariana e Caraça tão bem conhecidos por ele” Cf. FRENCKEN, Geraldo. Em Missão. Padres da
Congregação da Missão (Lazaristas) no Nordeste e Norte do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2010. p.106
71
CASTELO, Plácido Aderaldo. O Seminário da Prainha. Revista do Instituto do Ceará t.. LXXVIII
(1964): 57-79.
40

Etiene, em Paris, solicitando e insistindo que viessem os Lazaristas.


Dois anos decorreram nessa expectativa penosa para o zeloso prelado,
que ansiava por abrir o Seminário.

Ao discutir a implementação do Seminário Episcopal de Fortaleza, Costa Filho66


adverte que tal iniciativa correspondeu ao objetivo central que motivou a criação desse
tipo de instituto na Europa desde o século XVI: a formação de um clero habilitado e
obediente que fizesse frente, moral e intelectualmente, a todas as críticas e ideologias que
pudessem surgir contra a Igreja e seus fundamentos teórico-doutrinários.

A ideia era reforçar a necessidade de submissão do mundo ocidental à


Santa Igreja Católica, “Mãe e Mestra dos homens”, longe da qual
ninguém poderia alcançar a salvação. Dessa forma, a fundação de
seminários episcopais em todo o mundo cristão ocidental fazia parte do
propósito da Igreja de recuperar seu poder sobre homens, reinos e ideias
insurgentes que quisessem desafiá-la, procurando contornar assim seus
problemas.67

A opção por um corpo docente formado por irmãos lazaristas foi aprovada sob a
ressalva de devida realização de concurso público, pois o exercício da atividade
remunerada e subsidiada pelo Estado exigia tal formalidade. Este pormenor e outros
detalhes estão relatados em carta do então Ministro dos Negócios do Império José
Liberato Barroso68, com data de 28 de setembro de 1864:

À vista do que V. Exma. Revma. Declara em seu ofício de 29 do mês


findo, fica aprovado (...) o contrato (...) para regência das cadeiras do
Seminário dessa Diocese por professores estrangeiros(...) Por esta
ocasião declaro (...)que são expedidas as convenientes ordens para que
o dito Seminário seja estabelecido no edifício construído para Colegio
de órfãs, mediante o aluguel anual de um conto e duzentos mil reis(...)
Por último observo que a V. Exma. Revma. que a quantia com que o
Governo contribuirá para auxílio do seminário será distribuída pela
forma indicada (...) em ofício de 30 de janeiro do corrente ano.6970

A negociação para instalação do Seminário passava por uma rede de formalidades


peculiares, a Igreja pagava o aluguel, pois ocuparia um prédio público; por outro lado, o
Estado pagava o salário dos professores e também forneceu uma ajuda anual em dinheiro.

66
COSTA FILHO, Luiz Moreira da Filho. A Inserção do Seminário Episcopal de Fortaleza na Romanização do
Ceará (1864 – 1912). Dissertação. Mestrado em História Social UFC, 2004.
67
Idem p.19
68
José Liberato Barroso (21/09/1830-2/10/1885)
69
APEC / Fundo do Palácio Episcopal do Ceará Caixa/ Bispado Cearense. Caixa 2. Volume I. pacotilha
70
.
41

Geraldo Frencken 71 considera “impressionante a importância que foi dada pela


Congregação da Missão ao seminário episcopal do Ceará, como testemunha o grande
número de Lazaristas enviados pela Congregação a Fortaleza até 1900”. Naquele período,
foram enviados ao Ceará trinta e oito padres e três irmãos leigos. Os lazaristas vieram em
sua maioria da Europa, sendo: quatorze franceses, onze italianos, dois portugueses, um
alemão, um albanês e três holandeses72. Além dos estrangeiros, nove lazaristas brasileiros
também se somaram ao grupo que trabalhou durante os reitorados do Padre Pedro
Chevalier (1864-1891) e do Padre Julio Simon (1891-1909).
As disciplinas do Seminário eram divididas em dois ciclos, o “Curso de
Preparatórios” e o “Curso Theologico”. O primeiro durava seis anos73 e o segundo, quatro
anos. A rígida rotina de estudos, orações e atividades conduzidas pelos superiores atraía
tanto os jovens em busca uma formação clássica como aqueles que se sentiam
vocacionados ao sacerdócio.
Nesta primeira turma do Seminário da Prainha, encontramos entre os seminaristas
dois jovens do sertão cearense: Cícero Romão Batista e seu primo em terceiro grau José
Telles de Marrocos, ambos vocacionados e decididos e enfrentar os estudos no Seminário
episcopal. Oriundos da cidade do Crato, distando 600 km da capital, a trajetória de ambos
foi marcada por muitos pontos de convergência, anteriores ao ingresso no Seminário.
Cratense, nascido em 24 de março de 1844, Cícero Romão Batista era filho de
Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana, conhecida na cidade como Dona
Quinô. Batizado na Igreja de Nossa Senhora da Penha, onde também recebeu a primeira

71
FRENCKEN, Geraldo. Em Missão. Padres da Congregação da Missão (Lazaristas) no Nordeste e Norte
do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
72
Ibid., p.113.
73
COSTA FILHO assim descreve a sequência de disciplinas do curso, tendo como fonte o Álbum Histórico
do Seminário Episcopal do Ceará: “O Curso de Preparatórios tinha a duração de seis anos: o primeiro ano
correspondia às primeiras letras; o segundo, terceiro e quarto anos correspondiam a 1 ª, 2 ª e 3 ª divisão de
Latim; no quinto ano, aprendia-se Retórica e no sexto Filosofia. Nas primeiras letras, os seminaristas
aprendiam Gramática Portuguesa, Aritmética (as quatro operações), além de Música Vocal,
correspondendo a quatro horas e meia de aula, entre manhã e tarde; quanto às divisões de Latim: na 1 ª
divisão, que corresponde ao 2 º ano, os alunos estudavam Gramática Portuguesa, Latina e Francesa,
Geografia, Aritmética (números inteiros) e História Antiga; na 2 ª divisão, ou 3 º ano, estudavam-se
gramática portuguesa, latina e francesa, Geografia Geral (menos a América), Aritmética (frações) e História
Geral (Idade Média); na 3 ª divisão, ou 4 º ano, estudavam-se Gramática Portuguesa e Latina, Aritmética,
Geografia (menos do Brasil) e História Moderna. Vale se ressaltar que nessas etapas anteriores todas essas
matérias eram ministradas por um só lente (mestre); no 5 º ano, ensinavam-se Retórica, Prosódia Latina,
Geografia do Brasil e História do Brasil, Álgebra e Geometria. Já aqui havia lentes específicos para uma
ou mais disciplinas, finalmente, no 6 º ano, a Física e a Filosofia eram as matérias ensinadas.” 78 COSTA
FILHO, Luiz Moreira da. A Inserção do Seminário Episcopal de Fortaleza na Romanização do Ceará
(1864 – 1912). Dissertação. Mestrado em História Social UFC, 2004.p.83
42

Eucaristia, Cícero expressou cedo sua inclinação para vocação religiosa, pois vinha de
uma família de padres. Seu primo em terceiro grau, José Joaquim Telles de Marrocos,
dois anos mais velho e nascido em 26 de novembro de 1842, era filho de José Marrocos,
ou melhor, do Padre Mestre João Marrocos. Professor de Latim, padre João recebeu
Cícero como aluno, além de instruir o próprio filho nas primeiras letras. Os primos
prosseguiram os estudos, na mesma instituição, na cidade de Cajazeiras, na Província da
Paraíba, no colégio do Padre Rolim. Sendo dois anos mais velho que Cícero, José
Marrocos já havia concluído a fase inicial dos estudos quando uma tragédia abalou a vida
de ambos. Os dois jovens perderam seus pais na avassaladora epidemia de cólera que
atingiu o Ceará em 1862.
O nível de instabilidade criado pela epidemia na Província pode ser mensurado
pela suspensão dos ritos sacramentais comuns à cabeceira da morte. Padre Marrocos
morreu sem receber a extrema unção, pois os outros clérigos abandonaram a cidade por
medo da contaminação. Consta que ele mesmo foi acometido da doença devido a sua
dedicação aos doentes que o procuravam em busca de consolo ou da absolvição dos
pecados. Diante do dramático episódio envolvendo o pai, José Marrocos iniciou uma
campanha pela criação de um cemitério 7475 na cidade do Crato. Marrocos apelou ao
Presidente da Província e ao Bispo, alcançando seu intento, como atesta a
correspondência trocada com as autoridades leiga e religiosa. Conta-se que esta passagem
marcou de tal maneira sua vida que, anos depois, já como educador estabelecido na cidade
do Crato, todas as semanas levava seus alunos da escola “até o cemitério dos coléricos,
distante cerca de mil e quinhentos metros, e ali, ao pé da sepultura de seu pai, oravam
pelos que tinham morrido da peste asiática nas epidemias de 1862 e 6480.
A perda do pai também foi muito sentida por Cícero Romão, afastando-o dos
planos de continuar os estudos. Sem condições de pagar pelo curso em Cajazeiras e ainda
tendo que apoiar a família, Cícero foi obrigado a voltar ao Crato para ajudar a mãe e as
irmãs que passavam por grave crise de endividamento, devido à perda do mantenedor da
família. Cícero Romão então assumiu postos de trabalho para garantir algum ganho que
contribuísse com o sustento familiar. O quadro de dificuldades comprometia a realização

74
O ritual fúnebre representava uma “transmigração digna para outra vida” ALEXANDRE, Jucieldo F.
Quando o “anjo do extermínio se aproxima de nós”: representações sobre o cólera no semanário cratense
“O Araripe” (1855-1864) Dissertação de Mestrado. João Pessoa, PB: UFPB, 2010. p.34 80
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Editora da Universidade Federal do Ceará,
75
.p.130.
43

do projeto de vida e o objetivo de completar os estudos pareceu um objetivo inalcançável.


A notícia da abertura de um seminário episcopal em Fortaleza trouxe, porém, novo alento.
O jovem Cícero e seu primo animaram-se para continuar os estudos. No caso de Cícero,
conta-se que teria sido seu padrinho de batismo quem assumiu os custos dos estudos na
capital 76 . Em 1865, Cícero Romão e José Marrocos chegaram juntos à capital para
ingressar na primeira turma do Seminário da Prainha. Quando adentram a escola de
padres, os dois rapazes já traziam na bagagem significativas privações77.
Sucede que José Marrocos acabou sendo excluído do Seminário. Depois de tê-lo
admitido, o Conselho do Seminário Episcopal enviou-lhe um comunicado em 22 de maio
de 1865, informando que por ser “filho ilegítimo e por causa duma pequena mudança que
tinha aparecido nele”78, era convidado a deixar a escola vicentina de padres.
A exclusão de José Marrocos do Seminário da Prainha deu azo a grandes
controvérsias historiográficas. Houve quem atribuísse o caso às suas convicções
ideológicas, quem justificasse o ato considerando possíveis divergências doutrinais, quem
visse em sua ascendência judaica a razão da exclusão ou que observasse na situação uma
resposta à falta de talento de José Marrocos para o sacerdócio. A origem levítica não faria
qualquer sentido na altura, pois em 1779 por meio da bula pontífica Dominus Ac
Redemptor Noster, a Igreja de Roma passou admitir em seus quadros descendentes de
cristãos-novos, árabes e gentios da terra. Nas demais versões, projetou-se no passado do
jovem seminarista características desenvolvidas na idade madura. Somente na década de
1980, com base em fontes documentais, soube-se que a atitude se ligou à sua condição de
filho ilegítimo. 79

76
BARROS. Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza, 2014 3ª Edição
77
Notei que nos laudatórios pronunciamentos por ocasião do centenário em 1964, no qual surgem listas de
proeminentes prelados, juristas, políticos e literatos, todos egressos do Seminário da Prainha não se faz
referência ao Padre Cícero. SUCUPIRA, Luís. Conferência proferida pelo professor Luís Sucupira em
16/10/1864, no auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.p.274-285
78
Livro de Registro de Ocorrências do Seminário da Prainha páginas 5 e 6 citado por BARROS. Luitgarde
Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph, Fortaleza, 2014.
3ª Edição.
79
O padre Antônio Gomes, aventava a possibilidade de José Marrocos ter tido um confronto doutrinal, pois
“sustentava pontos de vista teológicos considerados errôneos” (ARAÚJO, 1956, p. 48). O historiador Irineu
Pinheiro, que foi seu aluno algum tempo depois, conjecturava sobre a possível falta de vocação do professor
(PINHEIRO, 1963, p. 129). Em pesquisa da década de 1980 Luitgarde Barros expôs o parecer do Conselho
do Seminário Episcopal, em de 22 de maio de 1865, segundo qual José Marrocos foi comunicado que não
seria mais aceito por ser “filho ilegítimo e por causa duma pequena mudança que tinha aparecido nele”
tendo por base o Livro de Registro de Ocorrências do Seminário da Prainha (BARROS, 2014) p.130). Há
divergência quanto à data da expulsão de Marrocos Edianne Nobre (NOBRE, 2015) menciona o ano de
1868 e sustenta que apesar das especulações construídas posteriormente, o fato de sua exclusão esteve
44

A decisão do Conselho do Seminário Episcopal foi, decerto, tributária da Reforma


Ultramontana do século XIX. Propagada por Roma, a Reforma tinha como objetivo
preservar a unidade da Igreja, mas evitando sua submissão ao Estado. Visava também
extinguir a prática usual dos clérigos constituírem família, protagonizando escândalos que
afrontassem os direcionamentos da doutrina católica apontados por Trento e defendidos
desde então pelo Vaticano. O fato de ser filho e bisneto de padres tornara-se, nestes novos
tempos, “grave impedimento à ordenação eclesiástica”. O pai de José Joaquim Telles de
Marrocos era o padre João Marrocos e sua mãe a mestiça80 Maria da Conceição do Amor-
Divino. José Marrocos era, outrossim, bisneto de um padre jesuíta. O fato de ser filho e
bisneto de padres passou a ser considerado “grave impedimento à ordenação
eclesiástica”81 .

José Marrocos nasceu da cabra Maria da Conceição (...) segundo


informação, quanto à etnia, de pessoas ainda vivas que a conheceram
de perto. Uma das peculiaridades do psiquismo dos cabras caririenses
de outrora expressou-se pela irriquietude traduzida na andança e na
rebeldia. Foram os caceteiros. José Marrocos foi um irrequieto
espiritual: o embuste em foco; o motivo de sua expulsão do Seminário.82

Ao reportar à ascendência de Marrocos, o padre e historiador Antônio Gomes de


Araújo apela para um dos aspectos da interpretação racista da sociedade vigentes no
século XIX e início do século XX: o atavismo. No artigo “O apostolado do Embuste”, o
autor dedica-se a elencar argumentos contra 83 José Marrocos e ao traçar o perfil do
personagem, retoma a figura materna. Tenta definir, assim, Marrocos como portador de
uma espécie de “herança maldita”. O uso do termo “cabra” não é em vão, aí está presente
para desqualificar a origem de Marrocos e tentar acusá-lo de má formação. A descrição

inserido no contexto da Reforma Ultramontana, com o objetivo de extinguir as práticas usuais de clérigos
constituírem família e protagonizarem outros atos que afrontassem os direcionamentos do Vaticano.
80
ARAÚJO, Antônio Gomes de. “O Apostolado do Embuste”, Revista Itaytera, Ano II, n° 02. Crato:
Tipografia Imperial, 1956, pp. 03-62
81
Tomado como referência o processo de Ordenação do Seminário da Prainha, Edianne Nobre nos oferece
uma genealogia mais detalhada de Marrocos: “Descobrimos ainda que a avó paterna de Marrocos, era ela
mesma, filha de um padre jesuíta português chamado Alexandre Leite de Oliveira com uma mulata chamada
Teresa de tal Cf. NOBRE. Edianne dos Santos. “Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”: um ensaio
biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910) Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015
p. 80
82
ARAÚJO, Antônio Gomes de. “O Apostolado do Embuste”, Revista Itaytera, Ano II, n° 02. Crato:
Tipografia Imperial, 1956, pp. 03-62 p.52
83
A obra tenta reunir elementos conta a pessoa e a conduta de José Marrocos na questão do “milagre” de
Juazeiro: a transformação da hóstia em sangue na boca da Beata Maria de Araújo no ano de 1889, o fato e
seus desdobramentos serão discutido em itens posteriores deste trabalho.
45

feita por Irineu Pinheiro 84 dos moradores do Cariri do final do século XIX ajuda a
compreender o uso dos termos “cabra” e “caceteiros” utilizados por Antônio Gomes de
Araújo:

Em todo o Cariri eram as classes inferiores compostas de elementos


ignorantes, analfabéticos, em que dominavam os cabras, mestiços do
negro e do branco ou originários do cruzamento dessas duas raças com
o elemento indígena.
Eram os cabras, regra geral, rixosos, turbulentos. Exímios jogadores de
pau85, não raro acabavam [à]cacete, as feiras da cidade, das vilas, dos
povoados.86

O termo “cabra” com o qual se refere à mãe de José Marrocos expressa, para além
de uma descrição ética, uma relação senhorial como descreve Ana Sara Irffi ao tratar do
Cariri cearense do Oitocentos:

O fato da maioria dos cativos nos inventários post-mortem, sobretudo


no pós-1850, ser arrolada como participante dessa categoria e dos
homens de cor livres serem, também ao longo desse período, chamados
de cabras, indica uma relação feita por senhores e autoridades locais
entre essas duas partes da população. Aos poucos, foram percebidos
como uma mesma categoria de classificação social: dos homens de cor,
trabalhadores, sujeitos a um senhor. Eram os cabras.87

Ao recorrerem ao vocábulo “cabra”, os autores não tratavam apenas de sua origem


mestiça, mas também de sua condição social, de seu pertencimento ao grupo das pessoas
submetidas ao mando. O uso do termo, como comprovado por Ana Sara Irffi 88 , está
consagrado pelo recorrente uso em documentos do XIX.
O fato é que a união entre o Padre João Marrocos e Maria da Conceição do
AmorDivino constituiu grande descendência. Em uma Carta de Doação datada de 1º de
fevereiro de 1864, publicada no jornal Araripe94 e assinada por Dona Anna Francisca de

84
Irineu Pinheiro (1881-1954) Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Foi o primeiro
presidente do Instituto Cultural do Cariri, em 1953, colaborador em jornais e autor de diversas obras sobre
História do Cariri.
85
Estes “jogos de pau” ou também “maneiro pau” como são mais conhecidos no Ceará, são danças
masculinas muito semelhantes ao Maculelê de origem africana.
86
PINHEIRO. Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a revolução de 1914. 2ª Edição Fac-sililar da Coleção
Centenário, Editora IMEPH, Fortalea 2011p.31
87
IRFFI, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez. “Não existe doce ruim, nem cabra bom” – a invenção de um
conceito para os trabalhadores do Cariri Cearense, século XIX. Anais do Simpósio XXVII Internacional
de História, Florianópolis Santa Catarina, 2015. p.12.
88
O tema é aprofundado na Tese da autora“O cabra do Cariri Cearense: a invenção de um conceito
oitocentista” Doutorado em História UFC, 2015.354f. 94 O Araripe, ano VII, 20 de fevereiro de 1864.N o
300. p.4
46

Oliveira, encontramos mencionados os outros filhos do casal. Anna Francisca, que havia
sido madrinha de batismo89 de José Marrocos, deixa para ele e seus irmãos alguns bens
de raiz ali descritos. Diz a Carta de Doação: “aos meus sobrinhos, filhos do finado padre
João Marrocos Telis: José Joaquim Telis Marrocos, Joaquim Marrocos Tellis, Deusdedit
Marrocos Tellis e Abel Marrocos Tellis”. A prole evidencia que o envolvimento entre
João Marrocos e Maria da Conceição do Amor-Divino não se tratou de uma relação
furtiva entre o “padre” e a “cabra”. A aceitação desta família que tem por patriarca um
sacerdote não causava no Crato, até então, escândalo ou constrangimento. Anos antes,
havia saído da cidade um padre casado, pai de treze filhos e que chegou a Senador e
Presidente da Província do Ceará. Refiro-me a José Martiniano de Alencar, pai do célebre
escritor José de Alencar.
A expulsão de José Marrocos do Seminário não causou, até onde se sabe, grande
repercussão local na altura. José Marrocos iniciou uma promissora carreira de professor,
redator de jornal e ativo militante abolicionista, sendo um dos fundadores da Sociedade
Cearense Libertadora. Antes de abraçar a causa da emancipação, Marrocos ligou-se ao
trabalho do Padre Ibiapina no Cariri, sendo redator do periódico católico A voz da
Religião, fundado pelo sacerdote.
Neste interim, Cícero Romão prosseguiu seus estudos no Seminário de Fortaleza,
sem que tenha registrado de alguma forma sua percepção acerca da expulsão do primo. A
conclusão da formação sacerdotal não foi, entretanto, tranquila para o seminarista. Foi
ameaçado de perder o posto de “Anjo da Guarda”, uma espécie de monitor para os
internos mais jovens, e até foi repreendido por não se confessar com a devida frequência.

No final de 1868, Cícero deveria ser ordenado. Entretanto, o Conselho


de Ordenação de outubro daquele ano fora contrário a isso. Pior.
Sugeriu ao Bispo o seu desligamento do Seminário episcopal. Para o
conselho estaria finda a sua intenção de tornar-se um sacerdote. Todavia
a palavra final não era do conselho. O último veredito deveria ser dado
pelo bispo. Para a sorte de Cícero o acesso à posição de sacerdote dentro
daquele campo eclesiástico não estava completamente sobre o controle
dos lazaristas90

89
O doutor Manuel Marrocos Teles e D. Ana Francisca de Oliveira constam como padrinhos de José
Marrocos no Livro de registro de Batismo da Paróquia do Crato, 1841-1842, fls. 87 citado por NOBRE.
Edianne dos Santos. “Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”: um ensaio biográfico sobre José
Marrocos (Ceará, 1842-1910) In Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 p. 80
90
BRAGA, Antonio Mendes Costa. Padre Cícero Sociologia de um padre, Antropologia de um santo. tese
de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, 2007, 412 f. p 63.
47

A intervenção do dispo Dom Antônio Luís foi favorável, a questão das tensões em
torno de sua nomeação geraram debates posteriores, houve quem duvidasse de sua
vocação, como é o caso de um biografo que menciona as divergências ocorridas numa
aula de Teologia na qual se discutia a natureza do sangue que pode aparecer na hóstia
consagrada91
Fato é que o jovem Cícero nem era tão rebelde ou inovador, prova disso é que não
havia uma divergência abertamente expressa entre o recém e o ideal dos Irmão da Missão.
Cícero Romão Batista, julgando-se apto a participar das fileiras dos lazaristas submeteu-
se à ordenação, sendo rejeitado. Ver frustrado o anseio de participar da ordem dos
lazaristas, por ter sua candidatura rejeitada por seus superiores, foi certamente um
desgosto. Exibindo um desempenho considerado mediano, Cícero Romão Batista acabou
por receber as ordens em 30 de novembro de 1870, aos 26 anos, dois anos depois da
avaliação negativa do conselho, talvez o tempo necessário para que o bispo formasse uma
opinião.

1.3. O “seminarinho”: a instalação do Seminário Episcopal no Crato e do Colégio


das órfãs em Fortaleza.

Figura 4.Croqui do Seminário São José, Crato. A imagem faz parte da capa do Álbum do
Seminário do Crato: Em comemoração ao cinquentenário de sua fundação. (1875-1925) e
representa a edificação tal como se apresentava na década de 1920, data da publicação.

91
Sem mencionar a fonte que embasa sua narração, Azarias Sobreira descreve um embate que teria
acontecido pouco antes da ordenação de Cícero Romão Batista: “Houve uma memorável aula de
Teologialonge, em que se discutiu a natureza do sangue que, de longe em longe, tem aparecido na hóstia
consagrada, notadamente nas dioceses de Orviedo e Sena, onde ainda hoje se presta solene culto a papéis e
paninhos manchados com o portentoso líquido. Seria apenas um sangue miraculoso, manifestado ao gênero
humano com o fim precípuo de nos fortalecer na fé? Ou seria o próprio sangue do Redentor, outra vez
derramando pela salvação do mundo? Contrariamente á decisão do lente, Cícero esposou, ardorosamente,
o parecer que sustentava a identidade do sangue de Jesus Cristo. Foi debalde que o Padre Chevalier invocou
o clássico texto ao apóstolo São Paulo: “_ Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos , já não morre”. A
48

Datada de janeiro de 1980, uma carta do padre Manoel Joaquim Aires do


Nascimento, pároco do Crato, relata aspectos detalhados de como os serviços a Igreja
eram cumpridos ali. Ao descrever o patrimônio da matriz nos lega um breve relato.
Esclarecedor, sem perder um certo viés de ironia, nos oferece uma gama de referências
sobre o cotidiano da Matriz cratense:

Em cumprimento a circular de V. Excia (...) respondo: que nesta matriz


não tem patrimônio, e se algum tempo teve, eu ignoro, pois a 22 anos
que sou vigário nella, ainda não tive notícia dele e nem me tem sido

coisa assumiu tal feição que o Reitor do seminário não se atreveu a apresentar o estudante em apreço para
recepção das ordens sacras” Escrito com o expresso objetivo de exaltar e reforçar a crença em torno dos
fatos extraordinários envolvendo a transformação da hóstia em sangue, o autor aproveita para estabelecer
uma precoce defesa de Cícero Romão Batista no caráter místico do sangue nas sagradas partículas,
atribuindo à Divina pessoa de Jesus Cristo. SOBREIRA. Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1969, p.38
possível descobri-lo embora tenha eu feito as diligências possíveis(...)
por ter Semiterio publico (ilegível) só recebo 400 do defunto adulto
como determina a tabela, pois o maior nº dos corpos que anualmente se
sepultam no semiterio sai por velas dos quais a mesma aplica paga dos
400, assim como dos escravos e dos que não são senhores sui juris.92

Ao descrever as duas irmandades instaladas no Crato menciona a Irmandade do


santíssimo Sacramento, de cujo compromisso escrito guardava cópia. Afirma que tal
irmandade não tem patrimônio. Menciona ainda uma Irmandade das Almas, cujo
compromisso ainda não havia sido aprovado pela Assembleia Provincial e seguia “tendo
execução provisoriamente por ter sido aprovada pelo legítimo poder espiritual”. A
missiva do padre Ayres respondia a um questionamento acerca das posses e afirma sobre
as ditas irmandades do Crato: “não tem patrimônio, e ambas estas irmandades (sic)
sustentam-se a mercê de seus irmãos, das esmolas que dão das suas bouças”. No mesmo
documento menciona a capela de Nossa Senhora das Dores no distrito de Juazeiro:

Pelo que toca a capela de Nossa Senhora das Dores na povoação de


Juaseiro, fundada no local desta freguesia, ofereço a Vssa Excia a
resposta inclusa, que me mandou procurador Joaquim Antônio Bezerra
de Meneses. 93

Sem que este perfil quase simplório descrito pelo padre Ayres tenha sido muito
alterado, a cidade do Crato recebeu a primeira visita dos padres da Missão em 1872. Eram

92
APEC/ Fundo do Palácio Episcopal do Ceará / Caixa 2, Volume II. Documento avulso.
93
APEC/ Fundo do Palácio Episcopal do Ceará / Caixa 2, Volume II. Documento avulso.
49

o padre Guilherme e o Padre Antônio. Para acolher o grupo de fiéis reunidos em torno
dos missionários “improvisou-se na porta da matriz uma latada de folhas de palmeira”94,
a nave do templo não comportava a multidão. Foi depois deste evento que o ainda
recémordenado, Padre Cícero sugeriu ao Bispo Diocesano a criação de um seminário na
cidade do Crato. A sugestão convergia com o projeto dos lazaristas para o interior da
Província do Ceará. Cícero já havia assumido a capela de Nossa Senhora das Dores no
distrito de Juazeiro do Norte, distante aproximadamente 12 km do centro do Crato

O ilustre Prelado que já fundara o Seminário de Fortaleza, exultou ao


receber a carta dos lazaristas e logo quis por em prática a ideia de dotar
a zona sul cearense de uma casa de instrução congênere à da capital,
como, um ano antes, lhe tinha sugerido o Rvmo. Padre Cícero Romão
Baptista, então recentemente ordenado.101

O bispo Dom Luiz visitou a região do Cariri e iniciou a construção do novo


seminário em 1874, indicando como diretor o padre italiano Lourenço Enrile, que para
esta finalidade havia sido enviado ao Crato. A cidade do Crato já detinha relativa
relevância regional, com destaque para a presença de uma elite letrada e a circulação de
periódicos locais95. Uma síntese de Otonite Cortez dá conta deste aspecto com relevo para
o aspecto cultural e político, compreendendo que o “Crato se propunha ser o núcleo
disseminador de um projeto civilizador para a região do Cariri” 96, com destaque para o
pioneirismo da cidade em diversos aspectos:

(..) foi a segunda freguesia criada na região (1762); o primeiro povoado


a ser elevado à condição de vila (inaugurada em 21 de Junho de 1764,
com o nome de Vila Real do Crato); o primeiro a ser elevado ao foro de
cidade (17 de Outubro de 1853); a primeira cabeça de comarca no sul
do Ceará (criada em 1816). Estava a favor do Crato também o fato de
ser o local onde se concentrou o maior número de intelectuais da região,
que fundaram em caráter pioneiro, importantes instrumentos de
“promoção da civilização”: imprensa, escolas, entidades filantrópicas e

94
Álbum do Seminário do Crato: Em comemoração ao cinquentenário de sua fundação. (1875-1925)
.Rio de Janeiro Typ. Revista dos Tribunaes, 1925 p.29 101 Ibid., p. 29-30.
95
No século XIX circularam no Crato os seguintes periódicos: O Ararype (1855), O Cratense (1859), A Caipora
(1860), Gazeta do Cariri (1860), A Glosa (1860), A Camphora (1862), A Lyra (1863), O Tamborim
(1863), Omnibus (1867), União (1868), A Voz da Religião no Cariri (1868), Infância (1869) A Liberdade
(1876), Echo do Cariry e o Ephoca (1877), Cariry (1884), Vanguarda, O Gênio e O Porvir (1887), O
Cratense, O Grilo e O Gremio (1890), O Artista (1891), Correio do Cariri (1892) e A Liça (1895). Cf.
NASCIMENTO, F. S. Crato: Lampejos Políticos e Culturais. Fortaleza: Edições UFC, 1998.
96
CORTEZ, Antônia Otonite. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Dissertação de mestrado.
Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
50

associações literárias. A criação do Seminário São José, em 1875, foi,


sem dúvida, um grande marco desse projeto civilizador. 97

Os primeiros anos do Seminário Episcopal do Crato foram cheios de percalços,


sendo que o Bispo Dom Luís chegou a passar seis meses no Crato, tendo chegado ali em
31 de dezembro de 187498. Em uma carta com data de 8 de janeiro de 1875 endereçada
ao Padre Visitador, Dom Antônio Luís expôs seu objetivo no Crato:

Estou na cidade do Crato para onde vim tratar do Seminário, cuja fábrica
está bem principiada, donde não sairei sem deixá-lo funcionando, de
novo no novo edifício, situado no mais aprazível e salubre bairro desta
cidade. Como não é possível concluir já uma parte da nova casa, vou
nos princípios de março abrir o Seminário em um prédio alugado, a fim
de aproveitar estudantes, que esperam abertura do seminário e não ficar
o ano letivo defeituoso.99

O evidente empenho do Bispo, que pessoalmente administrou a construção, expôs


a necessidade de ocupar um lugar estratégico para a Igreja numa região onde por muito
vigorou o perfil das Missões, dos pregadores livres. Os seminários somavam-se a outras
medidas implementadas pelo bispado para abrandar o ânimo das atividades que seguiam
sem a devida tutela, como é o caso das irmandades na Capital e no restante da Província.
Tais medidas podem ser encontradas no estímulo à organização de novos movimentos
leigos no Ceará, como as Conferências de S. Vicente de Paula, a Pia Congregação das
Filhas de Maria, as Irmãs de S. Luiz Gonzaga e a Associação do Sagrado Coração (ou
Apostolado da Oração). Segundo Costa Filho, a “melhor maneira de combater os ‘abusos’
da religiosidade popular era competir com as instituições já existentes (...) As novas
instituições teriam a tarefa de organizar a espiritualidade leiga segundo a visão
tradicionalista da Igreja”107.
Uma das justificativas apresentadas pelo próprio bispo para a instalação de um
seminário no Crato eram as dificuldades de saúde do padre Vicente Enrile, que não se
adaptava aos ares marítimos da capital, sentindo-se mais confortável em terras cratenses.

Vê V. Revma. que há grande necessidade de virem os padres para o


Crato ficando o reverendo padre Enrile aqui com eles, pois está
verificando que não se dá com os ares da capital relativamente à saúde.

97
Ibid.,
98
Hospedou-se na casa do Coronel Antônio Luíz Alves Pequeno. Este personagem era o padrinho de Crisma do
Padre Cícero e havia custeado seus estudos no Seminário.
99
O interesse do Bispo no Cariri e no investimento concreto através do seminário está relacionado à necessidade de
uma presença mais efetiva da diocese na região. Ali, poucos anos antes floresceu a missão
51

Advirto que este Seminário do Crato não constitui nova fundação, sendo
apenas um suplementar ao Seminário Episcopal da Capital e dele
inteiramente filial, por isso debaixo do mesmo contrato que com o
Superior Geral celebrei.108

Localizada a três graus abaixo da linha do Equador, a capital da província tinha


clima tropical, com altas temperaturas e um regime de poucas chuvas que o padre Enrile,
italiano, não suportava bem. Situado no Cariri, “no semiárido” do sertão cearense, porém
cercado pela Chapada do Araripe, de onde vertem centenas de fontes, o Crato oferecia um
clima mais agradável e temperaturas mais amenas. Fincado no “Paraíso do Sertão”, com
uma economia local ativa, voltada para a agropecuária, o Crato despontava como um local
ideal para a interiorização da ordem. Ao deixar claro o papel suplementar do seminário
cratense, o bispo evidenciava o cumprimento dos compromissos com seus

do Padre Ibiapina, concretizada nas casas de caridade mantidas por leigos. Tais casas passaram ao controle
da Diocese e serão objeto de análise no próximo item do presente capítulo.
107
COSTA FILHO, Luiz Moreira da. A Inserção do Seminário Episcopal de Fortaleza na Romanização
do Ceará (1864 – 1912). Dissertação. Mestrado em História Social UFC, 2004 145f.p.36
108
Álbum do Seminário do Crato: Em comemoração ao cinquentenário de sua fundação. (1875-1925)
Rio de Janeiro Typ. Revista dos Tribunaes, 1925 p.33 e 34
superiores que autorizaram o Seminário da Prainha. Padre Enrile seria coadjuvado por
alguns seminaristas brasileiros, como informa a mesma missiva ao Visitador. Antes de se
despedir do Visitador, Dom Antônio Luís ainda registra em sua carta:

Peço além disso a intervenção de V. Revma., a fim de virem Irmãs de


Caridade para um Colégio de Órfãs cujo edifício se acha pronto.
As vantagens de uma tal casa são inquestionáveis, até mesmo para
aproveitar muitas vocações que por aqui ficam por não conhecerem as
Irmãs de Caridade.
Meu Revdo. Padre Visitador, muito confio na sua caridade e zelo pela
salvação das almas, para não deixar as duas casas do Ceará, sem estes
bem necessários suplementos.
Por aqui me demorarei até que as aulas funcionem na parte que se vai
acabar de novo edifício, o que será em junho ou julho deste ano.100

O prédio para as órfãs mencionado acima refere-se, provavelmente, a Casa de


Caridade do Crato, fundada pelo Padre Ibiapina (15/08/1806-19/02/1883), cuja
administração passou às mãos da Igreja por imposição do Bispado em 1872. A referência
às vocações femininas, certamente se deve ao legado das Casa de Caridade do referido

100
Álbum do Seminário do Crato: Em comemoração ao cinquentenário de sua fundação. (1875-1925) .Rio de
Janeiro Typ. Revista dos Tribunaes, 1925 p.33 e 34
52

padre, que agregou centenas de mulheres ao longo de décadas e que o bispado desejava
ver sob o controle das lazaristas.
Um dos braços da fundação da Congregação dos Lazaristas, na Província do
Ceará, foi o seu ramo feminino, que se serviu do Colégio da Imaculada Conceição em
Fortaleza, fundado em julho de 1865101. A direção da escola dedicada a educar meninas
ficou por conta das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. A obra tinha por objetivo
proporcionar educação básica e fundamentos cristãos para as futuras mães de família,
inclusive para as órfãs. A construção do Colégio da Imaculada Conceição somou-se,
portanto, à instalação do Seminário da Prainha. Os dois empreendimentos efetivavam
aspectos fundantes para a Congregação da Missão, reafirmando os elementos centrais e
norteadores da ação dos lazaristas, através inspiração em Luiza de Marillac
(12/08/159115/03/1660) e São Vicente de Paulo (24/04/1581-27/09/1660).
A direção e o ensino do Colégio da Imaculada Conceição ficaram a cargo da
reverenda Irmã Margarida Bazet111 e de outras sete irmãs da caridade, todas estrangeiras.
A recepção ao grupo de freiras foi descrita pelos cronistas da época como uma ocasião
agitada na qual a população local cercou as irmãs. Conta-se que nunca tinham visto
desembarcando em Fortaleza mulheres em tal função e estranhavam até as roupas usadas
pelas religiosas. Especialmente impressionados com os grandes chapéus, característicos
dos hábitos das vicentinas, os habitantes da Província chegaram a tocá-los por audaciosa
curiosidade112.
O Colégio da Imaculada Conceição dividia-se em pensionato e recolhimento de
órfãs desvalidas. Quanto aos conteúdos, as pensionistas recebiam aulas de: instrução
religiosa, primeiras letras, gramática nacional, aritmética, geografia, história sagrada,
elementos de civilidade, trabalho de agulha e bordados, desenho, música vocal e piano.
Já as órfãs tinham as mesmas matérias, exceto geografia, história pátria, desenho e piano.
No ano de 1868, contava com 126 alunas, sendo 77 pensionistas e 49 órfãs. Sobre a
manutenção das alunas, encontramos no Jornal Cearense a seguinte descrição: “entre
outras há 12 sustentados pelos cofres provinciais com a subvenção de 3:000$00, as outras

101
Em 15 de agosto de 1865 foi fundado o Colégio da Imaculada Conceição. Em 1884, inaugurou-se o
Externato São Vicente de Paulo onde meninas pobres aprendiam música, leitura e trabalhos manuais. Para
os meninos, filhos de operários e das famílias assistidas pelas Senhoras da Caridade, abriu-se o Externato
Jesus Maria José. Logo após, inaugurou-se o Externato São Rafael, em março de 1901, destinado aos irmãos
das meninas do Colégio da Imaculada Conceição, deste Externato surgiu o Colégio Marista Cearense.
CAMPOS, Gerardo José. Colégio da Imaculada Conceição: do gênese ao apocalipse. Fortaleza: Tipogresso, 1999.
458p.
53

são pela caixa pia e economia do estabelecimento” 113. No mesmo periódico, encontramos
a descrição da missão daquele estabelecimento educacional:

A mais sólida garantia da sociedade, as mais interessantes relações da


vida, as santas virtudes do lar doméstico, repousam na educação moral
e religiosa, na formação do espírito daquelas que um dia terão de
assumir o augusto papel de mãe de família.114

A caridade como ideal e prática e o apoio à instrução das meninas órfãs também
foram elementos fundantes das missões pioneiras do Padre Ibiapina. A educação das
meninas pela disciplina e o ambiente de oração e trabalho coletivo era tido como essencial
para formação de boas mães católicas. A experiência das Casas de Caridade de Ibiapina

111
Margueritte Bazet era seu nome de batismo, sendo natural da França como suas outras companheiras de
missão no Ceará.
112
Segundo descreve documento da Arquidiocese de Fortaleza, foram estas as três primeiras Casas
Religiosas femininas a serem instaladas: Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo –
Chegada à Diocese de Fortaleza em 1865; Congregação das Irmãs de Santa Dorotéia de Frassinetti –
Chegada em Fortaleza em 1916 e Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor , chegada à
Arquidiocese de Fortaleza em 1924. ARQUIDIOCESE DE FORTALEZA – Casas Religiosas Femininas
26 páginas disponível em http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/wpcontent/uploads/2011/02/CASAS-
RELIGIOSAS-FEMININAS.pdf acesso em 20 de abril de 2019. 113 BNDigital Jornal Cearense 10 de
novembro de 1868 anno XXIII, no. 2748, p.3. 114 Idem
aproximava-se da inspiração caridosa e da rígida disciplina das filhas de Caridade
Vicentinas, mas possuía elementos peculiares. Nas casas de Ibiapina, houve, desde o
momento da edificação, uma cooperação da comunidade, que mobilizava trabalhadores e
doadores locais dedicados a edificar e manter uma instituição sem vinculação direta com
a Igreja Católica, ou seja, sem autorização para a construção e funcionamento das casas.
Depois de instalada a casa, reinava uma administração coletiva e auto-organizada sob os
cuidados do missionário e seus colaboradores, não havia ligação direta com a hierarquia
católica, apesar do rígido respeito aos princípios da Igreja. A Casa de Ibiapina era uma
espécie de variante das Casas de Caridade do modelo vicentino, adaptada ao potencial de
realização dos sertões e à solução de necessidades urgentes.
As casas de Ibiapina começam na década de 1860, cinco anos antes da chega das
Irmãs de Caridade ao Ceará, em paralelo como outras iniciativas que agregavam
trabalhadores para construções de açudes, capelas ou cacimbas. Tal animação para o
trabalho era fruto das pregações e do exemplo dos sacrifícios pessoais do próprio Padre
Ibiapina, que percorria longas distâncias, pregava, aconselhava e demonstrava abnegado
ânimo. Assim, criou-se uma rede assistencial em torno das Casas de Caridade. O grau de
54

autonomia que algumas internas experimentavam provocou muitas reações, tal como
descreve o bispo de Sobral102, Dom José Tupinambá da Frota:

Por ocasião das Missões fundou o grande Missionário [Ibiapina] uma


associação de “beatas”, que se revestiam de uma espécie de hábito
religioso, com um grande véo ou lenço branco na cabeça, e residiam nas
próprias casas. Nesse ano, veio a Sobral o 1º. Bispo do Ceará, D. Luís
Antônio dos Santos, que não aprovou a devoção do tal hábito, como se
vê no provimento deixado no Livro do Tombo da Freguesia103.

Além de castas, dedicadas à oração e às diversas atividades das casas, as beatas


estabeleceram um característico hábito para si. Na escolha das vestes, tentavam imitar
os trajes religiosos das ordens femininas existentes, provavelmente as que conheciam
através de gravuras fornecidas pelo Padre Ibiapina ou por outro contato exterior. Em
uma passagem das Crônicas das Casa de Caridade104, fica evidente a forma espontânea
e quase informal pela qual as moças podiam tomar o hábito e ingressar como “freiras”,
o exemplo é do ao de 1869, quando “duas irmãs donzelas da família Rolim, sendo uma
delas professora pública da Vila, tomaram o hábito de freiras para tomarem a direção da
Casa de Caridade”105
Em outra passagem, ao descrever a passagem de Ibiapina por Bananeiras (Paraíba)
no ano de 1863 o autor das cônicas afirma o seguinte a respeito da devoção de duas
jovens do lugar;

“virgens da principal família, que representava a sociedade com


distinção, foram estimuladas pela graça (...) e o resultado foi se
despirem das galas, os enfeitos, e as esperanças ilusórias do mundo,
para seguirem o estreito e áspero caminho da cruz, acompanhando o
doce Jesus, a quem se consagraram como esposas amantes e depois se
recolheram na casa de Santa Fé.106

Aqui observamos o uso do termo “recolhimento” e não “tomar o hábito”, como


citado no exemplo anterior. O importante é destacar nos dois exemplos a similaridade

102
A Diocese de Sobral foi criada a 10 de novembro de 1915 pela bula “Catholicae Religionis Bonum” do
Papa Bento XV, sendo desmembrada da então Diocese de Fortaleza, sendo Dom José Tupinambá seu
primeiro bispo.
103
FROTA. Dom José Tupinambá da. História de Sobral, 2ª ed. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno,
1974 p.256
104
As Crônicas de uma coleção manuscrita realizada por autores diversos e em momentos distintos, ao modo
de capítulos reunidos.
105
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza, Museu do
Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006 p. 127
106
HOORNAERT, 2006,p.86
55

com os meios formais do despertar e do engajamento das devoções femininas. Sem


ordem oficialmente estabelecida e reconhecida pela igreja católica, dedicaram suas
vidas à continuidade da missão de Ibiapina.
Ao instituir ordens de beatos e beatas, Ibiapina tocou em uma das questões
estruturantes da hierarquia eclesiástica. Seu pragmatismo atropelava as prescrições
canônicas, que eram desrespeitadas ou desconsideradas pelo missionário diante das
necessidades imediatas dos sertanejos pobres e das vocações religiosas do lugar. Essas
congregações de leigos fundadas por Ibiapina são descritas assim pela antropóloga
Luitgarde Barros:

Essas ordens de religiosos leigos [SIC] recrutavam homens das


camadas mais pobres de trabalhadores do campo e moças órfãs e pobres.
Muito raramente uma filha de pessoas de posse abandonava a família e
seguia Ibiapina para uma vida de trabalho e oração. Os beatos e beatas
de Ibiapina faziam voto de castidade e pobreza (...) se dedicavam ao
serviço de Deus, trabalhando, cuidando dos enfermos, órfãos e
necessitados, além dos serviços do culto religioso, como novenas,
terços, encomendações de almas e até pregações.107

A explicação trazida pela antropóloga peca, entretanto, pela imprecisão. A obra


do padre sobralense nunca foi uma ordem religiosa, tampouco uma “ordem religiosa de
leigos”, o que aliás seria um paradoxo. A expressão usada é inadequada porque o modelo
de organização do Padre Ibiapina não seguia uma regra semelhante à dos recolhimentos,
não implicava no cumprimento de votos, nem na renúncia de bens materiais. Aproximava-
se mais de um grupo de fiéis unidos para a realização de uma obra religiosa. Embora nem
um e nem outro termo possam ser aplicados stricto sensu, porque as Casas de Caridade
não eram reconhecidas oficialmente pela Igreja.
A inauguração de uma casa de caridade era marcada por uma ocasião festiva,
música e celebrações podendo culminar num banquete no qual eram oferecidos aos mais
pobres e até aos mendigos refeições fartas servidas pelos mais abastados. Darlan Reis
descreve este momento como uma teatralização do ato de caridade, uma demonstração
pública encarnada no ato de servir aos pobres reforçando um “padrão de comportamento
esperado para as diversas classes sociais. A pobreza submissa e desamparada que recebia

107
BARROS. Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza , 2014 .3ª Edição.
56

através da caridade dos senhores, dentro dos parâmetros religiosos” 108 . Esta inversão
simbólica vivenciada no momento do banquete se desdobrava nas diversas maneiras pelas
quais a comunidade unia esforços, organizava recursos e fazia com que as casas de
caridade estabelecessem uma relação orgânica com as comunidades nas quais estavam
inseridas.
Na verdade, ao contrário do que afirma Luitigarde Cavalcanti, as moças com
alguma condição de sustento não estavam afastadas das atividades coordenadas por
Ibiapina; eram internas nas Casas de Caridade com contribuição mensal, na condição de
pensionistas. As pensionistas eram advertidas de que não receberiam tratamento
diferenciado daqueles dados às órfãs, conforme estabelecido no Estatuto das Casa de
Caridade. As jovens, tanto pensionistas quanto as órfãs, eram preparadas para serem boas
esposas e mães católicas, inclusive, porque havia um fundo de caridade para o casamento,
além de arranjos para a escolha de bons maridos109. Neste sentido, a obra de Ibiapina
inspirava-se mais no trabalho das Santas Casas de Misericórdia espalhadas pelo Império
Português durante o período moderno, que previam acolhimento de meninas órfãs, como
a do Rio de Janeiro e a de Macau110. Ao tratar do tema, Gilberto Freyre refletiu acerca da
estrutura física das edificações e identificou traços do predomínio feminino na
administração e na oferta de serviços das Casas de Caridade à comunidade.

Um maternalismo que foi uma expressão nova do complexo brasileiro


da casa-grande e não a negação violenta desse complexo. Desse
complexo ele se envolvera de tal modo que, construídos edifícios para
suas missões, em vez de se inspirar na arquitetura das igrejas ou dos
conventos, inspirou-se na das casas-grandes patriarcais. E em vez de
enchê-las – as suas “casas de caridade” semelhantes às casas-grandes,
com os mesmos alpendres largos, os mesmos telhados acolhedores de
pagodes chineses, as mesmas paredes grossas – de freiras ou irmãs de
caridade mandadas vir da Europa, encheu-as de brasileiras de tipo
menos ascético do que maternal que a gente do povo foi chamando não
de “irmãs” nem de “soeurs”; nem de “madres” nem de “mères”; mas,
muito brasileiramente, de mães-sinhás. Mães-sinhás que costuravam e

108
REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no cariri cearense: terra, trabalho e conflitos na
segunda metade do século XIX. 2014. Tese (Doutorado em História Social) - Programa de Pós-
Graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014 pp.202-203
109
BARROS. Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza , 2014 .3ª Edição
110
Cf. BITTENCOURT, Marta Tavares Escocard.. A infância nos recolhimentos da Santa Casa de
Misericordia do Rio de Janeiro (1890- 1919). Niterói, Universidade Federal Fluminense, Dissertação de
Mestrado, 1991; MANSO, Maria de Deus; SEABRA, Leonor Dias de. Escravatura, concubinagem e
casamento em Macau: séculos XVI-XVIII. Revista Afro-Ásia, Salvador, no. 49, jan/jun.2014.
57

ensinavam órfãs a costurar, a fazer renda, a fazer doces, flores de cera e


de papel, cestos, chapéus, esteiras. Maternalismo do mais puro que,
outra vez, é preciso não ser confundido com matriarcalismo, embora
tudo indique que aos bispos da época a organização de Ibiapina
inspirasse o receio de ser uma organização dominada por mulheres.111

Freyre revela em sua análise um dos motivos que teriam motivado a intervenção
do bispo de Fortaleza na substituição do modelo de gestão mais independente das Casas
de Caridade do padre Ibiapina pelo sistema das Filhas da Caridade de São Vicente de
Paulo, submetido à autoridade diocesana e ao provincial da ordem. O papel da instrução
125
é destacado no Estatuto das Casas de caridade que em seus primeiros artigos do
Capítulo 1 estabelece:

Art.1o. Têm dois fins as Casas de Caridade desta Instituição, e vem a ser
a educação moral e o trabalho.

Art.2o. Recebem-se nestas Casas as órfãs de 5 a 9 anos sendo pobres e


desvalidas
Art.3o. A primeira educação das órfãs é ler, escrever, contar, aprender a
doutrina cristã e cozer. Finda esta educação, entrarão nos trabalhos
manuais como tecer panos, fiar nos engenhos, fazer sapatos e qualquer
gênero de indústria que a casa tenha adotado.

Art.4o. Logo que as órfãs tenham completado a primeira e a segunda


educação, estando em idade conveniente, serão casadas à custa da
caridade.

Priorizar a instrução feminina, deixar a gestão da casa ao cargo de mulheres e


estabelecer o dote para “à custa da caridade” revela o um projeto que visava não criar um
núcleo de castas devotas e sim de mães de família católicas instruídas. Esta não era a
realidade e a presença de mulheres nos bancos escolares, mesmo para as primeiras letras
ou matemática básica não era comum. Nem todas as meninas saíram casadas das casas,
muitas permaneceram dedicadas ao labor e consagradas voluntariamente à caridade.
A Casa de Caridade de Missão Velha, por ter sido a primeira no Cariri Novo, foi
chamada de Casa de Caridade do Cariri. Assim permaneceu até a fundação das demais

111
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 16. ed. São Paulo: Global, 2006, p. 51 . TOMO 2 125 Utilizei
aqui a versão dos “Estatutos para as casas de Caridade estabelecidas pelo Padre José Antônio de Maria
Ibiapina para conseguir-se o fim da Instituição” que foi publicada por Irineu Pinheiro no livro “O Cariri”.
O documento foi extraído do arquivo da Matriz de Barbalha. Segundo Irineu Pinheiro a obra foi
disponibilizada para transcrição pelo advogado Bernardino de Carvalho Leite, com autorização do vigário
daquela paróquia, o padre José Correia Lima. Trata-se PINHEIRO, Irineu. O Cariri, coedição Secult/
Edições URCA. Fortaleza Edições UFC, 2010. p.150-154
58

casas da região (Crato, Barbalha e Milagres). Sobre o funcionamento diário desta casa de
Missão Velha em 1865 um cronista escreveu:

“moram atualmente na casa as seguintes pessoas: Cecília do Coração de


Jesus e de Maria Ibiapina, diretora, Marcionila do Coração de Jesus
Ibiapina, professora, Rita de Santa Gertrudes Ibiapina, roupeira, Maria
de Santa Eudóxia Ibiapina, despenseira, Rosa de São Felix Ibiapina,
enfermeira, Quitéria Maria do Coração de Jesus Ibiapina, lavadeira,
Maria de Santa Genoveva Ibiapina, criadeira, Cândida Maria do
Coração de Jesus, irmã avulsa, 32 meninas órfãs e 1 engeitada.”112

A primeira evidência é que ao adentrarem a casa as mulheres abandonam os nomes


de família e adotam o nome de algum santo ou santa de devoção, seguidas de “Ibiapina”.
Expressando assim o recomeço, o pacto da nova identidade através da vida devotada ao
trabalho e ao cuidado. Outro aspecto, destacado em itálico, é a variedade de funções
exercidas dentro da casa, revelando que seu cotidiano envolvia afazeres domésticos e
práticas de instrução, revelando uma organização especializada e com hierarquias.
As figuras masculinas autorizadas a adentrar eram o médico ou vigário, até o
horário das 18h e sempre no compartimento do parlatório, nenhuma circulação de homens
era autorizada no interior das Casas de Caridade. Era expressamente recomendado que
apenas as mulheres cuidassem de todo o serviço e manutenção. É possível que quando
são mencionados beatos, estes trabalhassem na lavoura ou cuidando de animais para o
consumo, sem terem convivência na casa, apenas entregando os víveres em determinadas
ocasiões. Sabe-se ainda de alguns que esmolavam em benefício das Casas.
Para José Comblin, foi por conta da ação do clero romanizado das últimas décadas
do século XIX que a rejeição ao projeto de Ibiapina se efetivou com tanto vigor em relação
às mulheres engajadas nas casas. “Quanto às Irmãs [da Caridade], somente queriam
religiosas de molde europeu, com instituições reconhecidas, estrutura jurídica estrita e
governo centralizado na Europa”113. A chegada e a permanência das Irmãs Vicentinas ou
Irmãs de Caridade esteve inserido, portanto, num projeto missionário que mesclava
assistência e educação. A solidez institucional e o trabalho das irmãs garantiram a
continuidade e estabilidade do projeto. No outro extremo, as Irmãs das Casa de Caridade
de Ibiapina foram entregues, desde então, à própria sorte. Em alguns casos, chegaram à
mendicância, desalojadas das casas e oficinas nas quais trabalharam e ensinaram. Um

112
PINHEIRO, Irineu. O Cariri, coedição Secult/ Edições URCA. Fortaleza Edições UFC, 2010. p.155
113
COMBLIN, J. Padre Ibiapina. Edições Paulinas 1993, p.43
59

quadro descrito décadas depois nos dá conta dos últimos anos das Casas de Caridade. As
do Ceará foram extintas, mas na Paraíba ainda foram vistas por Celso Mariz que descreve
sua visita a Casa de Caridade de Santa Fé, na Paraíba:

Dezesseis velhinhas ainda restam do grupo de irmãs que atingiam 200


a 300 antes de desaparecer o fundador. As beatas mais moças tem mais
de 70 anos. A Superiora Maria Ibiapina (Bibi, como a chamam as filhas,
na intimidade da comunhão), tem 77. Uma irmã preta, hoje cega, tem
80. Vestem hábito barato de chita preta quando consta visita de certa ou
presumida importância. As órfãs envergam vestidos comuns de chita de
cor. Também estas, as últimas, que ali chegaram quando o Mestre
morria, filhas de famílias pobres ou da Roda de Expostos, já não são
meninas114.

A imagem a seguir revela a manutenção do hábito, tanto nas superioras quanto nas
alunas, já idosas como bem descreveu Mariz após sua visita datada de fins da década de
1970. A permanência deste último núcleo, hoje desativado, certamente se deve ao fato de
lá ter sido a última parada do Padre Ibiapina, que ali faleceu. Atualmente, o local abriga
um memorial e não existem mais irmãs.

Figura 3. Irmãs da Casa de Caridade de Santa Fé, Paraíba. Fotografia do acervo da


Fundação Padre Ibiapina (sem data ou autor conhecidos) reproduzida por Michelle
Veronese em 2008.

114
MARIZ, Celso. Ibiapina: um apóstolo do Nordeste. 2.ed. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 1980. p.192.
60

A aparente aniquilação da obra de Ibiapina e o triunfo do modelo vicentino


materializaram-se também na construção do Seminário do Crato. O projeto de instalar os
seminaristas em prédio alugado não se concretizou. A vontade do Bispo tomou forma
com uma solução improvisada, porém eficaz. Em 7 de março de 1875, começaram as
aulas em barracões de taipa, cobertos de palha. O lugar passou a ser chamado de
“seminarinho”. Ali perto um pequeno aposento de alvenaria serviu ao Bispo Dom Luís
enquanto acompanhava as obras e as primeiras aulas, chegando mesmo a ordenar ali
jovens advindos do seminário da capital, cujas formações estavam completas. Tal
iniciativa evidenciava o empenho em tornar o lugar uma referência, pois as celebrações
de ordenação seguiram um ritual acompanhado por familiares e agregava fiéis. Aquela de
1875 foi bastante concorrida e festiva: ordenar os jovens ali, mesmo com a edificação
ainda precária, reforçava o papel do seminário na comunidade.
Os tempos que se seguiram foram, no entanto, de irregularidade para o
“seminarinho”. A construção da sede definitiva seguiu com contribuições das mais
diversas as quais o Álbum do Cinquentenário deixa registrado para posteridade o percurso
da obra. Ao exemplificar uma das colaborações à empreitada, o livro informa que o “O
Revmo. Padre Cícero veio, certa vez, do Joazeiro, com uma multidão de pessoas [que o
seguiam a pé] segundo informação segura, fez encher muitos metros de alicerce, em um
só dia” 115. A descrição da multidão mobilizada pelo padre Cícero comprova sua crescente
liderança. Àquela altura se completavam apenas cinco anos da chegada do célebre
Capelão da Igreja de Nossa Senhora das Dores ao Cariri.
Aberto oficialmente em 1875, o Seminário chegou a ficar fechado entre os anos
de 1877 e 1880, período da grande seca que devastou parte do interior da Província do
Ceará. Mesmo o Cariri, uma zona cercada de nascentes, acabou sofrendo diretamente as
consequências do abastecimento de água e o recrudescimento dos bolsões de pobreza.
Diante da dificuldade para manter a casa religiosa, uma sucessão de idas e vindas
marcaram o período até que a sua direção seja assumida pelo monsenhor Quintino
Rodrigues de Oliveira e Silva, que foi sagrado primeiro bispo do Crato no ano de 1915.
Os percalços vividos para implementação do Seminário no Crato, a Grande Seca da
década de 70 do século XIX e a perda do poder do Padre Ibiapina foram atravessados pelos
ares abolicionistas, que chegaram à Província do Ceará mais cedo do que no resto do
Império, unindo fé e política no periódico A Voz da Religião.

115
MARIZ, 1980, p.32
61

1.4. A Voz da Religião no Cariri (1868- 1870)

Figura 4. Reprodução da parte superior da primeira página do jornal A Voz da Religião no Cariri

O jornal católico A Voz da Religião no Cariri surgiu com o desenvolvimento do


trabalho missionário do Padre Ibiapina. Circulou nas principais cidades do Cariri cearense
entre os anos de 1868 e 1870 e pode ser lido como um documento acerca das
manifestações de fé e da diversidade de sujeitos agregados em torno das missões do Padre
sobralense e de suas obras de caridade. Teve como editor o educador José Marrocos,
discípulo daquele padre e primo de outro sacerdote, Cícero Romão Baptista. Em alguns
números, seu irmão Deusdedit Marrocos aparece como responsável pela redação de
alguns textos e pela oficina de tipografia, que funcionava como uma espécie de oficina-
escola.
José Marrocos trouxe a público a primeira edição do periódico católico em 8 de
dezembro de 1868, dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal e dos povos
de língua portuguesa. Os dizeres “Ide em todos os pontos, ensinai, a todos os povos”116
está grafado, em latim e em português, como epígrafe em todos os números da publicação
que permaneceu ativa até 11 de dezembro de 1870. O periódico era impresso na cidade
do Crato e apresentava-se apenas em quatro páginas, divididas em duas colunas. Saía aos

116
Optou-se aqui pela transcrição das fontes em linguagem atualizada.
62

domingos, sendo distribuído nas vilas de Barbalha, Missão Velha, Milagres, Porteiras,
Goyaninha e Jardim117.

Figura 5. Mapa modificado para localizar as casas de Caridade de Ibiapina no Ceará. Construído a
partir da “Carta chorographica da Província do Ceará com divisão eclesiastica e indicação da civil
judiciária” de 1861, disponível na divisão de cartografia do acervo Digital da Biblioteca nacional
(http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia)

VERAS. Elias Ferreira. O “echo das maravilhas”: O jornal A voz da religião no Cariri e as missões do
117

Padre Ibiapina no Ceará (1860-1870) Dissertação de Mestrado em História Social Pontifícia Universidade
Católica São Paulo 2009
63

A principal missão do periódico era difundir e fortalecer os ensinamentos do Padre


Ibiapina118. O jornal estava fortemente ligado às suas ações missionárias pelos sertões.
José Antônio de Maria Ibiapina, tantas vezes já mencionado, é o nome que o cearense José
Antônio Pereira Ibiapina, natural de Sobral, adotou após se ordenar aos 47 anos. A
ordenação tardia veio depois de uma bem-sucedida carreira de advogado, tendo este
personagem sui generis sido Juiz de direito, chefe de polícia e deputado geral.
A fase do Padre Ibiapina como missionário começa aos sessenta anos, quando
deixou sua função de professor e iniciou um trabalho de base marcado pela construção
das casas de caridade que foram erguidas nas províncias do Ceará, Paraíba e Rio Grande
do Norte. Estima-se que alcançaram o número de 23 instituições ativas119. “No caso da
província do Ceará, sabe-se acertadamente das Casas da Caridade de Sobral (1862),
Santana do Acaraú (1863), Missão Velha (1865), Crato (1868), Barbalha (1869) e
Milagres (1869)”.134
A Voz da Religião circulava nos territórios em que o Padre Ibiapina construiu Casas
de Caridade e evocava um lugar de enunciação. Mas seus conteúdos, assim como a vida
em sua dinâmica tensa e diversa, trazia um verdadeiro coro de vozes a ecoar nas páginas
do periódico. Compunham o jornal textos oriundos do mais alto clero, como as
reproduções de Cartas do Papa Pio IX, mas também as transcrições de Jornais Católicos
de outras Províncias e, naturalmente, a reprodução de prédicas de autoria do Padre
Ibiapina.
A publicação dava espaço ainda para a divulgação de episódios singulares, como os
milagres. Em uma seção chamada Fonte Miraculosa, presente em 46 exemplares durante
a duração do Jornal, as narrativas traziam a público os mais diversos usos e apropriações
das Águas Termais do Caldas120, águas de minerais leves, cujas propriedades medicinais
foram amplamente divulgadas pelo Padre Ibiapina.
Era, porém, em torno da figura e das práticas de José Antônio Ibiapina que
orbitavam as mais diversas experimentações da fé. O projeto fundante do periódico era

118
Nasceu em 05 de agosto de 1806, em Sobral, na província do Ceará. Filho de Francisco Pereira e Maria
Thereza de Jesus. Faleceu em 19 de fevereiro de 1883, na Paraíba.
119
RIBEIRO. Josiane Maria de Castro Entre a penitência do corpo e o corpo em festa: uma análise das
missões do padre Ibiapina no Ceará (1860 –1883). Dissertação de Mestrado em História Social. UFC2003
134
Idem
120
O Caldas é um pequeno distrito de Barbalha-Ce, fica bem ao sopé da Chapada do Araripe e possui diversas fontes
de água. (ver localização no mapa/ figura 5)
64

divulgar a missão e as ideias do Padre, por isso o jornal a Voz da Religião no Cariri
publicou em capítulos o Estudo das Missões do Cariri Novo nos anos de 1864 e 1868, de
Bernardino Gomes de Araújo 121 . Além disso, não raro encontramos uma produção
literária diversa contendo discursos, poemas, benditos, narrativas exemplares, cartas e
editoriais de autoria do próprio Padre Ibiapina.
No número de estreia, logo na primeira página, o editorial apresenta e descreve a
missão do jornal. O texto revive o drama dos “dias lutuosos de 92 e 93”, referindo-se ao
período da Revolução Francesa, mas sem recorrer ao uso deste termo. Ressalta o risco da
perda da fé que faz “os homens que antes são bons pais, cidadãos e esposos se tornarem
feras armadas contra si, contra os outros e contra a sociedade”. Em seguida, expõe
claramente a “desgraça” de um país sem a fé católica, apostólica, romana122:

Digamos ao mundo inteiro que sem DEUS, nem um só momento se


pode viver, e que a França se tornou o país mais desgraçado do mundo
desde que abandonou a religião católica, apostólica, romana.
Que triste lição, mas proveitosa nos dá a história da França! E não é esta
a história do mundo inteiro?!
Quem não vê que o esposo não pode contar com a fidelidade da esposa,
o pai com a obediência do filho, o senhor com a submissão escravo! O
amigo com a dedicação do amigo, o cidadão com o respeito das leis
sociais, se ao homem falta o temor de Deus, de seus castigos e a
esperança da glória que adoça tanto os males da vida?
Na profunda convicção destas verdades e sob a moção do amor pelo
bem-estar e felicidade de nossos conterrâneos empreendemos hoje esta
publicação.138

Segundo descreve o editorial, em um ambiente no qual faltem a regra e o esteio da fé, o


caos domina e as hierarquias desmoronam perigosamente, comprometendo a fidelidade,
a obediência, a submissão e o respeito. Avessos aos ideais republicanos, o jornal era
partidário da monarquia e defensor acalorado de seus valores.
Observando, entretanto, os conteúdos do VRC, é possível discutir um aspecto
daqueles sertões tocados pelas suas missões: a convivência com a escravidão. Muito já se
debateu sobre a atuação de Ibiapina e seu legado, porém sua atitude diante da presença da
escravidão com qual conviveu em diferentes espaços é um terreno ainda pouco
palmilhado. Quanto ao jornal VRC, verifiquei que em seus números iniciais, não se

121
Bernardino Gomes de Araújo, era Professor em Missão Velha. Recebeu a insígnia de Cavalleiro de
Christo pela dedicada atuação no combate à epidemia de cólera como enfermeiro. (15/05/1811-?)
Diccionário Bio-bibliográfico Cearense-Barão de Studart.
122
Optou-se nesse trabalho pela transcrição da fonte com atualização da grafia das palavras.
138
A voz da Religião no.1 p.1. 08 dez 1868. Grifo meu.
65

posicionou contra a escravidão; ao contrário, parece não desafiar em nada as normas


vigentes. Aos poucos, o tema foi surgindo em suas páginas. Pensar a relação entre
catolicismo e escravidão era um tema espinhoso, especialmente no século XIX, quando a
questão ainda estava emaranhada em interpretações diversas. Ibiapina e suas casas de
caridade eram singulares no tocante ao modelo de produção e convivência, contrariando
frontalmente o discurso do próprio jornal que editava.

