Dívida Pública - Sumário Desenvolvido - 2022-2023 VF

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A DÍVIDA PÚBLICA

SUMÁRIO DESENVOLVIDO - 2022/2023

M. MATILDE LAVOURAS
Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito
A dívida pública | Sumário desenvolvido

1. A dívida pública
A atividade financeira do estado é moldada pelo princípio da legalidade financeira
que revela uma das dimensões específicas do princípio da legalidade. Às exigências
constitucionais acrescem as exigências legais, nomeadamente as que decorrem da Lei de
Enquadramento Orçamental (LEO) e das demais normas de direito financeiro que
desempenham, ao menos neste domínio, a função de regras especiais ao consagrarem
alguns aspetos de regime que se afastam daquele que é o normativo regra para situações
idênticas. Em matéria de endividamento público essas especificidades são atualmente
bastante menores do que aquelas que já existiram noutros tempos. O estado é atualmente,
na generalidade dos casos, um agente do mercado – mas não apenas mais um agente do
mercado – concorrendo com os demais na busca de fundos para financiar as duas
despesas. Durante muito tempo a dívida pública e a dívida privada distinguiam-se pela sua
própria natureza e pelo regime jurídico diferenciado a que uma e outra estavam sujeitas, distinção
esta que se mantém ainda hoje, mas de forma menos visível1, e que se materializa quase
exclusivamente no processo de decisão subjacente ao recurso ao crédito que é marcado pela
natureza pública do potencial devedor.

O recurso a receitas creditícias para o financiamento de despesa pública remonta,


pelo menos, à Idade Média e às finanças dominiais. Então como agora, permitia obter
receitas para suportar os gastos com as despesas naquelas situações em que as demais
receitas estatuais são insuficientes, questionando-se a legitimidade do recurso a esta
forma de financiamento e a sustentabilidade a médio e longo prazo de um sistema baseado
em receitas creditícias.

A resposta a estes problemas podemos encontrá-la em diversos autores e, embora


encontremos na Escola Clássica inglesa importantes reflexões como a de David Ricardo
retomada por Barro, ainda hoje se mantém aceso o debate sobre os efeitos económicos da
dívida pública e dos mecanismos que permitem minimizar os efeitos nocivos e maximizar
os efeitos positivos decorrentes do financiamento público através de empréstimos2.

1
Para maiores desenvolvimentos veja-se EDUARDO PAZ FERREIRA, Da dívida pública e das garantias dos
credores, Almedina, Coimbra (1995) pp. 20 e ss. e, para um estudo mais aprofundado da perspetiva
histórica DAVID GRAEBER, Debt: the firts 5,000 years, Mleville House Publishing, 2011.
2
David Ricardo defendeu que a opção por financiar a despesa pública com o recurso a impostos no
momento atual ou através da emissão de dívida é, em termos de efeitos sobre a procura agregada e sobre a
taxa de juro, neutral. Na verdade, estamos perante um trade-off, uma escolha, entre aumentar os impostos

1
A dívida pública | Sumário desenvolvido

O caráter nefasto do recurso a endividamento por parte dos estados foi


considerado como evidente pelos autores da Escola Clássica, e nem as conclusões de
David Ricardo puseram fim a este entendimento. A substituição de impostos atuais por
impostos no futuro não permite concluir que o recurso a empréstimos passa a ser uma boa
forma de financiar a despesa pública e que os efeitos nefastos na economia são
eliminados. Esta afirmação permite, apenas, sustentar a conclusão de que os efeitos
negativos decorrentes da cobrança de impostos foram temporalmente adiados. Esta
dilação pode permitir que os mesmos sejam cobrados em momento mais adequado3.

O caráter verdadeiramente excecional do recurso a empréstimos como receita


pública manteve-se durante um larguíssimo período mas, aos poucos, começou a ser
encarado como uma verdadeira alternativa quer ao aumento dos impostos quer à emissão
de moeda. Para esta alteração muito contribuiu o pensamento económico sobre o papel
do Estado na economia e a ideia de que afinal da cobrança de impostos e do recurso ao
crédito não derivam apenas efeitos nefastos. Esta mudança de entendimento levou a que
se retomasse a ideia de Ricardo e que se passassem a estudar as consequências
económicas decorrentes da contração de crédito por parte do estado e sobretudo dos
efeitos decorrentes da despesa pública que com essas mesmas receitas é financiada. Como
bem nota Antonio de Viti de Marco, o que se discute não são os empréstimos em si

no presente por forma a conseguir financiar a despesa ou aumentar os impostos no futuro para efetuar o
reembolso dos empréstimos e o pagamento dos juros e demais encargos com a dívida pública. Esta
neutralidade apenas é possível se considerarmos que, no momento presente, os contribuintes conseguem
antecipar o aumento futuro dos impostos e, por isso mesmo, a poupança privada vai aumentar no mesmo
montante do aumento do deficit orçamental. Se o aumento da procura de fundos por parte do Estado for
semelhante ao aumento dos fundos disponíveis para empréstimo, a taxa de juro mantém-se inalterada. Esta
proposição, designada por Teorema de Equivalência Ricardiana, viria a ser retomada por Antonio de Viti
de Marco e Robert Barro em 1974. Mais recentemente, James Buchanan retomaria a defesa desta
proposição Trata-se de um teorema que não está isento de críticas, desde logo as que se baseiam na
probabilidade de existência de uma transferência intergeracional. DAVID RICARDO, “Essay on the Funding
System”, in JOHN MURRAY, The Works of David Ricardo, McCulloch, Londres (1888), ANTONIO DE VITI DE
MARCO, “La pressione tributaria dell’imposta e del prestito”, Giornale degli Economisti, (1983), 6(4), pp.
38-67, ROBERT BARRO, “Are Government Bonds Net Wealth?”, Journal of Political Economy, (1974) 82
(6), pp. 1095-117 e JAMES BUCHANAN, “Barro on the Ricardian Equivalence Theorem”, Journal of Political
Economy, (1976), 84(2), pp. 337-342.
3
Recorde-se que já Adam Smith falava na necessidade de escolher o melhor momento para a cobrança dos
impostos e, entendia que esse deveria ser um dos parâmetros a considerar na técnica fiscal.

2
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mesmos, mas antes as despesas que com essas receitas são financiadas bem como, mais
recentemente, os limites e as consequências do (excessivo) endividamento público.

A par da sustentabilidade das contas públicas é importante ter ainda em


consideração a solvabilidade do setor privado por se considerar que a autonomia dos
Estados face aos mercados financeiros deve ser determinada por referência a ambos os
indicadores. Apesar das diferenças entre dívida pública e dívida privada não é possível
desligar os efeitos decorrentes do endividamento das empresas e das famílias do
endividamento do setor público. Para os privados as alternativas ao recurso ao crédito
para financiamento da despesa são escassas ou inexistentes e, não raras vezes
condicionadas pelas opções em termos de políticas públicas e dos modelos de
financiamento públicos.

Para uma compreensão mais adequada da dívida pública é importante ter em


consideração as várias formas de dívida pública, o destino dos fundos arrecadados e o
modo como os mesmos são alocados ao pagamento de despesas. Convém não descurar
as questões relacionadas com o momento em que se recorre ao crédito e ao momento em
que se prevê a sua extinção e os efeitos decorrentes da necessidade de pagamento de juros
ou de outras compensações aos subscritores de dívida pública.

Iremos iniciar a nossa análise com uma breve referência à noção, natureza jurídica
e funções da dívida pública para, depois, analisar os efeitos económicos do recurso a este
tipo de receita.

No que às funções da dívida pública dedicaremos especial atenção à função de


distribuição dos encargos com a despesa pública por diversas gerações sendo que a
referência às funções de modificação temporal dos níveis de atividade económica (função
de estabilização), à função de redistribuição dos encargos com a despesa pública entre
diversas gerações, à função de realização de uma distribuição ótima da alíquota fiscal (tax
smoothing) e à função de eliminação das causas das falhas de mercado serão incidentais.

Este trajeto deve permitir responder a às seguintes questões:

(a) Pode a dívida pública ser considerada como uma componente da riqueza
financeira de uma economia?
(b) Uma dívida pública elevada onera as gerações futuras?

3
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(c) Qual o limite máximo da dívida pública?


(d) Em que circunstâncias é mais provável a escalada de uma crise de confiança no
estado, nos casos em que um estado apresente um endividamento elevado (em
percentagem do PIB) ou no início de uma crise financeira?

1.1. Noção de dívida pública: a noção tradicional e a noção alargada relevante para
o direito da União Europeia

Como já referimos supra, as receitas creditícias são uma das categorias de receitas
estaduais, constituindo em alguns casos uma importante fonte de financiamento. Apesar
de poder assumir diversas configurações ou tipos, pode definir-se a dívida pública como
um conjunto de operações de natureza contratual praticadas pelo estado para obtenção de
receitas para o financiamento da despesa pública.

Trata-se, bem se vê, de uma receita de natureza contratual em que este – estado –
recebe no momento da contração do empréstimo uma determinada quantia que se
compromete a reembolsar num momento futuro, acrescida eventualmente de juros ou de
uma outra forma de retribuição. O credor será compensado por esta cedência temporária
de capital com um determinado (acordado) montante de juros. Do que acabamos de referir
infere-se que estamos perante um contrato de mútuo oneroso – art.os 1142.º e 1145.º do
Código Civil4 – que, por ter como devedor o Estado, recebe a designação de dívida
pública. Não estão aqui em causa as situações em que existe um atraso nos pagamentos
de fornecimentos de bens e serviços5.

4
Artigo 1142.º - (Noção)
Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a
segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
Artigo 1145.º - (Gratuidade ou onerosidade do mútuo)
1. As partes podem convencionar o pagamento de juros como retribuição do mútuo; este presume-se
oneroso em caso de dúvida.
2. Ainda que o mútuo não verse sobre dinheiro, observar-se-á, relativamente a juros, o disposto no
artigo 559.º e, havendo mora do mutuário, o disposto no artigo 806.º.
5
Essas situações são de enquadrar no conceito de dívida administrativa ou dívida corrente e estão
atualmente regulados na Lei dos compromissos e pagamentos em atraso das entidades públicas – Lei n.º
Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro.

4
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O conceito de dívida pública engloba, então, as situações em que o Estado é o


devedor principal – a denominada dívida pública direta – e os contratos de mútuo oneroso
em que o devedor é outra pessoa de direito coletivo público diferente do Estado6.

A delimitação da noção de dívida pública é alicerçada na demarcação das entidades


que devem ser consideradas como entidades pertencentes ao Setor Público, conjunto este
que pode variar consoante os critérios que utilizemos para efetuar essa circunscrição,
critérios estes que não são totalmente coincidentes no direito da União Europeia e no
direito interno.

A noção de dívida pública relevante para o direito da União Europeia resulta,


nomeadamente, da aplicação das noções constantes do art.º 126.º do TFUE e dos
Protocolos anexos, mas, também, do Regulamento (CE) 479/2009, de 25 de maio, relativo
à aplicação do protocolo sobre o procedimento relativo aos défices excessivos. Da dívida
Maastricht – designação que é habitualmente utilizada – o âmbito de aplicação é o Setor
Administrações Públicas (Setor S. 13). Ficam, assim, excluídas as situações em que o
devedor, apesar de ser uma entidade do Setor Público, não seja de considerar como
pertencente ao Setor Administrações Públicas, como sejam as entidades mercantis que
fazem parte do Setor Empresarial do Estado. Trata-se, também, de uma dívida
consolidada bruta, que não toma em consideração os instrumentos financeiros, as ações e
outras participações em capital social, os derivados financeiros e as dívidas comerciais.
Apesar de se tratar de um valor bruto, excluem-se, ainda, as responsabilidades cujos
ativos ou passivos financeiros sejam detidos pela própria administração pública7. Estão
incluídos nesta contabilização os valores correspondentes a instrumentos de numerário e
depósitos (AF.2), títulos de dívida (AF.3) e empréstimos (AF.4), mas excluem-se

6
Como sejam as Regiões Autónomas, as Autarquias Locais e outras entidades não mercantis que pertençam
ao Sector Administrações Públicas (S.13), tal como definido no SEC 2010.
7
Este conceito de dívida de Maastricht, ao excluir dos instrumentos de dívida pública aqueles que são
detidos – como sujeitos ativos – por outras entidades públicas não se confunde com o conceito de crédito
interpúblico de que nos fala Sousa Franco, embora valham nestas situações (as excluídas pelo conceito de
Maastricht) as considerações relativas à questão da prestação de garantias e à atuação com base no ius
imperium. A. L. DE SOUSA FRANCO, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4.ª ed., vol. II, Almedina,
Coimbra (1992 ou posterior), pp. 81. Identifica-se antes com o conceito de dívida fictícia utilizado pelo
mesmo autor a pág. 83.

