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Universidade Federal do Ceará

Centro de Humanidades
Programa de Pós-Graduação em Linguística

Marcas linguísticas da interpretação psicanalítica


- heterogeneidades enunciativas e construção da referência -

Mariza Angélica Paiva Brito

Fortaleza
2010
Marcas linguísticas da interpretação psicanalítica
- heterogeneidades enunciativas e construção da referência -

Mariza Angélica Paiva Brito

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística


da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do grau de Doutor em Linguística.

Linha de pesquisa: Práticas Discursivas e Estratégias de


Textualização.

Orientadora:
Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil

Fortaleza

2010
Esta tese foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Doutor em Linguística,
outorgado pela Universidade Federal do Ceará, e encontra-se à disposição dos
interessados na Biblioteca de Humanidades da referida Universidade.
A citação de qualquer trecho desta tese é permitida, desde que seja feita de acordo
com as normas científicas.
Tese aprovada em: 26/03/2010.

__________________________

Mariza Angélica Paiva Brito

Banca Examinadora

__________________________
Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante - UFC (Orientadora)

__________________________________________
Profa. Dra. Maria Hozanete Alves de Lima – UFRN (1ª Examinadora)

___________________________________________
Profa. Dra. Silvana Maria Calixto de Lima – UESPI/UFPI (2ª Examinadora)

__________________________________________
Profa. Dra. Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin – UFC (3ª Examinadora)

__________________________________________
Profa. Dra. Emília Maria Peixoto Farias – UFC (4ª Examinadora)

__________________________________________
Profa. Dra. Maria Elias Soares – UFC (Suplente interno)

___________________________________________
Profa. Dra. Maria Helenice Araújo Costa – UECE (Suplente externo)

3
Para a Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante, cúmplice.

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AGRADECIMENTOS
À minha família pelo apoio incondicional.
À minha orientadora, Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante, pela
competência, dedicação e principalmente pelo tempo que dedicou a esta
tese.
À profa. Eulália, pela oportunidade que concedeu à Pós-Graduação de
conhecer os grandes teóricos da Linguística.
À profa. Maria Elias, sempre.
À profa. Hozanete, por ter aceitado com tanto carinho e interesse participar da
banca.
À profa. Silvana, pela amizade e competência.
Às profas. Margarete, Ana Célia e Emília, pela boa convivência.
À minha amiga Alena, pelas traduções e principalmente pela grande amizade.
Ao meu grande amigo Valdinar, pela generosidade.
Aos meus amigos Suelene, Antenor e Sâmia, pelo carinho inconfundível.
Ao meu amigo Franklin, pela paciência, em tudo.
Às minhas amigas Paloma, Gracy e Natália, pela convivência harmoniosa e feliz.
À minha mais nova amiga Gracinha e ao seu filho Felipe.
Às meninas e ao menino do Protexto: Jamille, karina, Adriana, Tatiana e
Júnior, pelos bons momentos no dia-a-dia.
Ao Grupo de Pesquisa Protexto, pelas discussões sempre produtivas.
À Letícia Adriana, à Otávia, à Livinha, à Dannytza, à Mirna, minhas
amigas.
Ao meu amigo Carlos Magno, único.
Ao Eduardo e à Antônia, pelo pronto atendimento nos momentos de aperreio.
À Capes e ao CNPq, pelo apoio financeiro.

5
“Você agiu conforme o seu desejo?”
Lacan (1988)

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RESUMO

Neste trabalho, tem-se como objetivo analisar, através dos processos interpretativos,
as marcas linguísticas do atravessamento do Outro no fio discursivo, tomando como
critérios as heterogeneidades definidas por Authier-Revuz (1982) como constitutiva
e mostrada, esta se subdividindo em mostrada marcada e mostrada não-marcada.
Trava-se uma discussão em torno do esquema proposto pela autora, com vistas a
repensar a discretização das modalidades de heterogeneidade constitutiva, a saber, a
constitutiva, em oposição à mostrada, de modo a incluir fenômenos de natureza não
estritamente formal entre os fatos de linguagem tidos como não-marcados, como é o
caso do atravessamento do inconsciente no fio discursivo, ampliando, assim, o leque
de marcações. Para argumentar em favor dessa “abertura” para uma outra cena
discursiva, recorreu-se a processos de referenciação, que podem desempenhar o
papel de eficientes marcadores discursivos, sem que, para tanto, precisem vir
acompanhados de indicadores formais (como propõe AUTHIER-REVUZ, 1982), que
assinalem convencionalmente essa marcação. Pretende-se, pela análise da cadeia
significante, analisar não apenas a construção de significados, como afirmava Lacan
(1990), mas também, e necessariamente, a elaboração de referentes. Do ponto de
vista psicanalítico, sempre haverá marcas linguísticas, diversificadas que sejam, pois
as “marcas” não são, ou não são apenas, as que o enunciador percebe, ou supõe
perceber, mas aquelas que se destacam sob a forma de um sobressalto na fala, ou de
um tropeço. Utilizou-se como exemplário a interação das novas formas de
comunicação que se realizam através da mídia eletrônica, que podem ser
encontradas, por exemplo, nos bate-papos virtuais, daí a importância de se analisar a
evolução dos referentes, na medida em que eles se prestam à construção dos vários
sentidos de um texto. Acredita-se que o referente ofereça pistas suficientemente
plausíveis para, através dele, alcançar as marcas de heterogeneidades na enunciação
do sujeito.

PALAVRAS-CHAVE: heterogeneidade, referenciação, inconsciente.

(205 palavras)

7
ABSTRACT

The main goal of this study is to analyze the linguistic marks of the Other in
the discourse thread through the interpretative process. The criteria used are the
heterogeneities, such as defined by Authier-Revuz (1982) as constitutive and shown.
According to the author, the shown heterogeneity can be marked and unmarked.
I discuss the scheme proposed by the author, with the aim of rethinking the
discretization of the modalities of constitutive heterogeneity, i.e., constitutive in
opposition to shown heterogeneity, including phenomena, which are not strictly
formal among the facts of language taken as unmarked, as it is the case of the
unconscious leaks through the discursive thread. To argue in favor of this “opening”
to another discourse scene we resort to referentiation processes. Those can act as
efficient discourse markers with no need of formal indicators (according to
AUTHIER-REVUZ, 1982). By an analyzes of the signifying chain we intend not
only to investigate the construction of meanings, as stated in LACAN (1990), but
also and necessarily the construction of referents. From the psychoanalytic point of
view there are always linguistic marks, even if they are diversified, because the
“marks” are not, or are not just, those the utterer realizes or supposes to realize, they
can also reveal themselves in a gap in the speech or in an hesitation. Interactions in
the new forms of communication emerged from the electronic media, such as the
chats, were used as a collection of examples. Hence the importance of analyzing the
elaboration of referents, since they serve to construct the various meanings of a text.
We argue that the referent presents clues, which are plausible enough to reach the
marks of heterogeneities in the speech of the subject.

KEYWORDS: heterogeneity; referentiation; unconscious.

(284 words)

8
SUMÁRIO

1. Introdução... ..................................................................................................................... 11
2. A Linguística da enunciação e as heterogeneidades do discurso... ............................... 17
2.1 A linguística da enunciação ....................................................................... 17
2.2 As heterogeneidades ................................................................................... 21
2.2.1 As primeiras rupturas: discurso direto, discurso indireto, autonímia e
conotação autonímia e conotação autonímica................................................21
2.3 heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva......................27
2.3.1 Os exteriores teóricos: polifonia e psicanálise........................................28
2.3.2 Conotação autonímica..............................................................................34
2.4 As não-coincidências do dizer....................................................................37
3. A interpretação psicanalítica e a heterogeneidade a posteriori....................................44
3.1 O dialogismo Bakhtiano e a noção de outro..............................................46
3.2 Heterogeneidade e referenciação...............................................................49
3.3 Uma heterogeneidade a posteriori na interpretação psicanalítica............54
3.4 Os tropeços de linguagem ..........................................................................66
4 A psicanálise e a influência saussuriana.... ...................................................................... 72
4.1 Lacan com Saussure ..................................................................................... 72
4.2 O signo para Saussure..................................................................................83
4.3 O referente para o signo saussuriano..........................................................86
4.4 Benveniste anunciado.................................................................................89
4.5 Act of excluding – o ato de exclusão do referente.....................................95
4.6 Significado, denotação e referência..........................................................100
5. A referenciação includere – o ato de inclusão do referente ..................................... 104
5.1 A referenciação..........................................................................................104
5.2 A recategorização de desejo......................................................................113
6. Metodologia e análise dos dados. .................................................................................. 120
6.1 Contexto da pesquisa.................................................................................120
6.2 Procedimentos metodológicos..................................................................120

9
6.2.1 Etapas do trabalho .............................................................................120
6.2.1.1 Contribuições para uma abordagem teórica das heterogeneidades
enunciativas...................................................................................................120
6.2.1.2 Contribuições para a relação indissociável entre significante,
significado e referente na cena interpretativa.............................................121
6.3 Critérios de constituição do exemplário ................................................122
6.4 Delimitação e caracterização do exemplário..........................................124
6.5 Categorias de análise................................................................................126
6.6 As novas formas de comunicação ...........................................................129
6.7 Análise dos dados.....................................................................................134
6.7.1 A voz dos outros....................................................................................134
6.7.2 A recategorização de referentes............................................................139
6.7.3 As não-coincidências do dizer..............................................................142
6.7.4 A negação recategorizada......................................................................144
7 Considerações finais. .. ................................................................................................... 206
8 Referências......................................................................................................................210

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1 Introdução

Sabemos que a Linguística Estrutural de Saussure escolheu, em meio à


multiplicidade de objetos que podem ser estudados dentro do que ele chama de
linguística externa, trabalhar com a langue, em detrimento da parole. Ainda que o
autor reconheça o outro lado da moeda, por uma opção metodológica, descartou a
língua em uso e consequentemente deixou de fora também de seus pressupostos o
referente. Embora as controvérsias teóricas em torno da produção do mestre
genebrino, no que diz respeito ao CLG, sejam polêmicas, na medida em que giram
em torno de um mesmo ponto: o signo linguístico, ainda assim, a teoria saussuriana
influenciou outras áreas de conhecimento e permanece como a grande referência
científica na área de Humanidades.
Importantes considerações já foram feitas, por grandes teóricos da Linguística
sobre a exclusão do referente, no entanto, nenhuma se preocupou, até agora, em
mostrar a incidência dessa posição na abordagem de outros campos de saber que
sofreram influência direta das formulações estruturalistas, como a psicanálise
lacaniana. Pretendemos mostrar que, na verdade, o referente nunca foi excluído das
formulações teóricas lacanianas, na medida em que a prática clínica é feita a partir
do uso. Desta forma, o signo é uma construção realizada pelo falante no momento da
interação, e o sentido é dado por cada sujeito de acordo com suas possibilidades
inconscientes. Entendemos que, pela análise da cadeia significante, chega-se não
apenas à construção de significados, como afirmava Lacan e como se repete
amplamente, mas também, e necessariamente, à elaboração de referentes.
Desde as suas primeiras elaborações teóricas que Lacan (1998) reconhece na
Linguística um terreno fértil para um trabalho em conjunto com sua área de atuação.
Em sua releitura da psicanálise freudiana, Lacan observa que nas teorizações do
grande mestre já se encontravam os primeiros indícios de aproximação entre as duas
grandes teorias. Podemos verificar isto nas afirmações precisas de Freud, muito
repetida entre os psicanalistas: “o inconsciente segue as leis da linguagem”; ou ainda:
“devemos analisar os sonhos ao pé da letra”, etc. Seguindo as pistas deixadas pelo

11
descobridor do inconsciente, Lacan aproveitou as teorizações de Saussure e
Jakobson, no que diz respeito, principalmente, à relação significante/significado e
metáfora/metonímia, respectivamente, para sua argumentação.
E é assim que até hoje muitos psicanalistas reproduzem fielmente a proposta
lacaniana, conforme constata Brito (2005), como se a Linguística toda se resumisse
apenas ao estruturalismo saussuriano com o qual Lacan trabalhou, sem questionar
alguns desses pressupostos linguísticos, nem avançar em direção a abordagens do
texto e do discurso, que têm em conta o uso.
Nosso estudo aponta alguns caminhos que se abrem para pesquisas
psicanalíticas posteriores que almejem pautar-se pelas atuais abordagens de texto,
discurso e enunciação. Settineri (2001) propõe, em sua pesquisa de doutorado,
realizar uma investigação linguística a partir do funcionamento da linguagem, no
decorrer das intervenções do psicanalista – a mesma meta que estamos perseguindo
neste trabalho, mas atendo-se aos mesmos pressupostos estruturalistas que respaldam
a psicanálise lacaniana. Para tanto, o autor se vale da pontuação, da escansão e da
interpretação para mostrar que essas intervenções seguem uma lógica e que
procuram promover a emergência do sujeito do inconsciente, consequentemente
introduzindo o falante na linguagem de seu próprio desejo.
Pensamos que uma das principais constatações de Settineri (2001) foi propor
uma nova forma de heterogeneidade: a que se dá a posteriori. Segundo o autor, a
heterogeneidade a posteriori é inferida por meio de um ato interpretativo, isto é, só
entra em ação a partir de uma intervenção do psicanalista. Através do ato
interpretativo, seria evidenciada a posteriori uma equivocidade na fala do sujeito.
Essa posição equívoca pode ser encontrada nos tropeços de linguagem,
especificamente nos lapsos. Neles, ocorre, geralmente, uma mudança, a troca de uma
palavra por outra, que, como argumenta Settineri, foi ressignificada em função do
cometimento da falha. Aproveitamos este conceito proposto pelo autor, mas
buscamos redescrevê-lo de modo a salientar que, existe não apenas uma
ressignificação, mas uma recategorização do significado inicialmente proferido.

12
Defendemos que, mais do que uma ressignificação, como assevera Settineri, ocorre,
por um outro prisma, uma recategorização do referente, além de processos
metonímicos de associação. Esta tese dá continuidade ao estudo que desenvolvemos,
em nossa dissertação (Cf. Brito, 2005), quando demonstramos que os processos de
referenciação sempre são, de algum modo, analisados numa interpretação, ainda que
a literatura sobre o assunto não explore esse aspecto, e ainda que a própria teoria
psicanalítica não tenha ciência desse procedimento em termos metodológicos. Um
dos nossos propósitos, agora, é descrever algumas dessas marcas linguísticas,
sobretudo as dos processos referenciais e as das heterogeneidades enunciativas, na
interação do enunciador na mídia eletrônica. Como argumentamos na dissertação,
na análise que fizemos da fala do esquizofrênico, os conceitos da Linguística de
Texto auxiliam na descrição científica da escuta psicanalítica.
Paralelamente a isso, abordaremos, em nossa pesquisa, um outro estudo, o de
Thá (2001), que descreveu os atos falhos a partir de um ponto de vista estritamente
linguístico e formal: através da semântica de modelo teórico. Thá afirmou com
Freud que existem um saber e uma verdade implicados em um ato falho. O autor
argumenta que, da perspectiva semântica, um lapso “expressa uma proposição”. O
que ocorre em um lapso é um déficit de saber, uma vez que o sujeito que o cometeu
não tinha consciência de uma outra proposição, que se manifestou por interferência.
Assim, “o lapso nada mais é do que o resultado da interferência entre essas duas
proposições, que indicam posturas distintas em relação a um mesmo fato” (THÁ,
2001, p.42). Isso, de modo particular, mobilizou a atenção de Authier-Revuz, na
medida em que a psicanálise também alega que, atrás da linearidade da emissão por
uma única voz, faz-se ouvir uma pluralidade de vozes, o discurso sendo
constitutivamente atravessado pelo discurso do O/outro. Esses tropeços assinalam a
revelação de um desejo inconsciente, ao mesmo tempo em que são o atestado de um
inconsciente estruturado como uma linguagem.
Também é nosso interesse, nesta pesquisa, mostrar que as formas de
heterogeneidade, num entrecruzamento de vozes do inconsciente, podem ser

13
encontradas em qualquer fala, daí por que exemplificamos com interações do
ambiente virtual, especificamente as dos chats. Consideramos fundamental o fato de
Authier-Revuz articular seu conceito de heterogeneidade enunciativa com o de
descentramento do sujeito em sua palavra, ou seja, várias vozes são sobrepostas,
restando somente ao sujeito uma ilusão normal e necessária para seu funcionamento
psíquico.
Analisaremos, através dos processos interpretativos, as marcas linguísticas do
atravessamento do outro no fio discursivo, tomando como critérios as
heterogeneidades marcadas e as não-marcadas definidas por Authier-Revuz.
Igualmente, seguiremos as heterogeneidades a partir dos processos de referenciação,
tendo em vista que o referente oferece pistas suficientemente plausíveis para, através
dele, alcançarmos as marcas de heterogeneidades na enunciação do sujeito.
Para tanto, trabalhamos com cerca de 30 falas dos sujeitos em interação nos
bate-papos virtuais. Identificamos os pontos mais reveladores, por assim dizer, do
diálogo e os associamos a uma outra cena para, desta forma, proceder a uma
simulação de interpretação, isto é, a uma demonstração de como tropeços do
inconsciente poderiam ser identificados numa sessão psicanalítica por marcas nunca
mencionadas na literatura sobre o assunto.
Tomamos como critérios de análise as marcas de heterogeneidade
identificadas em uma outra cena, aquela em que podemos observar o atravessamento
da voz do inconsciente, embora essas mesmas marcas possam também apontar,
simultaneamente, para outros discursos e influenciar na recategorização de desejos.
Recorremos, ainda, aos processos referenciais, que tomamos como critério de nossa
análise, para localizar os referentes na fala do sujeito.
Na primeira parte de nossa pesquisa, especificamente, no item 2, mostramos
que Authier-Revuz (1982) postula duas formas possíveis de manifestação da
heterogeneidade. A primeira, constitutiva, remete à presença do Outro diluída no
discurso, não como objeto, mas como presença integrada pelas palavras do outro,
condição mesma do discurso. A segunda, a heterogeneidade mostrada, marca o

14
discurso de modo a criar um mecanismo de distanciamento entre o sujeito e aquilo
que ele diz. Esta última forma de heterogeneidade pode ser ainda marcada e não-
marcada. A autora se volta inteiramente para as marcas descritíveis proferidas por
um sujeito que pensa ser dono de seu dizer. Para Authier-Revuz, as marcas só podem
ser identificadas porque o sujeito tem plena consciência de seu ato enunciativo: ele
para, olha, reflete e se distancia do seu dito. No entanto, cremos que outras marcas
podem ser observadas no dizer do sujeito, por isso decidimos, nesta pesquisa, refletir
sobre como essas marcas poderiam aplicar-se ao outro tipo de heterogeneidade,
ligada às vozes do inconsciente.
No item subsequente, abordamos um novo tipo de heterogeneidade, a
heterogeneidade a posteriori, esta conceituada a partir da interpretação realizada
através do ato do psicanalista.
Discutimos, no item 4, os principais conceitos psicanalíticos para mostrar que
através da análise da cadeia significante, chega-se não apenas à construção de
significados, como afirmava Lacan e como se repete amplamente, mas também, e
necessariamente, à elaboração de referentes. Para isso, lançamos mão da discussão
realizada por Bouquet (s/d), De Mauro (1995) , Joseph (1911) e Arrivé (1999) acerca
da concepção de signo saussuriano e o ato de exclusão do referente.
Resenhamos, ainda, no item 5, os conceitos básicos da referenciação e
propomos a recategorização de desejo, para mostrar que os trabalhos que se
ocuparam da recategorização, até hoje, descreveram-na sempre do ponto de vista dos
propósitos argumentativos do enunciador. É o que enfatiza Cavalcante (2004),
quando afirma que as expressões referenciais se prestam não apenas à identificação
de referentes, mas também podem exercer uma função argumentativa valiosa em
certos contextos discursivos. Mostramos aqui que a seleção das expressões pode estar
relacionada não só a esses propósitos, mas também a escolhas que dizem respeito a
uma outra cena, que pode facilmente ser identificada a partir dessas mesmas
expressões linguísticas que servem não somente à comunicação, mas também à
manifestação de um desejo inconsciente que se infiltra na fala do sujeito. A isso,

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demos o nome de recategorização de desejo, que é aquilo que o sujeito expressa, em
uma outra cena, mais além da comunicação de um discurso. Para tal intento,
utilizamos como exemplário as interações que se processam no ambiente virtual,
especificamente nos bate-papos.
No item 6, descrevemos a metodologia e a análise dos dados. Optamos por não
coletar um corpus, na medida em que nosso objetivo não é elencar as
heterogeneidades ou ainda classificar as ocorrências referencias, mas, sim,
demonstrar que é possível encontrar marcas linguísticas das heterogeneidades que
não se restrinjam a estabelecer relações metaenunciativas e argumentativas, nem
somente sociodiscursivas. Deste modo, entendemos que uma das contribuições
teóricas de nossa tese foi demonstrar que, do ponto de vista psicanalítico e
linguístico-textual, sempre haverá marcas linguísticas, diversificadas que sejam, pois
as “marcas” não são, ou não são apenas, as que o enunciador percebe, ou supõe
perceber, mas aquelas em que se destacam ou não sob a forma de um sobressalto na
fala, ou de um tropeço.

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2 A Linguística da Enunciação e as heterogeneidades do discurso

2.1 A linguística da enunciação

Authier-Revuz (1982) filia-se ao campo da Linguística da Enunciação; sua


abordagem teórica se ocupa das relações entre recursos linguísticos, clivagem do
sujeito, noções de tempo e de lugar. Para Teixeira (2005), as teorias da enunciação, de
um modo geral, preocupam-se com o locutor, com quem é o sujeito que enuncia,
com o interlocutor, para quem o discurso é produzido e com as marcas de sua
presença, com a situação em que a enunciação é produzida, tais como as marcas
espácio-temporais de produção do discurso e, por fim, com o referente, este
entendido como aquilo de que o discurso trata. As teorias da enunciação buscam
preencher as lacunas da linguística pelo argumento de que o estudo semântico dos
enunciados é insuficiente quando não se leva em conta a enunciação. As ditas teorias
da enunciação se referem ao conjunto de trabalhos que estudam os fatores e os atos
que provocam a produção de um enunciado. Para Teixeira (2005), essas teorias
buscam preencher as lacunas deixadas pela semântica no estudo da linguística,
evocando o argumento de que ela exclui a enunciação de suas teorizações.
Dentre as teorias da enunciação, destacamos o trabalho de Authier-Revuz
sobre heterogeneidade (que a autora refinou, depois, para as não-coincidências do
dizer). A perspectiva da autora é, em algum medida, tributária da Linguística de
Benveniste, que acrescenta à visão estruturalista de sua época, os estudos sobre a
subjetividade na linguagem, e é também herdeira de um pressuposto de Ducrot
ligado à noção de polifonia. Mas é principalmente na perspectiva do dialogismo
babktiniano que Authier-Revuz funda parte de sua teoria das herogeneidades.
A Linguística da Enunciação toma por objeto a enunciação entendida como
sendo da ordem do irrepetível, na medida em que dentro desse objeto inclui-se o
sujeito, porque, sempre que a língua é enunciada, têm-se condições de tempo, espaço
e pessoa singulares. Desta forma, a Linguística da Enunciação analisa na fala, no
enunciado concreto e vivo, proferido por um sujeito-enunciador real, numa situação

17
real de interação, as marcas linguísticas observáveis que inserem na cadeia de um
enunciado a subjetividade do locutor. Para Lopes (2008), o objeto da Linguística da
Enunciação, a qual Flores (2001) defende, está vinculado à dicotomia saussuriana
langue / parole, embora não derive nem de sua negação, nem de sua afirmação
absolutas. Segundo Flores, os fenômenos estudados nas teorias da enunciação
pertencem à língua, mas não se encerram nela; pertencem à fala, na medida em que
só nela e por ela têm existência e questionam a existência de ambas, já que emanam
tanto de uma quanto de outra. Podemos dizer, então, que para o autor a sua
Linguística da Enunciação situa-se na fronteira entre a langue e a parole
saussurianas. Lahud (1979, p.98) mostra exatamente isso quando entende que:

A Linguística da Enunciação visa não somente a um fenômeno que


não pertence à „fala‟, mas justamente a um fenômeno cuja existência
compromete a própria distinção língua-fala em algumas de suas
postulações. Nem da ordem da língua, nem da ordem da fala.