Das “cazas de caridade” do missionário cearense se sabe que, ao


contrário dos grandes conventos brasileiros, não possuíam escravos.
Nem os compravam nem os recebiam de presente. O trabalho era feito
por gente livre e considerado ocupação digna de qualquer indivíduo, por
mais branco e por mais ilustre.123
Sobre a administração das casas140, sabe-se que Ibiapina colocou um dos moradores
como encarregado dos trabalhos mais pesados. Cabia-lhe capinar, varrer, plantar no
entorno da casa (quintal, horta, jardim) e tanger o gado. Combinando os ofícios de
agricultor e vaqueiro, ele era responsável pela produção dos itens básicos para seu
sustento, das beatas, das órfãs e dos enfermos. Em caso de penúria, eram autorizados a
pedir esmolas para si e aqueles sob sua responsabilidade.141
Segundo notícia publicada no VRC124 em 23 de janeiro de 1870, quase um ano antes
da promulgação da Lei do Ventre125, foi inaugurada a Casa de Caridade de Sousa, na
Paraíba. Perante um público numeroso, reunido em frente ao edifício, o Padre Ibiapina
saudou as internas nomeando-as de “flores no sertão”. A imagem poética aludia à
esperança depositada naquela Casa de Caridade, revelava sua missão de acolher e educar
as jovens, prenunciando a possibilidade um novo tempo. Na mesma ocasião, o Juiz de
órfãos da cidade solicitou formalmente a admissão de moças na casa.

(...)Em seguida pediu o Senhor Doutor Manoel da Fontes Xavier


d´Andrade licença para falar e declarou que para abrilhantar este ato tão
sublime da Santa Casa da Caridade e Misericórdia, ele e sua mulher
deram liberdade a essa escravinha de oito anos, filha legitima de seus
escravos, e reclamava a sua admissão na Caridade, porque conhece, que

123
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 16. ed. São Paulo: Global, 2006, p. 53 TOMO 2 140
BARROS, Luitgarde. A terra da Mãe de Deus. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.p.123/124
141
MARIZ, Celso. Ibiapina, um apóstolo do Nordeste. João Pessoa: União, 1942.
124
“A Voz da religião no Cariri” doravante VRC.
125
A lei 2040 de 28 de setembro de 1871, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre” ou “Lei Rio Branco”,
criou a figura do “filho livre da mulher escrava”, isto é, as crianças “ingênuas”. LAMOUNIER, Maria
Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre. Campinas, Papirus, 1988,p.114.
66

será de grande alcance em favor da ideia da lenta emancipação da


escravidão do Brasil.126

A resposta e reação do Padre Ibiapina à proposta do Doutor Manoel da Fontes Xavier


d´Andrade aparece assim descrita:

(...) o Padre mestre Ibiapina recebeu alegre a proposta, e nesta ocasião


declarou que admitiria nas Casas de Caridade de sua instituição a todas
as meninas libertadas de cinco a nove anos de idade e mandou o mesmo
Padre Mestre tocar a música em sinal de regozijo.127

Reproduzido pelo jornal católico que o padre editava e circulava no sertão do Cariri,
o episódio dava a conhecer nas cidades ao pé da Chapada da Serra do Araripe que meninas
libertas doravante não seriam “perdidas”, comprovando a simpatia do Padre Ibiapina com
as causas abolicionistas. Naquela manhã de verão, na Paraíba, o padre e o juiz de órfãos
romperam alguns “protocolos”. O primeiro foi a solicitação do ingresso de moças órfãs,
já que a casa em seu estatuto previa a admissão de meninas. O segundo protocolo
quebrado foi a pública declaração da manumissão da pequena de oito anos. O nome da
menina não aparece no relato do jornal, mas nas Crônicas das Casas de Caridade
encontramos a seguinte passagem:

Frutos do mês de Jesus


(...) O Doutor Foseca pediu a palavra e disse que para abrilhantar o ato
e dar exemplo aos seus patrícios, de combinação com a sua mulher, dava
a liberdade a sua escravinha Hermelina e pedia a entrada da mesma na
casa. Meu pai, louvando ao senhor Doutor Fonseca pelos seus
sentimentos humanitários, recebeu a liberta e deu-lhe entrada na casa e
declarou que todas as escravinhas libertas que porventura pudesse haver
para o futuro, seriam recebidas em suas Casas de Caridade. 128 (grifo
meu)

Questiona-se aqui como foi o tratamento dado a Hermelina dentre as outras


meninas. No cotidiano de trabalho e oração a que se dedicavam as internas, ela teria tido
uma rotina semelhante a das suas companheiras?
O relato intitulado O Padre Mestre Ibiapina em Cajaseiras em 1869 - de vinte de
agosto ao último de setembro foi publicado em quatro partes 129 no VRC e trata da

126
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 20 de fevereiro de 1870
127
Idem p.04
128
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza,
Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006. p. 133.
129
Encontramos partes do artigo nas edições 41ª. (de 17 de outubro de 1869); 42ª. (de 24 e outubro de
1869) e 43ª (de 7 de novembro de 1849)
67

passagem do Padre Ibiapina naquela cidade do interior da Paraíba. A missão,


propriamente dita, acabou no último dia de agosto e mobilizou “numeroso auditório”. As
atividades e prédicas do clérigo continuaram até o final de setembro e observa-se um
destaque à questão da pacificação de conflitos e disputas políticas entre famílias.
Cabe aqui o destaque ao que está descrito no penúltimo dos trechos publicados.
Depois de explanar as conquistas e bênçãos vivenciadas naqueles dias, o autor inicia uma
reflexão, partindo de um fato observado durante o catecismo dos meninos:

Mas uma apreensão sombria e triste nos vinha assustar no gosto que
tínhamos presenciando o catecismo diário de mais de duzentos
meninos, alguns dos quais apanhados à carreira e trazidos ao círculo
como recrutas, é que dele eram excluídos os escravos.130

Os meninos do catecismo formavam uma audiência eclética. Ali estavam agregados


alguns que certamente preferiam suas atividades rotineiras e brincadeiras e que por isso
foram “apanhados à carreira”. Compreende-se que fazê-los ouvir os ensinamentos não
passava apenas pelo convencimento e sim por uma obrigação. Observar que daquele
grupo estavam “excluídos os escravos” causa um desconforto, afinal tratava-se de uma
necessidade imperativa levar os ensinamentos cristãos a todos os meninos.
O artigo passa da descrição ao comentário com um tom bastante incisivo, crítico e
duro. Seu objetivo é sensibilizar os proprietários de escravos, apelando para que reflitam
sobre o papel do cristão diante da escravidão:

Como se poderá salvar o homem ou mulher que tem escravos? Sobre


seus ombros somente e sem que mais ninguém o ajude, pesa a rigorosa
obrigação de os ensinar, e tornar bons Cristãos.
Ora é tratando por jumento e como o jumento, que esses senhores hão
de conseguir jamais ensinar e cristianizar o escravo?
Ora vejamos com que amor, com que heroica paciência ensinava o
irmão sobredito a todo aquele exército de meninos; e se fazia deles amar
e estimar: e se pode a nosso Divino Mestre agradar outro método de
doutrinar?
Todos os dias, em salas, nos jornais, se fala em libertar escravos; mas
nem uma palavra a respeito de ensinar-lhes a religião.
Oh que impiedade!!
Se a pronta emancipação dos escravos encontra embaraços e receios,
por ventura pode recear-se algum mal do pronto ensino da Doutrina
Cristã a eles?149

130
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 17 de outubro de novembro de 1869 N O.41.
149
A Voz da Religião no Cariri, 7 de novembro de 1869 N O.43. Grifo meu.
68

Escrito para enaltecer as missões de Ibiapina, o texto registra, indiretamente, os


espaços e suportes de circulação das mensagens abolicionistas no interior das províncias
no nordeste do Império. Pelos vistos, o tema da abolição era assunto nas casas e na rua,
ocupava a atenção em espaços públicos e privados. Seria, no entanto, um exagero tratar
AVC como um periódico abolicionista, pois não há uma exortação à liberdade e sim um
apelo à humanização de homens e mulheres escravizados. O desconhecimento do
Evangelho aproximava-os dos animais de tração usados como transporte de carga nos
sertões. A religião católica é descrita, portanto, como um agente civilizador e até mesmo
o apoio à missionação como um instrumento de salvação.
A propósito deste e daquele motivo, o autor passa à descrição de um projeto
educativo, não se sabe ao certo se baseado em ideias vindas do próprio Padre Ibiapina ou
de impressões pessoais. Como o conteúdo do periódico passava pela supervisão pessoal do
líder sobralense, infere-se que deveria concordar com o que aparecia escrito:

Porque não ordena já Escolas públicas ou particulares n'esse sentido,


medida única de volver felizes essas vítimas da avareza desumana, com
a brevidade que reclama a Salvação do Estado, e é capaz de a fazer em
continente: eis o pronto alivio a dar ao Brasil, antes que a tantas agudas
moléstias interiores e exteriores sucumbir (...) Não vemos no Evangelho
expressa determinação de libertar os escravos, mas de os ensinar e
levar ao dever de Cristãos não pode ser mais expressa O
TERMINANTE. Portanto sendo nós ímpios para com eles n'este ponto,
em vão empregará o Governo qual quer meio de salvar o Brasil: em vão
trabalhará o homem que não cumpre o que DEUS expressamente lhe
ordena.
Escolas públicas serão realizadas por meio de prêmios ao bom Mestre,
e particulares por meio de multas aos senhores cujos escravos não
fossem bem doutrinados.
Aliás seria isso mesmo um eficaz preparatório para a emancipação tão
reclamada e justa.
Podem alguns achar que queremos ensinar o Padre Nosso ao Vigário:
não é porque a ideia da condução proposta seja nova, mas parece-nos
que com o caráter religioso, profundamente religioso, que lhe
queremos, e sem o qual nada adianta, a ideia nossa tem o mérito de
novidade, com quanto dispusemos a gloria da parte dos humanos;
porque só a Jesus Cristo devemos louvar. 131

A evangelização dos escravizados desponta, portanto, como condição preparatória


para a emancipação civil. A qualidade do cidadão (e do escravo) depende do controle
moral inculcado pelo catolicismo. Ao advertir acerca da condução perfeita da família, o

131
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 7 de novembro de 1869 N o.43 (Grifo meu)
69

Dr. Antônio Joaquim de Couto Cartaxo, por ocasião da instalação da Santa Casa de
Caridade da Vila de Milagres, em 29 de junho de 1869, discursava:

Um espírito verdadeiramente pagão ruim em grande número de família


a respeito de seus escravos a quem consideram meras máquinas de
servir.
Piores neste ponto do que os próprios infiéis, conforme a observação de
S. Paulo, muitas senhoras tomam mais cuidado de seus vestidos, do que
de seus escravos, de cuja alma e corpo não se lembram.
Sem os instruírem na doutrina cristã, como cumpre a uma dona de casa,
não os corrigindo com a moderação da mãe, dando-lhes a comer do pior
e a vestir trapos exigindo sem justiça nem equidade serviços
desproporcionais à força humana, não poucas são as senhoras que
reputam o escravo como um bruto a quem não lavou a água do
baptismo.132

O longo discurso adverte sobre as virtudes necessárias para o pleno exercício


familiar do cristianismo e evidencia aspectos do tratamento dado aos escravizados, com
destaque para a falta de zelo das senhoras e para a excessiva exploração. Exorta acerca do
tratamento dado a cristãos, ao mencionar a água do batismo, ressaltando a indevida
crueldade de um cristão para com outro. Através do Batismo o indivíduo está purificado
do pecado original e é habilitado como cristão.
O tema da escravidão também aparece nos escritos relativos à militância
abolicionista de José Marrocos. Muito articulado e atualizado acerca das ações do
movimento abolicionista cearense, deixou evidente seu posicionamento em passagens
como a que segue abaixo:

EMANCIPAÇÕES. A generosa e cristã ideia de alforriar os escravos,


tendo sido abraçada em todo o vasto Império do Brasil, cada vez mais
toma vulto, e estende seu domino.
Não se pode calcular ao certo o número das alforrias realizadas em todas
as províncias do norte e do sul, mas sabe-se que ele é bem grande, e
excedeu muito a expectativa geral.
Só no Ceará contam-se 119 escravos alforriados a custa da província; e
um número mui superior a este tem sido manumitido por diversos
senhores.133

Neste sentido, o periódico insere-se numa questão que não era nova aos católicos
brasileiros: como lidar com a escravidão? A historiografia trata a questão levando em

132
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 1 de agosto de 1869 N o 31p.3 continuando em A Voz
da Religião no Cariri , 8 de agosto de 1869 No 32, p2.
133
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 2 de outubro de 1870 N o 75. p.2
70

conta as formas pelas quais se legitimou a escravidão, sem deixar que silenciem outras
vozes que se sensibilizaram com a condição dos escravizados.
Para Ronaldo Vainfas 134 , podem ser mapeadas quatro visões essenciais da
legitimidade da escravidão. A primeira toma por referência a escravidão como
consequência do pecado original, sendo o escravo um pecador e consequentemente
submetido à condição de penitente. Tal concepção relaciona-se à maldição sobre Caim,
filho de Noé. Foi Santo Agostinho o primeiro a relacionar a maldição contida no
Gênesis135 à condição dos escravos de seu tempo. Ao explorar a obra Economia Cristã
dos Senhores no Governo dos Escravos, de Jorge Benci136, Vainfas destaca a apropriação
que este autor faz de termo Caim/Canaã para a construção do ideal do “servo cristão”:
“escravo por natureza e fruto do pecado, isto é, africano/negro” 137 . A segunda visão
discutida pelo autor identifica os africanos como filhos de Coré (filhos do calvário),
articula-se à primeira visão, pois aquele pecado original pode ser superado pelo
padecimento, sendo a escravidão possibilidade de salvação. “E na guirlanda barroca de
Vieira, os etíopes (negros) são eleitos de Deus e feitos à semelhança de Cristo para salvar
a humanidade através do sacrifício”138. Uma terceira visão justifica a escravidão como
única possibilidade de gerar riquezas no Brasil. Tal percepção, encontrada no jesuíta
italiano Antonil (1649-1716), teria como base o entendimento do escravo como extensão
física de seu senhor. O fato é que, ao afirmar que os “escravos são as mãos e os pés dos
seus senhores”, toma-os como prolongamento daqueles, ao que Vainfas relaciona a
concepção aristotélica de propriedade. Compreendo que esta interpretação deixa uma
ambiguidade: pode ser percebida como crítica à inércia, à acomodação e aversão ao

134
VAINFAS. Ronaldo. Ideologia e escravidão: Os letrados e a sociedade escravista no Brasil Colonial Petrópolis:
Vozes 1986 Coleção História Brasileira/8
135
Em Gênesis 9:20-27 encontramos a seguinte narrativa: “Estes três foram os filhos de Noé; e destes se
povoou toda a terra/E começou Noé a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha/E bebeu do vinho, e
embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda/E viu Cão, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo
saber a ambos seus irmãos no lado de fora/Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre ambos
os seus ombros, e indo virados para trás, cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos estavam virados, de
maneira que não viram a nudez do seu pai/E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor
lhe fizera./E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos/E disse: Bendito seja o Senhor
Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo/Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã
por servo.”
136
Jorge Benci de Arimino (1650-1708). Jesuíta italiano e autor de obra “Economia Cristã dos Senhores
no Governo dos Escravos”, que inicialmente seria um sermão e foi enviado já como livro para Roma em
1700 e publicado no ano de 1705.
137
VAINFAS. Ronaldo. Ideologia e escravidão: Os letrados e a sociedade escravista no Brasil Colonial Petrópolis:
Vozes, 1986, p.96
138
Idem p. 97
71

trabalho braçal, atitude pertinente ao período. Finalmente, a escravidão fundamentada em


bases jurídico-cristãs. Tal elaboração partiu do padre e advogado português Manuel
Ribeiro da Rocha, autor da obra Etíope resgatado, Empenhado, Sustentado, Corrigido,
Instruído e Libertado. Ali, Rocha esboçou o paradigma da escravidão justa, se adequada
às instituições do direito civil e canônico.
Ao tratar do século XIX, relacionando abolicionismo e catolicismo, Camila
Pereira considerou que a Igreja Católica participou efetivamente do processo
emancipacionista brasileiro seguindo uma lógica própria:

Diferentemente do que foi consagrado pela historiografia, a elite


eclesiástica lutou pela liberdade de milhares de escravos, luta que teve
um início tímido na década de 1870 com a defesa da Lei do Ventre
Livre, e se intensificou na década de 1880. A ação desse grupo, porém,
possuía uma lógica própria que atendia aos seus interesses, que
respondia à sua posição privilegiada na ordem social da sociedade
brasileira que vivenciava um momento de transformações sociais.139

Já a pesquisa de Italo Domingos Santirocchi, mesmo não tendo como tema central
a questão da abolição, acaba por registrar diversas iniciativas que evidenciam o ânimo
abolicionista 140 . Um exemplo foi Dom Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão
(18411924), “formou-se na França entre os Padres das Missões de S. Vicente de Paulo e
seguiu o estado eclesiástico, professando na referida congregação em 15 de junho de
1867. Exerceu seu ministério em diversos pontos do Brasil, principalmente no Ceará e
Rio de Janeiro, sendo por algum tempo vice-reitor do Seminário de S. José na Corte”160.
Quando esteve em Goiás protagonizou “uma ação muito brilhante junto aos vigários sobre
a abolição total da escravatura, conseguindo que numerosos padres dessem alforria aos
cativos que possuíam, como homenagem ao jubileu de Leão XIII”141.

139
PEREIRA. Camila Mendonça. Abolição e Catolicismo: a participação da Igreja Católica na extinção
da escravidão no Brasil. Dissertação de mestrado em História. Universidade Federal Fluminense,
2011.p.147.
140
Antônio Maria Correia de Sá e Benevides, (1836-1896), Bispo de Mariana-MG “favoreceu a abolição
da escravidão, alforriando todos os escravos do Recolhimento de Macaúbas e fundando, em Mariana, em
24 de setembro de 1885, a Associação Marianense Redentora dos Cativos, para comprar a liberdade dos
escravos. Em favor deles, no ano sucessivo, escreveu uma circular (19 de outubro de 1887)”
SANTIROCCHI, Italo Domingos: Os Ultramontanos O Brasil e o regalismo do segundo império
(18401889). Pontifícia Universidade Gregoriana/Faculdade de História e Bens Culturais Da Igreja. Tese de
Doutorado. 2010.p.285 160 Ibid., p.289.
141
Ibid p.290.
72

Em 2 de fevereiro de 1862, o ponto culminante da festa de Senhora Santtana, na


cidade cearense de Sobral142 foi a libertação de uma menina. O autor sublima que era
costume tal iniciativa e que também nestas festas eram recolhidas doações para as órfãs
mais necessitadas da casa de Caridade daquele lugar, casa esta uma das legadas pelas
missões do Padre Ibiapina. A descrição do autor dá conta de que 24 zeladores cuidavam
da casa e que eram incumbidos de indicar as jovens às quais a doação seria destinada. A
descrição de Eduardo evidencia uma atividade constante e a permanência do ato de
alforriar uma criança.143

Ao analisar o jornal VRC, observamos que o veículo permitiu a expressão de posturas


antiescravagistas, porém não se caracteriza como uma publicação abolicionista. Seus
conteúdos diversos e solidamente filiados a comunicações oficiais da Igreja e a notícias
das atividades lideradas pelo Padre Ibiapina, aqui e ali deixam transparecer este viés,
como os episódios envolvendo o clérigo e fonte de águas termais.

1.5. Ibiapina e a Fonte Miraculosa

Registrados na VRC, os relatos de cura no Balneário de Caldas, localizado a 12


km da cidade de Barbalha, informam, sobre o perfil social dos agraciados, alguns deles
escravos, e a crescente importância do Padre Ibiapina como líder religioso. A descrição
de milagres e graças alcançadas oferecem também indícios acerca das condições de saúde
dos escravizados e descortinam o drama do trabalho servil no sertão diante de limitações
decorrentes das condições de saúde144. Incentivadas pelo Padre Ibiapina, as viagens às
fontes termais revelam o que podem ser considerados espaços de negociação no interior
do sistema escravista, que garantiam o trânsito de pessoas escravizadas, uma vez que ir e
vir até as águas medicinais demandava tempo, porque estavam situadas ao pé da Chapada
do Araripe em uma área de difícil acesso. Apontam, por outro lado, a ascendência do

142
Segundo a biblioteca digital do IBGE, A Vila Distinta e Real de Sobral foi criada em 1773. Em 1841 tornou-
se cidade. Está localizada a 230km da capital, Fortaleza.
143
O autor menciona notícia que teria sido publicada pelo Jornal Correio da Semana de SobraL-CE no
ano 1926 e não oferece maiores detalhes. Não foi possível localizar, nos arquivos consultados, esta
notícia em seu contexto original.
144
Trata da questão da saúde do escravizado o trabalho: FERREIRA Priscila d’Almeida. Memórias de
males e curas: escravidão, doenças e envelhecimento no Sertão da Bahia no século XIX. Tese de Doutorado
– Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. 2017.
73

mestre Ibiapina sobre os senhores da região, pois a autoridade do padre chancelava,


inclusive, a circulação dos escravos.
No VRC do dia 13 de dezembro de 1869, encontramos descrita a graça alcançada
por Luiza Pesinho, parda, casada, moradora da vila da Barbalha. Luiza, que era paralítica
desde os três anos de idade pediu para ser levada à presença do Padre Ibiapina. Em 20 de
junho de 1868, conseguiu encontrá-lo e rogou que lhe ensinasse um remédio para o seu
mal. O Padre respondeu que não era médico e que sua missão era a cura das almas. Então
Luiza rogou que lhe ensinasse o que quisesse, pois o que lhe mandasse fazer haveria de
curá-la. Naquele momento, o Padre Ibiapina indicou que por três dias tomasse banho na
fonte do Caldas ao nascer do sol. Assim Luiza procedeu e viu-se inteiramente curada. Seu
marido, que a acompanhava aos banhos, conduzindo-a sobre uma carga levada por
muares, recuperou-se de uma hérnia que o acometia. A notícia surgiu nas páginas alguns
meses depois do ocorrido. Mas o boca a boca já havia transformado as Fonte do Caldas
em “Fonte Miraculosa”:

A FONTE DO CALDAS - Um espírito reto não pode por certo duvidar


dos milagres que todos os dias se vão operando na nascença do Caldas.
A concorrência de tantas pessoas, de todas as classes, o de todos os
pontos é mais uma nota característica das maravilhas que DEUS opera
em abono do seu servo, o Padre Ibiapina. O número de pessoas que se
encontra no Caldas varia de 200 a 400 por dia, e às vezes a afluência é
tanta que se consome um dia inteiro a esperar que haja possibilidade de
tomar-se um banho.145

No documento das Crônicas das Casas de Caridade, encontramos a seguinte


descrição:

“A fonte do Caldas, que tem sido muito notável pelos milagres que Deus
tem obrado com suas águas, desde as missões de meu pai em 1869,
presentemente se acha rodeada de choupanazinhas de palhas verdes de
palmeiras que fazem os romeiros e os povos que vêm à missão, para se
ampararem da chuva, por que sombra tem em abundância”166

O trecho registra a constância na busca às águas que curam, também deixa ver
um pouco do cenário improvisado para abrigar os “romeiros”. Um relato que se soma

145
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 25 de dezembro de 1868 Ano 1 NO.4 p.2 166
Trecho presente no item “Itinerário do irmão Aurélio”, que descreve uma jornada no ano de 1869
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade.fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza,
Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006
74

ao do Caldas como indicação de lugar para curas é o açude construído durante uma
missão de Ibiapina na cidade de Milagres, ali banhos e unguentos feitos com a lama do
açude são descritos como milagrosos. 146 . Mas não bastava correr aos banhos e os
unguentos argilosos para receber a graça, afinal muitos voltavam sem o alívio de suas
dores. Há uma passagem que adverte acerca da conexão entre a prática dos banhos em
águas curativas e a rigorosa observação dos sacramentos:

“ É verdade que muitas pessoas tem voltado sem alteração, porque o


que é de Deus não se dá aos cães. Mas também é verdade que não há
notícia de alguém, confessando-se previamente e comungando, tomasse
banhos e não voltasse satisfeito e bendizendo a Deus”147 p112

O autor da advertência argumenta que os milagres eram graças alcançadas pelos


católicos em estado de plena comunhão com o corpo de Cristo e aliviados do peso dos
pecados pela confissão. Podemos inferir a propagação dos fatos ocorridos no Caldas pela
descrição da presença de Luiza, agraciada com cura, ao lado do padre Ibiapina, causando
admiração por seguir a pé do Crato a Barbalha e seguir entre 17 de agosto a 31 de
dezembro todas as missões, nesta ocasião “ mais de quarenta mil pessoas viram-na ,
interrogaram-na e admiraram-se”148
A divulgação das graças associadas à “Fonte Miraculosa” revela uma ampla
circulação de informações, pessoas das mais diversas localidades, de pequenos e isolados
distritos. Percebe-se aí que a oralidade difundiu largamente a “Fonte Miraculosa”. As
formas de usufruir das graças descrevem o uso da água engarrafada derramada sobre
feridas ou bebida; o uso do barro ainda úmido como unguento em ferimentos dos mais
diversos.

A FONTE MIRACULOSA
(...) Mais um curativo milagroso teve lugar na pessoa de uma escrava
do Senhor João do Espirito Sancto Corrreia.
Este pobre sofria a 3 anos de paralisia nas pernas e para dar algumas
passadas servia-se do cacete e de muleta…
Foi tomar banhos na nascente do Caldas, onde se demorou três dias, lá
deixou a muleta.

146
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade.fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza,
Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006 P.114 e p. 122
147
HOORNAERT, Eduardo. Crônicas das casas de Caridade.fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza,
Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Ceará, 2006 p. 112
148
Idem , p112
75

Ontem aqui veio ouvir missas, trazia o bordão, por que lhe faltava algum
equilíbrio nas pernas, que a tanto tempo não se exerciam.149

Aqui, conhecemos através do registro o nome do senhor, mas a mulher que sofreu
por três anos de uma moléstia que lhe paralisou as pernas, permanece anônima. O fato de
ter permanecido por três dias no Caldas denota que possivelmente houve um acordo para
que se ausentasse, certamente por mais de três dias, se pensarmos no tempo que se levava
para ir e vir, especialmente alguém com saúde precária a percorrer as íngremes trilhas do
sopé da Chapada do Araripe. Mesmo acometida de paralisia, talvez esta mulher ainda
prestasse serviços na casa do seu senhor. A diversidade de formas de aproveitamento do
trabalho feminino é descrita por Eurípedes Funes ao esclarecer que “as mulheres escravas
eram costureiras, rendeiras, fiandeiras”150, além da possibilidade de sazonalmente serem
aproveitadas na labuta da lavoura em épocas de colheita.
Outro registro repete o destaque ao nome do senhor e ausência do nome da
escravizada: “uma escrava do Sr. Capª. João Victorino Gomes, anêmica e opilada,
apresentava todos os sintomas de uma hepatite aguda, tomou banhos e hoje confessa estar
boa”151. Um outro depoimento nos revela que a ida à “Fonte Miraculosa” podia ser feita
conjuntamente, ou seja, senhores e escravizados se deslocavam em grupo em busca dos
alívios:

Francisco Casimiro de Almeida, morador de Ingaseira, decidira que se acha


bom dos ataques nervosos que sofria. (...) [o] mesmo Senhor participa que sua
senhora Leopoldina se achava perfeitamente restabelecida de um reumatismo.
Que sua sobrinha Agueda voltava boa dos incômodos que sofria na vista. Que
seu escravo Francisco se julga curado e bom da asma, que o incomodava (...)
resultados da benéfica influência das águas miraculosas do Caldas. 152

Aqui ficou registrado o nome de Francisco. Ele fez parte do grupo que reunia o casal
Almeida e sua sobrinha. Todos se dirigiram ao Caldas em busca das graças. O relato
registrado no jornal nos permite questionar se Francisco teria amparado e servido a seus
senhores enquanto o grupo se deslocava em direção à famosa fonte e se lá chegando
aproveitou a chance de banhar-se para livrar-se da asma. Seja como for, entrou para o

149
A Voz da Religião no Cariri, 25 de dezembro de 1868, N O4
150
FUNES, E. A. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone (Org.). Uma nova história do Ceará, 3. ed. Fortaleza:
Edições Demócrito Rocha, 2004, p.113.
151
Voz da Religião no Cariri, 24 de janeiro de 1869 NO 8. Obs: está impresso errado o cabeçalho desta edição, é o
ano de 1869 e consta 1868.
152
A Voz da Religião no Cariri, 11 de novembro de 1869, NO. 44
174
Idem
76

computo dos agraciados. O jornal editado por José Marrocos, primo do Padre Cícero, não
fazia distinção entre os beneficiados. Outra questão que os relatos omitem, mas cabe
colocar diz respeito à organização dos grupos que adentravam a fonte. Imaginar senhores,
escravizados, crianças, idosos, mocinhas e doentes graves revezando-se num banho é
curioso. Quais teriam sido as regras engendradas pelos pudores e pelas hierarquias
vigentes?
O número dos romeiros, que ficam, é bem numeroso, e testemunha do que viu
e ouviu não pode deixar de ser crente (...)
Realizando-se pois mais curativos, peço, Sr. Redactor, que se me permita
registrá-los na imprensa, para deixar ao menos uma memória do muito que se
deve ao Venerável Ibiapina, que legou a pobre humanidade sofredora, a
preciosa fonte de saúde. 174 Caldas 30 de Agosto 1869.

O título de “Venerável” atribuído ao Padre Ibiapina é atribuído aos ícones de culto,


cuja santidade é reconhecida na região de onde viveu. O uso é incomum para referir-se a
uma pessoa ainda viva, como é o caso do tratamento dado a o padre Ibiapina por seu
contemporâneo.
Aqui segue a transcrição de uma lista de agradecimentos. Agradecer ao doador
através do jornal era uma forma de reconhecimento público. A lista completa contém os
nomes de dez mulheres e quarenta e três homens, dentre os quais Luis Escravo:

Em nome da Santa Casa de Caridade da Cidade do Crato pelas esmolas de gado


que no districto de Santa Anna acabam de dar Exm.as e Exmos (...) (...) “Luis
Escravo”.
(...)agradeço de todo coração e imploro a benção dos Ceos em retribuição o
regente e capelão Pe. Henrique José Cavalcante.
Crato Largo da Matriz Typ do internato: imp por Deusdedit Joaquim Marrocos
Telles.153

Figurar no rol dos colaboradores era uma expressiva forma de reconhecimento


público. Considera-se o registro nominal como distinção aplicada ao caso das doações em
espécie. Apresentar-se como doador usando “Escravo” no lugar do sobrenome leva a crer
que se tratava efetivamente de um escravizado que realizou uma doação naquela ocasião.
Ao buscarem a cura nas águas do Caldas homens e mulheres escravizados buscavam
alívio para o sofrimento, manifestavam sua fé e negociaram um espaço para si no meio
das pressões e vigilâncias que os cercavam. Esta busca não deve ser desconsiderada no
elenco das estratégias de sobrevivência empreendidas por aqueles sujeitos:

153
BNDigitalA Voz da Religião no Cariri, 20 de junho 1869 No.26
77

Trata-se de perceber que existem outras estratégias além das resistências


abertas:fuga, rebelião, suicído, às quais recorriam, não objetivando uma
acomodação ao regime escravista, mas para superar as adversidades,
que lhes possibilitassem, mais do que uma adaptação, uma mudança em
sua condição social.154
Nos deparamos com mais um exemplo de relato de manumissão. Neste caso,
observamos o destaque dado ao fato de serem libertas quatro pessoas jovens e ainda muito
aptas para o trabalho. Ao ressaltar tais características o relato empresta mais grandeza ao
ato de “caridade evangélica” da senhora Joanna, residente em Missão Velha. A divulgação
do fato possui um tom exemplar.

MANUMISSÃO.
Mas um ato de caridade evangélica em favor da escravatura.
A Exma. Srª. D. Joanna Palcheria Mascarenhas natural e residente na freguesia
do São José de Missão Velha acaba de dar carta de liberdade a quatro escravos
únicos, que possuía, segundo nos afirmam.
Os libertados eram aptos para todo serviço e na idade a mais florescente, sendo
uma escrava de nome – Joanna, 30 anos, Raymundo, 15, Maria, 12, e João 7
anos.
Imitassem todos estes belos exemplos, e a escravidão desapareceria de todo o
Brasil em menos de um ano.155

Não fica claro se há parentesco entre os envolvidos, pelas idades expressas no


documento talvez Joanna fosse mãe e Raymundo, Maria e João seus filhos, mas isto não
é declarado. Ao tratar a manumissão como um exemplo a ser imitado, o texto inspira no
leitor um horizonte possível: propõe imaginar um Brasil sem escravos, devendo para tanto
apenar seguir imitando o exemplo.
Outro aspecto que as fontes possibilitam observar é a participação ativa da família
Marrocos, tanto no trabalho de redação quanto nas oficinas tipográficas, ali o irmão de
José Marrocos chamado Deusdedt Joaquim Marrocos atuou assiduamente.
A análise da Voz do Cariri durante os quatro anos de existência permite que se
divida seus relatos envolvendo a atuação do Padre Ibiapina e os escravizados em dois
grupos: aqueles que aparecem na publicação como um reforço do papel piedoso e cristão
do “emancipador”, partidário das ideias de Ibiapina. Nestes casos, identifica-se o nome
do ex-proprietário e há considerações que reforçam um caráter generoso e cristão da
iniciativa. Outro tipo de relato associa a manumissão diretamente às Casas de Caridade,
reforçando o papel destas instituições, conferindo assim um novo sentido à iniciativa do

154
FUNES, E. A. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone (Org.). Uma nova história do Ceará, 3.
ed.Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004, p..117
155
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 23 de julho de 1870 No 67, p.4
78

Padre Ibiapina: acolher e instruir na fé as meninas que saíam do regime da escravidão. Os


questionamentos suscitados por estes episódios surgem quando se pensa no uso da
generosidade como elemento de distinção, associada à manutenção da hierarquia entre
senhor e escravizado. Outra interrogação surge acerca de como viviam e eram acolhidas
as meninas ex-escravizadas nas Casas de Caridade.
Em artigos assinados ou nas transcrições de discursos impressas nas páginas do
jornal VRC, foi possível conhecer uma postura que apelava para o tratamento que um
cristão deveria ter com seus escravos e chegava a questionar a necessidade de se manter
escravizados. José Marrocos foi o autor de muitas passagens que expressam
posicionamento claramente abolicionista no periódico.
No Ceará da segunda metade do século XIX, observamos aspectos locais da forte
influência do movimento ultramontano no catolicismo brasileiro. Ao pregar e realizar
uma aproximação do catolicismo brasileiro com as diretrizes provenientes de Roma, a
então jovem Diocese cearense atuou na conquista de mais autonomia do poder espiritual
perante as autoridades imperiais e se impôs ao poder dos leigos reunidos nas irmandades
ou congregados em pelas das missões autônimas. O Seminário Episcopal (Seminário da
Prainha, em Fortaleza), o Seminário São José (Seminarinho, no Crato) e o Colégio da
Imaculada Conceição (em Fortaleza) efetivavam o investimento na formação dos
sacerdotes e na instrução religiosa dos fiéis. Num aspecto mais amplo, as iniciativas
seguiam no sentido de adequação do catolicismo brasileiro à Igreja Tridentina (preceitos
do Concílio de Trento) que valorizava os sacramentos e tentava substituir as devoções dos
santos tradicionais pelas devoções a Jesus Cristo e à Virgem Maria. Neste contexto,
Martha Abreu descreve a consolidação do ultramontanismo:

À medida que se aproximava o final do século XIX, suas posições no


seio da elite eclesiástica tornaram-se dominantes e cada vez mais
radicais, acompanhando o movimento católico antiliberal centralizado
em Roma, principalmente após a publicação da encíclica Quanta Cura
e do compêndio Sylabus (catálogo dos erros modernos), em 1864.
Ambos representam a defesa da Igreja contra as ideologias modernas,
como o racionalismo, o naturalismo e o próprio liberalismo156.

Entre as “ideologias modernas” a serem combatidas estavam a separação da Igreja


e o Estado e as teorias liberais: o positivismo, o racionalismo, o cientificismo, o

156
ABREU, Martha. “Romanização”. In Dicionário do Brasil Imperial. VAINFAS, Ronaldo (org.). Rio
de Janeiro: Objetiva, 2002.p.660-661
79

socialismo, a maçonaria e o protestantismo. Tal ideal apareceu claramente exposto nas


páginas do Jornal A voz da Religião, mas observamos uma tensão entre as prerrogativas
da atuação e do pensamento ultramontanos e a realização das obras de Ibiapina. A atuação
deste clérigo foi muito próxima da realidade sertaneja, respondeu a questões concretas e
urgentes acerca das condições de privação ou de limitação das gentes do sertão. Havia o
desejo expresso nos editoriais, de autoria do próprio Ibiapina157, de seguir uma orientação
firme contra os males da modernidade. Sendo que este ideal ultramontano se deparou com
uma efervescente prática religiosa que elegia lugares santos, águas sagradas e realizava
romarias.
Na entusiasmada massa de fiéis mobilizados em torno de Ibiapina, vemos as
diversas expressões da sociedade do sertão do Oitocentos. Não era improvisada ou
ingênua a condução daqueles fiéis. Documentos como o Estatuto das Casas de Caridade,
as constantes correspondências para o controle das atividades de manutenção e sustento
das missões, bem como o estabelecimento de uma hierarquia interna daquelas Casas
revelam a articulação e o pragmatismo do líder que anos antes atuou como ativo Deputado
Geral, juiz e advogado.
As críticas à condição do escravizado aparecem nas páginas do jornal, em grande
medida, como um apelo ao que se denominou “caridade evangélica em favor da
escravatura” ou a censura aos abusos dos açoites e à falta de instrução cristã para o
escravizado. Não se tratava de um viés efetivamente abolicionista.
Quem mais faz convergir ao abolicionismo os conteúdos do VRC foi seu
editorchefe José Marrocos, cuja biografia foi marcada por uma atuação na Sociedade
Libertadora Cearense no final da década de 1870. Seu perfil e os conteúdos presentes nas
páginas do VRC contrastam com o fato das cidades do Cariri, muitas delas sedes de Casas
de Caridade de Ibiapina, figurarem como as últimas no rol das cidades livres.
O fato de o Ceará ter sido a primeira Província a declarar extinta a escravidão,
episódio ocorrido em 25 de março de 1884, guardou contradições e peculiaridades que
merecem detida observação e problematização.

157
BNDigital Jornal A Voz da Religião no Cariri, 20 de dezembro de 1868, no.3
80

CAPÍTULO 2- A “TERRA DA LUZ” E SUAS SOMBRAS: ABOLIÇÃO NO


CEARÁ

Nossas armas são brancas e puras


Tem no punho a palavra _Perdão
Entre as dobras do nosso estandarte
Aninhou-se uma deusa_ A razão158

Trecho do Hino da Sociedade Cearense Libertadora,


uma composição de Frederico Severo

Em maio de 1878, um jovem chamado José, nascido livre, natural da cidade de


Saboeiro 159 , foi vendido como escravo ao coronel Antônio Luiz Alves Pequeno na
cidade do Crato160. O vendedor, Joaquim Ferreira de Alencar, ganhou 350$000 no ilícito
negócio. Para dar ares de legalidade à vil transação interveio João Tavares do Espírito
Santo Júnior, que à época ocupava o cargo de primeiro tabelião interino de Saboeiro e
adulterou a documentação de José. O caso veio à tona e ambos os envolvidos na
falsificação passaram a responder pelo crime. Três anos depois, já em 1881, a lentidão
da justiça em dar solução ao caso foi denunciada e estampou as páginas do jornal
Libertador161 deixando clara a influência do comprador, o Coronel cratense:

158
“Hino à Sociedade Cearense Libertadora. Composto e oferecido com a respectiva música por Frederico
Severo, para ser cantado na tarde de 25 de março por ocasião da libertação dos escravos pela mesma
sociedade.” Libertador 24 de março de 1881, No 7. p.4
159
. Saboeiro fica no sertão dos Inhamuns, no Ceará, e está inserida na paisagem característica do sertão semiárido.
As cidades de Saboeiro e Crato distam aproximadamente 142 Km
160
Um apurado estudo sobre escravização ilegal envolvendo uma mulher chamada Hypolita, que transitou
entre o Crato-CE e Exu-PE, foi desenvolvido por PEDROZA, Antonia Márcia Nogueira. Desventuras de
Hypolita: luta contra a escravidão ilegal no sertão (Crato e Exu, século XIX), RN : EDUFRN, 2018.
(Coleção História e espaços)
161
Órgão da Sociedade Cearense Libertadora criado em 1881, publicação quinzenal que circulou até o ano de
1892.
81

E este crime jaz impune, tem sido denunciado diversas vezes ao chefe
de polícia e ao presidente do Ceará.
Mas nas repartições públicas há uma pedra tumular que se bota em cima
de certos papéis....
E se hoje revivemos a questão, é porque o direito do infeliz não
prescreve e há uma pedra de toque que verifica o caráter oficial.162

Ao utilizar a expressão “pedra de toque”163, o autor da denúncia deixa claro que há


uma forma de validar, testar a veracidade dos fatos que colocaram José naquela situação.
Já as “repartições públicas”, por negligentes ou manipuladas, lacram com “pedra tumular”
a questão que continuaria em seu “jazigo” burocrático, perpetuando o esquecimento, não
fosse a denúncia do jornal.
Como o fato aparece relatado três anos depois do ocorrido, o desfecho do drama de
José é narrado com detalhes, o que torna possível saber que o vendedor Joaquim Ferreira
de Alencar faleceu antes de pagar pelo seu crime. João Tavares do Espírito Santo Júnior,
o falsificador de documentos, fugiu para o Maranhão e tentou espalhar a notícia de que
teria morrido, visando assim livrar-se do processo e até tentou receber um pecúlio com
mais esta falsificação. Ao Coronel restaram as palavras duras nas páginas do jornal, a
pecha de “comerciante negreiro do Crato”164, e nada mais pagou pelo erro.
Um aspecto que se deve levar em conta é a intensa mestiçagem não limitava o
reconhecimento de um indivíduo escravo apenas pela cor da pele. A presença de mestiços
e negros livres não era rara no Ceará e é descrita por Raimundo de Souza como um dado
significativo desde o século XVIII165. Ou seja, que nem todo mestiço ou negro em terras
cearenses era escravo, mas a circulação destas pessoas em momentos mais críticos como
os deslocamentos por conta de graves estiagens as tornava vulneráveis à ação
inescrupulosa de falsários. Este mapa da população, baseado em dados coletados pelo
governo da província deixam evidente o Crato como uma cidade mestiça, os pardos são a
maioria da população. O número de homens e mulheres pretos e pardos é muito superior
ao de homens e mulheres escravizados. Considerando o dado numérico expresso no

162
BNDigital Jornal Libertador 3 de março de 1881 No.5.p.3/4
163
A expressão remete ao uso de material lítico para testar a pureza de ligas, em especial o uso da pedra de
jade para testar a qualidade do ouro.
164
Libertador 3 de março de 1881 No.5.p.3/4
165
SOUZA. Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha Riqueza é Fruto do meu Trabalho”: negros de
cabedais no Sertão do Acaraú (1709-1822), Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,
2015.223f
82

documento apresentado a seguir, calculamos que 7,1% do total da população no Crato,


eram escravizados.
CRATO 1860

População Homens Pelas Brancos 2590 Total Total dos


Livre raças Pardos 5151 8412 Livres
Pretos 621 18184
Índios 50
Estados Solteiros 5846
Casados 2566
Mulheres Pelas Brancos 2187 Total
raças Pardos 6850 9772
Pretos 703
Índios 32
Estados Solteiros 7286
Casados 2486
População Homens Solteiros 495 Total Total de
Escrava Casados 231 726 Escravos

Mulheres Solteiros 479 Total 1391

Casados 191 665

Tabela 1 construída a partir do documento “Mappa estatístico da Provícia do Ceará-Comprehendendo o censo da


população livre e escrava por comarcas, segundo os arrolamentos dos Delegados, Subdelegados, Camarcas, juízes de
Paz e parochos de diversos anos, e augmentados (os do censo da população) até 1860”. Publicado no Relatório
apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Ceará pelo excellentissimo senhor Dr. José Bento da Cunha
Figueiredo Junior, por occasião da installação da mesma Assembléa no dia 1º de outubro de 1862.

O caso das vendas ilegais se dá num contexto de deslocamento, sem os laços de


parentesco ou compadrio, ficavam vulneráveis. Pessoas vendidas como escravas
aparecem em outras denúncias foram o tema central daquela edição do Libertador em 3
de março de 1881188. Ali sabemos da cearense Francisca, natural de Telha (atualmente
Iguatu), mulher solteira e livre, que se perdeu da família ao migrar para o litoral em busca
de socorros por conta de uma grave seca no ano de 1845. Sem referências que
comprovassem sua origem foi vendida como escrava no Maranhão, recebeu o nome de
Eusébia e ali viveu e teve sete filhos, também reduzidos à escravidão. Francisca esteve
sob o julgo da família do senador maranhense Antônio Marcelino Nunes Gonçalves até o
ano de 1880, quando foi reconhecida por seu irmão que iniciou longa jornada para provar
a origem da irmã e conseguir a liberdade dos sete sobrinhos189. O drama de Francisca
revela a instabilidade à qual estavam submetidas as pessoas, especialmente no caótico
cenário das extensas migrações feitas à pé em períodos de rígida estiagem, a jornada em
83

188
BNDigital Jornal Libertador, 3 de março de 1881, Ano I, no. 5. Nesta edição encontramos: Marcos, livre,
vendido por Clementino de Holanda Lima em 1876” p.4; “ Fausta, livre, dada em pagamento de uma dívida”
p.2 e “Benedicto, declarado livre por seu senhor em leito de morte, e depois vendido pelos herdeiros” p.2
188
Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara (1812-1868), foi um magistrado e político
brasileiro que exerceu o cargo de Ministro da Justiça entre os anos de 1848 e 1852. 189 BNDigital Jornal
Libertador em 3 de março de 1881, Ano I, no. 5, p3
busca de amparo possibilitava a perda de documentos, a separação de parentes e outras
circunstancias que podiam facilitar a ação dos que tinham a intenção de tomar pessoas
por escravas e vendê-las.
Mesmo o drama de Francisca tendo começado em 1845, evidencia uma tendência
que se fortalece com o aquecimento do tráfico interprovincial. No caso de José, ocorrido
em 1878 vigorava a Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, que ficou conhecida por Lei
Eusébio de Queiros166. Estabelecia aquele dispositivo a apreensão de embarcações que
transportassem africanos ou que, mesmo sem a presença destes, tivessem características
que evidenciassem terem sido utilizadas para este fim. Todos os envolvidos no transporte
ilegal seriam punidos desde o dono, passando pelo o “capitão ou mestre, o piloto e o
contramestre da embarcação, e o sobrecarga”167 eram considerados cúmplices, inclusive
“os que coadjuvarem o desembarque de escravos no território brasileiro”.

Meia Sisa de Escravo Imposos sobe a saída de escravos


1852 1853 1854 1855 1856 1857 1858 1859 1860 1861
Tabela2- movimento do comércio interno de escravos na província do Ceará entre os anos 1852 e 1861

166
Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara (1812-1868), foi um magistrado e político brasileiro que
exerceu o cargo de Ministro da Justiça entre os anos de 1848 e 1852.
167
Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850-Estabelece medidas para a repressão do trafico de africanos neste
Império.(disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM581.htm) acesso às 22:00 do dia
05/07/2020
84

A tabela acima registra o movimento (em Réis) do pagamento sobre o comércio


interno de indivíduos escravizados na província do Ceará, sendo evidente o volume
coletado pelo imposto sobre “saída de escravos”.
Os posicionamentos em prol do fim do “infame comércio” não estavam assentados
em uma perspectiva humanitária e nem benevolente com relação aos sujeitos feitos
escravos 168. O estudo de Jaime Rodrigues apresentou argumentos acerca do temor da
massiva presença de africanos no Brasil, tanto pelo receio de revoltas ao modo do que
aconteceu no Haiti em 1791, como também era questionada pelos críticos ao tráfico o que
chamavam de “corrupção dos costumes” provocada pela presença africana.
Na prática a proibição do tráfico internacional acabou por incrementar outra
transação vil, o tráfico interprovincial. O Sudeste, especialmente a zona cafeeira, era uma
zona que demandava novos braços para a labuta nos campos. Estabeleceu-se uma rota que
vai das províncias do Norte (Bahia, Pernambuco, Ceará) ao Rio de Janeiro e São Paulo.
Enquanto os preços aumentavam torva-se mais lucrativo para o negreiro que efetivava o
transporte e a venda. Este quadro de exploração e a articulação de uma rede nacional do
tráfico entre províncias torna possível questionar acerca do destino daqueles que em
grande número partiam do Ceará.

A província nordestina do Ceará provavelmente exportou uma


porcentagem de escravos maior do que qualquer outra província. Nos
primeiros anos do tráfico interprovincial o volume de exportações de
escravos do Ceará foi relativamente pequeno comparado com o volume
desse mesmo tráfico na década de 1870.169

O personagem denunciado como “negreiro” na notícia que abriu este item é um


personagem já citado neste trabalho. O Coronel José Alves Pequeno foi o mantenedor do
padre Cícero em seus tempos no Seminário da Prainha em Fortaleza a partir de 1865.
Como descrito no capítulo anterior, as despesas com a formação do jovem Cícero seriam
demasiadas depois da morte de seu pai, provedor da casa. Tais despesas foram assumidas
pelo Coronel cujos laços com a família Romão Batista eram de longa data, este mesmo
Coronel Alves Pequeno era o padrinho de crisma de Cícero.

168
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o
Brasil (1800-1850). Campinas, Editora da UNICAMP, 2000.
169
CONRAD. Robert Edgar. Tumbeiros- O tráfico escravista para o Brasil Editora Brasiliense s.a. São
Paulo,1885.p.199.
85

Em mais um episódio o coronel deu exemplo de “bom católico”. No início dos


trabalhos para a instalação do seminário episcopal no Crato, foi exatamente sua residência
que hospedou o Bispo Dom Antônio Luís (1874) quando do início das obras da sede do
Seminário Menor São José. O fato é que o coronel Antônio Luiz Alves Pequeno consta
na lista de grandes benfeitores para a obra, tanto por acolher o bispo quanto por realizar
doações vultosas. Este personagem já figurava como benemérito quando foi denunciado
como comprador ilegal de um homem livre vendido como escravo. Nos episódios aqui
elencados duas narrativas convergem na trajetória deste mesmo indivíduo, um sujeito que
gozava de poder político, com larga esfera de influência dentro da instituição católica e
expressiva riqueza acumulada170. Esta convergência revela o complexo tecido social no
qual um cristão católico, reconhecido como benfeitor, ao mesmo tempo estava envolto
em negócios inescrupulosos171 .
Os municípios do Cariri, com destaque para Crato, Missão Velha, Barbalha e
Milagres figuram entre os últimos a aderirem ao movimento emancipacionista que
cresceu no Ceará desde o ano de 1883. Tal movimento marcou a Abolição da escravidão
na Província do Ceará. As contradições e tensões que permeiam o movimento permitem
perceber uma sociedade na qual os ideais de liberdade conviviam com padrões
hierárquicos reforçados pelo poder político e pela concentração de terras e foi neste
cenário que atuou o Libertador.
O tema da escravidão não era exclusividade do jornal da Sociedade Cearense
Libertadora. Foi tratado em outros periódicos, mas apenas alguns temas específicos
geravam interesse, como descreve Eduardo Campos172:

170
Sobre os bens do Coronel Alves Pequeno: “Um dos mais representativos membros da classe senhorial
no Cariri foi o Coronel Antonio Luis Alves Pequeno. Político, juiz, arrendatário do Mercado Municipal por
quase quatro décadas, proprietário de terras em várias localidades - onde criava gado e tinha lavouras, loja
comercial, com o maior patrimônio encontrado nos inventários utilizados nessa pesquisa”. REIS JUNIOR,
Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra, trabalho e conflitos na segunda
metade do século XIX / Tese de Doutorado em História Social, Universidade Federal do Ceará- UFC,2014.
302f. p.149
171
Uma breve descrição dos delitos do Coronel Alves Pequeno: “Resumindo, as principais irregularidades
seriam que, Antonio Luis Alves Pequeno mandara construir um açude no principal rio da Cidade, obra que
não teria boa qualidade, além de utilizar cal comprada em seu armazém. Segundo os vereadores, ao final,
a obra não teve como ser utilizada. Além disso, o presidente da comissão de socorros teria comprado com
recursos públicos, estopa em seu próprio armazém e mandado entregar aos pobres, para que assim,
carregassem terra para a obra do Cemitério público. Por fim, o serviço prestado pelos migrantes estaria
sendo pago com rapaduras de péssima qualidade, enquanto que, as comissões de outras cidades faziam o
pagamento em dinheiro”. REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense
:terra, trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX / Tese de Doutorado em História Social,
Universidade Federal do Ceará- UFC,2014. 302f.p.283
172
CAMPOS, Eduardo. Imprensa abolicionista, igreja, escravos e senhores: estudos. Fortaleza: BNB, 1984. p.23
86

Faça-se observação, que já vem a tempo e de inteira justiça à atuação


do que se poderá entender por imprensa, a favor da criatura humana,
principalmente quando os pressionados ou violentados eram pessoas
livres que interesses mercenários pretendiam reduzir à condição de
cativos, ou escravos cujos sofrimentos ultrapassávamos limites da
tolerância”

Pessoas livres escravizadas pela ganância ou o excesso de castigos a causar grave


sofrimento mereciam atenção especial. Estes destaques nas páginas de jornais
nãoabolicionistas revelam que a condição escrava em si, o fato de um ser humano ser
objeto de propriedade de outro ser humano não fazia convergir a atenção ou crítica.
O Libertador foi um vigoroso agente da causa abolicionista, seu conteúdo foi
dirigido nos primeiros anos a divulgar esta bandeira, denunciar abusos de senhores e
comerciantes e tecer um cenário de debates políticos de temas locais e nacionais.

Figura 6. Detalhe da primeira página do jornal Libertador

Nos primeiros números da publicação do Libertador e ao longo do ano de 1881,


encontramos na primeira página, logo abaixo da marca logo a seguinte citação: “ama a
teu próximo como a ti mesmo-Jesus”.173 A epígrafe se repete até o dia 26 de agosto de
1881. Mesmo sem contar em seu quadro diretor com figuras que representassem a alguma

173
A citação do jornal Libertador refere-se ao versículo 39 do capítulo 22 do livro de Mateus da Bíblia
Sagrada, ali lemos: “E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo”. Esta passagem
narra que Jesus, ao ser questionado por fariseus, estudiosos da Lei Judaica, sobre qual seria o maior
mandamento, responde que é amar a Deus. Em seguida fala do segundo mandamento, que é o amar ao
próximo. Textualmente, entre os versículos 36 e 39 do capítulo 22 de Mateus: "Mestre, qual é o maior
mandamento da Lei? "/Respondeu Jesus: " ‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua
alma e de todo o seu entendimento’/Este é o primeiro e maior mandamento/E o segundo é semelhante a
ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’.
87

instituição religiosa, o apelo aos valores cristãos, com destaque para o sentimento de
empatia é sugerido pelo trecho em questão.
A primeira edição que não traz a epígrafe “ama a teu próximo como a ti mesmo” é
a do dia 28 de setembro de 1881. Uma edição que traz homenagem à lei do Ventre Livre,
nesta edição celebrou-se também o apoio dos tipógrafos, grupo expressivo na dinâmica
política da Província. 46 trabalhadores de diversos jornais assinam notas de apoio à
Sociedade Libertadora e à causa da abolição. Seus nomes figuram abaixo do nome dos
respectivos veículos: Cearense, Gazeta do Norte, Constituição, Pedro II, Mequetrefe,
Jornal do Commercio e Equador.
A homenagem aos dez anos da Lei do Ventre Livre, em seu texto de abertura
menciona “Cristo”, mas não se trata de um apelo aos sentimentos cristãos como ocorria
com epígrafe citada anteriormente. Agora o Cristo foi retomado como símbolo de
redenção, evocando um Novo País, uma possibilidade de futuro, uma alegoria teleológica.

28 de setembro de 1881é a queda de uma Bastilha que nos oprimia; é a


palavra genesíaca deste caos de horrores, que se chamava –ventre
escravo; É o país, novo Christo, chamando a si, ao desprender-se da
placenta, os filhos das escrava, e imprimindo-lhe na fonte o beijo vital
da liberdade.
Hoje surge esperançoso e cheio de almo fulgor o dia 28 de setembro de
1881.
Nós o saudamos, como o precursor de grandes movimentos, como um
dos lampadários da humanidade, e como o prólogo do poema da
redenção dos cativos.174

As edições do Libertador disponíveis no acervo digital da Biblioteca Nacional vão


de 1881 a 1892, quando deixa de existir a publicação. Não é uma série contínua, faltam
muitos exemplares o que impossibilita tratar especificamente da regularidade da
publicação. Por alguns meses o periódico de fato não foi impresso. Um dos períodos de
suspensão da publicação pode ser identificado após o rompimento com a primeira oficina
gráfica utilizada pelo Libertador. Tratava-se de uma oficina paga com dificuldade e ao
que transparece através do relato abaixo, relacionada a forças opositoras à causa
abolicionista:

Reaparecendo hoje na imprensa o Libertador volve suas vistas ao


passado, e, como o peregrino de volta à terra natal, passa em revista os
acontecimentos de sua vida.

174
O libertador 28 de setembro de 1881, p.1/ edição no 19
88

Fazendo uma estreia jornalística no 1º. De janeiro de 1881, continuou


sua publicação regularmente até 26 de agosto do mesmo ano. Mas
inquilino na casa do mercenário, comprara muito caro o seu foro de
cidadão na imprensa que também editava o expediente do governo.
Contando assim 18 números apenas, despendido tinha já de sobra
quanto lhe bastava para a aquisição do melhor prelo manual. Tantos
sacrifícios que lhe deviam valer sua independência, não podiam sequer
ao menos garantir-lhe o direito de liberdade de imprensa. (...) O jornal
que ontem não tinha onde reclinar a cabeça, dispõe hoje da mais
completa oficina tipográfica da província
Ressurgindo, pois à publicidade o Libertador já tem todas condições de
vida própria, e para viver, não precisa matar ninguém.175

O relato recompõe aspectos dos embates para tornar o Libertador viável, de fato
nesta nova fase surge com design mais limpo e atraente. As aventuras para fazer o jornal
circular revelam uma significativa arena da mobilização anti-escravista, mas este
engajamento arrefeceu depois da abolição cearense (1884), permanecendo ainda presente
até a Lei áurea.
As mudanças no subtítulo do Libertador176, pequeno trecho descritivo que aparece
na primeira página, evidenciam a dinâmica dos acontecimentos políticos e o destino do
grupo. Depois de anos convergindo em torno da causa abolicionista, se dispersa em
correntes políticas diversas.
A trama social do pós-abolição está intercalada por relações tensas, contraditórias e
desiguais. O lugar das elites não foi erodido pela liberdade conquistada por homens e
mulheres, ao contrário, as sólidas bases nas quais os poderosos de apoiavam foram
verdadeiros diques de contenção dos fluxos possibilitados pela conquista da liberdade,
uma estrada palmilhada até nossos dias. “a pungente realidade de uma prática capaz de
suscitar esperanças e ilusões nos homens e mulheres que palmilharam um caminho minado de
armadilhas, o da liberdade177
O raiar da possibilidade da abolição como uma onda que varreria a servidão no país
foi uma ocasião festiva em terras alencarinas, uma “grande ocasião”, cujo fulgor buscou
descrever a seguir. A aquela tarde agitada na capital da província, Fortaleza, pode nos
revelar que marcas de um passado escravistas e as contradições que não se apagam da
noite para o dia. A ocasião festiva é reveladora de tensões.

175
Libertador, 2 de novembro de 1882. ANO II, No. 1. p.2
176
Libertador- órgão da Sociedade Cearense Libertadora (1881) /Libertador – órgão dos interesses do
País (a partir de janeiro de 1885)/Libertador- Diário da Tarde/Libertador – órgão do Centro Republicano (
fevereiro de 1891)
177
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003, pp.180-181.
89

Luvas brancas de pelica com oito botões, grampos de tartaruga, espartilhos de todos
os tamanhos e muitas outras novidades elegantes estavam descritas no anúncio da loja
“Louvre” em Fortaleza. A publicidade ocupava grande parte da primeira página do jornal
“Libertador”178 do dia 18 de março de 1884. Antes de listar os mais de quarenta itens de
moda disponíveis, a loja de artigos finos e importados destacava:
Em vista do programa publicado no “Libertador” de ontem de grande e
deslumbrante festa o Louvre declara a seus fregueses e ao público em
geral que se encontra prevenido com um esplêndido sortimento de tudo
quanto pode ser preciso para bem abrilhanta-la.179

Que comemoração reuniria os mais elegantes grupos da cidade de Fortaleza em


torno de uma programação concorrida e elegante? Outros anúncios também figuravam na
primeira página naquele dia, dentre os quais reproduzo dois adiante, para exame do leitor.
Os anúncios em destaque tratam de produtos de alimentação e de decoração, infere-se que
a ocasião deveria incluir banquetes e manifestações públicas. A sugestão das bandeiras e
lanternas deixa claro que as ruas e casas também deveriam ser ornados na preparação do
evento.