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instrumentos financeiros como os derivados financeiros e outros débitos – cfr. n.º 5, do


art.º 1.º, do Regulamento (CE) n.º 479/2009, do Conselho, de 25 de maio de 2009.

A dívida de Maastricht corresponde, então, ao valor facial do stock de dívida (bruta)


apurada a 31 de dezembro no Setor Administrações Públicas (S.13), representando o valor
que terá de ser reembolsado aos credores no momento da amortização do empréstimo,
sem desconto de quaisquer quantias.

O conceito de dívida pública acabado de referir, e que é relevante para efeitos da


União Europeia, é diverso daqueloutro utilizado no direito interno e relevante para efeitos
de cálculo do endividamento público por parte da Agência de Gestão da Tesouraria e da
Dívida Pública − IGCP, E.P.E. e que habitualmente se designa por dívida direta do estado.

As divergências existem desde logo ao nível da delimitação da dívida a considerar:


trata-se de uma dívida não consolidada, pelo que são relevantes os valores dos
empréstimos em que o credor é uma outra entidade pertencente ao Setor Público; por
outro lado, inclui apenas a dívida pela qual é responsável o subsetor administração
central8.

É importante referir ainda, porque diretamente relacionado com o que acabamos de


referir, o tratamento dado à capitalização dos juros dos certificados de aforro: enquanto
que no direito interno o valor da dívida inclui o valor acumulado dos certificados de
aforro, para a dívida de Maastricht apenas deve ser considerado o valor nominal da
mesma, desconsiderando a transformação em capital dos juros vencidos.

Anos 1995 2000 2005 2010 2015 2020 2021 2022

Percentagem 62,2 54,2 72,2 100,2 131,2 134,9 125,4 113,8

Valor bruto * 55388,88 69591,78 114552,87 179996,02 235746,15 270494,86 269249,58 272591,78

Figura 1: Dívida pública na ótica de Maastricht. Fonte: Banco de Portugal (*valores em milhões de euros)

8
Temos assistido a uma tendência para a uniformização dos critérios para determinação do endividamento
público. Se atentarmos ao art.º 110.º da Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro que, embora se refira a
endividamento líquido global direto reconduz esta noção a uma noção muito próxima da de dívida de
Maastricht, só se afastando desta porque exclui o endividamento da administração regional e local.

6
A dívida pública | Sumário desenvolvido

Anos 1995 2000 2005 2010 2015 2020 2021 2022

Valor 61,6 54,2 72,2 100,2 131,2 134,9 125,4 114,5

Figura 2: Evolução da Dívida Pública em percentagem do PIB. Fonte de dados: Banco de Portugal. Os dados relativos ao ano de
2021 são provisórios e os relativos ao ano de 2022 são uma previsão.

1.2.Os motivos de recurso ao crédito

Como já mencionámos, o recurso ao crédito para financiamento das despesas


públicas pode ter várias justificações: cobertura dos défices de tesouraria, cobertura dos
défices orçamentais ou razões de política económica (política monetária), nomeadamente,
esterilização do poder de compra. Esta multiplicidade de motivos condiciona a escolha
do tipo de instrumento a utilizar.

1.2.1. Cobertura dos défices de tesouraria

Um dos motivos para o recurso ao crédito por parte dos estados é a necessidade de
arrecadação de receitas para cobertura dos défices de tesouraria. Estamos aqui perante
situações em que, não obstante terem sido previstas no orçamento receitas suficientes para
cobrir as despesas previstas no mesmo orçamento, não existem, num determinado
momento, receitas suficientes para efetuar o pagamento daquelas despesas em concreto.
Trata-se de situações em que ocorre uma carência transitória de liquidez, originada pela
falta de coincidência temporal entre o momento da arrecadação das receitas e o momento
da exigibilidade de pagamento das despesas.

É, por conseguinte, uma dívida passageira que será saldada dentro do mesmo ano
financeiro em que foi contraída. Verdadeiramente estamos perante empréstimos que se
destinam a antecipar, dentro do mesmo período financeiro, o volume de receitas
necessário ao pagamento das despesas estaduais, incluindo o reembolso dos empréstimos
contraídos com a finalidade e acudir aos défices de tesouraria.

Por esse facto, sempre que se trate de dívida pública destinada à cobertura de défices
de tesouraria, o seu período de duração é variável, podendo ir de uns dias a vários meses,

7
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mas é sempre inferior a um ano. No final do período financeiro – 31 de dezembro – toda


a dívida contraída para fazer face aos défices de tesouraria estará saldada.

1.2.2. Cobertura dos défices orçamentais

O recurso ao endividamento pode também ser motivado pela falta de outras receitas
orçamentais para pagar as despesas públicas previstas no mesmo orçamento. Como se
trata de um valor que, em regra, foi previsto aquando da elaboração e aprovação do
orçamento do estado, esta dívida não será saldada dentro do mesmo período financeiro
em que foi contraída, subsistindo para além deste.

Estaremos perante dívida pública destinada à cobertura de défices orçamentais


sempre que o prazo de emissão seja superior a um ano ou, sendo inferior, o pagamento
deva ser efetuado num período financeiro diferente daquele em que foi contraído. São
disso exemplo os empréstimos contraídos por um período superior a um ano em que o
momento da contração do empréstimo e o momento do reembolso são em períodos
financeiros diversos, mas também o serão os empréstimos de curta duração cuja
amortização tenha lugar num período financeiro diverso daquele em que foram
contraídos.

1.2.3. Outros motivos

Pode ainda justificar-se a contração de empréstimos por parte do estado com base
em outros motivos de ordem económica, como um vetor de intervenção através da política
financeira não só no período em que o empréstimo é contraído (momento da emissão da
dívida) mas também no momento em que o empréstimo deve ser reembolsado (momento
da amortização). No caso da dívida pública emitida em moeda estrangeira muitas podem
ser as justificações para que tal suceda.

O endividamento público aparece, assim, como instrumento de política monetária


ou de política financeira, contribuindo para impedir a realização de despesas privadas,
nomeadamente aquelas que pudessem vir a contribuir para o desenvolvimento de um
processo inflacionista. Ao contrair empréstimos o estado contribui para a redução do
poder de compra, desde que não utilize essas receitas, isto é, apesar de ter receitas
disponíveis o estado tem que as manter em saldos líquidos, não as pode utilizar. Desde
8
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modo absorve liquidez do mercado, contribuindo para a diminuição da quantidade de


moeda em circulação e, deste modo, para a controlo da inflação.

Tendo em consideração as especificidades deste tipo de empréstimos é desejável


que a dívida contraída com esta finalidade resulte de instrumentos de dívida
diversificados e de empréstimos de curta duração, permitindo a reavaliação da
necessidade do empréstimo de forma periódica.

2. Espécies de dívida

2.1. Dívida fundada e dívida flutuante

A distinção entre dívida pública fundada e flutuante tem necessariamente por base
a finalidade do empréstimo. Do ponto de vista teórico, ou académico, se preferirmos, será
considerada dívida flutuante aquela que se destina a ser amortizada no mesmo período
financeiro em que foi contraída e dívida pública fundada a que foi contraída para ser
amortizada num período financeiro diverso daquele em que foi contraída9. Do que
acabamos de referir infere-se que o recurso a financiamento da despesa pública através
de instrumentos de dívida pública flutuante tem como finalidade a cobertura de défices
de tesouraria, enquanto que a dívida pública fundada está vocacionada para a cobertura
de défices orçamentais.

A distinção entre dívida pública fundada e dívida pública flutuante é importante


quer por razões económicas, quer por razões jurídicas. Desde logo, importa considerar
que apenas a dívida pública fundada é considerada para efeitos do SEC 2010 como
pertencendo à designada dívida de Maastricht e por isso relevante para efeitos de
determinação do cumprimento ou do desvio face às exigências colocadas pelo artigo 126.º
do TFUE no que diz respeito ao critério de Finanças Públicas. No plano do direito
nacional releva para a determinação do limite máximo de aumento do endividamento
líquido. Em ambos os casos apenas são de considerar as receitas provenientes de dívida

9
Neste mesmo sentido, veja-se as als. a) e b) do art.º 3.º da Lei n.º 7/98 de 3 de fevereiro. Até à aprovação
do diploma legal referido, em Portugal era considerada dívida pública flutuante a que fosse emitida por um
período inferior a 12 meses e fundada a que fosse emitida por um período superior. Esse regime permitia
que a dívida flutuante pudesse ser utilizada para a cobertura de défices de tesouraria, mas também de défices
orçamentais, contrariando a sua vocação que é precisamente a de se destinar a cobrir défices de tesouraria

9
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pública fundada, sendo o seu limite fixado por Lei, nos temos do art.º 4.º da Lei n.º 7/98,
de 3 de fevereiro10.

Do ponto de vista jurídico é de realçar a diferenciação de regime relativo a cada um


dos tipos de dívida: enquanto que a emissão de dívida pública fundada tem que ser cingir
ao montante fixado na própria Lei do Orçamento o mesmo não sucede com a emissão de
dívida flutuante, em que a Lei do Orçamento fixa apenas o limite máximo do aumento do
endividamento, podendo o Governo no uso dos seus poderes de gestão, providenciar a
emissão e gestão deste tipo de dívida11.

2.2. Dívida interna e dívida externa

A distinção entre dívida pública interna e externa é muito importante para que
possamos responder às questões colocadas inicialmente e, sobretudo, para determinar a
existência de limites ao endividamento e quais os efeitos económicos que decorrem da
emissão de dívida pública.

Esta distinção pode ser feita com base em vários critérios: critério da praça
financeira, critério da moeda e critério da residência dos credores.

10
Apesar da haver um consenso tendencialmente generalizado a nível doutrinal sobre a distinção entre dívida
fundada e dívida flutuante é interessante mencionar, a este propósito, a solução legal seguida noutros países.
Atentemos, por exemplo, nas disposições contidas na Constituição da República Federativa do Brasil,
nomeadamente nos seus artigos 167, IV e do § 8 do art.º 165 ao distinguir, dentro da dívida pública aquelas
operações de curto prazo destinadas a antecipar receita ‒ as designadas AROs (antecipações de receitas
orçamentárias ou operações de crédito por antecipação da receita) ‒ e que, nos termos do inciso II do artigo
38 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei complementar n.º 101 de 4 de maio de 2020). Esta classificação e
exigências denota que a dívida flutuante terá que ser totalmente liquidada dentro do mesmo ano financeiro no
qual foi contraída. Aliás, a exigência colocada pela Lei de Responsabilidade Fiscal vai até um pouco mais além,
ao determinar que terá que ser liquidada até ao dia 10 de dezembro. A Lei estabelece ainda uma outra
peculiaridade no inciso IV do mesmo artigo 38 ao proibir a emissão de dívida flutuante “enquanto existir
operação anterior da mesma natureza não integralmente resgatada” [alínea a)] e “no último ano do mandato do
Presidente, Governador ou Prefeito Municipal” [alínea b)]. Estas prescrições deixam bem clara a finalidade
destes créditos, mas, também, o risco de este tipo de dívida se transformar em dívida consolidada.
11
Para o ano de 2023 o limite previsto pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro para o aumento do
endividamento líquido global foi de 16 000 000 000 € - cfr. art.º 110.º − e o limite para o montante
acumulado de emissões vivas (ativas) de dívida pública flutuante de 25 000 000 000 € − cfr. art.º 115.º.

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2.2.1. Critério da praça financeira

De acordo com este critério, serão considerados empréstimos internos aqueles que,
no momento da emissão, sejam colocados à subscrição (emitidos) numa praça financeira
com sede em território nacional e serão considerados externos os empréstimos colocados
à negociação numa praça financeira estrangeira12. Ou seja, para utilizarmos as palavras
de Teixeira Ribeiro, serão internos os que sejam contraídos dentro do próprio país e
externos os que são contraídos em território estrangeiro13. Não está aqui em causa a
nacionalidade da moeda ou dos credores, mas apenas o local da emissão da dívida pública.

2.2.2. Critério da moeda

Neste caso o que distingue os empréstimos internos dos externos é o facto de os


primeiros serem emitidos em moeda com curso legal no país emitente e os segundos
serem numa moeda que não tenha curso legal no país emitente. No caso português, seria
dívida interna a emitida em euro e dívida externa a emitida noutra moeda14. (Art. 3.º da
LQDP).