Flores afirma ainda que a Linguística da Enunciação toma para si não apenas
o estudo das marcas formais no enunciado, mas refere-se ao processo de sua
produção, ou seja, ao sujeito, ao tempo e ao espaço. No entanto, critica o fato de que
a Linguística da Enunciação não se centra no estudo das representações do sujeito
que enuncia e, sim, no próprio sujeito - este é objeto de outras áreas de estudo, não
propriamente da linguística. Tomando de empréstimo as concepções de Flores
(2001), Lopes (2008) faz eco com Fonseca (2007) quando afirma que situar-se no
campo da Linguística da Enunciação é tratar o sujeito como a representação que a
enunciação faz erigir em relação a ele e não tomá-lo como objeto de estudo dentro de
determinada teoria.
Ora, situar-se no âmbito da enunciação implica fazer girar a roda da
subjetividade com os riscos aí implicados. Dizer simplesmente que a enunciação se
define como uma reflexão sobre o dizer que é produzido pelo sujeito e não
exatamente sobre o dito, não encerra a questão, pelo contrário, suscita outras

18
reflexões. Esse dito é relevante na medida em que é por intermédio do sujeito que diz
que alcançamos o dizer e, por conseguinte, a enunciação.
Teixeira (2005) é precisa ao dizer que Authier-Revuz se filia a Benveniste, é
influenciada por Bakhtin e se distancia de Ducrot. Concordamos com a autora
quando diz que da obra de Benveniste, Authier-Revuz se aproveita de três pontos
fundamentais: o primeiro é o da propriedade reflexiva da língua, na medida em que
esta se coloca em relação privilegiada entre os sistemas semióticos; o segundo é o
reconhecimento de que há na língua uma ordem própria, sem com isso rejeitar o que
é da ordem do discurso; e o terceiro ponto, que, para nós, interessa particularmente,
é a indicação de que certas formas na língua (pronomes pessoais, performativos,
tempos verbais e delocutivos) são as marcas da presença de uma exterioridade que foi
excluída no ato mesmo da fundação da linguística. Milner (1982) afirma que essas
formas são sinais, na língua, do que lhe é radicalmente outro. Deste modo, a autora
destaca a importância da abertura à exterioridade para os estudos da linguística. Isso,
por si só, já confere um diferenciamento radical entre os pressupostos da Linguísitca
da Enunciação de Authier-Revuz e as outras. Os exteriores teóricos que a autora
convoca são o dialogismo de Bakhtin e a psicanálise lacaniana. Para ela, o campo da
enunciação é marcado por uma heterogeneidade teórica que reconhece como
inevitável a intervenção, na descrição dos fatos da língua, de escolhas estranhas à
linguística como tal, que dizem respeito ao sujeito e à sua relação com a linguagem.
Isto quer dizer que a heterogeneidade, a incompletude, a clivagem, o não-um é
constitutivo de toda enunciação. Segundo Authier-Revuz, um dos modos de rejeitar
a heterogeneidade é o que é representado pelas teorias que diluem o objeto da
linguística ou no social, ou no psicológico, ou no biológico. Outro modo de rejeição
da heterogeneidade seria o do fechamento à exterioridade pela suposição da
autonomia do campo da linguística, e este é o principal ponto em que ela rompe com
Ducrot. Segundo Teixeira (2005), Authier-Revuz critica Ducrot exatamente pela
ausência de explicitação de uma exterioridade teórica para a linguística, o que o faz

19
defender uma concepção intralinguística do sentido, apreendido como uma
representação que um enunciado traz em si mesmo de sua enunciação:
A abordagem ducrotiana promove uma espécie de „proteção‟ do
objeto contra a „contaminação‟ externa, um reforçamento de
fronteiras, que vem restaurar a homogeneização (imaginária) de um
campo que é heterogêneo na sua essência. Authier-Revuz ressalta o
caráter fantasmático dessa pretensão à „pureza linguística‟.
(TEIXEIRA, 2005, p.138)

Para nossa pesquisa, é importante destacar a observação que Teixeira faz


sobre a diferença entre a heterogeidade de Authier-Revuz e a concepção de
alteridade de Ducrot (1987), porque esclarece a noção de sujeito clivado com a qual
trabalharemos. Ducrot concebe a alteridade como valor constitutivo do próprio
enunciado, como algo interno, no âmbito da Teoria da Argumentação na Língua
(TAL). Por outro lado, a heterogeneidade constitutiva da enunciação da autora,
pensada a partir de seus exteriores: o dialogismo de Bakhtin e a psicanálise lacaniana,
refere-se ao heterogêneo absoluto, “um Outro radical que afeta a enunciação, ao qual
nenhuma representação pode atribuir papel num diálogo interno do dizer, como
acontece na teoria polifônica de Ducrot” (TEIXEIRA, 2005, p.138). Desse modo, a
alteridade de Ducrot, na qual o sujeito é múltiplo, desdobrado em locutores e
enunciadores que “falam” dentro de qualquer enunciado, distancia-se drasticamente
do sujeito dividido de Authier-Revuz. E disso a autora não abre mão, na medida em
que entende que as formas de representação que os enunciadores têm de seu próprio
dizer não podem ser tomadas apenas como um reflexo direto do processo
enunciativo, e muito menos a linguística deve ser tomada como uma totalidade, o
UM, uma ciência completa em si mesma, uma totalidade autônoma, sem outro, sem
falha, sem furo, sem real.

20
2.2 As heterogeneidades

Authier-Revuz (1982) elege dois tipos de heterogeneidades, denominadas de


constitutiva e mostrada, para designar o fenômeno de linguagem em que o
distanciamento entre as enunciações, a divisão das vozes discursivas e a clivagem do
sujeito-enunciador aparecem como fatos marcantes no uso da linguagem verbal. É
interessante, neste momento, retomar os primeiros estudos da autora para mostrar o
processo pelo qual ela passou até se dar conta da grande ilusão em que vivia ao
conceber seu objeto de estudo como total e uno. A grande reviravolta implantada por
Authier-Revuz, nos estudos linguísticos, foi assumir o pressuposto de que a língua é
não-toda, é dividida. Fonseca (2007), baseado na autora, revela:
A linguagem falha. Esse apotegma é facilmente comprovado pelos
inúmeros mal-entendidos, erros de interpretação e problemas
diversos que acontecem num ato comunicativo, sem importar em
qual domínio, gênero ou tipo de texto o falante se expressa. Essa
falha generalizada autoriza o uso do termo “constitutivo” para
caracterizar o problema, pois, sendo constitutiva, a falha do sistema
linguístico é inevitável, no sentido de o sujeito-falante não ter
nenhum controle sobre ela. (FONSECA, 2007, p. 17)

A constatação de que há uma falha generalizada no sistema linguístico e que,


como demonstra Authier-Revuz, é constitutiva, como veremos mais adiante, já nos
autoriza a buscar as marcas linguísticas dessas falhas na enunciação mesma do
sujeito. Para compreendermos o percurso do pensamento da autora, comentaremos
sobre as primeiras abordagens da teoria até chegar às heterogeneidades como as
estudamos hoje.

2.2.1 As primeiras rupturas: discurso direto, discurso indireto, autonímia, conotação


autonímia e modalização autonímica

No texto de 1978, Authier-Revuz já planeja suas primeiras rupturas


com o discurso citado. Para Teixeira (2005), ela entende o discurso citado como um
relato de atos de enunciação e não simplesmente de palavras. Authier-Revuz

21
exemplifica com o discurso direto e com o discurso indireto (doravante DD e DI,
respectivamente) as variações morfossintáticas do fenômeno mais amplo do discurso
citado. Vejamos o exemplo:
Dizer {: “...” para o DD
Dizer {: que... para o DI
Authier-Revuz diz que o que, no DI, atesta uma operação de tradução, ou
seja, uma reutilização pelo locutor das palavras de um outro ato de enunciação, cujas
palavras originais foram irremediavelmente perdidas. Teixeira (2005) aponta para o
que essa análise tem de inovadora com relação à visão tradicional da gramática.1
Em seu texto, Palavras mantidas a distancia2, a autora aborda a questão das
aspas, mas sob uma perspectiva que aponta diretamente para o surgimento do outro
no discurso do sujeito. Primeiramente, ela liga ao sinal de distanciamento que o
locutor pode colocar quando escreve. Vale observar aqui que, para a língua francesa
principalmente, as aspas têm dois valores diferentes no seu uso: a autonímia e a
conotação autonímica. Esses termos pertencem ao semioticista Rey-Debove (1978,
p.144) e é dele a famosa frase: tome um signo, fale dele e você terá uma autonímia . E
é dele que Authier-revuz se vale em suas teorizações para definir o seu objeto de
estudo privilegiado, a modalização autonímica.
Por exemplo, em uma frase do tipo A palavra “boneca” tem três sílabas, a
palavra “boneca” é vista como tendo sido mencionada pelo locutor e não usada por
ele, o que configura um caso de autodesignação do signo, exatamente o que
caracteriza a autonímia. No entanto, Authier-Revuz não se restringe a reduzir esse
fenômeno a um emprego especial de menção em oposição ao seu emprego normal,
ou seja, em uso. Para ela, o signo autonímico é um outro, que não o signo em uso e
também não o signo em menção. Na passagem do signo comum ao signo
autonímico, uma transformação ocorre: signo de semiótica simples a um signo de
semiótica complexa, ou seja, nasce um novo signo, homônimo do primeiro.

1
para a gramática tradicional o que é um mero marcador da variação morfossintática que ocorre
na passagem do DD ao DI.
2
Cf o texto no original em francês: Paroles tênues à distance, 1981.

22
Em outros termos, o signo autonímico é um outro signo, mas que apresenta os
mesmos significantes do signo normal – em uso -, aquele que tem significante e
significado, assim como o de Saussure. Assim ilustra Authier-Revuz (1995) o seu
raciocínio com esses exemplos:
(a) Compor é difícil.

(b) “Compor” é uma palavra ambígua.

(c) É um “marginal”, como dizemos hoje em dia.

Em (a), podemos encontrar o emprego normal do signo. Isso porque


compor é um signo simples cujo significante é /kõp‟or/ e o significado é <compor>.
No exemplo (b), é como se o signo “compor” tivesse dois andares3. Temos aí um signo
autonímico cujo significante é /kõp‟or/ e cujo significado, equivalente à palavra
compor, é formado pela união do significante /kõp‟or/ e do significado <compor>. É
pelo fato de o significante ser parte integrante do significado do signo autonímico
que lhe é atribuído um estatuto semiótico complexo.
Note-se, desde já, que as explicações de Authier-Revuz (1995), no que tange à
distinção entre uso, menção e autonímia, recorrem à definição de signo do
estruturalismo clássico, que limita o signo a duas metades: significante e significado,
excluindo, pois, o referente. Esta não é a concepção de signo que adotamos em nossa
pesquisa, conforme discutiremos no item 4. O signo, para nós, inclui,
necessariamente, um referente, mas – ressalve-se – não um referente que
corresponde às coisas do mundo em si mesmas e, sim, uma representação situacional
e discursiva delas.
As aspas em (b), para Authier-Revuz, representam um corpo estranho, um
objeto mostrado ao receptor, diferentemente das aspas do exemplo (c), que está se
referindo4 a um indivíduo que se encontra à margem da sociedade para, então, a
palavra “marginal” ganhar voz. Dessa forma, estamos diante de um caso em que:

3
Cf. Authier-Revuz (1995, p. 30)
4
Observe-se que Authier-Revuz se vale da noção de referente dentro do signo, para propor a
complexidade do significado autonímico e da conotação autonímica.

23
A palavra torna-se objeto do dizer ao mesmo tempo em que é
utilizada: fala-se da “coisa” e simultaneamente da palavra pela qual
se fala da “coisa”, acumulando-se dois empregos: o uso e a menção.
(...) Relativamente à semiótica denotativa que fala do “mundo” (...)
e à semiótica metalinguística que fala do signo via autonímico (...), a
conotação autonímica aparece como uma estrutura em que se
acumulam as duas semióticas, constituindo um modo bastardo em
que se emprega e se cita o signo ao mesmo tempo (...). (TEIXEIRA,
p.142)

A conotação autonímica consiste, portanto, nesse fenômeno cumulativo de


uso e menção, assim como a autonímia, mas, diferentemente desta, a conotação
autonímica promove uma ressignificação e, para falar em termos de referente, uma
recategorização, ou seja, uma transformação do referente, aliada a uma modificação
complexa da significação.
Dessa forma é que Authier-Revuz elege para seu estudo as aspas de conotação
autonímica, que se distribuem em cinco possibilidades (esta descrição constituiu o
alicerce para o que, em estudos posteriores, a autora chamaria de não-coincidências do
dizer):

1. Aspas de diferenciação – são usadas em estrangeirismos, neologismos,


palavras técnicas e familiares, para assinalar a distância entre as palavras do
locutor e as dos outros:
(1) O “sit-in” dos estudantes defronte da embaixada...5
(2) A “giscardização” acelerada da administração superior.

2. Aspas de condescendência – usadas quando o locutor, assumindo uma posição


paternalista, utiliza uma palavra apropriada ao universo do receptor, mas,
como que a preservar a própria imagem, marca com aspas seu distanciamento
em relação a esse universo:

(3) Ora, muitas vezes, essa atividade da célula se torna lenta. A pele,
especialmente se for seca ou fina, “estica” e “se marca” por qualquer coisa.

5
Os exemplos fora retirados de Authier-Revuz (1980, 131).

24
É interessante destacar que a maioria dos usos das aspas está ligada a uma
espécie de defesa do enunciador, numa tentativa de preservação de faces. Brown e
Levinson (1987)6 consideram a polidez linguística como um sistema complexo de
estratégias que auxiliam no distanciamento de atos ameaçadores de face, que são
geradores potenciais de conflito na interação. Desta forma, baseados em Goffman
(1975), os autores criam uma nova teoria, denominada teoria da polidez. Esta diz
respeito às estratégias de polidez que são construídas durante a interação com o
intuito de prevenir a ameaça às faces dos interlocutores. Para Leech (1983), a polidez
linguística é uma estratégia de distanciamento conflitual que pode ser mensurada em
termos de níveis de esforço dentro do distanciamento de uma relação conflituosa,
assim como as não-coincidências do dizer. Deixaremos essa discussão para um futuro
trabalho que vamos desenvolver em outro momento. Voltemos para a terceira
classsificação de Authier-Revuz.

3. Aspas de proteção – usadas quando o locutor é levado a empregar palavras


que julga carregadas de um saber que não considera ter ou relacionadas a uma
situação social que julga não ser a sua; como forma de proteção, opta, então,
pelo aspeamento:
(4) A publicação por La Croix da entrevista de M. Beullac teve o efeito de
uma “bomba”.

4. Aspas de questionamento ofensivo – usadas quando o locutor é obrigado a se


expressar por meio de palavras que percebe como impostas pelo exterior,
tomando suas próprias palavras como interditadas; o uso das aspas é utilizado
como forma de defesa e demonstra “uma reação ofensiva em uma situação
dominada” (AUTHIER-REVUZ, 1981, p.132):
(5) Toda criança que vem ao mundo por “acidente” pode muito bem ser,
de fato, inconscientemente desejada.

6
Para saber mais sobre a teoria da polidez, ver: BROWN, P. & LEVINSON, S. Politeness:
some universals in language usage. Cambrige: University Press, 1987.

25
5. Aspas de ênfase – usadas como forma de ressaltar aquilo que realmente se
quer dizer; funcionam como uma resposta à suspensão de responsabilidade
própria a qualquer colocação de aspas; esse último tipo pode ser substituído
por itálico ou negrito, conforme a autora:
(6) (...) LA CROIX lhe traz as informações, as precisões, os números
graças aos quais você formará uma opinião (“sua” opinião) e graças aos quais você
não se deixará enganar com facilidade.

Vemos no empenho de Authier-Revuz, em seu estudo sobre as aspas, e isso


justifica a nossa atenção sobre ele, os primeiros passos para o que será o principal
pressuposto de seu propósito investigativo, qual seja, o de colocar em evidência as
rupturas enunciativas no fio do discurso do sujeito.
Interessante ressaltar a observação que Teixeira (2005, p.144) faz a respeito da
importância das aspas na obra de Authier-Revuz:
- as aspas são como o eco em um discurso de seu encontro com o exterior.
Dito de outro modo, elas são a manifestação, para o locutor, de uma borda colocada
no exterior, mas que constitui para ele um interior, seu discurso próprio, no qual ele,
somente assim, se reconhece;
- elas mantêm a ilusão, para o locutor, de que há palavras “suas”, pelo
distanciamento que promovem em relação a um exterior ao discurso, em função do
qual as palavras podem ser avaliadas em sua adequação.
A marcação das aspas indica o reconhecimento ilusório, para o locutor, de uma
outra voz, não-apropriada, vinda de outro lugar. Por outro lado, segundo Teixeira
(2005), as aspas atestam uma imperfeição constitutiva, pois, se a palavra com aspas
está na margem de um discurso, não é no sentido de que possa ser desprezada, pois se
trata de uma margem que delimita e constitui o discurso.
Desta forma, temos nesses primeiros estudos das aspas todo o germe do que
Authier-Revuz desenvolverá mais tarde sobre as falhas e as rupturas enunciativas
encontradas no fio do discurso, as heterogeneidades.

26
Ao reconhecer que a linguagem emerge num ambiente não-Um, assumimos
que há, na enunciação, marcas linguísticas observáveis desse fenômeno que Authier-
Revuz (1990; 1998; 2004) denominou de Heterogeneidade Enunciativa.

2.3 Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva

Authier-Revuz (1982) privilegia a dimensão do heterogêneo na enunciação


sob dois planos: o dos fatos de heterogeneidade, nas realizações linguísticas, e o da
heterogeneidade teórica, que afeta necessariamente o campo enunciativo. Nas
palavras dela: entendo, dessa forma, o inevitável não-fechamento do linguístico
sobre ele mesmo no sentido formal, que proíbe falar de enunciação sem se apoiar –
quer isso seja dito explicitamente ou não – em teorizações exteriores,
particularmente sobre o sujeito. (p.173)
Em seu artigo de 1982, a autora elabora as duas maneiras pelas quais podem
ser apresentadas a alteridade no discurso: heterogeneidade mostrada e
heterogeneidade constitutiva. As heterogeneidades mostradas são linguisticamente
descritíveis, afirma a autora; são elas: discurso indireto, aspas, glosas, etc. Elas
contestam a homogeneidade do discurso, mostrando o outro em sua linearidade.
Diferentemente, a heterogeneidade constitutiva, não-marcada em sua superfície, é
um princípio que fundamenta a própria natureza da linguagem, ou seja, é
constitutivo da língua. Isto é, a heterogeneidade constitutiva é um princípio da
linguagem e não pode ser abordado diretamente, pois não há materialidade de sua
existência abstrata. Fonseca (2007) afirma que isso é um pressuposto teórico
assumido com tom axiomático.
Para dar sustentação à sua heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu
discurso, Authier-Revuz lança mão de uma ancoragem exterior à linguísitca. Apoia-
se em duas abordagens “fora” do campo da linguística, ou seja, “não-linguística” da
heterogeneidade da fala e do sujeito; são elas, conforme já dissemos: o dialogismo
bakhtiniano e a psicanálise lacaniana. Assim explica a autora: “sem se perder ou se

27
diluir, mantendo-se em seu terreno, parece-me que a linguística deve levar em
conta, efetivamente, esses pontos de vista exteriores e os deslocamentos que eles
operam no seu próprio campo” (p.100).
Entendemos que, ao ter apontado para fora dos muros da linguísitica e ter
lançado as bases para uma pesquisa interdisciplinar, recorrendo a outras abordagens
fora de seu campo teórico, a autora já proporcionou a legitimação dos estudos que
trabalham na fronteira entre teorias distintas, como no presente estudo.
Não trataremos das heterogeneidades com o propósito principal de analisar o
atravessamento das vozes do outro, em diferentes discursos, mas com a finalidade de
refletir sobre o aparato teórico-metodológico que Authier-Revuz propõe, ainda que
não desenvolva, para as explicações das vozes do inconsciente.

2.3.1 Os exteriores: polifonia e psicanálise

Authier-Revuz (1982), ao propor a heterogeneidade constitutiva da


linguagem, articula este conceito à noção de dialogismo bakhtiniano, focalizando, de
modo especial, o lugar que o autor confere ao outro no discurso. Segundo a autora,
por trás de uma aparente linearidade, da emissão ilusória de uma só voz, outras vozes
ecoam. O diferencial entre a teoria bakhtiniana e a proposta por Authier-Revuz está
relacionado à incorporação, por parte desta última, da psicanálise freudo-lacaniana –
a noção de inconsciente – em seu escopo teórico. Esta é a razão pela qual é a
abordagem teórica da autora sobre o caráter “polifônico” ou heterogêneo da fala que
se aplica melhor à nossa pesquisa, e não a concepção de dialogismo tal como descrita
por Bakhtin, inteiramente voltada para o entrecruzamento de vozes representativas
de diferentes ideologias. Não é, pois, o viés sociológico da análise, propiciado pela
proposta de Authier-Revuz, que importa à nossa investigação, mas o viés
psicanalítico que o aparato teórico da autora favorece e que ainda não foi
sistematicamente explorado nos estudos situados na interface linguística e
psicanálise.