Figura 7. Anúncios publicados na primeira página do jornal Libertador 18 de março de 1884

A cidade que se preparava para a festa respirava “novos ares” com a implantação
de um plano urbanístico que alinhou e alargou vias, garantindo a circulação e um padrão
estético para as fachadas, praças e ruas. Fortaleza era a capital da província do Ceará

178
Órgão da Sociedade Cearense Libertadora criado em 1881, publicação quinzenal que circulou até o
ano de 1892.
179
BNDigital Jornal Libertador 18 de março de 1884, página 1.
90

desde que esta conquistou autonomia, emancipando-se de Pernambuco em 1799180. As


belas e necessárias obras públicas de Fortaleza foram incrementadas pelo uso da mão de
obra oriunda das frentes de serviços, migrantes que fugiam da seca e buscavam socorros
eram empregados em grandes obras a baixíssimo custo.
Por diversos pontos da província do Ceará durante as grandes secas de 1877 a 1879
se espalharam obras públicas que empregavam os desamparados pela seca. Enquanto isso,
na corte, os jornais do período passaram a estampar as figuras dos retirantes, apelando
inclusive para retoques nas imagens que as tornavam grotescas205. A repercussão do
drama dos retirantes e a espetacularização da fome acabam por reforçar o investimento
em obras de infraestrutura nas frentes de serviço. A modernização da cidade contou com
o arruamento planejado pelo engenheiro Adolfo Herbster, a construção dos prédios da
Santa Casa de Misericórdia em 1861, da Cadeia Pública em 1866, da Assembleia
Provincial em 1871 e do Asilo de Mendicidade entre 1877 e 1879181. O período de maior
investimento em obras públicas na cidade de Fortaleza, sendo os recursos garantidos em
grande parte pelos fundos para “socorros públicos”. Alguns autores denunciam as
péssimas condições e o ganho parco, que equivalia, em muitos casos, a uma refeição
diária.182 Aquelas ruas que receberiam bandeirolas e luminárias se mobilizavam para o 25
de março de 1884, data escolhida para marcar a abolição do trabalho escravo na Província
do Ceará.
Em sequência à Proclamação da Lei do Ventre Livre, surgiram, em 1870, as
primeiras associações abolicionistas do Ceará: a Sociedade Libertadora de Baturité e a
Sociedade Manumissora Sobralense. Nove anos depois, veio à luz a Associação
Perseverança e Porvir, criada em Fortaleza que inicialmente atuava de modo tímido na
causa da libertação dos escravos, porque também se dedicava aos interesses comerciais
de seus sócios, e que se transformou em uma década na Sociedade Cearense Libertadora,
plenamente dedicada à causa da abolição, através da organização de fundos para

180
Fortaleza passou a Vila de Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção em 13 de abril de 1726. 205
BARBALHO. Alexandre. Corpos e Mentes Dilacerados: O grotesco nas imagens da seca de 1877. In
Trajetos. Revista de História UFC. Fortaleza, vol. 3, na 6, 2005.
181
Fortaleza possuía uma biblioteca pública, contava com instituições como a Academia Cearense de
Letras e a Academia Francesa, além do Instituto Histórico e Antropológico
182
Sobre o tema dispomos das obras de OLIVENOR, José. “Metrópole da fome”: a cidade de Fortaleza
na seca de 1877-1879. In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro (Orgs.). Seca. Fortaleza: Edições
Demócrito Rocha, 2002. (Coleção Fortaleza: história e cotidiano) e VIEIRA. Tanísio. Seca, disciplina e
urbanização: Fortaleza – 1865-1879. In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro (Orgs.). Seca.
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. (Coleção Fortaleza: história e cotidiano).
91

manumissões e de seu jornal, O Libertador, que se tornou uma das principais armas de
combate à escravidão na Província do Ceará.
Criado em 1881, o periódico de publicação quinzenal circulou até o ano de 1892.
Em sua primeira página, em diversos números, encontra-se em tipos grandes e em negrito
a seguinte mensagem: “este jornal é destinado à propaganda de interesses abolicionistas,
órgão da Sociedade Cearense Libertadora, aceita qualquer publicação concebida nos
termos do seu programa [abolicionista] ”183. Eram, entretanto, os eventos organizados
pela própria Sociedade Cearense Libertadora que cobriam a maior parte das notícias do
jornal. 184 A publicação da programação de um evento público organizado pela Sociedade
Cearense Libertadora a ser realizado em 25 de março de 1881 culminou com a entrega de
25 cartas de alforria. Segundo o jornal:
1º. Ás 5 1/2 da tarde, na porta da igreja do Rosário o Rvd. Dr João
Augusto da Frota185 benzerá a bandeira que os escravos vão oferecer à
Sociedade Cearense Libertadora e fará um discurso análogo ao ato. 2º.
À frente da música se dirigiram os libertandos até o Passeio público
onde receberá[sic] uma comissão da redação do Libertador.
3º. Reunido o povo, e, precedendo uma ouverture pela música, o
presidente abrirá a sessão e entregará a cada um dos 25 libertandos a
sua carta de liberdade.
4º.O representante da classe escrava fará então seu discurso de
agradecimento e entregar a bandeira ao presidente da Libertadora . 5º.
Seguir-se-á o canto do hino composto e oferecido a Sociedade Cearense
Libertadora pelo Sr. Frederico Severo186
6º.Terão a palavra os oradores e poetas inscritos e depois terminará o
ato com uma passeata no quadro do passeio público e em frente ao Club
se darão os vivas e dispersará a multidão.
7º. A festa é inteiramente popular não se faz um só convite especial
esperando o comparecimento geral de todos.

A programação permite perceber diversos aspectos da organização do núcleo


abolicionista, especialmente os usos políticos dos espaços da cidade de Fortaleza. Notese,
a princípio, a inclusão de um ato na igreja do Rosário como marco inicial da solenidade.
O local abrigava a Irmandade de “Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos” de

183
Libertador 15 de janeiro 1881, No. 2, p.1
184
Libertador 24 de março de 1881. No. 7, p.3
185
João Augusto da Frota (24/01/1849-02/04/1942) foi um clérigo ordenado em Roma no ano de 1874,
também foi Doutor em Filosofia. Ativo abolicionista o intelectual foi ainda membro da Academia Cearense
de Letras e Sócio Fundador do Instituto Histórico do Ceará, do qual foi membro honorário.
186
Frederico Severo, Major honorário do exército. Poeta e compositor. (?-1/05/1906), segundo o “Diccionário Bio-
bibliográfico Cearense” do Barão de Studart.
92

Fortaleza187. Para o Rosário convergiam, até o ano de 1873, celebrações como a coroação
dos reis do Congo, sendo tais festas transferidas, por ordem do Bispo Dom Luís Antônio
dos Santos, para locais mais distantes, na periferia da cidade, como descreve Janote
Marques 188189 . O ato de entrega da bandeira da irmandade à Sociedade Cearense
Libertadora não previa celebração católica, apenas a benção pelo clérigo e doutor João
Augusto da Frota na porta do templo, não em seu interior. O programa contava ainda com
uma caminhada de aproximadamente 700m até o Passeio Público190 de Fortaleza, uma
praça criada a partir do conjunto de reformas urbanas que Fortaleza sofreu na segunda
metade do século XIX. O Passeio era um dos lugares de maior convergência da cidade,
ali atos públicos importantes e concorridos encontros sociais se realizavam191. A opção
por tomar o lugar como ponto culminante e final da caminhada festiva denota um esforço
do grupo que organizou o evento para dar visibilidade a causa da abolição192.
A afirmação manifesta do ideal emancipador fica evidente num outro detalhe do
programa a ser cumprido naquele dia: o discurso pronunciado pelo liberto. Nos números
seguintes do jornal Libertador, procurei relatos sobre o nome do ex-escravo que fez o
discurso, ou ainda se havia registro de suas palavras. Observei que houve uma quebra na
regularidade da publicação, voltando a circular apenas em maio 193 de 1881, segundo
consta devido à ausência de operários gráficos. O fato de não registrarem o nome e nem

187
A Província do Ceará abrigou irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens pretos nas cidades
de Aracati, Sobral, Quixeramobim, Barbalha, Icó, Crato, Lapa (povoação pertencente à freguesia de
Sobral), além da capital Fortaleza.
188
“Na Fortaleza das últimas décadas do XIX, havia dois grandes grupos de Congos que se apresentavam
em espaços já conhecidos pelos munícipes: os Congos de João Ribeiro, também chamado de “Pastoris
Africanas” e que funcionavam num terreno baldio da Rua Major Facundo, próximo à Praça do Livramento;
e os Congos de João Gorgulho, que se apresentavam na Praça de Pelotas.” Cf. MARQUES Janote Pires
Autos de Rei Congo em Fortaleza: Uma prática cultural negra na dinâmica socioespacial da cidade (1873-
189
) Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Nº 4 dez./2009, pp.3449/p. 40
190
Não há exatidão sobre a data de inauguração do Passeio Público. Sabe-se, segundo Liberal de Castro,
que “Em 1882 partes significativas do Passeio já estavam prontas, tais como, a avenida Mororó e a alameda
de acesso pela rua Major Facundo, bem como a arborização e os elementos ornamentais. Apesar dos fatos
ora referidos, na verdade, jamais houve uma inauguração do Passeio Público. A palavra não aparece
mencionada nos relatórios dos presidentes da Província” Cf. CASTRO, José Liberal de. Passeio Público:
espaços, estatuária e lazer. Revista do Instituto do Ceará Revista do Instituto do Ceará - ANNO CXXIII -
ANNO 2009 pp.41-114/ p.78
191
PONTE, Sebastião Rogério. A Bélle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In: Uma Nova História do
Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000
192
O capítulo 8 do código de 1879 tratava da utilização do Passeio Público, “então espaço preferido para a
prática de lazer dos ricos da Cidade”. Cf. ALVES, Marco Aurélio de Andrade e CARVALHO, Alba Maria
Pinho de. As marcas do progresso: Alguns códigos urbanos na cidade de Fortaleza dos séculos XIX e XX.
O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho – 2011 pp.13-24 /p.17
193
Libertador 23 de maio de 1881, No 8, “a demora que houve na edição deste jornal foi motivada pela falta
de operários nas oficinas de sua impressão” p.1
93

o conteúdo daquele pronunciamento revela que as páginas do jornal e a produção de


conteúdos literários sobre o tema da abolição pertenciam exclusivamente ao grupo de
homens letrados, reforçando o abismo que apartava brancos e negros no século XIX.
Mas a presença do grupo de libertos e o direito à voz em praça pública em frente
ao Club Cearense não deixava de ser ousada. Fundada em 1867, a agremiação reunia a
alta sociedade da Província. É descrita por Liberal de Castro194 como a “mais importante
dessas associações”. Tinha por sócios as “figuras de maior projeção social e econômica
da cidade”219 .
O Club Cearense aparecia como uma espécie de braço diversional da
Companhia União Cearense, formada em 1869 por acionistas nacionais
e estrangeiros, integrantes do alto empresariado local. O clube e a
companhia mantinham suas sedes na rua da Misericórdia (Dr. João
Moreira), em frente do Passeio Público.195

Não era a primeira vez que a Sociedade Cearense Libertadora ocupava o Passeio
Público. Alguns meses antes, em 1 de janeiro de 1881, descreve-se no Libertador196 um
bazar com exposição de prendas, ocorrido ainda no final de dezembro de 1880. Na
ocasião, o francês Hypolito Girard, proprietário de um hotel e de um quiosque no Passeio
Público, doou à causa abolicionista “o produto da venda de sorvetes e refrescos
gelados” 197 comercializados durante os atos organizados pela Libertadora. Em 17 de
fevereiro de 1881, o Passei Público foi novamente ocupado por um sarau literário descrito
no jornal como “reunião com diversos oradores e poetas abolicionistas”198. As ações dos
núcleos abolicionista não se concentravam apenas na capital, a causa ganhou projeção em
outras cidades e vilas da Província do Ceará.

2.1 Abolição e civilidade: paixões e interesses.

Segundo o Barão de Studart , o município de Acarape199 foi o primeiro do Brasil


a declarar extinta a escravidão em 1 de janeiro de 1883! Alguns anos depois, o município,

194
CASTRO, José Liberal de. Passeio Público: espaços, estatuária e lazer In Revista do Instituto do
Ceará Revista do Instituto do Ceará - ANNO CXXIII - ANNO 2009 pp.41-114
219
Idem p.24
195
Ibidem p.77
196
Libertador, 1 de janeiro de 1881, p.3
197
Libertador, 1º de janeiro de 1881, p.4
198
Libertador 17 de fevereiro de 1881, No4
199
STUDART, Barão de. Datas e factos para a história do Ceará, tomo 2. Edição fac-sim. Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, 2001.
94

que está localizado a 55 km de Fortaleza, mudou de nome e passou sugestivamente a


ser chamado de Redenção200.
No interior da Província, mais precisamente no Crato, o movimento capitaneado
pela Libertadora Cratense201 atuou a partir de 11 de março de 1883227. Em 24 de junho do
mesmo ano202, na câmara municipal da cidade, um ato dessa associação abolicionista “sob
presidência do digno e virtuoso Pro-Pároco” Padre Francisco Rodrigues Monteiro,
recebeu grande público. Na ocasião foram lidas diversas cartas de liberdade, chegando a
cem o número total de alforrias. Em seguida, foi assinada pelos membros da Libertadora

Cratense presentes à cerimônia uma carta circular dirigida “aos proprietários de escravos
do município e mais pessoas gradas”:
Os abaixo-assinados, membros da Libertadora Cratense, não podendo
por mais tempo continuarem indiferentes ao nobre e humanitário
sentimento que hoje domina os corações Cearenses, no intuito de fazer
desaparecer de suas plagas o ignomioso nome de -escravo-; vem a
presença de V. Sa. Convida-lo a abraçar tão santa quanto gloriosa ideia.
Sabe V. Sa. que um povo não poderá jamais dizer-se livre, contando em
seu seio esta gangrena social.
O grandioso acontecimento que acaba de dar-se na Capital, centro da
nossa civilização, e em tantos outros municípios da província, nos
garante próximo o termo desse desideratum. Demora-lo seria expor-nos
a uma vergonha sem nome, seria marcharmos à retaguarda dos
caminheiros do progresso civilizador.
E V.Sa. convirá conosco, o Crato, berço das liberdades pátrias, não pode
e nem deve conservar-se mudo à esta santa cruzada, o Crato, cujos filhos
eminentemente católicos.
A Caridade, Ilmo. Sr., essa dileta filha dos céus, não se concilia com a
tirania: dizer Senhor e escravo, é o mesmo que dizer; algoz e vítima.
Portanto, os abaixo-assinados, possuídos da mais sólida esperança,
esperam com o valioso concurso de V.Sa poder declarar livres os
escravos deste município no dia 7 de setembro próximo, aniversário de
nossa independência; a fim de que, orgulhosos, possamos também
dizer- no Crato não existe mais esta mancha social.
Convidamos, pois, a comparecer nesta cidade no dia 8 de julho próximo,
designado para assentar-se nos meios para resolver tão momentoso
assunto.
Somos com estima e consideração de V. Sa.203

200
O nome Redenção foi oficializado em 1889. Em referência à memória do pioneirismo emancipador
fundou-se naquela cidade em 2010 a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(Unilab) e ali funciona o Campus da Liberdade.
201
Gazeta de Notícias (RJ) “No Ceará, fundou-se na cidade do Crato, uma associação por nome de
Libertadora Cratense, que ao instalar-se apresentou 20 cartas de liberdade, todas a título gratuito” p,1 227
Jornal do Recife (PE)” 14 de abril de 1883, no. 85. “No dia 11 do mês findo, fundou-se na cidade do Crato
uma sociedade com denominação Libertadora Cratense que, ao instalar-se, apresentou 20 cartas de
liberdade, todas a título gratuito”. p.1
202
Libertador, 28 de Junho de 1883. No. 150 “Cartas Cratenses-Cidade do Crato” p.3
203
Libertador, 28 de Junho de 1883. No. 150 “Cartas Cratenses-Cidade do Crato” p.3
95

Assinaram o documento Pedro Vieira de Brito, Manoel Sidrin de Castro Jucá,


Ildebrando Sisnando Baptista, José Antônio de Figueiredo, Manoel L Ferreira de Moares,
Raimundo d´Alcântara Maia e Laurenio Brizeno da Silva. Após a entrega do abaixo-assinado que
mais parece um ultimato, os abolicionistas deixaram a câmara e partiram em caminhada
agregando grande número de participante ao som de foguetes e da banda. Percorreram as
principais ruas da cidade e ouviam vivas quando se gritava o nome de uma cidade
“liberta”. Assim “desfilou [a] mais brilhante passeata, ao lado da qual, mais à frente com
a pancadaria 204 , marchava um grupo de homens libertos capitaneados pelo distinto
abolicionista José Rodrigues Monteiro, grande entusiasta da ideia” 205 . Depois de
percorrerem festivamente as ruas, reuniram-se em frente à Matriz de Nossa Senhora da
Dores, na praça da Sé, e ali ouviram mais calorosos discursos antes de se dispersarem “na
melhor ordem”.
O movimento daquele 24 de junho e a carta circular não tiveram a repercussão
desejada. A adesão do Crato ao rol das cidades livres só veio junto com a última leva em
fevereiro de 1884. O apelo à importância política da cidade e à sua fé católica para
sensibilizar os destinatários da carta circular foram ignorados. Mas, o movimento
retomaria a agenda com força no 7 de setembro, dia escolhido para marcar a libertação
do Crato, utilizando uma data de projeção nacional. Atos políticos com aspirações de
alcance nacional já haviam mobilizado cidadãos do Crato através da participação nos
movimentos políticos emancipacionistas de viés liberal e republicano originados na
província de Pernambuco, nas primeiras décadas do século XIX: a Revolução de 1817 e
a Confederação do Equador, de 1824. Estes movimentos repercutiram no Cariri por
intermédio do núcleo familiar dos Alencar. Apesar da adesão a movimentos liberais, os
Alencar expressaram sua defesa da escravidão, especialmente através do célebre escritor
e político José de Alencar.
Famoso por ser o autor dos romances “O Guarany”, “Senhora”, além de peças
teatrais e de vários ensaios sobre Geografia e História do Brasil, José Martiniano de
Alencar (1829-1877) foi também um político influente tendo ingressado na vida pública
como deputado provincial no Ceará em 1860, membro do Partido Conservador, Alencar

204
Neste caso pancadaria refere-se ao “conjunto dos instrumentos de pancada (bombo, tambores, pratos,
timbales) de uma orquestra ou banda de música.” Segundo Dicionário Aurélio. FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed
205
Libertador, 28 de Junho de 1883. No. 150 “Cartas Cratenses-Cidade do Crato” p.3
96

defendia os interesses dos grandes proprietários rurais, dos ricos comerciantes e dos altos
funcionários do governo. Seu posicionamento a favor da manutenção do trabalho
escravo, apontado como necessidade, especialmente para o fortalecimento do setor
agrícola, foi defendido em uma correspondência aberta ao Imperador Dom Pedro II, em
1867, o conjunto de missivas que ficou conhecido como “Cartas políticas de Erasmo”.
Segundo Joyce, da análise dos argumentos de José de Alencar a favor da escravidão
depreende-se que “por trás dos malabarismos intelectuais feitos por ele para defender o
trabalho servil em termos morais, seu posicionamento estava vinculado à defesa de
interesses políticos e econômicos concretos, sedimentados na história política do Império
e de sua elite dirigente.”206
A resistência local ao fim do trabalho escravo foi sendo minada paulatinamente ao
longo de duas décadas. Mesmo sem a imediata repercussão desejada a Libertadora
Cratense continuou ativa, sendo registrado em 13 de agosto de 1883 um donativo em
dinheiro enviado de São Paulo a favor da agremiação207.
O quadro a seguir foi publicado no Libertador 208 , de 18 de março de 1884, e
representa a cronologia das libertações nos municípios cearenses. A lista aparece impressa
em forma de tabela sob o título “Quadro de Luz”, tendo logo abaixo a frase: “A escravidão
é um roubo”. Informa ainda o número de escravos em cada cidade, de acordo com o
Relatório do Senador Pedro Leão Velloso (1828-1902).

TABELA 1- Cronologia da adesão dos municípios cearenses à abolição

Municípios livres Datas de suas Escravos existentes em 1881


libertações Relatório do senador P. Leão Velloso
1. Acarape Janeiro de 1883 115

2. São Francisco 2 de fevereiro de 1883 427

3. Pacatuba 2 de fevereiro de 1883 218

4. Icó 25 de março de 1883 731

5. Baturité 25 de março de 1883 789

6. Maranguape 20 de maio de 1883 847

206
JOYCE N. S. José de Alencar e a escravidão: necessidade nacional e benfeitoria senhorial. Dissertação
de mestrado – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2014.124.f p.120
207
BNDigital Jornal Libertador, 13 de agosto de 1883, no.150, p. 2
208
BNDigitalJornal Libertador, 18 de março de 1884 N o.61, p.2
97

7. Soure 3 de junho de 1883


1273
8. Fortaleza 24 de maio de 1883

9. Messejana 20 de maio de 1883

10. Aquiraz 23 de maio de 1883 449

11. Pedra Branca 8 de junho de 1883 457

12. Pereiro 27 de setembro de 1883 465

13. Viçosa 20 de setembro de 1883 323

14. Canindé 4 de outubro de 1883 516

15. Pentecoste 8 de dezembro de 1883

16. São Pedro de 11 de outubro de 1883 135


Ibiapaba
17. São Benedito

18. Várzea Alegre 22 de outubro de 1883 153

19. São Mateus 27 de dezembro de 1883 499

20. Brejo Seco 31 de dezembro de 1883 565

21. Jaguaribe mirim 31 de dezembro de 1883 550

22. Trairi 1 de janeiro de 1884 249

23. Sobral 2 de janeiro de 1884 2309

24. Santa Quitéria 2 de janeiro de 1884 820

25. Aracati 2 de janeiro de 1884 1159

26. União 2 de janeiro de 1884

27. Cachoeira 8 de janeiro de 1884 500

28. Lavras 8 de janeiro de 1884 768

29. Tamboril 18 de janeiro de 1884 614

30. Sant’Anna 26 de janeiro de 1884 941

31. Independência 28 de janeiro de 1884 301

32. Camocim 31 de janeiro de 1884 413

33. Cascavel 31 de janeiro de 1884 987

34. Morada Nova 31 de janeiro de 1884 367

35. Acaraú 31 de janeiro de 1884 440


98

36. São Bernardo 2 de fevereiro de 1884 1972

37. Granja 10 de fevereiro de 1884 413


38. Quixeramobim 10 de fevereiro de 1884 1921
39. Boa Viagem 10 de fevereiro de 1884
40. Iguatu 10 de fevereiro de 1884 251
41. Maria Pereira 10 de fevereiro de 1884 438
42. Barbalha 10 de fevereiro de 1884 356
43. Palma 10 de fevereiro de 1884 414
44. Riacho do Sangue 10 de fevereiro de 1884 451
45. Quixadá 10 de fevereiro de 1884 298
46. Príncipe Imperial 10 de fevereiro de 1884 127
47. São João do Príncipe 10 de fevereiro de 1884 978
48. Imperatriz 10 de fevereiro de 1884 882
49. Crato 10 de fevereiro de 1884 835
50. Ipu 10 de fevereiro de 1884 736
51. Assaré 10 de fevereiro de 1884 512
52. Missão velha 10 de fevereiro de 1884 355
53. Limoeiro 10 de fevereiro de 1884 608
54. Saboeiro 10 de fevereiro de 1884 565
TOTAL 30492

No total, segundo a listagem acima, foram libertas 30.492 pessoas, no registro final
das coletorias. A listagem das cidades foi apresentada em diferentes edições do jornal e
exibia o avanço da onda abolicionista pela Província209. Mas nem todas as alforrias foram
fruto da benevolência dos senhores. Mariana Assunção observou que na década de 1870
a maioria das cartas de liberdade passadas em Fortaleza foi comprada, boa parte delas à
custa do suor dos próprios escravos. Também foram elevados os índices de alforrias
condicionais 210 . A autora descreve as alforrias “condicionais” e as “incondicionais
onerosas”. No caso das “condicionais gratuitas” era imposta uma condição, por exemplo,
servir até a morte do senhor, sem que fosse necessário algum pagamento compensatório.
No caso das “condicionais onerosas” havia o pagamento em dinheiro com vistas a
compensar o senhor e ainda era imposta alguma condição. Havia também as alforrias
“incondicionais onerosas”, ou seja, a transação era resumida ao pagamento e a
“incondicional gratuita”, neste caso não havia cobrança alguma. A documentação levou
a autora a totalizar o seguinte quadro:

209
O município de Milagres não consta da lista aqui reproduzida, vindo a figurar depois do “25 de março”,
ali apresentando como data de sua libertação o mesmo “10 de fevereiro” das demais cidades da última fase.
Sobre este caso de Milagres, trataremos em item posterior.
210
ASSUNÇÃO, Mariana Almeida. “Escravidão e Liberdade em Fortaleza, Ceará (Século XIX)”. Tese de
Doutorado, UFBA, 2009. p.235
99

TABELA 2- Modalidades de alforria entre 1838-1884 em Fortaleza, província do Ceará

Condicional % Condicional % Incondicional % Incondicional %


Gratuita Onerosa gratuita onerosa

M F M F M F M F

TOTAL 62 108 15,1 20 27 4,1 158 259 37,2 287 198 43,3

Versão resumida do quadro “Distribuição das modalidades de alforrias, Fortaleza, 1838-1884.” de


ASSUNÇÃO, Mariana Almeida. “Escravidão e Liberdade em Fortaleza, Ceará (Século XIX)”. Tese de
Doutorado , UFBA, 2009.p.211

Observa-se que na maioria das vezes o pagamento era suficiente para garantir a
alforria, mas a presença de condições impostas esteve presente em alguns casos,
representando um prolongamento da condição servil.
Um momento chave no processo que culminou com a abolição da escravidão no
Ceará foi a promulgação da Lei 2034, de 19 de outubro de 1883, que elevou os impostos
a serem pagos pelos proprietários de escravos e cujo texto diz:

“eleva a cem mil réis, em todos os municípios da Província, o imposto


de que trata a lei no. 2031 de 18 de dezembro de 1882. O Dr. Satyro de
Oliveira Dias, Comendador da Ordem da Rosa, Presidente da Província
do Ceará / Faço saber a todos os seus habitantes que a Assembleia
Legislativa provincial decretou e eu sancionei a lei seguinte Art.1o- O
imposto de que trata a lei no. 20131 de 18 de dezembro de 1882, fica
elevado desde já, a 100$000 réis em todos os municípios da Província.
(...) Art. 5º- As cartas de liberdade, que forem conferidas com a cláusula
de prestação de serviço por mais de três anos, nos termos do
art.49&&3º. Da lei no. 20140 de 29 de setembro de 1871, serão
registradas nas coletorias da Província, dentro do prazo de 30 dias, e
sujeitas ao pagamento de 50$000 réis de emolumentos, que serão
aplicados a fornecimento às escolas primarias dos respectivos
municípios em favor dos alunos pobres. Leis e Resoluções da Província
do Ceará. 211

A Lei foi aprovada pela assembleia provincial e sancionada pelo Presidente da


Província do Ceará Satyrio Dias 212 e taxava de forma a tornar inviável a posse e o
comércio de escravos na província cearense (100 mil réis). Encontra-se ainda na mesma

211
Apud SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. História da escravidão no Ceará: das origens à extinção 2ª. Ed.
Fortaleza: Instituto do Ceará, 2011p.301
212
Satyro Dias(12/01/1884) a (18/08/1913). Presidente da província do Ceará por ocasião da declaração de
Abolição Foi cirurgião do exército, Deputado geral pelo Amazonas (1885) e Deputado federal pela Bahia (1900
a 1906)
100

Lei uma taxação sobre a “prestação de serviços” por três anos, condição imposta por
algumas manumissões anteriormente firmadas que impunham a continuidade por mais
três anos de servidão, neste caso a taxa foi de 50 mil réis por pessoa.
Por se tratar de uma mudança nos impostos, a Lei teve o objetivo de inviabilizar o
trabalho servil através dos registros das coletorias. No ano seguinte, o que se comemorava
no 25 de março era a extinção do trabalho servil, tendo como base o que as coletorias
registravam:
O ato comemorativo da extinção da escravatura no Ceará, em 25 de
março de 1884, baseou-se nas certidões fornecidas pelos coletores
municipais, atestando a averbação das alforrias de todos os seus cativos
nos respectivos “livros de matrículas de escravos”213 .

O reconhecimento da Província do Ceará como berço da eliminação formal do


trabalho escravo rendeu-lhe o epíteto “Terra da Luz”, cunhado por ninguém menos do
que José do Patrocínio214215. A expressão adequou-se ao desejo de projeção política das
elites letradas locais, que almejavam ser vistas como um farol ilustrado. Neste percurso,
é flagrante o reforço do posicionamento dos intelectuais cearenses dedicados ao papel
ativo das associações abolicionistas e a seca figuravam como os principais motivos para
a libertação dos escravos.
Como a fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará foi contemporânea
do fervor abolicionista, o tema foi logo incorporado às grandes efemérides da instituição
e eleito como símbolo de civilidade, virtude, civismo e até como advento da República.
Os primeiros autores que se debruçaram sobre o tema logo reforçaram elegeram uma
causalidade para a precoce abolição: destacam-se nas explicações o baixo número de
escravizados e as crises causadas pelas grandes secas, fator de desestabilização das
atividades econômicas.
Com o passar do tempo se consolidaram os mais diversos usos políticos para
evidenciar ou construir protagonismos, destacando certos personagens em detrimento de

213
SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. História da escravidão no Ceará: das origens à extinção 2ª. Ed. Fortaleza:
Instituto do Ceará, 2011, p.247
214
José Carlos do Patrocínio, jornalista, orador, poeta e romancista (1854-1905). Esteve pela primeira vez
no Ceará entre maio e setembro de 1887, como correspondente da Gazeta de Notícias com o objetivo de
relatar sobre a seca. Esta primeira viagem rendeu também fotografias publicadas em “O besouro’ e um
romance intitulado “Os retirantes”. Sobre este contato com os impactos da estiagem na vida e nas relações
sociais documentados por Patrocínio temos: NEVES. Frederico de Castro: A miséria na literatura: José do
Patrocínio e a seca de 1878 no Ceará. Tempo vol.11 no.22 Niterói, 2007.
215
Sobre a trajetória de José do Patrocínio: MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados: José do
Patrocínio e a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro. Niterói: Editora da UFF, 2014.
101

outros. Por um longo período a tendência foi de apagamento das resistências dos próprios
escravizados, os protagonistas eram os homens e mulheres engajados na causa
abolicionista, associados ou não, a núcleos de expressiva atuação. Este grupo era
heterogêneo e diversos matizes da causa abolicionista estavam misturados. Havia um
núcleo mais aguerrido, engajado em ações diretas e outro mais legalista e conservador
que aspirava uma transição ordeira e pacífica.
O historiador Raimundo Girão indica, como ponto alto dos atos públicos festivos
em memória da abolição dos escravos na Província do Ceará, o cortejo que encerra três
dias jubilosos em março de 1884.

(...) começaram os aprestos do desfile que encerraria tantas


demonstrações de patriotismo e calor por causa tão enobrecedora.
Carros triunfais, aos sons do hino da ‘Libertadora’, a gente nas ruas, o
sorriso nas mentes, tudo era claridade naquela tarde de pesadas nuvens
e trovões reboantes de um inverno que se denunciava promissor. O
carro principal (...) era franjado de nuvens, adornado de escudos com o
nome dos 58 municípios cearenses, deslumbrante de galas, sobrepujado
de troféus. (...) Ornavam-no três belas jovens (...) caracterizando a
Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade: respectivamente, Maria de
Morais, de irradiante simpatia, empunhando uma espada como quem
vinga uma afronta e reivindica um direito; Inês Maria da Anunciação,
negra, mas formosa como a filha de Jerusalém, centralizando os
aplausos na mais autêntica encarnação da raça redimida; e Amélia
Vieira Teófilo que, com porte e majestade de uma deusa, desfraldava
aos ventos o estandarte da República do Equador e parecia imprimir no
coração do povo o heroísmo de seus mártires.216

De início vale refletir sobre o uso do termo “raça redimida”. Tal construção confere
um lugar de passividade e sujeição, bem característico do discurso que se construiu sobre
a abolição na Província do Ceará e em todo o país. Aquilo que
SCHWARCZ217 denomina “representação dadivosa” inspira uma hierarquia entre quem
supostamente doa e quem recebe. As relações estabelecidas pela dádiva (real ou suposta)
engessam posições e alimentam uma relação de poder. 218

216
GIRÃO, Raimundo. A abolição no Ceará. 3a. Edição, Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do
Estado do Ceará, 1984, p.210
217
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da Abolição
brasileira In CUNHA, Olívia Maria Gomes da e GOMES, Flávio dos Santos (orgs). Quase-cidadãos;
Histórias e Antropologias pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007
218
Janote Pires Marques menciona parte deste trecho, destacando “ No entanto, é preciso considerar que,
embora houvesse a presença de uma negra na festa maior da abolição cearense, o discurso supracitado deixa
transparecer certo preconceito – Inês é formosa, apesar de negra –, e a visão abolicionista do negro como
elemento passivo – Inês encarna a “raça” que foi libertada (e não a que se libertou)´” MARQUES. Janote
Pires: A invisibilidade do negro na História do Ceará e os desafios da Lei 10.639/20031 In Poiésis – Revista
102

No desfile final, a “negra, mas formosa” Inês Maria seguia elegante pelas ruas a
contemplar os aplausos calorosos, ladeada pelas suas companheiras de cortejo que
levavam à mão símbolos (uma espada e um estandarte219). Ao que parece Inês Maria era
ela própria o símbolo, não empunhava espada ou bandeira. Seu corpo era seu estandarte
e sua presença a marca a ser comunicada: o fato de estar ali deveria ecoar por si. Afinal,
causaria algum burburinho a espada em sua mão? Fica a nossa imaginação povoada de
perguntas, mas o que a ordem que aquele carro alegórico representava era a da passividade
silenciosa, grata e resignada que se esperava do liberto.

(...) libertação era um presente dos brancos, que ofereciam ao mesmo


tempo a manumissão e o trabalho. O negro que mostrava autonomia
estava fora destas falas, assim como da representação oficial que se
fazia da nossa Abolição, tão singular em seu processo. Ou melhor, era
um pano de fundo oculto, presença sugerida pela constante reiteração
da ordem e do controle. Já o preto, o bom escravo, o negro de alma
branca, era, sim, o objeto passivo deste tipo de representação220

A grande festa reservou a cada um seu papel, não era uma comemoração aberta,
expressiva e intensa. Eram solenidades, jantares, missas, paradas e saraus. Ocasiões
propostas e vividas por um grupo que se auto referia de diversas formas, tanto através de
celebrações públicas quanto do registro escrito, correspondências enviadas a periódicos e
outro elementos de visibilidade. A festa foi um ato político pensado e protagonizado pelos
“libertadores” brancos com espaços medidos para a presença dos ex-escravos.
Dom Joaquim estava prestes a assumir a Diocese cearense como seu segundo bispo
quando enviou, da cidade de Campinas em São Paulo, uma carta pastoral ao Ceará datada
de nove de dezembro de 1883. Àquela altura era evidente a adesão total do Ceará à
abolição, mas ainda faltavam alguns municípios (ver tabela 1). Ao escrever prestigiando
a iminente conquista do Ceará, já estabelece um posicionamento acerca da conduta a ser
adotada após a conquista, a carta247 registrava:

do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado – Universidade do Sul de Santa Catarina Unisul,


Tubarão, v. 7, n. 12, p. 347-366, Jun./Dez. 2013.
219
O estandarte da República do Equador. Seria uma referência à Confederação do Equador (1824), registre-se a
ousadia da alusão ao republicanismo.
220
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da Abolição
brasileira. In CUNHA, Olívia Maria Gomes da e GOMES, Flávio dos Santos (orgs). Quase-cidadãos;
Histórias e Antropologias pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. P.39 247
Utilizamos aqui o documento transcrito por J. de Figueiredo Filho e publicado por este pesquisador em
artigo da revista cratense Itaytera. FIGUEIREDO FILHO. José Alves. O Ceará antecipa-se à Abolição, no
País. Revista Itaytera- Instituto Cultural do Cariri. Ano 1972 no.16p 181-186. p.182
103

“Dentro de poucos dias nossa Diocese formará uma só família de irmãos


com irmãos com os mesmos direitos e iguais deveres: não haverá mais
um só escravo, todos serão cidadãos brasileiros. A nós talvez esteja
reservado a alegria inefável de entoar o TE DEUM LAUDAMUS em
ação de graças por tão assinalado benefício: os desejos e aspirações da
Santa Igreja Católica ficarão assim realizados. Ao cearense está por
certo reservado um lugar de honra na História da Pátria agradecida. Não
basta assim, porém, que tenhais procedido tão nobremente, Amados
Diocesanos; é necessário ainda continuar a vossa grande obra,
educando essas criaturas no conhecimento dos deveres religiosos e
sociais e ensinando-lhes a trabalhar para serem úteis a si e a seus
semelhantes. Saudamos-vos, pois, Amados Filhos, pedimos ao Divino
Salvador vos conceda a graça da perseverança, em tão levantados
sentimentos. Sem esta virtude, vossa grandeza de alma desaparecerá e
a benção de Deus se apartará de vós, deixar-vos-á entregues a vós
mesmos e vosso caráter degenerando-se, trará a corrução e
pusilanimidade; vosso nome, ora glorioso, perderá tantos louros
colhidos. Perseverai na Fé que transmitiram vossos país, porque aquêle
que perseverar será salvo”

A celebração com Te Deum Laudamus221 representando solene agradecimento e


logo depois de mencionar o regozijo pela conquista Dom Joaquim222já inicia uma série de
advertências. Este documento, de um bispo prestes a assumir uma diocese onde desponta
a primeira província livre do Império, decerto indica acerca dos rumos da questão de como
lidar com o ex-escravizado. Este é assunto inscrito nas entrelinhas desta carta e revela
elementos de um debate que só se dilatou nos anos que se seguiram. Em meio à expressão
de contentamento pela conquista, uma advertência sobre os cuidados para que os
diocesanos atuem “educando essas criaturas no conhecimento dos deveres religiosos e
sociais”. Ainda mais sem deixar de lados de “ensinando-lhes a trabalhar para serem úteis
a si e a seus semelhantes”, imaginava-se que a atividade laboral do escravo era fruto da

221
Para uma referência do uso do termo na forma corrente à época do seu uso no documento, recorremos a
interpretação apresentada no Vocabulario Portuguez & Latino, Volume VII, de Raphael Bluteau-1728. Em
versão atualizada por mim: “Dessas três palavras, ainda que latinas, usamos vulgarmente falando o Ofício
Divino, ou em alegres e festivas solenidades(...) O Te Deum Laudamus é um cântico alternadamente
composto pelos dois Doutores da Igreja, Santo Ambrósio e Santo Agostinho, no dia em que este recebeu o
batismo”p.64
222
Joaquim José Vieira nasceu em Itapetininga-SP. Era filho do major Manuel José Vieira e de Maria
Teodolina de Sousa Vieira. Ingressou no seminário paulista e foi ordenado sacerdote, em 25 de março de
1860. Atuou como vigário-cooperador da paróquia de Paraibuna e em seguida vigário interino em
Campinas. Em 3 de fevereiro de 1883 foi indicado pelo Imperador Dom Pedro II para a Diocese do Ceará
que era Sede Vacante desde que Dom Luís assumiu a Diocese da Bahia. Foi o Bispo cearense que esteve à
frente dos processos que avaliaram os “ Fatos do Juazeiro”. Depois de 31 anos no Ceará retornou a
Campinas em 1914 e ali faleceu em 1917, aos 81 anos. CÂMARA, Fernando. Dom Joaquim José Vieira e
os oitenta anos de sua morte. Revista do Instituto do Ceará. Ceará, v. 91 (1997): 157-174
104

pressão, da vigilância, da constante ameaça da punição. Basta pensar no que o bispo


tentava evitar, pela simetria mais simples : malandragem
Imaginava-se que trabalho do escravo era fruto da pressão, da vigilância, da
constante ameaça e da punição. Na ausência destes elementos, temia-se, os
exescravizados quedariam inúteis. Era necessário advertir que se deve atuar
“ensinandolhes a trabalhar para serem úteis a si e a seus semelhantes”. O que o bispo
tentava prevenir, em linguagem bem direta era a vadiagem. Associar liberdade e vadiagem
não era uma novidade, certamente não foi fruto da imaginação do diocesano, ou excesso
de zelo prevenir seus paroquianos em tal sentido223. Um medo rondava o “pré-abolição”:
a perda de controle social, a impossibilidade da coerção e do mando.
Outro fator: Como estariam as marcas, dores e revoltas adormecidas? Haveria
vingança, revanche depois de anos de cativeiro? Diante desta possibilidade apelou-se ao
sentimento cristão que irmana a todos diante do crucificado. A fé poderia ajudar a dissipar
sombras do passado, fechando feridas entre “irmãos”. Através de uma carta pastoral, com
data 3 de Maio de 1884, Dom Joaquim saúda a liberdade já consolidada em terras
cearenses. A carta cujo trecho vemos a seguir tinha o sugestivo subtítulo “Trabalho”251:

"Abristes, Amados Diocesanos, uma nova era nos fastos históricos da


Pátria querida: cumpristes com a Religião do Crucificado, restituindo o
direito de igualdade a todos os nossos irmãos; na vossa província não
há mais escravos, todos são irmãos. Que belo espetáculo! Que triunfo
esplêndido! Que vitória invejada pelas províncias irmãs! Não há
expressões bem enérgicas, nem louros bastantes para coroar-vos só a
história, só a posteridade saberá agradecer-vos e fazer a devida justiça.
Mas, queridos Diocesanos, depois de glórias tantas não deveis
adormecer-vos no meio dos louros, no ruído das palmas; há muita coisa
a fazer, o trabalho é inerente à natureza humana; por mais que faça o
homem, jamais poderá libertar-se dessa pena imposta pelo Criador no
‘paraiso terrestre”, tu comerás o pão com o suor do teu rosto”. Esta
sentença fulminada pelo Criador contra a criatura rebelde, deve
cumprir-se sem que pese o egoísmo humano. Tu violaste o meu

223
Em A força da escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista Sidney Chalhoub ao analisar
uma fonte propõe: “Da ociosidade o autor do documento deslizou rapidamente para o crime, atribuindo-se
aos libertos vários meios “ilícitos” de ganhar a vida, entre os quais se destacava o aliciamento e o furto de
cativos, ofício que exerciam com “sutileza e segurança”. Esse repertório de ideias sobre os africanos libertos
reforçava o comprometimento do país com a escravidão, pois, se a mão de obra de africanos continuava
indispensável à lavoura, postulava-se outrossim que não se podia contar com trabalhadores africanos noutra
condição que não a de escravos”. A obra que trata da vida de africanos livres e de forros no Brasil em um
cenário que impunha àqueles indivíduos um lugar de risco constante. CHALHOUB, Sidney. A força da
escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras. 2012, 251 A
carta foi transcrita e publicada pelo escritor cratense J de Figueiredo Filho. Cf.FIGUEIREDO FILHO. José
Alves. O Ceará antecipa-se à Abolição, no País. Revista Itaytera- Instituto Cultural do Cariri. Ano 1972
no.16p 181-186.
105

mandamento, disse Deus ao primeiro homem. Eu te condeno a suportar


o jugo servil de uma vida laboriosa”224.

Ao mencionar a passagem do livro bíblico do Gênesis, Dom Joaquim aponta a


imperativa necessidade de viverem do próprio suor. Herdeiros da culpa de Adão 225
deveriam viver em expiação do pecado, o imperativo do trabalho veio como “pena
imposta pelo criador” à “criatura rebelde”. Diante destas cartas do Bispo Dom Joaquim
Vieira nos colocamos como que numa antessala do que viria a pulsar nos anos seguintes.
Dentro desta antessala podemos observar pelas frestas e observar a continuidade de
muitos elementos, sendo um dos principais eixos a evidente necessidade de reafirmar a
dignidade do trabalho. A ociosidade seria aviltante para o homem e perigosa para a
sociedade.
Não por acaso, logo depois do treze de maio de 1888 (Lei Áurea) surgiu o projeto
de repressão a ociosidade de Ferreira Vianna 226 seu conteúdo foi um consenso entre
legisladores depois. Além da repressão, segundo Sidney Chalhoub255, também entrou em
cena a possibilidade da educação como caminho para edificar o sentimento de amor ao
trabalho e a compreensão da laboriosidade como virtude. A proposta do controle da
ociosidade admitia inclusive castigo físico impetrado pelo patrão quando julgasse
necessário, retomando uma das práticas mais cruéis da escravidão. Ou seja, mesmo diante
do trabalho remunerado um patrão insatisfeito poderia impetrar castigo físico quando
necessário. Talvez o quadro mais grave seria aquele que une indigência e vadiagem. A
associação entre pobreza extrema e desocupação seria um verdadeiro cenário de
degradação moral e potencialmente capaz dos piores crimes. Mas não deixemos de
lembrar que existia, digamos, uma “boa” ociosidade. A ociosidade dos barões a quem
cabe sabem fruir e aproveitar a vida como possuidores e herdeiros. Já os pobres em
ociosidade viveriam a tramar contra a ordem e a propriedade.

224
. FIGUEIREDO FILHO. José Alves. O Ceará antecipa-se à Abolição, no País. Revista Itaytera-
Instituto Cultural do Cariri. Ano 1972 no.16,p 183.
225
SANTOS, Georgina. Ofício e sangue - A irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa Moderna. Lisboa:
Edições Colibri/ ICIA, 2005, p. 49.
226
Antônio Ferreira Vianna (Pelotas, 11 de maio de 1833 — Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1903) foi
um magistrado, jornalista e político brasileiro. Ministro da Justiça entre 10 de março de 1888 e 4 de janeiro
de 1889. Foi um político abolicionista e teria sido o redator do texto da Lei Áurea. 255 CHALHOUB, S.
(1983). Vadios e barões no ocaso do império: o debate sobre a repressão da ociosidade na câmara dos
deputados em 1888. Estudos ibero-americanos, 9(1, 2), 53-68.
Https://doi.org/10.15448/1980-864x.1983.1-2.36351 e CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
106

Foi neste cenário que amadureceu, trazido da Europa, o conceito de “classes


perigosas”. No seu contexto original “classes perigosas” estava relacionado eram pessoas
que já tinham cometido crimes ou que estavam entre pessoas que cometeram tais delito.
No Brasil “classes perigosas” passa ser sinônimo de “pobres”.
Voltemos aos desdobramentos da abolição cearense. Naquele momento os ideais
abolicionistas gravitam no campo dos interesses político partidários, e a pequena
província será palco e objeto de diversos enfrentamentos relevantes para o debate sobre a
abolição à brasileira. A princípio deve-se compreender que para além da formalidade
legal, falar de escravidão e de trabalho escravo remete a práticas, vivências e relações
(re)estabelecidas numa sociedade. A complexidade desta relação se expressa para além
do binômio senhor-escravo.

2.2 O Ceará ao som da Lira e da Guitarra

As críticas e avaliações negativas que se seguiram à abolição na Província do Ceará


podem ser exemplificadas pelo conteúdo do Diário de Pernambuco, de 24 de dezembro
de 1884. O jornal transcreve um conteúdo publicado anteriomente pelo Diário do Brasil,
de 7 de dezembro que comenta o conteúdo do Diário Oficial, do dia 4 de dezembro
daquele ano, e tem por título “Efeitos do Abolicionismo”:
Está escrito. Se alguém quiser certificar-se não precisa recorrer a
informações. O documento é autentico. A prova é provada. (...) Os
efeitos do abolicionismo não podem ser mais claramente patenteados.
Ainda bem que os fatos se encarregam de justificar todas as nossas
previsões.
E todavia, os abolicionistas continuam a arrastar o país às bordas de um
abismo que se abre a nossos pés.
Não se compreende como possa haver ainda um só abolicionista, diante
dos males que o abolicionismo nos tem causado já, e das calamidades
com que nos ameaça.(...)
Os abolicionistas não o podem negar, não são capazes de o desmentir.
Toda a sua retórica será inútil, toda a sua eloquência ridícula. Os
algarismos são esmagadores. Diante deles a lira de Nabuco emudece, a
guitarra de Patrocínio se destempera.
Não há nada que mais desconcerte um poeta do que dizer-lhe que ele
precisa de pão para viver, quando ele nos arroubamentos da fantasia,
com os olhos voltados para a lua pálido e escarnifrado, (...)
Deixem os abolicionistas por um momento, as suas liras e suas guitarras,
descansem a fatigada musa, e vejam o seguinte:
Quadro demonstrativo da renda da província do Ceará no mês de
setembro último: Importação 600 réis
Pobre e infeliz Ceará! Em que estado te puseram os abolicionistas! (...)
O Sr. Nabuco estará disposto a arrecadar essa renda, para viver dela?
107

Eis uma data memorável para as façanhas abolicionistas: Ceará 600 réis
A companhia francesa de navegação Chargeurs Réunis, acaba de
suspender suas viagens ao Ceará.
A importação e exportação daquela província é doravante por uma
jangada.
Quererá o jangadeiro fazer essa viagem por 600 réis!
Agora podem continuar a música. Venha a lyra do Sr. Nabuco e a
guitarra do Sr Patrocínio227

As críticas contidas nestas linhas tentam detratar a figura dos abolicionistas, tratandoos
como entes desligados da realidade, idealistas e esquecidos das questões mais objetivas da
sobrevivência. A abolição estaria levando a província do Ceará à falência e o perfil dos
abolicionistas seria frívolo e irresponsável.
Ainda sobre os tais “efeitos do abolicionismo” sobre o “pobre e infeliz Ceará “elencados em
página do Diário de Pernambuco, observa-se a capciosa descrição da suposta falência econômica
da Província do Ceará ocasionada pela libertação. Um exame das receitas arrecadadas entre os
anos de 1880 e 1885 demonstra que não houve uma grave crise gerada pela abolição cearense,
pelo menos no que tange ao números relativos à exportação:

TABELA 3- Arrecadação de impostos da província do Ceará ente1880 e 1885


Receita arrecadada pela Província do Ceará entre 1880 e 1885
Ano Valor

1880 857:691$450

1881 777:117$900

1882 820:980$760

1883 713:827$304
1884 675:139$485

1885 995:169$857

Fonte: Tomaz Pompeu de Sousa. O Ceará no Centenário da Independência do Brasil. Fortaleza


Typ. Minerva, 1926. V.2 p.606

Um dos itens de exportação mais relevantes para o Ceará naquele período era o
algodão em pluma. O volume de exportações deste item sofreu uma retração, mas tal

227
BNDigital Jornal Diário de Pernambuco de 24 de dezembro de 1884. Hemeroteca Digital.
108

queda já se desenhava desde 1882, não sendo, portanto, consequência direta da


abolição.

TABELA 4- Exportação de Algodão em pluma do porto do Ceará entre 1880 e 1885 com base no
Anuário Estatístico do Ceará

Algodão em pluma exportado pelo porto de Fortaleza


Ano Quilos Valor oficial
1880 2.071.625 945:553$000
1881 5.270.625 2262849$000
1882 4.345.702 1911:290$000
1883 4.433.771 1830:552$000
1884 3.072.195 1300:006$000
1885 3.159.515 1342:360$000
O artigo do Diário de Pernambuco também esboçou uma provocativa caricatura do
jangadeiro “A importação e exportação daquela província é doravante por uma jangada”.
“Quererá o jangadeiro fazer essa viagem por 600 réis! ”. Não era em vão tal afronta. A greve
dos jangadeiros foi um capítulo decisivo para o abolicionismo cearense e se tornou símbolo
de mobilização coletiva pela causa abolicionista.
Devido a questões estruturais o embarque e desembarque no porto do Ceará era
realizado através de pequenas embarcações (catraias, jangadas) que transportavam tanto
passageiros como mercadorias. No ano de 1881, um grupo de jangadeiros fez uma
paralização, a chamada “greve dos jangadeiros”, porque eram contrários ao embarque de
escravizados naquele porto. Eles deflagraram o movimento impedindo o embarque de um
grupo que seria levado para venda no Rio de Janeiro.
Um dos líderes do movimento foi Francisco José do Nascimento, negro, livre,
conhecido como Chico da Matilde. Este prático da capitania dos portos recebeu
posteriormente, em festejada viagem à Corte, o título de Dragão do Mar. Merece ênfase em
nossa narrativa outro membro do movimento dos jangadeiros: José Napoleão, negro, liberto.
Napoleão ao lado de sua mulher, a Tia Simoa, contribuem substancialmente ao movimento
exitoso, sendo descritos como articuladores significativos para o sucesso do movimento.
Destaco, mesmo que brevemente, as trajetórias destes personagens por um simples
motivo: apesar de festejada e aclamada esta posição do movimento que acaba por fechar os
portos cearenses ao tráfico interprovincial foi de diversas maneiras remodeladas numa
disputa de narrativas, que prioriza as ações do abolicionismo letrado e branco no Estado. O
pioneirismo e a atitude política destes personagens é tomada como mero sentimentalismo,
compadecimento da situação dos cativos. Para alguns estes articuladores da greve seriam
109

negros compadecidos e enternecidos com a situação de seus pares e não agentes que
efetivaram uma ação exitosa e ousada. Ora, como um liberto que havia comprado sua própria
alforria como Napoleão poderia estar ingenuamente compadecido da situação dos
escravizados? O movimento dos jangadeiros revela articulação política e planejamento.
Estes fatos passam ao largo das memórias construídas posteriormente228. O fato é que esta
greve se estendeu para o porto de Aracati e no Ceará não se embarcaram mais escravos.
Segundo Carlos Caxilé é possível inferir que esta paralização do vil comércio pode ter tido
algum impacto para os senhores:

A partir de 1870, com queda do cultivo algodoeiro, a exportação de


escravos tornou-se uma importante fonte de renda para alguns
proprietários. De 1871 a 1876 foram exportados 3.256 escravos. A saída
desses cativos não abalou economicamente a província devido ao fato
de a mão de obra servil ser pouco empregada nas atividades
agropecuárias.229

Críticas corriam em paralelo com as saudações à emancipação. Ou seja, tanto de


apregoava uma “decadência econômica” em decorrência da abolição como um idílio
de liberdade e civilidade Apesar das duras críticas que, das mais diversas formas se
multiplicaram nos jornais, o fato é que o Ceará passou a ser o destino de muitos
escravizados que tiveram apoio para fugir ou protagonizaram suas fugas, era a terra
livre.
Oriundos das mais diversas regiões chegavam no “Canadá brasileiro”259 em
busca da liberdade. Eduardo Silva sugere que a montagem de um “underground
abolicionista” teria surgido em analogia a “underground railroad”, criado por
abolicionistas norte-americanos que enviavam escravizados para os estados livres do
Norte ou para o Canadá. A discussão de Eduardo Silva estabelece uma relação entre o
abolicionismo brasileiro e a tecnologia (ferrovias, telégrafos 230), destacando que as

228
Patrícia Xavier discute a construção da memória sobre o Dragão do Mar, analisando o período desde a
comemoração do cinquentenário da abolição cearense, 1934, até a publicação da obra “Um herói sem
pedestal” de Roberto Átila do Amaral, em 1956XAVIER. Patrícia P. O Dragão do Mar na “Terra da Luz”:
a construção do herói jangadeiro (1934-1958). Dissertação de mestrado em História PUC-São Paulo,2010
141f.
229
CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. Abolição no Ceará In HOLANDA, Cristina Rodrigues (org) Negros no
Ceará: História memória e etnicidade. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult/Imopec, 2009 p181-198p.185 259
SILVA. Eduardo. Domingo, dia 13: o underground abolicionista, a tecnologia de ponta e a conquista da
liberdade. In Caminhos da Liberdade: Histórias da Abolição e do Pós-Abolição no Brasil. ABREU. Martha
e PEREIRA. Matheus Serva (orgs.) Niterói : PPGHistória- UFF, 2011.
230
Um exemplo de Eduardo Silva sobre o uso do sistema de telégrafos associado ao transporte ferroviário
está na passagem: “Uma mensagem mandada de Recife em 1885 informava, por exemplo, que em certo
110

ações estavam articuladas com as tecnologias de ponta da época. No roteiro projetado


por André Rebouças o Ceará figura como destino, assim se apresenta o roteiro:

O plano de fuga vale para todo o Sudeste, mas o caminho para a


liberdade deve começar, muito simbolicamente, (1) em São Paulo,
província então considerada o último bastião da reação escravista, e
(2) “junto ao túmulo” do grande abolicionista Luís Gama, exescravo
e um dos ícones do movimento abolicionista no Brasil. E depois
segue o “Caminho de Ferro Subterrâneo” direto para a mitológica
“Ceará Livre”, província festejada no underground abolicionista
como a verdadeira ilha da utopia, “o Canadá
brasileiro”, “a Terra da Luz”.231

A mitológica província do Ceará livre. Ecoando esta esperançosa expressão, me


proponho a discutir mais um pouco desta “Terra da Luz” ainda que seja percorrendo
as sendas de suas sombras.

2.3 As sombras da abolição: um projeto de imigração europeia para o Ceará.

A abolição cearense, mesmo precoce, evidenciou tensões que se acirraram nos anos
posteriores, especialmente com relação ao emprego da mão de obra do ex-escravizado.
Destaco um exemplo encontrado ao explorar as repercussões das festividades do 25 de
março, efeméride central no processo abolicionista local. O Jornal do Comércio232, no
Rio de Janeiro, publica uma matéria acerca das “festas esplêndidas” e pomposas que
marcaram a passagem do 25 de março de 1887 na Próvincia do Ceará, três anos após a
abolição. O noticioso descreve que, na ocasião, foram saudados os “vultos mais
proeminentes do abolicionismo da província e do Império” e que no salão do Clube
Literário aconteceu a inauguração de um retrato de José Bonifácio.
A descrição da festividade concorrida e aparatosa é seguida de outras notas, que dão
conta de fatos ocorridos na Província do Ceará em março daquele ano 233.Foi entre estas
notas, que aparecem logo depois da descrição da comemoração da abolição no Ceará, um

navio a vapor seguiam “três ingleses de nomes Vicente, Carlota e Estefania”. Outras mensagens falavam
em carregamentos de “abacaxis” ou grupo de “ingleses pernambucanos”, isto é, fugitivos que embarcaram
naquela província e tomaram o rumo da liberdade, no caso, o Canadá brasileiro, a província do Ceará.”
(SILVA, 2011) p.35
231
SILVA, 2011, p.37
232
BNDigital Jornal do Commercio-Rj 17 de abril de 1887/Páginas 2 e 3. Disponível na Hemeroteca Digital
da Biblioteca Nacional.
233
Trata-se de um apanhado de notícias sobre o Ceará, desde as obras do açude de Quixadá, passando pelo trágico
acidente com a embarcação “Bahia”.
111

elemento que me chamou a atenção. Trata-se de um projeto para estimular a imigração


de europeus para o Ceará, especificamente para a região da serra de Baturité234. Estaria
tal projeto relacionado à efeméride abolição ou só foi colada na síntese a ser remetida ao
jornal da corte?
Uma pesquisa nas páginas do jornal cearense Libertador revelou mais um indício
para o amadurecimento do presente debate. Ali encontrou-se publicado em 31 de março
sob o título “PROJECTO” o seguinte:

(...) para iniciar uma revolução na lavoura da província, fazendo vir,


com os homens, os novos instrumentos agrários e métodos de cultura,
os produtos diversos a que se prestam nossas serras; a economia, o
asseio e a higiene rural; o enforcamento da rotina, a morte súbita da
dívida, a saúde, a abundância, a paz, a prole; enfim o trabalho,
remunerado para corrigir a preguiça, e a experiência, para dar de pio nas
dívidas, pondo tudo adiante235

A suposta capacidade de vencer a preguiça, de ensinar o asseio, a higiene rural,


inovar as técnicas agrícolas, pondo um fim ao endividamento dos proprietários rurais,
transformavam o imigrante no grande agente civilizador. Em contraposição aos nativos,
índios e negros, o homem livre branco era portador da mão de obra mais qualificada e a
verdadeiramente digna de remuneração.
O texto segue com proposta da criação de um fundo de imigração, em títulos da
dívida provincial, seguido de detalhes sobre os juros, o número de prestações e outros
pormenores de como seria gerido o projeto de estímulo à imigração. Deixava claro quem
seriam os únicos beneficiários: “Chefes de família plantadores franceses, belgas, suíssos
[sic] ou italianos, que se quise[ssem] estabelecer com lavoura na serra de Baturité”.236
Já ao apresentar o projeto nas páginas do Jornal do Commercio, encontramos a
descrição: “Um amigo do Libertador nesta corte enviou-me um projeto, como ele diz,
destinado a incitar uma revolução na lavoura da província pela vinda de imigrantes para
aqui”. A necessária revolução na lavoura deveria contar com esta suposta tecnologia

234
O maciço de Baturité é composto por um conjunto de montanhas e abriga ponto mais alto do Ceará, a
altitude garante um clima ameno, frio, se comparado ao sertão cearense. O acesso via cidade de Baturité
dista 107 km de Fortaleza. No maciço de maciço de Baturité foi registrada a temperatura mais baixa em
cidade cearense. Foram 10o C, na cidade de Guaramiranga, sendo a temperatura média local por volta de
20o C.
235
BNDigital Jornal Libertador 31 de março de 1887 Disponível na Hemeroteca Digital
236
Idem
112

dominada pelo estrangeiro, mas o que estava em jogo eram as também supostas
qualidades morais e laborais dos imigrantes europeus.
Associar a imigração europeia a lugares de clima frio no Brasil não era novidade.
Analisando as três décadas posteriores à Lei Áurea no Rio Grande do Sul, o trabalho de
Marcus Vinícius Freitas Rosa 237 discute as principais consequências da política de
imigração em um país profundamente marcado pela escravidão. Ao discutir as propostas
acerca da imigração de europeus, proposições estas capitaneadas por ilustres bacharéis
gaúchos, destaca o uso do clima frio como fator de justificativa para o estímulo a tal
imigração, dando relevo aos usos racializados desta presença europeia:

Para além do frio que propiciava o acolhimento e o desenvolvimento de


europeus, a população da província estaria praticamente livre do
hibridismo sanguíneo. Assim, caminhava-se rumo ao branqueamento
da história da região.238

A análise do autor evidencia a combinação entre clima frio e imigração europeia e


problematiza a cristalização de uma ideologia de branqueamento ancorada na ideia de
formar uma “Europa nos trópicos”, que no caso gaúcho serve de elemento no jogo político
deste, articulando-se inclusive com as aspirações do republicanismo daquele estado. A
região mais fria da Província do Ceará, a Serra do Baturité, se prestou ao cenário de
ambições neo-colonialistas no pós-abolição. O projeto, cujo autor não foi possível
conhecer revela uma evidente intenção de branqueamento, num momento no qual as
teorias raciais e os evolucionismos eram temas bastante debatidos, e no qual, estudiosos
afirmavam a superioridade do homem branco sobre os demais tipos humanos, a nação do
modo como era concebida pelas ideias de Ernest Renan 239240 foi uma alternativa que
influenciou as interpretações dos letrados brasileiros sobre a formação do país e do seu
povo e chegou a influenciar autores cearenses, muitos dos quais diretamente envolvidos
na senda abolicionista241.

237
ROSA. Marcus Vinicius de Freitas . Além da invisibilidade: História social do racismo em Porto Alegre
durante o pós-abolição (1884-1918) Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História, do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título
de Doutor em História, na área de concentração em História Social 2014. P.39
238
Ibid, p.39.
239
RENAN, Ernest. Que é uma nação? Revista Plural; Sociologia, USP, São Paulo, 4, p. 154175, 1. sem.
240
. p. 162. 130.
241
FONSECA. Jamily Marciano. Raça, natureza e sociedade: o pensamento evolucionista em Fortaleza
na década de 1880. Dissertação de Mestrado em História Social UFC, 2015,164f. p142 271 Ibid, p.149.
272
Ibid, 146.
113

A defesa da abolição dos escravos, bastante presente nos discursos dos


letrados, objetivava a formação do mercado de trabalho livre no Brasil
para que o País se modernizasse e se industrializasse. Desse modo, o
desenvolvimento das forças produtivas o tornaria econômica e
socialmente uma nação nos padrões europeus271.

Para Jamily Fonseca alguns intelectuais cearenses comungam dos princípios


evolucionistas e estariam convictos de que os “males” da miscigenação seriam
paulatinamente superados pela adaptação ao meio e pelo trabalho.