Note-se que a introdução na Lei do Orçamento de uma limitação para a dívida


pública emitida em moeda diferente do euro é um forte indício da importância que esta
distinção entre dívida emitida em moeda com curso legal e dívida emitida cuja contravalor
é expresso em moeda diversa do euro. Pretende-se evitar deste modo uma exposição
excessiva ao risco cambial15.

12
A. L. DE SOUSA FRANCO, Lições… cit., pp. 93 e ss. e HERNÂNI MARQUES, PAIVA MANSO e BACELAR
FERREIRA, Lições de Finanças – de harmonia com as prelecções do Ex.mo Senhor Doutor João Pinto da
Costa Leite (Lumbrales), ao curso do II ano jurídico de 1932-1933, Atlântida-Livraria Editora, Coimbra
(1932), p. 145
13
J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5.ª edição refundida e atualizada, Coimbra Editora
(1996 ou posterior), pp. 187.
14
A introdução em circulação de moedas denominadas em euro (€) e as suas características foram definidas
pelos regulamentos (CE) n.os 974/98 e 975/98, do Conselho, de 3 de maio.
15
Em Portugal a percentagem do volume de dívida pública denominada em moeda diferente do euro tem
sido fixada, nos últimos anos, em 15% do total da dívida. A emissão de dívida pública em moeda diversa
daquela que goza de curso legal num determinado país pode justificar-se por várias razões mas é
especialmente utilizada naqueles casos em que se pretende recorrer a empréstimos externo e a moeda
nacional goza de pouca confiança no exterior.

11
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2.2.3. Critério da residência dos credores

Os empréstimos internos serão os que sejam destinados a credores residentes16 em


território nacional e por estes subscritos; os empréstimos externos correspondem àqueles
que são subscritos por residentes no estrangeiro. Na prática o que distingue os dois tipos
de empréstimos é o facto de os subscritores de títulos da dívida pública poderem ser
considerados como fazendo parte de um dos setores da economia do país emitente.

2.2.4. Critério do movimento internacional de capitais

Os empréstimos internos serão aqueles que não dão origem a movimentos


internacionais de capitais; enquanto que os empréstimos externos são aqueles que dão
origem a movimentos internacionais de capitais. Trata-se de um critério que, em certa
medida, se aproxima do critério da residência dos credores, uma vez que,
tendencialmente, se os empréstimos forem subscritos por residentes não existirão
movimentos internacionais de capitais17.

2.2.5. Que critério adotar?

Os critérios que acabamos de referir são muito fluídos e, em regra, encontramos


vários critérios associados, mas, apesar disso, é importante determinar quais as
implicações que decorrem da contração de dívida pública interna e/ou externa. A acrescer
às dificuldades classificativas relacionadas com a fluidez dos critérios há que considerar
que, por exemplo, o critério da moeda se assume atualmente como uma questão de quase
impossível resolução. A estas dificuldades há que acrescentar as implicações decorrentes

16
Falamos em residência e não em nacionalidade porque este último vínculo tem vindo a perder importância
como vínculo autónomo na determinação do vínculo jurídico a um determinado território geográfico e
estadual. O que importa, para estes efeitos, é saber quais os credores do estado que estão sujeitos a todas as
dimensões da atuação estadual, podendo tratar-se ou não de cidadãos nacionais desse estado. A
nacionalidade, por si só, não garante em todos os domínios jurídicos e não o garante claramente nas
situações que estamos a analisar, a sujeição às prerrogativas de um determinado Estado.
17
Podem existir movimentos internacionais de capitais mesmo nestes casos se os residentes tiverem obtido
a totalidade ou parte dos seus rendimentos no estrangeiro.

12
A dívida pública | Sumário desenvolvido

da liberalização da circulação de capitais na União Europeia e da diminuição das


restrições à liberdade de circulação de capitais a nível internacional.

Na prática o que importa é determinar se os credores do estado são cidadãos ou


entidades relativamente aos quais o estado emitente pode exercer o seu ius imperium para
impor determinadas obrigações a esses mesmos credores, ou se, pelo contrário, estamos
perante situações em que os credores não mantêm qualquer elo ou ligação com o estado
emitente.

O critério a adotar tem que permitir averiguar a dependência do estado emitente


face ao mercado financeiro internacional, o que equivale a afirmar que, entre os critérios
acabados de referir, o que mais se adequa é o critério da residência dos credores
complementado, se necessário, pelo critério do movimento internacional de capitais.

Anos 1996 2000 2005 2010 2015 2020 2021 2022

Valor -1,2 26,4 50,2 80,3 103,8 87,7 80,2 68,0

Figura 3: Dívida externa líquida. Fonte de dados: Banco de Portugal. Os dados relativos ao ano de 2021 são provisórios
e os relativos ao ano de 2022 são uma previsão

2.3. Dívida perpétua e dívida temporária

Os empréstimos também podem ser agrupados de acordo com a sua duração,


distinguindo-se, em primeiro lugar, empréstimos perpétuos e empréstimos temporários.

Empréstimos perpétuos são aqueles que o estado contrai e em que se obriga a pagar
uma determinada quantia anualmente, mas não a proceder ao seu reembolso, isto é, à
devolução do capital mutuado. Nestes casos o estado pode ainda reservar-se a faculdade
de realizar o reembolso, caso em que estaremos perante empréstimos perpétuos remíveis,
ou não gozar desta faculdade, caso em que estaremos perante empréstimos perpétuos
irremíveis. Estes últimos assemelham-se a uma renda perpétua porque o estado obriga-se
a pagar periodicamente uma determinada quantia aos subscritores daquele tipo de dívida.

A figura contratual dos empréstimos perpétuos (remíveis ou irremíveis) representa


para o estado uma enorme vantagem, sendo que nos empréstimos perpétuos remíveis esta
se torna mais percetível. A vantagem advém do facto de, em momento algum, existir a

13
A dívida pública | Sumário desenvolvido

obrigação de reembolso da quantia mutuada, isto é, mesmo nos casos em que estejamos
perante um empréstimo perpétuo remível é ao devedor que cabe determinar se e quando
pretende reembolsar o empréstimo. Para os subscritores destes empréstimos a vantagem
advém-lhes do facto de estes títulos proporcionarem a obtenção de um rendimento a título
de juro em regra superior ao dos demais títulos e de serem títulos negociáveis. Assim, o
credor pode negociar o título em mercado secundário quando assim o entender, realizando
o seu crédito. A escolha do momento adequado para essa alienação pode permitir a
obtenção de um rendimento extra, dada a existência de uma taxa de juro em regra
superior.

Por contraposição aos empréstimos perpétuos, temos os empréstimos temporários.


Nestes casos, o estado obriga-se a amortizar, num determinado momento (certo ou
incerto) a dívida existente. Em matéria de empréstimos temporários, é usual diferenciar-
se entre: empréstimos reembolsáveis à vista, empréstimos reembolsáveis por sorteio,
empréstimos reembolsáveis em data fixa e rendas vitalícias.

Os empréstimos reembolsáveis à vista são aqueles que o estado se obriga a


amortizar se e quando o credor o solicitar. Esta possibilidade introduz muita incerteza na
gestão da dívida pública pois o devedor não sabe, ao certo, se e quando terá que
reembolsar aquele montante. Para obviar ainda que parcialmente a este problema, é
habitual estabelecer-se um período inicial durante o qual o empréstimo não é
reembolsável, bem como condições remuneratórias que incentivem à manutenção do
empréstimo até à data limite para o reembolso.

Nos empréstimos reembolsáveis por sorteiro o estado determina, em cada ano, o


volume de dívida que vai amortizar. Estabelecido que esteja este valor, segue-se a
realização de sorteios que permitem determinar em concreto qual ou quais os títulos que
serão amortizados. Consegue assim garantir-se uma amortização do empréstimo ao longo
da vida do mesmo e introduz-se aleatoriedade (agora) para os credores.

Os empréstimos reembolsáveis em data fixa são aqueles que garantem, quer para o
credor quer para o devedor, um maior grau de certeza no que à data de amortização diz
respeito. Independentemente do tipo de empréstimo em causa, fica estabelecido no
momento da emissão dos títulos a data em que se procederá ao reembolso. Mas esta
característica pode, em algumas situações, originar problemas de tesouraria porquanto
obriga à devolução da quantia mutuada toda na mesma data o que, tratando-se de um

14
A dívida pública | Sumário desenvolvido

empréstimo de valor avultado, pode revelar-se muito difícil ou originar a emissão de


novos instrumentos de dívida por vezes em condições mais onerosas.

Por último, as rendas vitalícias são um tipo de dívida pública em que o estado se
obriga a pagar ao credor uma renda anual. Este montante a pagar ao credor incorpora não
só o valor dos juros, mas também uma parte da quantia mutuada. Contudo, como se trata
de uma obrigação que se extingue com a morte do credor e não se transmite aos seus
herdeiros, o estado pode ganhar ou perder. O montante anual a pagar é calculado tendo
por referência a idade do credor e a esperança média de vida. Assim sendo, o estado ganha
nos casos em que o credor morre antes de atingir a idade da esperança média de vida, mas
perde quanto este a ultrapassar.

2.4. Empréstimos negociáveis e empréstimos não negociáveis

Podemos ainda notar a existência de títulos da dívida pública que são negociáveis
e outros que são não negociáveis, consoante o credor goze ou não da faculdade de colocar
os títulos da dívida pública que subscreveu à negociação no mercado financeiro. Caso
sejam negociáveis, esta transmissão ocorrerá em mercado secundário e as características
do título vão influenciar a cotação do mesmo, isto é, vão influenciar o valor pelo qual o
título virá a ser transacionado.

2.5. Empréstimos forçados e empréstimos voluntários

Como referimos supra, os empréstimos resultam, habitualmente, de contratos


estabelecidos de forma voluntária, isto é, o estado emite dívida pública e apenas se torna
credor do estado quem quer.

Contudo, há situações em que à emissão de dívida pública se junta a obrigatoriedade


de subscrição por determinada categoria de pessoas físicas ou de pessoas jurídicas. Casos
há ainda em que os estados, apesar de não obrigarem à subscrição de dívida pública,
apelam ao sentimento patriótico dos eventuais credores. Neste último caso, trata-se de
empréstimos voluntários, mas que em regra são conseguidos em condições mais
favoráveis do que as praticadas no mercado.

15
A dívida pública | Sumário desenvolvido

Os empréstimos forçados são por vezes comparados a impostos. Trata-se de uma


equiparação que, ao menos do ponto de vista jurídico, é desprovida de sentido. Apesar
de, em ambos os casos o facto impositivo seja unilateral e tenha como fundamento o ius
imperium, os empréstimos forçados resultam de um contrato cujo cumprimento permite
ao credor obter reembolso do valor mutuado.

Este tipo de empréstimos também não se confunde com os empréstimos patrióticos


que serão aqueles em que se apela ao sentimento psicológico dos subscritores para que
estes concedam crédito ao estado em casos de necessidade extrema que impedem ou
dificultam o acesso ao mercado, nomeadamente em situações de grave crise económica
ou de guerra, sendo de esperar que os particulares aceitem a subscrição de dívida pública
em condições menos favoráveis do que as propostas habitualmente pelo mercado18. De
semelhante com os empréstimos forçados, nota-se o facto de serem conseguidos em
condições mais favoráveis que as condições normais do mercado, mas divergem destes
porquanto nos empréstimos forçados foi eliminada a voluntariedade na celebração do
contrato. O credor é forçado a celebrar o contrato. Trata-se de uma situação de último
recurso e que é utilizada quando o estado pretende obter financiamento em condições
mais favoráveis do que as de mercado ou naquelas situações em que, apesar de oferecer
condições mais favoráveis do que as condições de mercado, mesmo assim, não encontra
compradores para a dívida.

2.6.Quanto ao tipo de emissão: por operações sindicadas, através de leilões ou por


operações de subscrição limitada (tapping)

A colocação de títulos da dívida à subscrição através de operações sindicadas é feita


com base na negociação direta com os Operadores Especializados de Valores do Tesouro
(OEVT), durante um determinado período. Esta forma de colocação de dívida pública
permite ao emitente escolher instituições financeiras que vão ser aliadas do emitente na
colocação dos títulos da dívida no mercado. Ao utilizar uma espécie de intermediário
financeiro, o credor consegue colocar os títulos no mercado a preços de mercado e, ao

18
Em Portugal houve uma emissão de empréstimos forçados em 1983 e que correspondeu à atribuição de
títulos da dívida pública no mesmo valor do subsídio de Natal aos funcionários públicos.