28
Interressa a Authier-Revuz a abordagem em torno de um sujeito
estruturalmente clivado pelo inconsciente, por outras vozes, diferentes das vozes do
“outro de Bakhtin”:

O outro de Bakhtin, aquele dos outros discursos, o outro-


interlocutor, pertence ao campo do discurso, do sentido construído,
por mais contraditório que seja, em discurso, com palavras
„carregadas de história‟; o Outro do inconsciente, do imprevisto do
sentido, de um sentido „desconstruído‟ no funcionamento autônomo
do significante, o Outro que abre uma outra heterogeneidade no
discurso – de uma outra natureza – que não aquela que estrutura o
campo do discurso para Bakhtin, está ausente do horizonte deste.
Há aí uma radical heterogeneidade, que parece ser recusada, nessa
teoria da heterogeneidade que quer ser dialogismo. (AUTHIER-
REVUZ, 1982, p.43)

O apelo da autora a tais exteriores justifica-se pelo fato de que ambos, em


bases diferentes, questionam radicalmente a imagem de um locutor, fonte consciente
de um sentido que ele traduz nas palavras de uma linguagem, e a própria noção de
linguagem como instrumento de comunicação ou como ato que se realiza no quadro
das trocas verbais. Desta forma, os dois pontos de vista, tanto do dialogismo, quanto
da psicanálise permitem articular uma teoria da heterogeneidade linguística a uma
teoria do descentramento do sujeito.
Na teoria bakhtiniana, é dada a possibilidade da ancoragem necessária da
heterogeneidade do locutor e do discurso. O dialogismo bakhtiniano faz da interação
com o discurso do outro o princípio constitutivo de qualquer discurso. Authier-
Revuz toma esse princípio em duas diferentes concepções: a do diálogo entre
interlocutores e a do diálogo entre discursos, referidos, sob a ótica da autora, com os
termos “interação e discursividade” (1982, p.140).
No primeiro modo, o dialogismo não se reduz ao diálogo face a face, pois o
que Bakhtin propõe é uma teoria da dialogização interna do discurso. Na concepção
do autor, a comunicação é muito mais que a transmissão de mensagens. O discurso
não é nunca individual, pois, em cada enunciado, em cada palavra, ressoam duas
vozes, a do eu e a do outro. Isto é, o dialogismo traz a ideia de que o discurso não se

29
constrói a não ser pelo atravessamento de uma variedade de discursos, as palavras
sendo já “habitadas” por outras e assim ad infinitum. Para Bakhtin (1993), não há
palavras neutras, todas as palavras estão fatalmente carregadas, atravessadas pela
alteridade. Todo discurso se encontra diretamente determinado por uma resposta
antecipada: “Ao se construir na atmosfera do já-dito, ele se orienta tanto para o
espaço interdiscursivo como para o discurso-resposta que ainda não foi dito, mas foi
solicitado a surgir, sendo já esperado” (p.89).
Teixeira (2005) diz, retomando Bakhtin, que somente um Adão mítico,
abordando com sua primeira fala um mundo ainda não posto em questão, estaria em
condições de ser ele próprio o produtor de um discurso isento do já-dito na fala do
outro.
A segunda concepção, à qual Authier-Revuz (1982) recorre, é a de diálogo
entre discursos. Para Bakhtin, o discurso não se constrói a não ser pelo
atravessamento de uma variedade de discursos, as palavras sendo já habitadas por
outras ressonâncias. Qualquer discurso se orienta para o já-dito, para o conhecido,
para a opinião pública. Bakhtin (1993) afirma ainda que todo discurso está também
imediata e diretamente determinado pela resposta antecipada, uma vez que, ao se
constituir na esfera do já-dito, ele se orienta para o espaço interdiscursivo como para
o discurso-resposta que ainda não foi dito, mas foi solicitado a surgir, sendo já
esperado.
Embora Bakhtin tenha se dedicado aos estudos dos efeitos estilísticos
engendrados no discurso literário, pela relação dialógica, não deixa de assinalar que o
fenômeno do dialogismo, em maior ou menor grau, encontra-se manifesto em todas
as esferas do discurso vivo.
Sabemos que a reflexão acerca do dialogismo extrapola o âmbito do estudo das
formas e gêneros literários, tendo muito a dizer às teorias do discurso e do sentido.
Consoante Authier-Revuz (1982), esse conceito faz da interação com o discurso do
outro a lei constitutiva de todo discurso. Esse outro a que Bakhtin se refere não é

30
nem o duplo de uma face a face, nem o diferente, mas é aquele outro que atravessa
constitutivamente o um, aquele que representa uma voz identificada a ideologias.
O outro de Bakhtin é eminentemente oposto ao outro impetrado pela
psicanálise. A psicanálise é trazida para o escopo teórico da autora pela dupla
concepção que apresenta de uma fala fundamentalmente heterogênea e de um
sujeito dividido em sua estrutura. Conforme Teixeira (2005), a palavra, supostamente
capaz de carregar em si uma intenção consciente que possibilita a comunicação
efetiva, frequentemente erra o alvo, tropeçando, falhando, de modo a quebrar a
continuidade lógica do pensamento e dos comportamentos da vida cotidiana. Essas
falhas, geralmente atribuídas ao acaso, estabelecem rupturas no discurso, levando o
falante a interromper o fluxo normal da conversa para pedir desculpas, tentar
reformular, apagar ou diluir seus efeitos.
Esses desvios, nomeados por Freud (1905, 1909) de atos falhos7, que se
apresentam sob a forma de lapsos, falsa leitura, falsa audição, perda, certos erros, etc.
e ainda podem ser detectados através de certos fenômenos psíquicos, como nos
sonhos, nos sintomas neuróticos e nos chistes8. Isso, de modo particular, mobilizou
a atenção de Authier-Revuz, na medida em que a psicanálise mostra que, atrás da
linearidade da emissão por uma única voz, faz-se ouvir uma pluralidade de vozes - a
descontinuidade: o discurso sendo constitutivamente atravessado pelo discurso do
O/outro. Esses tropeços assinalam a revelação de um desejo inconsciente, ao mesmo
tempo em que são o atestado de um inconsciente estruturado como uma linguagem.
O ponto nodal desse fenômeno para Authier-Revuz (1982) é a constatação de
que sempre nas palavras outras palavras são ditas, e é a própria estrutura material da
língua que permite a escuta dessas ressonâncias – não-intencionais, saliente-se - que
rompem a suposta homogeneidade do discurso. Dessa forma, a linguagem é duplicada
em uma outra cena pela própria linguagem, e isso se deixa surpreender na
linearidade, através de rupturas, choques e desvios. E o discurso deixa de ser apenas

7
Cf. exemplos de lapsos relatados por Freud no item 4 que trata da psicanálise.
8
Freud dedicou dois livros inteiros aos tropeços de linguagem: A psicopatologia da vida
cotidiana, de 1901, e Os chistes e sua relação com o inconsciente, de 1905.

31
explícito, e passa a ter o peso de um Outro, que ignoramos, ou recusamos, aquele cuja
presença permanente emerge sob a forma de uma falha.
Authier-Revuz (1982) diz que não há discurso próprio ao inconsciente; é na
fala normal que ele incide e insiste. O trabalho do inconsciente se faz na
materialidade da língua, sendo aí que a interpretação9 psicanalítica tem lugar:
Essa questão não pode ser tomada, estabelecendo-se uma relação de
transparência, ou seja, não se trata, para o analista, de produzir uma
tradução-comentário das palavras do paciente para chegar a um “sentido
oculto”, mas de um trabalho de escuta que se efetua sobre a materialidade
da fala. (p.127)

Compartilhamos com a autora esse mesmo ponto de vista de que o


inconsciente está presente em todo e qualquer discurso e de que o trabalho de
interpretação psicanalítica pode ser feito através das marcas encontradas na
materialidade da fala.
A autora articula a teoria da heterogeneidade da palavra a uma teoria do
sujeito efeito de linguagem. Para ela, a instância subjetiva não existe fora da ilusão e
nem pode ocupar uma posição de exterioridade em relação à linguagem, tampouco a
de centro de que emanariam, particularmente, a fala e o sentido.
A noção de outro com a qual trabalha Authier-Revuz - não como um objeto
exterior de que se fala, mas como condição constitutiva do discurso - tem sua
ancoragem fundada em Bakhtin e Lacan, como foi mostrado no item precedente, que
concebem esta entidade de maneira diferente. Para Bakhtin, a noção de outro
recobre os outros discursos constitutivos do discurso; o outro da interlocução cuja
compreensão responsiva é pressuposta pelo sujeito que toma a palavra; e o
superdestinatário, um terceiro invisível, situado acima de todos os participantes do
diálogo. Em Lacan, temos um Outro, assinalado com O maiúsculo, que é da ordem de
uma alteridade radical, o inconsciente, que se reverbera desde antes do advento do
ser no mundo; e um outro, grafado com o minúsculo, definido como outro
imaginário, lugar da alteridade especular.

9
Ver o item 4, em que discutimos a interpretação.

32
O que interessa à teoria da heterogeneidade enunciativa quanto aos
pressupostos de Lacan (1985) é o fato de ele situar o inconsciente como lugar de um
saber constituído por um material linguístico em si mesmo, desprovido de qualquer
significação, como sendo a própria história do sujeito: constitutivo dele, portanto.
Para o autor, o inconsciente é esse capítulo da “minha história” que é marcada por
um branco ou ocupado por uma mentira: isto é, o capítulo censurado. Mas a verdade
pode ser reencontrada; o mais das vezes ela já está escrita em algum lugar.
O inconsciente não é uma estrutura profunda, não revelada, de um consciente
que está aí de modo evidente como uma face visível de um inconsciente oculto.
Sendo assim, é a superfície mesma da língua que permite, através da linearidade de
uma cadeia, a inscrição, pelo que tropeça, dessa outra cena, e não é por um simples
reflexo que isso se processa.
Segundo o autor, não há verdade e significação possíveis fora do campo da
linguagem. O discurso do Outro é teorizado como sendo uma cadeia de elementos
discretos, que, para se fazer reconhecer, insistem de modo a interferir nos cortes
oferecidos no discurso, constituindo um sintoma, o qual se resolve inteiramente
numa análise de linguagem, porque ele próprio é estruturado como uma linguagem,
que ele é linguagem cuja fala deve ser libertada10, conforme afirma Lacan (1985).
Para a psicanálise, a fala, principalmente o falar de seu sofrimento, de suas
angústias, etc. o falar em análise, provoca o desenrolar de associações que acabam
culminando em pontos críticos da vivência do paciente. Estas associações envolvem
situações dolorosas e, na maioria das vezes, sintomáticas como, por exemplo, o
desenvolvimento de gastrites, asmas, enxaquecas e muitos outros tipos de sofrimento
físico. Através de sessões clínicas, o paciente pode vir a se “libertar” de alguns de seus
sintomas, todavia, isso não é uma regra e muito menos uma promessa de cura. Freud
(1890), no início de seus atendimentos clínicos a histéricas, chegou a denominar a
psicanálise de „talking cure‟ , ou seja, cura através da fala, demonstrando, desta
forma, a importância da fala para a psicanálise.

10
Cf. o exemplo do p‟tit soldats mais adiante.

33
Os exteriores teóricos convocados por Authier-Revuz, dialogismo e
psicanálise, trazem essencialmente a ideia de que todo discurso se mostra atravessado
pelos outros discursos e pelo discurso do Outro.

2.3.2 Conotação autonímica

Authier-Revuz elabora duas maneiras de a heterogeneidade se mostrar na


enunciação:
l. por meio da heterogeneidade marcada mostrada e
2. por meio da heterogeneidade mostrada não-marcada.
Fonseca (2007) reconhece que a linguagem emerge num ambiente não-Um e
assume que há, na enunciação, marcas linguísticas observáveis desse fenômeno que
Authier-Revuz (1990) denominou de Heterogeneidade Enunciativa. Ela tratou de
investigar as formas de heterogeneidade nas mais diversas configurações e nos mais
diversificados níveis de análise, caracterizando o que ela chamou de metaenunciação
reflexiva, que aparece no fio do discurso, na linearidade sintática, como um
momento pontual da enunciação através da qual o sujeito se deixa revelar como
dividido.
Nesses termos, a falha simplesmente ocorre, restando ao sujeito-falante
somente a capacidade de tentar diminuir seus efeitos, remediando, de alguma forma,
a lacuna provocada pelo fenômeno. Nas palavras de Settineri (1999), o falante
procura obturar a falta que o sistema linguístico apresenta.
Vejamos agora esses dois exemplos retirados de Fonseca (2007, p.150) para a
exemplificação das heterogeneidades dentro do discurso acadêmico:
7. Dessa forma, estaria afirmando que o sentido produzido pelo
texto como um todo ("wholes") e os padrões ("patterns") podem ser
demonstrados não através de contagens e medidas, mas por
diferentes possibilidades de interpretação da multiplicidade de
conotações.
(D.E.L.T.A. Texto 10)

8. As análises realizadas com base no esgoto dessa pesquisa [...]

34
Em 7, a enunciação é realizada em uma língua e, num momento pontual da
enunciação, o sujeito introduz uma outra língua, por meio da qual evidencia-se o
outro estrangeiro, para explicitar o termo original e, a um só tempo, proteger-se de
possíveis imprecisões de sentido. O rompimento da cadeia enunciativa por meio de
parênteses e a marca linguístico-formal empregada caracteriza a heterogeneidade
mostrada marcada. A marca, que nesse caso são as aspas, poderia ter sido outra, como
itálico ou negrito.
Já em 8, consoante a interpretação de Fonseca (2007), dá-se uma ocorrência
na escrita do que seria na oralidade um lapso de língua, ou um ato-falho. Segundo
Authier-Revuz (1982), casos assim não possuiriam qualquer marca formal, o que os
caracterizaria como um tipo de heterogeneidade mostrada não-marcada.
Objetar-se-á que o co-texto imediato e o contexto discursivo são
uma marca da heterogeneidade, no entanto, cremos firmemente
que, quando Authier-Revuz aborda as heterogeneidades, reporta-se
ao que é efetivamente dito, isto é, ao conteúdo enunciado e não ao
que se pretendia enunciar. É evidente, pelo contexto, que a
intenção do sujeito-enunciador era utilizar a palavra escopo e não
esgoto, mas o que foi dito - e justamente por isso se instaura a
heterogeneidade - foi esgoto, uma outra palavra, de um outro
contexto, pretendida por outras razões, que se apresenta, como no
jogo oportunista do inconsciente, o qual espera o sujeito distrair-se,
num momento preciso de enunciação, para tomar-lhe a palavra.
Exatamente por ser um processo inconsciente é que não há marcas,
pois o sujeito, em princípio, não percebe que teve sua enunciação
“invadida” por uma outra voz que não era a sua. (p.150, grifos
nossos)

A primeira pergunta que sobrevém a essa constatação do autor, fundada em


Authier-Revuz, é o que constitui, exatamente, uma marca, para a autora, e o que ela
representa. Pelo comentário, podemos inferir que são consideradas marcas as
indicações linguísticas de que o sujeito percebeu (deu-se conta de) que “teve sua
enunciação invadida por outras vozes” – leia-se: uma voz que representa o
posicionamento discursivo do outro.

35
Diferentemente da análise que realiza Fonseca, nestes exemplos, acreditamos
que o advento do inconsciente se deixa revelar por marcas. Além disso, estamos
propondo que o sujeito fazedor do lapso não é completamente alheio ao seu produto,
pelo contrário, segundo Thá (2001), existe, além de uma verdade relativa ao desejo
do sujeito, no cometimento do lapso, um saber sobre esse mesmo desejo, isto é, não
há inocentes para o que é da ordem do inconsciente. Embora Authier-Revuz não
trate analiticamente dessas marcas textuais, examinaremos na análise de nosso
exemplário as heterogeneidades que escapam da fala do sujeito no momento de sua
enunciação.
Para a autora, as formas de heterogeneidade mostrada representam uma
negociação obrigatória do sujeito falante com a heterogeneidade que o constitui e
que ele tem necessidade de desconhecer. E essa negociação assume a forma de uma
denegação11, na qual, segundo Settineri (1997), a emergência pontual do não-um é
mostrada e ao mesmo tempo obturada, isto é, o sujeito movido pela ilusão,
necessária, de ser o centro de sua enunciação, e ao mesmo tempo impossibilitado de
escapar da heterogeneidade que o constitui, abre, em seu discurso, espaço para o não-
um, por um processo que procura mostrar como homogêneo o que é heterogêneo em
sua essência.
Authier-Revuz vai se deter nessa problemática da dupla heterogeneidade sob
a forma das não-coincidências. O modo pelo qual se manifesta a negociação do
sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva é estudado por ela através da
modalização autonímica12, que é a propriedade de reflexibilidade da linguagem, a

11
Para Freud a denegação consiste em um pensamento oriundo do que foi recalcado, ou seja, do
que foi reprimido pelo sujeito, que ascende à consciência sob a forma de uma negação. O que
está em jogo na denegação é o ato de o paciente expressar um pensamento ao mesmo tempo em
que o nega veementemente. Freud observa que ao negar o paciente já está acolhendo na
consciência a ideia que foi rechaçada da consciência, muito embora ele não reconheça o vínculo
afetivo ligado ao pensamento negado. Por exemplo, quando o paciente, em determinado
momento de sua análise, diz: “eu não odeio a minha mãe”, ao proferir a sentença na forma
negativa o paciente permite que o conteúdo representacional da ideia incompatível com a
consciência possa se manifestar, na medida em que o afeto foi separado de sua representação
sob a forma de denegação, por isso a denegação é um mecanismo de defesa. Ao negar a
firmação, a ideia é revelada e o afeto mantido afastado da consciência. (Para saber mais sobre
este assunto, conferir o artigo de Sigmund Freud A negação, de 1925.)
12
Para aprofundar mais esse tema, ver a tese completa de Authier-revuz (1995)

36
capacidade que ela tem de ser sua própria metalinguagem. A autora mostra que as
formas da modalidade autonímica dividem a enunciação em dois territórios:
1. O do emprego standard das palavras, o território da coincidência;
2. O da inquietude crítica, que sente um problema e em função disso não
pode deixar a palavra funcionar sozinha, o território da não-coincidência.
Para Teixeira (2005), essas formas remetem à negociação obrigatória dos
enunciadores com as não-coincidências ou as heterogeneidades que,
constitutivamente, atravessam o dizer, representando, então, um ponto de não-um,
um ponto problemático na produção do sentido. Chegamos, assim, ao estudo de
Authier-Revuz (1990) que trata das não coincidências do dizer no fio discursivo.

2.4 As não-coincidências do dizer

As não-coincidências do dizer aparecem porque existe no discurso mais de


uma intenção além da de comunicar. Lacan (1959) afirma que a segunda intenção do
discurso como discurso, do discurso que se interroga, que interroga as coisas em
relação a si mesmo, em relação a sua situação no discurso que não é mais exclamação,
interpelação, grito, é uma necessidade de nomeação, é daí o corte repentino na
ordem linear do discurso para a inserção de uma não-coincidência do dizer, uma
necessidade de expressão.
Podemos dizer que as não-coincidências do dizer são um tipo especial de
heterogeneidade enunciativa construída a partir da modalização autonímica que
realizam, na linearidade enunciativa, um movimento de laçada reflexiva, na qual o
enunciado torna-se objeto da própria enunciação, cujo resultado primeiro é a
opacificação13 enunciativa. As modalizações autonímicas são de quatro tipos e

13
Opacificação enunciativa é um dos efeitos provocados pela modalização autonímica que
consiste em uma demonstração de que o sentido da enunciação em curso não é óbvio, isto é, não
é transparente a(o) sujeito(s)-enunciador(es). Em outras palavras, tome uma enunciação e fale
dela e teremos uma opacificação enunciativa. Rey-Debove (1978) apresenta esse princípio com
o signo linguístico em si e diz, ao pé da letra: “tome um signo, fale dele e temos uma
opacificação”.

37
mobilizam duas bases teóricas distintas que, rigorosamente, não se relacionam,
somente se justapõem.
As bases apoiam-se no dialogismo bakhtiniano e na interdiscursividade de
Pêcheux, e ainda no discurso teórico da psicanálise freudo-lacaniana. Esses tipos de
enunciados possuem vários formatos linguísticos e apresentam diversas funções
discursivas.
As modalizações autonímicas são descritas como fatos de não-
coincidência, e a heterogeneidade é um princípio constitutivo da linguagem;
desta forma, as não-coincidências do dizer constituem uma das maneiras de essa
heterogeneidade se materializar. Vamos a elas:

1. Não-coincidência interlocutiva entre enunciador e destinatário, em


glosas que, com estratégias bastante diversas, representam o fato de que uma
palavra, uma maneira de dizer, ou um sentido não são imediatamente, ou de
modo algum, partilhados – no sentido de comum a – pelos dois protagonistas da
enunciação. Por exemplo, digamos X; X, passe-me a expressão; X, compreenda...;
X, se você quer; X, se você vê o que quero dizer; etc., expressões utilizadas pelo
enunciador, na tentativa de reinstaurar a unidade de co-enunciação, no ponto em
que se sente ameaçado. Pode, ao contrário disso, assumir o ponto de não-
coincidência: X, assim como você ousa dizer; X, sei que você não gosta da palavra;
X, como você não diz; etc.
2. Não-coincidência do discurso com ele mesmo, em glosas que assinalam
no discurso a presença estranha de palavras marcadas como pertencentes a outro
discurso e que, através de um leque completo de relações com o outro, desenham
no discurso o traçado que depende de uma “interdiscursividade mostrada”, de
uma fronteira interior / exterior. Por exemplo, quando se diz: X, como diz fulano;
para retomar as palavras de X; X, no sentido que fulano emprega; X, no sentido
de tal discurso; etc.

38
3. Não-coincidência entre as palavras e as coisas, posta em jogo em glosas
que representam as pesquisas, hesitações, fracassos, êxitos, na produção da
“palavra certa”, plenamente adequada à coisa. Por exemplo, em: X, por assim
dizer; X, maneira de dizer; como eu diria? X; X, melhor dizendo, Y; X, não, mas
eu não encontro palavra; X, é essa a palavra; não há palavra; X, não existe outra
palavra; etc.
4. Não-coincidência das palavras com elas mesmas, em glosas que
designam, como uma recusa (por especificação de um sentido), ou ao contrário da
aceitação (por sua integração ao sentido) dos fatos de polissemia, de homonímia,
de trocadilho, etc., como em: X, em sentido próprio, figurado; X, não no
sentido...; X, nos dois sentidos; X em todos os sentidos do termo; X, é o caso de
dizê-lo, se ouso dizer; etc.
Vemos, desta forma, que a classificação da autora se volta inteiramente
para as marcas descritíveis proferidas por um sujeito que pensa ser dono de seu
dizer, ou seja, o sujeito, ao se deparar com a não-coincidência de seu dizer, se
volta para ele e faz um ato de reflexão-metaenunciativa. Para Authier-Revuz, as
marcas só podem ser identificadas porque o sujeito tem plena consciência de seu
ato enunciativo: ele para, olha, reflete e se distancia do seu dito. No entanto,
cremos que outras marcas podem ser observadas no dizer do sujeito, uma vez que
essa classificação, como podemos constatar, foi elaborada para uma
heterogeneidade relacionada ao outro e não ao Outro. Nesta pesquisa,
refletiremos sobre como essas marcas poderiam aplicar-se ao outro tipo de
heterogeneidade, ligada às vozes do inconsciente.
Consoante Authier-Revuz (1994), a utilização dessas formas
metaenunciativas é como uma costura aparente no tecido do dizer, visando a
obturar a falha constitutiva do sujeito. A autora privilegia as formas marcadas,
diretamente observáveis no fio do discurso: discurso relatado, retomadas,
reformulações no espaço de uma intertextualidade.

39
Cabe, aqui, esclarecer que, para Authier-Revuz, marca é sempre uma
marca de um outro que vem dobrar o mesmo, não pode ser tomada como
evidente, pois existe um processo de negociação em curso. Essas marcas não
têm o mesmo estatuto, segundo a autora, mas estão situadas numa escala que
varia de um grau maior a um grau menor de explicitação no fio discursivo.
Authier-Revuz (1998) desmembra os quatro tipos de não-coincidências
mostrados anteriormente em seis conjuntos de formas e alinha-os numa escala
que vai do que está linguisticamente marcado ao que depende estritamente da
interpretação. São elas:

a) Formas explicitamente metaeneunciativas completas: Eu digo X...


Nesse conjunto de formas, o caráter metaenunciativo é explicitado ao máximo
pela presença, na cadeia, de um elemento referente à pessoa, ao tempo, ao ato de
enunciação que comporta um Eu digo X.
9. (...) nessa horrível sala de espera, eu disse sala de espera, talvez seja outra
coisa.
10. (...) trata-se de uma pessoa muito chique, eu digo isso para falar como ela,
pois preferiria dizer esnobe.
b) Formas explicitamente metaenunciativas que implicam um eu digoX,
através de expressões circunstanciais (subordinadas, sintagmas proposicionais,
adverbiais): X, se eu posso dizer...
11. Os conselheiros receberam a ordem de deixar o país com armas e
bagagens, segundo o roteiro clássico.
12. ele era um estouro, agora a expressão não está mais na moda para que
possas me compreender.
c) Formas explicitamente metalinguísticas, com um elemento autonímico X‟
ou Y‟:X‟, a palavra X‟ é incoveniente...
No plano sintático-semântico – Eu digo X‟. Um elemento autonímico comparece,
dizendo alguma coisa a respeito do dizer de X: comentário, explicação, julgamento.

40
13. Ele tinha muito disso, como é que vocês chamam?
14. As sociedades beneficentes organizam jogos e concursos para animar sua
clientela, como dizem vocês.
d) Formas sem elemento autonímico ou sem elemento metalinguístico
unívoco: X, quer dizer, Y...
Contrariamente aos anteriores, esse conjunto de formas pressupõe elementos
contextuais e interpretativos. Ele se caracteriza pela presença de expressões
destinadas a comentar, explicar, retificar outras expressões: isto é, ou seja, quer
dizer, para não dizer, eu ia dizer, se posso dizer, enfim...
15. Essa noção de exportação já está ultrapassada; a globalização, quer dizer,
a difusão das atividades da empresa para todo o mundo (...)
16. As coisas se complicam no final da competição, enfim, se confundem.

e) Sinais tipográficos (aspas, itálico) e de entonação.


Os sinais desfazem a monolinearidade verbal e realizam, por superposição ou
incorporação material na cadeia, uma coincidência, no plano significante, entre a
enunciação e seu reflexo opacificante.
17. (...) “normal”, eu penso que essa palavra encontra aqui um sentido justo.
18. (...) ela se reproduz, por assim dizer, por cissiparidade.

f) Formas puramente interpretativas, que abrem para a heterogeneidade


constitutiva.
Nesse bloco, Authier-Revuz abre o campo, para as formas não-marcadas,
puramente interpretativas, da representação do dizer: alusão, ironia, discurso
indireto livre, metáfora, etc., que remetem a um além discursivo não identificado, o
espaço do interdiscurso14.