Nas reflexões acerca do Brasil como nação notamos a ausência de


referências à composição racial do povo. Acreditamos que, para a elite
letrada liberal do Ceará, acima da característica composicional dos
membros do País, que seriam tidos como degenerados e atrasados,
estava o seu progresso, o qual seria atingido por meio do trabalho dos
cidadãos.272

Para Célia Marinho Azevedo242, o imaginário do medo centrado na figura do “negro


instável e perigoso que exigia um permanente controle da parte do branco”243, vai cedendo
lugar a outro imaginário de paz e progresso. Tal mudança se justifica pela incorporação
do imigrante branco como personagem redentora dos nossos “males de origem”. A obra
destaca aspectos de projetos emancipacionistas distintos: aqueles que postulavam o
aproveitamento do próprio potencial nacional de força de trabalho e outro que acreditava
na imigração estrangeira, neste sentido discute as características do discurso de estímulo
á imigração:

— em primeiro lugar, faz-se a exaltação do imigrante branco, da


necessidade de sua vinda a fim de se instaurar um tempo de progresso
no país, com a efetiva formação de uma nacionalidade e uma cidadania;
— em segundo lugar, temos a afirmação taxativa e colocada de forma
inquestionável da incapacidade do negro para o trabalho livre. O negro
é incapaz não só devido ao peso da escravidão sobre a sua formação
moral, como sobretudo por pertencer a uma “raça inferior”;
— em decorrência desta assertiva, o discurso imigrantista
apresenta um terceiro elemento fundamental pela constância com que
aparece: a afirmação da passividade dos nacionais, com exceção, é
claro, da própria elite. 244

242
AZEVEDO, Célia Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987
243
Idem p. 253
244
AZEVEDO, Célia Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 276 Ibid., p254.
114

A proposta de imigração branca e europeia para o Ceará dá indícios de que a


difundida crença de que o contingente de afrodescendentes era exíguo, é infundada, ou
digna de ser questionada por mais este parâmetro. Eram elementos apontados como
características que tornavam o negro inapto ao trabalho:

“falta de energia, de iniciativa, de responsabilidade e disciplina, em


suma, incapacidade para o trabalho livre e para a vida regrada numa
sociedade civilizada; baixo nível mental e irracionalidade; tendência
para a vagabundagem, a bebida, o crime. Em resumo, a negação de tudo
que era atribuído ao branco enquanto caracteres inatos. Assim, além de
justificar a impossibilidade de aproveitá-los como trabalhadores livres,
a imagem de seres passivos servirá para descartá-los totalmente do
discurso do presente, referindo-se a eles apenas num futuro indefinido,
quando já teriam sido regenerados racialmente pelos seres atuantes, os
imigrantes brancos. Por regeneração racial entendia-se não só a
miscigenação, como também “o exemplo civilizador”, o que os
branquearia física e moralmente.276

A memória da abolição precoce, mesmo ao ser repensada em 1969 por Djacir


Meneses245 guarda a indelével da marca da construção de um protagonismo branco,
mesmo que esteja em jogo a vida e o destino dos pretos. Este autor ao rememorar os
feitos da geração dos ilustrados abolicionistas cearenses assim se refere ao documento
“Synopse histórica da inauguração da Sociedade Cearense Libertadora”246 :

“no florido estilo da época em que os cronistas sabiam alguma


gramática, mostra-nos que não era um movimento das ruas,
capitaneado por negros alvoroçados. O escravo assistia quase atônito à
manifestações em torno. Mas era um movimento das elites, ganhara os
salões, a imprensa, a academia, a Assembleia, o Governo.p.135

Djacir Meneses logo esclarece que não tivemos um movimento encabeçado por
“negros alvoroçados” entenda-se aí: negros agitados. A afirmação remete ao temor que
se tinha de revoltas protagonizadas pelos escravizados. No momento da publicação do
artigo de Djacir Meneses na Revista do Instituto histórico do Ceará faltavam apenas 15
anos para que se fechasse um século completo da propalada abolição na Terra da Luz,
mas a interpretação do momento como uma dádiva de ilustrados intelectuais ainda
imperava. A festa pomposa e galante para a qual a sociedade cearense foi convidada tinha

245
MENESES. Djacir. Debate sobre o abolicionismo cearense. Revista do Instituto do Ceará. anno LXXI1967
p-132-139
246
O autor da Synopse histórica foi Antônio Martins, então secretário da Sociedade Perseverança e porvir.
115

seus protagonistas bem definidos. O alarido das lojas a divulgarem seus produtos era a
certeza de atrair consumidores do fino e distinto círculo em torno das elites letradas.
Ao discutir discursos de Rui Barbosa, Wlamira Reis nos inspira acerca da
construção de submissão, alimentada pela ideia de uma “raça emancipada”, que deveria
ser grata a “raça emancipadora”. As distinções guardam a diferença e estabelecem uma
hierarquia de muitas formas reiterada pela sociedade.

No pós-abolição, atribuir determinadas posições políticas ao


primitivismo africano e/ou à condição servil foi parte do jogo delicado
e sutil, de constituição da “raça emancipada” e da “raça emancipadora”.
Os termos, recorrentes nos discursos de Rui Barbosa, sinalizavam para
identidades que atualizavam vínculos de proteção e gratidão,
ignorando-se que grande parte da população de cor já era liberta ou livre
antes de maio de 1888.

O que motivou Djacir Meneses a retomar o assunto abolição e deixar claro o papel
do ilustrado em prol da liberdade do , segundo ele, “escravo atônito” foi a necessidade de
rebater a divulgação em artigo do pesquisador americano Bill Chandler247. O pesquisador
norte americano ao chegar ao Ceará sem vínculos com a assentada linhagem de autores
que teciam louvores à geração dos “emancipadores” publicou artigo discutindo a
permanência de um núcleo de exploração do trabalho servil na cidade de Milagres248249.
O objetivo da réplica de Meneses visa reduzir ou até anular o impacto da divulgação do
caso:

Não seria, pois, a manifestação isolada de um município que sonegaria


o laurel redentor a toda uma província; o fato esporádico não tem
visibilidade histórica e, portanto, não se torna um fato sociológico. 281

A tentativa de Djacir Meneses de reduzir o impacto causado pelo artigo de Chandler


acaba forjando uma deturpação descabida, um arranjo que revela a necessidade premente
de lustrar a memória estabelecida sobre os fatos de 1884. Para o autor o fato de ter sido
comprovada a fraude contra a Abolição em apenas uma cidade, isto não teria relevância.
Seu claro interesse foi reafirmar o sucesso da abolição cearense, minimizando as

247
CHANDLER, Bill. Os escravistas renitentes de Milagres: um pós-escrito à história da escravidão no Ceará.
In. Revista do Instituto do Ceará, tomo LXXX, 1966.
248
Mais detalhes sobre o caso de Milagres estarão no próximo item.
249
MENESES. Djacir. Debate sobre o abolicionismo cearense. Revista do Instituto do Ceará. anno LXXI-1967 p-
132-139, p.139
116

contestações e deixando clara uma interpretação que negava alguma participação dos
escravizados.
Rafael Caxilé ao discutir a construção do discurso que legitimou um “caráter
empreendedor ao povo cearense, constituído sob os auspícios da abolição e dos
abolicionistas”, destaca o quanto os ecos do abolicionismo cearense são retomados como
referência de distinção e civilidade, e questiona:

(...) para quem de fato o movimento abolicionista foi importante? Para


os libertos ou para a concretização de uma sociedade capitalista
burguesa, na qual valores como progresso e modernidade só seriam
possíveis com a abolição da mão-de-obra escrava? 250

A literatura e o jornalismo oitocentista foram capazes de gerar distinção 283,


destacando o letrado como principal elaborador, difusor da civilização. O grupo dos
intelectuais não se absteve de ter vasta interferência no campo político-partidário284.
Tanto as publicações quanto os círculos de leitura realizavam e efetivavam tal distinção e
reforçavam os laços com o pensamento europeu, a exemplo da Academia Francesa (1873-
1875). Para Almir Leal Oliveira, a inspiração do materialismo cientificista, consolidou a
abolição da escravidão da província cearense:
Os movimentos sociais da década da abolição, a reorganização da
província, o movimento republicano e a tentativa de inserção do
Ceará no progresso material da civilização europeia foram os temas
que provocaram debate entre os intelectuais. A imprensa seria o
espaço privilegiado para essas ações. 285

A expressão “Terra da Luz” 286 remete ao reconhecimento da Província do Ceará


como berço da eliminação formal do trabalho escravo. Neste percurso, é flagrante o
reforço do posicionamento dos intelectuais cearenses dedicados a tecer a narrativa na qual
o pioneirismo na libertação dos escravos seria explicado por diversos fatores, com
destaque para o papel das associações abolicionistas e as dificuldades impostas pela seca,
como fator de desestabilização das atividades econômicas. Segundo este quadro
interpretativo, a impossibilidade de manutenção da mão de obra levaria à abolição. Em

250
CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. “Abolição no Ceará” In HOLANDA, Cristina Rodrigues (org) Negros
no Ceará: História Memória e Etnicidade. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult/Imopec, 2009 p181-198p.196
283
CARDOSO, Gleudson Passos. As repúblicas das letras cearenses: literatura, imprensa e política
(18731904). 266p. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2000.
p. 2132. OLIVEIRA, Almir Leal de. Saber-poder – o pensamento social cearense no final do século XIX.
1998. Dissertação (Mestrado em História Social) Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1998.
OLIVEIRA,
117

nenhuma medida a ação do escravizado foi considerada como uma força pró-ativa, capaz
de interferir na dinâmica da exploração colonial e sobre a abolição no Ceará logo foram
tecidas narrativas que tiveram, a princípio, o objetivo de destacar e narrar um pioneirismo
aguerrido e benevolente dos abolicionistas. Nas narrativas historiográficas, as formas de
resistências dos escravizados permaneceram invisíveis por muitos anos, e só ganham
relevo nas produções sobre o tema com uma produção historiográfica mais recente. 287

Cláudia Freitas. Banquete literário: as ideias “científicas” do século XIX nas produções literárias de
Fortaleza (O Club Literário). 2000. 258p. Dissertação (Mestrado em História). Dissertação de Mestrado
Recife, 2000.
284
FERNANDES, Ana Carla Sabino. A Imprensa em pauta: entre as contendas e paixões partidárias dos
jornais Cearenses, Pedro II e Constituição na segunda metade do século XIX/ Ana Carla Sabino
Fernandes. -Fortaleza, 2004.
285
OLIVEIRA, Almir Leal. Universo Letrado em Fortaleza na Década de 1870. In: SOUSA, Simone de e
NEVES, Frederico de Castro (orgs.). Intelectuais. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002, p.38.
286
Atribui-se a José do Patrocínio a criação do epíteto “Terra da Luz”.
287
Algumas obras de referência sobre o tema: SILVA, P. A. O. História da escravidão no Ceará: das
origens à extinção. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2002|SOBRINHO, J. H. F. Catirina, minha nêga, tão
querendo te vendê. Escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza:
SECULT, 2011. (Coleção Nossa Cultura)|SOUSA, A. V. C. Da “Negrada Negada” a Negritude
Fragmentada. O Movimento Negro e os discursos identitários sobre o negro no Ceará (1982-1995).
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006.| CAXILÉ, C. R. V.
Olhar para além das efemérides: ser liberto na província do Ceará. Dissertação (Mestrado em História)
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2005.|FUNES, E. A. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone
(Org.). Uma nova história do Ceará, 3. ed.Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004, p.103-132|
A precoce abolição cearense esteve permeada pelas tensões inerentes a uma
sociedade que conviveu com a servidão, as relações não se dissolvem à força da lei. O
exercício da liberdade era necessário e logo surgiram indícios de que o lugar dos libertos
tinha que ser conquistado para além das festas e solenidades que agitaram a Província.
As complexidades das relações servis não se esvaem por decreto. Há de se
experimentar a liberdade, diante e apesar de, uma sociedade rigidamente moldada pela
exploração do trabalho de pessoas escravizadas. Então, antes de pensar no fato de ter sido
a cidade Milagres um núcleo escravocrata resistente, podemos pensar no tipo de relações
que emergem depois de rompido o laço da posse e que se estabelecem inúmeras formas
de relações nas quais o ex-escravizado esteve mais vulnerável, exposto às circunstancias
e impelido a negociar em novos termos. 251

251
Uma contribuição acerca do tema da abolição percebida a partir de registros memoriais vem de
MARTINS, Paulo Henrique de Souza. Escravidão, Abolição e Pós-Abolição no Ceará: sobre histórias,
memórias e narrativas dos últimos escravos e seus descendentes no Sertão cearense. Dissertação de
Mestrado Universidade Federal Fluminense, 2012 128f,
118

2.4 Um tardio eco abolicionista no Cariri?

Milagres foi o único município onde usou-se comprovadamente de artifícios para


encobrir a permanência do trabalho servil. O fato é que este atraso dos municípios do
Cariri e a insistência de Milagres em burlar a Lei sinalizam que nas terras do Cariri a
adesão a abolição foi lenta, enfrentou percalços sendo o mais evidente, a resistência dos
senhores que chegaram ao cúmulo de fraudarem papéis oficias. Numa tentativa de
justificar tal atraso ou lentidão da adesão do Cariri ao ideal abolicionista Irineu Pinheiro
propôs:
Era longínquo o Cariri, penosíssimas as viagens, a lombo de burro, de
Fortaleza até a região meridional do Ceará. Limitou-se, quase, a
campanha redentora à capital e suas zonas mais próximas do litoral. Não
foram lá os tribunos da emancipação, e os poucos leitores de gazetas,
no interior, mais se interessavam pela luta dos partidos socó e carrapato
do que pela sorte do cativo que lhes não convinha alforriar. Eram,
naquela época, negociantes e donos de sítios, em grande parte, senhores
de escravos, bens de muito valor, cujos preços superavam os das
próprias terras por eles lavradas á custa de seu suor, diuturnamente...por
não ter sido intensa no Cariri a propaganda antiescravista, por interesses
dos proprietários de cativos, só à última hora, quando não havia mais
jeito de fugir ao movimento, foi que ele, o Cariri, aderiu à campanha
reivindicatória.252

O autor desta interpretação era filiado a uma geração de estudiosos que estavam
dispostos a demonstrar a precoce civilidade do Crato253, destacando o florescimento das
letras e a atuação política. Estranhamente há um silêncio sobre o tema que era
efervescente no debate político da época: a abolição. Não é de estranhar que tentasse
construir argumentos que justificassem o atraso em aderirem à causa da abolição. O
mesmo autor admite em outra passagem:

Nas cartas de liberdade, que se podem ler no primeiro cartório do Crato,


dizia-se que os cativos, da data da carta em diante, eram livres como se
tivessem nascido “forros da barriga da sua própria mãe”, mas, não raro,
sob a condição de eles continuarem a servir os seus libertadores “ até o
fim da vida destes”254

252
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária,1963 p.436-438.
253
VIANA. José Ítalo. O Instituto Cultural do Cariri e o centenário do Crato: memória, escrita da História
e representação da cidade. Dissertação de Mestrado UFC. 2011
254
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária,1963 p.275
119

Vale destacar que afirmar o alto custo do escravizado para o senhor e descrever seu
trabalho em sítios ou comércios poderia ser uma estratégia do autor para fazer crer que os
escravizados na área urbana do Crato eram pouco explorados e não submetido a jornadas
exaustivas, pelo menos se comparadas coma a rotina dos engenhos de açúcar que também
existiam no Cariri. A produção de açúcar era relevante no cariri durante o período.
Problematizar a narrativa de Irineu Pinheiro, feita já no século XX e que tenta justificar o
atraso, não é mero rebate às suas colocações, é uma forma de problematizar questões
fundantes sobre o trabalho servil e a abolição. Se trata de perceber o quanto é silenciado
ou relativizado para se construir uma narrativa que justifique ou minimize o que
aconteceu. Também contribui para o questionamento o argumento do “tardio eco
abolicionista”, a ação da Libertadora Cratense, apresentada ainda no primeiro item deste
capítulo. Outro argumento que tentou esclarecer a postura atrasada do Cariri com relação
à onda abolicionista cearense é que na região não existiam muitos escravizados,
especialmente na tentativa de evitar a comparação da atividade açucareira da zona da mata
com a do Cariri:

O engenho de rapadura ou de aguardente, de rendimento econômico


diminuto, não permitiu a importação de crescido número de negros.
Parece-me que vieram mais, na qualidade de mestres de rapadura ou
especializados em certas coisas peculiares a moagem, procedentes da
zona da mata pernambucana, ou do Recôncavo Baiano, onde imperava,
onipotente, a cana de açúcar. Na realidade, porém é que a quantidade
relativamente diminuta dos escravos que o sul cearense possuía,
alcançavam preços exorbitantes, em relação à cotação de qualquer
produto, a ser negociado. 255

Parecem duas faces da mesma moeda: poucos escravos e pouca adesão à causa
abolicionista. Trata-se de é um arranjo explicativo falho. Compreendo que diante de uma
província que comemorava o título de pioneira da liberdade e Terra da Luz, admitir que
a sociedade cratense era, com todas as letras, majoritariamente escravocrata não fazia boa
figura.
Mais recentemente Carlos Rafael Dias256 retoma o argumento de um movimento
abolicionista pouco expressivo no Cariri do século XIX, considera que “o movimento
abolicionista não aconteceu no Cariri. Ao contrário, a instituição escravocrata era

255
FIGUEIREDO FILHO. José Alves. O Ceará antecipa-se à Abolição, no País. Revista Itaytera- Instituto
Cultural do Cariri. Ano 1972 no.16p 181-186.p.184
256
DIAS, Carlos Rafael. Encantamento e civilização: construções discursivas de uma região (o Cariri
cearense) Tese de Doutorado UFF Universidade Federal Fluminense, 2019, 554f. 294 DIAS, 2019, p.305.
120

renitente nesta região, como prova postura do município de milagres de manter a


escravidão mesmo depois da efetivação do Marco abolicionista”. Para este autor também
não havia um expressivo grupo engajado no tema:

(...) a região não dispunha de um segmento social médio


suficientemente forte e abrigador do elemento intelectual tido como
principal crítico da escravidão. Ademais, havia uma limitação da ação
liberal na região. Nas páginas do jornal O Araripe, porta-voz do partido
liberal no Cariri, observa-se com regularidade a defesa do emprego do
trabalho escravo na lavoura também, publicavam-se recorrentemente
anúncios pagos pelos senhores de escravos com características físicas e
comportamentais de cativos fugidos, oferecendo recompensa em
dinheiro pelas suas capturas assim havia pouco espaço e condições para
que os ideais abolicionistas medrassem em terras caririenses.294

O que podemos deduzir é que houve sim um movimento e que foi silenciado tanto
durante sua vigência quanto nos primeiros levantamentos históricos. Neste sentido muito
bem nos descreve também Carlos Rafael Dias a valoração dada ao tema do Ceará
Pioneiro, Terra da Luz. Sem nada de marcante ter a dizer de si neste contexto silenciou a
primeira geração de historiadores do Cariri?
Otonite Cortez257 ressalta que uma peculiaridade do calendário cívico da cidade do
Crato: era o fato rememorar as ações de caráter liberal dos cratenses, principalmente 1817
e 1824. Ações que são proposituras radicais, cabendo aos seus protagonistas a
denominação de liberais radicais ou exaltados” e que apesar desta postura quase de
vanguarda :
“as práticas liberais dos cratenses pautaram-se sempre num liberalismo
conservador, haja visto o engajamento de um número reduzido de
intelectuais na campanha abolicionista e republicana, assim como a
manutenção de práticas político-eleitorais conservadoras, voltadas para
a manutenção de hierarquias sociais previlegiadoras dos estratos
superiores da sociedade. Exemplo disso é o perfil da Câmara Municipal,
historicamente composta de proprietários de terra e de engenho,
membros dos altos escalões da Guarda Nacional, ricos comerciantes e
profissionais liberais destacados pelo status inerente à profissão.258

A mesma autora ao problematizar o engajamento da intelectualidade cratense na


causa da abolição esclarece que: “em 1887, era editado no Crato o jornal Vanguarda,
declaradamente a favor da Abolição da Escravidão e da República. Todavia a presença de

257
CORTEZ, Antônia Otonite. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Dissertação de
mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
258
CORTEZ, 2000, p.26
121

escravos na economia caririense do oitocentos era diminuta” 259 . O jornal, de fato


declarava apoio à causa da abolição, mas surgiu depois da abolição cearense e só em
algumas passagens comenta o tema. Já a negação, ou minimização da presença escrava
no Cariri é uma questão que merece cuidado.
O fato de ter existido, como vimos no item inicial deste capítulo, uma Libertadora
Cratense que realizou eventos públicos e assegurou cartas de alforria já expressa a adesão
de alguns cidadãos Estamos diante de um tema ainda carente de pesquisas que façam o
cruzamento de fontes para, de fato, discutir a questão sem a pressa, quase envergonhada
dos primeiros cronistas que negaram tanto a presença de plantéis de escravos, quanto da
mobilização abolicionista, gerando um silêncio que já se torna, à luz de novas fontes,
bastante incomodo. Neste sentido elaborei um breve levantamento sobre a participação
de intelectuais do Crato, e proximidades, no movimento abolicionista.
Ao enfrentarmos os argumentos acerca do “tardio eco abolicionista” nos deparamos
com uma questão que exige trânsito e comparação entre fontes diversas, além da
exploração de algumas trajetórias biográficas. Em primeiro lugar, a distância não era
impedimento para circulação de jornais, pessoas e correspondências. O Cariri não era uma
parcela isolada e desconexa. No capítulo anterior tratamos das reflexões de cunho
abolicionista presentes nas páginas de A Voz da Religião 260 inspirado nas missões do
Padre Ibiapina. Corrobora com esta apreciação o fato de que um dos mais destacados
tribunos do abolicionismo, José Marrocos, atuava no Cariri como educador e editor de
jornal naquele período. José Marrocos esteve presente em diversas frentes, como orador,
articulador de ações diretas, doador e autor de discursos e artigos.
Um outro personagem, atuante abolicionista, foi o poeta Antônio Barbosa de
Freitas261 . O jovem saído do Cariri manteve intensa atuação nos núcleos abolicionistas
da capital. Versos de sua autoria foram por ele recitados no evento que comemorava o
aniversário da abolição da escravidão em Cuba300. Em um congresso dos abolicionistas
cearenses na cidade de Maranguape 262 recitou poemas num sarau que foi seguido de
festiva passeata pelas ruas da cidade, na ocasião um dos discursos de encerramento foi
proferido por José Marrocos 263 . Mais uma vez se encontram Marrocos e Barbosa de

259
CORTEZ, 2000, p.38
260
BNDigital Jornal A voz da religião no Cariri, jornal católico que circulou de 1868 a 1870.
261
Jardim 21/03/1860- Fortaleza 24/01/1883
300
Cearense, 19 de fevereiro de 1881, p2.
262
Cidade a 27 Km da capital do Ceará, Fortaleza.
263
BNDigital Jornal Cearense, 28 de maio de 1881 p. 2
122

Freitas em 31 de maio de 1881, juntos com outros ativos abolicionistas, participaram da


recepção festiva ao vapor Pará que trazia líderes da Sociedade Libertadora. Os encontros
não se estenderam por muito tempo, Barbosa de Freitas faleceu aos 23 anos em 1883,
vítima de tuberculose. As homenagens se multiplicaram saudando seu talento, seu
empenho abolicionista e lamentando a precoce partida.264

Consegui mapear aspectos da atuação de José Marrocos em diversas ocasiões,


partindo do que é apresentado no jornal Libertador. Participou de uma das comissões do
bazar de dezembro de1880265; estava designado para integrar a “comissão para a recepção
dos libertos no Passeio Público, no ato do dia 25 de março de 1881; esteve presente, tomou
a palavra e realizou pronunciamento na solenidade de inauguração da Sociedade Cearense
Libertadora 266 ; doou , junto com outros, bilhete de loteria 267 para a Libertadora
Cearense 268 ; em parceria com outros participou da libertação 269 de Anna, 32 anos,
comprada de sua senhora (não fica claro se com fundos próprios, ou com fundos da
Libertadora). O nome de José Marrocos figurava no rol de membros da Sociedade
Cearense Libertadora em todas as edições comemorativas.
Outro aspecto da ligação de José Marrocos à causa abolicionista vem à tona através
de um anúncio publicado no Jornal Pedro II270. O anúncio tratava de uma fuga de uma
família de escravizados. A fuga ocorreu na noite de 25 de abril de 1881 e, segundo registra
o anúncio “foram roubados 5 escravos a saber: Guilherme, cabra de 19 anos, alto, seco,
sem barba, tem o vício de embriagar-se. Carlota, cabra, mais de 45 anos, cria cabelos,
mãe de Guilherme. Maria, cabra, pálida, de 18 anos, bastante alta e corpulenta, cria
cabelos, filha de Carlota, Anacleta, cabra, de 12 a anos, de pequena estatura e Pedro,
mulato de 11 anos, estava aprendendo a pedreiro”271. Quem assinava e se responsabilizava
pelo transporte e por uma gratificação era o proprietário Antônio Pereira de Brito Paiva272
que apelava aos que “notícia tiverem dos ditos escravos, que os capturem e remetam, que

264
AQUINO. J Lindemberg de. Um abolicionista do Cariri In Revista Itaytera no.30, ano 1996 p 61-62
265
BNDigital Jornal Libertador, ano1. No1. p.3
266
BNDigital Jornal Libertador, 15 de janeiro de 1881, Ano 1, No. 2, p.7
267
A doação de bilhetes de Loteria era muito comum e aparece registrada em várias edições do Libertador.
268
BNDigital Jornal Libertador, 16 de junho de 1881, ano 1, no. 11, p.4
269
BNDigital Jornal Libertador, 19 de junho de 1881, Ano 1, no. 14, p.3
270
Jornal conservador editado em Fortaleza, Ceará, entre os anos de 1840 e1889.
271
BNDigital Jornal Pedro II, 26 de maio de 1881,no.41, p4.
272
Antônio Pereira do Brito Paiva, ou Coronel Brito Paiva foi deputado provincial em várias legislaturas,
foi presidente da Câmara até janeiro de 1881 ( ano da denúncia da fuga).
123

serão bem gratificados; desde já protesta contra quem quer que os tenham furtado ou os
acoitar, fazendo efetiva sua responsabilidade criminal e civilmente”.
Em uma pequena coluna, publicada logo abaixo do anúncio, uma acusação: “Depois
de ter sido publicado o presente anúncio, foram apreendidas em casa de José Joaquim
Telles de Marrocos, nesta capital, as 3 escravas - Carlota, Maria e Anacleta, faltando os
2- Guilherme e Pedro”273. Pedro Alberto Silva274 registra que responderam como réus:
José Marrocos, Francisco José do Nascimento (“Dragão do Mar”), Antônio Bezerra, Isaac
Amaral e Francisco Perdigão, todos estes membros da Libertadora Cearense.
Aconselhado a não levar o caso a diante, posto que conseguiu recuperar as quatro escravas
(Carlota, Maria, Rosa e Anacleta) o Coronel pôs fim ao litígio. O fato deixou possibilidade
para compreendermos que a atuação de José Marrocos poderia não se limitar aos eventos
sociais e às publicações, estando engajado em ações que desafiavam as leis vigentes275.
O engajamento na causa abolicionista não se limitava a José Marrocos, seu irmão,
também cratense, Deusdedit Marrocos em 22 de julho de 1883 participou do ato inaugural
da Libertadora Piauhyense315, proferindo um dos discursos de encerramento do ato
público que inaugurou aquela instituição, encontrei ainda registro do ano de 1886 no qual
Dusdedit Marrocos atuava como correspondente316do jornal Libertador no Piauí.
Mais um nome do Crato é citado no Libertador317. Trata-se de José Luís Arnaut,
considerado “amigo e consorte” da causa abolicionista. Uma nota daquele jornal
menciona acerca do Crato: “a redenção do município que ali realizou-se com muita honra
para o nome Cratense, deve ao inestimável moço serviços mui valiosos”318.

273
Pedro II, 2 de junho de 1881.Ano 41, no. 43 p.4
274
SILVA, P. A. O. História da escravidão no Ceará: das origens à extinção. Fortaleza: Instituto do Ceará,
2002 , p209 e 210
275
Sobre o destino da família de Carlota, pude apurar que pelo menos Anacleta tentou mais uma vez a
liberdade. Um anúncio de 1886 dá conta, não de uma fuga de escrava, mas do desparecimento de uma
criada, menor de idade que deveria, segundo concessão judicial, ficar sob sua autoridade até os 21 anos. O
nome Anacleta e o fato do mesmo Sr. Antônio Pereira de Brito Paiva assinar o anúncio dá a entender que
se tratam das mesmas pessoas. O destino de Anacleta foi pagar com trabalho pela própria liberdade,
tratavase de uma dívida de liberdade por concessão, que àquela altura já era considerada ilegal no Ceará,
daí disfarçar a “escrava” com o termo “criada”. O emaranhado jurídico do caso de Anacleta é tão complexo
que seu desparecimento é relato num jornal abolicionista, pois aparece a público como desaparecimento de
uma menor e não como fuga. / BNDigital Jornal Libertador 17 de abril de 1886, Ano VI, No. 85, p. 3: “
Tendo desaparecido do abaixo assinado a criada Anacleta, que lhe foi concedida pelo juiz competente, visto
ser ela de menor idade, em remuneração de a ter libertado, com uma cláusula de prestar-lhe seus serviços,
enquanto não atingisse os 21 anos; apressa-se em fazer público, certificando a quem quer, em cuja casa ela
se achar, que lhe deve avisar para mandar conduzir, pois protesta haver de quem a ocultar dias de serviço e
todas as despesas que fizer para seu descobrimento e apreensão. Outrossim, o anunciante promete
124

Quando Irineu Pinheiro destaca que “só à última ora quando não havia mais jeito
de fugir ao movimento” deixa claro que seguiriam refratários caso não fossem atropelados
pelos acontecimentos. Isto posto, é possível inferir que a resistência manifestada pelos
senhores de Milagres, que logrou êxito pelo apoio de um Juiz local, poderia ter se repetido
em outros lugares, caso existisse quem acobertasse a farsa.
Além de ter sido a última parcela do Ceará a aderir à causa da liberdade, o Cariri
abriga a cidade de Milagres, palco da já mencionada fraude para manter sob o julgo um
grupo de pessoas. Como vimos no capítulo introdutório, na província do Ceará foi a
majoração do imposto sobre a posse de escravos que tornou tal prática impossível: não
estava escrito “proíbe-se a escravização” estava autorizado um imposto que, feita a
matrícula do escravizado, obrigaria o pagamento de alto valor. Ao ser descoberta a
questão de milagres, logo pensou-se na reparação a ser feita à província, afinal eram antes
de mais nada “sonegadores” os escravistas de milagres.

Escravizados de Milagres
Ao tesouro provincial acabou de determinar o Sr. Desembargador
presidente da Província, que faça efetiva a cobrança judicial do imposto
e multa a que estão obrigados os indivíduos residentes no município de
Milagres que à falsa fé e criminosamente, conservam escravizados sob
seu domínio, depois do dia 25 de março de 1883, com ostentoso
menoscabo da lei de 19 de Outubro e grande escândalo para a província
e para o país.319

generosamente gratificar a quem descobrir onde ela se acha. Fortaleza 17 de abril de 1886. Antônio P. de
Brito Paiva”
315
BNDigital Jornal Libertador, 4 de setembro de 1883, ANOIII, N o. 193, p2.
316
BNDigital Jornal Libertador, 16 de fevereiro de 1886. ANO VI, N o. 38.
317
BNDigital Jornal Libertador 2 de abril de 1884, ANO IV, N o65, p.3 318 Idem
319
BNDigital Jornal Libertador 17 de abril de 1886 Ano VI N o.85
Cobrados pelo erário provincial, os proprietários resistem e tentam evitar o
pagamento das multas, a campanha da imprensa chega a tratar o assunto de forma
irônica276. Mas trata-se de uma questão grave e envolvia a reparação não apenas aos cofres
públicos, mas também aos escravizados. Estava prevista indenização para as pessoas
ilegalmente mantidas em cativeiro, a iniciativa do presidente da província previa uma
indenização a ser paga a estas pessoas, a fonte, um artigo do Libertador de abril de 1886,

276
“O juiz municipal e mais Zés de Milagres opõem-se ao pagamento do imposto legal sobre escravizados
e o Presidente da Província manda cumprir a lei, sem atenção aos contratos feitos pelo Sr. Calmon com o
Sr. Rodrigues por detrás dos reposteiros” Libertador 22 de abril de 1886
125

fala em “quase duzentas” pessoas que teriam direito a pecúlio, registro por completo a
transcrição:
O Sr. Desembargador Barradas ordenou o inspetor do tesouro
provincial, que impusesse a multa de 100$000 réis, em que incorreram
os senhores de escravos do termo de Milagres, visto o art.2º. § 1º. Da
lei provincial no. 2034 de 19 de outubro de 1883, por não terem dado
matrícula especial, criada por esta lei, que aditou a de no. 2031 de 18 de
dezembro de 1882.
Outrossim, mandou sua ex. que se lhes cobrasse o imposto anual de
100$000 réis, a que ficaram sujeitos os escravos na província, ex-vi do
artigo 1º. Da sobredita lei de 1883.
Tem, pois, de pagar cada proprietário de escravos, e por cada um destes:
1º. Multa pela não-matrícula (...) 100$
2º. Imposto relativo a 1884 e 1885 (...) 200$
3º. Multa de 50% pelo retardamento da paga deste imposto
4º. Imposto relativo ao ano de 1886.100$
Total 500$
Consideram-se como pecúlio dos escravos sobreditos, em número de
quase duzentos:
1º. A multa pela não-matrícula (...) 100$
2º. Dois terços do imposto e da multa de 50% pelo não pagamento dos
impostos de 1884 e 1885 (...) 200$
Imposto de 1886 100$
Total 400$277

Chegou o pecúlio à mão destes infelizes? O assunto desparece dos jornais e ressurge
numa espécie de ‘acordo” que levaria em conta os três anos sob cativeiro como uma
compensação pela alforria. Os três anos de servidão eram uma contrapartida que podia
ser cobrada pelo senhor, segundo código anterior e baseados nesta regra justificaram a
burla. Ficou valendo este “arranjo” para escamotear a lei e não assumir a dívida e
simplesmente liberar os escravizados sem mais custas.
O exemplo das atitudes do Juiz de Milagres, que burlou a lei encobrindo a
permanência da exploração da mão de obra servil na pequena cidade colabora para que se
entenda o Cariri, região na qual está situada, como palco de desmandos senhoriais. Lugar
de uma elite apegada ao status de proprietário e articulada com os poderes locais tanto
para blindar a efervescência abolicionista e, em ato extremo, burlar a Lei.
O apego a ideais ilustrados, liberais em contraste com o peso de 300 anos de
escravidão que se espalhava e ramificava em relações tanto distintas, como perversas e,
sem dúvida, insondavelmente graves. Estes fragmentos de passado com os quais lidamos

277
BNDigital Jornal Libertador, 20 de abril de 1886 ano VI No. 87p.3
126

nos dão a ver algo que foi um dos fundamentos da sociedade brasileira: a escravização de
pessoas marcou nossa história, nossa paisagem e as nossas relações.
Há trezentos anos que o africano tem sido o principal instrumento da
ocupação e da manutenção do nosso território pelo europeu, e que os
seus descendentes se misturam com o nosso povo. Onde ele não chegou
ainda, o país apresenta o aspecto surpreendeu seus primeiros
descobridores. Tudo o que significa luta do homem com a natureza,
conquista do solo para habitação e cultura, estradas e edifícios,
canaviais e cafezais, a casa do senhor, a senzala dos escravos, igrejas,
escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro,
academias e hospitais, tudo, que existe no país, como resultado do
trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de
riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que
faz trabalhar. 278

A forma de questionar de Joaquim Nabuco contribui para que levemos em conta o


quanto da paisagem da relação natureza e sociedade está pautada no uso da mão de obra
servil. A Noção de que se vivia num mundo construído pela mão escravizada tornou
possível propor um projeto de colonização de terras para os ex-ecravizados: a proposta de
André Rebouças não encontrou ecos e a frustração do ambiente pós abolição fez desbotar
o que poderia ter sido.
Muitos projetos abolicionistas não se limitavam a liberar escravizados e sim
discutia-se educação, moradia e trabalho. A relação entre libertos e o processo de
proletarização emergente323 foi cheio de percalços, a atuação política deste mobiliza
demandas que se apresentaram no contexto do pós-abolição. Relembremos o que foi
tomado por epígrafe neste item, um trecho do hino da mais destacada associação
abolicionista cearense:
Nossas armas são brancas e puras
Tem no punho a palavra _ Perdão
Entre as dobras do nosso estandarte
Aninhou-se uma deusa_ A razão

A expressão “nossas armas são brancas e puras” denota uma ligação evidente da
brancura com a pureza, no qual a oposição a esta, infere-se, a negrura com a impureza. A
virtude pintada de branco faz parte dos discursos que podemos caracterizar como
“discursos racistas”, tal como discutido no primeiro capítulo do presente trabalho. Temos
ainda o uso da palavra “perdão”. Seria perdão para os negros ou o perdão dos negros para

278
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.p.60 323 A
contribuição de Eric Foner elucidou aspectos sobre os embates no mundo do trabalho do pós-abolição.
FONER, Eric. Nada Além da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
127

os brancos? O apelo ao perdão elimina a possibilidade de revanche, vinganças ou


retaliações, afinal não se queria revanches. A razão seria o que guiaria o progresso e a
passagem pacífica da escravidão à liberdade, pois do contrário teriam a irracionalidade, o
caos e a desordem.
A construção do herói negro “Dragão do Mar”, líder dos jangadeiros, revelou
necessidade de um lugar ao mesmo tempo honroso e passivo. Depois das idas à Corte,
das festas e das homenagens o Chico da Matilde voltou a uma rotina simples, morrendo
quase esquecido em 1914. Naquele ano também morria outra cearense famosa, a beata
Maria de Araújo, também negra, também descrita no tecido das letras e sem direito a
registrar sua própria voz. Sua história começa e termina no Juazeiro, um pequeno distrito
do Crato, naquele Cariri, que tanto resistiu aos ares da liberdade.
128

CAPÍTULO 3 - JUAZEIRO DO NORTE: A NOVA JERUSALÉM


Justo Juiz de Nazareth, filho da Virgem Maria, que em Belém fostes nascido
entre as idolatrias, eu vos peço, Senhor, pelo vosso sexto dia, e pelo amor de
meu padrinho Cícero, que meu corpo não seja preso, nem ferido, nem morto,
nem nas mãos da justiça envolto. Adaptação da oração “Justo Juiz” 279

3.1 O olhar do viajante inglês

O distrito de Juazeiro do Crato recebeu esta denominação pela presença


considerável de árvores de juazeiro (Ziziphus joazeiro), uma espécie robusta que possui a
peculiaridade de não perder suas folhas e nem seu vigor mesmo diante da mais dura seca.
Quem cruza o sertão do Ceará em tempos de estiagem, ao ver de longe uma marca verde
e viva na paisagem, pode presumir a presença de um juazeiro, também chamado pé de
juá. A resistência e a peculiaridade do juazeiro bem podem ser associadas à cidade e às
pessoas que nela vivem.
O núcleo de povoamento do qual emergiu a cidade de Juazeiro do Norte se
concentrava às margens de um riacho chamado “Salgadinho” e foi denominado Sítio
Carité280; registra-se também a denominação Tabuleiro Grande, mas o topônimo que se
consagrou se deve ao sítio Juazeiro, de propriedade do Padre Pedro Ribeiro. O padre é
considerado o fundador da cidade281. O reconhecimento veio por conta das benfeitorias e
investimentos realizados quando retornou à localidade, depois de concluídos seus estudos
no Seminário de Olinda, no início da década de 1820. Padre Ribeiro investiu no lugar
recursos próprios para “constru[ir] casa grande, de taipa e telha, engenho, aviamento,
senzala e capela”327.
Para conhecermos acerca do Juazeiro no início do século XIX nos valemos da
literatura descritiva sobre o Crato, afinal Juazeiro era um dos distritos desta cidade. Um
dos registros mais detalhados do Crato nas primeiras décadas do século XIX é o do

279
Trecho da oração Justo Juiz, anotada por Lourenço Filho durante sua estadia em Juazeiro do Norte,
segundo o autor: “Aqui está, por exemplo, a oração do “Justo Juiz”, para “fechamento do corpo”, com
evidente adaptação”. LOURENÇO FILHO, Manoel Bergstrom. Juazeiro do Padre Cícero. 4ª edição
aumentada. Brasília, DF: Inep/MEC, 2002 p.135
280
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de
Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.49
281
MACÊDO, Joryvar. Origens de Juazeiro do Norte. Revista do Instituto do Ceará, t. XCII (1978):
239251. Sobre o autor: Joryvar Macedo é o pseudônimo de Joaquim Lobo de Macedo (1937-1991), ensaísta
e professor que foi membro da Academias Cearense de Letras e do Instituto Histórico do Ceará. 327 Ibid,
p.49.
129

botânico e entomologista inglês George Gardner282 (1812–1849). Gardner tinha vinte e


seis anos quando cruzou o Cariri 283 . A passagem pelo Sertão do Ceará fez parte da
empreitada de exploração que realizou entre os anos de 1836 a 1841 284 pelas províncias
do Norte em busca de plantas nativas. Em suas anotações sobre o Crato, deixou a
descrição de uma vila “pequena e suficientemente mísera”; quanto à população, afirmou
que não “chega [va] a dois mil habitantes, na maioria todos índios ou mestiços que deles
descend[iam]. Os habitantes mais respeitáveis [eram] brasileiros, em sua maioria
negociantes; mas como ganha[vam] a vida, as raças mais pobres [era] coisa que não
entendia ”285.
Para o britânico, acostumado a nomear insetos e plantas, o termo raça era um
conceito capaz de diferenciar e classificar os grupos humanos. Por isso, distinguiu “os
brasileiros” (negociantes) dos demais habitantes da cidade (as “raças mais pobres”),
associando a origem étnica à condição social dos grupos subalternos. Embora não tenha
deixado registro explícito sobre a presença de trabalhadores escravizados no Crato,
Gardner informou com clareza que a maioria da população, composta de índios e
mestiços, era pobre e sobrevivia com dificuldades. O relato do viajante continha ainda um
subtexto: o reconhecimento da inferioridade social e étnica de certos grupos humanos,
cujo meio de vida seu olhar inglês era incapaz de perceber. Mas ao descrever o hábito
das mulheres de ficarem horas a fio nas redes , de onde “só arreda [vam] à hora das
refeições” sugeriu que alguém preparava as refeições para as senhorinhas e zelava pelos
demais afazeres domésticos.286

282
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: EDUSP/ editora Itatiaia, 1975. (Coleção
Reconquista do Brasil volume 13)
283
As incursões exploratórias e descritivas geravam uma literatura das viagens que fascinava leitores e
estimulava viagens como a de Gardner. Para José Carlos Barreiro: “O entusiasmo despertado por leituras
de naturalistas da época, entre os quais os ingleses Cunninghann e Bowie, o africano Burchell e o alemão
Humboldt, foi também decisivo para que Gardner deixasse Glasgow em março de 1836 e desembarcasse,
aproximadamente dois meses depois, no porto do Rio de Janeiro”. BARREIRO, José Carlos. O botânico
George Gardner e suas impressões sobre a cultura escrava no Brasil: Rio de Janeiro,1810-1850. Revista
História, ciências, saúde-Manguinhos vol.24 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2017.Disponível em
https://doi.org/10.1590/s0104-59702017000300002
284
PAIVA, Melquíades Pinto. Os naturalistas e o Ceará II. Revista do Instituto do Ceará ANNO,1993 p.77-95
285
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: EDUSP; Itatiaia, 1975.p.93.
286
Ao tratar, ainda em passagem introdutória acerca da viagem ao Brasil, Gardner deixou registrado que
“os escravos são bem tratados na maior parte das plantações e parecem muito felizes; é com efeito, uma
característica dos pretos oriunda, por certo, de sua disposição apática, a facilidade de se adaptarem à sua
condição. Conversei com muitos cativos em toda a parte do país, e só de poucos ouvi expressões de pesar
por terem sido trazidos de sua terra, ou de desejo de voltarem para lá”. GARDNER, George. Viagem ao
interior do Brasil. São Paulo: EDUSP/ Itatiaia, 1975. p.25
130

O silêncio do inglês sobre a mão de obra que servia à Casa Grande desapareceu
quando relatou sua viagem ao sertão do Piauí. Gardner conta que seguia na companhia do
conterrâneo Walker e alguns outros homens quando um incidente pôs em risco sua
preciosa coleta de espécimes. Para realizar uma travessia, foi obrigado a trabalhar no leito
seco e lamacento de um rio sob um sol inclemente. Gardner adquiriu assim queimaduras
na pele, atribuindo o ocorrido à exposição do corpo quase nu durante a empreitada,
tal “como [fizeram] os pretos”, que se supõe estarem ao seu serviço desde o Crato e “não
hesitaram em expor-se ao sol287”.
Indignos de receberem uma descrição mais pormenorizada, de serem identificados
pelos nomes, os trabalhadores escravizados que acompanhavam a expedição de Gardner
eram um coletivo anônimo, diferenciado apenas pela cor e pela tarefa. Embora privados
da liberdade e sem remuneração, esses homens estavam supostamente ligados a algum
plantel, inseridos na estrutura da sociedade escravista do Oitocentos. Característico do
tratamento dispensado aos segmentos subalternos, o anonimato cedeu lugar à
desqualificação na narrativa de Gardner quando abordou os sujeitos que estavam à
margem do mundo do trabalho. Descritos pelo viajante como rebeldes, propensos ao
desrespeito das leis, os habitantes da pequena Vila do Crato passaram à posteridade como
os “desclassificados” do sertão. Segundo o botânico, o lugar seria um perfeito
“esconderijo de assassinos e vagabundos de toda a espécie, vindos de todos os cantos do
país”. A má impressão sobre os moradores da cidade não impediu, todavia, que
permanecesse no lugar. Gardner ficou no Cariri aproximadamente cinco meses, rendendo
em seu relato homenagens à bela paisagem e ao clima ameno da região, propiciado pela
presença da majestosa Chapada do Araripe. Explorou a flora e comentou sobre aspectos
do patrimônio geológico, além de realizar pioneira coleta de fósseis. Mas interessado
também nos temas da geografia humana, apontou com estranhamento os diversos
núcleos familiares formados por padres, afirmando ter se deparado com tal situação em
toda a província do Ceará, sendo o Crato um dos locais nos quais a prática o impressionou
mais, pois ali um padre “casado” 288 era uma das mais ilustres personas da cidade: o
senador e escritor cratense José Martiniano de Alencar.

287
Idem. p.116
288
Tratava-se do então senador cratense padre José Martiniano de Alencar. Sobre esta questão, comentou
também contribui BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de
Deus. Editora Imeph, Fortaleza, 2014 3ª Edição.
131

Ligada intrinsicamente à história dos sertões nas províncias do Maranhão e do


Ceará, desde o período colonial 289, a composição de famílias baseadas na união de índias
e mestiças com padres ligava-se em parte à frouxidão da malha eclesiástica, que não
alcançava os rincões do Brasil profundo, facilitando a quebra dos votos pelo clero secular,
em parte à baixa evangelização da população, cuja moral condizia com os costumes
gentílicos, embora valorizasse as festas católicas. Gardner registrou as festividades em
honra à Nossa Senhora das Dores, padroeira de Juazeiro, à Nossa Senhora da Conceição
290
e os “festejos de nove dias de regozijo às custas de vários indivíduos nomeados
festeiros”, que antecediam esta última, assim como a forte presença de manifestações
sebastianistas na região.
O tema do sebastianismo estava em evidência quando Gardner cruzou o sertão.
Em junho de 1838, em Pernambuco, província vizinha do Ceará, eclodiu um núcleo
sebastianista. Reuniram-se, inicialmente, em torno de João Antônio dos Santos 291 ,
concentrando-se num lugar chamado Pedra Bonita 292, a cerca de 120 Km do Crato. O
grupo teve dois momentos (dois reinos), no segundo, o líder/rei era João Ferreira. A
iniciativa agregou algumas centenas de fiéis e levou à formação de uma comunidade onde
era permitida aos homens a poligamia e eram servidas indistintamente beberagens de
jurema durante rituais que varavam a noite. A possibilidade de fazer parte da corte do rei
D. Sebastião, desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir nos idos de 1578, estava
acessível aos que se unissem ao grupo e exigia sacrifícios para que fosse desencantado o

289
MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Réus de Batina – Justiça eclesiástica e clero secular no
bispado do Maranhã colonial. São Paulo Alameda, 2017.
290
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: EDUSP/ editora Itatiaia, 1975.
(Coleção Reconquista do Brasil volume 13) p. 97.
291
No mais consistente relato sobre o episódio nota-se que em diversas passagens o autor Antônio Attico
trata João Antônio simplesmente como “mameluco” ou “mameluco João Antônio”, há um reforço constante
ao longo de todo o texto de sublinhar aspectos étnicos do personagem :“No começo do ano de 1836, um
mameluco de nome João Antônio dos Santos, morador do termo de Villa-Bella, então simples distrito de
paz e comissariado de polícia de Serra Talhada, munido de duas pedrinhas mais ou menos formosas, que
mostrava misteriosamente, dizia aos habitantes daquele lugar serem brilhantes finíssimos, tirados por ele
próprio de uma mina encantada, que lhe fora revelada”. Cf. SOUZA. Antonio Attico de Fanatismo
Religioso- Memória sobre o Reino encantado na comarca de Villa Bella. Juiz de Fora: Typographia
Matoso, 2ª. Edição.1898.p23.
292
Atualmente localizada no município de São José do Belmonte.
132

novo reinado do monarca português 293


, os que fossem capazes de tal gesto “seriam
imortais” , viveriam entre “as riquezas [que] abundariam em todas as [classes]”294.
No reino sem males de D. Sebastião, conquistado à custa de sacrifícios, tudo seria
diferente. Neste trecho, vemos a descrição baseada no relato do vaqueiro José Gomes295 ,
que conseguiu fugir do núcleo da Pedra Bonita pedir socorro numa fazenda:

(...) que aquele reino era de muitas glórias e riquezas, mas como tudo
que era encantado só se desencantava com sangue, era necessário
banhar-se as pedras e regar-se todo o campo vizinho com sangue dos
velhos, dos moços, das crianças e de irracionais; que isto, além de
necessário para Dom Sebastião poder vir logo trazer as riquezas, era
vantajoso para as pessoas, que se prestavam a socorre-lo assim; porque
se eram pretos, voltavam alvos como ao lua, imortais, ricas e poderosas;
e se eram velhas vinham moças , e da mesma forma ricas e poderosas e
imortais como todos os seus”296

No reino sonhado por sertanejos em 1838, a nova vida de imortalidade e


abundância seria compartilhada por pessoas transformadas: “imortais, ricas, poderosas”
e “brancas como a lua”. O discurso dos participantes da seita da Pedra Bonita previa um
reino de glórias e riquezas, portanto, sem humilhações e pobreza, misturando à sua moda
a ‘condição social ( pobre e rico ), e as “qualidades”( branco, preto, negro, crioulo,
mestiço, pardo, mulato, cabra) – termos que classificavam indivíduos e/ou grupos
sociais 297 na colônia e ainda presentes no Sertão Oitocentista. Embora oculta, a

293
A busca por um tempo/lugar sem males remete ao mito tupi-guarani da chamada “Terra sem males”
descrita por Ronaldo Vainfas. Cf. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios- Catolicismo e rebeldia no
Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das letras 1995 p-41-50) Compreende-se o movimento da Pedra
Bonita como desdobramento do sebastianismo que chegou ao Brasil já nos primeiros tempos da colonização
e se manifestou no que Maria Isaura Queiroz chamou de “movimentos messiânicos rústicos”. Entre tais
movimentos a autora caba por incluir também o Juazeiro do Norte. A crença no reaparecimento de um
salvador, de um rei, de um líder a ser seguido rumo à salvação e o custo de sacrifícios. (QUEIROZ, Maria
Isaura. O messianismo no Brasil e no mundo. 3ª. Edição São Paulo: Alfa e Ômega, 2003)
294
BNDigital Jornal Diário de Pernambuco, 16 de junho de 1838, No. 129 p.2 “Prefeitura da Comarca de
Flores” (carta de Francisco Barbosa Nogueira Paz, endereçada ao Presidente da Província do Pernambuco
Francisco Rego Barros.
295
Segundo o relato de Antônio Attico de Souza, o vaqueiro José Gomes abandonou o serviço na fazenda
Caiçara, cujo dono era o Major Manoel Pereira da Silva. José Gomes deixou o serviço para seguir seu tio
que trouxe as notícias do reino encantado e o convenceu a abandonar tudo e segui-lo. Ao se deparar com
as cenas trágicas, José, que passou apenas cerca de vinte dias no convívio da estranha seita, fugiu assustado.
Certamente, sua experiência de vaqueiro o auxiliou tanto para se alimentar como para se orientar nos dias
de caminhada pela mata até pedir ajuda e levar seu relato ao major Manoel. SOUZA. Antonio Attico de
Fanatismo Religioso- Memória sobre o Reino encantado na comarca de Villa bella”. Juiz de Fora: Typographia
Matoso, 2ª. Edição.1898.
296
SOUZA. Antonio Attico de. Fanatismo Religioso- Memória sobre o Reino encantado na comarca de
Villa bella”. Juiz de Fora: Typographia Matoso, 2ª. Edição.1898.p.45 e 46
297
PAIVA. Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América, entre os séculos
XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 123-
170.
133

“condição” jurídica (livre, liberto e escravo) atravessava esses esquemas de


hierarquização, uma vez que a “brancura” era inerente à liberdade no sistema escravista.
Condicionado à realização de um sacrifício ritual de animais e de seres humanos,
o ingresso no reino de D. Sebastião, resultou na morte de quarenta e duas vítimas,
incluindo crianças na última cerimônia realizada pelo grupo. A deflagração do fim da
seita veio no dia 17 de maio de 1838298 em combate contra um grupo de soldados da força
Nacional apoiada por voluntários. Ali tombaram mais vinte e seis homens e três mulheres,
ainda lutando em defesa do “reino”. A notícia do massacre da Pedra Bonita correu o
sertão. Gardner conta que “os acontecimentos foram muito comentados durante [sua
]estadia nas cercanias do Crato e que ele [pôde] conversar com os parentes de alguns dos
que tombaram vítimas”.
A proximidade geográfica e a repercussão das fatídicas notícias estimularam
comparações entre a vivência religiosa da Pedra Bonita e de Juazeiro do Norte, como
veremos com vagar mais adiante. Por hora, podemos dizer que em muito pouco ou quase
nada tal comparação é pertinente299. A breve seita da Pedra Bonita não estava relacionada
a nenhum dogma, tampouco possuía vínculo com lideranças religiosas instituídas. Foi
uma manifestação autônoma, transitória e ainda aguarda estudos para sua devida
problematização na esfera das práticas místicas sertanejas.
De todo modo, cabe frisar neste passo que, ao instalar a diocese cearense e
organizar as atividades do clero, na segunda metade do século XIX, era contra
manifestações místicas espontâneas e desregradas, dentre outras questões, que se
organizava a Igreja Católica. A instituição procurou implementar ações mais eficazes para
evitar episódios de insubordinação ou desordem em nome de interpretações livres da fé.

298
Em 1875 vem a público o relato o que se passou em Pedra Bonita ou Pedra do Reino que anos depois
inspirou o romance de Ariano Suassuna. Ao escrever o texto de apresentação do livro “Fanatismo
Religioso- memória sobre o Reino encantado na comarca de Villa bella”, de Antonio Attico de Souza, o
intelectual, jurista e político cratense Tristão de Alencar Araripe (7/10/1821-3/6/1908) aponta o socialismo
como um dos males que motivam aquele episódio. Tentando encontrar explicações para o caso comete
anacronismo ao denunciar o socialismo como elemento norteador da seita sebastianista pernambucana. O
intelectual cratense chega a conjecturar que os participantes da Pedra Bonita são levados por “sentimento
que nasce da pouca reflexão, e do desconhecimento das leis sociaes fundadas nos princípios da própria
natureza, que fez o homem para lograr o fruto do seo trabalho, e não para usufruir os cabedais e as fadigas
de outrem”p.11. A interpretação do intelectual evidencia um esforço de tentar circunscrever a questão da
Pedra Bonita num campo político e ideológico, sem deixar de denunciar a questão religiosa: “No
acontecimento da Pedra-bonita não operou somente o fanatismo religioso; ali transparece também o
pensamento socialista” Cf. SOUZA. Antônio Attico de. Fanatismo Religioso- Memória sobre o Reino
encantado na comarca de Villa bella. Juiz de Fora: Typographia Matoso, 2ª. Edição.1898. p.9
299
Dentre os que estabeleceram tal paralelo elencamos: BARROSO, Gustavo. Almas de Lama e de Aço.
São Paulo: Melhoramentos, 1928,p.16. e ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora
Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66. p.12.
134

Neste sentido, o investimento na formação dos clérigos, tema tratado no primeiro capítulo,
desempenhou um papel relevante para que o ideal ultramontano pudesse adentrar a
província, modificando a feição da população citadina descrita pela crônica local.

3.2. A visão dos cronistas locais

Foi da primeira turma do Seminário da Prainha que saiu o jovem padre Cícero,
ordenado em 1870, para assumir a vigaria de Juazeiro, distrito do Crato, no ano de 1872.
O núcleo familiar dos Romão Batista também passou a residir em Juazeiro, a matriarca
Joaquina Vicência Romana e as irmãs solteiras do padre chamadas Angélica e
Mariquinhas. Seguiu junto com a família Tereza, uma escrava de nome300. Tereza fora
entregue aos seis anos de idade, junto com a mãe, ao pai do padre Cícero, como
pagamento de uma dívida. Conta-se que, tempos depois, mãe e filha foram alforriadas,
mas continuaram servindo à família e vivendo com os Romão.301
Trata-se de um exemplo da situação de dependência econômica e dos laços
afetivos no complexo tecido da esfera doméstica entre alforriados e seus ex-senhores. Tal
situação será incrementada por novos matizes no cenário pós-abolição. Neste caso,
certamente agravada pelo fato de serem uma mulher solteira e sua filha pequena. Tereza
era mais jovem que Cícero, havia nascido em 1850 e esteve ao seu lado até o dia da morte
do seu “senhorzinho”, assim o chamou por todo a vida, e foi lembrada em seu testamento.
Cronistas da cidade a descrevam como uma colabora ativa, cuidou da mãe e das irmãs de
padre Cícero, ficando ao lado deste até sua morte. “Serva fiel que mesmo com a sua carta
de alforria, preferiu continuar a serviço dos mesmos senhores”302.
E como era, àquela altura, o povoado do que acolheu o clérigo e sua família?

300
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Fortaleza: Editora
Imeph, 2014 3ª Edição.p 137.
301
OLIVEIRA. Amália Xavier de. O padre Cícero que eu conheci. Rio de janeiro: Gráfica Olímpia Editora.1969.
302
Cf.OLIVEIRA, 1969, p.296: Uma santa diariamente na igreja, recebendo a sagrada comunhão tomando
parte ativa em todas as funções religiosas. Uma ótima doméstica no serviço diário da casa que a acolheu.
Uma operária exemplar de enxada ao ombro dirigindo e fazendo os tratos culturais na roça de sua
“sinhazinha” Angélica. Terezinha contava sem complexos: “minha mãe e eu fomos entregues pelo nosso
primeiro senhor, Ioiô Candeia, por cota de uma dívida a Ioiô Romão. (...) que logo nos deu carta de alforria“.
349
PINHO. Maria de Fátima de Morais. Padre Cícero: Anjo ou demônio? -Teias de notícias e
ressignificações do acontecimento padre Cícero (1870-1915). Tese de Doutorado em História. UFF-
Universidade Federal Fluminense, 2019, 416f.p.41
135

Contando com fontes de pesquisa hemerográfica, Fátima Pinho349 contabilizou mais de


cem notícias sobre o povoado de Juazeiro entre os anos de 1848 e 1872 303, tais notícias
dão conta desde querelas políticas a bem estruturada organização dos noitários de Nossa
Senhora das Dores. A pesquisadora demonstrou que ao chegar ali em 1872 o recém
ordenado padre Cícero351 não encontrou um lugar insignificante e precário como fora
descrito por diversas referências 304 . A povoação, embora pequena, já contava com
cadeira de ensino público (desde 1858) e sediava um distrito policial (desde 1859).305
Uma breve descrição do Crato no exato ano de 1882, retratando a cidade dez anos
depois do padre Cícero ter assumido a direção de Juazeiro, nos revela um cenário no qual
assistimos o desdobramento de algumas iniciativas no campo da fé católica daquele lugar,
possivelmente com a intenção de disciplinar a religiosidade dos vizinhos do lugar. Em
uma narrativa fundamentada no intuito de expor minucias daquela cidade e de sua rotina,
Gustavo Horácio, um cronista local, traz detalhes para situarmos a questão da fé dos
homens pretos e do perfil do Crato e de seu distrito.
Uma observação que podemos destacar na meticulosa descrição é o uso do
topônimo Praça do Rosário, como referência ao local onde estava prevista a construção
da Capela do Rosário dos Pretos, que nunca foi efetivada. Esta praça era listada, junto
com outros logradouros, como um local “bonito e bem edificado”.
Igreja do Rosário -Esteve em começo de obras entre os anos de 1872;
sendo abandonada, caiu em ruínas ficando apenas os alicerces que ainda
vivem no lugar marcado na planta. A irmandade que a construíra (a do
Rosário) ainda possui de patrimônio uma casa à rua da Vala306.

A fonte traz ainda uma descrição digna de ressalto: as condições da Casa de


Caridade de Ibiapina à época. Também oferece informações acerca de outra casa de
recolhimento feminino cuidada pelo padre Manoel Felix de Moura:

303
Os jornais consultados na referida pesquisa foram: A voz da Religião; o Araripe; Jornal do Ceará 351
Foi antecedido pelos vigários do Juazeiro: padres José Joaquim de Oliveira, João Marrocos Teles, Luís
Barbosa Moreira, Antônio de Almeida e Pedro Ferreira de Melo.
304
“O povoado de Juazeiro tinha então apenas uns três trechozinhos de ruas, onde havia cerca de 12
casinhas de telhas, ou taipa e palha de palmeira. A capelinha erigida pelo padre Pedro era toda de tijolos e
telhas, tinha somente uma porta de frente, portas laterais, um sinozinho e um altar com uma estátua de
Nossa Senhora das dores” DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011
(Coleção Centenário)p.32
305
PINHO. Maria de Fátima de Morais. Padre Cícero: Anjo ou demônio? -Teias de notícias e
ressignificações do acontecimento padre Cícero (1870-1915). Tese de Doutorado em História. UFF-
Universidade Federal Fluminense, 2019, 416f.
306
HORÁCIO, Gustavo. “Descrição da cidade do Crato em 1882”. In Itaytera, ano V, noV. Crato: Instituto Cultural
do Cariri, 1959, p.167
136

Casa de Caridade - Construída em 1868 pelo Rvd. Dr. lbiapina; é de boa


construção e dentro de um sitio de fruteiras, próximo ao riacho
Grangeiro (perene). É a maior do Estado; tem 29 portas de frente. Já
teve mais de cem pessoas, hoje são 84 as pessoas nela recolhidas. Existe
na cidade um recolhimento de mulheres (a que chamam- Convento) de
propriedade do Padre Manoel Felix de Moura; é uma casa particular, só
se distinguindo das outras pelas numerosos celas ou cubículos em que
está dividida. Já teve 50 e tantas pessoas, hoje terá 30 ao muito.307

Os detalhes acerca da casa de caridade que, àquela altura, era gerida pela Diocese,
informam a permanência da missão inaugurada ali por Ibiapina. Detalhes como as vinte
e nove portas na frente da construção e o pomar às margens do rio Granjeiro indicam que
formavam um cenário precioso, em propriedade valorizada, revelando o investimento da
Igreja nas práticas assistenciais dirigidas às jovens. Já o recolhimento fundado pelo
padre Felix merece apurado estudo. Mas pode-se dizer que está inserido no mesmo
conjunto de serviços oferecidos à população feminina local, que combinavam a instrução
formal e a orientação religiosa ou apenas o abrigo necessário em caso de orfandade ou
miséria.
Pelo menos dois aspectos da atuação do padre Cícero Romão como pároco de
Juazeiro revelam que sua inspiração foi o Padre Ibiapina: primeiro, a forma como
mobilizava seus paroquianos em atividades coletivas; segundo, o estímulo à educação
religiosa feminina.
Entre 1877 a 1879, uma grande seca castigou o interior do Ceará. A calamidade
abateu-se sobre Juazeiro e o padre Cícero empenhou-se perante o governo do Império,
pedindo auxílios para muitos famintos que afluíam dos sertões vizinhos, procurando
refrigérios no fértil vale do Cariri. Em entrevista ao jornal cratense Vanguarda, o
sacerdote contou que foi muitas vezes ao tabuleiro vizinho em companhia dos flagelados
tirar macambira, alimento que se costumava oferecer ao gado, com o intuito de
ensinarlhes como deveriam tratá-la para que pudessem comê-la, escapando assim da
fome.308
Padre Cícero começou a desenhar nesta altura o perfil da liderança religiosa que
marcaria toda sua trajetória como homem da Igreja, assumindo-se como advogado dos
errantes flagelados, fragilizados pela fome. Acolhendo os miseráveis, tornou-se pouco a

307
Idem.p.166
308
DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção Centenário).p.30.
137

pouco uma referência para os mais vulneráveis e também para o bispado. No emblemático
ano de 1888, o periódico Vanguarda noticiava aos leitores:

Foi nomeado vigário da Serra de São Pedro o Revd. Padre Cícero


Romão Batista.
Encarregando-o da administração interina desta freguesia, s. exma
Rma. o Sr. Bispo Diocesano concedeu em virtude do Breve Decenal,
ao digno sacerdote a faculdade especialíssima de binar duas missas aos
domingos e dias santos, uma na povoação do Joaseiro às 7 horas da
manhã, e outra na vila de São Pedro ao meio dia.
O Revd. Padre Cícero, curando simultaneamente as duas localidades e
provendo em tudo às necessidades espirituais, é o único sacerdote do
bispado, a quem foi concedido tão extraordinário privilégio.
Felicitamo-lo, pois, pela merecida distinção com que honrou a
munificência episcopal.309

A nova incumbência atribuída ao Padre Cícero na Serra de São Pedro, situada a


28 km de distância de Juazeiro310, ratificava o perfil laborioso e incansável do cura,
consolidando sua posição de prestígio junto ao alto clero secular e, naturalmente, junto
aos paroquianos das duas localidades. Na Serra de São Pedro, Padre Cícero fazia suas
prédicas sobre o valor da colaboração e da atitude preventiva diante das graves
consequências das estiagens. A organização de frentes de trabalho para vencer as agruras
da seca tornou-se, inclusive, um mote dos sermões do padre Cícero, que exortava à
população a transformar a realidade hostil imposta pelo clima, açudando a terra seca e
fertilizando o terreno estéril. O clamor do púlpito despertava a fé da audiência e a
admiração dos jornalistas do periódico cratense Vanguarda, que no ano de 1888, diz que

Na serra de São Pedro o benemérito padre Cícero Romão Baptista tem


ocupado o púlpito estes últimos domingos exortando [...] aos que podem
que façam por si mesmos seus reservatórios de água, e aos pobres
mesmo tem animado, demonstrando com toda a evidência que devem
reunir-se em associação para tirarem da união a força que falta ao
indivíduo isolado, mas que longe chega e até sobra na pujança da
coletividade.
E com efeito a força vem da união: 12 operários pobres com o auxílio
mútuos do seu trabalho e de seus recursos podem construir para si o
patrimônio da riqueza e da independência, que nenhum rico será jamais
capaz de dar-lhe.311

309
BNDigital Jornal Vanguarda, 29 de janeiro de 1888, p.2.
310
Atual cidade de Caririaçu, que fica a 691m acima do nível do mar, um considerável aclive se comparada
a Juazeiro que fica a 377m acima do nível do mar. Serra de São Pedro, emancipou-se do Crato em 18 de
agosto de 1876. Informação disponível em https://caririacu.ce.gov.br/omunicipio.php. Acessado em
20/06/2020.
311
BNDigital- Jornal Vanguarda –15 de abril de 1888 (jornal publicado no Crato)
138

Ao tentar estimular o trabalho coletivo, atuava com clara inspiração em Ibiapina,


agregando fé e trabalho para minimizar os graves problemas de desamparo e fome. Estes
mutirões tornaram-se uma marca de seu trabalho. Na prática, eram pequenas melhorias,
muitas delas não documentadas, como a reforma de cacimbas, abertura ou limpeza de
estradas e outras pequenas obras de uso coletivo.
O modelo de Ibiapina de assistência alcançava também as mulheres. Seguindo-o
de perto, Padre Cícero incentivou jovens a abraçarem o serviço religioso, criando um
beatério, cuja história surpreenderia até os mais crédulos.