16
A dívida pública | Sumário desenvolvido

mesmo tempo, garante que o cumprimento das ordens de compra é feito em função do
perfil do investidor e a diversificação de investidores.

Diverso deste tipo de colocação é a colocação por leilão. Nesses casos a emissão da
dívida é feita com recurso a uma metodologia que permite obter o preço mais competitivo
para um conjunto de títulos a colocar no mercado. Apesar de podermos encontrar leilões
muito diversificados em função do tipo de dívida e dos objetivos pretendidos, há sempre
que dividir este procedimento em duas fases: a fase não competitiva em que os candidatos
admitidos ao leilão apresentam as suas propostas e uma fase competitiva em que se
procede à subscrição dos títulos a colocar no mercado.

Por último, a subscrição limitada (tapping) em que apenas são admitidos a


subscrever os títulos determinado tipo de entidades.

3. A emissão de títulos da dívida pública

Concretizado que foi o conceito de dívida pública, pudemos concluir que os títulos
incorporam em si mesmos o direito ao pagamento de uma retribuição, bem como, em
regra, o direito ao reembolso. Tratando-se de títulos negociáveis há ainda que contar com
a possibilidade de os mesmos serem transacionados na bolsa. A cada uma destas situações
corresponderá um valor do título, valor esse que pode ou não ser constante ao longo da
vida do empréstimo e que é relevante para determinar a manutenção do empréstimo ou a
sua alteração.

3.1. Valor nominal, preço de emissão e cotação dos títulos

Tradicionalmente definia-se o valor nominal dos títulos da dívida pública (vn) como
o valor facial/inscrito dos títulos, valor este sobre o qual são calculados os juros a pagar
(periodicamente ou não) e que é devolvido ao credor no momento do reembolso. Com a
alteração da forma de emissão e de titularização da dívida assiste-se a desmaterialização
dos títulos da dívida, passando apenas a existir o registo contabilístico dos mesmos.
Assim, há que considerar que esta noção de valor nominal, apesar de continuar válida,
deve ser completada permitindo abranger também esta nova realidade. O valor nominal
será então o valor facial – inscrito no título ou registado contabilisticamente – e com base

17
A dívida pública | Sumário desenvolvido

no qual são calculados os encargos com os juros e determinado o valor da despesa pública
com os reembolsos.

Diferente do valor nominal é o preço de emissão, que representa a quantia paga pelo
credor no momento da subscrição dos títulos da dívida pública e corresponde,
efetivamente, ao valor recebido pelo estado no momento da emissão do empréstimo. Este
valor é por vezes confundido pela cotação e, embora corresponda ao valor da cotação no
momento da emissão, não deve com este ser identificado.

A cotação designa o valor do título que se fixa no mercado financeiro numa


determinada data. Corresponde ao valor pelo qual os agentes do mercado estão
disponíveis para comprar e para vender aquele título em concreto, naquelas circunstâncias
de mercado. Trata-se de um valor que apenas pode ser verificado em relação aos títulos
representativos de empréstimos transacionáveis.

3.2. Taxa de juro nominal e taxa de juro real

O juro, já o referimos, representa a remuneração da cedência do capital e calcula-


se multiplicando o valor da taxa de juro nominal – também designada por taxa do
empréstimo – pelo valor nominal do título. Distingue-se do yeld que é a taxa de
rendibilidade do título e que corresponde não à taxa de juro nominal, mas antes à taxa de
juro real, incorporando, para além do juro, outros valores que constituem um fator de
remuneração dos títulos, como prémios de reembolso, prémios de permanência, isenção
de impostos e outros e calcula-se dividindo o rendimento do título pelo seu valor nominal.

3.3. Emissão ao par, emissão abaixo do par e emissão acima do par

Na generalidade das emissões de títulos representativos de dívida pública estamos


perante situações em que existe coincidência entre o valor nominal e o valor de emissão
dos mesmos. Essas situações são designadas por emissões ao par. Contudo, também pode
suceder que os dois valores não coincidam: se o valor nominal for superior ao valor de
emissão estaremos perante uma emissão abaixo do par, gerando situações em que o
estado arrecada, no momento da emissão, uma menor quantia em dinheiro do que aquela
que terá de reembolsar aquando da amortização do empréstimo. Já nos casos em que o
valor nominal seja inferior ao valor de emissão trata-se de uma emissão acima do par,

18
A dívida pública | Sumário desenvolvido

permitindo ao estado arrecadar, no momento da emissão, um valor superior ao valor que


terá de reembolsar19.

3.4. A “lei da cotação dos fundos públicos”

De toda a explanação que fizemos supra em relação à dívida pública decorre, para
o devedor, não só a importância da escolha do instrumento mais adequado às finalidades
do recurso ao crédito, como também os encargos globais que esse financiamento implica.
Veremos mais adiante que esta escolha pode ter também implicações quanto aos efeitos
económicos que daí decorrem.

Para os credores, o que está em causa é, maioritariamente, a escolha de instrumentos


financeiros que permitam uma maior rendibilidade se comparados com instrumentos
financeiros que representem idêntico risco. E, como deixámos já antever, é também
importante determinar qual será o comportamento do valor venal dos títulos (cotação)
sempre que estejam em causa títulos negociáveis. É que, quer o devedor quer o credor
podem pretender fazer cessar a relação contratual de base através da alienação dos seus
direitos ou da aquisição dos direitos de outros sujeitos sobre títulos representativos de
dívida pública. Importa, então, determinar como se comporta a cotação dos títulos da
dívida pública.

3.4.1. A variação da cotação dos títulos no pressuposto da ausência de risco

Recordemos que o valor do título depende não só do valor nominal do título, mas
também do preço de emissão, da taxa de juro a que o empréstimo foi emitido e das demais
condições de emissão.

A cotação dos títulos – que representa o valor pelo qual os mesmos são
transacionados nos mercados financeiros – depende de vários fatores, como sejam a
procura e oferta global de capitais, a confiança dos investidores na entidade emitente, etc.,
mas, sobretudo, da taxa de juro corrente no mercado.

19
Sobre as razões justificativas da emissão de empréstimos abaixo do par e da subscrição de empréstimos
emitidos acima do par, veja-se J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Lições ..., cit., pp. 206 e 207.

19
A dívida pública | Sumário desenvolvido

O juro representa a compensação devida ao credor pela cedência de liquidez e


corresponde ao valor que lhe será pago – periodicamente ou não – e que acresce ao valor
nominal. Na dívida pública o valor dos juros do empréstimo pode ser fixo – sendo
estabelecido no momento da emissão – ou variável – em que o valor do juro ou da taxa
de juro aparece indexado a um outro indicador como seja por exemplo a taxa de inflação
ou, como sucede usualmente, a uma outra taxa de juro do mercado financeiro. Neste
último caso, o juro destes empréstimos vai acompanhando a evolução da taxa de juro nos
mercados e a sua cotação não está, tendencialmente, sujeita às mesmas variações que a
cotação dos títulos de taxa de juro fixa.

Referimos há pouco que o juro pode ser ou não pago de forma periódica. Na
verdade, quanto ao momento do pagamento do juro, podem existir duas situações: (i) o
juro pode ser pago periodicamente ao longo dos vários períodos em que o empréstimo no
momento do vencimento; (ii) o juro pode ser pago apenas no momento do reembolso do
empréstimo. Neste último caso o que sucede é que, apesar de se vencer periodicamente,
o juro ao invés de ser colocado à disposição do credor (pago) passa a incorporar o capital
emprestado ao estado, passando a render juro nos períodos subsequentes. É aquilo que se
denomina por capitalização do juro.

Feitos estes reparos podemos agora dedicar-nos à análise do comportamento da


cotação dos títulos da dívida pública.

Segundo a denominada Lei da Cotação dos Fundos Públicos, “a cotação dos títulos
tende para a capitalização do seu rendimento à taxa de juro corrente no mercado”, ou seja,
o valor da cotação resultará da divisão do rendimento do título que, recorde-se, é fixo (r)
pela taxa de juro corrente de mercado na data da mensuração:

r
𝑐=
j
em que,

c – representa a cotação do título

r – representa o rendimento do título

j – representa a taxa de juro no mercado na data em que se pretende calcular a cotação

20
A dívida pública | Sumário desenvolvido

Sendo o rendimento do título um valor fixo – quer seja porque a taxa do empréstimo
é fixa e constante quer porque o título tem um com rendimento pré-definido, também fixo
e constante, – pode concluir-se que a cotação do título varia no sentido inverso ao da
variação da taxa de juro corrente no mercado entre o momento da emissão e o momento
da mensuração e vice-versa.

O que se pretende explicar são os efeitos decorrentes da alteração da taxa de juro


na cotação dos títulos da dívida pública e, como teremos oportunidade de referir, estes
variam consoante o tipo de empréstimos em causa.

3.4.1.1. Nos empréstimos perpétuos irremíveis

Nos casos em que estejam em causa títulos de empréstimos perpétuos irremíveis,


não existe qualquer limitação à aplicação plena da Lei de Cotação dos Fundos Públicos.
Como estamos perante títulos que não podem ser reembolsados os únicos fatores a
considerar para a determinação da cotação do título são o valor nominal, a taxa de
rendibilidade do título e da taxa de juro corrente no mercado no momento para o qual se
pretende determinar a cotação.

A cotação resulta da divisão do rendimento do título – valor este que é imutável –


pela taxa de juro corrente no mercado (a taxa de juro verificada no mercado no momento
da mensuração).

Vejamos o seguinte exemplo:

Em 15 de novembro de 1937 foram emitidos Certificados de Rendas


Vitalícias ao abrigo do art.º 28.º da Lei n.º 1933 de 13 de fevereiro de 1936,
com o valor nominal de € 1, taxa de juro fixa de 4%. Em 15 de março de
2020 a taxa de juro no mercado para empréstimos semelhantes sobe para
8% e em 15 de julho de 2031 se fixará nos 2%.

21
A dívida pública | Sumário desenvolvido

Se pretendermos determinar o valor da cotação de destes títulos no mercado


financeiro à data de 15 de março de 2020, teremos que dividir o rendimento do título (€
0,04) pelo valor da taxa de juro de mercado a 15 de março de 2020 (8%, ou seja, 0,08).

Assim,

C = 0,04/0,08  C = 0,5

Por se tratar de títulos representativos de dívida perpétua irremível, a cotação do


título nos pressupostos enunciados irá fixa-se em € 0,50.

Podemos, então, concluir que entre o momento da emissão – 15 de novembro de


1937 – e o momento em que estamos a calcular a cotação – 15 de março de 2020 – a taxa
de juro no mercado duplicou e, consequentemente, a cotação desceu para metade,
fixando-se em € 0,50.

O mesmo raciocínio deve feito para determinar qual a cotação dos títulos a 15 de
julho de 2031:

C = 0,04/0,02  C = 2

O que significa que a cotação subirá para € 2,00, caso os pressupostos enunciados
se verifiquem.

Tal como sucedeu no caso anterior, também aqui o comportamento da cotação do


título é inversamente proporcional à variação da taxa de juro. Se a taxa de juro descer
para metade, a cotação subirá para o dobro.

22
A dívida pública | Sumário desenvolvido

3.4.1.2. Nos empréstimos perpétuos remíveis

No caso dos empréstimos perpétuos remíveis, continuam válidas as considerações


feitas para os empréstimos perpétuos irremíveis quando a taxa de juro no mercado sobe,
mas o mesmo já não acontece quando a taxa de juro no mercado desce.

Nestes casos, convém ter presente que o Estado goza, se assim o entender, da
faculdade de proceder ao reembolso dos títulos. Pode, por isso, aproveitar as condições
favoráveis do mercado para fazer o roulement da dívida, contraindo um novo empréstimo
a uma taxa de juro mais baixa. Deste modo, limita-se a substituir o empréstimo antigo
com uma taxa de juro superior por outro com uma taxa de juro mais baixa, diminuindo
os encargos com a dívida.

Por ser assim, e ainda que a taxa de juro no mercado desça consideravelmente, a
cotação não subirá acima do valor nominal (que é também o valor do reembolso). Os
credores do estado correm o risco de perder caso a taxa de juro no mercado suba e não
ganham caso esta desça. Este facto faz com que em regra os empréstimos remíveis sejam
emitidos com impossibilidade de remição durante um determinado período de tempo.
Consoante este seja um prazo mais ou menos longo, a cotação tenderá, no início do prazo,
a comportar-se de forma semelhante à dos empréstimos perpétuos irremíveis, mas à
medida que o prazo (de irremição) se aproxima do fim a cotação aproxima-se da que se
fixaria para títulos de empréstimos perpétuos remíveis.