14
O conceito de interdiscurso, para Orlandi (2003), compromete a transparência antes conferida
aos discursos, de vez que é entendido enquanto memória discursiva, ou seja, como um conjunto
de já-ditos que sustenta, irremediavelmente, todo e qualquer dizer e que retorna sob a forma do
pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra.

41
Queremos mostrar que essa escala só se aplica a marcações de percepção
consciente, do equívoco, ou do que poderia parecer ao destinatário um equívoco.
Entendemos que, mesmo que o sujeito não se dá conta do seu dito, como no exemplo
do lapso do esgoto, mostrado anteriormente, há um saber implicado neste tipo de
enunciação e em outras semelhantes. Para Authier-Revuz, esses tipos de
heterogeneidade não são passíveis de análises descritíveis porque são não-marcados
em sua constituição.
Todavia, pensamos que, se a enunciação carrega um saber, então existe
consciência nesse dito, e isso já autoriza a identificação de uma marca, embora não
seja, necessariamente, o tipo de marca a que a autora se refere, com assinalações
tipográficas, ou com expressões autonímicas, de conotação autonímica ou de
modalização autonímica. Diremos que sempre haverá um tipo de marcação, pois,
afinal, é justamente essa marca de significante que salta que está na base dos estudos
psicanalíticos freudo-lacanianos. Acrescentamos, mais uma vez, que tais marcas
apenas permitem o início do processo de interpretação, que se construirá dentro de
uma outra cena, que leva sempre em conta a relação inseparável entre significante,
significado e referente. A escala da autora talvez só se aplique, então, a marcações de
percepção, consciente, do equívoco, ou do que poderia parecer ao destinatário um
equívoco. Nosso desafio é reconsiderar como seria essa escala na hora da pontuação
do analista.
Essa gradação alimentada pela autora, nas formas da modalização
autonímica, as quais se situam numa escala que vai das formas explícitas, passa pelas
formas marcadas menos explícitas, até chegar a um nível que não deixa marcas e que
depende essencialmente de um gesto interpretativo. Teixeira (2005, p.165) entende
que

O estabelecimento de uma escala que traduz o grau de explicitação


das formas abre a possibilidade de se tratar daquilo que não é
descritível no fio discursivo, mas ali deixa seu traço, como dizendo
respeito a um outro. Meu interesse por esse aspecto deve-se ao fato
de que é por ele que penso articular as abordagens de Authier-

42
Revuz e Pêcheux, ou seja, é por ele que se pode entender as
observações da autora ao domínio discursivo.

Assim como Teixeira, também nos interessa a possibilidade de abertura para


se tratar daquilo que se processa em uma outra cena, mas que, no entanto, deixa seus
rastros no fio discurso. Mostramos na análise que fizemos do nosso exemplário que,
através dos processos referencias podemos identificar as marcas da presença do
inconsciente do sujeito atravessando toda a enunciação discursiva, sem que
necessariamente para isso, o sujeito tenha sofrido o acometido de um ato falho. Para
tanto, nos ancoramos nos pressupostos psicanalíticos, nas não-coincidências do dizer
e nos processos referenciais.

43
3 A interpretação psicanalítica e a heterogeineidade a posteriori

Authier-Revuz (1982) afirma que a psicanálise interessa à linguística


sobretudo devido a seu olhar outro do sujeito falante; contrariamente à imagem de
um sujeito pleno e total, o sujeito psicanalítico é dividido, o que não quer dizer que
ele seja compartimentado, nem desdobrado. Daí a psicanálise tratar o sujeito como
um efeito, ou seja, o sujeito do qual ela faz sua matéria prima é efeito da linguagem.
Encontramos esse sujeito-efeito-de-linguagem nas manifestações do
inconsciente, que irrompe no curso da vida normal, cotidiana, através dos tropeços
de linguagem:

Atos falhos (erros: sobre lugares, tempos e pessoas...;


esquecimentos, perdas, hesitações, gafes; lapsos de fala, de escuta,
de escrita, de leitura, toda essa coleção de uma palavra por uma
outra), os sonhos como produtos significantes de uma intensa
atividade psíquica, a fala do corpo, cujas paralisias, dores
significativamente localizadas, gravidez psicológica, perdas de voz,
por exemplo, constituem manifestações que escapam da vontade
consciente do sujeito. (AUTHIER-REVUZ, 1982, p.49-50)

E por tudo isso escapar ao sujeito é que o trabalho psicanalítico consiste em


fazer ressurgirem conflitos esquecidos, demandas recalcadas, muitas vezes
portadoras de sofrimento, que agem sobre o falante, em sua vida presente, sem que
ele se dê conta disso. Para tanto, o psicanalista não se valeria de um “terceiro
ouvido”15 que lhe possibilitaria a entrada para as manifestações do inconsciente, uma
vez que o inconsciente está presente no discurso comum, normal. Não há um
discurso próprio do inconsciente.
Isto explica o comentário de Lacan (1998) de que o psicanalista só pode
regular o afluxo de seus ouvidos de acordo com o uso que o Evangelho acha normal:

15
Expressão colhida de Reik (1948) para a escuta psicanalítica: “o analista ouve não apenas o
que está nas palavras; ele ouve também o que as palavras não dizem. Ouve com o „terceiro
ouvido‟, ouvindo não só o que o paciente fala mas também suas próprias vozes interiores, aquilo
que emerge das profundezas de seu próprio inconsciente. É mais importante [para o analista]
reconhecer o que a fala oculta e o que o silêncio revela”. (Reik, 1948: 125-126)

44
ouvidos para não ouvir, ou, dito de outra maneira, ouvir só o que deve ser ouvido,
pois não existem nem terceiro, nem quarto ouvidos para uma transaudição direta do
inconsciente.
Também não podemos conceber a escuta psicanalítica do discurso como um
comentário ou uma interpretação, como a escuta de um “a mais”, a partir daquilo
que foi dito.
Para Authier-Revuz (1982), a língua é o lugar por excelência da interpretação
psicanalítica, não se tratando, por conseguinte, de passar de um sentido manifesto ao
latente através de uma explicação verdadeira do enunciado, mas de um trabalho que
é de corte, de pontuação, de colocação em eco, e que se efetua sobre a materialidade
da cadeia falada. Authier-Revuz (1982), apesar de se referir à relação
especificamente psicanalítica, ou seja, aquela que se dá em transferência, sustenta
que a língua é sempre a mesma tanto para o psicanalista como para o linguista, pois
ambos estudam a língua em seu funcionamento: “se a situação analítica é anormal, a
língua é a língua normal, não uma língua analítica” (p.55).
Segundo a autora, o trabalho do inconsciente, incidindo na materialidade da
língua, estaria presente já desde Freud quando este apontou os tropeços da
linguagem como um rico material interpretativo. Para ela, baseando-se em Lacan
(1979), o trabalho psicanalítico vem a ser a escuta dos significantes, que consiste na
busca de um significante escondido, e não de um significado conscientemente
pretendido, convencionado, para se chegar ao sentido do desejo.
O trabalho interpretativo de análise seria levar a ouvir ao mesmo tempo as
diferentes vozes do discurso, mesmo que habitualmente dissonantes. Por isso,
Authier-Revuz afirma que todo discurso é polifônico, daí conceber o discurso como
sendo atravessado pelo discurso do Outro e por outros discursos. Assim, a autora
entende que a alteridade é condição constitutiva de todo enunciado, e o sujeito que
fala não é a única fonte de seu dizer, conquanto lhe seja necessária essa ilusão.

45
3.1 O dialogismo Bakhtiniano e a noção de outro

Sob esta perspectiva, a noção de heterogeneidade não coincide por inteiro


nem com a concepção de dialogismo bakhtiniano, porque a ela se somam os
pressupostos da psicanálise lacaniana; nem com a concepção de polifonia, pois às
vozes do outro se acrescentam as vozes do inconsciente. Embora a origem do
conceito de polifonia esteja em Bakhtin, tal noção adquire uma conotação
diferenciada na perspectiva da Análise do Discurso que aqui adotamos. Segundo
Faraco (2003), Bakhtin defendia um mundo polifônico em que a multiplicidade de
vozes plenivalentes e de consciências independentes e não-fundíveis tivesse direito
de cidadania. Assim, a polifonia, para Bakhtin, era muito mais um conceito
filosófico, que representava a idealização de um mundo em que todas as vozes
pudessem ter o mesmo direito de se manifestar, ainda que de modo divergente, em
relações dialógicas intermináveis.
Por isso Faraco defende que o conceito bakhtiniano de polifonia não é
simplesmente um universo de muitas vozes sobrepostas, mas um universo em que
todas as vozes são equipolentes. É esse viés ideológico que parece diferenciar, em
Bakhtin, a noção de polifonia da noção de dialogismo, uma característica intrínseca a
todos os discursos. Assim, ainda que todo discurso seja dialógico, pode-se falar, do
ponto de vista ideológico, em tendências monologizantes de se impor ao discurso do
outro.
Nesse sentido, Bakhtin se posiciona contra qualquer tendência de
monologização da existência humana, isto é, contra qualquer tentativa de negar a
existência de um outro eu com iguais direitos e iguais responsabilidades, comenta
Faraco (2003). Daí Bakhtin (1981) afirmar que a linguagem se manifesta sempre na
comunicação dialógica daqueles que a usam. Toda a linguagem está impregnada de
relações dialógicas.
Bakhtin (1981) defendeu a ideia de discurso dialógico em oposição à de
discurso monológico e sustentou a noção de bivocalidade do discurso. Para

46
Espíndola (2004), o que Bakhtin denominou de discurso bivocal seria o discurso do
outro em nossa fala, somado ao nosso conhecimento prévio, de modo que não mais
seria o discurso do outro nem o nosso discurso, mas a soma dos dois.
Por um prisma psicanalítico, Lemaire (1988) postula que essa
heterogeneidade – para usarmos o termo da Linguística da Enunciação, repetido pela
Análise do Discurso – não se reduz ao dizer explícito nem apenas às vozes de outros
discursos; na verdade, o discurso carrega com ele o peso do outro de nós mesmos,
aquele que nós ignoramos ou recusamos.
Para Clément (1973), há continuamente um “avesso do discurso”, ou seja, o
avesso seria a pontuação do inconsciente. Não é um outro discurso, mas o discurso
do Outro, isto é, o mesmo tomado em seu avesso.
Vale lembrar que, na teoria psicanalítica, especificamente a lacaniana,
encontramos dois “outros”, isto é, um pequeno outro, grafado como um “a”
minúsculo e um grande Outro, grafado com um “A” maiúsculo, também chamado de
Outro. O pequeno outro é o nosso próximo, é aquele a quem nos dirigimos no dia-a-
dia e que está pressuposto, ou muitas vezes posto, marcado em qualquer discurso; é
esse outro de que se fala em Linguística de Texto, em Análise do Discurso e em todas
as abordagens sociointeracionistas. Para Lacan (1998), esse “outrinho” é repleto do
imaginário, é o nosso semelhante a quem dirigimos nossa demanda de atenção,
reconhecimento, afeto, etc. Já o grande Outro, por sua vez, é aquele para quem nos
voltamos sem saber exatamente a quem, na medida em que ele está presente em toda
a nossa constituição psíquica simbólica, desde o nascimento até depois da morte.
Settineri (2001) afirma, com Cadeau (1998), que o Outro é o lugar onde depositamos
as questões relativas à nossa existência, à sexualidade, à procriação e à morte.
Portanto, o Outro não é o inconsciente – como equivocadamente se afirma em
alguns estudos linguísticos –, ainda que tenha um pé lá, mas uma instância psíquica
que assume vários lugares ao longo da vida do sujeito. É para esse Outro que,
inconscientemente, nos dirigimos e, nessa relação com ele, deixamos escapar nossos
desejos, a nosso ver, de algum modo marcados na linearidade da fala.

47
Authier-Revuz (1982) pondera que o Outro não é um objeto ou um ser
(exterior do qual se fala), mas uma condição (constitutiva) para que se fale do
discurso de um sujeito falante que não é fonte primeira desse discurso:

Sob nossas palavras, outras palavras sempre são ditas; através da


linearidade da emissão por uma única voz, se faz ouvir uma
polifonia; todo discurso parece se alinhar sobre várias pautas de
uma partitura e o discurso é constitutivamente atravessado pelo
discurso do Outro. (p.69)

Note-se que a noção de polifonia, aqui, já assume um outro contorno, que se


aproxima da própria noção de heterogeneidade enunciativa que estamos adotando
neste trabalho. Daí Authier-Revuz (1982) articular sua teoria da heterogeneidade da
palavra com o descentramento do sujeito provocado pela psicanálise. Ela enumera
dois pontos principais relativos ao descentramento do sujeito:
* para o sujeito dividido, não há centro, de onde emanariam o sentido e a fala,
fora da ilusão do fantasma, no entanto manter a ilusão de um centro, ou seja, de uma
unicidade é função necessária e normal do eu;
* para um sujeito que é efeito de linguagem, não existe, fora da ilusão, posição
de exterioridade em relação à linguagem, de onde o sujeito poderia tomar distância.
Conforme Settineri (2001), essa representação fantasmática assume a forma
de uma denegação da heterogeneidade constitutiva, passando uma ideia de Um ao
não-Um, configurando-se uma divisão subjetiva do falante:

Ao circunscrever o outro, nos pontos da heterogeneidade do


discurso, o locutor instituiria o resto do discurso como adequado e
transparente, mostrando o ponto de heterogeneidade como
contingente e evitável, e dando a impressão de homogeneidade à
generalidade do discurso. Ao fazê-lo coloca-se na posição de
supostamente deter um domínio sobre seu próprio discurso. (p.35,
grifos nossos)

O locutor só teria domínio de seu próprio discurso a partir de um lugar de


ilusão, que, como já bem disse Authier-Revuz, é necessária e normal, na medida em

48
que todo discurso se constitui, pois, de acordos, recusas, conflitos, compromissos por
meio de outros discursos.

3.2 Heterogeneidade e referenciação

Authier-Revuz (1982) formula dois grandes tipos de heterogeneidade, como


já visto anteriormente:
1. a heterogeneidade constitutiva da enunciação, presente de modo
permanente, mas não diretamente observável, é o entrecruzamento de vozes do eu e
do outro em todo e qualquer discurso;
2. a heterogeneidade mostrada, que surge sob a forma de uma
representação pelo próprio sujeito falante, é intencional e contingente. A autora só
considera como “mostração” da heterogeneidade um conjunto de marcas explícitas,
outras “implícitas” que ela classifica e que têm sido repetidas pela literatura tanto de
heterogeneidade quanto de intertextualidade. Nesta pesquisa, vamos considerar um
leque mais amplo de mostração e de marcação.
Segundo Discini (2005), adaptando os pressupostos de Authier-Revuz a uma
análise semiótico-discursiva, o eu se constitui inevitavelmente pela relação do não-
eu com o outro, o que, para ela, ratifica a heterogeneidade constitutiva de todo
discurso, considerado como imanência do próprio texto. Esse outro está inscrito no
discurso, mas sua presença não é explicitamente demarcada. Na releitura que Lopes
(2008) faz dos pressupostos de Authier-Revuz (1982), a heterogeneidade constitutiva
é da ordem do não-representável, do não-localizável, pertencente à ordem real de
constituição do discurso, condição mesma de existência do fato enunciativo.
Authier-Revuz define o outro tipo de heterogeneidade, a “heterogeneidade
mostrada”, como “formas linguísticas de representação de diferentes modos de
negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso”
(1991, p.26).

49
Costa (2001, p 89) diz que é o próprio movimento enunciativo do sujeito
sobre sua própria enunciação:
É todo um movimento enunciativo de retorno do sujeito à sua
própria enunciação, que, ao mesmo tempo, representa a
consciência do sujeito falante da inconsistência de seu discurso e,
por outro lado, a ilusão de que ele pode recuperar, reconstituir sua
enunciação desintegrada pela heterogeneidade constitutiva.
Movimento contraditório, pois ele mesmo quebra a unidade do
sujeito, na medida em que este passa a se ver como outro e a ver
com os olhos de outro(s) seu próprio discurso.

A heterogeneidade mostrada desenvolve-se a partir da constitutiva, negocia


com ela, para mostrar o outro no fio do discurso.
Estas duas heterogeneidades não se excluem. Uma não existe em detrimento
da outra. Como lembra Lopes (2008), Authier-Revuz é enfática nesse sentido quando
nos diz que o heterogêneo constitutivo da enunciação está presente na modalidade
mostrada de heterogeneidade de maneira permanente, mas não diretamente
observável. As heterogeneidades co-existem no mesmo discurso.
Authier-Revuz subclassifica, como demonstrado no capítulo anterior, dois
tipos de heterogeneidade mostrada: as formas marcadas e as não-marcadas. As
formas marcadas são assinaladas, consoante a autora, de maneira unívoca, por meio
de discurso direto ou indireto, de aspas, de glosas, dentre outras formas.
Discini (2005) ilustra a heterogeneidade mostrada marcada com o seguinte
exemplo:

(19) “Muitas vezes, o denuncismo não contribui com a


democracia, como alguns pensam”, afirmou o presidente. Lula
também cobrou “mais eficiência” da agência. (p.121)

A autora acrescenta que, por meio do discurso direto, cria-se a ilusão de dar
significativo espaço à voz do outro. As aspas em “mais eficiência” apontam para uma
separação do eu, enunciador do jornal em relação ao outro, no caso, Lula.

50
Segundo Charaudeau e Maingueneau (2004), o co-enunciador pode
identificar as formas não-marcadas de heterogeneidade pelo discurso indireto livre,
por alusões, ironia, pastiche, etc.
Lopes (2008) chama a atenção para a familiaridade entre as heterogeneidades
marcada e não-marcada de Authier-Revuz e para as relações intertextuais explícitas
e implícitas feitas por Piègay-Gros (1996), na medida em que as autoras estabelecem
um caráter explícito e não-explícito para a intertextualidade.
Cavalcante (2006), no entanto, argumenta que toda intertextualidade se
revela por alguma marca, na medida em que o enunciador possui a consciência do
ato comunicativo que pretende realizar, daí a hipótese da autora, desenvolvida por
Lopes (2008), se pautar pelo reconhecimento de marcas diferentes de manifestação
das heterogeneidades - é o que Lopes chama de diferentes “graus de mostração”, que
vão desde os mais explícitos até aos menos explícitos, mas, todos mostrados, e isso
vai em contraposição à ausência de marcas textuais proposta por Piègay-Gros e por
Authier-Revuz. Lopes (2008) estende essa hipótese a todos os modos de
heterogeneidade mostrada, e reivindica que eles sempre apresentam algum tipo de
marcação. Desta forma, desconstrói o quadro classificatório de Authier-Revuz em
que esta faz uma separação entre as suas heterogeneidades: mostrada não-marcada.
Também fazem coro a essa posição os estudos de Jaguaribe (2005) e de Ciulla
e Silva (2005, 2008), para quem toda heterogeneidade mostrada é sempre marcada: o
que muda são apenas as marcas linguísticas:

Há de se perguntar, no entanto, se procede a distinção feita por


Authier-Revuz entre forma marcada e forma não-marcada. Haverá
algum discurso em que a heterogeneidade enunciativa não se
revele de algum modo? Entendemos que possa haver graus de
marcação, ou seja, marcações mais explícitas e marcações menos
explícitas. Perguntamos se não haverá sempre no discurso algo que
guie o leitor na recuperação da heterogeneidade enunciativa.
(JAGUARIBE, 2005, p. 68)

51
As pistas linguísticas que costumam ser associadas à marcação de outras vozes
são, de fato, as citações, o discurso direto ou indireto, as aspas etc. Todavia, dizemos,
com Ciulla e Silva, que outros recursos linguísticos podem denunciar a
heterogeneidade mostrada e que um deles são os processos referenciais.

Para Authier-Revuz, a heterogeneidade mostrada revela a voz do outro


inscrita no enunciado, e competiria ao analista do discurso reconhecer e examinar
essas vozes. Conforme comenta Ciulla e Silva (2005):

A metáfora utilizada por Authier-Revuz é a de que o discurso seria


um tecido cheio de furos, e as marcas da heterogeneidade
mostrada seriam os fios que suturam os furos. (...) A autora
distingue ainda as formas marcadas e não-marcadas da
heterogeneidade mostrada. As formas marcadas são aquelas que,
sendo explícitas, podem ser recuperadas no nível do enunciado, a
partir de marcas linguísticas que mostram a presença de uma outra
voz, através de formas, como “X, como diria...”. “X, ou melhor,
Y...”. As formas não-marcadas, em que “não há uma fronteira
linguística nítida entre a fala do locutor e a do outro” (Authier-
Revuz, 1982), são mais complexas, porque a heterogeneidade deve
ser reconstituída a partir de diferentes índices. São elas: o discurso
indireto livre, a ironia, a antífrase, a alusão, o pastiche, a imitação,
as metáforas, os jogos de palavras, a reminiscência. (p.49, grifos
nossos)

Ciulla e Silva acrescenta ser importante que se investigue a participação dos


processos referenciais como marcação de heterogeneidade mostrada – uma hipótese
que também investigamos nesta pesquisa, mas, diferentemente dos demais estudos
citados, priorizamos em nossa análise a heterogeneidade das vozes do inconsciente:

Porém, de acordo com as nossas observações, o que parece tornar


as ditas formas não-marcadas mais - ou menos - complexas é o
grau de dificuldade dos processos de inferência envolvidos na
operação de reconstruir as lacunas.
Em primeiro lugar, desperta-nos a atenção o que a autora
considera como formas não-marcadas, visto que, se a
heterogeneidade é recuperada a partir de algum índice, não seria
este índice uma marca? É aí que se incluem, por exemplo, os casos

52
de dêixis que podem indicar a presença de outras vozes. (CIULLA
E SILVA, 2005, p.49, grifos nossos)

Ciulla e Silva (2008) observa que o trabalho posterior de Authier-Revuz


(2001) reparte as formas de modalização autonímica em tipos que vão de uma escala
do mais ao menos explícito, sugerindo uma gradação em que as formas “puramente
interpretativas”, como as alusões, o discurso indireto livre e o jogo de palavras não-
marcado estariam mais próximas da heterogeneidade constitutiva, ocupando uma
posição de menos explícito no continuum. E Ciulla e Silva pontua que:

“jogo de palavras não-marcado” implica, ainda, em admitir que algo


foi dito sem ser dito, o que não faz sentido. Mesmo que alguém não
faça menção ao próprio jogo de palavras proferido, por exemplo,
isso não significa que o jogo de palavras não foi marcado, mas
apenas que ele não foi referido de modo metaenunciativo. (p. 114,
grifos nossos)

É importante para nossa pesquisa notar o modo como Ciulla e Silva (2008)
trata as heterogeneidades de Authier-Revuz. Numa análise voltada exclusivamente
para aspectos sociodiscursivos, Ciulla e Silva analisa as heterogeneidades não-
marcadas a partir dos processos referencias e ressalta que ocorre uma ancoragem
enunciativa sinalizada pelos processos dêiticos:

(20) Ela tem três filhos. Ela conduz e administra tudo aquilo com
uma atividade febril; impiedosamente, ela vai e vem: vestindo um,
banhando o outro, enfiando um chapéu neste rostinho, uma touca
neste pedacinho de cabeça, reformando calções, passando vestidos,
assoando o nariz deste, limpando aquele. (p.117)

(21) Felizmente o homem não jogara fora a caixa de papelão do


liquidificador. Voltou para o quarto. Cuidadosamente, colocou o
corpo de Betsy dentro da caixa. Com a caixa debaixo do braço

53
caminhou para a porta. Antes de abri-la e sair, enxugou os olhos.
Não queria que o vissem assim. (Rubens Fonseca, Betsy) (p.117)

Ciulla e Silva (2008) diz que, empregando as expressões dêiticas “neste


rostinho” e “neste pedacinho de cabeça”, nos exemplos acima, o narrador estabelece
uma relação de proximidade com o leitor, quebrando a distância, antes imposta pela
narrativa em terceira pessoa. Porém não há oposição; nesses casos, a função é a de
fazer o leitor entrar no universo da ficção, ou ainda, engajar o leitor na cenografia
(cena enunciativa). Portanto, considerar este e outros processos referenciais como
marcadores de heterogeneidade é imprescindível para a compreensão da produção
do texto e, por outro lado, comprova a marcação, sempre presente nas
heterogeneidades em maior ou menor explicitude.
Também é nosso interesse, nesta pesquisa, mostrar que as formas de
heterogeneidade, num entrecruzamento de vozes do inconsciente, podem ser
encontradas em qualquer fala, daí por que exemplificamos com interações do
ambiente virtual. Consideramos fundamental o fato de Authier-Revuz articular seu
conceito de heterogeneidade enunciativa com o de descentramento do sujeito em
sua palavra, ou seja, várias vozes são sobrepostas, restando somente ao sujeito uma
ilusão normal e necessária para seu funcionamento psíquico.
Uma das contribuições de nossa pesquisa será considerar as possibilidades de
analisar os casos de não-coincidências do dizer em situações de escuta psicanalítica,
ainda que não possamos realizar, aqui, uma análise empírica em que isso possa ser
demonstrado.