3.3. O Milagre de Maria

As beatas do padre Cícero eram mulheres leigas que, à semelhança das irmãs das
casas de caridade de Ibiapina, faziam votos de castidade, obediência e mantinham uma
rotina de trabalho e orações. Entretanto, uma grande diferença aparta as duas experiências.
No ambiente das casas de caridade, era bastante estimulado o ensino das letras,
possivelmente por ser uma casa que acolhia meninas que precisavam de instrução
primária. As beatas do padre Cícero não recebiam instrução formal.
As beatas do Juazeiro ganharam, porém, enorme visibilidade depois que uma
delas protagonizou, em 1891, o relato que trouxe um novo sentido para a vivência católica
no Juazeiro. Ao final de uma vigília, quando já amanhecia, um grupo de fiéis recebeu do
padre Cícero a comunhão. Conta-se que, neste instante, a jovem beata Maria Magdalena
do Espírito Santo de Araújo 312 , ao receber a hóstia, sentiu a sagrada partícula
transformar-se em sangue dentro de sua boca. Tentou conter o sangramento e à vista dos
presentes manchou um lenço com sangue, que jorrava em abundância, gotejando no chão.
O acontecido levou os presentes à imediata percepção de que assistiam a um fenômeno
extraordinário313. Padre Cícero, diretor espiritual da beata Maria de Araújo, assim narrou
o episódio:

Eram já cinco horas da manhã e attendendo eu ao sacrificio que tinham


feito aquellas pessôas, passando toda noite em adoração a Nosso
Senhor, julguei conveniente dar-lhes a communhão, o que
effectivamente se deu. Pela vez primeira á vi, então tomada de um rapto

312
Nasceu em 24/05/1862 e faleceu no Juazeiro em 17/01/1914
313
Copia autêntica do processo sobre os fatos do Joazeiro (1891-1893), folha 1.
139

extatico, rezultando segundo ella affirmàra a transformação da Sagrada


hostia em sangue, tanto que, alem do que ella sorveu, parte caio na
toalha e parte caio mesmo no chão; do que tudo foram testemunhas seis
a oito pessôas que com ella tinham commungado.
Durante o tempo quaresmal daquelle anno e principalmente às quartas
e sextas feiras de cada semana, observaram-se aquelles phenomenos; o
que deu-se, uma vez tambem, no Sabbado da Paixão do mencionado
anno, depois do que passaram a ser diarios até a Ascenção do Senhor.314

A circulação da notícia deu uma nova dimensão à questão, mobilizando fiéis e


acarretando mais um desafio para a Igreja: lidar com os peregrinos que já rumavam ao
Juazeiro para adorar o “sangue precioso”315 e conhecer a virtuosa beata Maria de Araújo.
Mas o fato, sua repetição e suas variações (êxtases, visões, sangramentos) envolveram a
beata e ainda outras devotas316 em um inquérito instaurado pela Diocese do Ceará317 com
o objetivo de averiguar os fatos extraordinários relacionados à hóstia.
Termo dado pelos romanos aos animais oferecidos em sacrifício expiatório, a
hóstia passou a designar na Igreja latina a vítima oferecida em sacrifício: o cordeiro. No
final do século VII, a fórmula litúrgica da missa passou falar em Agnus Dei318, Cordeiro
de Deus, estabelecendo uma comunicação entre o profano e o sagrado:
De certa forma o sacrifício de Cristo invertia o sentido daqueles
praticados pelo paganismo, pois era o próprio Deus que se fazia imolar
em favor dos homens, e não os homens ou animais que eram
sacrificados em benefício dos deuses. Contudo tratava-se também do
sacrifício de um homem (o Filho encarnado), para que ele interferisse
diante de Deus (o Pai) por todos os homens”319

Assim, o pequenino pedaço de pão ázimo em forma de círculo, com


aproximadamente três centímetros de diâmetro, passou a ser o Corpo de Cristo dado em

314
DHDPG Declaração assinada em 18 de julho de 1891 pelo padre Cícero Romão Batista e incorporada ao Inquérito
Episcopal incorporado em Copia autêntica do processo sobre os fatos do Joazeiro (1891-1893)
315
“O sangue que brotava da hóstia assim que ela entrava em contato com a boca de Maria de Araújo era
enxugado com alguns panos que foram sendo guardados pelo padre Cícero em uma urna de vidro depositada
no sacrário da pequena igreja. Aos poucos, os eventos foram ganhando popularidade, e, logo, os panos
manchados de sangue tornaram-se objeto de culto, atraindo romeiros de todas as partes do Nordeste”
NOBRE, Edianne S. “Caminhos e sujeitos da historiografia do Padre Cícero” In BUARQUE, V.A. C. (org.).
História da historiografia religiosa. Ouro Preto: Ed. UFOP, 2012.
316
“Ângela Merícia do Nascimento (28 anos, assinava o nome), Antonia Maria da Conceição (30 anos,
analfabeta), Anna Leopoldina Aguiar de Melo (19 anos, assinava o nome), Jahel Wanderley Cabral (31
anos, alfabetizada), Maria das Dores da Conceição de Jesus (15 anos, analfabeta), Maria Joanna de Jesus
(33 anos, analfabeta), Maria Leopoldina Ferreira da Soledade (29 anos, alfabetizada) e Rachel Sisnando
de Lima (40 anos, assinava o nome)” NOBRE, Edianne S. Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e
a experiência mística no Brasil do Oitocentos. Tese de Doutorado - UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. f.261271
317
Era o bispo do Ceará desde 24 de fevereiro de 1884 Dom Joaquim José Vieira (17/01/1836-8/7/1912).
318
FRANCO JÚNIOR, Hilário A Eva barbada: Ensaios de mitologia medieval, Edusp: São Paulo, 2010.p.46
319
Idem p.45
140

comunhão. O rito da eucaristia estabelece uma “Nova Aliança”, representando um novo


pacto entre a humanidade e a divindade, sendo a hóstia um dos elementos centrais para
sua realização. Os aspectos concretos acionados pelo rito efetivam a potência do mito. A
manifestação do sague durante a comunhão remete a elementos fundamentais das práticas
católicas, o reconhecimento do Corpo de Cristo oferecido em sacrifício 320. Ao ouvir a
notícia de que havia sangue na partícula sagrada, o fiel mais simplório associa o fenômeno
ao sofrimento do Cristo.
O milagre da hóstia protagonizado por Maria Araújo é narrado como momento
fundante para a transformação de Juazeiro do Norte num concorrido centro de
peregrinações321. A beata àquela altura era uma jovem de vinte e sete anos, dedicava-se
ao apostolado da oração, vivia com a mãe e oito irmãos, não era alfabetizada e cooperava
com o sustento da casa como costureira322. Era negra, filha de Antônio da Silva de Araújo
e Anna Jozepha do Sacramento323, segundo alguns autores, seu pai é mencionado como
um ex-escravizado324 que pertenceu ao já citado vigário Padre Pedro Ribeiro. Em 1889,
passou a residir na casa do Padre Cícero em companhia da mãe e da irmã do reverendo325.
A beata também é descrita assim: Maria de Araújo era mocinha pobre e escura, ajudava
a mãe do Padre Cícero, dona Quinô, que a orientou na fé e nos bons costumes”326. O breve
relato do Padre Nery Feitosa nos dá a entender que em seu cotidiano a beata auxiliava nas
tarefas domésticas na casa do padre.

320
CHIQUETTO, Rodrigo Valentim & SANTOS, Valéria Oliveira. 2015. "Sobre o sacrifício". In:
Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia.
Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/sobre-o-sacrifício>
321
No ano de 2018 estimou-se que 500 mil pessoas visitaram Juazeiro do Norte em cada uma das três
principais romarias. O maior fluxo de romeiros se concentra nos meses de fevereiro, setembro e novembro,
em comemoração às respectivas romarias de Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora das Dores e
Finados, o calendário de romarias é essencialmente o seguinte: 06 de Janeiro, a Romaria de Santos Reis;
20 de Janeiro, a Romaria de São Sebastião; 02 de fevereiro, a Romaria de Nossa Senhora das Candeias; a
semana do dia 16 a 24 de março, Semana do padre Cícero; 24 de março, comemoração ao nascimento do
padre Cícero; período da Semana Santa, em abril; 20 de julho, aniversário de morte do padre Cícero; 15 de
setembro, a Romaria da Padroeira Nossa Senhora das Dores; 4 de outubro, a Romaria de São Francisco de
Assis; 1 de novembro, dia do Romeiro e dia 2 de novembro, Finados.
322
NOBRE, Edianne S. Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do
Oitocentos. Tese de Doutorado - UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. f.261-271 p.32
323
Os nomes dos pais registrados no depoimento de Maria de Araújo, em alguns autores sua mãe aparece
como Maria de Tal e seu Pai Antônio Araújo
324
Apontam tal ascendência PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,
2011 e ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização brasileira S.A, Rio de
Janeiro 1968.Coleção retratos do Brasil, volume 66.
325
Copia autentica do processo sobre os fatos do Joazeiro (folha 2)
326
FEITOSA. Padre Nery. Padre Cícero e Juazeiro, textos reunidos. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção
Centenário) p.184
141

Figura .8.Beata Maria de Araújo.

A divulgação dos fenômenos do Juazeiro, expõe a data como 1º de março 1889,


porém, em um jornal pernambucano há relato de episódio semelhante com data de 24 de
abril de 1887 327 . A comparação entre estas fontes sugere que aquela data, início da
quaresma, foi escolhida para registar oficialmente algo que já se repetia havia muito
tempo. No inquérito aparecem diversas referências a estas ocasiões anteriores; em seu
depoimento, o próprio Padre Cícero relata acompanhar fatos extraordinários iniciados
ainda em 1884, ou seja, cinco anos antes daquela célebre madrugada de 1889.

Excellentissimo e Reverendissimo Senhor Bispo Em cumprimento à ordem de


Vossa Excellencia Reverendissima, exarada no auto de perguntas retro, venho
fazer a exposição dos factos extraordinarios que se hão operado em Maria de

327
Diário de Pernambuco, 24 de abril de 1887. No.93, p.3
BNDigital- Jornal

DHDPG
142

Araújo e dos quais tenho sido testemunha, ao menos com maior reflexão desde
mil oitocentos oitenta e quatro até a presente data.328

A divulgação que marca o primeiro de março como a “data oficial” do milagre


significa o estreitamento do fenômeno e a construção de uma relação com o momento em
que se celebra o martírio de Jesus Cristo naquele ano. Uma outra variante, também
associada a uma data marcante do calendário católico, é a narrativa do milagre em uma
noite de Natal, depois da missa que o padre Cícero teria celebrado no povoado de Joaseiro,
onde permanecera, cumprindo uma orientação recebida em sonho. Não se sabe quem
inaugurou tal versão dos fatos, mas a realidade é que em recente pesquisa, Fátima
Pinho329 prova que no Natal de 1871, o padre estava em missão na cidade de Trairi, região
norte do Ceará378. É impossível comprovar se de fato o sonho inspirador aconteceu, mas
certamente não foi depois de uma missa de Natal na capela do Juazeiro, como por tantas
vezes se repetiu. No caso da beata Maria de Araújo, há explicitamente a declaração de
que êxtases, estigmas e visões teriam ocorrido bem antes da divulgação dos fatos de março
de 1989. Limitados antes à esfera íntima, doméstica, naquele dia teriam ocorrido na
presença de muitas pessoas, o que teria tornado inevitável a divulgação.
Com a publicização dos fatos da Quaresma de 1889 foi impossível conter a onda
de interesse e de devoção, e no mês de julho daquele ano a primeira romaria seguiu rumo
ao distrito de Juazeiro para prestar culto ao Precioso Sangue que teria sido colhido nos
sanguíneos330

Em sete de julho daquele mesmo ano – não coincidentemente no mesmo


dia em que se celebrava a festa do Preciosíssimo Sangue –, o reitor do
Seminário do Crato, monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro (1847–
1912), liderou uma pequena procissão com cerca de três mil pessoas em
direção à capela de Nossa Senhora das Dores em Juazeiro, a fim de
prestar culto ao sangue que brotava nas hóstias consumidas por Maria
de Araújo e que eram colhidos em paninhos e sanguíneos. 331

328
Cópia Autentica. Datada de 18 de julho de 1891 declaração por escrito do Padre Cícero anexada ao
processo, folha 7.
329
Cruzando fontes cartoriais e hemerográficas, a historiadora cearense desconstruiu a célebre narrativa de
que o padre Cícero depois de uma missa de Natal teria sido inspirado por um sonho a fixar-se em Juazeiro.
378
Para este fim, a pesquisadora além de apresentar uma nota publica em jornal sobre o padre Cícero
desembarcando de viagem, também localizou registros de nascimento de crianças por ele batizadas
exatamente no dia 25 de dezembro de 1871.
330
Sanguíneo, Sanguinho ou Purificatório é um objeto litúrgico, trata-se de um pano retangular e comprido
que serve para limpar o cálice, a patena e as ambulas após a Comunhão. Adaptado de
https://www.liturgiacatolica.com/objetos-liturgicos.html
331
NOBRE, Edianne S. “Caminhos e sujeitos da historiografia do Padre Cícero” In BUARQUE, V.A. C.
(org.). História da historiografia religiosa. Ouro Preto: Ed. UFOP, 2012 p.49
143

A devoção ao Preciosíssimo Sangue de Jesus332 teve como propagador no século


XIX o sacerdote romano São Gaspar del Bufalo333 que fundou, em 1815, a Congregação
dos Missionários do Preciosíssimo Sangue e, em 1834, ajudado pela Beata Maria de
Mattias 334 , o Instituto das Irmãs Adoradoras do Preciosíssimo Sangue. Por ordem de
Bento XIV335 foram compostos a missa e o ofício em honra do Sangue adorável do divino
Salvador. Já Pio IX385, em 1849,em cumprimento de um voto feito em Gaeta, quis que a
festa litúrgica fosse estendida à toda Igreja. Mais recentemente, no século XX , Pio XI336,
em comemoração do 19º centenário da redenção, “elevou a festa à rito duplo de primeira
classe, a fim de que, acrescida pela solenidade litúrgica mais intensa, se tornasse a própria
devoção, e mais copiosos se entornassem sobre os homens os frutos do Sangue
redentor”337.
Os fatos do Juazeiro não ficaram sob o véu do silêncio e os fiéis alimentaram o
desejo de participarem ou, pelo menos, chegarem perto da manifestação considerada
magnífica e única. Em setembro daquele ano, as comemorações da Padroeira de Juazeiro
do Norte, Nossa Senhora das Dores, ganharam o contorno de um evento grandioso, pois
celebravam ali também a presença do “sangue precioso” manifestado na comunhão.
Assim nos narra no jornal A Constituição338, um contemporâneo que testemunhou aquela
festa, já com característica de uma grande romaria a propósito das comemorações à
padroeira de Juazeiro, Nossa Senhora das Dores, e também ao Precioso Sangue. O artigo
tinha por título “O Juazeiro do Crato”:

332
Existem locais de culto ao sangue sagrado, na forma de relíquias, algumas delas conservadas em ampolas
de vidro em Fécamp, Bruges, Neuvye na catedral de Mântua, que foram focos de intensas peregrinações.
Há relíquias também em São João Latrão, em Roma, em Weingarten, Sarzana, Ferrara e Auvergne. Uma
ampola venerada desde os tempos da Sereníssima República de Veneza é conservada na Igreja de São Tiago
em Clauzetto
333
Gaspar del Bufalo nasceu em Roma (Itália) a 6 de janeiro de 1786, morreu em 28 de dezembro de 1837. Foi
beatificado em 1904 e canonizado por Pio XII em 1954.
334
Maria De Mattias nasceu em 4 de Fevereiro de 1805 em Vallecorsa (Itália) e foi beatificada em 1 de Outubro de
1950. Morreu em 20 de agosto de 1866.
335
Bento XIV, 247º Papa da Igreja Católica. Nascido Prospero Lambertini em 31 de março de 1675, morreu
em 3 de maio de 1758. Seu pontificado iniciou-se em de 17 de agosto de 1740 e durou até seu falecimento
385
Pio IX, 255º Papa da Igreja Católica. Nascido Giovanni Maria Mastai Ferretti em13 de maio de 1792,
morreu em 7 de fevereiro de 1878. Seu pontificado iniciou-se em 16 de junho de 1846 e durou até seu
falecimento.
336
Pio XI, 259º papa da Igreja Católica. Nascido Ambrogio Damiano Achille Ratti em 31 de maio de 1857,
morreu em 10 de fevereiro de 1939. Seu pontificado iniciou-se em 06 de fevereiro de 1922 e durou até seu
falecimento.
337
João XXIII, Cartas Apostólicas, 1960-disponível em http://w2.vatican.va
338
BNDigital- Jornal A Constituição -órgão conservador no. 163 de 10 de outubro de 1889 p.2-3
144

Retumba d’um a outro canto do globo a notícia do miraculoso fato


realizado na florescente povoação do Juazeiro, do termo do Crato, terra
santa que passa aos domínios da história, e atualmente mais conhecida
por Nova Jerusalém.
Pois bem, é desta terra que venho me ocupar, fazendo reconhecidos do
público os portentosos milagres ali realizados, milagres que por sua
excelência verifica a fé dos corações pios e confunde a dos ímpios.339

Pedro da Costa Nogueira é quem assina o artigo e a forma como se refere a


Juazeiro como “Nova Jerusalém” demonstra o quão cedo o local passou a evocar a
referência à “Cidade Santa”. Tal denominação foi e ainda é reproduzida na tradição oral
e nas literaturas de cordel340. Também num periódico de circulação nacional, ainda em
1889, surge a mesma comparação. Desta feita, alertava-se sobre a necessidade de efetiva
comprovação dos fatos:
Para o Joaseiro, em Nova Jerusalém, como chamam, continua a
convergir uma população extraordinária de todas as partes.
Ainda não se procederam as averiguações canônicas sobre as
maravilhas ali acontecidas; mas o padre Cícero afirma tudo com
imperturbável certeza e desafia a ciência ímpia do modo mais
solene.(...)341

Logo naquele primeiro ano da divulgação dos milagres protagonizados por Maria
de Araújo, a comparação remete ao anúncio da esperança de um novo tempo de
abundância e paz, guardadas no Novo Testamento em um cidadela no alto de um monte:
“Mas vós vos aproximastes do monte Sião, e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém
celestial”342. O lugar de júbilo descrito no Livro dos Hebreus também menciona a “pátria
celestial”393 cidade preparada por Deus que receberá os que se reconhecerem estrangeiros
e peregrinos desta terra. Ainda mais vívida e contundente é a referência no livro da
revelação de São João Evangelista, o Apocalipse:
“Vi então um céu novo e uma nova terra – pois o primeiro céu e a
primeira terra se foram, e mar já não existe. Vitambém descer do céu,
de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Jerusalém nova, pronta como
uma esposa que se enfeitou para seu marido. Nisso ouvi uma voz forte

339
Idem. Artigo assinado por Pedro da Costa Nogueira, datado de 10 de setembro de 1889. Calculou-se a
data da sexta feira mencionada no texto como sendo 6 de setembro de 1889. Uma data relacionada às
festividades de Nossa Senhora das Dores na cidade de Juazeiro do Norte.
340
Um exemplo é o verso do poeta João Mendes, artista que improvisava versos pelas ruas de Juazeiro,
cujo principal registro deve-se à transcrição de seus versos no ano de 1914 por Leonardo Mota :“Viva o
Santo Juazêro/Que é nosso Jerusalém/Viva o Padrim Padre Ciço/Para todo sempre, Amém!” MOTA,
Leonardo. Cantadores. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.p165
341
BNDigital Jornal O apóstolo-RJ. 25/12/1889 p.3
342
Hebreus 12:22-24 . Bíblia de Jerusalém, 10ª. Reimpressão, Editora Paulus, 2001. 393
Hebreus 11:16 . Bíblia de Jerusalém, 10ª. Reimpressão, Editora Paulus 2001
145

que, do rono, dizia: “Eia a tenda de Deus com os homens. Ele habitará
com eles; eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus.
Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá
morte, nem luto, nem clamor e nem dor haverá mais. Sim! As coisas
antigas se foram!” 343.
toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor,
pois a antiga ordem já passou"

Segundo Mircea Eliade, a compreensão dos sentidos construídos em torno de


Jerusalém leva em conta que a “A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo
que o Paraíso, portanto in aeterum.”344 É cidade desde sempre existente e, ao mesmo
tempo, cidade revelada como vindoura, como esperança. Paradoxalmente, o
eterno/vindouro associado à cidade santa explicita uma relação de convergência não linear
para o tempo-espaço sagrado. O fato é que a esperança de uma terra sem males despertou
nos fiéis uma possibilidade concreta de realização, de encontro real. No caso de Joazeiro,
deu lugar a uma complexa teofania no meio do sertão, em pleno pósabolição.
As críticas e dúvidas logo surgiram. Por ser uma temática controversa desde sua
origem, os “detratores do Padre Cícero”, aqueles que acusavam ou desconfiavam da
veracidade dos milagres e da boa índole do sacerdote, lançaram outras explicações para a
situação. Para estes, Juazeiro será a “Meca do Sertão”. Haveria nesta opção um apelo que
afastaria aquela localidade dos preceitos judaico-cristãos e a lançaria no universo da fé
muçulmana, adversária do cristianismo, na concepção da Igreja Ibérica, matriz do
catolicismo colonial na América Portuguesa. 345
Na notícia publicada no jornal A Constituição, a proposta do narrador em questão
é contar sua visita à então “florescente povoação do Juazeiro”, para onde rumou junto
com a família saindo da cidade de Milagres 346 junto com expressivo número de
companheiros, pois chega a registrar a presença de pelo menos oitocentos milagrenses.
Conta que chegaram à tarde e passaram a noite em celebrações diversas: missa, terço,
orações. Assistiram animados a magníficos fogos de girândolas já no romper da aurora.
Estariam presentes na festividade, segundo o relato, cinco mil pessoas. Tal quantidade é

343
Apocalipse 21:1-4. Bíblia de Jerusalém, 10ª. Reimpressão, Editora Paulus,2001.
344
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992 p.35
345
BNDigital Jornal Libertador20/08/1890, p.2 “aquela meca do padre Cícero”; BNDigital Jornal A
República de 20/04/1896, p.1: “Muitas infelizes que tem ido em romaria àquela Meca”; BNDigital Jornal
A República 5/10/1896: “ O Juazeiro continua a ser a Meca dos fanáticos”. E neste mesmo artigo o padre
é também chamado de “fakir” a angariar fundos para construção de uma “Mesquita”.
346
A viagem pode ser estimada em 65 km, considerando que o grupo rumou à Matriz da cidade. O percurso feito
a pé e em grupo é estimado em 15 horas de caminhada.
146

significativa se levarmos em conta o contingente populacional das cidades àquela época.


Por exemplo, no distrito central do Crato habitavam 13.449 pessoas, segundo o censo de
1890347. A narrativa de Pedro da Costa Nogueira traz mais detalhes:

O Rev. Padre Cícero Romão Batista, que é o confessor de Maria de


Araújo (assim se chama a virtuosa moça) afirma o fato (...) que ainda
ontem antes da missa cantada e sermão, reproduziu-se, de modo que o
sangue estava visivelmente novo.
Assistimos com nossa família a exibição dos panos e ouvimos do
próprio padre Cícero, sacerdote de costumes puríssimos afirmar que
tem tido a felicidade de presenciar esta maravilha por diversas vezes
(...) Um eco altissonante repercutiu no mundo inteiro celebrando o feliz
acontecimento; em primeira sexta feira deste corrente mês, para o (sic)
Novo Jerusalém afluíram pessoas de todas estas circunscrições (...) no
intuito de assistirem à festa celebrada pelos altos decretos da Igreja,
naquele dia, e beijarem o preciosíssimo sangue de Nosso Senhor Jesus
Cristo, de novo derramado para nossa salvação.
Neste número contavam-se não menos de oitocentos milagrenses.
Fomos pois, testemunhas de vista e podemos informar ao público com
exatidão o fato maravilhoso que ocupa nossas atenções e nos enche de
inefável gozo.
(....) Chegamos ali na quinta-feira à tarde: e à noite depois do terço
tirado pelo santo Padre Cícero, ouve-se sua palavra fluente, que, num
repleto concerto de eloquência, produziu um suntuoso sermão, que teve
a eficácia de tocar a todos os corações dos romeiros despertando-os à
penitência.

A fonte revela uma ativa participação do Padre Cícero, tirando o terço, pregando
e descrevendo publicamente a maravilha que tantas vezes presenciou. O grande fluxo de
pessoas e a organização da cidade certamente contou com articulações e planejamentos
com a participação do vigário. Maria de Araújo é descrita como “virtuosa moça” e os
paninhos ensanguentados estavam expostos aos fiéis que os podiam beijar, num contato
inédito e extasiante com a presença materializada do que criam ser parte do corpo de
Cristo. A centralidade que Juazeiro passa exercer e sua metamorfose em lugar sagrado
engendra aspectos únicos e, ao mesmo tempo, eloquentes e vívidos.

lá onde o sagrado se manifesta no espaço, o real se revela, o Mundo vem


à existência. Mas a irrupção do sagrado não somente projeta um ponto
fixo no meio da fluidez amorfa do espaço profano, um “Centro” no
“Caos” 348

347
REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ. Fortaleza: Tomo XX. Ano XX. 3º e 4º trimestres, 1906.
348
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
147

O impactante evento que logo atraiu peregrinos se tornou objeto de uma


investigação feita pela Diocese cearense através do processo episcopal (dividido em dois
inquéritos). Em setembro de 1891, os padres Clycério Lobo e Francisco Antero foram
incumbidos de compor uma comissão de inquérito com o objetivo de descortinar a
verdade sobre os fatos do Juazeiro. A princípio, a divulgação dos fatos e a organização de
caravanas encabeçadas inclusive por clérigos de outras paróquias em direção a Juazeiro
causou um mal-estar tanto pela evidente insubordinação como pelo teor dos fatos
maravilhosos que careciam de comprovação formal por parte da Igreja.
Ao ser perguntada se tinha certeza de que o sangue não era seu próprio sangue e como
sentia isto, respondeu:
Respondeu que sim, tendo a este respeito revelação particular, e até
mesmo sente que não é seu proprio sangue, tanto que não experimenta
enfraquecimento algum, nem alteração de qualquer especie em sua
saúde, notando-se mais que nestas occasiões a sagrada hostia move-se
de um modo bem sensivel na boca e até sente dar algum salto da lingua,
ate tocar ao ceu da boca; e isso sempre;349

Foi arguida ainda com a seguinte questão: “Tem tido extases e nesse estado
contempla alguns mysterios e quaes sejam estes?”:
Ao que respondeu que sim e que neste estado contempla a Jesus Christo
recommendando-lhe a consagração della a Elle proprio, tanto por si
mesma como por todos os que não o amam;350

Consagrar-se a Jesus era tornar-se sua esposa, assumindo votos de obediência, pobreza
e castidade. Maria de Araújo bem sabia que esta possibilidade não era possível em 1889,
um ano após a abolição nas outras províncias do Império, pois o ingresso de libertas nas
ordens religiosas femininas era ainda uma quimera. Na verdade, o milagre trazia à tona
questões sociais candentes, constituindo em si mesmo um discurso que atentava contra as
regras vigentes na Igreja, pois clamava pela inclusão social das mulheres negras no
serviço religioso. Criado para amparar esposas de Cristo de cor, o beatério do Horto
cumpria a função de substituir os conventos femininos, encerrando, inclusive,
experiências místicas que Maria de Araújo revelou ao inquiridor ao tratar de seus êxtases.

349
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 13.
350
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 11.
148

Quando Maria de Araújo foi perguntada “se nesse estado tem tido revelações
especiaes acerca dos factos occoridos desde mil oitocentos oitenta e nove até a prezente
data nesta povoação do Joazeiro?”351, respondeu:
“ (...) sim; porquanto Nosso Senhor Jesus Christo lhe tem revelado que
tudo isso se opera para a conversão dos peccadores e perseverança dos
justos; chegando até queixar-se amargamente da ingratidão dos homens
para com elle e chamando-os a aproveitarem-se de suas graças
emquanto é tempo de misericórdia.”352

Ao final do auto de perguntas, realizado na Capela de Nossa Senhora das Dores,


com data de 9 de setembro de 1891, lemos o seguinte: “Perguntada se nada mais tinha a
dizer, respondeu que na idade de seis á sete annos brincava com o menino Deus, sem que porem
o conhecesse então; entretanto aquelle divino menino que só agora lhe tem sido revelado quem
fosse lhe ensinava os mysterios de Deus e a preparava para os sacramentos da penitencia e
eucharistia, promettendo-lhe que para aqui mandaria um sacerdote o qual havia de se
encarregar de sua direcção espiritual e a tantas outras almas; sacerdote esse, que somente se
interessaria pela salvação das almas e nada mais, não poupando-se a sacrificio algum para
concorrer com Deus na obra da salvação das almas; terminando esse discurso, que com ella teve,
dizendo: Seja em tudo Deus sempre bendicto e louvado; e isto dito desapareceu no meio de uma
grande luz”353

A última declaração de Maria de Araújo não partiu de uma questão dirigida, mas do
desejo de deixar registrado algo que lhe conviesse. Falou então da infância e desde
quando tinha vivenciado os fenômenos hora discutidos, revelando uma longa intimidade
com o sagrado e declarando que não recebera instrução religiosa até o encontro com Padre
Cícero. Declarava assim que a vocação religiosa era-lhe nata, mas sua condição social e
familiar impedira-lhe de vivê-la em plenitude. Maria Araújo era filha de escravos e a
santidade um apanágio dos brancos no mundo luso-brasileiro.354
Os encarregados do primeiro inquérito não tiveram diante de si apenas os
testemunhos orais, compartilharam experiências místicas com a beata Maria de Araújo.
O Monsenhor Monteiro, Reitor do Seminário São José no Crato, ao descrever as
comunhões de sangue por ocasião de um retiro espiritual dado por ele no Juazeiro entre
os dias 9 e 16 de janeiro de 1891, registrou ocorrência diária dos fenômenos:
11 de Janeiro, commungou Maria de Araújo em minha mão direita, á
noite, renovando os seos votos, em pé, no altar onde está o sacrario,
deixando a mão ensanguentada e alguns panninhos.

351
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 11.
352
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 11.
353
DHDPG Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro. Folha 13.
354
Cf. SANTOS, Georgina Silva dos. “Devoção, Disciplina e Preconceito: a construção da santidade em
conventos e recolhimentos da América portuguesa”. Revista Lusitania Sacra, 2ª. série, julho-dezembro de 2013,
vol.28, pp. 153-172.
149

Na segunda-feira, 12 de Janeiro deo-se o mesmo, com as mesmas


circunstancias, ao meio dia; e a noite o mesmo caso, tres veses,
commungando em honra da SS. Trindade.
Na quarta-feira, 14 de Janeiro, uma communhão do mesmo modo, e
com as mesmas circunstancias. Na mesma occasião a Beata tinha a mão
sobre a minha e pedia para mim uma graça, é notavel que retirasse a
mão limpa, ficando a minha ensanguentada.
Na quinta-feira, 15 de Janeiro, communhão do mesmo modo e com as
mesmas circunstancias.
Na Sexta-feira, 16 de Janeiro, communhão do mesmo modo, e com as
mesmas circunstancias. Nesta occasião derramou-se sangue por trez
veses em minha mão para prova de uma graça que me seria
concedida.355

Os relatos do Monsenhor Monteiro incluem passagens nas quais partículas


sagradas se materializam nas mãos da beata, sendo em seguida comungadas por ele, e
numa ocasião outros padres participam desta comunhão:

Estava a Commissão em um aposento interior da casa da Caridade, e eu


me achava em uma grade que olha para o altar onde está o SS.
Sacramento, juntamente com Maria de Araújo, e hia renovar os seus
votos; não tinha ainda pronunciado uma palavra, quando a Beata pende
sobre o meu braço em um profundissimo extase, tendo entre os dedos
duas particulas ensanguentadas; chamei por alguem e pedi que queria
fallar com os Padres, chegando mostrei-lhes o portentoso milagre,
adoràmos juntos e communguei as particulas: despertando a Beata
ordenei pedir a Nosso Senhor communhão para os Padres presentes;
com pequena demora a Beata outra vez arrebatou-se, tendo entre os
dedos duas particulas ensanguentadas, despertada disse, que o Senhor
mandava aquellas particulas para os Padres da Commissão, com ella
commungarem! Ó scena do Céo! (...)356

Na passagem exposta pelo Monsenhor Monteiro, a partícula não provinha da


comunhão; ela surgiu, materializou-se e foi dada aos presentes. Esta ocasião revela uma
inversão de papeis (a consagração caberia ao celebrante, não à devota). Extasiados e
maravilhados, os padres da primeira comissão elaboram relatos confusos, entre o fervor
e a insubordinação. Aos olhos do Bispo não mantiveram o devido rigor exigido pela
postura inquisitorial.
Ao cabo da investigação, o relatório conclui que não havia explicação científica
para o que estava acontecendo. Este primeiro processo em nada acusa a beata e guarda

355
DHDPG Copia authentica do Relatorio de Monsenhor Monteiro sobre os factos do Joaseiro/Relatorio
apresentado a Commissão Episcopal examinadora dos factos maravilhosos do Joaseiro desta Freguesia do
Crato, por Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro, Reitor do Seminário da referida Freguesia. folhas
107 e 108.
356
Idem, folha 107.
150

elementos observados por Edianne Nobre357 do que ela considerou uma espécie de mútuo
convencimento: os investigadores creram nos fatos extraordinários.
O bispo Dom Joaquim não se satisfez com a conclusão, justificou sua insatisfação
acusando de desobediência os membros do primeiro inquérito. Considerou que tanto
Padre Cícero quanto os investigadores teriam sido enganados pela beata. Findou por
nomear outra comissão, em abril de 1892. Desta feita, a segunda comissão negou a
existência de milagres. Em diversas oportunidades, durante a investigação, a hóstia não
havia se transformado novamente em sangue. Em seguida, vieram as imediatas, as
providências do Palácio Episcopal, e Padre Cícero foi proibido de pregar, confessar, dar
conselho aos fiéis e celebrar missa em Juazeiro358.
A interpretação de Carlos Alberto Steil desta questão do milagre no Juazeiro e a
reação oficial da Igreja expõe um contexto que leva em conta para além do milagre em si,
a questão do “onde” aconteceu o fato prodigioso:

Ao defender a possibilidade do milagre, portanto, Padre Cícero não


estava se colocando na contramão das crenças e valores do catolicismo
intransigente clerical do seu tempo. De forma que a sua posição não era
de divergência em relação à narrativa católica dominante, a qual
incorporava o milagre como um elemento central do seu sistema de
crenças. O problema, como tentaremos demonstrar, estava, na verdade
no uso que estava sendo feito do milagre em cada contexto específico.
Se na Europa o milagre era afirmado contra o racionalismo, em defesa
do catolicismo romano, as autoridades eclesiásticas do Brasil viram no
milagre, defendido pelo Padre Cícero, um recurso para a afirmação e
legitimação de um habitus católico que precisava ser erradicado. Ou
seja o Padre Cícero, aos olhos dos seus superiores estava afirmando a
coisa certa no lugar errado.359

Os processos, a suspenção das ordens do Padre Cícero e a onda de suspeição em


torno dos fatos extraordinários não impedem que a movimentações de fiéis em busca do
pequeno distrito prossiga num crescente. Um farol de esperança no qual confluíam a
possibilidade de um alumbramento místico e, ao mesmo tempo, a possibilidade de tentar
a vida, sobreviver dignamente.

357
NOBRE, Edianne S. Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do
Oitocentos. Tese de Doutorado - UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. f.261-271.p.254
358
RAMOS. Francisco Régis Lopes, O meio do mundo: território Sagrado em Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza:
Imprensa Universitária, 2014. p.37
359
STEIL. Carlos Alberto. “Padre Cícero: Tradição e modernidade”. In Anais do III Simpósio
Internacional Padre Cícero... E quem é ele? p.183-185
151

Quanto as razões pelas quais os romeiros se dirigiam a Joaseiro, entre


1894 e 1934, nada mais simplista do que procurar exclusivamente na
dimensão motivação religiosa. Muitos dos romeiros chamados pelas
elites de fanáticos eram analfabetos, pobres e politicamente inertes. Sob
a capa do impulso religioso, não ortodoxo ou heterodoxo, escondia-se,
muitas vezes, o desejo infrutífero de controlar o meio adverso e
sobrepujar as injustiças sociais que faziam de suas vidas uma
desgraça.360

O relatório361 do Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro, membro do primeiro


inquériro, guarda um trecho que revela sua percepção da condição social de Maria de
Araújo. Manifesta ali que sabia que tal condição era vista como empecilho. Expôs, ao
longo de sua defesa dos “fatos maravilhosos”, sua percepção de que entre os de ‘baixa
condição” era possível a manifestação do divino:

A beata é pobre e de baixa condição! O Joaseiro é um insignificante


povoado! Serão estes os obstáculos às manifestações Divinas? Todo
mundo sabe que o Príncipe do Ceo, Filho Unigenito de Deus nasceu de
uma humilde Virgem de Nazareth, e era filho adotivo de um velho
Carpinteiro (...) Nasceu entre animais de um pobre presépio! Donde
falou a Virgem de Lourdes, não foi do côncavo de um rochedo deserto
a uma humilde Pastorinha? Meu Deos, quem eram os Apóstolos?
Pobres e grosseiros pescadores dos mares da Galiléia. Eram a escória
do mundo.

Este é um trecho presente no primeiro inquérito, cujas conclusões foram revistas


pelo segundo. Seu conteúdo, de defesa da beata circunscreve-a dentro de um quadro
comparativo no qual pessoas simples e despossuídas alçam graças, vivenciam maravilhas.
Tal quadro, entretanto, guarda um relevante silêncio: não menciona o fato de ser uma
mulher negra e nem explora ou discute como estes sujeitos viviam ou eram vistos àquela
época. É possível que “baixa condição” seja uma tentativa de comunicar esta questão da
cor da pele, mas permanece impreciso.
A defesa da possibilidade do fato miraculoso entre pessoas simples, de um
pequeno lugarejo indica que o padre Monteiro já se defendia de uma possível crítica à
condição de Maria de Araújo. Por outro lado, é possível crer que muitas das pessoas
passaram a buscar e crer na presença do “Precioso Sangue” por se sentirem identificadas
com a simplicidade e a condição pobre e negra de Maria de Araújo. Mas a defesa

360
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 139
361
Com data de 18 de outubro de 1891. Cópia autentica do Relatório de Mons. Monteiro sobre os factos do
Joaseiro. Relatório apresentado à Comissão Episcopal Examinadora dos factos maravilhosos do Joaseiro,
desta freguesia do Crato. Documento publicado em CASIMIRO. Antônio Renato Soares de (org).Padre
Cícero e os fatos do Joaseiro: a questão religiosa. Fortaleza: Editora Senac Ceará, 2012. p518-525
152

entusiasta do Monsenhor Francisco Monteiro, calcada nas semelhanças entre a origem


humilde da beata e da pastorinha de Lourdes poderia até ter sido acatada, se Maria de
Araújo não integrasse a primeira geração dos recém-libertos do Império. Ao ocultar sua
cor, o Monsenhor tentava “branquear” a beata.
A condição de negra e a possibilidade de ser filha de um escravizado foi
posteriormente expressa sem meias palavras. Trata-se de uma descrição da década de
1960 e, neste caso, temos um autor engajado em lançar dúvidas sobre os “fatos
extraordinários, sua argumentação foi construída com vistas a desacreditar Maria de
Araújo, aí emerge sua cor, seu “estigma”:

Apresentando o estigma da fusão das três raças Maria de Araújo era o


tipo clássico da mestiça, com predominância do negro, pois negro era o
pai, oriundo sem dúvida da senzala do Pe. Pedro Ribeiro, enquanto a
mãe provinha do branco e do índio.(...)Não obstante feia, Maria de
Araújo teve seu retrato espalhado entre as massas fanatizadas, enquanto
medalhas com sua efígie varavam os sertões, visto que, em dado
momento , seu prestígio de santa confundira-se com a fama milagreira
do Padre Cícero.362

Mesmo relativamente recente (1968) o tipo de argumento usado por Otacílio


Anselmo remete a uma espécie de tradição dos escritos de desqualificação tanto da beata
quanto dos fiéis que se tornaram romeiros do Juazeiro: o racismo. Este tema será
detidamente discutido próximo capítulo que pensa o racismo como um elemento das
tentativas de desqualificar e negar a construção de Juazeiro como espaço sagrado,
negando ainda o vigor de uma manifestação eminentemente popular e autônoma.
Retomado a trajetória de Maria de Araújo, naqueles tempos que se seguiram aos processos
de investigação, apresentaremos os resultados do segundo processo. No ano de 1894 foi
publicado o decreto do Santo Ofício que apresentava um veredito sobre os fatos do
Joaseiro. Uma carta pastoral da diocese do Ceará, assinada por Joaquim José Vieira,
Bispo do Ceará, publicada em jornais do Ceará e do Rio de Janeiro expões o resultado do
processo:

Publicando a decisão e dando execução aos decretos da Sagrada


Inquisição Romana Universal sobre os fatos que sucederam em
Joaseiro.
Na Congregação de quarta-feira, 4 de Abril de 1894, discutidos os factos
que sucederam no Joaseiro, diocese da Fortaleza, os eminentíssimos

362
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização brasileira S.A74., Rio de
Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.74.
153

padres da santa Egreja romana Cardeais inquisidores geraes


pronunciaram, responderam e estatuíram o seguinte:
“ Que os pretensos milagres e quejandas cousas sobrenaturais que se
divulgam de Maria de Araújo são prodígios vãos e supersticiosos, e
implicam gravíssima e detestável irreverência e ímpio abuso à
Santíssima Eucaristia; por isso o juízo apostólico os reprova e todos
devem reprova-los, e como reprovados e condenados cumpre serem
havidos.363

A mesma publicação divulga as exigências impostas: não se poderia peregrinar


nem visitar Maria de Araújo. E também proibia qualquer livro publicado em defesa de
Maria de Araújo ou dos fatos, caso existissem tais publicações recomendava que fossem
recolhidas e queimadas. Proibiu sacerdotes e leigos de defenderem os “pretensos
milagres” tano em pronunciamentos como em textos. Mandou queimar todos os paninhos
e outros objetos até então considerados como provas do fenômeno.364
A necessidade apelar ao poder papal para dirimir a controvérsia sobre a veracidade
do milagre se concretiza com a viagem do padre Cícero a Roma em fevereiro de 1898. A
viagem começa com a travessia rumo ao porto de Recife, seu percurso atravessando os
sertões rumo ao litoral revelaram intensa mobilização festiva. Era saudado por onde
passava, evidenciando que em poucos anos as notícias sobre o Joazeiro ganharam os
sertões, multiplicando a estima e o respeito pelo padre. O impacto da travessia dos sertões
rumo ao embarque a Roma foi analisado por Fátima Pinho365. A descrição da imprensa
em documentos apresentados pela autora dá conta que uma multidão o seguia até o
embarque, em 11 de fevereiro de 1898.
Após meses de estadia em Roma, tendo sido inclusive interrogado por novos
inquisidores dedicados a revisão do Inquérito realizado no Ceara´, o padre conseguiu uma
audiência com Papa Leão XIII em outubro do mesmo ano. O empenho para reconquistar
seu lugar foi parcialmente atendido na cidade eterna. As censuras aos fatos extraordinários
do Joazeiro continuavam mantidas, o milagre não foi reconhecido. Porém, o ex-sacerdote
recebeu um documento que revia sua punição. Mas, o Bispo Dom Joaquim temeroso da
intensidade das romarias a Joazeiro negou este recurso, entendendo que manter a defesa
de Maria de Araújo lhe custava tal exclusão. Em outras palavras, para se ver realmente
reabilitado, Cícero deveria negar os fatos miraculosos e deixar definitivamente o Joazeiro.

363
BNDigital Jornal O Apóstolo-RJ, 30/09/1894, pp.3-4.
364
BNDigital Jornal O Apóstolo-RJ, 30/09/1894, p.4.
365
PINHO. Maria de Fátima de Morais. Padre Cícero: Anjo ou demônio? -Teias de notícias e
ressignificações do acontecimento padre Cícero (1870-1915). Tese de Doutorado em História. UFF-
Universidade Federal Fluminense, 2019, 416f.p.185.
154

Enquanto o padre tentava em Roma a revisão do processo dos “fatos do Joazeiro”,


a cidade do Crato assistida pelo Monsenhor Antônio Alexandrino de Alencar vivia uma
estiagem. A gravidade da estiagem prenunciava uma possível seca, o temor sobre o
abastecimento da cidade, fato recorrente com a situação das estiagens, era acrescido do
temor de saques protagonizados por romeiros. Sem a presença do padre Cícero agiriam
com desordem? Tal temor está expresso numa carta, com data de 12 de maio de 1898, do
Monsenhor Antonio Alexandrino de Alencar, dirigida ao bispo do Ceará Dom Joaquim
José Vieira. Em certa altura afirma:

(...) As pessoas mais abastadas desta freguesia que moram fora da


cidade, com receio de serem atacadas, pretendem passar a seca dentro
dela, visto que aqui estão mais garantidas. Os habitantes da cidade
receiam ser atacados pelos romeiros que dizem francamente aqui e
acolá: de fome não morreremos. Falam assim porque pretendem
recorrer ao saque”

A descrição dos que moram fora da cidade é explicada pelo fato do Crato ter um
núcleo urbano central, porém uma vasta extensão territorial formada por sítios, fazendas
e chácaras. Nestes lugares, a elite mantinha suas sedes de fazenda e suas casas de morada,
sendo as propriedades do centro usadas em algumas ocasiões. Observamos que não há
nenhum apelo sobre auxílio ou amparo para a possível calamidade provocada pela
estiagem. Há a possibilidade de recolhimento dos proprietários em casa centrais, menos
isoladas e menos vulneráveis, e o temor assombrado do que potencialmente os romeiros
fariam. Porta-voz da elite local, Monsenhor Alencar nos conta como os romeiros eram
vistos, tratados e relegados à categoria de bárbaros pelos cratenses enriquecidos.
O tratamento hostil contrastava com o papel desempenhado pelas constantes levas
de romeiros para o crescimento da cidade, interrompido pelas secas de 1898 e 1900,
período em que a povoação começou a decair e os imóveis construídos no auge das
peregrinações passaram ao estado de abandono366. Na virada do século, a instabilidade
rondava Juazeiro e a reivindicação da autonomia política ganhou fôlego.

3.4 O caminho do acolhimento e as armadilhas da política

366
SOBREIRA. Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. 1969 .2a. edição Editora VOZES p.72
155

Ao voltar ao Ceará, sem abandonar a defesa dos milagres, o padre Cícero foi
punido com a suspenção das ordens e Maria de Araújo foi recolhida à casa de Caridade
do Crato. As ordens do padre não haviam sido totalmente suspensas àquela altura, estando
ele habilitado ao serviço, desde que fora de Juazeiro. Esta foi a condição imposta pela
revisão do processo que obteve em Roma. Desde então ministrou nos arredores de
Juazeiro, nas localidades de Sítio São José e Sítio Saquinho, tendo recebido autorização
de seu diocesano em 1902. Em março de 1906, tentou apelar sobre tal decisão,
justificando que enfrentava dificuldades por questões físicas para se locomover para
celebrar. Não foi atendido. A decisão final sobre seu afastamento nunca foi por ele
conhecida.367.
O caminho da política começou então a ganhar sentido para o líder de Juazeiro.
Sobre ele já recaía a responsabilidade que exorbitava sua antiga condição de clérigo.
Mesmo sem o estabelecimento de suas plenas funções sacerdotais, Padre Cícero era o
gestor de Juazeiro mesmo antes da conquista da elevação a município. Juazeiro
conquistou sua autonomia em 1911, emancipando-se da cidade do Crato e seu primeiro
prefeito (Intendente) foi exatamente o Padre Cícero Romão Batista. Segundo conta o
Padre Azarias Sobreira, em conversa com Padre Cícero, recebeu do sacerdote a seguinte
explicação acerca da opção pela política:

367
Uma cronologia organizando as principais punições desde o resultado do segundo inquérito, baseada na
bibliografia disponível e na síntese apresentada na matéria “PERDÃO DO VATICANO”, publicada no
Jornal O povo em 13/12/2015”: (6 de agosto de 1892) Portaria do bispo D. Joaquim suspende o Padre
Cícero das faculdades de confessar, pregar e administrar sacramentos. (13 de abril de 1896) O bispo D.
Joaquim acresce a pena ao Padre Cícero, a partir dali estava proibido de celebrar Missas. (10 de fevereiro
de 1897) O Santo Ofício emite um novo Decreto, agora proibindo a permanência de Padre Cícero em
Juazeiro, sob pena de excomunhão. Em junho do mesmo ano deixa Juazeiro passa a uma temporada em
Salgueiro-PE. (22 de junho de 1898). Em resposta ao apelo feito na viagem a Roma. Após novos
interrogatórios os cardeais do Santo Ofício decidem indultar o Padre Cícero das censuras até ali impostas.
Permanece a proibição de pregar, confessar e dirigir as almas e é aconselhando a procurar outra diocese.
(15 de novembro de 1898) Padre Cícero se apresenta a Dom Joaquim em Fortaleza e lhe informa que fora
absolvido em Roma. Mas o bispo, a quem cabia interpretar e efetivar à sua forma a decisão do Santo Ofício,
não permite que ele celebre em Juazeiro.(12 de julho de 1916) O Santo Ofício declara o Padre Cícero
incurso na excomunhão latae sententiate. A comunicação desta decisão ao Núncio Apostólico Dom José
Anversa data de 27 de julho de 1916. (29 de abril de 1920) Passados três anos da comunicação da
excomunhão latae sententiate dom Quintino, bispo do Crato encaminha ao padre Cícero a comunicação da
decisão. Por sua avançada idade seus assessores próximos não o deixaram saber desta notícia que muito o
abalaria. (No dia 23 de fevereiro de 19210 O Santo Ofício analisou a solicitação de Dom Quintino ao Papa,
que pede a absolvição das censuras e a permissão de celebrar, e resolveu atender apenas à primeira parte
(absolvição das censuras, aí incluindo a excomunhão), mas não concedeu o direito de celebrar, podendo o
Padre Cícero receber os sacramentos como simples leigo. Permanece a recomendação deixar o Juazeiro. (3
de junho de 1926) Como Padre Cícero permaneceu em Juazeiro Dom Quintino acatando determinação do
Santo Ofício o suspende novamente, retirando-lhe o uso de ordens. Disponível em OPovo.com.br
156

Que havia eu de fazer para não ficar ocioso, se me tiraram o sacerdócio,


privando-me do uso total das minhas ordens? Fiquei reduzido à
condição de um simples leigo: não posso dizer missa, não posso
confessar nem tenho licença de levantar a voz na igreja. Foi este o único
caminho que encontrei para continuar fazendo algum bem.368

Havia na forma do apostolado do Padre Cícero uma evidente inspiração nas


missões do Padre Mestre Ibiapina. O contato direto e afetivo com os fiéis forjou no padre
a figura de líder, mesmo antes que ocupasse a cadeira de prefeito. A projeção política
conviveu com o apostolado e vice-versa, tornado tênues as fronteiras entre a política e a
religião. O padre atraiu críticos por fazer essa opção, gente que apreciava os ares
republicanos e celebrava a aparição do Estado laico brasileiro.

Tendo renunciado à carreira sacerdotal e ao convívio regular com o


Clero, o pe. Cícero deixar-se-ia ficar definitivamente no Juazeiro,
vivendo a seu modo, com um pé dentro e outro fora da igreja, como
“pajé” autêntico, reeditando página remota da história da civilização,
quando o sacerdote era, ao mesmo tempo, naturalista, astrólogo e
curandeiro.369

Uma perda importante nos primeiros tempos da inserção formal de padre Cícero
no campo da política foi a morte de seu primo José Marrocos. No ano de 1909 Marrocos
atuava como professor na cidade do Crato, em diversos números do Jornal o Rebate
podemos encontrar na página 4 um anúncio do Collegio Cratense, do qual era diretor. Seu
zelo como professor não o afastava de constantes visitas ao primo de quem continuou
como amigo chegado. Um jornal de Fortaleza370 noticiou sua partida em 14 de agosto de
1909. A notícia necrológica ainda demarca seu papel como ativo abolicionista, mesmo
passados tantos anos de sua militância no jornal Libertador. Tal fato marcou sua biografia
e o insere no rol de intelectuais cearenses engajados na causa da liberdade. Depois da
abolição seu foco muda, além de cuidar de seus estudantes muito trabalhou no intento de
ver reabilitado o primo e de comprovar que não houve falsificação ou embuste nos fatos
de 1889.

368
SOBREIRA. Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. 2a. edição Editora Vozes, p.93
369
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro
1968.coleção retratos do Brasil, volume 66. p.258.
370
“Faleceu no dia 14 este, em Joaseiro do Cariry, o conhecido jornalista e homem de letras: José Joaquim
Telles de Marrocos.O Ceará lhe deve muito, sobretudo na libertação dos escravos aonde ele ocupou um
papel bem saliente. Foi redator do antigo jornal “Libertador” e professor de muitos moços que hoje ocupam
posições elevadas na sociedade. Morreu pobre, tendo a beira do leito mortuário o seu maior amigo o Rvdo.
Padre Cícero Romão Batista. Pesamos aos seus irmãos e sobrinhos.” BNDigital Jornal do Ceará de
31/08/1910 ,p.2.
157

Nos primeiros anos do século XX, a Jerusalém sertaneja estava enredada numa
teia de relações políticas, deixando de ser um provisório acampamento de fiéis em busca
de aconselhamento e guarida e erguendo-se como núcleo urbano complexo e dinâmico.
O padre, que fora afastado de suas ordens ao defender como milagre os fatos
extraordinários com a virtuosa Maria de Araújo, de quem era orientador espiritual, acabou
se tornado o primeiro prefeito e como tal, teria que responder pela administração, pelas
contas e pelo desenvolvimento da cidade.
Ao entrar na política o padre abraçava a oportunidade de exercer alguma influência
nos destinos daqueles que o procuravam não pelo político que se tornava e sim pelo padre
que sempre foi. A interpretação de Marcelo Camurça aponta o reducionismo das
interpretações que descrevem o padre Cícero como um coronel da primeira república, um
chefe oligárquico a exercer mando e acumular bens. Para este autor, padre Cícero fez
política, mas sempre guiado por uma “cosmovisão católica-sertaneja que organizava sua
postura e ética de vida”371: Padre Cícero funcionava como um “conselheiro” e um “padrinho” para o
povo do sertão, aconselhando centenas de homens e mulheres em todos os aspectos da sua vida cotidiana:
econômico, social, terapêutico, afetivo, moral etc. Esta sua prática era reconhecida pelo povo como um
apostolado e um serviço e não como um exercício de mando e exigência de subserviência, que geravam
temor e o respeito que este mesmo povo nutria pelos coronéis 423

O fato é que desde a divulgação do milagre da hóstia o pequeno distrito passou


por intensas transformações e rupturas. O curso migratório constante associado ao fluxo
de romeiros torna impossível sabermos quem era romeiro e virou morador, quem era
migrante em busca de uma oportunidade na urbe emergente. A cidade era construída em
grande parte por obras direcionadas pelo próprio padre Cícero, e ele agiu assim mesmo
depois das ordens suspensas, pois não se tratava de atividade clerical, eram as frentes de
trabalho mobilizadas para as mais diversas atividades:

Tal fato liga-se ao costume que os romeiros tinham de se reunirem em


grandes grupos e conduzirem ( alegres e cantando o ofício da Imaculada
Conceição, benditos, Maria valei-nos, o rosário, etc) madeiras e
material para construção de igrejas ou de casas do Padre Cícero, tendo
como recompensa apenas a benção dele ao terminarem o trabalho372

371
CAMURÇA, Marcelo. Padre Cícero: entre a política e a religião popular Anais do III Simpósio
Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro: 2004,pp.132-136 423 Idem
372
DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção Centenário).p.74
158

Eram tantas pessoas dispostas e disponíveis para o trabalho que ao reunir um


grupo para uma tarefa o padre separava pelo nome, evitando atrair uma multidão. Nestas
ocasiões costumava dizer :

“Preciso amanhã de cem homens para limparem meu roçado na Baixa


Danta, mas quero somente os que se chamarem José. No dia aprazado
compareciam ao dito local mais de cem homens e não havia mato que
resistisse às suas enxadas, porque cada um que se esforçasse mais em
limpar, cantando e dando vivas ao Padim Ciço.373

A descrição da cidade no ano de 1909, oferecida por Luitgarde Barros, apresenta


uma localidade com 15.050 habitantes, contando o núcleo central com dezoito ruas e
quatro travessas principais. A povoação contava com duas praças, mais de cem oficinas
diversas: sapateiros, carpinas, marceneiros, fogueteiros, funileiros, ferreiros, ourives,
pintores, fundição, barbeiros, alfaiates e modistas. Também estavam em pleno
funcionamento duas padarias, duas farmácias, vinte lojas, vinte bodegas, dez armazéns,
duas escolas públicas e doze escolas particulares.374
O padre articulava uma verdadeira rede de correspondências em favor dos que lhe
pediam socorro. Um exemplo é um pedido feito ao Barão Félix de Vandesmet, primeiro
usineiro de Alagoas, solicitando que desse amparo a uma família de retirantes. Em outro
momento, ao mesmo Barão, pediu mudas de cana para renovar o plantio no Ceará e
solicitou ainda que enviasse um grupo de trabalhadores treinados para o uso de um modelo
mais eficaz de arado, para que pudessem ensinar tal manejo. 375 Neste sentido, atuava de
forma estratégica: planejava, mantinha uma rede de contatos e organizava os trabalhos.
Uma inteligente administração associada ao apostolado e ao acolhimento que abraçou
como missão.
Mesmo autores que caracterizavam padre Cícero como coronel, como é o caso de
Rui Facó, também reconheciam que o padre parecia pouco hábil para questões do espaço

373
Idem,p.75
374
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza, 2014 3ª Edição p.289
375
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. Editora Imeph,
Fortaleza, 2014 3ª Edição. p.287
159

estritamente político 376 . Apesar dos cargos importantes 377 nunca deixou Juazeiro, não
chegou a ir a Fortaleza para tomar posse do cargo de vice-presidente do estado e jamais
exerceu de fato o mandato de deputado federal para o qual foi eleito.
Compreendemos que soube aproveitar a política a seu modo, atuando como
articulador em defesa de seus interesses locais, ou como admite o próprio Rui Facó: "uma
ambição voltada para o meio em que vivia”. Mas o mesmo autor admite o distanciamento
de Cícero das esferas políticas dos grandes centros, entendendo o comportamento como
uma defesa, posto que o consideravam provinciano e dependente da ingenuidade dos
romeiros. Estes tidos como tolos e fanáticos pelo autor:

Porque o sacerdote nem uma só vez desautorizou os consabidos


embustes apresentados como milagres seus, preferindo, pelo silêncio,
alimentar a crença de que era capaz de fazê-los. Com sua cultura restrita,
sua mentalidade provinciana, seus parcos dons tribunícios, ele devia ter
suficiente bom-senso para reconhecer que fora de Juazeiro, mesmo em
Fortaleza, muito menos no Rio, teria um papel mais do que medíocre,
apagado.378

A atitude de acolhimento e a postura de liderança na organização de atividades


básicas como a agricultura, as oficinas de trabalho manual e a construção de casas, poços
e outras benfeitorias já faziam do padre um gestor capaz de administrar a vida dos
moradores, fornecendo os meios para obterem água, comida e abrigo. Cumpria o papel
que o poder público laico era incapaz de exercer em outras paragens, fomentando assim
verdadeiras rotas de acolhimento , cujo destino era Joazeiro do Norte.

3.5. Pardos, pretos e loucos: o exército de romeiros de Padre Cícero

Um aspecto da atuação do padre Cícero que se destaca naquele cenário de tantas


carências, trata-se da sua forma de acolher também as pessoas com graves transtornos
mentais. Tal postura não se explica apenas pelo lado político: não eram eleitores, não
eram investidores e nem trabalhadores aptos, mas eram tratados com um cuidado raro
para a realidade da época.