3.4.1.3. Nos empréstimos temporários

Por último, nos empréstimos temporários podemos notar que o comportamento da


cotação depende da perceção dos investidores sobre o risco associado à aquisição de
títulos da dívida pública. Mas, no comportamento da cotação influem também fatores
relacionados com a moeda na qual a dívida foi emitida, bem como da evolução da política
monetária.

Não podemos concluir sem considerar ainda os efeitos decorrentes da existência de


prémios de reembolso – que podem e devem ser incluídos na taxa de rendibilidade do
título –, dos prémios de amortização – que são pagos no caso dos empréstimos
amortizáveis por sorteio –, das garantias (especiais) de pagamento (consignação de

23
A dívida pública | Sumário desenvolvido

receitas), da correção monetária da inflação e das isenções, não sujeições ou benefícios


fiscais.

3.5. Operações sobre a dívida pública

A dívida pública nasce, como já referimos, de uma determinada relação contratual,


sendo por isso passível de se extinguir pelas mesmas causas extintivas das relações
contratuais: (a) pagamento (que, no caso da dívida se designa amortização); (b) perdão
ou remissão; (c) prescrição; (d) novação (objetiva, subjetiva ou mista) e (e) confusão.

Sempre que nos referimos a operações sobre a dívida pública estamos a considerar
apenas algumas destas formas de extinção ou modificação da relação contratual que está
na base do empréstimo, bem como as especificidades privativas da relação contratual de
endividamento público. Analisaremos com algum detalhe a amortização, a conversão e a
novação e, de modo mais abreviado, a consolidação, a capitalização, o repúdio e a
bancarrota.

3.5.1. A amortização

A dívida pública extingue-se, como qualquer outro mútuo oneroso, com o


pagamento integral do montante em dívida. Porém, à semelhança do que sucede no
endividamento privado, nem sempre o pagamento integral da quantia mutuada se dá num
único momento, podendo ser faseada ao longo da duração do empréstimo. Os Estados
podem recorrer à amortização total ou proceder a uma amortização parcial da dívida20.

O modelo escolhido em cada caso concreto tem em consideração os efeitos quer da


amortização quer do modo de financiamento, sendo habitual que se enquadre num dos
seguintes sistemas de amortização: (a) anuidades obrigatórias; (b) caixas de amortização
– a caixa de Price e (c) saldos orçamentais.

20
Convém ter presente que a opção pela amortização total ou pela amortização parcial depende do tipo de
instrumento de dívida em causa e das condições específicas acordadas com os credores.

24
A dívida pública | Sumário desenvolvido

3.5.1.1. As anuidades obrigatórias

Num sistema de amortização da dívida pública através de anuidades obrigatórias o


pagamento da dívida pública é feito com o recurso a verbas especificamente inscritas para
essa finalidade no orçamento do estado, ou seja, em cada período orçamental é inscrita
no orçamento do estado uma verba de despesa (dotação ou crédito orçamental) destinada
à amortização da dívida pública.

Este sistema permite assegurar um pagamento contínuo e faseado da dívida, mas


essa operação financeira nem sempre permite a diminuição do valor global da dívida
sendo por isso habitual dizer-se que este modelo não permite, em alguns casos, uma
verdadeira extinção da dívida.

Nos períodos financeiros em que as receitas orçamentais, excluindo empréstimos,


sejam suficientes para cobrir todas as despesas públicas incluindo as que se destinam à
amortização da dívida estamos perante uma verdadeira extinção daquela. Contudo,
sempre que as receitas referidas supra não sejam suficientes para cobrir a totalidade das
despesas - incluindo a totalidade da quota de amortização prevista no orçamento - o estado
terá que recorrer a um novo empréstimo para financiar a totalidade ou parte da dotação
destinada à amortização da dívida. Nesses casos a dívida não se extingue, apenas sofre
uma modificação como veremos mais adiante. Neste cenário pode até suceder que o novo
empréstimo seja contraído em condições globalmente mais onerosas, provocando um
aumento dos encargos com a dívida.

As anuidades obrigatórias são um sistema de amortização da dívida pública


adequado àquelas situações em que seja possível prever, com um elevado grau de certeza,
que a inclusão de uma inscrição de despesa destinada ao pagamento da dívida no
orçamento do estado não vai implicar o recurso ao crédito para financiar a despesa
pública.

3.5.1.2. As caixas de amortização

As caixas de amortização são um outro sistema de amortização da dívida pública.


Estamos perante um modelo em que estado cria uma entidade dotada de autonomia
administrativa financeira – Caixa – que tem como missão a aquisição de títulos da dívida

25
A dívida pública | Sumário desenvolvido

pública. Habitualmente distinguem-se dois tipos de Caixa: as Caixas simples e a Caixa


de Price.

Na primeira versão – a das Caixas simples – o estado transfere, em cada período,


uma verba para a Caixa, valor este destinado à aquisição de títulos da dívida pública,
títulos estes que depois de adquiridos são destruídos. Estamos perante um sistema
semelhante ao das anuidades orçamentais, apenas com a diferença de que não há uma
obrigatoriedade de transferência anual de verba e de que a entidade tem autonomia
administrativa e financeira.

Na segunda versão, a Caixa também irá receber uma verba proveniente do


orçamento do estado, verba essa que apenas será transferida no primeiro período.
Contrariamente ao que sucede com as Caixas simples, na Caixa de Price os títulos não
são destruídos, sendo antes mantidos na titularidade da Caixa, permitindo a obtenção de
juros nos períodos seguintes. A designação da Caixa fica a dever-se ao facto de se tratar
de um modelo desenvolvido e defendido pelo financista inglês Richard Price21.

Os estudos e a conclusão de Richard Price eram baseados num modelo de


capitalização do rendimento habitualmente designado por juros compostos. E era este
modelo, que analisaremos já em seguida, que permitia à Caxa obter, em cada período,
rendimento para adquirir mais títulos, tornando desnecessária a existência de qualquer
transferência do orçamento do estado, com exceção da transferência efetuada no
momento inicial.

Num primeiro momento, que designaremos por período n0 o estado transferiria uma
determinada verba para a Caixa, valor esse que seria utilizado para adquirir títulos no
mercado. Assim, no período n1 e nos períodos que se seguem, a Caixa deve destinar os
juros que vai recebendo para adquirir mais títulos da dívida pública, títulos estes que vão
gerar juros, permitindo renovar a aquisição de títulos e assim sucessivamente. Após

21
RICHARD PRICE, Observations on Revisionary Payments; on Schemes for providing Annuities for Widows,

and for Persons in Old Age; in The Method of Calculation the Values if Assurances on Lives, vol. I, 5.ª ed,
T. Cadel, in the Strand, Londres (1772), cap. III, p. 181 e ss., em especial p. 185, ideia esta retomada pelo
mesmo autor em An Appeal to the Public on the Subject of the National Debt, T. Cadell, in the Strand,
Londres (1772).

26
A dívida pública | Sumário desenvolvido

alguns períodos a Caixa terá tido rendimento suficiente para adquirir todos os títulos de
dívida pública que tinham sido emitidos, e a dívida podia considerar-se extinta.

Atentemos no exemplo dado pelo próprio Richard Price: se a dotação inicial da


Caixa for de 100 000 e a taxa de juro de 4% isso significa que ao fim de um ano (n1) a
Caixa recebeu de juros 4 000; no ano seguinte (n2), o valor dos títulos a considerar para
cálculo do juro a receber é de 104 000, o que equivale a dizer que será recolhida a quantia
de 4 160 e assim sucessivamente. Passados 18 anos da criação da Caixa, esta terá
acumulado títulos no valor de 202 581,65; passados 36 anos, o valor ascende a 410 393,26
e, passados 95 anos, 415 138,59 (o valor dos juros seria de 166 045,54).

Extrapolando este exemplo para um caso concreto, pode dizer-se que se um Estado
pretender utilizar este modelo para amortizar totalmente uma dívida no valor de 100 000
emitida à taxa de juro de 5%, por um período de 50 anos, bastaria que criasse um Caixa
com uma dotação inicial de 15 000 para que, ao fim de 49 anos, a Caixa já tivesse
adquirido títulos no valor de 102 500,24. Findo esse período, a Caixa devia destruir os
títulos.

Se for possível comprovar a validade empírica do mecanismo referido, os estados


teriam à sua disposição um mecanismo que lhes permitia, com um pequeno esforço
financeiro inicial, pagarem emissões de dívida pública de valores muito mais avultados.
A amortização seria feita, não à custa dos estados, mas antes do poder “reprodutivo” dos
juros da dívida pública ou, se preferirmos, com base no funcionamento do mecanismo
dos juros compostos. Quanto a este ponto, e numa perspetiva puramente matemática, nada
há a obstar. O poder reprodutivo dos juros resulta diretamente do funcionamento do
mecanismo dos juros compostos e, deste ponto de vista, a proposta feita por Richard Price
é inquestionável. O erro – o erro de Price – não é de índole matemática, mas antes de
natureza jurídica acabando por contaminar a análise económica da aplicação dos modelos
desenhados com base nas Caixas de Price.

No momento da criação da Caixa, que designámos anteriormente por período n0, há


uma transferência de uma verba do orçamento do estado para aquele fundo e, quanto a
este ponto, a Caixa assemelha-se a um sistema de anuidade, mas aqui de periodicidade
única. Contudo, no período n1, e nos períodos seguintes, a Caixa vai receber juros dos
títulos que adquiriu nos períodos anteriores, como se de um credor externo ao estado se
tratasse, quando a realidade é diversa. E é precisamente ao tratar a Caixa como um credor

27
A dívida pública | Sumário desenvolvido

externo que Price incorre num erro jurídico que se revela fatal: no momento em que a
Caixa adquire títulos da dívida pública esta extingue-se por confusão22, cessando também
a obrigação do pagamento dos juros e demais compensações que a esta estivessem
associados.

O que acontece, verdadeiramente, é que ao pagar os juros dos títulos da dívida


pública que foram adquiridos pela Caixa o estado está a transferir para a referida entidade
uma anuidade no valor dos juros, anuidade esta que é crescente. Podemos dizer que o
valor dos juros sempre seria devido se os títulos se mantivessem na mão dos privados,
facto este que é verdadeiro, mas não podemos deixar de considerar o efeito jurídico da
aquisição dos títulos pela Caixa.

Do ponto de vista económico, os efeitos que decorrem da utilização de uma Caixa


de Price são semelhantes ao de um sistema de anuidades obrigatórias crescentes, mas no
qual só haveria verdadeira amortização nos casos em que a inscrição da dotação para o
pagamento à caixa dos juros no período n1 e nos períodos seguintes não implicar um
agravamento do défice.

Em jeito conclusivo, diremos que por referência aos arts. 868.º e seguintes do
Código Civil Português a implementação de um modelo deste tipo não padeceria, do
ponto de vista jurídico, deste “erro” uma vez que se considera que não existe extinção da
dívida por confusão sempre que o crédito e a dívida pertencerem a patrimónios separados.
Para além disso, do ponto de vista económico importa considerar que a titularidade da
dívida não é indiferente para a implementação de práticas gestionárias da mesma.

3.5.1.3. Os saldos orçamentais

No sistema de saldos orçamentais a amortização da dívida é feita com o recurso aos


saldos orçamentais positivos. Tal significa que apenas haverá amortização da dívida nos
casos em que a execução orçamental o permita, ficando a amortização suspensa nos
demais casos.

22
Analisaremos mais detalhadamente a extinção da dívida por confusão. Por agora importa referir que uma
obrigação se extingue por confusão no momento em que se encontram reunidos na mesma pessoa as
características de devedor e de credor daquela obrigação.

28
A dívida pública | Sumário desenvolvido

Um sistema deste tipo é eficaz para a extinção da dívida, mas esta eficácia tem como
contraponto a imprevisibilidade e irregularidade da amortização, uma vez que não é
previsível nem provável que existam saldos orçamentais positivos em todos os períodos
financeiros.