3.3 Uma heterogeneidade a posteriori na interpretação psicanalítica

Settineri (2001) acrescenta à classificação de Authier-Revuz uma outra


modalidade: o heterogêneo a posteriori. Esta constatação é a base para nossa
proposta de caracterização da cena interpretativa, em que se dá a construção de uma
outra relação entre significantes, significados e referentes – uma relação que nasce

54
na referenciação textual-discursiva, mas que se recria na cena da interpretação
psicanalítica.
O heterogêneo a posteriori só pode ser inferido por meio de um ato de
interpretação, no só depois:

Eis aqui uma das maneiras em que pode ser pensada uma
heterogeneidade “generalizada”, nos pontos em que, a princípio, não
poderia ser caracterizada uma forma marcada de heterogeneidade, mas
nos quais, posteriormente, por meio de um ato de interpretação, seria
evidenciada uma posição equívoca. (SETTINERI, 2001, p.36)

Essa posição equívoca, podemos encontrar nos tropeços de linguagem, como


no exemplo do lapso relatado por Freud “decotada/decorada”16, em que a referida
palavra, até então transparente, se vê ressignificada – e talvez pudéssemos dizer, sob
um outro ponto de vista: “recategorizada pelo psicanalista” - em função do
cometimento do lapso.
É exatamente neste ponto que Settineri (2001) abre uma discussão a respeito
da interpretação a partir especificamente do métier psicanalítico. Para tanto,
argumenta, com Pêcheux (2002), que todo enunciado tem a capacidade intrínseca de
tornar-se outro, diferente de si mesmo e poderia ser descrito como uma série de
pontos de deriva, dando lugar à interpretação. É desses enunciados na língua que é
feita a fala do analisante – e a do analista – em uma sessão analítica. Neste ponto,
discordamos de Settineri (2001) e dizemos que os pontos de deriva na fala são
intrínsecos a qualquer falar, seja em análise ou não. É o que mostraremos em nossa
pesquisa através das novas formas de comunicação que se precipitam por meio da
internet, como nos bate-papos virtuais.
A heterogeneidade, ou ressignificação a posteriori, viria depois da
interpretação. Este é o pressuposto que norteia também a presente pesquisa, que,
assim como a de Settineri (2001), se interessa igualmente por explicações linguísticas
e psicanalíticas da interpretação. Para Chemama (1998), a interpretação é a
intervenção do psicanalista, que busca provocar o surgimento de um sentido novo,
16
Ver o exemplo completo no subitem 3.5 Os tropeços de linguagem.

55
ou de vários, além do manifesto, apresentado em um sonho, um ato falho, um lapso
e até mesmo em uma parte qualquer do discurso. Nesta tese, estamos acrescentando
a essa constatação que não é apenas um sentido novo que se constrói a posteriori,
mas também um referente novo, que não se desgarra de significantes e significados.
É para essa construção sígnica completa, incluindo o referente, que a psicanálise
lacaniana precisa atentar, para poder reconhecer que os postulados de Lacan sempre
consideraram o uso e, portanto, necessariamente, atrelaram a supremacia do
significante a seus significados e referentes correlatos.
É com base nesse pressuposto de heterogeneidade a posteriori que Settineri
(2001) investiga a sua grande hipótese, qual seja: as intervenções psicanalíticas de
pontuação, de escansão e de interpretação mudam o significado daquilo que foi dito.
A essa visão, acrescentaremos aqui: mudam também as referências construídas.

De forma que o analista opera na linguagem e por meio dela, não na


posição passiva do ouvinte de uma narrativa, antes na posição de editor,
promovendo cortes que conduzem a ressignificações e a novos segmentos
associativos. (p.78)

Nas escansões, segundo Settineri (2001), tanto interrupções da fala do


analisante, como nos sublinhamentos de palavras que foram ditas, quanto nos
momentos de interrupção da sessão, é evidente haver uma ação do psicanalista, ação
essa que consiste em um corte, uma escansão, que tem a capacidade de modificar
aquilo que foi dito anteriormente: “A intervenção do psicanalista é capaz de
modificar totalmente o sentido daquilo que foi dito com intenção consciente17,
podendo fazer emergir, um sujeito”. (p.75)
Settineri (2002) lança mão de um caso clínico analisado por Freud (2009)
Notas sobre um caso de neurose obsessiva, mais conhecido pela sua obsessão, O
homem dos ratos, para demonstrar a insistência do significante no discurso do
sujeito:
(22) Certo dia, estando fora, em suas férias de verão, ocorreu-lhe de
súbito a ideia de que ele era muito gordo [em alemão`dick„], e de

17
grifos nossos.

56
que ele teria de ficar mais magro. Começou, pois, a levantar-se da
mesa antes de servirem a sobremesa e apressar-se pela rua, sem o
chapéu, sob o calor ofuscante do sol de agosto; a seguir, também,
subiu com pressa uma montanha, até parar, forçado e vencido pela
transpiração. Certa época, suas intenções suicidas de fato
emergiram, sem disfarce, por detrás dessa mania de emagrecer:
quando se encontrava à beira de um precipício profundo, recebeu a
ordem de saltar, o que sem dúvida significaria sua morte. Nosso
paciente não seria capaz de imaginar explicação alguma para esse
comportamento obsessivo sem nenhum sentido, até que, de
repente, ocorreu-lhe que, ao mesmo tempo, também a sua dama
estava veraneando na companhia de um primo inglês, que era
muito solícito para com ela, e de quem o paciente estava muito
enciumado. O nome desse seu primo era Richard, e, conforme o
uso coloquial na Inglaterra, tinha o apelido de Dick. Nosso
paciente, então havia desejado matar o Dick; tinha estado muito
mais enciumado e enraivecido em relação a ele do que podia
admitir para si mesmo, e isso foi a razão por que se impusera esse
emagrecimento mediante uma punição. (p.99)

Essa representação obsessiva só ficou esclarecida para o paciente quando ele


se deu conta de que sua amada dama estava no mesmo balneário, em companhia de
um primo inglês que lhe dava muitas atenções, e do qual ele estava muito
enciumado: o primo, que se chamava Richard e cujo apelido era Dick18. O homem
dos ratos queria matar Dick, o rival, e, desse modo, o matava cada vez que saía em
disparada pelas ruas esperando o abismo para o suicídio, ao mesmo tempo que se
castigava. Emagrecer era, pois, equivalente a matar Dick.
Settineri (2002) diz que a cadeia sonora que pode ser grafada como Dick se
repetiu em duas séries de associações: é aquilo que Lacan (1998) entende por
insistência do significante. A preocupação obsessiva por estar gordo, dick, e querer
emagrecer, vincula-se, por associação, ao nome próprio do rival amoroso, Dick.
Dick-Richard e dick-gordo formam uma pequena cadeia associativa, tendo
como base a homonímia. O sintoma diz algo de uma maneira indireta, inaudível, e
pode ser considerado, conforme Lacan (1998) como o significante de um significado
inacessível para o sujeito. Entendemos que a inacessibilidade é rompida quando o

18
Conforme o dicionário: dick Adj 1 gordo, corpulento, obeso, forte, grosso, volumoso. 2
espesso, denso, compacto.

57
trabalho analítico entra em cena: depois de fazer a relação entre os dicks, o
significante tornou-se acessível ao sujeito, pois se relacionou a seus referentes e
sentidos:
Se ele é inacessível, é porque existe e possui uma forma. Entretanto,
as tentativas obsessivas de emagrecer só se esclarecem após a
operação freudiana de interpretação das cadeias associativas. Foi o
trabalho analítico que reuniu dick e Dick. O significado não estava
dado de maneira nenhuma. (SETTINERI, 2002, p.256)

Através da interpretação, realizada por Freud (1909), o paciente teve acesso à


associação entre gordo, Richard e ciúmes de forma que, depois do trabalho
interpretativo, desempenhado pelo psicanalista, o sintoma foi desfeito.
Apresentaremos um outro relato feito por Chemama (1998) e também
descrito por Settineri (2002) para ilustrar a função do significante para o sujeito:

Um homossexual confessa seu gosto pelos jovens de um certo estilo,


de uma certa idade, que designa com a expressão de „les p‟tits
soldats‟ (soldadinhos). Ora, a análise traz uma lembrança de um
entendimento muito grande com sua mãe, lembrança cristalizada
em torno de recordações de tardes de verão, nas quais, depois de
longos passeios, ela o levava para o café, e comandava: „Ah, para
ele, un p‟tit soda (uma pequena soda, uma sodazinha)‟. (p.397)

Interessante notar o modo como o paciente nomeia o objeto de seu desejo,


remete ao significante ouvido na infância e, inclusive pelo fato de não ser
reconhecido como tal, insiste na cadeia significante. Settineri (2002) afirma que,
nesse caso, o que conta não é o significado, em uma relação, mas o que é diretamente
produzido pela imagem acústica das próprias palavras, ou seja, elas foram associadas
por semelhança, contribuindo, assim, para a determinação do sujeito. Vemos
também a própria presença do Outro, nesse caso, o Grande Outro materno, ditando
o destino do sujeito. A explicação de Settineri, apoiada em Lacan, é que o lugar do
significante no jogo de palavras está dado pelo fato de que o que representa não é a
palavra, mas precisamente o significante, uma sequência acústica que pode assumir
sentidos diferentes.

58
É precisamente neste ponto da caracterização do processo interpretativo que
discordamos de Settineri, ou melhor, que somamos à explicação do autor o
entendimento de que esse novo sentido é dado pelo uso da palavra no momento real
de interação com o outro. Nesse caso, além da construção de novo sentido, há,
inegavelmente, a criação de um novo referente, constituído no momento do
desenrolar de uma sessão clínica e, portanto, dentro de uma outra cena. Queremos
dizer com isso que, diferentemente do signo em Saussure, que exclui o referente, o
signo para a psicanálise só pode ser pensado sem equívocos se tiver em conta a
relação com o referente no momento mesmo da interação, do uso, como aconteceu
no caso de un p‟tit soldats. Entendemos que o comando da mãe que dizia: um p‟tit
soda, sofreu uma ressignificação, e diríamos mais, uma recategorização e se
transformou em p‟tit soldats. Essa recategorização só foi construída no momento
mesmo da análise em que o paciente narrou a sua lembrança de infância ao analista.
Temos, então, uma marca (de heterogeneidade) da presença do Outro no discurso. O
paciente que, até o momento tinha absoluto domínio de seu dizer, a necessária ilusão
de completude que todos têm, descobre uma outra voz, de uma outra cena,
atravessando o seu discurso. Defendemos, deste modo, que os processos referenciais,
mostrados no exemplo, como materialidade linguística, podem ser compreendidos
como marcadores de fatos de heterogeneidade. Trataremos essa discussão no capítulo
subsequente de nossa pesquisa.
Desta forma, Settineri (2001) aponta para a importância dos recortes das
unidades no processo de interpretação. Como observa o autor, o mecanismo de
escansão não é novidade, uma vez que Saussure já havia afirmado que distinguir
unidades é um momento interpretativo. Para Saussure (s/d), a unidade consiste em
um trecho de sonoridade, que é, a exclusão daquilo que o precede e daquilo que se
segue na cadeia falada, o significante de um certo conceito. A diferença entre as
afirmações de Saussure e de Settineri residiria no tipo de recorte de unidades
significativas: enquanto, na linguística, se analisa uma escansão das unidades na
linearidade textual, supondo segmentos já convencionalmente discretizados, na

59
psicanálise se realiza uma escansão diferente, que permite, inclusive, juntar parte de
uma palavra ou expressão com parte de outra, reconstruindo significados a partir da
escuta do inconsciente.
Settineri (2001) examina alguns aspectos da questão das entidades da língua,
especificamente o dos recortes das unidades. O autor procura mostrar, a partir,
sobretudo, de exemplos de ditos espirituosos, a importância dessa operação no que se
refere ao processo interpretativo. Evocando Saussure, o autor afirma que o recorte
das unidades é um momento da interpretação: “O recorte, ou melhor, o corte, que
pode fazer surgir o sujeito do inconsciente, possui a dimensão do ato. E não é nem
simples, nem imediatamente dado. É o corte, entretanto, que faz as unidades”.
(SETTINERI, 2001, p.78)
Para ilustrar a ideia dos recortes das unidades, Settineri examina, dentre
outros, um chiste relatado por Freud (1905), de Joseph Unger, que tratava de um
determinado contemporâneo seu: “eu viajei tête-a-bête19 com ele”. Neste enunciado,
podemos localizar o sujeito do inconsciente na substituição. Prepara-se o ouvinte
para escutar tête-a-tête, e é essa proposição que vai entrar na cadeia associativa,
como possibilidade de se entender a frase dita. Settineri (2001) revela que a
intromissão, não do “b”, mas do bête, na posição do segundo tête é que irá nos
indicar que o locutor estava chamando o companheiro de viagem de besta. No
entanto, não se trata de uma simples combinatória de letras, qualquer outra
substituição literal não provocaria o mesmo efeito:
“Tête-a-bête” evoca um raciocínio por analogia, ou de quarta
proporcional, onde: “eu/tête”, assim como o “outro/bête”. Também
concorre para isso o fato de se substituir, em uma expressão fixa, um dos
elementos identificáveis de que se compõe por um outro: a expressão fixa
é recortada e interpretada, para depois ser alterada por analogia.
(SETTINERI, 2001, p.70)

Chamamos a atenção para o fato de haver não apenas uma ressignificação


construída pelo analista, mas uma recategorização do referente de bête para o

19
Tête-a-tête expressão francesa que em português significa: face a face, frente a frente; bête
quer dizer besta, abestado, o abestado é tipicamente cearense, sem registro no Aurélio burro.

60
referente de besta naquela situação específica de uso. É para esse tipo de escansão,
que gera uma ressignificação, que chamamos a atenção nesta discussão teórica, a fim
de demonstrar que, neste processo, é imprescindível falar também da efetivação de
um processo recategorizador de referentes durante a interpretação. Cremos ainda,
que a própria condição do chiste, nesse caso, a troca de uma letra por outra, pode ser
pensada com um mecanismo formal de marcação da presença do outro no fio
discursivo.
Freud (1905) observa que, se este chiste fosse reduzido para o que ele
claramente significa, qual seja: “viajei com X tête-a-tête, e X é uma besta”, o dito
espirituoso não existiria, uma vez que o chiste emerge se se omite “besta”, e, em sua
substituição, o “t” de uma das “tête” converte-se em “b”. De modo que, com essa leve
modificação, e apesar dela, a palavra “besta” suprimida encontra expressão. Freud
chama esse tipo de chiste de “condensação acompanhada de leve modificação”
(p.39).
Um outro exemplo interessante dado por Settineri (2001) para sua
argumentação é o de um famoso chiste de Heine, relatado igualmente pelo
descobridor do inconsciente, envolvendo o neologismo “familionário”
(“famillionär”).

(23) Heine delineia a preciosa figura de Hirsch-Hyacinth, de


Hamburgo, agente de loteria e pedicuro, que se vangloria
diante do poeta de suas relações com o rico barão de
Rotschild, e diz ao final: - e assim verdadeiramente senhor
doutor, Deus quis conceder-me toda a sua graça; tomei
assento junto a Salomon Rotschild e ele me tratou como a
um dos seus, de um modo inteiramente familionário.
(FREUD, 1905, p.18)

Freud (1905), na análise que faz deste chiste, diz haver uma condensação
acompanhada pela formação de um substituto. A formação do substituto consiste na
produção de uma palavra composta, daí o termo alemão Famillionär
(familionariamente). Essa palavra composta, que não encontra registro na língua,

61
mas é imediatamente compreendida em seu contexto e reconhecida como plena de
sentido, é o veículo do efeito compelidor do riso: “E não pode haver dúvida de que é
precisamente dessa estrutura verbal que dependem o caráter do chiste como chiste e
o seu poder de causar riso” (p.31/32).
Settineri (2001), baseando-se na análise que Freud faz, acrescenta que neste
caso existe a possibilidade de serem recortados dois enunciados que contrastam e
podem se desmentir: familiar/milionário, de forma que poderíamos desdobrá-lo da
seguinte maneira:
1. R. me tratou como a um dos seus, de um modo inteiramente familiar;
2. R. me tratou como um dos seus, de um modo inteiramente milionário, isto é,
como um milionário pode tratar uma pessoa pobre.
O efeito do dito espirituoso é dado pelo contraste evocado pelas diferentes
leituras, pelos diferentes referentes que emergem e pelas relações que se pode operar
entre elas. Por isso, Settineri, em sua análise deste exemplo, diz que este enunciado
faz surgir, no ouvinte, uma dificuldade de interpretação, resolvida somente pela
convivência de mais de um recorte possível, sendo que o segundo recorte, “Rotschild
me tratou como um milionário”, desmente o primeiro: “Rotschild me tratou como
um familiar”.

No caso do chiste de Heine, estão sendo ditas duas coisas, ou seja, há dois
enunciados possíveis, já apontados anteriormente, comandados cada um
deles por uma das leituras em questão. A intromissão do familionário
duplica a unidade (a frase tomada como unidade), não se trata ele mesmo
de uma unidade concreta da língua. E a leitura que contém milionário, a
segunda leitura possível, vai se interpor como um desmentido da que
seria esperada, preparada pelo restante do sintagma. (SETTINERI, 2001,
p.72)

Atente-se para o fato de que, nessa interposição de um sentido em outro, há


também a co-existência de dois referentes: o milionário, de quem se espera um
comportamento estereotípico, e do familiar, de quem se espera outro.
Com isso, o autor aponta para a importância dos recortes das unidades na
produção do sentido, na medida em que a operação de espírito necessita de

62
desdobramentos para a captura de seu sentido, uma vez que, com a irrupção do
neologismo introduzido pelo sujeito que cometeu o chiste, confunde o espírito, no
momento de identificar aquilo de que está tratando.
Vejamos mais esse exemplo:

(24) Um grupo de vereadores do município de Itacurubi tinha


vindo à capital para uma audiência com o governador. Enquanto
esperavam, um garçom veio servir-lhes cafezinhos. O primeiro
deles tentou se servir de açúcar, mas o açucareiro era de um tipo
muito moderno, verdadeiramente complicado de se utilizar. E
desistiu de servir-se de açúcar, no que foi acompanhado por seus
colegas, que beberam seu café amargo. Ao que o garçom tendo
notado que eles não consumiam açúcar, veio e perguntou-lhes:
- Os senhores são diabéticos?
- Não! Responderam em coro. Somos vereadores de
Itacurubi. (SETTINERI, 2001, p.73)

Neste caso, segundo o autor, as personagens não conseguem fazer um recorte


naquilo que ouviram, não conseguem alcançar um sentido claro para um
determinado trecho: “diabéticos”. Eles têm uma ideia vaga do que pode ser seu
sentido – e, agora, acrescentamos: seu referente -, dado mais em função do sintagma:
“diabéticos”, masculino, plural, um grupo social. E “os senhores são” os encaminha
para esse sentido hipotético: “na ignorância do sentido a atribuir, abre-se um
paradigma bastante simples: que mais somos ou podemos ser? Vereadores, é claro!”
(p.73) O que fica em destaque neste tipo de chiste em que o equívoco prevalece não
é apenas o lado hilariante da construção, mas a forma pela qual se ilustra a operação
do espírito, como nos lembra muito bem Settineri (2001): “na falta ou na
obscuridade de sentido a ser conferida à unidade recortada, recorre-se ao sintagma,
considerando-se unidades e subunidades, e as variações associativas possíveis”. (p.73)

63
Observamos, nos exemplos acima relatados, que, através dos tropeços de
linguagem, conforme Settineri, são abordadas as heterogeneidades da língua, pelo
equívoco, de modo que é através da possibilidade dos deslizamentos na fala do
sujeito que se chega a uma positividade, não de comunicação, mas de uma
singularidade do discurso.
Partindo desse ponto, Settineri vê, nas equivocidades da linguagem humana,
nas ambiguidades, nos erros gramaticais, nos recortes da fala, a possibilidade de o
analista reconstruir as mais diversas formas de significações – e também as mais
diversas formas de elaboração da referência, como temos pleiteado. Assim sendo, a
interpretação visa à não-restrição dos efeitos de sentido, dando ao sujeito novas
significações, a partir dos novos referentes que ele, inconscientemente, deixa
entrever. E é através das teorizações psicanalíticas sobre a interpretação que as
brechas na fala ganharão todo o seu valor.
Pretendemos, em nossa pesquisa, analisar, através dos processos
interpretativos, as marcas linguísticas do atravessamento do outro no fio discursivo,
tomando como critérios as heterogeneidades marcadas e as não-marcadas definidas
por Authier-Revuz. Perseguiremos as heterogeneidades a partir dos processos de
referenciação. Acreditamos que o referente ofereça pistas suficientemente plausíveis
para, através dele, alcançar as marcas de heterogeneidades na enunciação do sujeito.
Diferentemente de Settineri (2001), que descreveu as intervenções
psicanalíticas de interpretação, escansão e pontuação a partir da operação de
capitonagem, tomando como critério linguístico a cadeia associativa e sintagmática
em relação com o recorte das unidades em Saussure, pensamos que, a esses critérios
utilizados pelo autor, deve-se aliar a construção dos processos referenciais.
A desconsideração do referente no signo saussuriano teve repercussões em
várias teorias. Lacan, um dos grandes teóricos da psicanálise, pautou toda a sua
argumentação pelo signo saussuriano, que desconsiderava o referente e as situações
efetivas de uso da língua. No entanto, como vimos, o referente está presente em
todas as interpretações construídas a partir da teorização psicanalítica, pois o

64
processo de interpretação opera sobre o enunciado construído a cada momento
particular de uso.
Como demonstramos em pesquisa anterior (cf. BRITO, 2005), em relação à
fala do esquizofrênico, é fundamental que se reflita sobre a escuta psicanalítica não
apenas a partir dos pressupostos da psicanálise, mas também com base nos novos
avanços da linguística do texto. Já nessa pesquisa, havíamos recorrido ao exame dos
processos referenciais, sobretudo aos anafóricos, para analisar a fala do
esquizofrênico por um viés linguístico e psicanalítico, numa perspectiva mais ampla,
não-presa à textualidade. Mostramos que, embora os relatos não possam ser
considerados como textos bem articulados, com continuidade temática e não-
contraditórios com a realidade do mundo, ainda assim expressam acentuadamente
uma verdade de desejos. Retomamos, aqui, um exemplo da fala de um
esquizofrênico, retirado de Brito (2005):

(25) Me pediram para fazer tratamento nos ovários e também


interno para não sentir problema de vaso... Eu queria dizer que o
policial usou pesado na minha mão, arma pesada. O policial
mandou eu tirar a carteira do exército para eu não ir pro exército a
justiça pediu... Disse que ia recolher minha carteira e eu não seria
mais do exército não, lá na 13 de maio no 23 BC. Tive problema
no ovário, eu sinto assim meu ovário queimando...20

Como se vê no trecho acima, há usos muito recorrentes de anáforas indiretas


(um processo referencial em que não se retoma o mesmo referente, mas se faz um
tipo de associação inferencial para relacioná-lo a um outro referente), como “arma
pesada” com relação à âncora “o policial” e “usou pesado”; como “a carteira do
exército” e “a justiça” com relação a “o policial” e ao contexto de autoridade; como
“no 23 BC” com relação a “exército”, dentre outras. A identificação dos processos

20
Caso clínico de C.O. N. 54 anos, diagnosticado como esquizofrênico.

65
referencias, como as anáforas indiretas, foi importante para a análise que fizemos da
fala do esquizofrênico, na medida em que elas ajudaram na reconstrução dos desejos
do sujeito e, de certa forma, colocaram por terra o consenso geral de que a fala do
esquizofrênico é sem sentido e incoerente, como apressadamente, concluem os
estudos que, até agora, abordaram essa problematização. Mostramos que é possível
encontrar marcas linguísticas que auxiliam na interpretação da fala do
esquizofrênico e que, com uma contextualização familiar da doença, essas marcam
encontram um norte, exatamente por um processo de construção de referentes
durante a cena da sessão de análise. Não estamos dizendo, com isso, que demos um
sentido à fala do esquizofrênico. Tentamos mostrar, apenas, a sutileza de uma fala
proscrita por todos. Afinal, Freud já disse que o delírio é uma tentativa de cura, de
forma que o que é dito pelo delirante encontra uma raiz em um primeiro
desenvolvimento do surto. O que fizemos foi investigar as migalhas deixadas por
João e Maria.