376
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: Gênese e lutas Editora civilização Brasileira S.A Rio de Janeiro 1976
4º. Edição p.162
377
Prefeito de Juazeiro do Norte a partir de 1911, filiado ao Partido Republicano Conservador (PRC). Foi
prefeito por 12 anos e, concomitantemente, vice-presidente do estado do Ceará em 1913. Em 1926 foi eleito
deputado Federal.
378
Idem
160

Um dos casos de cura mencionados em documentação consultada foi


testemunhado por Floro Bartolomeu379, então deputado Federal. Segundo o político, ao
chegar na cidade em 1908 havia um homem “de cor preta” que vivia embaixo de uma
árvore em condições miseráveis e sem falar com ninguém, a não ser com o padre Cícero,
o único de quem aceitava alimentos, roupas e remédios. Com o tempo, o rapaz estava
“reestabelecido por completo” e apto para trabalhar.
Outro testemunho foi escrito pelo padre Azarias Sobreira sob o título “Somente
sugestão?”, em um dos capítulos do livro O patriarca de Juazeiro. Sobreira deixa
registrado ali a relação do padre Cícero com os “alienados” que afluíam ao Juazeiro. Seu
ponto de vista transita entre a possibilidade de regeneração milagrosa ou a cura pelo
simples acolhimento e atenção dados pelo padre. A descrição possibilita mais um
vislumbre da situação:

Se a cura de moléstias nervosas pudesse figurar, por via de regra, no rol


de milagre, contar-se-iam por centenas os portentos operados pelo
Padre Cícero(...)
Tornou-se proverbial o dom que possuía de domar a fúria dos alienados.
Por isto mesmo, que até duzentas léguas em derredor lhe chegavam
doentes desse gênero trazidos pelas respectivas famílias, na esperança
de vê-los recobrar a saúde.
Nem todos se curavam, é certo; por sinal Juazeiro, até 1924, era uma
espécie de subúrbio de manicômio em férias (...)
Quase sempre, a só presença do Patriarca era suficiente para amainar os
nervos dos loucos. A unção mística de sua palavra e a paternidade com
que a eles se dirigia, pondo-lhes a mão sobre a cabeça e falando-lhes da
bondade sem par da mãe de Deus, tudo isso corroborando com esmolas
que lhes ficava dando, abria para ele um mundo de confiança380

Estas descrições sobre os ditos “loucos” do Juazeiro381 recuperam um pouco da


forma pela qual o padre Cícero lidava com estas pessoas e suas dores. Diante dos inúmeros

379
Floro Bartolomeu da Costa (17/08/1876-8/03/1926). Médico baiano que se estabeleceu em Juazeiro a
partir de 1908. Apoiador e incentivador do padre Cícero no campo político. Foi deputado Estadual e
Deputado Federal por duas legislaturas (1921-1926), sendo a última interrompida por seu falecimento. Foi
a “mão de ferro” a organizar e disciplinar o Juazeiro em moldes que considerava adequados a uma cidade
em desenvolvimento, neste sentido protagonizou ações polêmicas e autoritárias.
380
SOBREIRA, Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. 1969.2a. edição Editora VOZES p.110
381
As declarações de Floro Bartolomeu aparecem num discurso de defesa do Juazeiro como deputado na
Câmara Federal. A necessidade desta defesa foi provocada pelo depoimento de Paulo Moraes e Barros que
realizou conferência sob o título “Impressões sobre o Nordeste” que criticavam o Juazeiro. Ao defender a
cidade Floro Bartolomeu, entre outras coisas, optou por apresentar casos de pessoas recuperadas das
condições extremas. Paulo de Moraes Barros era médico e político e esteve no Ceará ao lado do deputado
Ildefonso Simões Lopes e pelo general Cândido Mariano da Silva Rondon, como membros de uma
comissão a serviço da Inspetoria Federal de Obras contra a Seca (Ifocs). Cf COSTA, Floro Bartholomeu
da. Juazeiro e o padre Cícero: depoimento para a História. Coedição Secult /Edições URCA. Fortaleza:
Edições UFC, 2010
161

exemplos de acolhimento paciente e desinteressado, conhecidos através dos depoimentos


que circulavam, temos uma vaga ideia do tratamento dispensado aos alienados. Tal
tratamento revela uma atitude caridosa e tolerante com um grupo de indivíduos
historicamente excluídos e maltratados. Dentre as muitas formas de acolher vividas e
construídas em Juazeiro do Norte, o cuidado com os ditos “loucos” dimensiona o
apostolado humanizado do padre, revelando que para além da mística em torno do célebre
milagre, havia uma prática de acolhimento generoso na cidade que a mantinha como uma
espécie de polo para onde constantemente convergia a esperança. É possível que a atitude
se multiplicasse, já que são apontados relatos de uma quantidade muito alta de indivíduos
com estas necessidades. Neste cenário, é bem possível que os moradores da cidade tenham
desenvolvido por isso maior tolerância com esse contingente, via de regra, desprezado em
outras cidades da província.
Um testemunho pessoal de Otacílio Anselmo, autor célebre por tentar desconstruir
a imagem de padre Cícero como um homem caridoso, insiste no caráter embusteiro do
sacerdote. Considerava-o, na verdade, ambicioso e leviano, como repete muitas vezes em
seu livro “Padre Cícero Mito e Realidade”. O autor afirma ter testemunhado a seguinte
cena:
A propósito, somos testemunhas de passagem por Jati de um
semnúmero de doentes mentais de ambos os sexos, muitos deles no
paroxismo da loucura, amarrados de corda, levado a pé ou imobilizados
sobre dóceis cavalgaduras, em marcha forçada para o Juazeiro. Eis
porém, como se explicam as pretensas curas milagrosas do sacerdote,
devolvendo a razão a certos indivíduos acometidos de loucura ou
idiotice.382

A terrível cena presenciada deixa evidente que havia pelo menos duas graves
questões convergindo. A primeira é o tratamento desumano dado àquelas pessoas,
transportadas por grande distância em condições horrendas. De Jati a Juazeiro são cerca
de 87 km pelas rotas atuais, sendo que se trata de uma pequena localidade na fronteira
com Pernambuco. A descrição sinaliza que estas pessoas vinham desde a outra província
em condições precárias. Esta romaria insana (podemos assim definir pelo seu trágico
cerne) revigorava, como as outras migrações, a centralidade de Juazeiro, que se afirmava
como portal para a cura e a renovação através da assistência à população carenciada, que

382
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio
de Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.260 O grifo é meu 435 ANSELMO,1968,
p.26.
162

naqueles dias incluía também os flagelados da seca e outrora os libertos do sistema


escravista. Segundo Anselmo, em obra publicada em 1968:
Em Juazeiro, como é sabido, o maior contingente de adventícios
constituiu-se de crioulos e pardos de Alagoas, os quais, entre outros
hábitos e costumes ancestrais para ali trouxeram o vício de fumar
maconha, entrada no Brasil com os primeiros africanos (...) É verdade
que no Ceará a cultura da erva maldita data de longe(...)435

Egressos de Alagoas, os forasteiros de Joazeiro eram “crioulos e pardos” que iam


ter à cidade atraídos pelas práticas assistenciais do padre Cícero. De certo eram da
primeira ou segunda geração de libertos em busca de pouso seguro após o rompimento
dos laços impostos pela escravidão. Orientados pela fama caridosa do padre Cícero, os
migrantes de Alagoas abriram uma rota para alcançar seu acolhimento que, de acordo
com o autor, foi seguida por outros, pois era de conhecimento geral que “em Juazeiro (...)
o maior contingente de adventícios constituiu-se de crioulos e pardos de Alagoas .
Otacílio Anselmo, entretanto, nega que estejam no acolhimento do padre ou na
mística da Nova Jerusalém, a explicação para cura ou para a socialização de pessoas com
transtornos mentais. Relaciona o fato ao uso da maconha, também chamada de liamba:

Muitas pessoas, mesmo das menos simpáticas, pensavam que certos


tipos, particularmente preto ou bem trigueiro, eram realmente doidos e
malucos, conduzidos, furiosos, à presença do Patriarca para cura-los
Nem por sonho
Tais indivíduos que vimos mais de uma vez à porta do Patriarca,
contidos por seus condutores, cavilosos ou não, no dia seguinte estavam
bons e proclamando que tinham sido curados por milagre da benção do
Padim Ciço.
Quase todos estes tipos eram liambados e nada mais.
Todavia o Patriarca os abençoava(...)383

O racismo militante do padre Otacílio associa a loucura ao colorismo e a cor da


da pele ao uso da maconha, promovendo uma tríade que encontra raízes na obra do
384
psiquiatra e notório eugenista Nina Rodrigues (1862-1906) . Corrente no meio
acadêmico do século XIX e usada como referência na medicina legal, a combinação entre
a compleição física, o caráter e a aptidão para a criminalidade produzirá um discurso
racista que servirá de base para afiançar a suspeição e a condenação prévia de negros e

383
Apud DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção Centenário) p.195
384
BEZERRA, Rafael Santana. A República dos Incapazes: Nina Rodrigues e a situação legal dos loucos
no Direito Civil brasileiro (1899-1916). Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2017.
163

pardos diante de qualquer delito ou prática considerada inadequada. Elaborada com o


objetivo expresso de afetar a imagem do padre Cícero e dos grupos que ele acudi. A
narrativa reforça a presença de indivíduos negos e pardos ao redor do líder religioso.
Os cuidados dispensados a negros e alienados não eram práticas comuns no
começo do século XX e colocavam Padre Cícero em margem oposta ao discurso oficial
sobre os herdeiros da escravidão.

A problematização dos negros operada pelo saber psiquiátrico nas


primeiras décadas do século XX estava em consonância com a
emergência das teorias raciais no Brasil, mesmo que elas tivessem ora
apoio irrestrito, ora certa crítica por parte do pensamento médico
paulista. A hereditariedade foi considerada determinante biológica da
espécie e levou à preocupação com a descendência humana, a saúde, a
raça, atestando a correlação do corpo com o sexo. O reconhecimento da
herança como principal causa da loucura levou a profilaxia ao centro do
debate, como uma espécie de panaceia para os problemas nacionais,
com a depuração da raça como condição primeira, pela formação de
programas eugenistas das Ligas de Higiene Mental que povoariam o
universo da psiquiatria nos anos 1920-30385.

Racializar as doenças da mente era uma prática vigente e inserida numa realidade
na qual os manicômios eram lugares de isolamento e castigo, tornando-se, praticamente,
um caminho sem volta386. O psiquiatra negro Juliano Moreira387388 fez uma trajetória de
das exceção ao lidar com a questão. Em 1903, passou a dirigir o Hospício Nacional de
Alienados, da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, cargo no qual esteve por vinte e sete

385
MACHIN, Rosana e MOTA, André. Entre o particular e o geral: a constituição de uma “loucura
negra” no Hospício de Juquery em São Paulo, Brasil – 1898-1920.In Interface vol.23 Botucatu 2019
disponível em https://www.scielo.br/pdf/icse/v23/1807-5762-icse-23-e180314.pdf, acesso em 20 de agosto
de 2020
386
Sobre esta questão consultar ENGEL, Magali Gouveia Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios
(Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001; BARBOSA. Rosana Machin. Presença negra
numa instituição modelar: o hospício do Juquery. São Paulo Dissertação de Mestrado em Sociologia- USP,
1992, 188f e DOS SANTOS, Patrick Silva, O pós-abolição e o estigma do alienado no romance social O
cemitério dos vivos, de Lima Barreto. Revista Ensaios, vol. 14, jan-jun de 2019.
387
Juliano Moreira (06/01/1873-02/05/1933). Academia Brasileira de Ciências (Membro Fundador)
388
/05/1916.Doutor em Medicina - Faculdade de Medicina da Bahia (1891). Tendo atuado no Hospital de
Santa Isabel da Faculdade de Medicina da Bahia. Foi Interno da Clínica Dermatológica e Sifilográfica
(1890). Assistente da Cadeira de Clínica Psiquiátrica e Doenças Nervosas (1893-?).Preparador da Cadeira
de Anatomia Médico-Cirúrgica (1894-?).Lente substituto da 12ª Seção de Clínica Psiquiátrica
(1896?).Médico Adjunto do Hospital Santa Isabel. Hospital São João de Deus/Alienista (1893-1903). No
Ministério do Interior e Justiça: Diretor do Hospício Nacional de Alienados (1903-1930). Comissão (1904).
Diretor Geral de Assistência a Alienados (1911-1930). Resumo baseado nos dados da Academia Brasileira
de Ciências, da qual o Dr. Juliano Moreira foi membro fundador. Disponível em https://web.archive.org.
Mais sobre seu trabalho em: Por GALDINI, Ana Maria, ODA, Raimundo e DALGALARRONDO. Paulo.
Juliano Moreira: um psiquiatra negro frente ao racismo científico. Revista Brasileira de Psiquiatria, vol.
22 nº 4. São Paulo, dezembro de 2000.
164

anos. Na instituição do bairro da Urca, Juliano Moreira implementou medidas inovadoras


para a Psiquiatria brasileira ao incinerar camisas-de-força e abrir espaço para diálogo com
seus pacientes389.
Ao deixar circular sem amarras os doentes psiquiátricos e atendendo-lhes
pessoalmente, Padre Cícero saudava à distância as práticas inovadoras de Juliano
Moreira.442 Na verdade, transferia para o campo político a caridade que executava como
padre. Mas a emancipação de Juazeiro revelou que havia muito em jogo, sendo sua
autonomia uma espécie de “rompimento” com o Crato, o que trouxe inquietação.
Havia dúvidas acerca dos destinos daquele núcleo urbano que crescia a cada dia.
Os temores se desdobravam em comparações com Canudos e até com o massacre da Serra
Bonita, narrativas assombradas pelo temor de um ajuntamento formado por grupos
marginalizados e excluídos. A memória destas trágicas passagens não cessará e em
diversos momentos ressurgirá em comparação a Juazeiro de Norte, como se trouxesse um
risco iminente de tragédia e desordem. A marca do fanatismo perseguirá a fé dos
despossuídos, como um estigma.

Desse modo, privada de acesso àquelas agremiações e movida por


inequívoco sentimento gregário, a ralé campesina recompôs as
companhias de penitentes, único refúgio em que os esquecidos e
deserdados encontraram ensejo para expandir o seu ritual bárbaro, num
decalque caboclo de penitencialismo cristão, em procissões noturnas
com cantos plangentes e maceração corporal a lâminas ou maxixes
pendentes de cordéis a fora, em torno de cruzeiros solitários e à porta
de templos e cemitérios, como filhos bastardos da Igreja.
Foi exatamente no seio desta classe desamparada que se desenvolveu,
com mais intensidade, o fanatismo religioso irrompido em 1889 no
antigo povoado de Juazeiro, para onde convergiam, a começar daquela
data, os legatários do sebastianismo de Pedra Bonita e alguns
remanescentes da hecatombe de Canudos.390

Sobre o impacto das migrações ao Juazeiro, seu acelerado crescimento e


autonomia, Otonite Cortez ressalta que “para os cratenses aquele povoado tornou-se (...)

389
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Subsecretaria de Assuntos Administrativos.
Memória da loucura: apostila de monitoria / Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva, Subsecretaria de
Assuntos Administrativos. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. 88 (Série I. História da Saúde no Brasil)
p.26

390
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de
Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.12
165

um ergástulo de forasteiros, miseráveis e delinquentes” 391 . Tratavam-se de homens e


mulheres cujos procedimentos eram completamente imprevisíveis e ameaçadoras da
ordem. Tais características eram ressaltadas pelos contemporâneos e se tornaram um
recurso discursivo repetido diversas vezes que resultavam na mesma mensagem: Juazeiro
é um perigo!

(...) acostados aos bandos de pacatos peregrinos, marchavam velhos


profissionais do crime, fugitivos da justiça, ladrões, vadios e
aventureiros, todos em busca de melhores dias. Tamanha fora a
afluência de forasteiros que ao fim do segundo semestre de 1892, a
população fixa de Juazeiro já orçava 5 mil habitantes. Nesse tempo o
povoado já havia perdido inteiramente seu aspecto original, com o
aparecimento repentino de casebres de todos os tipos levantados em
desordem, refletindo o estado de uma multidão em delírio392

As evidências que comprovassem ou refutassem a narrativa de que o Juazeiro de


migrantes e romeiros era uma terra sem dono, permissiva e atraente para malfeitores não
constam da documentação da Chefatura de polícia. No Juazeiro havia um distrito, mas o
delegado principal estava sediado no Crato. As anotações da correspondência entre os
subdelegados e o Chefe de Polícia do Ceará, nos anos de 1889 e 1890, informam, em uma
das raras anotações que mencionava o Juazeiro, que ali teria se escondido um criminoso
procurado. Tratava-se de um indivíduo negro chamado Simplício.

Recomendo-vos que efecctueais a captura do criminoso Simplicio José


de Mariz, condenado no termo de Piancó, do estado da Parahyba, a 7
anos de prisão, por crime de morte, o qual se acha homisiado no districto
de Joaseiro, desse termo. O mesmo criminoso tem os signaes seguintes:
alto, secco, cor parda, olhos grandes e pretos, nariz um pouco achatado,
cabelos crespos, dedos compridos e dentes imperfeitos.393

Não há registro, na correspondência dos anos pesquisados, de que Simplicio teria


sido capturado. O povoado que recebia constantes visitas de romeiros, que crescia de
forma acelerada, de fato poderia ser um esconderijo, especialmente, se seu tipo físico não
se diferenciasse muito dos demais. Mas é fato que por algum tempo prevaleceu um clima

391
CORTEZ, Antônia Otonite. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Dissertação de
mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
392
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de
Janeiro 1968.coleção retratos do Brasil, volume 66.p.87
393
APEC. Chefe de Polícia Samuel Fellipe de Sousa Uchôa. Anotação no. 1576 com data de 22 de
dezembro de 1890. Fundo Chefatura de Polícia.
166

de tranquilidade naquele período 394 , tanto que o Chefe de Polícia parabenizou o


subdelegado do Crato:

Acuso [que foi] recebido o vosso officio de 1ºdo corrente,


comunicando-me que, nesse termo, desde dezembro do anno passado
até esta data, não houve ainda crime algum que podesse ser trasido ao
meu conhecimento. Em resposta tenho a diser-vos, que me foi muito
agradável a vossa participação e que resultado tão ligeiro é devido à
solicitude e critério com que tão bem se tem conduzido essa Delegacia.
O Chefe de polícia Samuel Felippe se Sousa Uchôa
26 de janeiro de 1891

As primeiras análises não dão conta de nenhuma avalanche de delito, mas há muito
a ser palmilhado em busca de compreender esta questão, como este medo foi nutrido e
que bases concretas poderiam justifica-lo. A miséria não era uma novidade, mas tinha um
“lugar” na sociedade, o ajuntamento de miseráveis e sua organização em diversas frentes,
fazendo emergir o que Michel Mollat descreveu como suspeita: “errante, o pobre não é
apenas um não-reconhecido. Apartado do seu quadro social –não seria ele um rebelde?
Um vagabundo, um propagador de epidemias?”448
O Juazeiro não abrigava os pobres “conhecidos”, beneficiários de uma ou outra
ação de caridade praticada com zelo e até alívio pelas elites do Crato. Eram desconhecidos
e a impossibilidade de controle pesava como ameaça constante desde os primeiros anos
após o milagre, permanecendo vivo no momento da emancipação de Juazeiro
Os ânimos estavam exaltados, especialmente depois do momento em que Padre
Cícero abraçou a vida política com a emancipação de Juazeiro do Norte, ocupando cargos
eletivos como prefeito e vice-governador. Seu envolvimento nos conflitos de 1914, que
culminaram no afastamento do governador Franco Rabelo também adensaram as
percepções e reascenderam as dúvidas em torno de sua figura. Foi no campo político que
se engendrou um conflito de grandes proporções envolvendo a então recém-criada cidade
de Juazeiro449. No ambiente político nasce, mas nele não será explicado, o episódio da
“Guerra de 1914” ou “Sedição de Juazeiro”. Em Juazeiro, já estabelecido como liderança
política, o padre articulará o chamado “Pacto dos Coronéis” registrado num documento
que era um verdadeiro armistício, se levarmos e conta as rivalidades e o nível de

394
O acesso ao Arquivo Público do Ceará que guarda os documentos da Chefatura de Polícia foi
interrompido pela quarentena, acessei apenas os livros 1889 e 1890.
167

belicosidade que tomavam conflitos entre os coronéis, mesmo na solução de questões


triviais. Estavam reunidos450 sob a liderança do Padre Cícero num cenário de ânimos

448
MOLLAT. Michel. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989. P.8
449
CAMURÇA, Marcelo. Marretas, Molambudos e Rabelistas: a revolta de 14 no Juazeiro. São Paulo:
Maltese, 1994
450
Cf .PERICÁS, Luíz Bernardo. Os cangaceiros: Ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo
Editorial, p.179: “No dia 4 de outubro de 1911, reuniram-se em Juazeiro do Norte por volt adas 13h, os
seguintes chefes políticos: Coronel Antônio Joaquim de Santana, chefe do Município de Missão Velha;
Coronel Antônio Luís Alves Pequeno, chefe do Município do Crato; Reverendo Padre Cícero Romão
Batista, chefe do Município do Juazeiro; Coronel Pedro Silvino de Alencar, chefe do Município de Araripe;
Coronel Romão Pereira Filgueira Sampaio, chefe do Município de Jardim; Coronel Roque Pereira de
Alencar, chefe do Município de Santana do Cariri; Coronel Antônio Mendes Bezerra, chefe do Município
de Assaré; Coronel Antônio Correia Lima, chefe do Município de Várzea Alegre; Coronel Raimundo Bento
de Sousa Baleco, chefe do Município de Campos Sales; Reverendo Padre Augusto Barbosa de Meneses,
chefe do Município de São Pedro de Cariri; Coronel Cândido Ribeiro Campos, chefe do Município de
Aurora; Coronel Domingos Leite Furtado, chefe do Município de Milagres, representado pelos ilustres
cidadãos Coronel Manuel Furtado de Figueiredo e Major José Inácio de Sousa; Coronel Raimundo Cardoso
dos Santos, chefe do Município de Porteiras, representado pelo Reverendo Padre Cícero Romão Batista;
Coronel Gustavo Augusto de Lima, chefe do Município de Lavras, representado por seu filho, João Augusto
de Lima; Coronel João Raimundo de Macedo, chefe do Município de Barbalha, representado por seu filho,
Major José Raimundo de Macedo, e pelo juiz de direito daquela comarca, Dr. Arnulfo Lins e Silva; Coronel
Joaquim Fernandes de Oliveira, chefe do Município de Quixadá, representado pelo ilustre cidadão major
acalmados que escondia tensões, especialmente com relação à emancipação do Juazeiro,
mal digerida pelos políticos cratenses, o pacto sela a entrada do padre Cícero para a vida
pública em outro patamar, mais ambicioso e articulado de forma pessoal a grandes
lideranças. Além de prefeito, o Padre Cícero se projetava como liderança.
Uma questão mais ampla evidenciou ambições e tensões latentes: trata-se da
intervenção salvacionista do presidente Hermes da Fonseca que levou à queda o governo
de Nogueira Aciolly, até então governador do Ceará que contava com apoio do Padre
Cícero. Um novo governador, Franco Rabelo, é indicado pelo presidente. O cenário
favorece uma revanche do Crato e, em meio a tensões diversas, Juazeiro encontra-se
ameaçado contando então com a famosa defesa dos romeiros no “Círculo da Mãe de Deus.
A larga vala que protegeu a cidade, uma trincheira de combate, cuja construção coletiva
teve a participação voluntária de centenas de pessoas a cavar noite e dia. O valado, ou
trincheira, ganhou o nome de círculo da mãe de deus em sinal de devotada expectativa e
proteção. Estima-se que Juazeiro contava com cerca de vinte mil habitantes quando
eclodiu o conflito armado451.
A defesa era necessária pois em janeiro de 1914, depois da deposição do
governador do Ceará, o conservador e oligarca Antônio Pinto Nogueira Aciolly
(18401921), assume o coronel Marcos Franco Rabello (1851-1940) e agravaram-se as
168

hostilidades contra o Juazeiro, porque o novo governador foi convencido a ver o Juazeiro
como insurgente e ameaçador, um abrigo da criminalidade e do fanatismo, as
comparações com Canudos eram constantes. Em janeiro de 1914, tropas leais a Franco
Rabelo juntaram-se à polícia do Crato e acamparam nas periferias do vilarejo planejando
uma impiedosa invasão. Juazeiro foi defendido pelos seus moradores e por inúmeros
voluntários. Um dos elementos centrais para o sucesso da defesa foi a construção de um
valado construído às pressas. O valado cercou a cidade e garantiu sua proteção até que
dali partiu uma leva de defensores de Juazeiro a enfrentar cidades vizinhas, e de combate
em combate chegar a Fortaleza depondo o governo de Franco Rabelo. Em março de 1914
o presidente Hermes da Fonseca nomeou interinamente Fernando Setembrino de
Carvalho, em seguida novas eleições foram convocadas, no pleito Benjamin Liberato
Barroso foi eleito governador e Padre Cícero voltou assumiu como vice-governador.

José Alves Pimentel; e o Coronel Manuel Inácio de Lucena, chefe do Município de Brejo dos Santos,
representado pelo Coronel Joaquim de Santana”.
451
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a revolução de 1914. 2ª. Edição. Fortaleza: Editora
IMEPH, 2011 (Coleção centenário) p.23.
Os combates no campo político correram em paralelo com os combates em torno
da fé: do direito ao reestabelecimento das ordens clericais, algo perseguido pelo Padre
Cícero até seus últimos dias. As tentativas da Igreja de controlar ou conter as práticas dos
romeiros. Tal cenário inspirou narrativas, algumas consideradas fundantes e explicativas
acerca do Juazeiro. Mas bem antes dos intelectuais deixarem registradas suas impressões,
antes de Juazeiro ser objeto de estudo era lugar de convergência, devoção e acolhimento.

3.6. Juazeiro e “sua singular evolução”

“ Quem matou não mate mais. Quem roubou não roube mais” de inúmeras
formas e em diversos contextos essas palavras do Padre Cícero são lembradas. São a
redenção e o renascimento explicados de maneira simples e direta, de um jeito que todos
entendem. Uma oportunidade para viver, recomeçar ou simplesmente acreditar, sendo que
a esperança era um pássaro raro nos sertões de finais do XIX.
Os romeiros aparecem diluídos nos grupos de adventícios, e são muitas vezes
“bando”, “multidão”. Tentar uma aproximação com estes personagens é uma questão que
169

funda a proposta desta Tese: a questão do Juazeiro como possível destino e esteio para
migrantes inseridos no processo de sociabilidade do pós-abolição.
Proponho voltarmos a uma as primeiras personagens relacionadas ao contexto
pós-abolição, a Teresa do Padre, uma liberta que permaneceu com seus senhores e veio
junto com a família Romão ao Juazeiro:

Teresinha, como era conhecida escrava que foi dos pais do padrinho
Cícero desde pequena criada por eles, depois liberta e continuando a
servir os seu ex-senhores com a mesma amizade e amor que lhe votava.
Era uma criatura mulata e solteira, honesta e fiel no cumprimento de
seus deveres, na obrigação de serventuária, exímia lutadora, constante,
de uma firmeza exemplar aos seus amigos ex-senhores que a estimavam
de um modo honroso (...) sabia ler e era inteligente, de uma memória
invejável ( ...) era de estima de padrinho Cícero e de toda confiança,
afinal era uma criatura de predicados tais que não se levava em conta a
sua baixa condição (...)”395

Ao falar na “baixa condição “ de Teresa o autor396 se referia a que vejamos que


se trará de um texto do século XX, ele mesmo privou da intimidade da casa do padre, era
uma espécie de secretário para correspondência, tendo convivido com diversas mulheres
qu e descrevia como beatas cujas rotinas eram preenchidas pelos afazeres domésticos. A
“baixa condição” seria o fato de ser ex-escrava? De ser negra ? A inteligência, os trechos
da bíblia que sabia de cor e a obediência dedicada erma virtudes ímpares para uma mulher
de sua condição? Como saber se haviam tantas outras mestiças ou pretas a servirem
devotadas à fé e aos cuidados com os serviços.
Ao elaborar uma lista com nomes e descrição de diversas beatas e suas diferentes
atividades de o ração e trabalho, todas inseridas no contexto que cercava o padre Cícero,
Fausto Guimarães acaba por nos revelar mais detalhes das relações de trabalho e
sociabilidades que presenciou. Por exemplo, Maria Leopoldina da Soledade era uma
“criatura branca de família importante do Juaseiro, educada pelo Ver. Pe. Cícero, doente
desde o nascimento de grave incômodo”. Depois da idade de cinquenta anos, atuando
ainda como zeladora da “Irmandade da Terra Santa”454, foi acometida de cegueira e se
viu cada vez mais debilitada. Em seu tormento foi socorrida pelo padre Cícero que a
provia e “tinha como companheiras duas mulatinhas romeiras que assistiam nos seus

395
GUIMARÃES, Fausto da Costa. Memórias de um romeiro. Fortaleza: Editora IMEPH- Coleção
Centenário, 2011. p.79
396
Trata-se do testemunho de Fausto da Costa Guimarães, um romeiro que chegou de mudança com a
família a “Joaseiro”, no ano de 1909. Era natural de Soledade na Paraíba e como devoto visitava o Joaseiro
170

martírios e muito lhe auxiliavam nos grandes ataque e deveres de casa.”455 Quem seria
estas “mulatinhas romeiras”? Eram beatas, castas e dedicadas à religião ou realizavam um
trabalho doméstico de alguma forma recompensado?
O ano de 1914 não marca apenas os combates da guerra civil cearense, foi naquele
ano que faleceu a beata Maria de Araújo. Seus últimos anos foram vividos com o peso
das punições a que foi submetida como penalidade por sua participação no que a Igreja
chamou de participação em supostos milagres. Maria de Araújo continuou a viver em
Juazeiro e não estava totalmente isolada ou recolhida, lembra um contemporâneo que a
descreve como uma mulher pobre que “não tinha uma choupana onde morasse” e vivia

desde o ano de 1905, ao estabelecer morada atuou como modesto comerciante. Nos conflitos de 1914
colaborou na resistência do e nos embates perdeu o pouco que tinha, ficando também debilitado fisicamente.
Passou a ocupar um cargo na coletoria, atuou no serviço público por um período e depois reergueu seu
pequeno comércio. Colaborou como auxiliar direto o padre Cícero, servindo por doze anos (1916 a 1928)
como escrivão das cartas do Padre em resposta aos romeiros, depois de forma menos regular continuou
colaborando com o padre.
454
“A Irmandade da Terra Santa é o órgão oficial instituído pela Igreja, responsável pela manutenção e
divulgação dos chamados Lugares Santos. Os Lugares Santos assinalam o palco dos Mistérios de nossa
Redenção: Nascimento, Vida, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, filho de Deus. Na sua pregação,
sofrimento na cruz, gloriosa ressurreição e vinda do Espírito Santo” Assim é atualmente descrita o
comissariado da Terra no site institucional
www.comissariadoterrasanta.com.br/comissariados/historiasanta. Teve origem no século XII e está
vinculada à Ordem Franciscana. É necessário pesquisar sua presença em Juazeiro do Norte, sem fontes
localizadas até presente momento.
455
GUIMARÃES, Fausto da Costa. Memórias de um romeiro. Fortaleza: Editora IMEPH- Coleção
Centenário, 2011.p74
sob da proteção de Padrinho Cícero: “Era Maria de Araújo que tirava grande quantidade
de esmolas em legumes e dinheiro para a Casa de Caridade do Crato todos os anos”397.
Ironicamente, aquela casa na qual permaneceu forçada por imposição de ordem do
Diocesano.
Mais exemplos nos chegam de mulheres negras vivendo ao redor do padre e
dedicadas a cuidados vários, desta vez mulheres beatas, como a própria Teresa do Padre.
Estas eram castas, dedicadas a serviços diversos que iam de zeladoria do templo a
trabalhos que passavam pela portaria, copa e cozinha ou cantar em momentos solenes:
Maria das Malvas: como era conhecida era uma beata solteira e parda,
porém sem valor. Servindo sempre a padrinho Cícero como
serventuária da casa nas coisas para padrinho Cícero e muito fiel no
cumprimento de seus deveres. Honesta e forte, enérgica no emprego de

397
GUIMARÃES p,73
171

abrir a porta para o povo entrar em casa de padrinho, o que muitas vezes
se via obrigada a agir.398

Beata Maria Magdalena; mulher parda, filha de Cajazeiras (Paraíba)


criatura severa, honesta, religiosa de convicção, muito leal ao padrinho
Cícero, dada ao trabalho de plantar flores e fruteiras e zelar o que lhe
era confiado. Um tanto enérgica nas coisas de que não gostava e quando
se via ofendida, porém de bom coração. Vivia exclusivamente às
expensas de Padrinho Cícero pois com muita humildade.458

Martinha do Espírito Santo e Maria Preta foram descritas como sendo criadas do
padrinho Cícero que gozavam de toda de toda sua confiança. Martinha era natural do Rio
Grande do Norte, era uma “mulatinha de costumes puros e amiga da religião. Cozinheira
exímia do padrinho Cícero e de tão bons modos que era estimada por todos” 399. Já Maria
Preta era da Paraíba, copeira e ativa colaboradora nas recepções na casa do padrinho.
Ambas foram alfabetizadas ainda crianças e também participavam das atividades
religiosas e celebrações. Eram duas migrantes, e pelo que se pode deduzir teriam sido
instruídas nas letras e na fé já no Juazeiro, ainda crianças. Maria Preta era também cantora
nas celebrações. Estes trânsitos que articulam migração, instrução básica para meninas e
trabalho revelam, através do relato das vidas de Martinha e Maria Preta um lugar possível
para jovens negras, de cujas famílias originais não há menção, talvez fossem órfãs.
Estes exemplos nos encorajam a pensar na peculiaridade daquele tempo/espaço,
uma porosidade, uma possibilidade alcançar relevância ou evidência para mulheres
migrantes, pobres e pretas que em poucos lugares seria possível. No começo do século
XX as atividades que agregavam os fiéis eram sustentadas e animadas por figuras assim,
que iam da roça ou da cozinha para a frente de círculos de oração, para a organização de
festas. A tentativa da Igreja de reprimir o avanço da mística do Juazeiro acabou por
estimular que em canais invisíveis e silenciosos esta mítica criasse raízes profundas.
Ao tentar isolar ou reprimir o que se germinava em juazeiro a Igreja deixou por
anos, depois das punições infligidas ao padre Cícero, entre 1895 até 1916 (21 anos!) a
igreja Matriz de Nossa Senhor das Dores sem autorização de receber nenhum sacerdote.400
Todos os serviços eram oferecidos por religiosos que faziam visitas esporádicas. A opção

398
Idem.p.77
458
Idem p.76
399
GUIMARÃES, Fausto da Costa. Memórias de um romeiro. Fortaleza: Editora IMEPH- Coleção
Centenário, 2011.p.82
400
PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de Juazeiro do Norte.
Fortaleza, IMEPH, 2011.p123.
172

do Bispo de não nomeia um vigário fixo para tender o Juazeiro é explica por um risco à
segurança deste clérigo que seria mal visto, estaria ameaçado. Só o faria com o apoio do
Estado (força policial?).
Pois o Juazeiro, na sua singular evolução, já havia se transformado num
perigoso antro de ladrões, desordeiros e criminosos da pior espécie,
onde só uma voz era ouvida e acatada, a do Padre Cícero (...)
Considerando-se a situação anômala em que achava o Juazeiro no limiar
deste século, sobretudo com a ausência de garantia pessoal para um
representante do Clero, avesso às superstições locais, chega-se à
conclusão que Dom Joaquim mais uma vez demonstrara bom senso e
agudeza de espírito ao cancelar o envio de Missionários à turbulenta
população.401

Nem por isso as preces silenciaram. As rezas não pararam, eram beatas que
diariamente ocupavam o espaço deixado pela Igreja: terços, ofícios, novenas, benditos,
benzeduras, orações...O rio da diversidade e da fé fluía, a ausência de assistência oficial
deixou margem para o fortalecimento destas práticas e de seus agentes, beatas e beatos
reunidos sob a proteção do “padrinho”. Juazeiro germina e floresce assim, sem a direção
formal da Igreja, sabe-se hoje, destaca Renata Paz, que o os primeiros fluxos intensos de
romeiros a Juazeiro, com muitos deles fixando morada na cidade, acontece no período de
maior separação da religiosidade popular perante a Igreja oficial, esta perspectiva reforça
o caráter popular das romarias ao Juazeiro, as romarias seguiram os fluxos praticados
pelos romeiros402 .

401
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro
1968.coleção retratos do Brasil, volume 66. p255
402
PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza,
IMEPH, 2011.p123.
173

Figura 9 .Beato José Lourenço. José Lourenço Gomes da Silva nasceu em 22/01/1872 em PilõesPB
e faleceu em 12/02/1946 em Exu-PE. Líder do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, comunidade
organizado sob as ordens do padre Cícero, que encarregou José Lourenço da liderança. O grupo
que chegou a agregar centenas de pessoas foi violentamente desarticulado em 1937, três anos
depois da morte do padre Cícero.

Estes agentes que liderados pelo padre Cícero e motivados pela fé eram de diversas
origens, vindas de distintas regiões, com forte presença de mestiços. Então importa saber
as cores destes romeiros, suas vivências, seus sincretismos, suas esperanças depositadas
numa terra que era considerada terra de pessoas sem nome, onde um deserdado poderia
tentar ser alguém, onde fé e esperança em dias melhores se conjugam.

No cariri a raça negra está sendo quase absorvida. Poucos negros


legítimos restam ainda. O mestiço com o prêto e o de outra raça vai,
cada dia, adquirindo as características do branco e do caboclo: tornamse
as feições da gente de cor cada vez mais afilada. A assimilação não é
mais rápida porque Juazeiro do Norte, com a mística da santidade do
Pe. Cícero Romão Batista atrai muitos romeiros de Alagoas e do Sul de
Pernambuco, regiões onde a contribuição do prêto foi mais acentuada
do que no Cariri. Muitos dêles não retornam mais à terra natal e ficam
nos campos, notadamente nas plantações de mandioca, no artesanato
juazeirense, e quando não são válidos, aumentam assustadoramente a
mendicância de tôdas as cidades sul-cearenses” 403

Um cronista nos deixou sua impressão acerca da presença de romeiros de diversas


etnias. Trata-se de Manuel Diniz, que foi diretor de uma escola em Juazeiro do Norte na

403
FILHO FIGUEIREDO, José de. Engenhos de Rapadura do Cariri. Fortaleza: Edições UFC 2010,
p.24.(Fac-símile da edição original de 1958)
174

década de 1920404 e que em 1935 publicou “Mistérios do Joaseiro”, obra na qual afirma
que “os romeiros são o complexo da mestiçagem nordestina”405, relatando ainda que:

Comumente só falavam com o padre depois de se terem ajoelhado


diante dele, beijando-lhes sofregamente as mãos ou a batina. Tais fatos
que presenciamos muitas vezes lembram-nos o que diz a história o
Brasil em relação ao Zumbi dos quilombolas dos Palmares, núcleo de
negros ou de escravos fugidos que só falavam a seu Rei (Zumbi) depois
de se ajoelharem.
Aqui também havia muitos elementos negros, cafusos (sic), etc., em que
sempre jaz latente a ideia de terem o seu reino como o suposto Rei
Congo africano(...)466

As reverências à figura do padre são associadas à relação entre os quilombolas e


seu líder Zumbi. O autor não percebe a possibilidade de tais gestos e deferências
dedicadas ao Padre Cícero imitarem outras, como às feitas a figuras eminentes da Igreja,
ou serem resquícios de trejeitos da corte. Apressa-se em definir uma relação entre a etnia
de muitos devotos presentes no Juazeiro e uma suposta ideia que “jaz latente”. O autor
não informa que o hábito de beijar as mãos do padre e de guardar respeito a sua figura era
comum a todos os romeiros e aos moradores da cidade, não sendo, portanto, uma
característica do grupo de “elementos negros e cafuzos”.

3.7. Entre combates e festas.

No imaginário sertanejo a figura dos cangaceiros e jagunços não estavam


descoladas do misticismo O “corpo fechado”, as benzeduras e outras artes da magia
também estavam associadas a estas figuras.
Havia também a seita pior dos nossos sertões, isto é, a dos cangaceiros
que pagavam (segundo determinação de bruxas a que obedeciam) a
mulheres hipócritas de igrejas (baratas, como chamam) para furtarem
hóstias consagradas e entregarem a eles (cangaceiros), para estes
colocando-as no corpo ficarem de corpo fechado (imunizados) contra
qualquer facada ou qualquer balaço406

404
RAMOS. Francisco Régis Lopes. O meio do mundo: Território Sagrado em Juazeiro do Padre
Cícero. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.p.212
405
DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção
Centenário) p.55 466 Idem p.56
406
O uso de objetos litúrgicos como a hóstia ou a pedra d’ara em rituais de magia foi descrito em
CALAINHO, Daniela. Metrópole das Mandingas - religiosidade negra e Inquisição portuguesa no antigo
Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
175

Não há nordestino que ignore que antigamente era quase comum o furto
de hóstias consagradas, para emprega-las na cerimônia macabra de
fechamento do corpo de cangaceiro407

Estas mezinhas, rezas e feitiços passavam de boca em boca, a presença de


cangaceiros era intensa no imaginário da época e se materializava em vários personagens
que passaram a viver em Joaseiro. A presença de antigos cangaceiros convertidos vivendo
em juazeiro foi o tema central do livro Beatos e Cangaceiros, o autor Antônio Xavier de
Oliveira469
Ao descrever as armas de combate do Beato Vicente, homem pacífico que pegou
em armas para defender Juazeiro na guerra de 1914, detalha outo exemplo de apropriação
de elementos sacros:

Joelho em terra, e um tiro monstruoso do seu bacamarte boca de sino,


carregado de pregos de chifre de boi, de cera de vela benta e de contas
de rosário, reboava medonho, em toda cidade(...)408

Alguns “cangaceiros” que viveram em Juazeiro são personagens seu primeiro


livro publicado em 1920. A mistura de elementos de fé, com a brutalidade das situações
extremas de combate não é problematizada, o fluxo é descritivo, memorial e sensorial.
Ao problematizar algum aspecto apela para um julgamento moral e uma interpretação
evidentemente racista. As histórias de cangaceiros convertidos fazem emergir um pouco
das histórias de vida de homens negros vivendo no Cariri entre o final do século XX
primeiras décadas do século XX, se tomarmos como referência o fato do autor incluir
também algumas memórias da infância (nasceu em 1992).
O primeiro que vamos conhecer é o Pedro dos Anjos, vulgo Pedro Pilé:

407
DINIZ, M. Mistérios do Joaseiro, 2ª edição. Fortaleza: Editora IMEPH,2011 (Coleção Centenário).p.99.
469
Antônio Xavier de Oliveira nasceu em Juazeiro do Norte no dia 9 de outubro de 1892.Médico Psiquiatra
formado no Rio de Janeiro. Dedicou-se ao estudo dos problemas brasileiros, em particular do Nordeste. Em
maio de 1933 elegeu-se deputado pelo Ceará à Assembleia Nacional Constituinte na legenda da Liga
Eleitoral Católica. Na Constituinte, defendeu vigorosamente, ao lado de Miguel Couto, a proibição da
entrada de imigrantes japoneses e de todos os grupos de cor, especialmente negros, no Brasil. Promulgada
a nova Carta (16/7/1934), teve o mandato prorrogado até abril de 1935. Em outubro de 1934 foi eleito
deputado federal pelo Ceará, exercendo o mandato de junho de 1935 a novembro de 1937, quando, com o
advento do Estado Novo, os órgãos legislativos do país foram suprimidos. Retornou à política elegendo-se
no pleito de outubro de 1950 suplente de deputado federal pelo Ceará na legenda da União Democrática
Nacional (UDN). Faleceu no Rio de Janeiro no dia 6 de fevereiro de 1953. Autor de: Beatos e cangaceiros
(1920), O magnicida Manso de Paiva - um aspecto clínico e médico-legal de sua psicopatia (tese, 1928),
Intercâmbio intelectual americano (1930), Espiritismo e loucura (1931), O Exército e o sertão (1932),
Resumo biográfico baseado em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionario
408
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920,.p.47
176

“era um cabra calmo quando brincava, e valente e perverso quando tinha raiva.
Tinha o aspecto asqueroso de um demônio: negro, alto, forte, robusto, era o
tipo bem acabado de um perfeito homem de luta.
Apostoa à cara lisa, com raros pelos apenas, era-lhe um chato nariz de grandes
asas abertas, um nariz “apragatado”, por cima de uns lábios grossose roxos,
que se nunca fechavam bem, deixando ver permanentemente de fora todosos
seus dentes, todos caninos e falhos, e pequenos, pregados, enterrados, nas
gengivas grossas, vermelhas sanguinolentas, horrivelmente feias”.409

A descrição, mesmo feita em por volta de 1920 mais lembra uma descrição de
escravizados, à semelhança dos anúncios de fuga ou de compra e venda, onde se levava
em conta os dentes dos indivíduos. O fato dos dentes aparentarem ser “todos caninos”
pode revelar que se tratasse uma pessoa que recorreu à modificação corporal de limar os
dentes, uma prática de alguma regiões africanas.410
Pedro Pilé era um combatente sobrevivente de canudos, mancava de uma perna
por conta de um tiro “foi uma bala de carabina que um macaco de Febrônio me pregou
no joelho”473contava. O autor testemunhou algumas arruaças, na feira ou na rua,
envolvendo o Pedro Pilé. Sobre uma das brigas, que estava prestes a acabar em morte,
conta da interferência pessoal do padre Cícero para acalmar os ânimos:
E seguiram os clássicos conselhos do velho sacerdote.
Os meus ouvidos ainda conservam nítido, o som de sua voz pausada e
grave:
-Pedro, não beba mais. Quem bebe obedece a satanás, e quem obedece
a satanás não se salva, vai pro inferno.
O negro fitava o padre, com um olhar morto, a balançar afirmativamente
a cabeça.474
No Juazeiro nem todos os ex-matadores, ou cangaceiros, que buscavam uma
nova vida faziam arruaças. Antônio Vaqueiro era um “mulato”411 de Pernambuco, viveu
na cidade de Salgueiro e ali cometeu vários crimes por servir aos Carvalho numa guerra
de famílias contra os Pereira. Este tipo de combate envolvendo milícias ligadas a
potentados locai não eram raros nos sertões. Foi, em certa altura, recomendado ao padre

409
OLIVEIRA,1220,p.127
410
“Essa prática de mutilar os dentes, principalmente os incisivos, ou seja, os dentes da frente, é muito
antiga, sendo ela observada em alguns restos mortais do período Neolítico. Encontrada em diversas partes
do mundo, tal prática existiu ou existe em algumas partes da África, como Moçambique, Congo e Angola”
resumiu DIAS. Elainne Cristina Jorge. Dentes limados: a saúde bucal dos escravizados a partir dos
anúncios de fuga, Paraíba (1850-1888) In Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.2, n.1, 2012. p.6 473
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920. p.128 474 Idem
.p.135
411
Idem. p.245
177

Cícero que o levou ao Juazeiro. Regenerado nunca mais se meteu em nenhuma confusão.
O autor de “Beatos e Cangaceiros” o menciona pelas proezas de seu cruel passado de
combates em Pernambuco, pois, em Juazeiro era “regenerado e convertido”, um homem
pacífico: “ Mesmo pra os incréus, foi esse um dos milagres do Pare Cícero”412.
Mesmo chegando ao Juazeiro com a perspectiva de uma vida nova, as querelas
entre grupos ou indivíduos rivais podiam reascender como uma faísca. Nestes casos,
como vimos, o padre Cícero pessoalmente intervia para calmar os ânimos, como
estratégia aconselhava orações, que evitassem a bebida e procurassem ocupação.
Algumas desavenças se iniciavam longe do olhar vigilante do padre. Na periferia do
Juazeiro viveu um dos valentões mais dispostos a para a confusão, Antonio Calangro,
assim descrito:
Era um negro de mais de dois metros de altura, corcunda, e com um
pescoço de um palmo e meio, a suster a sua cabeça minúscula, face
regular, tendo, porém, as orelhas, os olhos e a testa muito pequenos.
Tinha dentes alvos e regulares implantados nas gengivas roxas. Era um
pernalta, de pernas finas, mas bom corredor, braços longos também. 413
No capítulo dedicado ao Calangro, muitos detalhes sobre a cidade como os sambas
que agitavam os arrabaldes de Juazeiro e as diferenças entre grupos de romeiros de origem
distinta. Antonio Calangro vivia com Maria Conceição “ uma mulata gorda, e simpática,
dentes alvos de marfim, de grossos lábios rubros e roxos, sempre a sorrir, e cujo maior
orgulho era ser amante do mais valente cangaceiro da zona”478. Numa das noites de samba
Calangro rasgou com uma punhalada a harmônica de Antônio Calasans, músico e poeta
improvisador, conhecido como Cavalo Lasão. A rixa entre os dois ficou marcada tanto
por combates, nos quais Calangro golpeava e fugia em velocidade e agilidade únicas,
como pelos versos que se disseminaram de boca em boca sobre a ameaça de vingança.
Segundo Xavier, o próprio Calasans era o autor dos versos e o cantava nas noites em rodas
festivas, enquanto esperava um combate final:
De teu coro faço a sola,
Da sola é pra fazer peia
Das quixada é pra apragata
Da barriga é pra correia
Tua carne eu arretalho
E nisso faço muito bem
Vendo a arroba a quatro patacas
E a libra a quatro vintém

412
Idem. p.155
413
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920.p111 478
Idem p.116.
178

Vou dando pelo barato


Pros preto comprar também

Mesmo vivendo ambos como migrantes pobres em Juazeiro, a contenda


estabelece, à partir da fala do vingativo bardo do Alagoas, uma diferença: Calangro era
preto. Sua carne seria vendida barato, “pros pretos comprar também”. Outro verso
circulou naquele momento:
Que triste sina
Desse ladrão
Por ser um negro atrevido
Morreu sem ter confissão414

Os versos ecoaram repetidos de boca em boca enquanto o desfecho final não vinha.
Felizmente o caso não acabou em morte, Calangro fugiu e ainda viveu em Joaseiro por
um tempo, só ficaram os causos e versos que rememoravam o fato. Morreu anos depois
numa emboscada, numa estrada de Pernambuco, tendo como testemunha a companheira
Maria Conceição.
O livro de Xavier de Oliveira, com fatos e causos presenciados ou conhecidos por
ele, em algumas passagens fala das festas que movimentavam seus personagens centrais:
os cangaceiros convertidos pelo “Padrinho”. Em diversas passagens se refere a estas festas
como sambas: “desrespeito à mulher de outrem com quem dançou nos sambas de lá”
(p.112), “em certa noite de samba no Arisco, onde houve um casamento (p.113)” e “num
samba, numa choupana dos subúrbios, vestido como gente, mas armado como sempre(...)
eu vi dançando Pilé” (p. 130). Na descrição das festas dançantes observamos que um
grupo animado em torno de modinhas ou ao som da harmônica poderia ser descrito como
“samba”. No exemplo de Pedro Pilé a dançar, Xavier de Oliveira diz que
“ao som da harmônica, numa marcha arrastada, era ele quem marcava a quadrilha:
Balancez...já..sangez...travessez”(p.130). Contribui para tal análise a seguinte reflexão:
“O termo samba pode, assim, metaforicamente se referir a diferentes tipos de diversões
populares à base de música”415

414
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920.p.114.
415
DOMINGUES. Petrônio, NUNES. Cláudia e ALVES. Edvaldo. O “cativeiro se acabou”: experiências
de libertos em Sergipe no pós-abolição In Revista História, Histórias Brasília, vol. 4, n. 8, 2016. ISSN
2318-1729 p.107
179

Vale salientar que para fazer suas “imersões” e presenciar cenas como as descritas
em seu texto Xavier se dirigia para locais distantes, movido pela curiosidade se escondia
para observar o que chamava “antros das feras”, sua observação pueril, é retomada na
escrita que produz na maturidade. Havia fascínio e temor pelas figuras dos cangaceiros:

Naquela noite de festa, menino de colégio em férias, eu fora observar


os antros das feras humanas daquelas terras de lá.
E tive a impressão de que , ali, na sala a dançar manco , estava o próprio
cão coxo das histórias do inferno, que me contavam em criança,
encarnado na figura macabra de Pedro Pilé (...) Era a figura de satã
vestida de fraque, num bale do averno, na própria casa do maldito”416

Analisando estas descrições quase caricatas, problematizando seus conteúdos, tentamos


nos aproximar das pessoas pretas que viviam trabalhavam e festejavam no Juazeiro de
fins do XIX e início do XX. Mapeá-las é complicado, são trajetórias de migrantes tornados
anônimos ou pela vida que queriam deixar, ou por abraçar um novo horizonte na
Jerusalém sertaneja. Lugar de renascimento e ao mesmo tempo um emaranhado humano
cujos registros são parcos ou dispersos. Mas estavam lá, como presumimos ao encaminhar
nossa reflexão para este rumo. Eram beatas, ou beatos, ou bandidos em busca de uma
regeneração nem sempre alcançada.
Zé Pedro era da família dos “Pedro”, as casas desta família estavam reunidas em
quase um quarteirão inteiro da rua da Conceição em Juazeiro. Uma rua localizada a 700m
da Matriz de Nossa Senhora das Dores. Família de trabalhadores especializados em
diversas frentes: mercadores de cereais nas feiras, carpinteiros, sapateiros e ferreiros que
se mantinham “com certa prosperidade”482. Também tinham roças de mandioca e algum
gado na serra. Se enfrentavam alguma questão, estavam unidos para proteger uns aos
outros. Zé Pedro era o mais velho e chefiava a família, sendo pessoalmente responsável
por cobrar satisfação em alguma desavença mais grave.
O fato é que de Zé Pedro foi dito: “ Foi esse General Negro do Cariri quem venceu
o coronel branco de Fortaleza” 417 . Foi sim um dos líderes da defesa de juazeiro nos
primeiros confrontos da guerra de 1914, defendeu a cidade, também avançou sobre o

416
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920.p.131 482
Idem.p.87
417
OLIVEIRA,1920,p.89
180

Crato conquistando todos os postos e barricadas ao longo do caminho. Depois dos


combates, depois da poeira das trincheiras repousarem ele voltou para a vida pacata na
cidade, ao lado da família.

Figura 10. Pedro, o único homem negro cuja fotografia aprece em “Beatos e Cangaceiros”(
página 86). A foto maior é a que está reproduzida no livro, a do detalhe mostra o flagrante original
de onde foi “recortado” o retrato de Zé Pedro. Acima das cabeças lemos: “Zé Pedro, tomador do
Crato”; “ Dr, Floro. Chefe dos combatentes” e “Turco Armando.”

A foto nos revela um homem negro, arma em punho, lenço no pescoço, chapéu
virado em duas abas à moda dos cangaceiros (ou ao modo de Napoleão Bonaparte). Nos
pés alparcatas e um cigarro no canto da boca. Uma das poucas fotos de corpo inteiro de
um personagem negro de Juazeiro. Talvez pelo bravo feito. A única foto demarca as
fronteiras de um silêncio incômodo. Na realidade a foto incluía mais dois homens e foi
anteriormente reproduzida em menor escala. Sendo que a imagem de Zé Pedro aparece
ampliada e cortada no livro de Xavier de Oliveira, tal como reproduzimos aqui. Nem os
fatos heroicos na guerra de civil retiram a da análise Xavier de Oliveira o tom racista:
Seu físico de um perfeito cafuz, e seu trajo são o do comum dos
cangaceiros da zona.
Negro alto, corcunda, tem a cabeça chata e os cabelos encarapinhados.
Testa estreita e franzida horizontalmente, a que se sobrepõem uns olhos
pequenos e vivos, tem um nariz não muito chato, mas de asas muito
abertas.
181

Face boca, orelhas regulares, a não ser a cabeça, aliás conforme para os
de sua raça, não tem nenhum outro estigma físico aparente de
degenerescência.
(...) Apesar de normalmente carrancudo, está sempre alegre e risonho

Outra imagem, desta feita uma fotografia de grupo e deixa evidente o contingente
negro dos homens que lutaram em 1914.

Figura 11- Grupo de combatente da guerra de 1914 no Ceará. Os voluntários de Juazeiro.9ª


(Acervo do Museu do Ceará)

Indivíduos anônimos, pois não foram arrolados em nenhum tipo de alistamento.


Seguiram para o combate sem uniformes, apenas com armas e alguns víveres. O batalhão
de voluntários defendeu Juazeiro, marchou sobre o Crato, atravessou o Ceará e alcançou
Fortaleza. O grupo está parcialmente representado na foto acima. É visível a presença de
inúmeros indivíduos pretos. E não é só pelas raras imagens que podemos perceber suas
presenças. Nos registros de memória, uma narração da noite em que os grupos partindo
de Juazeiro tomaram a vizinha cidade de Barbalha: noite afora ecoou o canto da vitória
com a cadência do “maneiro pau” 418:

418
“O Maneiro Pau é uma dança máscula, que dispensa qualquer entrecho dramático e, até mesmo,
acompanhamento musical, isto porque o entrechoque dos cacetes, e o coro dos dançarinos, produzem a
musicalidade e a percussão necessárias. Quanto à origem, alguns autores justificam a influência árabe e
outros a influência africana, face a existência, na Espanha, de uma dança semelhante à esta, chamada
182

Manero Pau,Manero Pau


Meu Padim é quem ganha
E os trinta soldados (...) todos embriagados, respondiam em coro,
dançando à baiana, num som brejeiro e grave:
Maneo Pau,Manero Pau
Meu Padim é quem ganha485

Na dança “à baiana” e no canto do maneiro pau ecoaram as memórias dos homens pretos
enquanto comemoravam mais uma conquista, sem saber o que lhes aguardava amanhã.
Depois de combater, afastados do Juazeiro, festejam com o que conhecem, com o canto
de guerra que os aliviou durante a jornada. Seu canto de festa era a casa que podiam levar
consigo e um remoto eco da África.
O grupo partiu em janeiro de 1914 entre combates, orações e festas. No mesmo grupo
também houve que praticasse saques, invasões e outros delitos ao logo do conflito até a
vitória em março de 1914.

3.8 Romarias.

Na história de Juazeiro do Norte há uma conjugação entre o sonho do paraíso na


terra e da luta pelo pão de cada dia, por moradia, dignidade. Em períodos remotos como
o que tratamos aqui esta matéria mística também se moldava no barro das casas de taipa,
nas fábricas de vela no fundo do quintal, nas frentes de serviço pessoalmente organizadas
pelo padre Cícero. Então tratar de romarias e discutir como estes fluxos humanos
formaram e mantiveram a cidade é necessário. As romarias a Juazeiro do Norte são fruto
de esforço, esperança e autonomia, como bem descreve Eduardo Diatahy destacando suas
peculiaridades:
Por outro lado, todo centro de interesse peregrino surge de alguma
teofania inaugural ou do anúncio de algum fato extraordinário à volta
de determinada santidade. E Juazeiro, também nisso, não difere dos
demais. Inegavelmente, porém, o que mais chama a atenção do
estudioso desses fenômenos e que caracteriza ou particulariza as

Brasil, caso quase idêntico se processa na Bahia, onde o Maculelê, dança de características semelhantes ao
Maneiro Pau, poderia ter sofrido influência e consequentemente árabe ou então africana. De qualquer modo,
é o Maneiro Pau uma dança surgida e desenvolvida na região do Cariri, entre os próprios elementos
resultantes da fusão das raças. Quanto à expressão à corruptela de “Manejo”, que resultou “Maneiro”, ou
ainda à leveza dos cacetes, no sentido de “Pau Maneiro”, e a segunda, à penetração de elementos de Minas

“Espatadanzaris” que tanto poderia ter influência árabe, uma vez que este povo ali dominou durante quase
oito séculos, como poderia, também, ter recebido influência africana, dada a localização geográfica. No
183

Gerais, daí o termo “Mineiro”. CEARÁ. Secretaria de Indústria e Comércio. Manifestações do Folclore
Cearense. Fortaleza, 1978. Trabalho Elaborado pelo Departamento de Artesanato e Turismo e empresa
cearense de Turismo. Acessado através do site www.digitalmundomiraira.com.br.
485
OLIVEIRA. Antônio Xavier de. Beatos e Cangaceiros- História real, observação pessoal e impressão
psycologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. s/e: Rio de Janeiro, 1920.p 162
romarias do Juazeiro reside no fato de serem elas praticamente criadas
e sustentadas autonomamente pelo povo e até, durante muito tempo
indesejadas e reprimidas pela Igreja oficial ou sua hierarquia.419

E esta autonomia também foi experimentada pelos romeiros/migrantes que


construíram a cidade. Desde os primeiros anos da efervescência das romarias a cidade foi
sendo moldada entre acolher quem chega e garantir espaços para quem ali quer ali viver.
Disputas, crises e dilemas foram protagonizados por pessoas das mais diversas origens,
muitas delas animadas pela esperança ou simplesmente tentando sobreviver. Estão
entrecruzados os caminhos que deram sustento às vidas dos moradores: a agricultura, o
comércio, os ranchos, os santeiros ou fogueteiros...
Quem vive na cidade é alimentado pela presença cíclica das visitas, e também
alimenta e estimula tais visitas numa simbiose autossustentada e por muito tempo
desregrada, até que modelos mais efetivos de uma urbe capitalista se estabelecessem. A
comunicação do milagre e em seguida a rede de comunicação sobre o acolhimento, as
graças e curas foi redimensionando e realimentando aquela “teofania inaugural” descrita
por Eduardo Diatahy.
O milagre inicial com o tempo passou a agregar milagres incontáveis. Passou a
circular como narrativa, como esperança. Sendo os romeiros o que Carlos Alberto Steil
caracteriza de forma pertinente: operadores de cultura:
Narrados e re-narrados, os relatos dos milagres são como que
operadores de cultura que permitem aos romeiros entrar em contato
coma própria subjetividade. De modo que, na medida em que participa
de um ritual, na condição de peregrino ou de beneficiário de um milagre,
o romeiro realiza uma experiência íntima com a subjetividade que o
constitui como pessoa humana420
O Brasil de finais do XIX não é um mero cenário para os personagens que
inauguram os primeiros fluxos ao Juazeiro e a mística do Juazeiro Celeste, Jerusalém do
sertão. As tensões e contradições daquele período são questões centrais para o
entendimento do tema e a compreensão dos desafios enfrentados por quem vivia o sertão

419
MENESES Eduardo Diatahy Bezerra. Romarias e o Juazeiro do Padre Cícero. In: Anais do III
Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro-CE, 2004, p. 114-122.
420
STEIL. Carlos Alberto. Padre Cícero : Tradição e modernidade. In Anais do III Simpósio Internacional Padre
Cícero... E quem é ele?p.183-185p.184
184

mestiço, pobre, vulnerável às estiagens e comandado pela mão severa dos coronéis421. As
vidas que se cruzam nos caminhos ao Juazeiro e as que por lá frutificam possuem em
larga medida a marca da resistência e da fé. Uma das primeiras coisas que foi negada a
estas pessoas foi o reconhecimento ao seu direito de terem fé, simplesmente foram
tratados como “manipulados” ou “fanáticos”
Desde os primeiros grupos que rumaram ao Juazeiro, ainda em 1889, logo após
a divulgação dos fatos extraordinários, já se utilizava o termo “romaria”. Inicialmente
tratarei de explorar dados sobre do uso da palavra “romaria”, tal como circulava no Ceará
no momento aproximado daqueles primeiros fluxos de romeiros a Juazeiro do Norte. Com
este fim, realizei uma breve pesquisa do uso do termo “romaria” nos jornais da década de
1890. Utilizei como referência um jornal diário, que circulava em fortaleza, o “A
República”. Foi ali que encontrei diferentes conotações para a palavra422.
Um dos mais recorrentes usos da palavra refere-se a uma reunião de pessoas que
realiza uma vista solene póstuma. “ Os amigos do nosso querido e malogrado confrade
M. d’Oliveira Paiva vão amanhã, sétimo dia de seu passamento, em romaria ao túmulo
deste infeliz companheiro”423 . A palavra aparece com mesma acepção em “O diretório
do Partido Republicano manda sufragar a alma do nosso pranteado amigo senador major
Manoel Bezerra de Albuquerque (...) Depois do ato religioso seguir-se-á uma piedosa
romaria ao túmulo onde repousam os sagrados despojos do grande cearense”424. Ocorreu
também, com o mesmo sentido de visita solene a jazigos, a possibilidade para do uso da

421
Sobre o tema: LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no
Brasil.São Paulo: Alfa-Omega, 1975, QUEIROZ, M. I.P. de. O mandonismo local na vida política
brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfamega, 1976. p.163-216. (Biblioteca Alfa-Omega de Ciências
Sociais. Série 1., v.5) e ainda OLIVEIRA, Janaina Florêncio de. Origens, desenvolvimento e aspectos do
coronelismo.In Rev. Sem Aspas, Araraquara, v.6, n.1, p. 74-84, jan./jun. 2017. e-ISSN 2358-4238.

422
“Romarias, ou o termo de origem provençal romagens como se dizia no passado (e romerai no século
XIII, quando o termo foi incorporado ao vernáculo), é a palavra que se usa mais comumente em português
para designar o fenômeno das peregrinações. ” Cf. MENESES Eduardo Diatahy Bezerra. Romarias e o
Juazeiro do Padre Cícero. In: Anais do III Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro-CE,
2004, p. 114-122.
BNDigital- Jornal

BNDigital- Jornal

BNDigital- Jornal

BNDigital- Jornal

423
A República, 4 de outubro de 1992,p.1
424
A República 10 de abril de 1893, p.2
185

expressão “romaria cívica”, reforço que tal uso aparece no contexto da visita ao túmulo
de um jovem militar, em plena era republicana: “Realizouse ontem a romaria cívica ao
túmulo do Aluno João Epaminondas de Vasconcelos morto na noite de seis de fevereiro
do ano passado” 425 . Outra possibilidade descreve uma viagem cíclica ou retorno
periódico, como a visita a terra natal e retorno periódico às origens: “De volta, em janeiro
de 1892, de sua romaria filial a Cajazeiras, o padre José Thomáz seguiu para Camocim”426
. Também foi possível observar o uso mais solene e ligado a grandes celebrações coletivas
do calendário litúrgico: “O dia dos mortos- Sextafeira, 2 de novembro, haverá como de
costume a grande romaria dos vivos à cidade dos mortos” 427 . Foi interessante encontrar
ainda o termo para tratar de reunião em homenagem pública a uma figura política, com
sentido eminentemente cívico, como por ocasião da comemoração do aniversário de
nascimento do então vice-presidente Floriano Peixoto: “ (...) Hoje ele completa mais uma
no de existência, e por isso mesmo de trabalhos consagrados, todos, á pátria; por conseguinte é
dia de festa nacional.
Reproduzir a romaria antiga é o nosso dever_ Arrenegado , o brasileiro
que faltar à grande romaria da Pátria.428

Há ainda o uso da palavra para descrever o fluxo de uma multidão a evento


público, trata-se do dia da inauguração da iluminação elétrica dom jornal “O Paíz”, no
Rio de Janeiro, assim descrito: “Foi inaugurada a iluminação elétrica em todo o
estabelecimento (...) Tendo sido franqueadas as oficinas e escritórios do grande órgão
público, estabeleceu-se então verdadeira romaria de pessoas de todas as classes sociais
em visitação”429. Neste último caso uma reunião massiva, aglomeração de populares sem
nenhum motivo solene ou litúrgico.
Resumindo, pelo que foi possível perceber na exploração das fontes de época,
romaria pode ser um fluxo humano organizado ou uma jornada pessoal, na maioria das

425
A República, 18 de fevereiro de 1893 ,p.2
426
A República, 22 de fevereiro de 1893, p.3
427
A República, 31 de outubro de 1894, p.2
BNDigital- Jornal

BNDigital- Jornal

BNDigital- Jornal

428
A República 30 de abril de 1894, p.2
429
A República, 9 de outubro de 1895,p.1
186

vezes pode ter conotação religiosa, mas pode significar ajuntamento festivo, celebração
coletiva ou multidão afluindo a um evento ocasional, sem possibilidade de repetição ou
renovação.
Esta brevíssima explanação evidencia que o uso da estrita conotação de
peregrinação mística ou religiosa já não cabe àquela altura. Nem mesmo evidenciou-se
algum apego à tradução mais básica do termo Romaria relacionado à “cidade eterna”:
Roma, origem etimológica da palavra romaria. No âmbito das peregrinações
protagonizadas pelos católicos sertanejos cearenses vimos inclusive no caso da Fonte do
Caldas, associada à figura do Padre Ibiapina, a utilização da expressão romaria para fazer
referência à afluência de pessoas à “Fonte Miraculosa”.