3.5.2. A amortização automática da dívida pública através da democratização

Diversa dos sistemas de amortização como causa de extinção da dívida pública é o


‘sistema’ proposto por Antonio de Viti de Marco. Este autor italiano refere que a dívida
pode extinguir-se sem que os estados tenham que se preocupar com isso. Para chegar a
esta conclusão, parte do pressuposto de que com o decurso do tempo todas as classes
sociais e todas as pessoas tendem a adquirir títulos da dívida pública, recebendo de juros
o mesmo montante que paga de impostos para o serviço da dívida.

No momento da emissão da dívida os títulos são adquiridos por quem tem dinheiro
disponível: os capitalistas. Estes receberão em troca juros. Se partirmos do pressuposto
que o montante que recebem de juros é superior ao montante que pagam de impostos para
o serviço da dívida então poderemos afirmar que esta dívida não implica qualquer encargo
para os capitalistas. Contudo, as outras classes sociais como os proprietários e os
trabalhadores sofrem uma perda, porquanto pagam impostos para o serviço da dívida e
não recebem qualquer rendimento s título de juros.

Com o decurso do tempo, os proprietários e os trabalhadores irão aforrar uma parte


do seu rendimento e destiná-lo-ão à aquisição de títulos da dívida pública (tendo em conta
que a aplicação de fundos neste tipo de títulos se apresenta como de maior fiabilidade e
segurança que os demais títulos com características similares).

Quando todas as classes sociais e grupos tiverem títulos suficientes para lhes
renderem os juros no mesmo montante dos impostos que pagam para o serviço da dívida
pública, esta deixará de constituir um encargo para qualquer uma delas. Poderá, pois,
considerar-se extinta de facto.

Esta teoria é contraditada pelas regras da experiência. A factualidade não tem


demonstrado que os títulos da dívida pública se dispersem pelas mãos de todos os
contribuintes, e, mesmo no caso em que tal suceda nem sempre os juros equivaleriam ao
montante pago a título de impostos.

29
A dívida pública | Sumário desenvolvido

Mesmo que aceitássemos que tal sucederia teríamos ainda que comprovar que os
contribuintes adquirem títulos da dívida pública para obterem juros que destinam ao
pagamento dos impostos e que, para além disso, cada contribuinte faz internamente a
compensação entre juros e impostos. O rendimento proveniente dos títulos da dívida
pública (os juros) é considerado por quem o recebe como um rendimento definitivo que
resulta da remuneração da cedência do capital enquanto que os impostos constituem um
ónus, um encargo definitivo, verdadeiramente irremissível, uma perda de rendimento cujo
pagamento é feito no cumprimento de um dever fundamental. Não há, pois, lugar à
extinção da dívida por democratização, o que se verifica é, em termos globais, uma
disseminação dos títulos da dívida pública por um leque mais alargado de contribuintes
sem que essa (re)distribuição tenha qualquer impacto no montante da dívida ou dos seus
encargos.

3.6. Efeitos económicos da amortização, no âmbito da política financeira

A opção pela amortização ou não da dívida pública num determinado momento tem
efeitos sensíveis sobre o andamento da economia. A opção pela não amortização em regra
não se reflete nos níveis de aforro e de consumo totais, pois os detentores dos títulos
muitas vezes limitam-se a conservá-los e receber os respetivos juros, não se preocupando
em transacioná-los no mercado para obterem liquidez. Já nos casos em que a opção seja
pela amortização, assistiremos a uma situação em que o rendimento disponível dos
detentores dos títulos aumenta, podendo aumentar o consumo, mas também o
investimento. O aumento do rendimento disponível no mercado pode provocar uma
descida da taxa de juro, e consequentemente um aumento do investimento.

Os efeitos decorrentes da amortização da dívida pública são diferentes de caso para


caso, variando em função do tipo de amortização e, sobretudo, da forma de
financiamento: novos empréstimos, impostos ou emissão de moeda23. Importa ter ainda
em consideração se estamos perante dívida pública interna ou externa.

23
Convém notar que o recurso à emissão de moeda como forma de financiamento da amortização da dívida
pública não é um mecanismo que esteja diretamente à disposição de todos os estados. É o que sucede com
os países que fazem parte da União Europeia aos quais está vedada a monetarização direta da dívida pública
embora, de modo indireto, possamos dizer que isso é possível.

30
A dívida pública | Sumário desenvolvido

No caso da amortização de dívida pública interna, os montantes serão devolvidos a


credores internos, permitindo aumentar o rendimento dos mesmos. Mas, tal não significa
que se dê um aumento do rendimento nacional. É necessário tomar em consideração a
fonte de financiamento desta amortização.

De um modo genérico podemos dizer que a amortização da dívida pública interna terá
efeitos expansionistas sempre que os efeitos expansionistas provocados pela devolução
do valor aos credores do estado sejam superiores aos decorrentes dos efeitos
contracionistas provocados pelo recurso a um determinado instrumento de financiamento.
Ora, se o financiamento for feito com o recurso a receitas provenientes dos impostos
verifica-se uma tendencial a redução do consumo e do investimento privados. Este efeito
pode ser compensado pelo aumento do consumo e do investimento dos credores que
receberam o reembolso. Há ainda que considerar a possibilidade de aumento da receita
fiscal por via do aumento de rendimento dos credores do estado. Efeito idêntico sucederá
se o financiamento da amortização for feito com o recurso a empréstimos internos. Mas,
se a receita utilizada forem os empréstimos externos ou a emissão monetária, o que se
verifica é um efeito expansionista, efeito este que pode ser minorado caso o acréscimo de
moeda em circulação venha a provocar um aumento generalizado dos preços.

3.6. Outras operações sobre a dívida pública


3.6.1. A novação objetiva, roulement ou conversão

Ao invés de extinguir a dívida o estado pode optar, caso as condições de mercado


assim o permitam, pela substituição dos títulos de uma dívida existente por novos títulos.
Em rigor, podemos dizer que estamos aqui perante uma novação objetiva ou roulement
da dívida pública, pois há a constituição de uma nova obrigação em substituição da

31
A dívida pública | Sumário desenvolvido

anterior – cfr. art.º 857.º do Código Civil –, levando à extinção da obrigação anterior24,
mas sem alteração das partes do contrato.

Dentro desta figura é habitual distinguir-se entre a conversão voluntária e a


conversão forçada.

Nos casos de conversão voluntária o Estado faz uma proposta de alteração das
condições contratuais, dando aos credores a possibilidade de aceitarem a conversão dos
títulos, de manterem os títulos que detêm ou de optarem pelo reembolso da quantia
mutuada25. Nesta última hipótese estamos perante uma conversão facultativa e caso os
credores venham a optar pelo reembolso a dívida extingue-se por pagamento.

A conversão forçada ocorrerá naquelas situações em que o Estado, no uso dos


seus poderes públicos, impõe a redução da taxa de juro ou a alteração de outras condições
contratuais. O credor não tem qualquer alternativa, ficando vinculado às novas condições
contratuais ditadas de modo unilateral. Esta possibilidade só muito dificilmente é
compatível com o princípio pacta sunt servanda previsto no art.º 406.º do Código Civil.

Qualquer que seja a modalidade de novação objetiva estamos perante uma


situação em que os títulos antigos são substituídos por novos títulos, sendo de esperar que
esta substituição permita o Estado emitente uma redução do peso global da dívida em
causa, seja porque a taxa de juro é menor ou porque houve uma alteração que levou a uma
menor onerosidade dos títulos26.

24
As alterações contratuais podem dizer respeito apenas ao juro – caso em que podemos dizer que estamos
perante redução de juro ou perante uma alteração do juro, do prazo ou condições de pagamento.
25
Podemos considerar, do ponto de vista teórico, a possibilidade de existência, logo no contrato inicial, de
menções específicas a alterações deste tipo que apenas podem ser mobilizadas pelo Estado e que não estão
sujeitas a autorização do credor, operações estas condicionadas e que habitualmente se designam por
operações swap ou similares. A inclusão dessas cláusulas a ser permitida, no entanto, levaria a que a
conversão deixasse de poder ser classificada como forçada, uma vez que existiria um acordo prévio para
essa novação. No contexto atual é muito difícil aceitar a existência de conversões forçadas nos casos em
que os estados se financiem no mercado de capitais em condições muito idênticas às que sucedem com os
demais atores económicos.
26
A alteração da rendibilidade do título nem sempre depende da alteração das condições contratuais
podendo resultar de outros eventos, nomeadamente da alteração dos benefícios fiscais de que gozam alguns
instrumentos de dívida pública. Nessas situações não estamos perante novação da dívida uma vez que não

32
A dívida pública | Sumário desenvolvido

A novação objetiva substitui a dívida existente por uma nova dívida sujeita a
condições contratuais diversas da anterior. Em termos genéricos não há, verdadeiramente,
extinção da dívida no sentido em que o seu valor não se viu reduzido, mas aquela dívida
extinguiu-se para dar lugar a uma outra, de igual montante, mas sujeita a condições
contratuais diversas e é precisamente por isso que se fala, a este propósito, em roulement
da dívida.

A par da novação objetiva encontramos outros tipos de novação: a novação


subjetiva e a novação mista.

3.6.2. Novação subjetiva

A novação pode consistir na alteração das partes intervenientes no contrato –


mantendo-se estáveis as demais condições contratuais. Esta possibilidade encontra-se
prevista entre nós no art.º 858.º do Código Civil e é designada por novação subjetiva27.

Nestes casos não só o novo credor se substitui ao antigo, como também o devedor,
neste caso o Estado, se vincula para com este novo credor por uma nova obrigação, nos
mesmos termos aos que haviam sido estabelecidos.

É também possível, embora não seja habitual, a substituição do devedor. Quanto


tal ocorra, o Estado fica exonerado perante o credor passando as obrigações existentes a
ser garantidas agora pelo novo devedor.

3.6.3. Novação mista

Por último, podemos encontrar situações em que se combinam a novação objetiva


e a novação subjetiva. Quanto tal suceda estamos perante uma novação mista.

há qualquer alteração das condições contratuais, mas, apenas e só, alteração de fatores que influenciaram a
escolha do credor, mas que são externos ao instrumento de dívida pública subscrito.
27
Artigo 858.º
(Novação subjectiva)
A novação por substituição do credor dá-se quando um novo credor é substituído ao antigo, vinculando-
se o devedor para com ele por uma nova obrigação; e a novação por substituição do devedor, quando um
novo devedor, contraindo nova obrigação, é substituído ao antigo, que é exonerado pelo credor.

33
A dívida pública | Sumário desenvolvido

Distintas da novação mista são a assunção de dívida (art.os 595.º e ss. do Código
Civil) e a cessão de créditos (art.os 577.º e ss. do Código Civil).

3.6.4. Confusão

A extinção da dívida por confusão ocorre nos casos em estejam reunidas, na


mesma pessoa, as qualidades de devedor e de credor. – cfr. art.º 868.º do Código Civil.

Como já referimos anteriormente o artigo 872.º do Código Civil exclui a extinção


da dívida por confusão nos casos em que, embora estejam reunidas na mesma pessoa as
qualidades de devedor e de credor, a dívida e o crédito pertencerem a patrimónios
separados.

Pode discutir-se se esta exigência se coloca quer ao crédito quer à dívida ou se


basta que o titular da dívida ou do crédito seja um património autónomo. Estamos em
crer, que basta que um dos titulares seja um património autónomo. Cessando a confusão,
renasce a obrigação com os demais deveres acessórios. A extinção da dívida por confusão
pode ser meramente temporária, ficando latente a sua existência até que a dívida se
extinga, de forma definitiva, através de outra causa de cessação.

3.7. O peso da dívida pública

A resposta à pergunta: “A dívida pública representa um encargo para as gerações


futuras?” parece óbvia e afirmativa. Tal como sucede com os privados que ao contraírem
empréstimos estão a aceitar sacrificar no futuro uma parte dos seus rendimentos para
suportar os encargos com o empréstimo (juros e amortizações/reembolsos), também no
caso da dívida pública esta opção representa a imposição de um sacrifício no futuro.

Curiosamente esta ideia que parte da analogia entre a dívida pública e a dívida
privada, apesar de ser aceite como regra quanto se trate de dívida pública externa, é
rejeitada por uma grande parte da literatura económica – nomeadamente por Teixeira
Ribeiro –, nos casos em que se esteja perante dívida pública interna.

Já os efeitos da dívida pública sobre a geração presente não parecem tão óbvios
embora exista um entendimento genérico de que só em circunstancialismos muito
específicos é que a dívida pública pode onerar a geração presente.

34
A dívida pública | Sumário desenvolvido

3.7.1. O peso da dívida pública externa

Na dívida pública externa o recurso à analogia entre a dívida privada e a dívida


pública faz sentido porque, em ambos os casos, há um credor externo. Já no caso da dívida
pública interna assim não sucederá.