Deste modo, acreditamos que seja possível trabalhar com os processos


referenciais como suporte para a escuta psicanalítica. É por isso que nos propomos
na presente pesquisa analisar as marcas linguísticas da escuta psicanalítica durante a
interpretação.

O próximo item versa sobre a expressão clássica de manifestação do


inconsciente, os lapsos de linguagem tão caros e reveladores ao sujeito.

3.4 Os tropeços de linguagem

Antes da publicação, em 1901, de A psicopatologia da vida cotidiana, uma das


mais importantes e comentadas obras do descobridor do inconsciente, Freud
menciona em uma carta a seu grande amigo Fliess, datada de 1898, que finalmente
entendeu a causa de um esquecimento de nome e o seu substituto por outro
completamente errado. Ele denominou esse fenômeno de Fehlleistung, que significa
“função falha, realização falha, ação falha”.

66
No primeiro capítulo, O esquecimento de nomes próprios, Freud suspeita que,
ao esquecermos um nome e tentarmos recuperá-lo, os substitutos que entram em
nossa consciência são falsos. Diz ainda que o processo que deveria conduzir ao
verdadeiro nome sofre um deslocamento:

Minha hipótese é que esse deslocamento não está sujeito a uma escolha
psíquica arbitrária, mas segue caminhos previsíveis que obedecem a leis
(...) suspeito que o nome ou os nomes substituídos estão ligados de
maneira inteligível com o nome perdido. (FREUD, p.20, s/d)

Para comprovar sua hipótese, Freud ilustra com seu próprio ato falho: o
esquecimento do nome de um famoso pintor italiano, Signorelli:
(26) Eu viajava em companhia de um estrangeiro, de Ragusa, na
Dalmácia, para um lugar na Herzegovina: eu perguntei ao meu
companheiro de viagem se ele já conhecia Orvieto e se já havia
visto os afrescos de lá, pintados por...(FREUD, p.20-21, s/d).

Freud tenta a todo custo lembrar-se do nome, no entanto os nomes de que se


lembra são: Botticelli e Boltraffio. Então, ele afirma que a razão do esquecimento do
nome Signorelli não deve ser procurada numa peculiaridade do próprio nome, nem
numa característica psicológica do contexto em que ele foi proferido. O
esquecimento só teve explicação para Freud quando ele se lembrou do que
conversara com seu companheiro de viagem antes de falar de Orvieto e de suas
pinturas. O tema da conversa era sobre os costumes dos turcos que vivem na Bósnia e
Herzegóvina. Eles costumam ter muita confiança em seu médico e resignação quanto
ao seu destino.

Essa série de pensamentos, (...) teve a capacidade de perturbar um


pensamento posterior (...) lembro-me de ter desejado contar uma segunda
anedota, que repousava em minha memória (...): esses turcos conferem ao
prazer sexual um valor maior do que a qualquer outra coisa, e, quando
sofrem perturbações sexuais, caem num desespero que contrasta
estranhamente com a resignação diante de ameaças de morte. (FREUD,
p.21, s/d)

67
Freud diz que não queria comentar essa peculiaridade dos turcos para não tocar
num tema tão delicado com um companheiro de viagem: a morte e a sexualidade. No
entanto, não era apenas isso que ele queria evitar. E revela que a atenção dos seus
pensamentos também foi desviada, na medida em que o tema em questão remetia a
um de seus pacientes, a quem ele havia muito se dedicado e que tinha se suicidado
por causa de uma perturbação sexual incurável. Na verdade, o que o mestre queria
esquecer era esse episódio doloroso, ruim, e não exatamente o nome do pintor.

Eu desejava, portanto, esquecer alguma coisa; eu havia reprimido alguma


coisa. Eu não desejava esquecer na verdade o nome do artista (...), mas sim
outra coisa – essa outra coisa, contudo, conseguiu situar-se numa conexão
associativa com o nome, tanto que o ato da minha vontade errou o alvo e
esqueci uma coisa contra minha vontade quando tive a intenção de
esquecer outra. (FREUD, p.22, s/d)

Freud afirma que não pode mais considerar esse esquecimento como um
evento casual, sem importância. O esquecimento teve um motivo e uma finalidade:
evitar que pensamentos dolorosos surgissem em sua consciência e lhe causassem
desprazer. É o tipo de esquecimento que foi motivado pelo recalque.
Thá (2001) observa que o produto do lapso é, de fato, uma afirmação com
conteúdo e significado. O autor ressalta a precisão de Freud ao afirmar que “o
fenômeno tem um sentido e por sentido entendemos significação, intenção,
propósito e posição em um contexto psíquico contínuo” (p.41).
Em um outro exemplo retirado da análise de uma de suas pacientes, Freud diz
que a ideia que desejamos apagar, esquecer é exatamente aquela que abre caminho
para o lapso:

(27) Em determinado ponto da análise de minha paciente tive de


dizer-lhe minha suspeita de que ela havia sentido vergonha de sua
família, (...) e que ela havia censurado o pai por algo ainda
desconhecido por nós. Ela não se lembrou disso e declarou, de resto,
que isso era improvável. Contudo, prosseguiu a conversa com
algumas observações a respeito da família: „uma coisa não posso

68
negar, todos são pessoas fora do comum, todos eles possuem Geiz
(avareza)... eu queria dizer Geist (inteligência). (FREUD, p. 89, s/d)

A paciente havia reprimido esse pensamento que tinha de sua família e, para
tanto, afastou de sua memória a ideia de que todos eram avaros. Mas, apesar de ela
ter censurado seus verdadeiros sentimentos, expressou-os sob a forma de um ato
falho. Queremos chamar a atenção, neste momento, para a estreita relação entre o
fenômeno dos tropeços de linguagem, apontados já desde Freud, e a alteração dos
referentes enfocados. Observe-se, no caso mencionado acima, como o referente da
“inteligência” é substituído, inconscientemente pelo enunciador e, durante a
interpretação, é ressignificado pelo analista, numa heterogeneidade a posteriori,
como diria Settineri. É precisamente este tipo de relação entre as bases teóricas da
psicanálise e da linguística que pretendemos empreender na presente pesquisa.
Mais um exemplo relatado por O. Rank:

(28)“Um homem jovem disse o seguinte a uma senhora na rua: „com


sua permissão, vou begleit-digen a senhora‟. .. ele gostaria de
begleiten (acompanhar) a senhora, mas temia que sua proposta
pudesse beleidigen (insultar)” (FREUD, p.94, s/d)

Para Freud, neste lapso, dois impulsos conflitantes se condensaram, e formaram


as palavras begleit-digen, quais sejam: acompanhar e insultar, o que indica que as
intenções do rapaz não eram as melhores. “Enquanto ele estava tentando esconder
isso dela, seu inconsciente, contudo, lhe pregou uma peça e traiu suas verdadeiras
intenções.” (FREUD, p. 94, s/d)
Outro exemplo:

(29) “Stekel nos conta que durante uma tempestuosa assembléia


geral ele disse: „agora iremos streiten (brigar) em vez de schreiten
(prosseguir) ao quarto ponto da agenda.” (FREUD, p. 95, s/d)

Mais um fornecido a Freud por Reik:

69
(30) de noite numa reunião social, o mesmo senhor conversava com a
mesma senhora sobre os amplos preparativos para a páscoa realizada em
Berlim. Ele perguntou: „a senhora já viu a exposição (Auslage) na
Wertheim? O lugar está completamente decotado. (FREUD, p.96, s/d)

Freud comenta que o senhor não ousara exprimir sua admiração pelo decote
da bela dama, mas o pensamento proibido veio à tona de maneira transformada: ao
invés de dizer que a vitrine estava decorada cometeu o lapso e disse que estava
decotada. A palavra exposição também indica um duplo sentido.
Desta forma, Freud observa que, a partir de comentários e associações
aparentemente casuais e sem importância, advém um outro tipo de pensamento que
se esforça para permanecer oculto, não obstante, não consegue evitar trair sua
existência, através dos lapsos de língua, principalmente.
A explicação da ocorrência dos lapsos não deve ser procurada na influência do
contato dos sons das palavras apenas, mas, reitera Freud, na influência de
pensamentos exteriores à fala intencionada. Thá (2001) argumenta que procurar as
causas dos lapsos em um distúrbio da atenção é equivalente a confundir um fator que
pode até ser considerado como facilitador ocasional, portanto, um fator contingente,
com o verdadeiro mecanismo causal, o fator necessário. Isto é, o engano cometido na
troca de palavras segue um propósito e um objetivo.
Freud, mesmo admitindo a explicação de alguns de seus colegas que justificam
os lapsos através de situações em que se fala apressadamente, ou quando a atenção é
distraída, não se contenta e insiste numa explicação em que o desejo inconsciente é
revelado por meio dos enganos – um pressuposto que assumimos também nesta
pesquisa:

É a autocrítica, a oposição interior contra nossas próprias declarações, que


nos obriga a cometer um lapso de língua e mesmo a substituir pelo oposto
aquilo que intencionamos dizer. Então observamos surpresos como as
palavras de uma declaração contradizem nossa própria intenção e como o
lapso de língua revelou uma insinceridade interna. (FREUD, p.114, s/d)

70
O mestre reafirma que os lapsos dizem muito mais do que o que o falante
esperava dizer, alguma coisa de seu próprio desejo. Daí afirmar que o lapso torna-se
uma maneira de autotraição. Vamos a mais um exemplo:

(31) temos um tio que há vários meses esteve muito ofendido


porque não o visitamos. Aproveitamos a oportunidade da mudança
para uma casa nova e lhe fizemos a visita adiada por tanto tempo.
Ele pareceu muito feliz em nos ver, e quando estávamos partindo
ele disse com muita emoção: „de agora em diante espero ver vocês
mais raramente ainda do que antes‟. (FREUD, p.115, s/d)

A criação dos lapsos, esclarece Freud, produz um efeito estarrecedor de uma


revelação guardada a sete chaves, por isso não podemos simplesmente minimizar seu
sentido, ao contrário: devemos persegui-lo, historicizá-lo.

71
4 A psicanálise e a influência saussuriana

4.1 Lacan com Saussure

Mostraremos neste item a concepção lacaniana de significante baseada no


significante de Saussure, de acordo com o Curso, mas reformulada a partir dele.
Apesar da semelhança entre os signos, em Lacan e em Saussure, eles são
eminentemente diferentes. Queremos salientar que a noção de signo, para cada um
deles, é utilizada para fins diferentes. Em Lacan, para provar o caráter científico de
seus pressupostos; e, em Saussure, para descrever a língua como sistema.
Arrivé (1999) compara a questão da teoria do signo nos dois autores,
mostrando as diferenças entre as duas concepções.

1. Em Saussure há, eminentemente, uma teoria do signo, e a ela está


vinculada a teoria do significante.

2. Em Lacan, embora haja, marginalmente, uma teoria do signo, não há


articulação entre ela e o significante.

O signo saussuriano é a totalidade constituída pela associação entre o


significado e o significante. Arrivé (1999) atenta para o cuidado saussuriano ao tratar
do termo signo; nas palavras do próprio mestre genebrino: “quanto a signo, se nos
contentamos com esse termo, é por não sabermos como substituí-lo, já que a língua
usual não sugere nenhum outro”. O que se passava pela cabeça de Saussure ao fazer
esse parêntese quanto ao termo signo? Do que ele duvidava? Para Saussure, o termo
signo era muitas vezes confundido com o próprio significante. Para Arrivé, Saussure
só se “contentou” com o termo signo por falta de outro mais apropriado: era a
“prudência didática” saussuriana, como denomina Arrivé (1999).
Como se sabe, o signo, para Saussure, pode ser representado do seguinte
modo:

72
Conceito
Signo Imagem acústica

Saussure propõe que se denomine a imagem acústica de significante e o


conceito, de significado:

significado
Signo significante

O signo é o ato de unificação de um significante e um sentido, o que


engendra uma significação. Os dois componentes são separados por uma reta,
marcando, desta forma, uma necessária separação e, ao mesmo tempo, estabelecendo
uma relação entre os dois termos, conforme Saussure (s/d). O signo pensado assim é
regido por dois princípios, quais sejam: a arbitrariedade e o caráter linear do
significante. No que respeita ao primeiro, o autor comenta: “o vínculo que liga o
significante ao significado é arbitrário, ou ainda, já que entendemos por signo o total
resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais
simplesmente: o signo linguístico é arbitrário”. (p.100, grifos do autor) . Para Arrivé
(1999), no entanto, há uma certa defasagem nestes princípios. O autor observa que o
primeiro princípio abarca a totalidade do signo, as duas faces, enquanto que o
segundo princípio só diz respeito ao significante; o significado ficou de fora. O signo
tem um caráter arbitrário, de acordo com o CLG.
Lacan sobrevalorizou a importância do significante de modo a reestruturar,
de certa forma, a teoria psicanalítica a partir dos pressupostos linguísticos. Mas o que
quer dizer essa sobrevalorização do significante em Lacan?

73
3. Em Lacan (1988), o significante é sempre pensado como passando
acima do significado, enquanto que, em Saussure, o signo é sempre
representado com o significado passando acima do significante, como
mostramos no esquema acima.

Significante
Signo significado

Vemos claramente que o significante lacaniano é notado com uma letra


maiúscula, deixando transparecer uma hierarquia, ou melhor, uma supremacia,
entre significante e significado, impensável em Saussure.
Observamos que Lacan não dá tanta importância ao conceito de signo,
voltando-se estritamente para o que denominamos de “a menina de seus olhos: o
significante”. Criou, para isso, o seguinte algoritmo:

Lê-se: significante sobre significado, com a barra, que não mais será símbolo
de união, como em Saussure, mas de resistência, de separação. Mas o que isso
implica? Ora, separar significante de significado subentende uma autonomia e uma
soberania do significante em relação ao significado, e mais:
O significante não significa nada ou pode significar tudo, é puro non sense.
Assim declara o autor: “O significante como tal não se refere a nada, a não ser
que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma
utilização da linguagem como liame.” (LACAN, 1982, p. 43).
Só pode haver articulação entre os significantes na medida em que são puros
elementos diferenciais. Daí, o sentido insistir na cadeia significante, estando, deste
modo, independente do significado.

74
A organização dos significantes se faz através de duas operações, que são a
metáfora e a metonímia, a “Verdichtung” e o “Verschiebung”, em Freud.
Dor (1989) afirma que os processos metafóricos e metonímicos são
testemunhos incontornáveis do caráter primordial do significante. Vemos isso, por
exemplo, nas psicoses, no caso do delírio. Lacan (1956) faz uma análise do caso do
Presidente Schreber21, feito anteriormente por Freud (1909), e conclui que, no
delírio há uma invasão progressiva do significante. Para Dor (1989), o significante se
libertaria pouco a pouco de seu significado. Vemos isso nestas duas falas de pacientes
diagnosticados como esquizofrênicos de um hospital psiquiátrico22:

(32) C.O.N - Eu tive problema de morte no nariz. Eu tenho


problema na boca. Eu tive problema de levantar a piroca, uma
queimação. Eu sou fazendeiro e ainda não fui porque tenho que
resolver. Eu tive problema de tonteira.
(33) D. F. - Eu nasci de pé, parto pédico, é chocante... Luís Cláudio
Teixeira, ele queria me matar, ele mordeu minha língua.... Sou
psicóloga também, me empresta esse seu livro. Gosto de Skinner,
esse livro é de Skinner?(BRITO, 2005, P.25)

Nestes pequenos trechos, temos o desgarramento do significante. Um total


descompromisso do significante com o significado; o par saussuriano é desfeito, e o
significante deriva sem significação aparente.

O mecanismo metafórico evidencia o caráter primordial do significante em


relação ao significado, como mostra o autor. Podemos identificar esse mecanismo
nos tropos do discurso, como uma figura estilizada, fundada nas relações de
substituição. Dor (1989) fornece um exemplo para isso: “a utilização metafórica do
termo peste para designar a psicanálise”. Temos:

21
Conferir caso completo em: FREUD, S. O caso Schreber, notas psicanalíticas sobre um relato
autobiográfico de um caso de paranoia – dementia paranoides. in Obras completas, vol. XII ,
Rio de Janeiro (Brasil): Editora Imago, 1990.
22
Para saber mais, ver a dissertação completa de Brito (2005).

75
S1
__ imagem acústica: “psicanálise”
Conceito de psicanálise
s1

S2

___ imagem acústica: “peste”


Conceito de peste
s2

Dentro dos pressupostos psicanalíticos, na metáfora, ocorre uma substituição,


o significante S1 pelo significante S2: “a substituição de S1 por S2 faz S1/s1 passar
sob a barra de significação.” (DOR, 1989, p. 44) Por isso, podemos concluir que a
psicanálise é a peste, ou uma peste. Dor conclui que isto põe em evidência uma
propriedade específica da linguagem, a de que a cadeia significante comanda o
conjunto dos significados e, inversamente, os significados extraem toda a sua
coerência dos significantes. Para o autor, esta é uma prova cabal de que a cadeia
significante tem supremacia sobre tudo. Afirma ainda: “a língua governa a fala”
(p.44).
No conto A carta roubada, de E. Poe, também ocorre coisa semelhante. Lacan
(escritos) toma esse conto para mostrar a cadeia significante circulando entre os
sujeitos. A carta “está investida da função de significante” (DOR, 1989, p.45), e o seu
conteúdo da de significado. Neste conto, há uma rainha que recebe uma carta e
esconde-a do rei, mas o ministro, muito sagaz, percebe o embaraço da rainha, então
substitui a carta por uma outra, na presença da própria rainha, que nada diz para
enganar o rei. Surge, então, um novo personagem, Dupin, enviado pela polícia à
casa do ministro. Este, suspeitando da visita, finge que nada está acontecendo.
Dupin, percebendo a presença da carta na casa do ministro, esquece sua tabaqueira
lá e retorna, então, à casa. Em seguida, aproveita-se de um momento de distração do

76
ministro e substitui a carta por outra, sem o ministro saber. Dor (1989) diz que a
carta mobilizou a todos, mesmo sem os envolvidos saberem do conteúdo dela. Deste
modo, Lacan pôde comprovar o poder embutido no significante, capaz de mobilizar
o sujeito.
Algumas reflexões ressaltam dessa visão. A primeira delas se relaciona
diretamente a uma das hipóteses desta pesquisa: pela análise da cadeia significante,
chega-se não apenas à construção de significados, como afirmava Lacan e como se
repete amplamente, mas também, e necessariamente, à elaboração de referentes.
Outra reflexão importante, decorrente da primeira, diz respeito à suposta
autonomia do significante em relação ao significado, e agora estamos acrescentando
à referência. Estamos propondo, neste trabalho, que, somente no momento da
pontuação do analista, os significantes se desgarram, inconscientemente, do
significado e da referência que assumem no texto. Além disso, também estamos
propondo que o psicanalista escande a cadeia de significantes e a recompõe de outro
modo, em todas as etapas da interpretação, levando em conta a relação intrínseca
entre significante, significado e referência.
Com isso, argumentamos que a articulação significante não se produz
sozinha: é necessário que haja um sujeito operando na cadeia do significante. Não
seria possível olhar para esse sujeito, para sua fala, para seus desejos sem considerar
as situações reais de uso, o que já se distancia radicalmente dos pressupostos da
linguística saussuriana.
Uma diferença importante entre os dois algoritmos representados acima é a
supressão do círculo que circunda o signo saussuriano, como também das flechas que
indicam, em Saussure, a relação de dependência de um elemento com o outro no
interior do signo linguístico. Segundo Arrivé (1999), Lacan, com essa elisão, queria
explicar o que ele chama de deslizamento incessante do significado sob o
significante, o que não significa, lembra Arrivé, que o significado esteja livre de
qualquer amarração com o significante. Muito pelo contrário, Lacan afirma,

77
inclusive, que é necessário um número mínimo de “amarração” entre significante e
significado para que um ser humano fale e produza significações.
Nóbrega (2002) afirma que, em algum momento, o encontro entre significado
e significante faz com que o signo saussuriano surja na teoria lacaniana sem as
diferenças aqui colocadas. A autora está se referindo ao ponto de estofo. A sutil
união entre significado e significante é o que a teoria lacaniana denomina de estofo.
Segundo Lacan (1981), o ponto de estofo é uma operação segundo a qual o
significante detém o deslizamento infinito da significação.
Outra noção igualmente importante desenvolvida por Saussure é a de valor.
A partir dessa perspectiva, o signo não é mais somente a união entre o significante e
o significado, mas cada um dos elementos ganhará valor no sistema, e
interdependência.
Saussure (s/d) utiliza a metáfora do jogo de xadrez: um cavalo, na sua
realidade pura, por si só, fora da sua casa e das outras condições do jogo não é um
elemento do jogo de xadrez. Para o mestre genebrino, o cavalo só se torna um
elemento real e concreto quando revestido de seu valor e fazendo corpo com ele.
A peça poderá ser substituída por outra, mesmo que com aparência
completamente diferente da sua, sem prejudicar o jogo, “contanto que se lhe
atribua o mesmo valor. Eis por que, em definitivo, a noção de valor recobre as de
unidade, de entidade concreta e de realidade” (Saussure, s/d, p.128).

Portanto, para Saussure, assim como fora do jogo de xadrez o cavalo ou


qualquer outra peça perde seu valor, se considerada de forma isolada, os signos
não devem ser considerados fora da relação que estabelecem uns com os outros
no sistema.

Na tentativa de explicar melhor a noção de valor, Saussure recorre à relação


entre ideia e som. As ideias não preexistem aos sons, assim como nem ideia nem
som preexistem ao sistema. Argumenta, ainda, que o pensamento não passa de
uma massa amorfa e que é a língua que o organiza.

78
O valor resulta do fato de que na língua todos os termos são solidários.
Saussure faz uma comparação com o sistema semiológico da moeda e conclui que
uma moeda é só um metal sujo com uma inscrição; o valor advindo dela é retirado
de suas correlações dentro do sistema. Da mesma forma, o valor de uma palavra só
será apreendido se ela puder ser trocada por uma ideia, uma vez que o valor faz
sempre menção ao dessemelhante.
No plano material do signo linguístico, o que é importante numa palavra não
é o som enquanto tal, mas as diferenças fônicas que permitem diferenciar uma
palavra das outras. O valor só será apresentado na oposição dos elementos dentro do
sistema.

Esta ideia, também podemos vislumbrar em Lacan (1988), quando este


apresenta uma cadeia significante e demonstra que o sentido só é capturado na
oposição dos elementos. Mas o autor rompe com a tradição estruturalista de se
pensar o significante. Segundo Lemaire (1988), a originalidade de Lacan foi ter
fornecido a prova de que o significante age à revelia do sujeito e separadamente de
sua significação. Isso faz com que o significante seja o elemento constitutivo do
inconsciente. A autora nos fornece um exemplo:

(34) (...) se um ato copulatório se efetua na presença de uma


criança, sem que esta tenha maturidade biológica suficiente
para o prover de sua exata significação, ela vai se inscrever
no inconsciente, mas desprovido de sua significação.
Inscrever-se-á em letras, em significantes puros. (p. 79)

Foi exatamente o que aconteceu no caso analisado por Freud (1919) do


Homem dos Lobos, que, na idade de um ano e meio, presenciou um coito a tergo23
entre seus pais. A criança, não tendo maturidade suficiente para entender o que se
passava, registrou inconscientemente a cena em sua memória, para só depois

23Segundo o Houaiss, tergo vem do lat. tergum ou tergus,i 'costas (das pessoas), parte traseira,
retaguarda (de tropa)'; ver terg(i)-.