3.8.1 Romeiros/Romarias como objeto de estudo.

Dado o caleidoscópio de impressões forjado na convivência com as Romarias,


ainda me desafio a compreendes: Afinal, o que é romaria? Dentre os autores que se
debruçaram sobre este tema, destaco a apurada reflexão de Pierre Sanchis. Reflexão que
reúne uma trajetória tanto na pesquisa etnográfica (iniciada em Portugal na década de
1970) quanto no debate conceitual, especialmente sobre o “campo religioso”. É Sanchis
quem propõe romaria como:
Um caminhar, muitas vezes penoso, doloroso até, em condições
voluntariamente precárias, por isso demorado, mas cheio de encantos –
imersão numa natureza selvagem e encontros lúdicos no caminho – até
a concretização da apresentação e presença do peregrino a um “Santo”:
santuário próximo ou longínquo, Sagrado feito gente, com quem se
conversa, se troca bens, energia e saúde (promessas), perto de quem se
vive uma pequena porção de tempo, o tempo feito Festa: comida,
bebida, encontros, dança; até a volta para um quotidiano transfigurado,
já na espera de outra romaria. Um ritmo de vida – e na vida. Uma relação
constituinte com o além-vida fonte da vida, o Sagrado.430

Compreender o fenômeno das romarias a Juazeiro, ou pelo menos buscar decifrar


alguns de seus aspectos na arena histórica, exige que se leve em conta a massiva afluência

430
SANCHIS. Pierre. Peregrinação e romaria: um lugar para o turismo religioso In Ciencias Sociales y
Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 85-97, outubro de 2006.p.86
187

de pessoas por conta das visitações romeiras e especialmente pelo reconhecimento da


cidade como lugar de acolhimento, onde qualquer um poderia experimentar uma “ nova
vida”. Romaria que por muito tempo também foi migração. Muitos romeiros chegaram a
Juazeiro e de lá nunca mais saíram, o que poderia ser uma peregrinação sazonal acabou
sendo lugar de moradia, abrigo, a cidade cresce com os adventícios
A sacralidade de Juazeiro se fez no crescente fluxo de romeiros que
circulava pela cidade, bem como na existência de poetas de cordel
(como João de Cristo Rei ou Manoel Caboclo) e em um grande conjunto
de beatos, beatas e penitentes, ou ainda no heteróclito conjunto de
homens e mulheres que, de algum modo, acreditavam no poder do Padre
Cícero. Além disso, a chegada de migrantes fez de Juazeiro o lugar de
maior crescimento demográfico do Vale do Cariri. Um crescimento
ancorado no mito Padre Cícero, em torno do qual os despossuídos
nutriam esperanças de uma vida menos enredada na escassez431

Em busca de “menos escassez”, imaginamos que as primeiras rotas rumo ao


Juazeiro foram, em certa medida experimentadas com um grau de errância, especialmente
se levamos em conta as condições precária para o deslocamento das pessoas em finais do
XIX, muitas vezes a pé e por caminhos que atravessavam longos vazios, pela pouca
urbanização. Antes de tudo a romaria nasce como uma experimentação do espaço através
dos deslocamentos, o ponto de saída e o de partida eram definidos, mas onde parar? Onde
descansar ou pegar água? Imagina-se que foi tecida uma rede de informações e
compartilhamento de detalhes e, certamente, algum amparo oferecido pelos moradores de
vilas ou fazendas pelos quais os diversos caminhos passavam. Pensar nisto é compreender
que mesmo precoce e se manifestando já em 1889, a romaria se remodelou e foi
experimentada em diversas configurações.
Juazeiro seguiu atraindo sujeitos de lugares mais distantes, chegam do litoral de
Alagoas ou Sergipe, do interior da Bahia e do Pernambuco. Falamos aqui de
deslocamentos que poderiam chegar a 600km. Como, dentre esta massa em movimento
estavam presentes os pretos num tempo no qual a cor começava a ser lida como claro
elemento de distinção
A força motriz da romaria é a promessa. O pedido angustiado, o clamor por
amparo, a proteção constante do santo. Agradecer, ou melhor, retribuir a graça e reviver
o ciclo do sagrado move milhões de pessoas em torno das práticas que deslocam em torno

431
RAMOS. Francisco Régis Lopes. O meio do mundo: Território Sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.p.210
188

de lugares sagrados. Para Sanchis “as promessas apresentam-se, portanto, como a prática
concentrada e sintética da religião popular, a sua principal manifestação na romaria”432
Pensando o caso específico de Juazeiro do Norte, mais uma vez Pierre Sanchis
contribui para discutirmos a complexidade que sustenta esta constatação da centralidade
da promessa. Desenvolve a percepção de uma “economia de troca” associada à promessa
e aos gestos e esforços de agradecimento: despesas, sacrifícios físicos e invenções
diversas para alimentar a fé e efetivar a gratidão. O autor também ajuda a entender como
a instituição Igreja se projeta no controle das práticas de agradecimento e devoção dos
romeiros estabelecendo formas mais “organizadas” de gastar o dinheiro (missa, ofertório)
ou festejar (cortejos, quermesses).
Proibir, limitar, regrar, disciplinar. Estas palavras acompanham as ações da
Igreja e dos poderes públicos desde o início das romarias a Juazeiro do Norte. Desde
março de 1889 a cidade se tornou alvo da corrente de fiéis em busca de contato com o
sagrado e com a possibilidade de um recomeço, especialmente para os despossuídos.
Desde então, ao Juazeiro do Norte acorre este fluxo contínuo, descontrolado, intenso,
inventivo. Como ressalta Renata Marinho Paz, as romarias a Juazeiro do Norte são
eminentemente populares, efetivadas em torno de um santo não canonizado oficialmente,
e à revelia da igreja.433
Para a Carlos Alberto Steil, apesar do clero tentar estabelecer uma única
racionalidade “o culto nos santuários se caracteriza particularmente por sua capacidade
de acomodar a diversidade dos discursos, rituais e das práticas que os grupos que,
compõem a romaria estabelecem neste espaço”434. Esta tensão pode ter chegado a um
extremo em Juazeiro, ali as romarias chegaram a ser proibidas como reforça a seguinte
carta pastoral produzida no congresso regional dos bispos do Nordeste em 1912:
(...)Proíbem terminantemente fazer Romarias ao Juazeiro e
recomendam aos Revmos. Vigários que tornem esta resolução
conhecida de seus paroquianos, que devem se obedientes, visto como,
sem obediência, não pode haver verdadeira religião sim grosseiro
fanatismo.435

432
SANCHIS. Pierre. Arraial- Festa de um povo: As romarias portuguesas. Lisboa: Publicações Dom Quixote.1983.
p.97
433
. PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza,
IMEPH, 2011.
434
STEIL. Carlos Alberto. O sertão das romarias-Um estudo antropológico sobre o santuário de bom Jesus
da Lapa-Bahia. Petrópolis: Editora Vozes, 1996. p.50
435
Jornal Unitário n.1312, de 05.09.1912. In: PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja
Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza, IMEPH, 2011.p. 127
189

Abordando aspectos atuais das romarias a Juazeiro do Norte, Maria Paula Jacinto
Cordeiro desenvolveu um estudo no qual investigou as perspectivas de continuidade e
mudança no conteúdo das práticas romeiras.436 Trabalha e problematiza os conceitos de
“peregrinação”, “turismo” e “festa” como possibilidades para o entendimento das
romarias. Cordeiro repensa o papel dos agentes públicos e da Igreja na percepção da
romaria como evento de massas. Sua pesquisa também encontra espaço para adentrar os
ranchos e perceber os jogos de hierarquias ali engendrados. Para a autora:
A categoria romeiro é aberta a releituras continuadas. Isso acontece
porque sua construção como classificação social permanece em
movimento. Pensar a noção de romeiro e romaria como categorias
móveis, possibilita trabalhar a dinâmica que envolve essa formação
social, que embora frequentemente acessada através de classificações
idealizadas e compreendida como recorrência cultural, não se congela
num retrato e permanece fluindo na história.504
Mesmo sendo pesquisas que dialogam com o tempo presente e com leituras da
questão no campo da Antropologia, os estudos recentes sobre as romarias ao Juazeiro
deixam margem para a percepção de sua relação com as dinâmicas sociais ao longo do
tempo. A transformações constantes e a manutenção de laços afetivos e de memória
revelam a viabilidade da problematização histórica. Compreendendo ainda a romaria
como um “palco de trocas culturais”, onde agir/crer se conjugam de forma dinâmica ao
longo do tempo. Como contribui Carlos Alberto Steil:
“Ponto de encontro entre crenças ortodoxas e dissidentes, um universo
de difusão de costumes e valores antigos e novos, um lugar de
transações rituais e econômicas e uma arena d disputas de discursos
seculares e religiosos”437

Quando Sachis438 nos provoca a pensar sobre nas romarias como “resistência ao
monopólio religioso do clero” e mais: “ uma reivindicação de autonomia nas relações com
o mundo sagrado”439 nos lega uma possibilidade de abordagem que é uma chave para
discutirmos as primeiras romarias a Juazeiro e sua relação com o pós-abolição e dos
primeiros anos da república. O que até 2019 se materializava num fluxo estimado num

436
CORDEIRO, Maria Paula Jacinto. Entre Chegadas e Partidas: Dinâmicas das Romarias em Juazeiro
do Norte. Tese de Doutorado em Sociologia-UFC- Universidade Federal do Ceará, 2010. 504 Id. Ibidem,
p.230.
437
STEIL. Carlos Alberto. O sertão das romarias-Um estudo antropológico sobre o santuário de bom Jesus
da Lapa-Bahia. Petrópolis: Editora Vozes, 1996. p.86
438
SANCHIS. Pierre. Arraial- Festa de um povo: As romarias portuguesas. Lisboa: Publicações Dom Quixote.1983.
p.50
439
Idem
190

fluxo estimado de 500 mil pessoas em cada uma das três principais romarias, não
aconteceu de forma pacífica. As romarias a Juazeiro são um vivo ato de insubordinação e
resistência. A resistência do romeiro impressiona, mas não ocorre de forma linear, vai
respondendo a demandas, pressões. Responde de forma criativa, inventiva e até
inesperada. As criações e artes de fazer destes grupos nos remetem às contribuições de
Michel de Certeau.440
A maior romaria, a mais expressiva em número de peregrinos é a Romaria de Finados,
realizada em dois de novembro. Surgiu de forma espontânea em torno da visitação ao
túmulo do padre Cícero que está no centro da capela do Socorro. Depois da morte do
patriarca, em 1934, as reverências à sua figura se projetam a outros patamares. O padre
ausente deste mundo povoa a memórias e corações com renovada intensidade. A maioria
das pessoas veste preto, o patamar dos templos fica lotado de velas, é uma romaria de
saudade. Sem muitas cores ou carros enfeitados. Mas não é triste, é reverente diante da
finitude.
Padroeira da cidade e merecedora da devoção do padre Cícero em vida, Nossa
Senhora das Dores estimula uma romaria, como vimos nas fontes que tratam do momento
do milagre, que se fortalece já em 1889. A festa já era relevante antes da chegada do
padre, com novena e procissão concorridas. 15 de setembro marca a data, que atualmente
é precedida de um desfile de carros e ônibus pelas ruas da cidade. Enfeitados e com faixas
demarcando a cidade original de onde veio cada grupo, distribuem doces, jogados dos
carros ao longo da travessia rumo à Matriz. É muito semelhante a festejo de Cosme e
Damião que também festejados em setembro.
Em janeiro vive-se a romaria das Candeias. Também foi uma manifestação
apoiada pessoalmente pelo padre Cícero. O ponto culminante é dois de fevereiro. Senhora
das Candeias, da Luz, da Candelária, ou da Purificação. A origem da devoção refere-se
ao momento da da apresentação do “Menino Jesus” no Templo e da purificação de Nossa
Senhora, quarenta dias após o seu nascimento. Em Juazeiro adquiriu uma feição especial,
as noites são tomadas por velas e lamparinas em procissão.
São estes os três eixos principais do ciclo das romarias, mas existem motivações
pessoais que levam grupos a fazerem suas romarias em datas de aniversário, Natal,
aniversário de casamento e outros.

440
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
191

Colocar-se diante da complexidade daquilo que funda Juazeiro como lugar


sagrado é deparar-se com um espelho onde vemos nossos contrastes e também nossas
mais profundas opressões e dores. Sujeitos a quem coube narrar ou contar estas histórias
ainda nas primeiras décadas do século XX o fizeram traspassados pelo racismo científico.
Para chegar em nossos personagens, para tentar alcançar as pessoas comuns do Juazeiro
exploramos textos de época. Nos deparamos com textos que se propuseram a descrever,
ora constrangidos pelo estranhamento, ora impelidos por paixões políticas ou ainda por
ambições civilizadoras, dos intelectuais que com elas conviveram. O que se conta desta
história revela muito das relações de poder estabelecidas, como são tratados aqueles
migrantes pobres e mestiços, cuja resistência aproxima-lhes da árvore do juazeiro bem
podem ser associadas à cidade e às pessoas que nela vivem. Uma abordagem possível
propõe-se a examinar um léxico formado pelos adjetivos e/ou locuções adjetivas usados
para descrever ou tentar explicar os romeiros, com ênfase naqueles com evidente
conotação racista. Este será o tema do próximo capítulo.
192

CAPÍTULO 4. NARRADORES DO JUAZEIRO

4.1 Três narradores do Juazeiro: muita ortografia e pouca fé

O pessimismo e a descrença na possibilidade de algum desenvolvimento na urbe


que surgia em torno da liderança e do acolhimento do Padre Cícero levou muitos
intelectuais a enxergar Juazeiro como uma massa de fanáticos, iletrados e perigosos. A
cidade que cresceu alimentada pela insistente e incansável leva de peregrinos foi
considerada um lócus de crime, doença e instabilidade por alguns dos primeiros autores
que se dedicaram a descrevê-la. Três deles serão apresentados e discutidos aqui: Alencar
Peixoto, Rodolfo Teófilo e Lourenço Filho.
Nos escritos dos autores aqui discutidos as descrições pessimistas e quase
macabras de Juazeiro não se articulam a um tom de denúncia das más condições de vida
dos moradores. Também não há expressão de solidariedade com algum sofrimento vivido
pelos habitantes daquele lugar. O que figura como elemento central é o fato de ser uma
cidade de mestiços, que numa leitura atávica, estaria relacionada aos quadros de doença
e decadência descritos nos privando de uma análise da dita precariedade por conta das
condições econômicas, ao mesmo tempo que reforçam uma causalidade na questão de
“raça” fadada ao fracasso.
Tais formulações e discursos não gravitam desconectados, mas estão articulados
a uma realidade da qual emergem como representação. Na verdade, são (re)apropriados,
efetivando aspectos dos jogos de poder que os engendraram e que determinam sua
abrangência e circulação. Discutir historicamente esses escritos é problematizar lugares
de fala e posições ocupadas pelos autores ao produzirem seus discursos.

O objeto fundamental de uma história que se propõe reconhecer a


maneira como atores sociais dão sentido às suas práticas e a seus
enunciados se situa, portanto, na tensão entre, por um lado, as
capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, por outro,
as restrições e as convenções que limitam – de maneira mais ou menos
clara conforme a posição que ocupam nas relações de dominação – o
que lhes é possível pensar, dizer e fazer.441

441
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2009, p. 49.
193

O legado dos autores aqui elencados como “narradores do Juazeiro do Norte”


ecoa, e muitas vezes reverbera, entre seus pares em situações distintas, sendo retomados
anos depois como “fiéis testemunhos” de uma dada época. Um exemplo disso diz respeito
à linha de pensamento dos que detratam o Padre Cícero e desqualificam os romeiros e
beatos. Entre eles, se repetem afirmações não verificadas e simplesmente reiteradas por
outros autores sem que haja esforço de realizar um levantamento ou verificação. Enquanto
algumas considerações são reproduzidas, outras são silenciadas ou desqualificadas por
conta da disputa de narrativas que comunicam os fenômenos do Juazeiro, seus
personagens e as tramas políticas nas quais se envolveram.
Podemos tomar como exemplo as constantes reafirmações de Padre Cícero como
indouto, inculto, sem leitura e sem profundidade em suas palavras. Essas acusações
partem, em larga medida, do que foi dito por Lourenço Filho442 depois de seu encontro
com o sacerdote, na ocasião em que já contava com 80 anos. O autor destaca o fato de
não ter entabulado conversas que demonstrassem erudição: “[...] falece-lhe, por inteiro, a
cultura do espírito”443 e ainda: “[...] Nunca faz, porém, referência alguma a pessoa de
renome pelo saber, talento artístico ou cultura científica444”. O autor aponta o que seria o
fator determinante para o embotamento intelectual que denuncia: o meio no qual vivia o
Padre Cícero:
Vivendo, há mais de meio século, em contato apenas com o sertanejo
bruto e, ademais, num ambiente de delírio; não dispondo de tempo
sequer para ler e meditar, pois que suas horas não bastam para atender
a peregrinos e beatos; sem recurso de renovação de ideias, por livros e
jornais, que até sua casa só muito raramente chegam; sem necessidade
alguma que o leve a exercitar o espírito, para sadio objetivo cultural – é
óbvio que só se possa encontrar nele, ao termo de oitenta anos de vida,
uma inteligência medíocre e fatigada, adstrita aos mesmos abusões,
preconceitos e desvios mentais do sertanejo.445

Mesmo se tratando de um idoso já afetado por problemas de saúde, o visitante


esperava encontrar um animado e bem articulado interlocutor. Apelando para a concepção
de uma limitação intelectual endêmica ao sertanejo, o que Lourenço Filho expressa é uma
desautorização dos sertanejos e do Padre Cícero como narradores. Se lhes falta a palavra,

442
O perfil do autor será contemplado em item posterior deste capítulo
443
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergstrom. Juazeiro do Padre Cícero. 4ª ed. aumentada. Brasília-DF: Inep/MEC,
2002, p. 55.
444
Ibid., 54.
445
Ibid., loc.cit.
194

imperando a brutalidade e o delírio, então a quem caberá o exercício da escrita? Quem


narraria e descreveria Juazeiro?
Naquele contexto do Cariri do início do século XX, as letras, amplamente, eram
protagonizadas por intelectuais do Crato ou de Barbalha. É o que demonstrou a pesquisa
de Otonite Cortez acerca do Crato, cidade que cultivou o epíteto de “cidade da cultura”,
tendo erigido tal identidade em contraste com Juazeiro do Norte:

Esse grupo distinguiu-se do restante dos habitantes da cidade não


somente por adotar esses valores, mas sobretudo por um esforço
dantesco no sentido de imprimi-los a toda a cidade, num movimento
incessante de construção do Crato como “cidade da cultura”, iniciado a
partir de 1889, quando ocorreram os “fatos extraordinários” em
Juazeiro do Norte.446

Além do exercício de autoafirmação pelo contraste com Juazeiro, tida como cidade
de aventureiros, composta de gentes dispersas e consideradas “sem origem”,
empreendendo o esforço em diferenciar-se e colocando-se em patamar superior, os
intelectuais cratenses ainda tomam esse “outro”, o Juazeiro do Norte, como tema de
diversas obras e objeto de estudos. Ou seja, há uma tensão, pois de um lado estão os
letrados, autores e analistas da história e, do outro, aqueles a quem tentam sobrepujar
valendo-se de sua produção intelectual. O “outro”, no entanto - o romeiro -, não está
engajado em uma produção formal de literatura ou memória de si, não é uma disputa com
equivalências. Noutras palavras, o grupo letrado assume o protagonismo de narrar.
Nesse esforço, a crítica às condutas dos devotos do Padre Cícero se dava em nome
de um projeto civilizador capitaneado pela cidade do Crato. O projeto tinha ainda como
objetivo estruturar um aparelho policial e judicial que exercesse o monopólio do controle
da violência, normatizando as condutas sociais segundo o modelo de civilidade a ser
imposto a Juazeiro515.
Os autores aqui discutidos foram elencados partindo do interesse de aproximar-se
dos migrantes/romeiros que buscam Juazeiro do Norte no contexto histórico do
pósabolição e início do século XX. O objetivo central foi perceber suas presenças,
conflitos e esperanças numa terra anunciada como milagrosa e acolhedora. A partir dos
fatos e personagens e da projeção de Juazeiro do Norte como centro de peregrinações, o

CORTEZ, Antônia Otonite. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). (Dissertação de


446

mestrado) Rio de Janeiro, RJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000, p. 192. 515 Ibid., p.193.
195

interesse acadêmico, a curiosidade e a especulação motivaram dezenas de obras. Em meio


à profusão de trabalhos acadêmicos, artigos jornalísticos, relatos memoriais e obras de
ficção, destaquei três obras de autores diferentes e datadas das primeiras décadas do
século XX. A opção específica pelos nomes de Lourenço Filho, Alencar Peixoto e
Rodolfo Teófilo veio, a princípio, por causa da relevância que seus textos tiveram na
interpretação dos fatos e do modo de vida dos romeiros e da liderança do Padre Cícero,
tema retomado e citado em diversas obras. Outro motivo está relacionado com a
possibilidade de explorar tais textos em busca de elementos que permitam um quadro
comparativo dos termos e expressões de cunho racista por eles utilizados.
Em trabalho recente, Amanda Teixeira toca no assunto mencionando, discutindo
a presença do viés racista nas narrativas sobre Juazeiro publicadas entre o final do século
XIX e o início do XX, que, segundo a autora:

[...] estão impregnadas por teorias raciais. O pensamento de Charles


Darwin teve impacto sobre diversos intelectuais ocidentais dedicados
ao estudo da evolução. Os visitantes da terra de Padre Cícero seguiam
essa tendência, sentindo-se irmanados com a cultura letrada nacional.447

Em “Marretas, molambudos e rabelistas”, Marcelo Camurça elabora o perfil de


alguns autores que tomou como referência para tratar a Revolta de 1914, em Juazeiro. Ali,
denuncia aspectos racistas em passagens de Lourenço Filho448, enquadrando o autor com
consistente argumentação no “cientificismo positivista”.

4.1.1. Alencar Peixoto

Joaquim de Alencar Peixoto nasceu em 26 de abril de 1871 na cidade do Crato,


filho do capitão de Voluntários da Pátria Felismino Marques Peixoto e de Dona Hortulana
de Alencar Peixoto, sobrinha de D. Barbara Pereira de Alencar 449. Iniciou sua formação

447
SILVA, Amanda Teixeira da. Juazeiro sem Padre Cícero: uma cidade que não se esqueceu (1934-1969) (Tese)
Doutorado em História - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018. 298 f. p. 64.
448
CAMURÇA, Marcelo. Marretas, Molambudos e Rabelistas: a revolta de 14 no Juazeiro. São Paulo: Maltese,
1994, p.40.
449
Pertencem à família Alencar de origem pernambucana e com forte influência e presença no Crato:
Bárbara de Alencar, considerada a primeira mulher republicana e presa política do Brasil, Tristão
Gonçalves, morto durante a Confederação do Equador, em 1824 e o político José Martiniano de Alencar,
senador do Império e presidente da província do Ceará em duas ocasiões e o escritor e político, José de
Alencar.
196

religiosa no Seminário S. José do Crato, em 1891. Quando ainda era seminarista, ocorreu
a suspensão das atividades naquela instituição. Alencar Peixoto, então, partiu para
Pernambuco e matriculou-se no Seminário de Olinda. Na sequência, deixou esse
estabelecimento e voltou ao Ceará, seguindo para o seminário da Prainha. Mais uma vez,
mudou de instituição e concluiu seus estudos na Paraíba até que, finalmente, foi ordenado
em 14 de novembro de 1897450. Foi um padre erudito, dedicado às letras e profundamente
envolvido com a política local. Tornou-se fundador, diretor e redator-chefe do periódico
O Rebate451, o primeiro jornal publicado em Juazeiro, à época ainda distrito do Crato. O
jornal destaca-se como um relevante veículo na causa de emancipação do referido distrito.
Como o próprio nome indica, surgiu com a incumbência de rebater especialmente o
conteúdo do periódico Correio do Cariry452. Mas, para além das querelas locais, O Rebate
aspirava altos ideais, com uma missão ao mesmo tempo nobre e audaciosa. Por meio dos
editoriais de Alencar Peixoto, tais pretensões ficam claras:

Levar luz e calor à consciência do povo, adelgaçar as cerrações do


espírito humano, cantar como uma musa todas as glórias, sentir como
um coração todas as misérias, compreender como um gênio todas as
harmonias da natureza, todos os cometimentos dos povos, todos os ais
que a humanidade geme em seus lutuosos momentos, eis a missão da
imprensa. Menos complexa que a da imprensa é a missão do jornal.
Assim que, trabalhar pelo Ideal das letras, da religião, da pátria e da
humanidade, sem se envolver com a politicagem que tudo avilta e
rebaixa, eis em poucas palavras o programa d’O REBATE, eis a nossa
missão, cumpri-la-emos.522

450
STUDART . Guilherme. Diccionário Bio-bibliográfico Cearense versão digital disponível em
http://portal.ceara.pro.br/index.php?option=com_content&view=category&id=292&Itemid=101(acessado
em10/06/2016)
451
A primeira edição d´O Rebate circulou em 18 de julho de 1909. A partir de então, circulou semanalmente
com alguma regularidade, aos domingos, até 3 de setembro de 1911. Somou ao todo 104 edições. O Rebate
nasceu com o objetivo de defender a causa da autonomia de Juazeiro conquistada no ano de 1911.
OLIVEIRA Naiara Carneiro de e SANDES José Anderson Freire. O Rebate- Um relato sobre o primeiro
jornal impresso de Juazeiro do Norte. Anais digitais do Intercom-Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – João
Pessoa, 2014.
452
O Correio do Cariry era publicado no Crato. Em edições dominicais, era um órgão do Partido
Republicano naquela cidade. Teve como diretor político o coronel Antônio Luiz Alves Pequeno e como
gerente, Antônio Nogueira Pinheiro. “[...] Esse jornal viveu cerca de oito anos, influindo diretamente nas
lutas políticas de então. Manteve acre polêmica com O Rebate de Juazeiro. Circulou de 11 de setembro de
1904 a 1912”. (PINHEIRO, Irineu. O Cariri- Seu desenvolvimento, povoamento, costumes. Coedição
522
Secult/Edições URCA- Fortaleza Edições UFC,2010. p. 180. O Rebate, 18 de julho de 1909.
p.1.
197

O trecho citado é uma apresentação do periódico e aparece em seu primeiro


número. Nele se observa o estilo grandiloquente e ambicioso de Alencar Peixoto. Outro
aspecto que dá a entrever um personagem ao mesmo tempo vaidoso e bem articulado, é a
sequência de textos escolhidos para figurar nas primeiras páginas. Os textos que sucedem
o editorial estão ali para apresentar e dar boas-vindas à empreitada do novo hebdomadário,
porém. pouco falam da missão do periódico nascedouro e muito elogiam a figura de
Alencar Peixoto. O primeiro destaca a figura de seu “[...] principal redatorchefe, o
ilustrado Padre Joaquim de Alencar Peixoto, personalidade que muito se distingue pela
profusão de conhecimentos literários e virtudes peregrinas que possui, quer se o encare
como sacerdote, quer como homem civil”. Assina o depoimento, com data de 15 de julho
de 1909, o senhor P. Nogueira, de Milagres, Ceará. Em seguida, outra saudação não deixa
de mencionar que O Rebate surge “[...] Tendo como diretor uma das figuras mais salientes
do Cariri [...] homem de talento e energia, e pertencendo a uma das famílias mais distintas
da sociedade cratense [...]”, assinada por Dr. Flavio Goveia. Há ainda um texto assinado
por Felismino Peixoto de Alencar, o próprio pai de Alencar Peixoto.
Peixoto fulgura louvado e saudado de diversas maneiras, tanto ele quanto o jornal
que dirigia. As saudações continuam a ser publicadas nos números seguintes. Mas,
voltemos àquele primeiro momento, ao primeiro número. Deve-se alertar o leitor que em
meio a tão profusas felicitações, destaca-se uma imagem, uma grande reprodução de uma
fotografia do Padre Cícero, ocupando quase 50% do espaço da primeira página que está
dividida em quatro colunas. Na página dois, uma nota explica a estampa. Com o título
“Honra lhe seja...” segue o esclarecimento:
Publicado hoje o primeiro número de nossa folha, não podemos deixar
de estampar, como estampamos, na primeira página de honra, o retrato
do venerável e benemérito Padre Cícero Romão Batista, a quem “O
REBATE” muito, ou tudo lhe deve. Honra, pois, lhe seja...

Tratava-se da legenda da fotografia que, como mencionado, figurava em página


distinta daquela inicial, quase que tomada pela imagem do Padre Cícero. De fato, o que
se vê na primeira página é uma ilustração solitária cercada de textos de saudação a Alencar
Peixoto. Considero que a esdrúxula composição sugere uma disputa de egos. A figura do
padre abria caminho para a circulação do jornal, comunicava até aos iletrados que se
tratava de um jornal de Juazeiro, do padrinho. Para quem sabia ler, estavam ali disponíveis
as inúmeras saudações a Peixoto e ao jornal O Rebate.
198

Em 1909, Alencar Peixoto passou a residir no distrito de Juazeiro. Tal mudança se


explica por seu envolvimento em rusgas políticas e rompimento com o Coronel Antônio
Luiz Alves Pequeno. Peixoto deixou a cidade de Crato, passando a residir em Joaseiro em
1907453.
Ao publicar, em 1913, o livro Joazeiro do Cariry, Alencar Peixoto era um homem
movido pelo rancor. Explico: Depois de conquistada a emancipação da cidade (1911),
conta-se que não teve a projeção política desejada e discordava do fato de o Padre Cícero
assumir o posto de prefeito, uma vez que aspirava tal posição para si. Alencar Peixoto
deixou Juazeiro em 19 de setembro de 1911 454 , alguns meses depois da criação do
município, oficializada em 22 de julho daquele ano. Passou então a ser um ardoroso
detrator do Padre Cícero, a quem antes abraçara. A obra aqui examinada é um deliberado
esforço nesse sentido. Contrasta com o período d’O Rebate pelo conteúdo ácido e pelo
esforço no intuito de detratar e difamar tanto o Padre Cícero, como os romeiros e
moradores de Juazeiro. É contra a cidade que ajudou a emancipar e contra diversos
excolaboradores, que se eleva a voz e a pena do Padre Alencar Peixoto em Joazeiro do
Cariri. Diante de tal mudança de postura, é possível ver um fio de coerência: uma
personalidade forte e envaidecida que não aceitou o ostracismo.
O livro, publicado em 1913, é composto por uma série de crônicas e contos
dedicados a descrever episódios ou personagens de Juazeiro do final do século XIX e
início do XX. Em termos formais, Joazeiro do Cariry é um exercício de erudição, com
citações em diversos idiomas e evidente esforço em tecer referências a obras clássicas,
revelando uma construção literária tipicamente beletrista.
O exemplar utilizado como fonte foi publicado na Coleção Centenário455, em 2011
e contém elementos fac-similares como a contracapa e ornatos que aparecem na abertura
dos capítulos. Seu conteúdo textual foi digitalizado, mantendo a grafia original das
palavras.
O que nos interessa, na leitura de Joazeiro do Cariry, é a tentativa de enxergar a
diversidade de pessoas que viviam na cidade, as que ali chegaram em romaria. Em que
medida Peixoto possibilita essa percepção? A descrição da cidade e as crônicas de

453
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. São Paulo: Paz e Terra, 1985. p.167.
454
GUIMARÃES. Fausto da Costa. Memórias de um romeiro. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção
Centenário), p.183.
455
Alusivo ao centenário da cidade de Juazeiro do Norte, patrocinado pelo Banco do Nordeste e Governo Federal,
realizada pela Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte e impressa pela Editora IMEPH.
199

diversas temáticas permitem enxergar sujeitos e situações. Lendo Peixoto em busca do


que ele mesmo não parecia querer expressar, faço uma leitura à contrapelo.
Este amante das letras não esconde sua aversão ao Padre Cícero e aos "romeiros".
A dosagem de envolvimento pessoal do autor transparece em suas descrições ácidas e no
empenho de afirmar-se como um erudito que conviveu com a miséria humana no "antro
do dragão".
O volume conta com 29 capítulos, cada um dedicado a uma breve crônica ou
conto. É usual do autor criar um diálogo para dosar o caráter de depoimento que busca
imprimir na maioria dos textos. Nesses diálogos, geralmente um dos personagens se
dedica a descrever aspectos de Juazeiro, enquanto outro pede mais detalhes, curioso e
surpreso com o que está a ouvir.
Um texto em particular, que me chamou a atenção e despertou o interesse por uma
leitura mais cuidadosa da obra, consta no capítulo intitulado Maria de Araújo. A
publicação inspirou o amadurecimento da questão fundante deste item: Qual o tratamento
do autor acerca das questões étnico-raciais? Em que medida, desqualificar ou criticar
passa pelo apelo do discurso racista?
Em Maria de Araújo, o autor constrói o diálogo entre dois personagens, um deles
está curioso sobre a vida da beata. O interlocutor responde desatando suas impressões
eivadas de preconceito e talhadas pela argumentação racista:

— Nasceu e criou-se ela em um dos mais surrentos e miseráveis daquela


esmensurada almastiga de dor, de horrores, de abandono social que se
chama Juazeiro.
— Seu pai?
— Um divezo que andava quase sempre em temulência; um negro,
mancípio que fora gente do padre Pedro Ribeiro, de saudosa memória.
— Sua mãe?
— Uma cabra456 de cabelo ulotricho e mastigado que servia fora de casa,
mas muitas vezes não podia trabalhar e se ficava de cama por causadas
sovas que amiudamente lhe dava o macho, o marido.
— A mulher de que falamos, se, como me dizes, eu creio, é um produto,
um cruzamento das duas raças mais detestáveis, não pode deixar de ser,
em todos os sentidos, uma hibridez horrível.457

456
O termo “cabra” com que se refere à mãe da beata expressa uma relação senhorial como discutido no capítulo
anterior deste trabalho.
457
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário), p.
41.
200

Até aqui a descrição aponta para a gênese familiar como elemento definidor dos
traços da personagem, traços estes não apenas físicos, mas também morais. A descrição
grotesca e caricata de Peixoto não é mera insolência, é um apelo direto aos argumentos
racistas que compreendiam a miscigenação como degradação458. O texto segue, então,
descrevendo detalhes da própria Maria de Araújo:

— Poderás vasar-me em palavras a hibridez estética dessa


monstruosidade feita mulher?
— Com muito gosto.
— Pois vamos lá.
E o moço desembaraçadamente, e como num rapto de alegria infantil
que lhe ourava a cabeça:
— Maria de Araújo que deve estar hoje pelos seus cinquenta anos, é de
estatura regular; brunduzia, triste, vagarosa, entanguida, essencialmente
caquética, porque tem ela uma série ascendente de caquéticos ou
tuberculosos [...].459

Chama a atenção a empolgação do narrador ao iniciar a descrição. A alegria e o


entusiasmo demonstram que há prazer em desenhar tal quadro, posto que não o constrange
ou afeta, pelo contrário, o anima. Quanto a este aspecto, podemos inferir que há uma total
falta de empatia. Destaca-se também o reforço quanto à debilidade física, elemento que
justificaria o sangramento da hóstia não como uma decorrência de doença preexistente.

[...] A cabeça que, por casa, como por toda a parte, traz sempre
descoberta, tem a configuração de um corredor de boi, escarnado. O
cabelo que não é preto nem branco, pelo que supor-se pode ter ela
quarenta e poucos anos, é cortado à escovinha.
Os olhos pequenos, e sem um raio sequer de expressão que lhe
ilumine o semblante, mexem-se histericamente nas faldas de uma testa
estreita e protuberante.
O nariz irrompe dentre os olhos, sem base, e, levantando-se, a
pouco e pouco, alarga-se das asas chatas até os ossos malares
achamboirados, estúpidos, nas galhentas bochechas cavas. Os beiços
moles e relaxados deixam a descoberto em um dos cantos da cacostoma
boca, à competência com a pele cor de azeitona em estado de putrefação,
denegridos, os dentes laniares.
A saliência do maxilar inferior, desafiando-lhe a protuberância do
frontal, semelha-se ao de um homem de Darwin.
O pescoço como que quer desaparecer à forquilha que lhe formaram os
ombros alterando-se ao nível das orelhas sem pingentes. Eis, meu

458
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças; cientistas, instituições e questões raciais no Brasil (18701930).
São Paulo: Companhia das Letras. 1993.
459
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário), p.
42.
201

amigo, em ligeiros traços o transunto dessa cacodemoníaca criatura que


deve de ser mulher, que assim o indica a penula, a murça, a bata, o
vestuário, sobretal, de beata...460

Em seguida, dedica-se ao que chama de descrição moral. Nesse tocante, produz


um volume de caracteres torpes que culminam na impossibilidade de descrição completa,
como se a intimidade da personagem fosse insondável devido à sua “torpeza”, atribuída
em larga medida ao encontro com o Padre Cícero.

— Muito bem! E que me dizes, agora, quanto ao monstro por dentro?


— Quanto à hibridez moral dessa candorça diabólica a quem se ligara
pela lei das moléculas afins, e com quem consertara o padre Cícero
aquele supersatânico embuste iterativo da hóstia em sangue
transformada, quem poderá debuxá-la? Quem poderá delinear o perfil
dessa alma soberanamente execrável? Quem poderá relatar as suas
misérias e suas torpezas? Quem poderá enumerar todos os males que
ela, de mãos dadas com o Padre Cícero, tem causado à religião, à pátria
e à humanidade?461

Intolerante à miscigenação, Peixoto pode ser enquadrado no chamado pensamento


racista, tal como descrito por Antônio Guimarães:

O racismo surge, portanto, na cena política brasileira, como doutrina


científica, quando se avizinha à abolição da escravatura e,
consequentemente, à igualdade política e formal entre todos os
brasileiros, e mesmo entre estes e os africanos escravizados [...]. O
racismo brasileiro, entretanto, não deve ser lido apenas como reação à
igualdade legal entre cidadãos formais, que se instalava com o fim da
escravidão; foi também o modo como as elites intelectuais,
principalmente aquelas localizadas em Salvador e Recife, reagiam às
desigualdades regionais crescentes que se avolumavam entre o Norte e
o Sul do país, em decorrência da decadência do açúcar e da prosperidade
trazida pelo café. Quem não se lembra do temor de Nina Rodrigues ao
ver se desenvolver no Sul uma nação branca, enquanto a mestiçagem
campeava no Norte? 462

460
Ibid., loc. cit.
461
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário),
p.43.
462
GUIMARÃES. Antonio S. A. Preconceito de cor e racismo no Brasil. In: Revista de Antropologia. São Paulo,
USP, 2004, vol. 47, n. 1.
202

Sobre a condição do pai da beata, dito “mancípio” do Padre Pedro Ribeiro, vale
destacar o capítulo que abre a obra, no qual Peixoto descreve e exalta a contribuição
daquele:

O povoamento inicial do Juazeiro do Cariri data, pouco mais ou menos


de 1800. [...]
Religioso que era afortunado, dispondo de uma larada de mancípios que
trouxera consigo dos sertões do Jaguaribe-mirim, enquanto que assim
procedia, levantava a primeira orada, o primeiro altar a primeira cruz. 463

A intenção do autor é registrar a contribuição do Padre Ribeiro, mas finda


evidenciando a possível presença de escravos entre os primeiros moradores do lugar, pois,
o termo “mancípio” é sinônimo de escravo. Ao usar o termo “larada464” pode referir-se
ao grupo como uma larga mancha, destacando a cor negra como “nódoa”? Observemos
que há uma considerável possibilidade de sentidos pejorativos no uso dessa palavra.
A confusão entre aspectos fenotípicos implicados a aspectos morais já estava
evidente no texto sobre Maria de Araújo e permanece reaparecendo em diversas outras
passagens, por exemplo, ao exaltar as qualidades da personagem que dá nome ao capítulo
“Hermínia”, descreve a bela morena “[...] possuidora de uma via-láctea de peregrinas
virtudes que lhe branquejava a alma”. A “morena” era branqueada pela virtude,
sublinhese.
Ao apresentar em “O beijo de Stellita” uma menina que o encantara, Peixoto não
poupa elogios descrevendo-a como “[...] um mimo, um primor, uma joia especiosa a
brilhar mesmo ali, em meio ao borraçal daquela terra, como a estrela brilha na noite, como
a virtude brilha na morte”. Observemos que faz questão de destacar tal brilho e já nos
trechos iniciais, na apresentação da menina, esforça-se para compor esse aspecto
luminoso/alvo da personagem:

Por uma dessas tardes de setembro, cheias de sol e poeira arrastandome


por esta Rua d´Amargura afora, a quem tão impropriamente chamam do
Padre Cícero, uma cena presenciei que me tocou bastante o coração:
uma criança vestida de branco, esplendida em lantejoulas, o cabelo
enastrado de fitilhos, falando e sorrindo para um rancho de criancinhas

463
PEIXOTO, op. cit., p. 21.
464
Segundo o Dicionário Houaiss, larada significa: 1. Cinzas de lareira, borralho 2. Qualquer mancha
produzida por substância que se derrama e se espalha 3. Porção de coisas que cobre a lareira 4. Serão ao pé
da lareira 5. Grande quantidade abundância 6. (Ilha das Flores) Cama estendida no chão 7. (Algarve) grande
quantidade de excrementos semilíquidos, diarreia.
203

esqueléticas, esfarrapadas e sujas que corriam, como de pudor instintivo


de si mesmas, de sua própria nudez.465

O intuito era apresentar a menina, mas enxergamos além, vemos como se vestiam
e se comportavam as crianças pobres naquela cidade, interessa-nos o “borraçal”. Destaco
o estranhamento causado pelo fato de uma menina limpa e arrumada se dirigir a crianças
na rua. Se é estranho para o narrador ver Stellita dando atenção aos outros, a ponto de ser
uma cena tocante, decerto não era usual e, talvez, fosse até proibido ter contato com o
“rancho” de crianças pobres. Será que a palavra “rancho466” sugere romeiros, aqui? Falar
e sorrir é sinal da magnificência da pequena, de sua virtude e brilho. A presença das
crianças na rua provoca o contraste, o claro-escuro criado pelo autor para reforçar o brilho
de Stellita.
O conto “Malparia” relata o caso de uma dona de casa que, “[...] em plena floração
da carne [...]”, apaixonou-se por “[...] um pretinho de, pouco mais ou menos, quinze anos,
franzino, remanchão, vagaroso, estupido, Martinho de nome”. O rumo da narrativa
converge para um crime cometido pela mulher. Sem nenhuma menção ao que poderia
existir de atraente em Martinho, o autor desata um desfile de adjetivações pejorativas.
“Rafa” é um capítulo cujo título não fica claro, pois apesar de parecer o nome de
alguém, trata de um diálogo entre dois personagens: Djalma e Pantosa. É Pantosa quem
descreve o que viu em Juazeiro depois de passar lá cinco anos, quem o interpela é o
curioso Djalma, que expressara seu desejo de “[...] formar um conceito seguro acerca
dessa pobre vila sertaneja”.

— Uma das coisas que mais impressiona, aos que, pela primeira vez que
visitam o Juazeiro, é, com efeito, aquela aglomeração de gente
maltrapilha e suja aqui e ali pelas ruas, principalmente em frente à casa
do padre Cícero.467

465
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção
Centenário), p.75.
466
Os ranchos são uma modalidade de hospedagem característica da cidade de juazeiro do Norte. Abrigo
de romeiros desde o início do século XX, hoje existem aproximadamente 500 pela cidade e sempre lotam
durante as romarias. Em alguns casos, recebem gerações de romeiros da mesma família realizando uma
forma de acolhimento muito específico. Hoje é uma atividade comercial ativa e há recorrentes denúncias
de superlotação e precárias condições de higiene. Num trabalho específico sobre o tema, idealizei e fui
facilitadora de um Percurso Urbano (Centro Cultural BNB Cariri) denominado “Artes de Acolher”, que
tratava do tema e durante o qual visitamos diversos estabelecimentos.
467
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011 (Coleção Centenário), p.48.
204

Ao descrever a condição dos migrantes, que não chama de “romeiros”, acaba


destacando a centralidade da residência do Padre Cícero como referência para aqueles
desvalidos. O que incomoda o narrador é a condição miserável dos que buscam Juazeiro.
O autor também aponta a situação de pobreza como evidente fator de degradação moral:

Só nesse desgraçado recanto do sul do Ceará, só nesse ponto em


estranho contraste com os demais pontos daquela ubérrima zona do
Cariri, só aí é que se vê a palavra – Miséria em sua tremenda acepção.
Miseráveis, homens somente no nome, homens que mais semelham
vermes a pulularem dos tremedais, encontram-se ali em verdadeiros
enxames; múmias surgindo de todos os cantos; cadáveres transitando
por todas as ruas; esqueletos esmolando de porta em porta a caridade
pública; mocinhas que a impureza dos homens corrompera, caindo
pelas calçadas, extenuadas de fome, cobertas de muquiranas, a cabeça
comida de piolhos; criancinhas no desamparo mais cru, em lugares
descampados ou ao pé das árvores, nucegas, arrastando o ventre no lodo
como batráquios: sedentos saciando-se aos aguaçais e às pútridas águas
públicas; famintos roendo ossos e matando a fome nos esterquilíneos e
nos monturos, enquanto que outros, em grande número, arrebentados de
esgotamento como animais de fadiga lá se vão ter, arrastando-se como
serpentes, aos que já lá se acham nas imundícies de um moçar a que
chamam de hospital ou às pudridões de gente e lixo ao lado esquerdo
da capela de Nossa Senhora das Dores.468

O que vai se desenhando é uma cidade para a qual miseráveis afluem e lá


chegando, são lançados num ambiente de degradação moral, somando-se a isso sua falta
de condições a um torpe movimento comandado – assim acusa o autor – pelo Padre
Cícero.
O trecho a seguir pertence a mais um diálogo. Os nomes dos personagens não
ficam evidentes e o título é “Crimes espantosos”. São detalhados vários crimes:
assassinatos, roubos, estupros. A tônica é que tais acontecimentos nefandos teriam como
causa o ambiente de Juazeiro e a influência dita “maligna”, do Padre Cícero.

E dir-ti-ei tudo, numa palavra, é a liberdade, a santa liberdade em sua


apoteose do crime...
O padre Cícero arvorado em capitão de infames, de bandidos e
celerados [...] Tão grandes exemplos de maldade e banditismo, vindos
de tão alto, de um anjo e mensageiro da paz, como assim chamavam ao
velho padre, não podiam deixar de, pela força de sua reflexão, influir,
pois desgraçadamente, nos destinos daquele povo.539

468
PEIXOTO, Alencar. Joazeiro do Cariry. 2ª. ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011
(Coleção Centenário), p.49. 539 Ibid., p.170.
205

A “liberdade, a santa liberdade” relacionada à tal “apoteose do crime” pode estar


ligada ao contexto do pós-abolição. Observa-se que o termo “liberdade” recebeu do autor
uma acepção de permissividade. Ao tentar dizer tudo numa palavra, destaca exatamente
aquela que foi durante anos antes, a principal bandeira da causa abolicionista. Tal escolha
do autor associada à recorrente crítica à miscigenação por ele retomada, faz um
contraponto com o que até agora observamos sobre o acolhimento do padre Cícero.
Peixoto também era um padre, lembremos, mas não estava interessado em acolher de
forma indistinta os fiéis.
A palavra “romeiro” é utilizada no conto como sinônimo de “Corrupto”. Em mais
um diálogo, surgem descrições da cidade e da população local. O conteúdo, por si só, traz
uma referência descritiva mais direta acerca dos romeiros.

A população do Juazeiro que se eleva hoje há, pouco mais ou menos,


trinta mil almas, é quase que exclusivamente composta de romeiros, o
que vale o mesmo que dizer- de assassinos, de desordeiros, de rufiões e
de ladrões de cavalo que, perseguidos pela polícia dos Estados vizinhos,
ali se refugiam sob a guarda e proteção do padre Cícero.
Ora, meu caro amigo, desse heteróclito promiscuíssimo híbrido de
celerados e bandidos, de brutos e matadores a cerrarem fileira ali com
outros que se lhes vão chegando, que poderia resultar em benefício dos
bons costumes ou da moral daquela terra?

Mais uma vez, destacou a condição da cidade como polo dos migrantes que ali se
assentavam e define, novamente, um quadro de degeneração que defende ao longo da
obra.
A leitura do livro evidencia a insatisfação e revolta de Peixoto contra o Padre
Cícero. Entremeadas às críticas apelativas e exageradas encontramos a descrição das
pessoas que viviam em Juazeiro ou que para ali acorriam.
Interessou-nos observar a dinâmica dos que buscam morada ou consolo em
Juazeiro do Norte. O exagero dos argumentos e a radicalidade de Peixoto o tornaram um
autor esquecido, abandonado pela historiografia recente, dado o excesso apaixonado e a
ânsia de difamar Juazeiro e o Padre Cícero.
Compreendemos que nem por isso merece o ostracismo, pois seu texto revela
muito da cidade: o que nos conta de Juazeiro? Como se engendra a construção do
206

imaginário do romeiro como pobre, sujo, desvalido e perigoso? Que argumentos e


desqualificações formam o jargão dos detratores do Padre Cícero?
A reflexão acerca da obra revela uma percepção intolerante com relação à
diversidade étnica e à miscigenação: a “hibridez horrível” evidencia uma interpretação da
herança genética tomada como termo condicionante não apenas de aspectos corporais,
mas também comportamentais.
Há muito o que explorar sobre o tema nos textos jornalísticos do próprio Peixoto,
sua intensa colaboração como redator de jornal pode ser observada por esse prisma.
Peixoto teria convivido em seus dias de militância no jornal O Rebate com José Marrocos,
um reconhecido abolicionista.
Mesmo legando uma obra com evidente intenção de denegrir tanto o Padre Cícero
quanto seus aliados e, principalmente, os moradores da cidade de Juazeiro do Norte,
Peixoto será tomado como referência por outros autores. Trechos de seu trabalho são
citados ou mencionados. Um exemplo é a obra de Lourenço Filho que, apesar de breves
ressalvas, acaba por basear-se nos seus escritos. Constata-se que o contraste entre sua fase
no jornal O Rebate, na qual tecia evidentes e intensos elogios, é abandonada pelos
herdeiros.

O padre Alencar Peixoto, ex-vigário do Juazeiro, num livro publicado


em 1913, atribui não poucos crimes ao padre Cícero, retratando-o
sistematicamente movido pelos piores sentimentos. Ao contrário, o
falecido deputado Floro Bartolomeu, que aliás deveu a sua cadeira na
Câmara Federal ao prestígio do padre, em diversos discursos naquela
casa de Congresso, pinta-o como o santo dos santos, não tendo tido
nenhum constrangimento em atribuir-lhe atos beneméritos que o
testemunho geral e as próprias publicações oficiais do Ceará
desmentem. Entre essas duas opiniões extremadas, outras correm
mundo, nem sempre sinceras e justas.469

Fica só a fase do Joaseiro do Cariri, em que Lourenço reproduz a citação grosseira


da descrição de Maria de Araújo e faz uma síntese negativa inspirada somente no
testemunho legado por Peixoto.

4.1.2 Rodolfo Teófilo

469
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergstrom. Juazeiro do Padre Cícero. 4ª ed. aumentada. Brasília-DF: Inep/MEC,
2002,52.
207

Rodolfo Marcos Teófilo nasceu na Bahia em 1863 e faleceu em Fortaleza, em


1932. Sendo filho de cearenses e tendo vivido a maior parte de sua vida no Ceará, dizia
ter escolhido ser cearense. Sua educação superior é marcada pela formação em Farmácia
cursada na Faculdade de Medicina da Bahia, tendo se diplomado em 1895. Homem de
muitas atribuições, foi um incansável cientista e hábil escritor. Deixo aqui um pouco
acerca desse autor cuja vasta obra é caríssima à historiografia e à literatura cearenses. Em
seu necrológio, uma síntese ressalta o dom que lhe era mais célebre, o de escritor:

Mas o que Rodolfo Teófilo foi, antes e acima de tudo, foi escritor. A
poesia, o romance, o conto, a história, o panfleto, o jornalismo, a mesma
ciência, teve nele tudo isso um cultor apaixonado, que morreu sem
depor a pena.
Historiador dos flagelos climáticos que periodicamente assolam o
Ceará, bem como das peripécias políticas a que assistiu, não pode
eximir-se do partidarismo a que se acorrenta a natureza humana, e
muitos juízos seus hão de ser talvez reformados pela posteridade.470

Legou-nos uma robusta produção literária que chegou a 28 livros, englobando


escritos sobre ciência, história, política e saúde pública. Produziu a respeito de diversas
modalidades: prosa, romance e poesia. Em algumas de suas obras tratou de episódios nos
quais teve participação ativa, ou pelo menos presenciou. Trata-se de uma escrita
predominantemente autobiográfica, na qual estava inserido como personagem. É o caso
da obra que nos interessa discutir aqui: o livro Sedição de Juazeiro, produzido no calor
dos acontecimentos, em 1915. Isaac do Vale Neto explora a perspectiva da escrita de si
como elemento crucial para o entendimento do autor:

É interessante perceber como Teófilo é descrito em seus próprios livros,


como aparece e em que condições históricas esta produção de memórias
constrói seu próprio protagonismo dentro dos eventos narrados. Além
disso, deve ser salientado o modo como sua escrita era “comprimida”
entre um passado (que já não era), o presente (lugar de sua produção e
de suas disputas mais imediatas) e o futuro (temporalidade sobre a qual
Teófilo buscava um mínimo controle no que diz respeito à imagem de
si que desejava legar à posteridade).
Como toda escrita de si, os livros de Teófilo são marcados pelo excesso
de protagonismo e pela evocação do valor de “sinceridade” como
verdade.471

470
Necrológio. Revista do Instituto do Ceará - ANNO XLVII - 1933
471
VALE NETO. Isac Ferreira do. Batalhas da Memória: A escrita militante de Rodolfo Teófilo. Mestrado em
História Social - Universidade Federal do Ceará – UFC, 2006.
208

Evocando a sinceridade e o papel de testemunha de muitos fatos, o autor registrou


os acontecimentos da revolta de Juazeiro, evento que denomina “Sedição de Juazeiro”.
Seu ponto de vista de testemunha restringe-se a Fortaleza e arredores da cidade, quando
da chegada dos grupos belicosos. O texto de apresentação tem por título “Aos pósteros”
e data de 1915, provavelmente o ano de finalização dos escritos, mas a obra só foi
publicada em livro em São Paulo, em 1922. Nas páginas de apresentação, Rodolfo Teófilo
descreve seu papel de observador e de narrador dos fatos, classificando o episódio da
sedição como uma verdadeira catástrofe, comparável à terrível seca de 1877:

Coube-me a tarefa de ser o cronista dos infortúnios do Ceará nesse meio


século. Tive que contar a fome de todas as secas naquele período. Não
sei qual foi mais terrível; se a seca de 1877, se a sedição do Juazeiro. A
seca é um fenômeno climatérico que o homem não pode evitar. A
sedição, aqui, um caso mórbido de sociologia determinado pelo Poder
Público.472

O título grafado na primeira página é o seguinte: “A Sedição de Juazeiro - Crimes do


governo da República”. O livro está dividido em vinte capítulos que aparecem apenas
enumerados, sem distinção por títulos ou subtítulos. A trama dos personagens enreda datas
e fatos, bem ao estilo de seus pares intelectuais do Instituto do Ceará, afeitos a detalhadas
cronologias. A obra segue contando aqui e ali com a transcrição de documentos como
telegramas ou cartas. Apesar do considerável fôlego documental, por todo o texto proliferam
adjetivos pejorativos para referir-se ao Padre Cícero e aos grupos de combatentes a ele
ligados. Na opção por denominar como sedição o movimento que foi chamado de “Guerra
de 1914”544, “Revolução de 1914”473 e, ainda, de “Revolta de 1914”474, Teófilo imprimiu
uma marca, pois a denominação “sedição” é a mais usada, sendo recorrente o uso em livros
escolares, matérias jornalísticas e, principalmente, nas produções do Instituto Histórico do
Ceará.

472
TEÓFILO, Rodolfo. A Sedição de Juazeiro. Sebo Vermelho Edições: Natal, 2004. Edição fac-similar
da edição do ano de 1969 da Editora Terra do Sol. p.15. 544 O termo “Guerra de 1914” foi usado em 2014
nos eventos organizados pela Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte em alusão ao centenário dos
episódios.
473
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a revolução de 1914. 2ª ed. Fortaleza: Editora IMEPH,
2011 (Coleção Centenário).
474
CAMURÇA, Marcelo. Marretas, Molambudos e Rabelistas: a revolta de 14 no Juazeiro. São Paulo:
Maltese, 1994.
209

Ao narrar um episódio que o afetou pessoalmente durante os conflitos de 1914,


Teófilo conta da invasão de uma vivenda que possuía em Pajuçara, distrito distante 20km
de Fortaleza. Ali naquelas terras, Teófilo estava envolvido numa disputa com vizinhos, aos
quais se refere da seguinte forma: “[...] Em Pajuçara há uma família de pardos, os Caetanos,
meus desafetos por questão de extrema de terras”. 475 A família dos Caetanos se organizou
para recepcionar o grupo de combatentes apoiadores do Padre Cícero, que passaria por ali.
Diante da situação colocada pelo conflito, em muitas localidades oferecer uma refeição ou
um lugar para pouso significava evitar saques e outras formas de violência que ocorriam
em grande medida com a passagem do grupo (assassinatos, estupros, queima de roças,
roubos, destruição de equipamentos, benfeitorias e outros). A iniciativa dos Caetanos é
tomada por Teófilo como um desatino, pois, ao invés de fugir dos invasores, “[...] os pardos
os receberam carinhosamente”. Depois daquele encontro, um grupo de combatentes parte
para explorar os bens da vivenda de Teófilo. O local era guardado por um morador idoso
que assiste à chegada e ao desenrolar dos fatos que culminaram em saques e desordem.
Talvez tenha sido esse senhor, que se chamava Antônio Pereira, quem contou a Teófilo os
detalhes do episódio que ele narra em pormenores no seu texto. O grupo invasor, num
primeiro momento, se ocupou em rezar longamente na capelinha erguida na vivenda; em
seguida, partiu para abater o gado e repartir a carne. Teófilo finaliza assim sua narrativa do
fato:
Precisavam de cavalos e eu tinha dois, de sela, excelentes. Apossaramse
deles. E os belos animais lá se foram cavalgados, por escárnio de sorte,
cada um por dois negros inferiores às minhas cavalgaduras. 476

Observa-se que ao narrar o episódio o autor logo apresenta a cor de seus vizinhos
como um predicado: os Caetanos “pardos” se associam aos “jagunços do Padre Cícero”
numa ação delituosa e ousada. Teófilo chegou a relatar o ocorrido, mas a autoridade
responsável, para sua incontida revolta, disse tratar-se de “[...] grupo de beligerantes
cobrando imposto de guerra”. O que fica evidente é o racismo do autor, que sem pudor
nenhum rebaixa, iguala pela cor e condição mestiça de seus vizinhos aos invasores
agressivos. Para ressaltar o prejuízo que teve ao perder os cavalos, não se contém em

475
TEÓFILO, Rodolfo. A Sedição de Juazeiro. Natal: Sebo Vermelho edições, 2004. Edição fac-similar
da edição do ano de 1969 da Editora Terra do Sol. p. 93.
476
TEÓFILO, Rodolfo. A Sedição de Juazeiro. Natal: Sebo Vermelho edições, 2004. Edição fac-
similar da edição do ano de 1969 da Editora Terra do Sol. p. 95. 549 Ibid., p. 164.
210

registrar um comentário racista. O ultraje maior não era o roubo e sim, saber que foram
homens negros que levaram suas preciosas montarias.
No capítulo final, já em tom de conclusão, Teófilo sintetiza seu pensamento em
uma projeção acerca do futuro. O que esperar do Ceará? Ele considera a nossa capital uma
“coberta de tacos”549, referindo-se à variedade das origens das pessoas que ali foram viver.
A analogia dos tacos nos remete à diversidade de cores, tons. Há uma conotação
étnicoracial evidente. Ao desenvolver seu argumento, adere a um tom pessimista, fundado
em uma abordagem racial, à mestiçagem como “mal” a ser vencido pela educação e
civilidade:

Os nossos males não terão fim tão cedo. A sua origem é a mestiçagem,
todos os vícios e defeitos das raças inferiores. O reestabelecimento da
paz, da ordem no Ceará, seria possível se os que dirigem o Estado
cumprissem seus deveres, tivessem educação doméstica e cívica. São
homens e mulheres, em sua maioria, vindos das baixas camadas sociais,
sem merecimento e com todos os defeitos de sua origem. Que esperar
de tais indivíduos sem civismo, cujos pais e avós eram analfabetos,
senão que, uma vez no poder, oponham o direito da força à força do
Direito. O atavismo tem de cumprir-se.

Rodolfo Teófilo estudou na Bahia, na escola de Farmácia, como dito


anteriormente e teve durante sua formação, contato com o pensamento do professor Nina
Rodrigues. Ao recorrer à ideia de atavismo477 como uma verdadeira ameaça que ronda,
expressa um princípio presente em outras obras. Manoel Carlos Alencar faz um destaque
ao discutir a apresentação de um personagem (João das Neves) do romance O Paroara,
publicado por Teófilo em 1899:

A descrição minuciosa do autor, ressaltando características anatômicas


e de raça, fazendo questão de afirmar sua vinculação com a
antropologia, nos mostra o quanto as teorias raciais aprendidas da
Faculdade da Bahia marcaram profundamente a sua visão de mundo.
No trecho acima, percebemos que as boas qualidades de João das
Neves, como o amor e a afetividade, foram herdadas da raça branca, já
as más qualidades ele as herdou, por atavismo, de seus ascendentes
índios.478

477
NINA RODRIGUES, Raimundo. (1862-1906). Atavismo psíquico e paranoia (1902) Texto
originalmente publicado como Atavisme psychique et paranoïa, nos Archives d’Anthropologie Criminelle,
de Criminologie et de Psychologie Normale et Pathologique, de Lyon (ano 17, n. 102, p. 325-355, 1902).
In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 766-789, dezembro
2009.
478
ALENCAR. Manoel Carlos Fonseca de. Rodolfo Teófilo: o sertanejo entre o ideal e a raça. Anais do
XXVII Simpósio Nacional de História. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org (p. 4)
211

Há um largo lapso temporal entre as duas obras. A publicação de O Paroara479


dista 16 anos da escrita de A sedição de Juazeiro, no entanto, chamamos a atenção para o
item do presente trabalho que trata do acervo de adjetivos empregados para qualificar os
romeiros de Juazeiro do Norte, especialmente aqueles envolvidos nos conflitos da
chamada “Sedição de Juazeiro”.

De seu ex-professor Nina Rodrigues, Teófilo herdara o preconceito


contra as classes mais baixas devido à influência do Darwinismo social,
por isso, aprendera que o maior mal da sociedade brasileira seria a
mestiçagem e a inferioridade de nosso povo se dera graças à presença
do negro em nossa cultura.553

A obra Sedição de Juazeiro foi tomada como referência por diversos autores para
tratar do Juazeiro. Seu conteúdo eivado de elementos racistas e/ou eugenistas teve
repercussão entre os que buscaram um parâmetro para tratar da história daquele
município.

4.1.3 Lourenço Filho

479
Os outros personagens secundários, negros, índios, mestiços, são todos degenerados por defeitos
atávicos de raça e, por isso, desonestos, assassinos, libidinosos, traiçoeiros, feios, etc. (Ibid., p. 6) 553
MOREIRA, Harley Abrantes. A reinvenção do sertão do Ceará por uma Fortaleza nova. Rev.
Espacialidades [online]. 2008, vol. 1, nº. 0, 28p. p. 17.
212

Figura 12- A imagem possui a seguinte legenda: Padre Cícero Romão Batista ladeado, à direita, por
Lourenço Filho, em Juazeiro-CE, 1922 e foi publicada na página 6 de “Juazeiro do Padre Cícero (obra
premiada pela Academia Brasileira de Letras, em 1927) / Manoel Bergström Lourenço Filho – 4. ed. aum.
– Brasília: MEC/Inep, 2002”.