No momento da contração do empréstimo há uma transferência de rendimentos


vindos do exterior e, no momento do pagamento dos juros e dos reembolsos o fluxo
financeiro é em sentido inverso, com a saída de rendimentos para o exterior. No momento
da emissão da dívida temos um aumento do Rendimento Nacional e, aquando do
pagamento dos juros e dos reembolsos, uma diminuição.

A dívida pública externa constitui, então, um encargo para as gerações dos


períodos em que são pagos os juros e em que a dívida é reembolsada, encargo este
revelado diretamente pela redução do Rendimento Nacional no exato montante dos
pagamentos feitos para o exterior para cumprimento das obrigações decorrentes da
contração de dívida pública externa.

Este efeito não pode ser anulado por qualquer outra via, embora possa ser
atenuado.

3.7.2. O peso da dívida pública interna


3.7.2.1. Análise do peso da dívida pública se considerada como um puro fluxo
financeiro

A discussão em torno da questão do peso da dívida pública interna pode ter por
base a análise da dívida pública como o um conjunto de fluxos ou tendo em consideração
os efeitos económicos que a contração da dívida, o pagamento dos juros e a amortização
podem originar.

35
A dívida pública | Sumário desenvolvido

Seguindo a primeira hipótese Teixeira Ribeiro28 sustenta que a dívida pública


interna não representa um qualquer encargo para a geração futura. E isto sucede apesar
de a coletividade – representada, em cada momento, pelos indivíduos que compõem essa
geração – ter que suportar o aumento de impostos ou a diminuição de despesas públicas
para que seja possível dispor de receitas suficientes para proceder ao pagamento dos juros
e das amortizações.

É que se ao invés de termos em consideração cada detentor de títulos da dívida


pública e cada contribuinte de modo individualizado, olharmos antes para o conjunto de
pessoas jurídicas e de pessoas físicas que constituem um dado país ou território,
concluiremos que o estado, quando cobra impostos (ou reduz despesa) para suportar o
serviço da dívida (juros e amortizações) vai provocar uma diminuição no rendimento
disponível de todos os que têm que suportar o aumento dos impostos e/ou a diminuição
da restante despesa pública.

Os contribuintes e os cidadãos e entidades residentes são ana é aqui analisada de


um ponto de vista global ou grupal, se preferirmos. Os impostos para suportar o
pagamento dos encargos com a dívida são suportados pelo mesmo grupo que recebe os
juros e os reembolsos, ainda que essa distribuição possa não ser uniforme. O que sucede
é apenas uma transferência de rendimentos do grupo de cidadãos que paga impostos –
contribuintes – ou sofre o impacto da redução da despesa pública para o grupo de cidadãos
que recebe os juros e os reembolsos, mas o grupo mais alargado que é constituído por
todos os cidadãos de um determinado país não vê o seu rendimento global alterado por
causa do pagamento dos juros e dos reembolsos. É como se se tirasse rendimento com
uma das mãos para devolver com a outra29. A sociedade globalmente considerada não
ganha nem perde. O montante que lhe é retirado a título de impostos para cumprimento
da dívida é o mesmo que lhe é devolvido.

A existir algum sacrifício, este ocorre no momento da contração do empréstimo,


quando os privados, ao emprestarem ao estado, renunciam a utilizações alternativas do
capital. O recurso à dívida pública (interna) como meio de financiamento não faz

28
J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Lições ..., cit, pp. 229.
29
Esta posição referida por Teixeira Ribeiro pode também ser encontrada em alguns textos do séc. XVII, e
foi recentemente retomada por Abba Lerner, que também entende a que a análise da dívida pública não
deve ter em consideração os credores nem os devedores de forma individualizada, mas o seu conjunto.

36
A dívida pública | Sumário desenvolvido

aumentar os recursos do país, pois o que está a suceder é apenas uma alteração (desvio)
da propriedade e utilização daqueles fundos.

Não obstante ter uma aceitação bastante ampla, esta teoria não está isenta de
críticas. David Ricardo e Jean Baptiste-Say30 rejeitam a validade da mesma por
considerarem que o argumento das transferências é falacioso. Idêntica posição é, mais
recentemente, retomada em parte por James Buchanan31 e, entre nós, por Aníbal
Almeida32.

David Ricardo parte do pressuposto de que todo o rendimento aforrado se destina


a ser gasto de forma produtiva, uma vez que cada cidadão tenderia a utilizar o seu
rendimento por forma a aumentá-lo ainda. Irá escolher uma utilização do rendimento que
lhe permita aumentar o stock de capital acumulado. Parte do pressuposto que a utilidade
marginal do capital não é, necessariamente, decrescente e que os efeitos positivos na
economia decorrentes da utilização de fundos provenientes da dívida pública interna
seriam apenas transitórios. Ao transferir rendimento dos contribuintes para os aforradores
não existe uma qualquer variação na despesa total e por isso, não há qualquer
consequência positiva do recurso ao envidamento. Já a absorção de rendimento destinado
a investimento pelo estado para o destinar a consumo tem efeitos muito negativos.

Jean Baptiste Say ao analisar o argumento das transferências avançado por


Mélon33 acaba por criticar as conclusões a que este chegou, tendo por base alguns dos
argumentos já avançados por David Ricardo: a concessão de um empréstimo ao estado é
nefasta para a economia porque pode levar à transformação de capital produtivo –
proveniente dos privados e que, ao menos em parte, seria destinado ao investimento – em
capital improdutivo, por se destinar a financiamento do consumo público, não gerando

30
Traité d'economie politique ou simple exposition de la manière dont se forment, se distribuent et se
consomment les richesses, livro terceiro, capítulo XI, Paris, 1831, pp. 540
31
JAMES BUCHANAN, Public Principles of Public Debt: a defense and a restatement, Homewood, Richard.
D. Iirwing, Inc., 1958
32
ANÍBAL ALMEIDA, Relatório com o programa, os conteúdos e os métodos de ensino teórico e prático da
disciplina de Economia e Finanças Públicas…, Coimbra, edição do autor, policopiado, (1991), ponto
2.2.3.3. Sobre o «peso da dívida pública», pp. 77 a 82, bem como as notas 173 a 182, pp. 98 a 102.
33
“Les Dettes d’un Etat, sont des Dettes de la main droit à la main gauche, dont le corps ne se trouvera
point assoibli, s’il a la quantité d’aliments necessaires, & s’il fait les destribuer.”, JEAN-FRANÇOIS MELON,
Essai Politique sur le Commerce, 1734, cap. XVIII, p. 246,

37
A dívida pública | Sumário desenvolvido

rendimento nos períodos posteriores; para além disso, o estado teria sempre que proceder
ao pagamento dos juros e dos reembolsos. Ora, se o valor arrecadado através dos
empréstimos foi destinado ao consumo, os juros e os reembolsos não podem ser
financiados a não ser através de rendimento proveniente, mais uma vez, dos particulares,
sejam novos empréstimos ou impostos. A contração de dívida provocaria, então um duplo
problema: diminuição do investimento privado que seria financiado por aqueles
rendimentos e diminuição do rendimento privado pela necessidade de arrecadação de
receitas para financiamento quer dos reembolsos, quer dos juros. O financiamento através
de impostos iria onerar pesadamente os que têm que os suportar.

Ao argumentos já referidos James Buchanan acrescenta outros: começa desde


logo por rejeitar a classificação como sacrifício da opção dos particulares em
emprestarem ao estado, renunciando assim a uma utilização alternativa do capital. Esta
cedência de capital é feita de forma voluntária, não fazendo qualquer sentido falar aqui
em sacrifício. Se um determinado indivíduo opta livremente por adquirir um título da
dívida pública em detrimento de um qualquer outro investimento alternativo é porque
presumivelmente considera que essa é a atuação racionalmente mais vantajosa em termos
económicos. Esta renúncia à utilização do rendimento noutra aplicação tem como
contrapartida direta o pagamento de juros ao credor, sabendo este de antemão que, findo
o prazo do empréstimo, receberá ainda o montante que emprestou ao estado. Na verdade,
o credor renuncia à utilização no presente de uma determinada quantia porque espera vir
a receber no futuro essa mesma quantia acrescida de uma outra: o juro.

O juro é, como já referimos antes, uma contrapartida resultante da celebração de


um contrato de mútuo oneroso. Tendo em consideração que a sua celebração é facultativa
pensamos não ser correto falar-se aqui em sacrifício para aqueles que emprestam ao
estado.

Para além disso, se utilizarmos uma visão “coletiva” da sociedade, na qual as


transferências dos privados para o estado do montante dos impostos pagos e o pagamento
do estado dos juros e reembolsos aos privados se anulam, estamos a ignorar as posições
individuais dentro dessa mesma sociedade.

Certamente que nesse país todos os cidadãos pagam impostos para o serviço da
dívida, mas nem todos são credores do estado. Ademais, mesmo aqueles que são credores
do estado não veem o valor dos impostos que pagam ser “compensado” pelo reembolso

38
A dívida pública | Sumário desenvolvido

da quantia que haviam mutuado ou sequer pelos juros que recebem. Isto sucede, desde
logo, porque os montantes de um valor e de outro podem não corresponder: alguns pagam
mais de impostos para o serviço da dívida do que o valor que recebem a título de
amortizações e juros e outros pagam de impostos para o serviço da dívida um valor
inferior àquele que recebem a título de reembolsos e de juros. Aceitar esta compensação
seria advogar uma posição idêntica à defendida por De Viti de Marco quando se refere à
extinção da dívida por democratização.

Por sua vez, Aníbal Almeida avança com uma fundamentação de natureza jurídica
para sustentar uma posição similar à avançada por James Buchanan: a diversa natureza
jurídica de um e de outro pagamento. Enquanto que o imposto é uma receita coativa e
unilateral exigida pelo Estado a todos os que cumpram os pressupostos previstos na lei, o
reembolso e os juros resultam de uma estipulação contratual e, por isso mesmo,
dependeram da vontade das partes no momento da celebração do contrato, sendo uma
contrapartida direta da renúncia alternativa do capital feita no momento da aquisição dos
títulos da dívida pública34. Dada a diversa natureza das duas prestações não é possível
recorrer-se aqui à compensação. O valor suportado a título de impostos é,
verdadeiramente, irremissível. É neste pagamento dos impostos necessários para o
pagamento dos juros e dos reembolsos que reside precisamente o sacrifício. Se estes
pagamentos vão ser efetuados no futuro, então serão as gerações futuras que verão os seus
rendimentos diminuídos por causa do empréstimo. Serão estas quem terão de suportar os
encargos dos empréstimos.

Estas duas posições parcem ser completamente contraditórias, mas permitem


tomar em consideração argumentos diferenciados e essencial para a compreensão das
consequências económicas e sociais que decorrem deste complexo fenómeno que é a
dívida pública.

34
ANÍBAL ALMEIDA, Relatório com o programa cit…, pp. 77 e ss. Esta voluntariedade, característica da
génese da dívida pública e que se manifesta no momento da subscrição de títulos representativos de dívida
pública não existe, verdadeiramente, nos empréstimos forçados. Ainda assim, consideramos que esta
situação ‒ excecional e anómala ‒ não impede que tais atos possam ser considerados como dívida pública,
embora devam ser designados como dívida pública em sentido impróprio, uma vez que a sua natureza
jurídica é mais próxima da dos empréstimos do que da dos impostos por desse ato impositivo unilateral
resultar a obrigatoriedade de restituição da quantia mutuada e a obrigação do pagamento de juros
compensatórios pela cessão temporária de liquidez.

39
A dívida pública | Sumário desenvolvido

A teoria tradicional destaca o facto de, nos casos em que se trate de dívida púbica
interna, nem a contração do empréstimo, nem o pagamento de juros ou a amortização do
mesmo terem um qualquer efeito sobre o rendimento nacional, contrariamente ao que
sucede com a dívida pública externa.

Da teoria sustentada por Buchanan e seguida entre nós por Aníbal Almeida,
resulta clara a ideia de que o sacrifício da contração da dívida interna se manifesta na
esfera dos contribuintes. Nesse sentido, a opção que se coloca aos Estados consiste em
financiar a despesa pública com recurso a impostos e, deste modo, onerar a geração
presente ou contrair empréstimos internos e transferir para as gerações futuras o encargo
com o seu pagamento. Serão essas gerações que verão os seus impostos aumentar para
que possam ser arrecadadas receitas destinadas ao cumprimento das obrigações
resultantes dos contratos de mútuo oneroso celebrados anteriormente.