79
encontrar um sentido e um destino à cena, relacionando-a à cópula entre os lobos e
remetendo a uma cadeia significante. O significante é o suporte material do discurso,
a letra ou os sons. Daí Freud ter dito que devemos tomar tudo ao pé da letra.
Seguindo a esteira de Freud, Lacan propõe um novo modelo de representação
significante:

CAVALHEIROS DAMAS

Notemos que o significante se define na oposição entre os significantes; desta


forma, Lacan insiste em que o significante não é uma simples associação ao
significado; pelo contrário, o significante é independente dele. Entre cavalheiros e
damas, há uma diferença articulada na Lei. O sentido, pois, só faz sua estreia na
confrontação dos significantes. Para Cabas (1982), o sentido é produzido. É um
produto da combinatória das cadeias significantes, como ele demonstra com o
seguinte exemplo:

(35) Ai querido assim não podemos continuar vivendo.


ai querido assim não podemos continuar
ai querido assim não podemos
ai querido assim não
ai querido assim
ai querido
ai (p.83)

Cabas afirma que este texto teria que ser lido preferencialmente por uma
mulher, para dar, a partir da supressão dos termos, um sentido sexual, que é
compartilhado por aqueles que a escutam. O sentido é um efeito, efeito de
significação. Essa constatação nos leva a propor um novo olhar para a supremacia do
significante em relação ao significado: entendemos que afirmar que o sentido é

80
produto da combinatória das cadeias significantes já é admitir que o significante se
desgarra dos significados convencionais, mas se associa inevitavelmente a outros
significados, que, por sua vez, se ligam sempre a referentes. No “ai, querido, assim
não...”, instaura-se um sentido sexual, advindo de um processo retroativo: cada
elemento da frase retorna ao anterior, estabelecendo, assim, o efeito de sentido
denominado por Lacan de après-coup (só-depois), isto é, efeito retroativo ou
retrospectivo na cadeia significante, produzindo uma significação e, agora diremos,
uma referência clara ao ato sexual. O enunciado “ai, querido, assim não...” não está
limitado à cadeia: abre-se para outras relações - a sexual, por exemplo. Para Cabas
(1982), o sentido é sempre uma relação:

A prova está no fato de que todo mundo começou a rir maliciosamente


(...) e a tal ponto que gerou um fenômeno de combinações múltiplas e
novas criações de sentido, pois, quando perguntei se todos pensaram num
sentido sexual, alguém declarou: „não, de modo algum; eu pensava na
linguística‟. Obviamente que a linguística é a ciência da língua, (...)
poderíamos pensar que essa ciência da língua tem várias possibilidades: a
ciência da língua na felação? (p. 84)

É óbvio que esse efeito de chiste foi gerado pela multiplicidade de


significações na frase. A pergunta o que é a linguística? e a resposta é a ciência da
língua, que teria tido outro valor se não tivesse sido precedida pelo discurso anterior,
pois estariam simplesmente limitadas a um diálogo sério e conciso.
Podemos observar que o sentido e a referência são produzidos por aquele que
fala, nas associações significantes. Essas associações seguem uma lei – lei que, para
Lacan, encontra-se perfeitamente inserida na linguística: a metáfora e a metonímia.
Jakobson (s/d), partindo da observação da fala dos afásicos, estabelece dois
tipos de afasia: de substituição e associação. Através desse estudo, o autor chega à
conclusão de que esses mecanismos são centrais para a aquisição da linguagem:
“Toda forma de distúrbio afásico consiste em alguma deterioração, mais ou menos
grave, da faculdade de seleção e substituição, ou da faculdade de combinação e
contexto” (p.55). Jakobson propõe que toda expressão metafórica se faz pelo processo
de substituição, ao passo que a metonímia se faz pela associação de paradigmas.

81
Lacan (1998), aproveitando-se do desenvolvimento teórico da linguagem em
Jakobson, afirma que a organização dos significantes se faz através de duas
operações, que são a metáfora e a metonímia, a “Verdichtung” e o “Verschiebung”,
como já mencionamos anteriormente. Freud (1900) já havia demonstrado que o
inconsciente tem leis próprias, que são presentificadas através da condensação e do
deslocamento. Posteriormente, em sua releitura de Freud, Lacan dirá que a
condensação e o deslocamento são metáforas e metonímias, respectivamente.

Um determinado elemento na cadeia significante se desloca ou se condensa


provocando um efeito puramente ilusório. Desta forma, a técnica da associação livre
torna-se imprescindível numa análise; é a garantia de que o que está sendo
interpretado é o discurso do cliente e não o discurso do analista refletido no outro. A
insistência que Lacan faz na associação livre, ecoando Freud, é exatamente de
perseguir, rastrear os significantes nas determinações que regem a fala do sujeito.
Nesse rastreamento, privilegiamos os pontos de encontro, de convergência, que
Lacan denominou de point de capitonné24, ponto de estofo: “O capitonné é uma
técnica de tapeçaria para forrar móveis e consiste na aplicação de botões no recosto
forrado duma poltrona, de modo que formem esboços de linhas, como efeito das
pregas.” (Cabas, 1982, p.88)
Numa análise, na concepção lacaniana, o discurso do analisante é proferido
em uma superfície lisa, na qual o analista fixará alguns significantes imprescindíveis
na constituição romanesca da história do sujeito. Isto é feito a partir da verbalização
do outro em análise. Assim, o analista reconstruirá o “romance do cliente”, tendo
como matéria unicamente os significantes apresentados no discurso daquele que fala.
Lacan comenta:

Este ponto de estofo, descobri-o na função diacrônica da frase, porquanto


ela não afivela sua significação senão com o último termo, cada termo
sendo antecipado na construção dos outros e inversamente, selando o
sentido por seu efeito retroativo. (1998, p. 305)

24
Em português, traduzido como ponto de capitonê ou ponto de estofo, ou simplesmente
capitonê.

82
No entanto, como afirma Lemaire (1988), o ponto de estofo é mítico, na
medida em que o significante final buscado é radicalmente excluído do pensamento,
ou seja, inalcançável, porque situado em uma dimensão incomensurável, da ordem
do real.
A apreensão que podemos ter dos significantes é em sua dimensão simbólica.
Daí a possibilidade de a língua se prestar a todo tipo de engodo, a respeito da
compreensão humana, uma vez que tem a capacidade de representar uma coisa por
outra do que diz ou do que quer dizer conscientemente. Ora, isso só acontece
porque o sujeito falante é não-todo em seu discurso, ou seja, é clivado, é “vários” em
uma mesma fala.

4.2 O signo para Saussure

No Curso de linguística geral, Saussure (s/d) afirma que o signo une não uma
coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica, isto é, a representação da
palavra fora de qualquer realização pela fala. O nível da parole ficou fora das
preocupações descritivas do mestre genebrino. Como sempre se repetiu a partir dos
ensinamentos saussurianos, a imagem acústica não é propriamente o som, mas a
impressão psíquica dele: “o significante em sua essência (...) não é de modo algum
fônico; é incorpóreo, constituído não por sua substância material, mas unicamente
pelas diferenças que separam sua imagem acústica de todas as outras.” (s/d, p. 137-
138).
No entanto, essas noções não são tão pacíficas assim. Sabemos que, depois da
publicação do Curso, a polêmica se instalou em torno do que Saussure afirmara ou
não e do que poderia ter sido mera inferência, autorizada ou não, de seus alunos.
Arrivé (1999) põe em dúvida o que foi verdadeiramente dito pelo mestre e o que foi
publicado no Curso. De Mauro (1995) já havia questionado a fidelidade dos
seguidores à voz do mestre genebrino, todavia o autor argumenta que, mesmo se se

83
tomassem, hoje, todas as fontes manuscritas feitas pelos alunos de Saussure, ainda
assim o livro não sairia melhor que o Curso. Diferentemente de De Mauro (1995),
Bouquet (s/d), assim como Arrivé (1999), afirma que há um abismo entre o Curso,
publicado pelos seguidores de Saussure, e as fontes manuscritas:

(...) é importante considerar distintamente os textos originais e o


livro de 1916; este último dá de fato um reflexo sensivelmente
deformado da problemática do arbitrário, a tal ponto que a noção
de “arbitrário do signo”, que constituiu, no decorrer da primeira
metade deste século, o objeto de numerosos debates sobre a base
textual do Curso, surge, em certa medida, como uma ilusão de ótica
criada por Bally e Sechehaye. (BOUQUET, s/d, p.01)

Desta “ilusão de ótica”, nasceram, segundo Bouquet, os entreveros em torno


do conceito de signo. O autor alega que este conceito é deslizante e que provocou – e
diríamos até que ainda provoca - muitos mal-entendidos por onde passou e passa. O
autor relaciona o mal-entendido a uma ambiguidade inerente ao conceito de signo:

Signo é empregado por Saussure, ao longo de todas as suas lições e


seus escritos, em duas acepções: por um lado, esse termo designa a
entidade linguística global, composta de uma face fonológica e de
uma face semântica; por outro, ele designa apenas a face fonológica.
Dessa dupla acepção, o linguista tem consciência perfeitamente, e a
justifica de uma maneira bem particular. Ela está fundada, segundo
ele, sobre uma razão que, longe de depender de uma simples
escolha terminológica, reflete a própria realidade dos objetos em
questão: ele está de fato convencido de que toda palavra escolhida
para denominar a parte significante da entidade global, composta
de uma face fonológica e de uma face semântica, está naturalmente
sujeita a um “deslizamento” e tende inelutavelmente a referir a
entidade global. (BOUQUET, s/d, p. 01)

Bouquet (s/d) evoca os aforismos saussurianos de 1890, denominados Notes


Item para argumentar que a questão terminológica em torno do objeto signo é
fundamental. Saussure cunhou o termo sema para designar as duas faces da entidade
global, o signo. A partir disso, chamou o significante de apossema ou soma, e o
significado de contra-soma, anti-soma ou parassoma. Não resta dúvida, para
Bouquet, de que Saussure tentou, com isso, resolver o problema do “deslizamento

84
terminológico” com essa criação “neológica”: “a criação neológica - à qual Saussure
não é acostumado - é ela própria apresentada em um outro texto, como uma
tentativa de frear esse deslizamento.” (BOUQUET, s/d, p.01)
Bouquet faz justiça às constantes inquietações de Saussure com o conceito de
signo; verificamos isso nesta passagem: “mesmo um termo como soma se tornaria,
em muito pouco tempo, se ele tivesse a chance de ser adotado, sinônimo de sema, ao
qual ele quer ser oposto. É aqui que a terminologia linguística paga seu tributo à
própria verdade que estabelecemos como fato de observação.” (p.02)
Saussure, de fato, se questionou sobre as diferenças entre os conceitos:

Uma questão que confessamos não poder resolver é de se entender


sobre este ponto: chamaremos de signo o total, a combinação do
conceito com a imagem [acústica]? Ou então a imagem acústica [...]
ela própria pode ser chamada de signo? [...] Seria preciso dispor de
duas palavras diferentes. Cuidaremos de evitar as confusões, que
poderiam ser muito graves. (JOSEPH, 1911, p. 424)

A partir daí, segundo as notas de Joseph (1911), Saussure propõe o famoso


par: significado e significante, muito embora as inquietações do mestre, quanto à
necessidade de uma precisão terminológica, não tenham terminado aí:

Não obtivemos essa palavra que nos falta e que designaria sem
ambiguidade possível seu conjunto. Não importa qual termo que se
escolher (signo, termo, palavra, etc.), ele deslizará um pouco e
estará em perigo de designar apenas uma parte. É mesmo provável
que possa não haver nenhum. (JOSEPH, 1911, p. 425)

Bouquet (s/d, p. 03) se contrapõe aos organizadores do Curso ao acentuar-


lhes a falta de fidedignidade às lições de Saussure, como podemos constatar pela
citação abaixo:

Bally e Sechehaye não mencionarão o problema levantado e,


invocando somente que “no uso corrente [o termo signo] designa
geralmente apenas a imagem acústica”, substituirão as proposições
sutis de Saussure por uma formulação de sua lavra, perfeitamente
apócrifa: “A ambiguidade desapareceria, escrevem, se se

85
designassem as três noções aqui em presença por nomes que se
chamam uns aos outros, ao mesmo tempo que se opondo.” Esse
raciocínio não apenas não está fundado sobre nenhuma fonte
manuscrita, mas está ainda em flagrante contradição com a tese de
Saussure! (BOUQUET, s/d, p.05)

Além de salientar que o próprio Saussure se questionava quanto ao modo de


designar o signo e de conceber as noções de significante, significado e referente,
Bouquet (s/d) também põe em xeque uma das propriedades mais características do
signo, a arbitrariedade: “se olharem as outras passagens do Curso que tratam do
„arbitrário do signo‟ - nos damos conta de que estas consistem em enunciados
fabricados por Bally e Sechehaye, por isso não figura nenhuma proposição
correspondente sobre o arbitrário nos textos fontes.” (BOUQUET, s/d, p. 04).
Afirma, ainda, o autor que o conceito de “arbitrário do signo” é uma “criação” dos
redatores do Curso, uma vez que, nos manuscritos, o conceito é tomado apenas na
relação entre significante face ao significado.
Pensamos que é por esse motivo que, até hoje, a arbitrariedade permanece
opaca e é causadora de muita polêmica, principalmente entre aqueles que se utilizam
dos pressupostos da linguística estrutural.
Outra querela surge quando se fala de estruturalismo, qual seja, a exclusão do
referente na definição de signo dentro dos pressupostos saussurianos.

4.3 O referente para o signo saussuriano

Muitos são os estudos que abordam a exclusão/inclusão do referente na


concepção de signo linguístico. E todos, em maior ou menor grau, repisam a mesma
afirmação de que o “pai da linguística moderna”, conforme Faraco (2004), restringe
ao sistema o objeto de estudo da linguística. Isso significa que, diferentemente de
outras ciências, explica Saussure, o campo de estudos da linguagem não conta com
objetos dados previamente, daí sua célebre frase: é o ponto de vista que cria o objeto.
Diante da multiplicidade de possíveis objetos, proporcionada pela complexidade dos

86
fenômenos linguísticos, ele propõe que a linguística se ocupe apenas da langue e
deixe de lado a parole, o que significa eliminar da língua “tudo o que lhe seja
estranho ao organismo, ao sistema, numa palavra: tudo quanto se designa pelo termo
„linguística externa‟” (SAUSSURE, s/d, p. 29).
Costa (2007) observa que, com esse recorte, Saussure opta por eximir os
estudos linguísticos da responsabilidade de tratar da referência. Araújo (2004)
também comenta que, para esse ponto de vista, as únicas relações a serem
consideradas são as “intrassígnicas” (p. 02). Segundo a autora, essa solução gerou
consequências positivas e negativas. Uma vantagem, ela explica, é que essa visão de
língua vai contra a ideia milenar de uma correspondência obrigatória entre a
linguagem e o real. Afinal, como ela argumenta com precisão, “falar é relacionar
signos entre si e não signos com a realidade” (p.02).

Um dos lados positivos dos pressupostos saussurianos é que, como argumenta


Cardoso (2003), Saussure rompeu com a concepção de representação como análise
do pensamento, postulada pelos clássicos da filosofia da linguagem. Diferentemente
destes, que tentavam desenvolver uma teoria da linguagem fundada na
correspondência entre palavras e entidades mentais, Saussure buscava construir
“uma linguística autônoma com relação a outras ciências e disciplinas, até mesmo
com relação à filosofia e à lógica”. O desejo de Saussure era desvincular
definitivamente a linguística do estudo filosófico e lógico e dar àquela um estatuto
científico e formal, daí por que desvinculou a língua da fala, na tentativa de
cientificizar a linguística. E conseguiu. Não podemos negar, com efeito, o grande
passo dado pelo mestre genebrino ao escolher a langue como objeto de estudo,
mesmo que para isso ele tenha pago muito caro ao excluir a parole, e
consequentemente a referência, de seu campo de pesquisa.
No entanto, para alguns autores, como Araújo (2004), o lado negativo da
questão reside no motivo alegado pelo autor para excluir a referência do campo de
estudo da linguística: a dependência de questões extralinguísticas (como o valor-
verdade das sentenças). De fato, tal motivação parece indicar que a concepção de

87
referência de Saussure é ainda a de uma relação direta, transparente, das palavras
com os objetos do mundo. A ideia de um referente que não se confunde com a
substância, mas também que se diferencia do significado; que é em parte constituído
culturalmente, mas em parte fabricado pelo discurso, parece não ser admitida por
Saussure. Daí o radicalismo de sua solução, que é criticada por Cardoso (2003). Para
a autora, extraditar o referente do signo linguístico significa negar, de uma vez por
todas, os aspectos simbólicos da linguagem. Já para Araújo (2004, p. 7), significa
“excluir toda uma série de fatores e fenômenos nada secundários, não só a coisa
referida (conotatum), como também a fala, a intenção, o uso, as interações verbais”,
justamente os elementos que demonstrariam a dimensão discursiva da referência.
Conforme Costa (2007), a teoria de Saussure, como é amplamente
demonstrado na história dos estudos da linguagem, influencia, com maior ou menor
força, as chamadas correntes estruturalistas. Por um “consenso antigo”, observa Ilari
(2004), reconhecem-se como “linguísticas saussurianas" a linha de investigação
desenvolvida pela Escola de Praga, a glossemática de Hjelmslev, o funcionalismo de
Martinet e o funcionalismo linguístico de Jakobson. Comum a essas correntes,
estaria o “ideário saussuriano”, resumido nos seguintes princípios: prioridade da
análise do sistema, concepção da língua como forma, descarte da substância,
preferência pela sincronia.

No que tange à referência (ou à negação do problema), é a glossemática que


segue mais fielmente a ideia de descartar “qualquer resquício de substância
linguística”, quer no plano do significado („plano do conteúdo‟), quer no plano do
significante („plano da expressão‟) (CARDOSO, 2003, p. 37). Tal solução elimina
completamente da língua o referente, uma vez que tudo se resume às relações entre
formas. Embora essa exacerbação tenha cabido à glossemática, pode-se dizer,
justamente em função desses princípios comuns citados por Ilari (2004), que o
problema da referência não estava no centro das preocupações dos estruturalistas em
geral. Veremos, mais adiante, que nem todos os linguistas pensam da mesma forma

88
sobre essa questão, mas antes reflitamos um pouco sobre o pensamento de
Benveniste.

4.4 Benveniste enunciado

Sabemos que um dos primeiros grandes críticos do estruturalismo foi


Benveniste (1979). Flores e Teixeira (2005, p. 29) apresentam Benveniste como o
primeiro linguista pós-saussuriano a oferecer “um modelo de análise da língua
especificamente voltado à enunciação”. Este autor, ao empreender este trabalho, faz
emergirem dois eixos de estudos importantes para as pesquisas da linguagem em
perspectiva enunciativa, sendo o primeiro a oposição realizada entre o que é da
ordem da linguagem e o que é da ordem da língua, ou seja, o que pertence ao ato
comunicativo, chamado por Saussure de linguística da fala, e o que pertence ao
sistema linguístico propriamente dito, chamado por Saussure de linguística da
língua25. Ao fazer esta distinção, Benveniste apresenta uma bifurcação investigativa
na qual as análises levem em conta alguns aspectos enunciativos, sem perder de vista
a delimitação do objeto legitimamente linguístico realizada por Saussure.

Para Fonseca (2007), a consequência deste primeiro eixo, a linguística da fala,


é a teorização sobre a (inter)subjetividade da linguagem, que ficara de fora dos
princípios metodológicos de Saussure. Benveniste procura demonstrar que há uma
predisposição natural do sistema linguístico para representar o sujeito que fala
dizendo que “é na instância de discurso na qual eu designa o locutor que este se
enuncia como „sujeito‟. É, portanto, verdade ao pé da letra que o fundamento da
subjetividade está no exercício da língua” (BENVENISTE, 1995, p. 288). A instância
de discurso aí mencionada é o ato individual de enunciação que realiza o sistema,
que, antes da enunciação, é mera virtualidade. Para o autor, o sujeito só é sujeito
quando se apropria do sistema linguístico para produzir enunciações que se realizam

25
Sobre Linguística da Língua e Linguística da Fala, consultar SAUSSURE, F. de. Curso de
Linguística Geral. Cap. IV. São Paulo: Cultrix, s/d, pp. 26-28.

89
materialmente em enunciados, e a linguagem, por sua vez, “só é possível porque
cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu
discurso” (BENVENISTE, 1995, p. 286).
Lacan (1985) se apoia nessa concepção em sua teoria sobre o sujeito e a
subjetividade, pois defende que “o sujeito só é sujeito quando fala”. A subjetividade
é, portanto, a condição da linguagem e do discurso, como Benveniste (1995, p. 289)
afirma: “a linguagem é, pois, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter
sempre as formas linguísticas apropriadas à sua expressão”.
É justamente com essa noção de “formas linguísticas apropriadas” à expressão
da linguagem que Benveniste introduz o segundo eixo de estudo a que nos
referimos, qual seja, o aparelho formal da enunciação. Para o autor, a enunciação
deve ser entendida numa perspectiva tridimensional, que comporta as categorias de
pessoa, tempo e espaço ― eu, agora, aqui ―, definidas em seu escopo como o
“colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”
(BENVENISTE, 1989, p. 82). Alegando que, “depois da enunciação, a língua é
efetuada em uma instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que
atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno” (BENVENISTE,
1989, p. 84), o autor demonstra que o „ato individual‟ é ancorado em uma
perspectiva responsiva que orienta a formulação dos enunciados em uma ou outra
maneira específica. Argumenta, assim, que o sujeito-enunciador estabelece os
objetivos de seu discurso de acordo com as relações estabelecidas socialmente porque
“a enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso” (BENVENISTE,
1989, p. 83) numa adesão explícita à ideia de que o discurso é eminentemente social,
regulado por regras sociais e autorizado por práticas sociais institucionalizadas.
Não obstante, a enunciação não é o objeto de investigação de Benveniste,
uma vez que ele se inscreve num estruturalismo pós-saussuriano. Seu objeto de
estudo é o enunciado, produto do ato de enunciação, com suas regularidades
atreladas às formas da língua:

90
é preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o
ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado,
que é nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que mobiliza a
língua por sua conta. A relação do locutor com a língua determina
os caracteres linguísticos da enunciação. Deve-se considerá-la
como o fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos
caracteres que marcam esta relação. (1989, p. 82).

Para Fonseca (2007), o cuidado de Benveniste tem uma dupla justificativa.


Primeiro, é preciso entender que, se, na visão do autor, o objeto do linguista é o
texto do enunciado e seus caracteres, isto quer dizer que a enunciação não pode
constituir objeto de investigação linguística, pois isto exigiria que fossem
contemplados elementos advindos de outros domínios do conhecimento,
procedimento inaceitável do ponto de vista saussuriano. Segundo, tomar a
enunciação como objeto de investigação requereria também uma mobilização
heterogênea de presenças individualizadas, ou seja, exigiria que se aceitasse falar de
sujeitos-enunciadores que utilizam a língua por sua conta, o que também seria
inaceitável do ponto de vista saussuriano.
Segundo Fonseca (2007), uma consequência das ideias de Benveniste é a
concepção de enunciado e de texto do enunciado como duas coisas diferentes. O
enunciado é constituído dos caracteres que o compõem, realizado de acordo com as
regras gramaticais do sistema e das regras discursivas da comunidade na qual o
enunciador se insere. “Para Benveniste há uma “relação” entre o sujeito e a língua,
no entanto o enunciado não se limita a essa relação somente: há de se considerar o
enunciado e sua relação com o sistema linguístico, mas também há de se considerar
o enunciado e sua relação discursiva eminentemente social de prática responsiva
intersubjetiva” (FONSECA, 2007, p.18). O enunciado, portanto, vai além do texto do
enunciado.
Com isso, entendemos que Benveniste, ao olhar para os aspectos
enunciativos, dá um passo a mais nos estudos linguísticos saussurianos, na medida
em que trabalha com a subjetividade do eu do sujeito no seu enunciado,
diferentemente do mestre genebrino, que descartava, para a análise estritamente

91
linguística, quaisquer resquícios de subjetividade. Mesmo com todo o cuidado de
Benveniste em manter a sua vinculação estrutural, em sua essência, não podemos
negar o abismo entre as duas abordagens. Cardoso (2003) nos diz que não há, por
parte de Benveniste, uma rejeição a Saussure, muito pelo contrário, a autora declara
que a linguística saussuriana poderia dar perfeitamente conta do modo de
significação semiótico, mas não do semântico. É o que constata Benveniste:

Quando Saussure definiu a língua como sistema de signos,


estabeleceu o fundamento da semiologia linguística. Mas vemos
agora que, se o signo corresponde às unidades significantes da
língua, não se pode erigi-lo em princípio único da língua em seu
funcionamento discursivo (1986, p. 66).