Foi como diretor geral de Instrução Pública do Ceará, que Manoel Bergström
Lourenço Filho480 chegou à Juazeiro do Norte no ano de 1922. Viajava ao interior do
estado liderando a missão de organizar um cadastro com o objetivo de planejar uma
reforma no ensino público cearense. Recebido pelo Padre Cícero, deste solicitou
autorização para a realização de um cadastro escolar. Em ocasião anterior tal
consentimento havia sido negado, porém, nessa tentativa logrou êxito e obteve a
aprovação.
Além da experiência de adentrar os plenos sertões, o jovem intelectual, em sua
breve passagem pelo Ceará, teve a oportunidade de conviver com importantes nomes da
intelectualidade cearense. Lourenço Filho ficou no estado entre os anos de 1922 e 1924.

Lourenço Filho também se forma no convívio intelectual com


Justiniano de Serpa, Ildefonso Albano, João Hipólito de Azevedo e Sá,
e os últimos membros da Padaria Espiritual, sociedade literária de
cunho modernista: Antônio Salles e Rodolfo Teófilo. Sua passagem
pelo Nordeste foi, no sentido clássico da expressão, uma “viagem de
formação”, possibilitando-lhe ampliar a visão do Brasil e aprofundar a
identidade de reformador do ensino.481

Já de volta ao estado natal, publica no jornal O Estado de São Paulo, órgão do


qual era colaborador assíduo, uma série chamada “Juazeiro do Padre Cícero”. Circulando
entre novembro de 1925 e agosto de 1926, a série estava dividida em dez artigos. Em
setembro de 1926, foi lançado o livro Joaseiro do Padre Cícero - Scenas e quadros do
fanatismo no Nordeste482. Já no ano seguinte, em 1927, a obra é premiada pela Academia

480
Manoel Bergström Lourenço Filho nasceu na Vila de Porto Ferreira, interior de São Paulo, em 1897.
Filho do imigrante português Manoel Lourenço Júnior e de Ida Cristina Bergström, uma imigrante sueca.
Falece em 1970 na cidade do Rio de Janeiro. Sobre sua formação inicial: graduou-se na Escola Normal,
cursou Medicina com interesse em Psiquiatria, depois de dois anos deixou o curso e ingressou em Ciências
Jurídicas. Foi um intelectual, personagem de projeção nacional, articulador fundamental do movimento
“Escola Nova”.
481
MONARCHA, Carlos. Lourenço Filho. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, (Coleção
Educadores), p. 44.
482
A obra Joaseiro do Padre Cícero – cujo subtítulo da primeira edição é “scenas e quadros do fanatismo
no Nordeste” – foi publicada, em 1926, pela Companhia Melhoramentos, de São Paulo (Weiszflog Irmãos
Incorporada), com 301 páginas, ilustrado e tiragem de três mil exemplares.
213

Brasileira de Letras. Intitulados de modo sugestivo, os artigos são os seguintes: I. Em


caminho (17 de novembro de 1925); II. A Meca dos sertões (18 de novembro de 1925);
III. Transpondo as trincheiras... (19 de novembro de 1925); IV. No reino da insânia (25
de novembro de 1925); V. Ecce homo! (27 de novembro de 1925); VI. Retomando o fio
(21 de abril de 1926); VII. Os milagres (23 de abril de 1926); VIII. O “boi santo” (2 de
maio de 1926); IX. A sedição de 1913: causas (10 de julho de 1926); X. A sedição: início
da luta (13 de agosto de 1926). Publicados em novembro de 1925, os cinco artigos iniciais
constituíram a primeira fase da série; após a interrupção de vários meses, os textos
restantes foram publicados entre abril e agosto de 1926, compondo a segunda fase da
série.
A projeção do texto e das ideias de Lourenço Filho são incontestes. Sua militância
no campo do ensino e da aplicação de novas metodologias transforma sua análise e
descrição de Juazeiro numa espécie de contraponto: um retrato da pobreza e das
limitações a serem vencidas por uma educação mais competente em seus métodos e
estratégias.
A percepção, hoje, pode ser lida como controversa, afinal, o evidente teor
eugenista e a verve racista do autor serão percebidas e analisadas em suas obras
posteriores. Sem dúvida foi um homem do seu tempo, compartilhou do ânimo sobre uma
ideia de Brasil que passava pela observação da questão de nossa formação multiétnica: a
solução seria branquear, vencer o atraso atribuído à miscigenação. A reflexão de Jerry
Davila corrobora no sentido de compreender Lourenço Filho articulado aos seus pares
intelectuais:

Nos anos 30 do século vinte, brasileiros brancos podiam seguramente


celebrar a mistura racial porque eles viam isto como um passo inevitável
na evolução da nação. O ser branco incorporou às desejadas virtudes de
saúde, cultura, ciência e modernidade. Uma série de educadores, desde
o ministro da educação e saúde Gustavo Capanema até o psicólogo
infantil Manuel Bergstrom Lourenço Filho, o compositor Heitor Villa-
Lobos, o escritor de livros didáticos Jonathas Serrano e o antropólogo
Arthur Ramos, todos explicitamente abraçaram esta visão sobre a
categoria raça. Naturalmente, o futuro brasileiro para eles era branco.483

483
D´AVILA, Jerry. O valor social da brancura no pensamento educacional da era Vargas. Educar, Curitiba, n. 25,
2005, p. 111-126, Editora UFPR, p.117.
214

O autor discute como o pensamento que inspirou reformas educacionais da Era Vargas
estava fundamentado no eugenismo, destacando ainda o papel de Lourenço Filho nos
projetos de expansão escolar objetivando a educação para o trabalho, vista aí como
possibilidade para uma devida adequação dos pobres e mestiços. 484
A contribuição de Marcelo Camurça problematiza o fato de ter sido a experiência
em Juazeiro do Norte uma espécie de marco negativo a ser ultrapassado pela
racionalidade. Para o autor, esse enfrentamento pode soar simplista, pois pretende
implementar uma solução racional.

Lourenço Filho ao revelar esta visão, eivada de positivismo, mostra


também uma interpretação simplista do problema, tão romântica e
metafísica quanto a mentalidade que ele julgou criticar, ou seja, a de
querer resolver todo um complexo quadro social mediante à simples
inoculação de métodos científicos revitalizadores num tecido social que
ele julgava atrasado.485

A crítica de Camurça pertence aos estudos recentes acerca das relações de poder
no sertão e problematiza a Sedição de Juazeiro, levando em conta aspectos culturais e
políticos. A crítica a Lourenço se deve à insistência do discurso cientificista deslocado e
à visão superficial e preconceituosa que imprimia ao sertanejo e ao romeiro. As críticas e
revisões do trabalho de Lourenço Filho não repetem a retumbante aceitação da obra
premiada:

Em novembro de 1927, a Academia Brasileira de Letras concedeu o


prêmio “Ensaios” a Lourenço Filho, pela autoria de Joaseiro do Pe
Cícero: scenas e quadros do fanatismo no Nordeste, considerado pela
primeira recepção como um livro de feição euclidiana, não só pelo
recurso da forma e pela estilística presentes em Os sertões, mas,
também, pela mobilização de teorias, temas e teses interpretativas
constantes no “livro vingador” de Euclides da Cunha.486

A viagem ao interior descortinou um Brasil desconhecido para Lourenço Filho,


confrontou o que considerava um “[...] violento caldeamento das três raças”. E violento
aqui não se refere às formas de dominação impostas, violações físicas e sujeição.

484
Ibid., p. 121.
485
CAMURÇA,1994, p. 35.
486
MONARCHA, 2010, p. 15.
215

Observando o encaminhamento que deu ao seu trabalho, Juazeiro era o local no qual o
caos e a doença se irmanavam na decadência que só o embrenhar-se nos sertões poderia
proporcionar ao jovem viajante. Adentrar o sertão e afastar-se do litoral era uma espécie
de recuo no tempo:

Deixamos, assim, construções higiênicas e elegantes, e vamos topando,


desde as primeiras paradas, mal entramos na caatinga, com habitações
que denunciam atraso de engenharia, de vinte, trinta, quarenta, cem
anos... Os modos de expressão do povo, o vestuário mais comum, os
processos da lavoura e da indústria, as (sic) idéias político-sociais, vão
(sic) condizendo com o mesmo recuo no tempo...487

O recuo no tempo e a hierarquização do modo de vida e da cultura material dos sertões


admite um paralelo com a classificação das gentes e nesse tocante, o autor nos evidencia
o já referido viés racista de sua abordagem:

A própria evolução etnográfica brasileira quase pode ser estudada numa


viagem de penetração. Na costa, predomina o branco, fato que
demonstra a preponderância ariana da nossa gente de hoje; a breve
trecho, surgem, porém, expressões do mais violento caldeamento das
três raças primitivas, com a presença muito rara do preto puro; depois,
mais extenso e generalizado, o caboclo, tanto quanto indígena, tanto
quanto ariano; noutros pontos, tapuias extremes, índios puros, com a só
diferença, junto aos seus primitivos, em não usarem tangas, terem (sic)
idéias cristãs e vestirem calças de azulão.488

A relação homem/meio é tomada por Lourenço Filho como um mote, mas o que descreve
ao percorrer diferentes espaços em seu percurso, que vai do litoral ao sertão, é a
diversidade étnica. No litoral, a presença branca, descrita como preponderante, é
numericamente inferior. A influência de Euclides da Cunha e Monteiro Lobato fica
bastante evidente, sendo descrita e explorada em diversos trabalhos. O caráter
científicoliterário acabou marcando esta que é uma das narrativas fundamentais dos
estudos sobre Juazeiro do Norte, aqui problematizada por seu conteúdo racista.
O esforço descritivo ao modo dos relatos de viajantes, conFigura uma forma de literatura
que vinha suprir a necessidade de compreensão da região, tão afamada pelos fenômenos
climáticos e ainda desconhecida quanto aos seus personagens e práticas. Aos seus leitores,

487
LOURENÇO FILHO, 2002. p. 28.
488
Ibid., loc. cit.
216

Lourenço Filho serve um admirável cardápio de tipos estranhos, práticas bizarras e


alguma comiseração acerca das limitantes condições de existência no sertão. Uma
descrição que dialoga com o que havia em Euclides da Cunha, nos Sertões e se expande
como retrato/explicação da então emergente ideia de Nordeste. Ideia esta que se efetivou
em outras linguagens chegando, inclusive, ao cinema, como analisa Durval Muniz:

O Nordeste do Cinema Novo aparece como um espaço homogeneizado


pela miséria, pela seca, pelo cangaço e pelo messianismo. Um universo
mítico quase desligado da história. O sertão é nele tomado como síntese
da situação de subdesenvolvimento, de alienação, de submissão a uma
realidade de classes, é uma situação exemplar, que podia ser
generalizada para qualquer país do Terceiro Mundo. Importa pouco a
diversidade da realidade nordestina e todas as suas nuanças, o que
interessa são aquelas imagens e temas que permitam tomar este espaço
como aquele que mais choca, aquele capaz de revelar nossas mazelas e,
ao mesmo tempo, indicar a saída correta para elas. A falta de lógica e
sentido da cultura sertaneja é ressaltada, já que toda lógica, a
consciência e a capacidade de racionalização da realidade vêm de fora,
da cidade, do litoral.489

A análise de Muniz evidencia a permanência de “construções imagéticodiscursivas” que


definiram leituras e criações sobre o sertão nordestino. O que foi esboçado por Lourenço
Filho em Juazeiro do Padre Cícero, sem dúvida pertence à matriz de tais construções.

4.2. O viés racista de um léxico para (des)qualificar o romeiro

Apresento neste item uma coleção de adjetivos ou expressões usadas para


qualificar os moradores de Juazeiro do Norte. Estão divididos em três grupos, a saber:
aqueles que falam das qualidades dos romeiros em geral, aí inclusos os que, chegando em
romaria, acabam se fixando e morando na cidade; há o grupo de adjetivos atribuídos à
Beata Maria de Araújo e aqueles destinados ao Beato José Lourenço. A ideia de elencar
tal acervo de palavras ou expressões veio especialmente da necessidade de perceber como
se tece um discurso acerca da cidade, de seus moradores e dos personagens fundantes de
episódios relevantes que marcam a transformação da urbe num lugar de peregrinação.

489
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed. Recife: FJN;
Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009, p. 279.
217

O destaque para a questão étnico-racial representa de que forma as associações


feitas entre romeiros e adjetivações negativas nos possibilita adentrar às tensões sociais
vivenciadas pelos sujeitos que, por fé, necessidade ou por puro acaso, chegaram à “Nova
Jerusalém” do sertão. Ao tecerem os fios narrativos a respeito dos fatos e personagens de
Juazeiro, os autores aqui citados deixaram para os leitores vindouros a chance de, através
de suas falas e silêncios, compreenderem um pouco do tempo no qual viveram. E mais,
compreender um pouco daqueles personagens cujas vidas nunca intitularam um livro,
nunca mereceram atenção ou voz.
Era na multidão dita inconveniente de adventícios que se cruzavam histórias e
sonhos cujos detalhes nunca saberemos. Os esquecimentos não serão vencidos, mas, pelo
menos, serão percebidos, debatidos, reconhecidos como esquecimentos e silêncios. Isso
fundamenta o presente esforço de pesquisa.
O discurso racista circula em diversas esferas e pode ser reproduzido tanto no
espaço doméstico e íntimo, quanto nos meios de comunicação massiva. Apesar de
propagar-se de diversas formas e em diferentes espaços sociais, para van Dijk, as elites
ocupam um papel central na reprodução discursiva do racismo. Há de se levar em conta
a força dos sujeitos que produzem o discurso racista para que se possa inferir, ou pelo
menos problematizar, seu raio de influência. Ou seja, o quanto do que foi dito irá
repercutir e se cristalizar nas formas recorrentes de consenso. Compreender o que o autor
define como “elite” interessa também para a percepção da noção de “ideologia” no âmbito
de seus estudos:

Nuestra definición de estas élites se plantea así en términos de los


recursos materiales que son la base del poder, tales como la abundancia,
ni simplemente en términos de su posición societal de liderazgo, sino
en términos de los recursos simbólicos que definen el "capital
simbólico", y particularmente por su acceso preferencial al discurso
público. Las élites, definidas de esta manera, son literalmente el(los)
grupo(s) en la sociedad que tienen "más que decir", y por ende tienen
también un 'acceso preferencial a las mentes del público general'. Como
los líderes ideológicos de la sociedad, ellos establecen valores, metas y
preocupaciones comunes; formulan el sentido común como también el
consenso, tanto a nivel de individuos como también a nivel de líderes
de las instituciones dominantes de la sociedad.490

490
VAN DIJK, Teun. A Discurso y racismo. In: GOLDBERG, David & SOLOMOS. John (Eds.), The
Blackwell Companion to Racial and Ethnic Studies. Oxford:Blackwell, 2001. Derechos sólo para la edição
traduzida por Christian Berger, Escuela de Psicología, Universidad Alberto Hurtado. PERSONA Y
SOCIEDAD Universidad Alberto Hurtado/Instituto Latinoamericano de Doctrina y Estudios Sociales
HADES. p.194.
218

No caso aqui estudado, nos deparamos com uma elite letrada cujos sujeitos se
propõem a ser autores e deixar um legado. Tal elite protagoniza o testemunho sobre fatos
e pessoas acerca dos quais lançam seus preconceitos e juízos de valor. Tais testemunhos
emergem impregnados dos termos (des)qualificantes ou limitantes daqueles que são
tomados como os “outros”. No que tange os autores aos quais nos dedicamos no presente
item, destaca-se o texto de Lourenço Filho, reconhecido com um importante prêmio
nacional, tendo sido publicado em capítulos e em jornal de grande circulação.
A contribuição de van Dijk auxilia no reconhecimento das formas privilegiadas de
reprodução do discurso racista. Dentre as descritas pelo autor, estão algumas que incluem
a “entonação” da fala e/ou emissões sonoras que se efetivam na oralidade. Existe ainda a
forma de “interação” durante um debate, por exemplo, o silenciamento, a limitação do
tempo de resposta, etc. Possibilidades que não cabem na nossa análise, que se fundamenta
exclusivamente no legado escrito.
Sobre o registro escrito podem ser discutidos, de acordo com os pressupostos do
autor, os aspectos relativos a:

Sintaxis: (des)enfatizar la responsabilidad sobre la acción, por ejemplo,


a través de oraciones activas vs. pasivas.
Léxico: seleccionar palabras que pueden ser más o menos negativas
sobre 'Ellos', o positivas sobre 'Nosotros' (...)
Significado local (de una oración): por ejemplo siendo vago o indirecto
sobre nuestro racismo, y detallado y preciso sobre sus crímenes o
conductas impropias.
Significado global del discurso (temas): seleccionando o acentuando
asuntos positivos para nosotros (como ayuda y tolerancia), y negativos
para ellos (tales como crimen, desviación o violencia).
Esquemas (formas convencionales de organización global del discurso):
presencia o ausencia de categorías esquemáticas estándar – tales como
Resolución en un esquema narrativo, o una Conclusión en un esquema
argumentativo para acentuar Nuestras Buenas cosas y Sus Malas cosas.
Dispositivos retóricos, tales como metáfora, metonimia, hipérbole,
eufemismo, ironía, etc. – nuevamente, centrar la atención en la
información positiva/negativa sobre Nosotros/Ellos: por ejemplo,
acusaciones tendientes a derogar a Ellos, o defensas que legitimen
nuestra discriminación. Interacción: interrumpir exposiciones de Otros,
terminar reuniones antes de que los Otros puedan hablar, discrepar con
los Otros, o no responder a sus preguntas, entre muchas otras formas de
discriminación interaccional directa. 491

491
VAN DIJK, 2001, p. 193-194.
219

O trabalho em tela se debruçará sobre a questão do Léxico e das Sintaxes.


Explorarei “dispositivos retóricos” para problematizar os discursos e ainda para tentar
desnudar as relações que os legitimam. Adentrar o campo da linguística é um desafio
imposto pela documentação trabalhada neste item e pelo tipo de questionamento que
inspira. Nesse sentido, as contribuições de van Dijk conectam a questão social com a
prática discursiva, evidenciando as relações de poder que buscam se perpetuar através dos
discursos racistas.
É válida a abordagem de Paulo Vinícius da Silva e Fúlvia Rosemberg492, que
compreendem o conceito de racismo considerando simultaneamente suas expressões
material (dominação sistemática de um grupo pelo outro) e simbólica (crença na
superioridade intrínseca ou natural de um grupo racial sobre os demais)493. A contribuição
desses autores recorre ao conceito-chave de “estereótipo”494, discutindo as construções
que se repetem ou se revigoram na descrição ou composição de personagens negros na
literatura e em outras mídias (livros didáticos, cinema, TV, jornais e outros).
Compreendemos que o esforço de expor o teor racista dos escritos sobre Juazeiro
do Norte exige, para além do simples recorte dos textos em busca de expressões e
construções de cunho racista, uma percepção dos lugares de produção desses discursos,
examinando o perfil dos intelectuais e as formas que produzem e reproduzem estereótipos
racistas em seus trabalhos. Pensar esse aspecto do problema equivale a assumir nosso
tempo, de autoria deste texto, vivendo diante do racismo com a questão que desnuda as
contradições sociais, as desigualdades e a herança duradoura e dolorosa do pós-abolição.
Combater ou denunciar o racismo está relacionado com o fortalecimento do movimento
negro, sendo um marco importante a mobilização do Movimento Negro Unificado no final
dos anos 1970.
A prática de escalonar ou hierarquizar sujeitos em função da cor da pele não é uma
novidade. Contribui para essa discussão a noção de que mesmo antes da chegada dos
portugueses ao território que viria a ser o Brasil, já existiam regras que preconizavam a

492
SILVA. Paulo Vinícius Baptista da; E ROSEMBERG, Fúlvia. Brasil, lugares de brancos e negros na
mídia. In: Van Dijk, Teun (org) Racismo e discurso na América Latina, São Paulo, 2ª ed. São Paulo:
Contexto, 2019. p.73-118.
493
Ibid., p. 74.
494
São discutidos pelos autores os estereótipos que tanto se aplicam a personagens masculinos ou
femininos. Em síntese são: “bom crioulo”, este próximo do “preto velho”: passivo, conformista e
supersticioso; o “escravo nobre” que aceita a submissão é um trabalhador incansável; o “negro revoltado”,
este seria cruel, rebelde ou bandido; “negro pervertido”, associado à promiscuidade e à virilidade; o
“moleque”, brincalhão, infantilizado e bobo; o “crioulo doido”, imprevisível, risível e afetado. (p. 84-87)
220

hierarquia entre as pessoas. Aqui nos referimos ao Estatuto-Sentencia de Toledo (1449),


que diferenciava os “limpos” e os “infectos” de sangue, que sustentava o mito ibérico da
pureza de sangue 495. Mais recentemente, Bruno Silva defendeu que “[...] a ideia de raça
considerando aspectos físicos nasceu na América, entre os séculos XVII e XVIII, e sua
nova dimensão esteve intimamente relacionada com o acirramento das teorias e relatos
que defendiam que o homem americano era produto da degeneração da espécie humana
original”. 496
Reconhecer e problematizar tal tema não estava no horizonte inicial desta
pesquisa, o objetivo foi analisar as romarias e o pós-abolição, entretanto, as fontes
consultadas, mais especificamente as obras literárias e artigos de periódicos locais,
evidenciaram uma questão a ser encarada. Enfrentar a invisibilidade que se impunha ou o
silenciamento flagrante por parte de quase toda a produção historiográfica sobre os
romeiros e as romarias à Juazeiro do Norte, nos motiva a contribuir com essa reflexão.
A seleção de autores aqui utilizada permite discutir o quanto ecoam ou são
reproduzidas as qualificações negativas. Observei, desde as primeiras leituras, algo que
eu compreendia como reverberação, um eco das impressões negativas ou das leituras
preconceituosas. A delimitação do aporte teórico ajuda a esclarecer que se trata de uma
relação de conflito constante, uma luta pela manutenção de um “lugar de fala” que se
traduz em “lugar de poder”.

4.2.1. Fealdade

Trecho em destaque Autor


“Figuras patibulares, entre as quais grande TEÓFILO, p. 84
número de negros de porte fora do comum e de
feia catadura; eram crioulos dos sertões de
Pernambuco, quase gorilas no aspecto e na
ferocidade”
“Era cada uma figura lombrosiana” TEÓFILO, p. 84
“Podia-se, pelo trajo, avaliar não só sua posição TEÓFILO, p. 125
como sua moral”
“Mais antipáticas, mais repelentes, mais sujas” TEÓFILO, p. 80

495
TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza. Preconceito racial em Portugal e no Brasil Colônia. 2 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
496
SILVA. Bruno. Inventários do homem americano: viagens, teorias, degeneração e composição das
raças nos séculos XVII e XVIII. (Tese) Doutorado em História. UFF - Universidade Federal Fluminense,
2015, 369f. p. 229.
221

Sobre a Beata Maria de Araújo:


Trecho em destaque Autor/Obra
“A mulher de que falamos, se, como me dizes, PEIXOTO (2011), p. 41
eu creio, é um produto, um cruzamento das
duas raças mais detestáveis, não pode deixar
de ser, em todos os sentidos, uma hibridez
horrível”
“monstruosidade feita mulher” PEIXOTO (2011), p. 42

O primeiro item destacado para a elaboração de nossa “coleção de adjetivos”,


nosso léxico, é a fealdade. De uma forma direta e simplificada, o feio é o que desagrada
o olhar, o que não se quer ver, reter, o que não se quer para si. Ora, o que repelimos,
negamos ou escondemos diz muito de nós mesmos: de nosso desconhecimento, medos e
desejos.
Para Umberto Eco497, autor de Uma História da feiura, existe uma formulação
estética que ultrapassa o binômio belo/feio. A superação (ou distorção?) desse binômio é
explorada pelo autor numa ampla visita às obras de literatura e artes plásticas. A feiura,
para Eco, ultrapassa essa dicotomia e guarda singularidades: possui uma feição densa e
historicamente construída, sofrendo as variações e interferências das mais diversas
esferas. Em sua complexidade, a feiura não nega, a princípio, a sensualidade, sendo um
elemento que impõe desafios à percepção de si e do mundo.
Ao longo de sua obra, Umberto Eco explora a percepção de que o feio não nega a
libido, ao contrário, pode representar o apetite pelos prazeres carnais. O feio não é a
quintessência da maldade, há na literatura e nas artes em geral a figura do monstro de bom
coração ou sensível. Há ainda a feiura risível, feita jocosa num exercício de
enfrentamento/negação das nossas próprias limitações físicas. Daí as formas apelativas,
espirituosas, teatrais que a associam a processos naturais como o envelhecimento ou às
limitações físicas oriundas de condições de saúde que nos convidam a enfrentar ou encarar
nossa própria finitude e fragilidade.
A oposição aparência versus essência é um tema clássico, sobre o qual dispomos
da contribuição de Platão. Na passagem retratada a seguir, o belo Alcebíades discorre

497
ECO, Umberto. História da feiura. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007.
222

sobre a aparente feiura de Sócrates498 e, ao mesmo tempo, exalta sua própria beleza com
o intuito de seduzi-lo. A resposta de Sócrates à investida do belo Alcebíades ressalta a
distinção entre a visão do pensamento e a dos olhos:

— Caro Alcibíades, é bem provável que realmente não sejas um vulgar,


se chega a ser verdade a que dizes o meu respeito, e se há em mim algum
poder pelo qual tu te poderias tornar melhor; sim, uma irresistível beleza
verias em mim, e totalmente diferente da formosura que há em ti. Se
então, ao contemplá-la, tentas compartilhá-la comigo e trocar beleza por
beleza, não é em pouco que pensas me levar vantagens, mas ao
contrário, em lugar da aparência é a realidade do que é belo que tentas
adquirir, e realmente é “ouro por cobre” que pensas trocar. No entanto,
ditoso amigo, examina melhor; não te passe despercebido que nada sou.
Em verdade, a visão do pensamento começa a enxergar com agudeza
quando a dos olhos tende a perder sua força; tu porém estás ainda longe
disso.499

Já a feiura à qual se referem os narradores do Juazeiro, nossos interlocutores,


possui uma conotação que compreendo como escárnio e vilipêndio. A influência dos anos
de colonização e as formas de poder que oprimiram e controlaram o contingente de
escravizados deixou uma marca profunda na forma como são vistos, aceitos e percebidos.
Há uma inegável construção dessa relação com a percepção do que vem a ser o “outro”.
Para Verônica Silva, pensar o que seria uma “estética brasileira” é ver um combate
às vezes sutil, às vezes ruidoso que tenta abarcar e absorver diferentes facetas, diferentes
tonalidades, olhares e representações. Ainda para a autora, enfrentar a construção social
da “feiura” fortalece a democracia:

O conceito do feio é um conceito dinâmico, temporário e nômade


presente nos espaços materiais e imateriais do cotidiano, residindo na
interseção móvel das dobras formadas pelas estratégias de poder. A
noção da categoria feio é demarcada no tempo histórico e por valores
que legitimam e constituem a noção do indivíduo feio. A existência da
fealdade é dada por uma importante triangulação: visibilidade,
aparência e a imagem; no modo como vemos o feio e como somos
vistos. É no jogo da visibilidade e da invisibilidade que a categoria do

498
Em sua obra O Nascimento da Tragédia, Nietzsche explora a oposição apolíneo x dionisíaco. Nessa
obra, Sócrates é descrito como uma figura-chave para compreender que “ser” passa a ser mais relevante
que “parecer”.
499
PLATÃO. O banquete; ou Do amor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 53.
223

feio estabelece sua dinâmica, em um movimento de fluxo e refluxo


estético.500

O belo é um lugar de poder. Adentrando a seara da História Social, cabe discutir


em que medida o campo de disputas que envolvia os moradores e romeiros de Juazeiro
do Norte se expressa na distinção de suas figuras como feias ou desagradáveis.
Esse preconceito ecoa até hoje. Em meu trabalho, diretamente com romeiros, na
Secretaria de Turismo e Romaria daquela cidade, deparei-me diversas vezes com
comentários acerca das formas de vestir, dos hábitos de higiene e das peculiaridades dos
fiéis. Tais observações eram consideradas jocosas por alguns, mas eram entendidas por
mim e por alguns outros como um incômodo e descabida ofensa. Sua permanência
apresenta o quanto esse olhar, que um dia foi externo, acerca da cidade de Juazeiro do
Norte, hoje está entranhado nas camadas médias urbanas como um inexorável
autoestranhamento, fruto do despreparo para lidar com a complexidade do fenômeno das
romarias.
Antes de analisar o conteúdo das citações elencadas, vale citar uma passagem em
que Lourenço Filho descreve uma única figura bela diante da multidão de romeiros que
cercava a casa do Padre Cícero, na ocasião de sua visita a Juazeiro:

[...] expressões dos mais díspares caldeamentos de raça ali se


confundiam, no entanto, e apenas um ou outro semblante mais puro
ressaltava. Tal impressão não subsistia, porém, depois de mais
demorado exame. Podia notar-se que aquele ajuntamento ululante se
deixava dividir em várias castas, mais ou menos distintas, segundo as
condições de vida, raça e proveniência de cada um e, de modo
especialíssimo, quanto ao estado de espírito do momento. [...] Entre
estes, uma adolescente, cujo perfil quase puro e tez menos tisnada
destacavam-na, como uma flor de estufa em campo agreste. Lívida e
impassível, lembrava uma imagem de Madona.501

O destaque à beleza da jovem cuja tez era “menos tisnada” revela que o olhar do
visitante estava atento ao reconhecimento do belo, relacionado à cor da pele. Tisnado
significa manchado, escurecido, enegrecido. O realce que Lourenço Filho deu à figura da

500
SILVA. Verônica Guimarães Brandão da. A Cultura Brasileira do Feio: Por uma noção de beleza
ampliada. (Tese) Doutorado em Comunicação Social - linha de Imagem, Som e Escrita. Brasília, 2007,
UNB, p. 199.
501
LOURENÇO FILHO, 2002, p. 45.
224

jovem de pele clara, nos leva a crer que uma multidão predominantemente mestiça estava
em Juazeiro por ocasião de sua visita.

4.2.2. Periculosidade

Trecho em destaque Autor


PEIXOTO (2011), p. 170
“[...]capitão de infames, de bandidos e celerados
[...] Tão grandes exemplos de maldade e
banditismo”.
PEIXOTO (2011), p. 53
“[...] de assassinos, de desordeiros, de rufiões e de
ladrões de cavalo que, perseguidos pela polícia
dos estados vizinhos, ali se refugiam sob a guarda
e proteção do padre Cícero”
“[...] híbrido de celerados e bandidos, de brutos e PEIXOTO (2011), p. 53
matadores”
“Sinistras e grotescas eram as figuras dos TEÓFILO, p.80
bandidos”
“Eram verdadeiras bestas” TEÓFILO, p.1 25
“Cacodemoníaca” LOURENÇO, p. 71 (apoia-se em
PEIXOTO)
“Solerte embusteira” ANSELMO, p. 160 (refere-se à beata,
remete a PEIXOTO)

No contexto do pós-abolição, efetivou-se a desagregação da escravidão com a


consequente “[...] falência das práticas tradicionais, como garantir que os negros, agora
libertos, se sujeitassem a trabalhar para a continuidade da acumulação de riquezas de seus
senhores/patrões?”502 A relação de mando fora rompida e o controle poderia ser exercido
pela disciplina do trabalho. Com as dificuldades implicadas na situação do ambiente rural
que cercava nosso cenário de Juazeiro do início do século XX, revelaram-se ainda mais
fissuras nesse “controle” almejado pelas elites e pelas instituições públicas.
A noção de “classes perigosas” foi incorporada pelas elites brasileiras quando
colocadas diante dessa tensão. O perigo que rondou a mente das elites não é mera
projeção, partiu do enfrentamento e das novas condições sob as quais as relações de
trabalho se efetivariam. Tyrone Cândido577 considera que “[...] com o passar do tempo
tornou-se um conceito para enquadrar camadas mais amplas das populações carentes, até

502
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das
225

o ponto de não ser mais possível se delimitar as fronteiras entre o que era ser ‘pobre’ e o
que era ser ‘perigoso’”. A noção de “periculosidade” surge daí, numa nova configuração
que aciona e amplia o potencial risco da presença dos pobres, vistos como criminosos em
potencial, adverte Robert Pechman578.
Formada por pessoas oriundas de diversas partes, vindas sob as mais diversas
circunstâncias e aglomeradas de forma quase improvisada, a emergente urbe dos romeiros
era considerada um lugar perigoso. O Padre Cícero teria dito estas palavras numa prédica
presenciada por uma testemunha que as registrou:

Vocês que vêm de suas terras distantes, do sul de Alagoas e


Pernambuco, dos brejos da Paraíba, das praias do Rio Grande do Norte
e deste estado, ou dos longínquos sertões do Piauí, Maranhão e Bahia,
sofrendo privações, a fome, a sede o sol e as intempéries os longos
caminhos. 579

O temor expresso nos registros encontrados é um sentimento cujo contorno


impreciso não impede uma problematização ou questionamneto. Era fruto, sem dúvida,
da desconfiança fundada no temor das massas populares não submetidas a um controle
evidente e rígido. Ao explorar as dificuldades de se trabalhar com a categoria medo, Célia
Azevedo adverte:

Recuperar o medo como dimensão da história não é tarefa fácil. Não é fácil,
em primeiro lugar, porque esta dimensão dificilmente se encaixa

Letras, 1996, p. 23-24.


577
CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Proletários das secas: arranjos e desarranjos nas fronteiras do
trabalho (1877-1919). (Tese de Doutorado) - Universidade Federal do Ceará, 2014, p. 152.
578
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2002, p. 279; sobre o medo dos pobres no Antigo Regime, cf. DELUMEAU, Jean. História
do medo no Ocidente (1300-1800): uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 579
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, Mito e Realidade. Editora Civilização brasileira S.A, Rio de Janeiro
1968.Coleção retratos do Brasil, volume 66. p. 242, na nota de rodapé número11.
em modelos metodológicos. Tal como nos filmes de Hitchcock, as ações
deslanchadas pelo medo geram outras ações tão inesperadas quanto as
primeiras e assim, a despeito das tentativas de planejar, de racionalizar
os atos do presente em função do futuro, nunca se consegue alcançar
exatamente o que se pretendia. Em segundo lugar, porque trata-se de
uma dimensão oculta, raramente reconhecida por aqueles que
vivenciaram o momento histórico pesquisado.503

503
AZEVEDO, Célia Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 19.
226

Para a autora, o sentimento de medo aparece de relance sendo perceptível através


de alguns documentos históricos, mas é muito raro que seja reconhecido como motivação
profunda daquele que fala. Infere-se, portanto, pelo estilo e escolha de determinadas
expressões, pela expressão de um medo que o autor sente ou, ainda, que deseja provocar
no leitor. O medo advém da percepção do outro como perigoso, daí a necessidade de
entendermos Juazeiro descrito pelo nosso elenco de autores como uma terra habitada por
uma “classe perigosa”. As situações extremas vivenciadas durante a guerra de 1914 são o
foco narrativo das passagens mais dramáticas, porém, a violência e temeridade seriam
frutos de uma conjunção doentia provocada pela “alienação religiosa”, uma espécie de
histeria coletiva, interpretação baseada nos parâmetros científicos da época.

A intriga política que explodiu em 1914 serviu de fonte para um


discurso depreciativo acerca do sertão e de seus habitantes, que
passavam a ser vistos também como baderneiros e até criminosos e,
para Lourenço Filho, esses sertanejos não se tornavam vândalos por
motivações políticas, era alienação religiosa que lhes provocava este
tipo de comportamento.504

A contribuição de Sidney Chalhoub505 em Cidade Febril ajuda-nos a compreender


e situar o conceito de “classes perigosas”. A origem do termo, segundo o autor, remonta
à primeira metade do século XIX num contexto que se referia a pessoas egressas das
prisões 506. No Brasil, a expressão já era um tema presente nos debates parlamentares
ocorridos na Câmara dos Deputados do Império do Brasil, no período imediatamente
posterior à Lei Áurea, em maio de 1888: “[...] Preocupados com as consequências da
abolição para a organização do trabalho, o que estava em pauta na ocasião era um projeto
de lei sobre a repressão à ociosidade”507.

504
MOREIRA, 2008, p. 17.
505
CHALHOUB, 1996, p. 20.
506
“A escritora inglesa Mary Carpenter, por exemplo, em estudo da década de 1840 sobre criminalidade e
“infância culpada” – o termo do século XIX para os nossos "meninos de rua” –, utiliza a expressão
claramente no sentido de um grupo social formado à margem da sociedade civil. Para Carpenter, as classes
perigosas eram constituídas pelas pessoas que já houvessem passado pela prisão, ou as que, mesmo não
tendo sido presas, haviam optado por obter o seu sustento e o de sua família através da prática de furtos e
não do trabalho”. (Ibid., p. 20)
507
Ibid., loc. cit.
227

A noção de perigo estava solidamente ligada à cor da pele e encontrava respaldo


no discurso científico da época. Parecia inescapável ao mestiço, ao negro a pecha de
potencial perigo que lhe era imposta pela ciência e que ganhava eco nas diversas
descrições da Juazeiro do Norte de outrora.

Juazeiro era uma povoação sem importância alguma. Foi-se pouco e


pouco povoando com os bandos de “romeiros” chegados de toda a parte
e, hoje, forma o centro mais populoso do Ceará, depois da capital. Os
moradores do Juazeiro compõem-se de uma melange de habitantes dos
sertões do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
Sergipe e norte da Bahia.
Todos esses habitantes são indivíduos de aspectos selvagens,
acreditando fanaticamente na missão divina do padre Cícero e na
infalibilidade de suas predições.
O curioso, porém, é o que o reverendo não faz por ser adorado: limitase,
apenas, a receber de boa mente os presentes que lhe são oferecidos e
não procura meios de evitar o culto que o baixo povo lhe rende. “Como
ninguém é profeta em sua terra”, o padre Cícero não fez exceção a esta
regra; é, pois de notar que não haja um filho do Ceará que não condene
os fatos de Juazeiro, sendo para acrescentar que as populações do norte
do Estado lhe votam um verdadeiro ódio.
Em 1911, depois de serem bastante discutidas as ameaças e rivalidades
entre os povos do Cariri, a Assembleia Legislativa do Ceará elevou à
categoria de vila a povoação de Juazeiro. O padre Cícero assumiu,
então, perante o governador Accioly, um papel importante na política
do Ceará, sendo afinal eleito e reconhecido 3º vice-presidente do
Estado, em consequência do acordo pelo qual foi empossado o coronel
Franco Rabello na presidência.
O governo no Ceará, porém, achou de bom aviso, depois de bem estudar
o caso, firmar-se na opinião pública do Ceará a qual está acorde em
firma:
“Juazeiro é um perigo!”508

A notícia acima transcrita teve como introdução a descrição da cidade habitada


por 40 mil pessoas, já se configurando como o segundo maior núcleo urbano do Ceará
depois da capital, Fortaleza. Juazeiro desponta na descrição rejeitada pelo restante do
Ceará por ser um ajuntamento, uma “melange” de pessoas do “baixo povo”. Temê-los era
a resposta, já que os mecanismos de controle pareciam não funcionar ali. O trecho
descreve o momento no qual a cidade, recém-emancipada, via seu líder projetado ao cargo
de terceiro vice-presidente do estado. Essa mesma articulação política criou o ambiente
hostil que fez explodir o conflito de 1914. Muito do que se fala da periculosidade dos

508
BNDigital Jornal do Commercio, RJ, Nº 362, 30/12/1913, p. 8/Coluna Revista dos Estados, Ceará.
228

romeiros, na verdade se refere aos grupos armados, ditos jagunços, que se engajaram no
conflito e atravessaram o Ceará do sul ao litoral em combates, pilhagem e crimes. Daí o
que, no período descrito, era um temor ou rejeição, passa a ser um fato para as vítimas do
confronto.

4.2.3. Insalubridade

Trecho destacado Autor/Obra


“ali se acreditava serem realmente loucos certos ANSELMO, p. 261, apoiado em
indivíduos, particularmente negros ou mestiços” DINIZ

“preto fanático” LOURENÇO, p. 74 (refere-se ao


Beato José Lourenço)
“sujos e abatidos” LOURENÇO, p. 45

“faces maceradas” LOURENÇO, p. 47

“ambiente de demência” LOURENÇO, p. 47

ambiente de insânia LOURENÇO, p. 46

estúpido rebotalho humano, LOURENÇO, p. 47


ensandecido e explorado
LOURENÇO, p. 42
arraial sórdido e miserável, sem higiene e sem
trabalho, abrigo de peregrinos e de cangaceiros da
pior espécie, de doentes e malucos.

“aglomeração de gente maltrapilha e suja” PEIXOTO (2011), p. 48


PEIXOTO (2011), p. 49
“Miseráveis, homens somente no nome, homens
que mais semelham vermes a pulularem dos
tremedais, encontram-se ali em verdadeiros
enxames; múmias surgindo de todos os cantos;
cadáveres transitando por todas as ruas; esqueletos
esmolando de porta em porta a caridade pública”
PEIXOTO (2011), p. 42
Maria de Araújo que deve estar hoje pelos seus
cinquenta anos, é de estatura regular; brunduzida,
triste, vagarosa, entanguida, essencialmente
caquética, porque tem ela uma série ascendente de
caquéticos ou tuberculosos.
229

A obra Cidade Febril, de Sidney Chalhoub 509 , inscreve a questão da saúde numa
perspectiva ampla considerando as tensões de classe e as políticas de dominação, tomando
o tempo histórico em sua complexidade. Inspirando a necessidade de perceber a história
da ciência dentro desses parâmetros, evidenciando que saberes e práticas científicas não
orbitam isoladamente, estão inseridos nas tensões e contradições do tempo histórico. Para
o historiador Jucieldo Alexandre:

As enfermidades devem ser analisadas como fenômenos que


ultrapassam a esfera do natural, porque são vivenciadas a partir de
diferentes contextos e espaços, sendo interpretadas socioculturalmente
pelos sujeitos históricos, que encetam múltiplas representações e
práticas na busca de dar sentido às mesmas.510

O autor discute a epidemia de cólera no Crato nos anos de 1855 a 1864, baseado
no periódico cratense O Araripe. Durante a epidemia que dizimou milhares de vidas,
também faleceram o pai do Padre Cícero Romão Batista e de José Marrocos. Foram duas
ondas epidêmicas do Cholera morbus na província do Ceará; em 1862 chegou a deixar
11 mil mortos, sendo aproximadamente 1.100 no Crato; já em 1864, estima-se em 1.252
vidas ceifadas pela doença naquela cidade.
A pobreza, as precárias condições de saneamento e o constante fluxo de pessoas,
indiscutivelmente transformavam Juazeiro do Norte num ambiente propício para os
problemas de saúde pública. O propósito dos autores discutidos neste capítulo, ao falarem
de aspectos da saúde dos romeiros e moradores de Juazeiro, não é discutir ou denunciar
as tais condições precárias. A doença ou a debilidade física são mencionadas enquanto
características dos sujeitos descritos como parte de um cenário doentio e infeccioso.
A saúde mental dos personagens é foco de muitos dos comentários, com destaque
para a percepção de Lourenço filho, que defende claramente a ideia de Juazeiro do Norte
como um ambiente propício ao desenvolvimento e ao agravamento dos males
psiquiátricos. Como vimos no terceiro capítulo, a afluência de pessoas com transtornos
mentais era real, porém, não ficava sem resposta. Eram, na medida do possível, acolhidas
com um mínimo de dignidade e liberadas para circular pela cidade.

509
CHALHOUB, 1996.
510
ALEXANDRE, Jucieldo F. Quando o “anjo do extermínio se aproxima de nós”: representações sobre
o cólera no semanário cratense “O Araripe” (1855-1864). Dissertação de Mestrado. João Pessoa, PB:
UFPB, 2010.
230

“Negra ignorante” é a forma pela qual o padre Antônio Gomes511, em artigo na


revista do Instituto Cultural do Cariri (Revista Itaytera-1956), referiu-se à beata Maria de
Araújo. Pude contar sete vezes nas quais repetiu as mesmas palavras. Trata-se do
“Apostolado do embuste”, artigo que também foi pulicado em livro. A obra visava apontar
as fraudes nos fenômenos de 1989, acusar José Marrocos de falsificação e Maria de
Araújo como comparsa. Ao traçar sua acusação, menciona repetidas vezes o fato de
ambos serem mestiços. Em certa medida, deixa o padre Cícero como vítima da trama do
que chamou “equipe dos caribocas”, pois o padre teria sido enganado pela farsa de
Marrocos e pela atuação de Maria de Araújo como uma atriz por ele instruída. O texto
reverbera a carga de racismo já presente nos autores até aqui explorados. Trata-se, por
assim dizer, de um exemplo paradigmático. Padre Gomes era vice-presidente e
cofundador do Instituto Cultural do Cariri, sócio correspondente do Instituto do Ceará,
professor de História e autor de vasta bibliografia. É também o nome homenageado pelo
Departamento Histórico Diocesano do Crato, criado no ano do seu centenário. São
diversas esferas e lugares ocupados por um autor que, em plena década de 1950, ainda
recorria ao argumento da raça como critério de inferioridade para lançar dúvidas sobre os
fatos do Juazeiro.
A retomada de tais argumentos e a entonação semelhante à de Alencar Peixoto, Rodolfo
Teófilo e Lourenço Filho são fruto da permanência desse léxico entre os intelectuais
cearenses. As reverberações dos argumentos em outros contextos e momentos e sua
utilização mesmo em tempos nos quais o higienismo e as teorias racistas já não
encontravam eco ou reconhecimento, provam sua longevidade.
No registro de impressões sobre sua passagem por Juazeiro, Lourenço Filho
deixou registrado que “[...] não raro um ‘Viva o meu Padim Ciço’ esparrama-se a carvão
pela parede mal caiada, com muito fervor e nenhuma ortografia.”589 O contraponto é a
falta de fé dos autores, aqui destacados como narradores do Juazeiro, nos sujeitos que
fizeram aquele lugar existir e pulsar tão fortemente. Estavam lá, apesar de tantas e
inegáveis mazelas, limitações e falta de estrutura. Os intelectuais não acreditavam no
futuro da cidade, das pessoas herdeiras de males associados à sua origem, atávicos,

511
Antônio Gomes de Araújo (6/01/1900- 26/01/1989). Sua formação foi no Seminário Menor do
Seminário Arquiepiscopal do Ceará (Fortaleza). Em 1922 ingressou no curso superior do Seminário Maior
no Seminário Episcopal do Crato. Ordenado em 17 de abril de 1927. No período de 1927 a 1932 lecionou
História Eclesiástica e Filosofia nos cursos secundário e superior do Seminário do Crato. De 1929 a 1930,
História, na Escola da Associação dos Empregados no Comércio, e de 1930 a 1960, História, Latim e
Português, no Ginásio do Crato, atual Colégio Diocesano. 589 LOURENÇO FILHO, 2002, p. 40.
231

condenados, limitados. A descrição descrente foi muito bem elaborada, se pensarmos


nas normas da língua culta e nela sobrou ortografia e faltou fé.
As impressões quanto aos romeiros e migrantes que se agregam para formar a
urbe juazeirense são interpretadas pelo apelo insistente à lente naturalista, interpretação
assumidamente inspirada em Euclides da Cunha. Em obra editada no ano de 1928,
Gustavo Barroso512 expôs:

O que acontece hoje no Joaseiro do padre Cícero, por exemplo,


necessariamente se filia ao que outrora se passou nessas regiões centrais
do Nordeste: explosões de misticismo, núcleos de fanatismo rude
geradores de ociosidades perniciosas e de tartufismos grosseiros [...].513

Em seu livro Almas de lama e aço, Gustavo Barroso falou da necessidade de uma
pesquisa mais apurada sobre os fenômenos místicos do Nordeste brasileiro. Sua
percepção do assunto está baseada numa causalidade, relacionada às condições inerentes
ao sertanejo e suas formas de ser e de crer. No capítulo intitulado “Dom Sebastião no
Nordeste”, depois de relatar os trágicos fatos da seita em torno da Pedra bonita/Pedra do
reino, consegue enxergar um paralelo com o Juazeiro:

Eis aí resumidíssima a história dos prodígios causados por D. Sebastião


no nosso sertão nordestino. É um documento que servirá para a história
do misticismo sertanejo. Depois de meditar sobre ele, compreendemos
melhor o meio que cerca as figuras do Conselheiro e do padre Cícero, e
essas próprias figuras.514

A questão da organização social e da fé das gentes do sertão foi de difícil


compreensão para os que tentaram interpretá-la. O esforço de Barroso, já escrevendo no
final da década de 1920, se dá no intento de construir uma relação com os fatos que, à
época, já distavam cem anos no tempo. Não se trata de um simples anacronismo e sim,
da reedição do alerta de perigo em torno dos “perigosos” ajuntamentos dessa gente que
tinha pouco a perder e reunia muita fé e esperança.

512
Gustavo Adolfo Luiz Guilherme Dodt da Cunha Barroso (29/12/1888–3/12/1959), advogado, professor,
político, folclorista e escritor. Destacou-se como um dos líderes nacionais da Ação Integralista Brasileira,
sendo considerado um ideólogo do movimento.
513
BARROSO, Gustavo. Almas de Lama e de Aço. São Paulo: Melhoramentos, 1928, p.16.
514
Ibid., p. 23.
232

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Suspeitamos que pode existir um caminho quase ascendente na construção de uma


pesquisa e na elaboração de um texto. Não trataremos disto aqui. Aqui, nada foi
acumulativo ou linear. Não contemplo esta tese de um mirante pacífico, mesmo neste
momento de tecer considerações finais há maravilha e desafio em cada retomada de
tópico, como outrora houve maravilha e desafio na construção destes mesmos tópicos.
Olhar de frente, encarar, é o primeiro passo para enfrentar algo. No começo, o tom de
desafio, ou até um certo amargo, não permeavam o projeto que desembocou nesta tese.
Não. Era festa, era reza, alegria, encontro. Eram as romarias como eu as vi, tal como
desfilavam suas cores e sons na minha frente. O amargo se derramou depois, quando da
articulação desta pesquisa com vistas a discutir e tentar conhecer as primeiras levas de
romeiros. Como era aquele tempo? E o que de lá escorre é o fel do racismo, ainda
perceptível, ainda danoso. Nosso explorar acabou sendo enfrentar, encarar. As lacunas ou
silêncios pareciam cada vez maiores.
Relacionar romarias e pós-abolição vai além de observar episódios de forma
cronológica, é perceber na romaria um farol vivo de projetos e esperanças, mesmo num
tempo de desafios, incertezas e esgarçamento de relações. Os ares da “liberdade” soaram
em forma de projeto, discurso e se efetivaram numa prática cuja construção ainda se faz
desafiadora. De que me valeriam datas estanques se a largueza do tempo torna visível e
renovada a questão do pós-abolição em seus mais perversos desdobramentos? Um destes
desdobramentos é o racismo, aqui tratado como prática associada à manutenção de lugares
de controle e mando.
Uma das descobertas instigantes deste percurso veio da percepção das presenças
de escravizados e seus deslocamentos, com ou sem seus senhores, em busca de cura e
alento nas fontes curativas do Caldas onde permaneciam por alguns dias. A “fonte
miraculosa”, cujos usos extrapolavam os conselhos do padre Ibiapina, acabou sendo lugar
de rezas, acampamentos provisórios, banhos, unguentos, emplastros. Curas que
misturavam memórias profundas da relação com a natureza ao conselho do padre que, em
certa medida, autorizava uma ida à fonte ancestral do encontro com o sagrado. Outra
leitura possível destes fatos é que ao buscarem a cura na fonte do Caldas sujeitos
233

escravizados buscavam lenitivo para o sofrimento, manifestavam sua fé e agenciaram um


espaço para si no meio das pressões e vigilâncias que os cercavam. Tal busca não deve
ser desconsiderada no rol das estratégias de sobrevivência empreendidas por aqueles
sujeitos.
O papel do padre Ibiapina e sua missão com efetivo caráter de amparo e de solução
pragmática para males e dores dos mais frágeis, agenciou em torno de si mobilizações
para iniciativas como as casas de caridade. Denotando assim um largo grau de autonomia
e engajamento no enfrentamento de questões urgentes do seu tempo. Observamos que
conselhos sobre a humanização das relações entre senhores e escravos, o reconhecimento
da necessidade catequese do escravizado e até a divulgação de alforrias estão presentes
no jornal A voz da Religião no Cariri, revelando uma aproximação entre caridade e
revisão da relação senhorial. Tal situação, mesmo se manifestando através de iniciativas
individuais, não deixou de associar (ou divulgar) o sentimento cristão, piedoso, com
relação à condição dos escravizados. Estas soluções e iniciativas, apesar de dirigidas por
um clérigo, não estavam em plena consonância com o perfil adotado pela Igreja católica
no Brasil daquele período.
Na província do Ceará, em meados do século XIX, se instalava uma diocese aos
moldes do modelo ultramontano para suprir uma província carente de clérigos instruídos
e coordenados pela direção romana. Ao mesmo tempo, a figura do padre Ibiapina
mobilizou em torno de si, mais que a devoção animada de suas missões, havia uma aura
quase utópica do que se poderia construir com as próprias mãos recursos presentes para
vencer os grandes males da fome, sede e desamparo de órfão. Padre Cícero foi seu grande
herdeiro, preenchendo o vazio de seu desaparecimento, ocupando um lugar importante
para os libertos no pós-abolição.
O marco comemorativo da abolição cearense pode ser descrito como um evento
para o qual o ex-escravizado não foi convidado. O fato é que o Ceará em sua abolição
anterior à Lei Áurea, foi também precoce no apagamento das figuras, no estabelecimento
de limites e na exposição das tensões criadas pela presença daqueles por tanto tempo
subjugados e castigados. A grande festa resguardou diferentes papeis, não era uma
comemoração aberta ou plena. De forma emblemática, celebrou-se a liberdade com zelo
e resguardo. Foram solenidades públicas, jantares e missas, diversas ocasiões propostas e
vividas por um grupo que se auto referia protagonista da emancipação. A festa,
234

observamos, foi um ato político pensado e protagonizado pelos “libertadores” brancos


com espaços medidos para a presença dos ex-escravizados.
Temia-se o destino dos “livres” e os mecanismos de controle ganharam novas
configurações. A documentação demonstrou que já no discurso de saudação à
emancipação, o bispo Dom Joaquim apela à atenção e conservação da atividade laboral
como desígnio divino. Mesmo esta liberdade que despertava temores e vigilâncias,
mesmo esta precária formatação, teve seus entraves justamente na região ao sul da
província cearense, no Cariri. Ali registram-se os últimos núcleos de resistência à onda
emancipacionista e o caso de Milagres, cidade que forjou documentação falsa, com apoio
de autoridades locais, para manter em sigilo a manutenção de quase duzentos
escravizados. Vimos a fragilidade da argumentação que justificava um “tardio eco
abolicionista” no Cariri, tal construção não leva em conta personagens, intensa circulação
de pessoas e informações. A mácula escravista em certa medida envergonhava o
intelectual que tentou defender esta premissa, mas é uma mácula perceptível em sua
potência e seus desdobramentos.
O anúncio dos “fatos extraordinários”, divulgação que animou as primeiras
romarias a Juazeiro. Tratava-se de um fenômeno manifestado por uma jovem mulher
negra. Os posteriores processos criados para investigar os fatos demonstraram que
fenômenos como êxtases, visões e sangramentos estavam presentes desde a infância da
beata. A divulgação dos fatos vivenciados da exata Semana Santa de 1889 revelam que
talvez fosse aquele o ambiente de aceitação de tais fenômenos, protagonizados por uma
mulher negra. O Brasil já conhecia a Lei Áurea. Estaria aí um agente a mais na divulgação
dos fatos do Juazeiro? Esta é uma questão fundante e está imbricada com as outras: que
catolicismo era aquele que negou e abandonou Maria de Araújo? Como se insere numa
sociedade marcada por hierarquias e racismos a emergência de um aglomerado de pessoas
que, em torno da liderança de um padre afastado, organizam vida, fé e trabalho?
Àquela altura as atitudes do padre Cícero como pároco já eram direcionadas a
ações extra-clericais, em certa medida imitava o exemplo do padre Ibiapina, acudindo em
situações de precariedade, estimulando trabalhos coletivos e outras iniciativas
pragmáticas com vistas a prover com uma atenção que extrapolava sua estrita obrigação
como padre.
Observamos que o padre Cícero nos dias do “milagre” já era um homem que
transitava entre diferentes interpretações do papel do Igreja. De um lado vivia uma
235

obediência forjada no Seminário da Prainha e estimulada por sua proximidade com o


primeiro bispo do Ceará Dom Antônio Luís, atuava de forma rigorosa e ao mesmo tempo
submissa aos desígnios da Igreja. Ao mesmo tempo praticava a proximidade com os fiéis,
circulava, ouvia, organizava, aconselhava, pedia socorro para acolher os que mais sofriam
com as estiagens. Neste sentido, aproximava-se da figura do padre Ibiapina, cuidava de
organizar frentes de trabalho, estimulava a produção nos roçados de mandioca,
mobilizava grupos para a construção de açudes.
Em certa medida, o engajamento e a proximidade concreta com as necessidades
mais fundamentais alicerçaram seu trânsito para a política que se deu no período de
aprofundamento das rupturas e as limitações imposta pelas punições. Voltamos a 1889
para reforçar que foi dali, da manifestação mística protagonizada pela beata Maria de
Araújo que uma série de eventos se desenrolou. A princípio o resultado do segundo
processo que considerou “prodígios vãos e supersticiosos” que implicavam “gravíssima
e detestável irreverência e ímpio abuso à Santíssima Eucaristia”. Tal veredito impôs um
rigoroso isolamento tanto à beata quanto ao padre Cícero. Outra consequência foi a
disseminação da notícia, fazendo fluir esta espécie de rio subterrâneo que alimentou as
romarias. O amparo dado aos peregrinos, aos errantes ou até mesmo àqueles que
buscavam um meio de vida em juazeiro implicou no fortalecimento de uma rota de
acolhimento. Esta rota fluiu ao longo dos anos, transformada e renovada alimentando as
romarias.
O acolhimento do padre Cícero, que transitava entre zelo apostólico e articulação
política agregou em torno de si uma urbe. Não se sabe exatamente quando os romeiros
passaram a desejar viver em Juazeiro, sabe-se que o pequeno distrito se reivindicou
autônomo e em 1911 àquela altura já figurava como uma das mais populosas cidades do
interior do Ceará. E ali, acusam os críticos, se misturavam gentes de todas as origens,
gente sem “nome”, gente mestiça e pobre. “Juazeiro é um perigo”, “ nova Canudos”,
novos fanáticos da “Pedra Bonita” Tinha tudo para dar errado. Loucos, doentes, pretos,
pobres, rejeitados e desacreditados socialmente
Era difícil aceitar que a fé e a liberdade pudessem ser vividas/experimentadas
plenamente por um grupo que, aos olhos de seus antigos senhores ou dos potentados
locais, mereciam controle vigilante e chibata. Assenhorar-se do destino, forjá-lo, era uma
oportunidade que poderia ser vivida na cidade romeira, sob o abrigo do padre prefeito,
líder da resistência cearense e diretor espiritual de beatas negras, uma delas obreira de
236

visões e milagres. Diferenças também prevaleceram, engendraram-se hierarquias


próprias, os desdobramentos do padre-político tiveram consequências, houve pobreza,
fome. Não se trata de um idílio, não almejamos fazer retrato contrário, mas problematizar
a presença dessa gente que experimentou nos primeiros anos de liberdade a possibilidade
de um acolhimento, mesmo que precário.
É inegável que por aqueles tempos do início do século XX circulou pelo Juazeiro
um sabor de potência e liberdade experimentado em poucos outros lugares. Estavam os
beatos pretos no altar, trabalhavam na lavoura, organizavam festas, viviam e circulavam
pela cidade que ajudavam a criar. Considerar isso é vislumbrar um rasgo de aproximação
com a força acolhedora que alimenta o sentimento dos romeiros que se mantém viva e
ativa até os dias correntes.
237

REFERÊNCIAS

ARQUIVOS CONSULTADOS

Arquivo do Departamento Histórico Diocesano Padre Antônio Gomes de Araújo-


DHDPG. Crato-CE:
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Ibiapina.
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Cícero anexada ao processo,
• Cópia Autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro
Arquivo Público do Estado do Ceará - APEC. Fortaleza, Ceará:

APEC- Fundo o Palácio Episcopal do Ceará/Bispado Cearense


• Caixa 2 Volumes 1 e 2 Data: 1870-1916/Série: Ofícios expedidos pelas diversas
freguesias cearenses/ Grupo: Vigários das freguesias do Ceará

(17/12/1892) Agradece a doação de 02 contos de reis ao Colégio da


Imaculada Conceição. Carta destinada ao Secretário de
Fazenda do Ceará
(14/05/1872) Autoriza o senhor Manuel Francisco Albano a receber os
honorários dos professores do Seminário Episcopal.
Data ilegível Agradece doação de 03 contos e quinhentos mil reis, parte
da apuração da loteria doada ao Colégio Imaculada
Conceição. Assinado pelo Bispo Dom Joaquim
(08/04/1893) Agradece a doação de 03 contos de reis a serem
distribuídos pelas Casas de Caridade existentes no interior
do Estado. Assinado pelo Bispo Dom Joaquim. Expressa a
quantia destinada a cada uma das Casas de Caridade.
(18/06/1872) Informe a Thezouraria Provincial. Sobre o pagamento dos
professores do seminário Episcopal.
(03/10/1878) Sobre pedido da diretoria de Instrução Pública da Província
acerca do Colégio da Imaculada Conceição. Inclui
quantidade de alunas (48 órfãs e 32 pensionistas). Lista
todas as disciplinas ofertadas e quantidade de alunas em
cada uma.
(1870) Composição da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da
cidade do Icó.
238

(Junho de 1881) Movimento da População no primeiro trimestre de 1881 na


Freguezia do Crato. Assinado pelo padre Manoel Joaquim
Aires. Lista as condições: escravos ou livres. Lista as
qualidades: brancos, pardos, pretos ou índios.
(Junho de 1881) Relatório do enterramento de escravos no Cemitério do
Crato. Relatório de casamentos, batizados e óbitos.
(04/07/1881) Lista dos sepultamentos de escravos no Cemitério Público
do Crato entre os anos de 1875 e 1881.
(18/10/1870) Aprovação do compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário da cidade do Crato.
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
da cidade do Crato.
(05/01/1881) Elemento Servil – Ofícios de Vigários.
(28/01/1884) O vigário Bevilaqua de Viçosa pergunta sobre o destino
dos livros de registro “Não havendo mais escravos nessa
freguezia”.
(14/01/1870) Carta do vigário do Crato, dando conta de bens por ele
gerido e das Irmandades daquela freguezia.
(11/06/1866) Lista de Lentes, suas respectivas disciplinas e quantidade
de estudantes no Curso Teológico do Seminário Episcopal
do Ceará.
(08/08/1862) Solicita que seja alugado um prédio para atender as
necessidades do Seminário Episcopal.
(09/07/1881) Carta relatando o óbito de escravos em São Pedro do
Crato (Caririaçu)

APEC_Fundo Secretaria de Polícia do Ceará

• Livro Chefatura de Polícia. Ofícios expedidos/1890 Livro Registro de Ofício


aos sub delegados 1887 a 1891:

(Dezembro de Anotação nº 1559 responde oficio do Crato,


1890) sobre o fanático Manoel Palmeira.
(16/12/1890) Anotação nº 1576 recomenda a captura de
Simplício José Mariz, possivelmente
escondido em Joazeiro.
(17/10/1890) Anotação nº 1177 mudança do sub delegado
do Distrito de Joazeiro.
(17/10/1890) Anotação nº 1180 Nomeação do delgado de
Joazeiro.
(25/01/1891) Anotação nº 139 Comunicação do Delgado
do Crato sobre a ausência de ocorrências no
Crato até aquela data.
(03/06/1890) Transferências de presos do Crato para a
Capital
239

(03/02/1891) Anotação nº 96 Autoriza a aquisição de um


cavalo para a delegacia do Crato.
(06/02/1891) Anotação nº 229 Confirma recebimento de
diversas facas “tomadas do poder de pessoas
do povo” no Crato.
(13/04/1891) Anotação nº 508 Recomenda uma escolta
para condução de presos do Crato para a
Capital.
(04/05/18910) Anotação nº 587 Lista criminosos de vários
estados (Bahia, Pernambuco e Paraíba)
presos no Crato.
(22/06/18910) Anotação nº 790 Mudança de delegado no
Crato.

Relatórios de Presidente de Província:

• Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Ceará pelo


presidente da mesma província, o Coronel graduado Ignacio Correia de
Vasconcellos em o 1.o de julho de 1847
• Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Ceará em o 1.o de
julho de 1848. Ceará, Typ. de Francisco Luiz de Vasconcellos, 1848.

Instituto Cultural do Cariri:

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Instituto Histórico do Ceará Histórico,Geográfico e Antropológico):

• Revista do Instituto do Ceará


• Sessões solenes e pronunciamentos
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University of Florida Digital Collections Home
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• Ralph della Cava collection of microfilms on Padre Cicero and popular religion
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Hemeroteca da Biblioteca Nacional (BNDigital)

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