Divergências não existem quando analisamos esta questão tendo em consideração


os efeitos sobre o rendimento e sobre o consumo da geração presente bem como sobre o
rendimento potencial das gerações futuras decorrentes do recurso ao financiamento da
despesa pública por meio de receitas creditícias.

3.7.3. Análise do peso da dívida pública interna se considerados os seus efeitos


sobre o consumo e sobre o investimento
3.7.3.1.Os efeitos sobre o rendimento da geração presente

Os efeitos nefastos decorrentes do financiamento da despesa pública com recurso


a empréstimos para a geração presente só são visíveis se o rendimento e, por essa via o
consumo, forem afetados.

Para prosseguirmos a análise teremos que começar por distinguir os potenciais


efeitos que decorrem da emissão de dívida pública numa situação de pleno emprego de
fatores, em que a produção global apenas pode aumentar dentro de limites muito
apertados, e as situações em que não existe pleno emprego.

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A dívida pública | Sumário desenvolvido

Caso a emissão de títulos da dívida pública ocorra numa situação de pleno


emprego de fatores iremos assistir a uma diminuição da provisão de bens pelos privados,
provocada pela necessidade de reajustamento dos meios de produção à nova procura,
passando os meios de produção existentes a ter que ser distribuídos entre provisão privada
e uma provisão pública acrescida. Importa ainda saber quais os efeitos deste desvio: se
houver uma diminuição da produção total de bens de consumo, a geração presente terá
que adaptar o seu consumo aos novos bens ou renunciar, ainda que parcialmente, ao
consumo. Esta necessidade de adaptação dos padrões de consumo que se pode traduzir
ou não na redução do consumo, materializa um encargo ou ónus para a geração presente.

Se, pelo contrário, a provisão de bens de consumo pelos privados se mantiver e o


efeito de redução se verificar nos bens de investimento (ou bens de capital) então a
produção de bens de consumo no presente não será afetada, não existindo, também,
limitação do consumo da geração presente.

Dito isto, conclui-se que o que importa determinar são as situações em que é de
esperar que a contração de dívida pública provoque a diminuição da provisão privada de
bens de consumo ou, em alternativa, de bens de produção. Tudo dependerá do
comportamento da taxa de juro no mercado.

Sempre que o Estado emite dívida pública concorre com os privados no acesso
aos fundos disponíveis no mercado. Esta atuação leva, em regra, a um aumento da procura
de fundos, sendo de esperar que a taxa de juro suba. Aumentando a taxa de juro, diminuirá
o investimento privado, mas não será afetada a provisão privada de bens de consumo.

Excecionalmente podemos encontrar situações em que, apesar do aumento da


procura de fundos, a taxa de juro no mercado se mantém. Nesses casos a produção de
bens e o investimento privados não sofrem quaisquer alterações e à procura de bens
privados acresce procura de bens pelo Estado. Como estamos numa situação de pleno
emprego, os preços só se manterão estáveis se a oferta conseguir aumentar na mesma
proporção do aumento da procura. Se isso não acontecer, dá-se uma subida generalizada
dos preços – inflação – com a consequente redução dos níveis de consumo.

Se a emissão de dívida pública ocorrer numa situação em que não existe pleno
emprego o aumento da produção de bens por parte do Estado não tem efeitos sensíveis

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sobre a produção de bens por parte dos privados a não ser naquelas situações em que a
economia se comece a aproximar do pleno emprego. Contudo, este aumento da procura
de fundos por parte do Estado pode ter efeitos sobre o consumo da geração presente e
sobre o rendimento das gerações futuras.

Mesmo numa situação em que não existe pleno emprego o aumento da procura de
fundos pode provocar uma subida da taxa de juro. Se isso acontecer haverá um
decréscimo do investimento privado, mas o consumo da geração presente não será
afetado. Mantendo-se a taxa de juro inalterada, vai manter-se o investimento privado e a
produção de bens de consumo também não será afetada. Como há fatores de produção
disponíveis a provisão pública pode aumentar sem que isso coloque em causa a provisão
privada e, como a um aumento da procura se pode responder com um aumento da oferta
também não estão reunidas as condições para que exista inflação.

Em jeito conclusivo, podemos dizer que consumo da geração presente só será


afetado se existir pleno emprego e a taxa de juro se mantiver, uma vez que o aumento da
procura de bens de consumo financiada pelas receitas provenientes da emissão de dívida
pública vai provocar um aumento da procura, sem que lhe corresponda um aumento
similar da oferta, provocando a subida generalizada dos preços dos bens e serviços e a
redução do consumo.

3.7.3.2. Os efeitos para as gerações futuras

Como se pode antever pelo que acabamos de referir, a emissão de dívida pública
constituirá um ónus para as gerações futuras nos casos em que se provoque uma
diminuição do rendimento e do consumo no futuro. Isto sucederá naqueles casos em que
o investimento privado no presente diminua e esse decréscimo não seja compensado pelo
aumento do investimento público com idêntica produtividade ou com rentabilidade
superior. Como também já tivemos oportunidade de referir, estes efeitos estão
dependentes do comportamento da taxa de juro no mercado.

Nos casos em que a taxa de juro no mercado não sofra qualquer alteração, o
investimento privado também se mantém. O investimento total pode aumentar se as
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verbas provenientes do empréstimo forem destinadas a investimento. Independentemente


da rentabilidade do investimento público financiado pelas receitas da dívida, assistiremos
a uma de duas situações: manutenção da capacidade produtiva do país e do rendimento
das gerações futuras ou aumento da capacidade produtiva do país e do rendimento das
gerações futuras. No cenário mais pessimista, o rendimento das gerações futuras não sofre
qualquer alteração.

A conclusão será diferente se estivermos perante uma emissão de dívida pública


que provoque uma subida da taxa de juro no mercado. Nessa situação existe uma
tendência para a redução do investimento privado com a consequente diminuição da
formação bruta de capital fixo no setor privado.

Se a receita arrecadada com recurso à emissão de dívida pública for destinada à


de bens de consumo no presente, então haverá uma diminuição do investimento total e,
por esta via, do rendimento e do consumo das gerações futuras.

Todavia, as receitas provenientes do endividamento público forem destinadas a


financiar despesas de investimento e este investimento tiver, pelo menos, idêntica
produtividade à do investimento privado que deixou de ser feito, então não há quaisquer
efeitos sobre o rendimento e o consumo das gerações futuras, uma vez que não só se
mantém inalterado o investimento total, como a produtividade do investimento se mantém
ou aumenta.

Em conclusão: para as gerações futuras, a dívida pública interna constituirá um


ónus sempre que o recurso ao crédito por parte do estado provoque a subida da taxa de
juro e a diminuição do investimento privado que daí decorre não seja compensada pelo
aumento do investimento público com, pelo menos, ‘idêntica produtividade’.

3.7.4. Efeitos sobre o crescimento e a distribuição de rendimentos; a


sustentabilidade da dívida pública.

A par dos efeitos sobre o rendimento e o consumo das gerações presente e futura
é usual falar-se nos efeitos que uma dívida pública de valor elevado pode ter sobre o
crescimento e, em geral, sobre os mercados.

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São bem conhecidas as consequências ao nível da acumulação de capital,


produtividade e crescimento económico que podem decorrer, direta ou indiretamente, de
níveis elevados de endividamento público e, se acrescermos ao endividamento externos
dos privados podemos encontrar, em determinadas situações, elementos que permitem
incrementar os efeitos negativos. Ao nível da dívida pública há que ter em especial
atenção os efeitos que a mesma tem sobre o crescimento da carga fiscal, mas, também
não podemos olvidar que temos tido vários exemplos de coexistência entre níveis
elevados de dívida pública e níveis elevados de crescimento económico.

Se tivermos em atenção a literatura económica teremos que concluir que os níveis


elevados de dívida pública vão influenciar a acumulação de capital e o comportamento
da taxa de juro a longo prazo, da adoção de políticas fiscais discricionárias, a inflação, a
incerteza e a volatilidade dos mercados financeiros, que acabaria por se estender aos
demais mercados.

Um volume de dívida pública elevado constitui potencialmente um entrave ao


funcionamento dos mecanismos automáticos de estabilização e às políticas públicas
contra cíclicas. Mas, apesar da evidência dos estudos ser corroborada por algumas
análises empíricas, outros estudos empíricos há que parecem contrariar todos estes efeitos
perniciosos decorrentes da existência de níveis elevados de endividamento público. O que
tem sido constatado é que nem sempre um aumento dos níveis de endividamento público
leva a um efeito proporcionalmente inverso nos níveis de crescimento do PIB. Tem sido
possível observar, isso sim, que um dos fatores que mais condiciona os efeitos do
endividamento sobre o crescimento económico se relaciona com o facto de os credores
serem internos ou externos, isto é, se, graças ao endividamento, a economia de um dado
país está muito ou pouco dependente de credores externos.

Esta ideia é realçada nos estudos mais recentes, que colocam a sustentabilidade da
dívida soberana dependente de três condições: crescimento do PIB nominal, taxa de juro
implícita na dívida e equilíbrio orçamental primário. Assim sendo, em países que, como
Portugal, apresentam uma taxa de endividamento superior a 120% do PIB – mais do que
o dobro do estabelecido pelas normas de Direito da União Europeia –, a redução do
endividamento tem que começar por se fazer a partir da limitação/diminuição dos défices
orçamentais, apresentando orçamentos equilibrados do ponto de vista primário e,
preferencialmente, superavitários, bem como com a diminuição dos encargos correntes
da dívida pública (vulgo, juros), uma vez que não pode recorrer quer à desvalorização
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monetária, quer à implementação de políticas de controlo da taxa de juro devido às regras


da União Europeia. Mas, já o referimos, importa também saber, qual a origem do
endividamento – quem detém dívida pública – e qual o destino das receitas arrecadadas
com recurso aos empréstimos – para onde vai o dinheiro.

Estudos recentes têm mostrado que o nível de endividamento externo de Portugal


tem decrescido, o que equivale a dizer que são instituições internas que detêm uma parcela
significativa da dívida pública portuguesa. Mas, quase tão importante como isso é o facto
de cerca de 51% da dívida pública portuguesa ser detida por organismos oficiais (dados
de setembro de 2017) e que apenas uma percentagem marginal de cerca de 0,5% do total
de mercado da dívida pública portuguesa ser negociada em mercado secundário. Todos
estes fatores agregados levam a que o risco de Portugal no curto prazo e de longo prazo
fossem classificados como baixo risco, mas a sustentabilidade da dívida e o risco de
médio prazo como elevados.

O outro problema – o do destino das receitas arrecadadas com os empréstimos –


leva-nos a refletir brevemente sobre a necessidade de escolha adequada das políticas
públicas. É que a opção entre despesas públicas de consumo e despesas públicas de
investimento parece ser importante para estes efeitos. Mas, se atentarmos nos efeitos do
designado multiplicador Keynesiano ou multiplicador orçamental podemos verificar que
esses efeitos são muito mais dependentes do destino das verbas – interno ou externo – do
que de outros fatores, aparecendo os limites da dívida pública ligados à capacidade de
crescimento do PIB nominal do país em causa e ao limite de aumento do nível dos
impostos para o serviço da dívida.

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Bibliografia complementar:

ABEL M. MATEUS. (coord.), Orçamento, Economia e Democracia: uma proposta


de arquitetura institucional, Estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2018

ANÍBAL ALMEIDA, Relatório com o programa, os conteúdos e os métodos de ensino

teórico e prático da disciplina de Economia e Finanças Pública, Coimbra, edição do


autor, policopiado, 1991 – cf., principalmente, 2.2.3.3. Sobre o «peso da dívida pública»,
pp. 77 a 82, bem como as notas 173 a 182, pp. 98 a 102, e Anexo III, Texto de Apoio à
matéria da 20.ª lição (6 páginas)

EDUARDO PAZ FERREIRA, «Novos Rumos da Dívida Pública», em Livro de


homenagem a Francisco Lucas Pires, Lisboa, UAL, 1999, páginas 3 e seguintes

EDUARDO PAZ FERREIRA, Da Dívida Pública e das Garantias dos Credores do


Estado, Coimbra, Almedina, 1995

JOSÉ JOAQUIM TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5.ª edição


refundida e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1996 ou posterior

MANMOHAN KUMAR e JAEJOON WOO, Public Debt and Growth, IMF Working
Papers, pp. 1-47, 2010, disponível em https://ssrn.com/abstract=1653188

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