Assim pensando, o autor propõe uma ampliação à teoria saussuriana do signo


para abranger a enunciação que, para ele, quase correspondia à noção de discurso.
Para Benveniste (1986), a “língua nos fornece o único modelo de um sistema que
seja semiótico simultaneamente na sua estrutura formal e no seu funcionamento” (p.
63). Nessa perspectiva, explica o autor, haveria na língua a combinação de dois
modos de “significância”: o semiótico, na esfera dos signos, e o semântico, no âmbito
do discurso, ou da enunciação.
Benveniste (1986) não descarta os pressupostos de Saussure, no entanto
reconhece os limites saussurianos impostos pelo recorte do objeto tomado apenas
pela langue e declara a necessidade de ir além:

Todo o estudo semiótico, em sentido estrito, consistirá em identificar as


unidades, em descrever suas marcas distintivas e em descobrir os critérios
cada vez mais sutis da distintividade. (...) Tomado nele mesmo, o signo é
puramente idêntico a si mesmo, pura alteridade em relação a qualquer
outro, base significante da língua, material necessário da enunciação (p.
65).

Costa (2007) afirma que, com essas observações, Benveniste constata, por um
lado, quão restritivo seria um estudo da língua que tomasse como objeto apenas a
“distintividade” ou o “valor”, conforme prega a teoria saussuriana, mas, por outro
lado, diz que tais elementos devem ser considerados, uma vez que constituem

92
“material necessário da enunciação”. Deste modo, vemos um Benveniste agarrado à
linguística científica encarnado em Saussure e um outro Benveniste desejoso por
mudanças aqui e agora.
Segundo Costa (2007), na teoria benvenistiana, o signo não pode ser erigido
como “princípio único”: há que se buscarem outras explicações para o
funcionamento da linguagem, por isso que ele acrescenta ao “modo de significância
semiótico”, já proposto por Saussure, o “modo de significância semântico”, que
preencheria a lacuna deixada por Saussure - cuidaria do sentido produzido na língua
em uso e, nesse processo, resgataria a questão da referência, que fora ignorada pelo
estruturalismo, como um dos elementos importantes na produção desse sentido. É o
que lemos nas palavras do próprio autor:

Com o semântico entramos no modo específico de significância


engendrado pelo DISCURSO. Os problemas que aqui se colocam são
função da língua como produtora de mensagens. Ora, a mensagem não se
reduz a uma sucessão de unidades que devem ser identificadas
separadamente; não é uma adição de signos que produz o sentido, é, ao
contrário, o sentido (o „intencionado‟), concebido globalmente, que se
realiza e se divide em „signos‟. (...) o semântico toma necessariamente a seu
encargo o conjunto dos referentes, enquanto que o semiótico é, por
princípio, separado e independente de toda referência. A ordem semântica
se identifica ao mundo da enunciação e ao universo do discurso.
(BENVENISTE, 1986, p. 65).

Com isso, identificamos na teoria benvenistiana a importância da noção de


referência. O autor explica o processo de enunciação assim: a língua, que antes da
enunciação não é senão possibilidades, é acionada por um locutor, que se apropria do
“aparelho formal” que lhe é oferecido e “enuncia sua posição de locutor por meio de
índices específicos, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios, por outro”
(p. 84). Esse ato instaura de imediato um “co-locutor”: visto que “toda enunciação é,
explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário”. O que move
tal ato enunciativo é, “para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o
outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz
de cada locutor um co-locutor”. A referência é, assim, “parte integrante da
enunciação” (BENVENISTE, 1986, p.84).

93
Para Cardoso (2003), a obra de Benveniste é uma evolução do conceito de
referência. Tal evolução ocorreria com o abandono da ideia da oposição “pessoa/não
pessoa”, que separa os “signos plenos” (que poderiam remeter a uma mesma
referência) dos signos “vazios” (que instaurariam uma referência mais incidental,
remetendo apenas à „realidade do discurso‟), em função do alargamento das noções
de discurso e enunciação. Costa (2007) critica essa separação dicotômica e afirma
que, quando o autor admite a presença - quer explícita, quer implícita - de um
alocutário nos atos enunciativos, está, na prática, rompendo com a dicotomia “plano
do discurso / plano da história” e se afastando, de certa maneira, da ideia de que
haveria dois tipos de referência, um dos quais (o dos signos “plenos”) remeteria aos
“objetos „reais‟”, “aos tempos e lugares „históricos‟”. Cardoso (2003, p. 79) também
rebate essa distinção argumentando que a noção de signos plenos, cumprindo “uma
função representacional, simbólica, constatativa, (...) provém da concepção clássica
de referência” e, logicamente, não condiz com a visão enunciativa da linguagem.
Outra crítica apontada por Cardoso (2003) a Benveniste, em sua proposta de
subjetividade, diz respeito ao fato de o sujeito idealizado por Benveniste (1986, p.
84) ser alguém que “se apropria”, individualmente, “do aparelho formal da língua” e
o utiliza em função de seus propósitos comunicativos, em cada ato enunciativo
singular. O “alocutário” ao qual o autor se refere é “implantado” por esse sujeito, que
assume a posição de locutor.
Cardoso (2003), com o pensamento em sintonia com os pressupostos da
análise do discurso, critica o que ela chama de “fugacidade da enunciação”: o ato
enunciativo seria concebido sem levar em conta “os lugares sociais de onde falam os
interlocutores” (p. 81). Poderia, então, ser vista como “elementar” essa visão
imediatista da enunciação (p. 83), em que “A referência, tão circunstancial quanto o
discurso, acaba sendo apenas um acontecimento, pode-se dizer, um acontecimento
que desaparece” (p. 81).
Outros autores, como Mondada, Apothéloz, Koch e Cavalcante, só para citar
alguns, também compartilham dessa concepção mais ampla de enunciação, pois

94
trabalham em uma linha mais sociointeracionista do texto/discurso, e reconhecem a
influência do contexto social mais amplo na produção do discurso. A tão efêmera
autonomia do sujeito pregada por Benveniste esbarra no caráter intersubjetivo dos
atos referenciais, por meio dos quais os referentes se constroem e se reconstroem
conjuntamente na dinâmica das práticas sociais. Nessa perspectiva, não haveria lugar
para esse sujeito benvenistiano, que, senhor do „aparelho formal da língua‟, numa
atitude cartesiana, “sacaria” de lá as formas adequadas à consecução de seus objetivos
comunicativos.
De qualquer forma, concordamos com Costa (2007) e com Cardoso (2003),
que reconhecem em Benveniste uma grande contribuição para o avanço das teorias
que estudam os fenômenos da linguagem, sejam elas mais voltadas para “situar o
discurso num eixo histórico mais amplo do que o eixo histórico do acontecimento”,
sejam elas voltadas para o uso da língua como ação conjunta, por sujeitos sociais, que
se instituem enquanto produzem discurso em suas práticas cotidianas. O olhar sobre
o funcionamento da língua, promovido pelo autor, não deixa de ser um passo
importante para levar a qualquer um desses dois caminhos.
Como mostramos acima, toda a teorização de Benveniste é um abalroamento
nos pressupostos saussurianos. Benveniste, de todo modo, mesmo que sutilmente,
apontou uma falha no signo linguístico por ter excluído o referente da sua
teorização.

4.5 Act of excluding – o ato de exclusão do referente

Para Arrivé (1999), no entanto, a exclusão do referente não é uma falha, mas
uma opção: “o que é o signo para Saussure? É preciso começar por um gesto de
exclusão: o da “coisa”, designação saussuriana daquilo que, mais tarde, os linguistas
chamarão de referente. (p.39)
A afirmação de que o signo linguístico une não uma coisa e um nome, mas
um conceito e uma imagem acústica, retira o referente de pauta. O exemplo dado

95
para ilustrar a exclusão do referente é o esquema representado por um cavalo e uma
árvore diante de palavras latinas arbo e equos, que são correspondentes. A exclusão
da coisa, conforme cita Engler (1967) em suas notas, é a consequência imediata da
recusa em conceber a língua como nomenclatura, ou seja, como um vocabulário de
nomes: “uma lista de termos correspondentes a outras tantas coisas.” (p.97)
Para Arrivé (1999), Saussure (s/d) não desconhecia o problema das relações
entre linguagem e realidade: “essa concepção - da língua como nomenclatura – deixa
supor que o laço que une um nome a uma coisa é uma operação muito simples, o que
está longe de ser verdade.” (p.97). Arrivé (1999), com base nisso, argumenta, ainda,
que o termo “operação”, que o mestre genebrino menciona, é o processo linguístico
pelo qual o referente é assumido pelo signo: “temos, pois, um esboço da teoria
saussuriana da refenciação” (p.39). Arrivé, no entanto, não justifica suficientemente
esta afirmação, que ele lança e não argumenta mais profundamente em relação à
defesa de uma base referencial na teoria saussuriana:

Não se deve estranhar que esse esboço permaneça no seu estado


deliberadamente lacunar: a „operação‟ pela qual os „objetos‟ são
„designados‟ depende da fala. Ela pertence realmente à linguística, mas à
linguística da „fala‟, a qual, como acabamos de ver, Saussure exclui do seu
projeto, mesmo afirmando a sua legitimidade. (p.39, aspas do autor)

Saussure (s/d) afirma que o objeto da linguística é a langue, e não a parole,


embora reconheça a existência desta, mas, para o seu projeto estruturalista, não cabe
levar em consideração a fala em uso. Arrivé (1999) observa que, desse modo, o
referente foi rapidamente descartado. Isto mais parece uma contradição do autor do
que propriamente uma observação. Primeiro, Arrivé (1999) diz, contrariando toda a
literatura sobre o assunto, que podemos vislumbrar em Saussure o esboço de uma
teoria sobre a referenciação, mas, logo em seguida, ele afirma que o referente foi
rapidamente descartado pelas escolhas teóricas do mestre genebrino. E, com isso,
encerram-se as reflexões de Arrivé sobre o assunto.
Arrivé (1999) comenta que o difícil, para o mestre, foi provar a seguinte
afirmação: “a prova disso são as diferenças entre as línguas e a própria existência de

96
línguas diferentes: o significado „boeuf‟ tem como significante b-ö-f de um lado da
fronteira e o-k-s (ochs) do outro.” (p.100). Desta forma, Arrivé (1999) detecta a falha
no raciocínio saussuriano: “passar de uma língua para outra para provar, em uma
delas, a arbitrariedade do signo é supor que o significado de „boeuf‟ é exatamente
idêntico ao de „Ochs‟. Isso está em plena contradição com as posições mais explícitas
defendidas pelo próprio Saussure.” (p.42). Mostramos anteriormente que o mestre
negava a concepção de língua como nomenclatura. E Arrivé (1999) reconhece: “se
ele se afastou da concepção de língua como „nomenclatura‟, é precisamente porque
ela supõe ideias já constituídas, preexistentes às palavras.” (p.42)
Engler (1967) mostra que, nas fontes manuscritas, Saussure nega a
possibilidade de correspondência entre signos de línguas diferentes:

se as ideias fossem predeterminadas no espírito humano antes de serem


valores de língua, uma das coisas que aconteceria forçosamente é que os
termos de uma língua corresponderiam exatamente aos de outra. Por
exemplo: cher em francês e lieb, theuer em alemão. Não há
correspondência exata. (p.262)

Arrivé (1999) questiona: se não há correspondência exata entre cher e lieb,


por que haveria entre boeuf e Ochs? “O significante boeuf em Ça fait um effet boeuf
não se traduz em alemão por Ochs, assim como o significante Ochs em Er steht wie
der Ochs am Berge não se traduz por boeuf.” (p.42)
Vemos que Saussure, apesar de excluir o referente, se contradiz em sua
explicação e passa da arbitrariedade entre o significante e o significado para a
arbitrariedade entre o signo e o referente. Isso não passa despercebido pelos mais
atentos. Pichon (1937), por exemplo, utilizando primeiramente uma citação de
Saussure do CLG, afirma:

(...) o signo é arbitrário, pois um significante tal com b-ö-f não tem
nenhuma relação com o seu significado. A possibilidade de expressar em
alemão o mesmo significado pelo significante o-k-s é realmente a prova
desse caráter arbitrário. Não é necessário ir mais longe; o erro de Saussure
é, na minha opinião, evidente. Ele consiste no fato de que Saussure não se
dá conta de que introduz no curso da demonstração elementos que não
estavam no enunciado. Define primeiro o significado como sendo a ideia

97
geral de boi, ou pelo menos a imagem sensorial de um boi... Ora, essas são
duas coisas completamente diferentes. (p. 26)

E acrescenta: “se é realmente verdade que há bois na Alemanha como na


França, não é verdade que a ideia expressa por [o-k-s] seja idêntica à expressa por [b-
ö-f].” (PICHON, 1937, p. 27). Arrivé (1999) recorre a Benveniste (1939), que
formula observações muito semelhantes às de Pichon:

Saussure declara, nos seus próprios termos (p.100), que o signo linguístico
une não uma coisa a um nome, mas um conceito e uma imagem acústica.
Mas afirma, logo depois, que a natureza do signo é arbitrária porque ele
não tem, com o significado, nenhuma ligação natural na realidade. É claro
que o raciocínio se torna falso pelo recurso inconsciente e sub-reptício a
um terceiro termo, que não estava compreendido na definição inicial. Esse
terceiro termo é a própria coisa, a realidade (...). Quando ele fala da
diferença entre b-ö-f e o-k-s, refere-se sem querer ao fato de que esses dois
termos se aplicam à mesma realidade. Aí está pois a coisa, expressamente
excluída, de início, da definição de signo, e que se introduz nela por um
desvio, instalando permanentemente a contradição. (BENVENISTE, 1939,
p.50)

O que é que representa esse “erro” ou essa derrapagem de Saussure (s/d) para
a teorização do signo? Arrivé (1999) avalia que as críticas, tanto de Pichon (1937)
como de Benveniste (1939), são incontestáveis. Afinal, qual a importância do
referente para a teoria do signo e por que, inicialmente, ele foi rejeitado, para depois
ser recuperado, sem que Saussure percebesse a coisa em sua teorização? Arrivé
(1999) conclui que ele tem desculpas, pois, embora o signo seja exclusivamente
constituído do significante e do significado, é necessário que, de alguma forma, o
significado tenha alguma relação com o referente: “a mais „imanente‟ das semânticas
nunca consegue eliminar completamente o fato de que um referente deve apresentar
traços compatíveis com os do significado que assume.” (p.44)
É interessante notar que Arrivé (1999) recorre também a Lacan para dizer
que este, assim como Saussure, também escorregou no referente, quando levantou o
problema do elefante e da girafa, vejamos:

98
o fundamento mesmo da estrutura da linguagem é o significante, que é
sempre material e que reconhecemos em Santo Agostinho no verbum, e o
significado. Tomados um a um, estão numa relação que parece
estritamente arbitrária. Não há mais razão para chamar a girafa girafa e ao
elefante elefante, do que para chamar à girafa elefante e ao elefante girafa.
Não há nenhuma razão para dizer que a girafa tem uma tromba e que o
elefante tem um pescoço muito longo. (LACAN, 1988, p. 300)

Arrivé (1999) observa que, assim como Saussure (s/d), Lacan (1988) situa
primeiro a arbitrariedade entre o par significante e significado. No entanto, a
sequência de sua análise leva-o a introduzir, o referente: “gesto quase inevitável. Se
elefante é o significante de „girafa‟, o elefante (o da savana ou do jardim Zoológico de
Vincennes, o „objeto designado‟, a „coisa‟, o referente, enfim) tem necessariamente o
pescoço muito comprido.” (p.44). Arrivé (1999) admite um “isomorfismo”
necessário do significado e do referente, daí a derrapagem de Saussure e de Lacan.
Quais as consequências dessa “derrapagem”? O que significa admitir o
referente na composição do signo? A inclusão do referente na teorização lacaniana
modifica o modo de pensar a teoria? Pensamos que não: o que muda é apenas o
reconhecimento da inevitável presença do referente nas considerações sobre signo.
Este reconhecimento, que já estava em Benveniste, foi reafirmado por outros
estudiosos, como Bouquet, Arrivé, Pichon, Cardoso e Araújo, dentre outros, e é
particularmente enfatizado nesta pesquisa.
Com todas essas considerações, interessa-nos, sobremaneira, questionar a
suposição, sempre tacitamente aceita, de que toda a teoria psicanalítica lacaniana se
funda na concepção de signo da linguística saussuriana. Mas não estamos realmente
diante da mesma noção de signo.

99
4.6 Significado, denotação e referência

Como já discutimos anteriormente, assinalando a arbitrariedade entre


significante e significado, Saussure julgava ter deixado de fora de sua análise a
instabilidade do mundo real e dos usos da língua.
Dentro da perspectiva da Filosófica da Linguagem, Frege (1978) também
refletiu sobre essa delicada relação entre linguagem, pensamento e realidade e
postulou que o “referente” seria a representação da coisa que tinha existência e
unicidade no mundo real:
A conexão regular entre o sinal, seu sentido e sua referência é de tal modo
que ao sinal corresponde um sentido determinado e ao sentido, por sua
vez, corresponde uma referência determinada, enquanto que a uma
referência (a um objeto) não deve pertencer apenas um único sinal.
(FREGE, 1978, P. 63)

O autor afirma, ainda, que nem sempre ao sentido corresponde uma


referência, “entender-se um sentido nunca assegura sua referência” (p. 63).
Exemplifica com o sentido de expressões como: “inferno astral”, “qualquer
passageiro daquele trem”, “a Iara” etc. e diz que, apesar de apreendermos o sentido
das expressões, ele não nos garante uma referência existente e única no mundo real,
por isso postulou a separação entre significado e referência.
Rodrigues (2007) afirma que Frege (1978) vai além do sentido e da referência
como componentes do sinal, pondo em questão um terceiro componente: a
representação associada ao sinal. Diferentemente do sentido do sinal, que seria uma
imagem apreendida coletivamente, a representação teria uma carga subjetiva mais
intensa:

Se a referência de um sinal é um objeto sensorialmente perceptível, minha


representação é uma imagem interna, emersa das lembranças de
impressões sensíveis passadas e das atividades, internas e externas, que
realizei. (...) A representação é subjetiva: a representação de um homem
não é a mesma de outro. (...) A representação, por tal razão, difere
essencialmente do sentido de um sinal, o qual pode ser a propriedade
comum de muitos, e, portanto, não é uma parte ou modo da mente
individual (...) (FREGE, 1978, p. 64-65)

100
O autor discute também a constituição do nome próprio e diz que não é
inteiramente subjetiva como a representação:

A referência de um nome próprio é o próprio objeto que por seu


intermédio designamos; a representação que dele temos é inteiramente
subjetiva; entre uma e outra está o sentido que, na verdade, não é tão
subjetivo quanto a representação, mas que também não é o próprio objeto.
(FREGE, 1978, p. 65)

Desta forma, Frege (1978) “introduz” o “mundo real” em suas considerações.


Ele explicita que o sinal designa uma “referência” (a coisa do mundo real que é
designada). Mas a conexão entre o sinal e a coisa designada, para Frege (1978, p.62-
3), é arbitrária: “ninguém pode ser impedido de empregar qualquer evento ou objeto
arbitrariamente produzidos como um sinal para qualquer coisa”. O que é arbitrário é
a conexão entre o sinal e a referência; esta conexão, para Frege, pode ser alterada, ou
deformada, pelo falante.
O princípio da arbitrariedade do signo em Saussure não estaria relacionado
com a conexão do signo com o mundo, com a coisa do mundo real designada pelo
signo. Os componentes do signo, o conceito (significado) e a imagem acústica
(significante), é que sofrem uma conexão arbitrária.
Esse pensamento condiz com as ideias de Benveniste (1991), que reconsidera
a natureza do signo linguístico de Saussure para problematizá-la. Conforme já o
dissemos, para Benveniste (p.56), a relação entre significado e significante não é
arbitrária: “o que é arbitrário é que um signo, mas não outro, se aplica a determinado
elemento da realidade, mas não a outro”. A natureza do signo linguístico não tem
nada que ver com isso, com a realidade, se o definirmos como o fez Saussure, pois o
próprio dessa definição consiste precisamente em não encarar senão a relação entre
o significante e o significado. O domínio do arbitrário em relação à realidade do
mundo fica, assim, supostamente fora da compreensão do signo linguístico.
No entanto, por um deslize formal, como diz Benveniste e como já
observamos anteriormente, Saussure introduz a questão do referente em suas
discussões. Para Benveniste (1991), quando Saussure se refere à arbitrariedade do

101
signo, ele discute, na verdade, a significação, não o signo linguístico: “o arbitrário só
existe em relação com o fenômeno ou o objeto material e não intervém na
constituição própria do signo.” (p. 57)
Ao afirmar, porém, a arbitrariedade do signo, Saussure inclui, sem o
pretender, a realidade na definição inicial.
Tomar o signo como arbitrário, quer dizer que é arbitrário em relação à coisa
designada, como já havia afirmado Frege (1978).
É o que tenta demonstrar Arrivé, quando diz que há em Saussure uma
primeira teoria da referenciação. É importante notar que a relação que une os
componentes do signo não pode ser tomada como sendo o próprio signo, mas, sim, o
“total resultante” dessa associação. Daí Benveniste (1991, p. 55) propor que “entre o
significante e o significado, o laço não é arbitrário; pelo contrário, é necessário”.
Vemos essa relação “necessária” presente no próprio texto de Saussure (s/d, p.80), de
uma forma discreta, quando diz: “esses dois elementos estão intimamente unidos e
um reclama o outro”.
A confusão entre o que é arbitrário no signo linguístico tem relação com a
discussão entre sentido e referência. Para Benveniste (1989), “o sentido de uma
palavra é seu emprego” e o referente “é o objeto particular a que a palavra
corresponde no caso concreto da circunstância ou do uso.” O autor adverte que “é
desta confusão extremamente frequente entre sentido e referência, ou entre
referente e signo, que nascem tantas discussões vãs sobre o que se chama o princípio
da arbitrariedade do signo” (BENVENISTE, 1989, p.231).
Quando autores como Frege (1978), Benveniste (1989) e até Arrivé (1999)
abordam a questão da referência, será que é de referência mesmo, como entende
hoje a linguística do texto, ou eles, na verdade, dizem referência querendo dizer
denotação? Como observa Cavalcante (a sair):

O que se concebia, pois, como referente – devemos notar – já resvalava


para outra noção, a de objeto denotado, ou, em outros termos, a noção de
referência já se confundia com a de denotação. (...) A denotação diz
respeito, na verdade, a um tipo de significado descritivo; é a relação

102
virtual, estocada na nossa memória coletiva, entre a palavra e o conjunto
dos membros de uma classe que ela representa (cf. Lyons, 1977). Eis por
que é possível dizer que o nome cavalo denota a classe de indivíduos que
podem ser designados como tal. Quando tratamos da denotação de uma
palavra como cavalo, ocorre-nos a ideia de uma série de animais, mais ou
menos semelhantes, que poderíamos chamar assim. Já a referência
costuma estar associada ao uso que os sujeitos podem fazer das expressões
referenciais em enunciados efetivos, em contextos particulares, para se
reportarem a entidades. Não poderíamos falar de referência considerando
apenas a palavra fora de contexto, em estado de dicionário, mas
poderíamos, sim, tratar de denotação.

Ou como “referência” ou como “denotação”, o fato é que se defendia a


correspondência direta entre as palavras e as coisas, concepção especular do saber e
do discurso – a língua sendo uma representação adequada da realidade.
Consequentemente, os trabalhos de pesquisa de línguas ideais levaram adiante a
tentativa utópica de estabelecer uma língua em total adequação com o mundo. Essa
perspectiva é partilhada pelo senso comum pela crença em um mundo exterior
estabilizado, que permite que se “compreenda” a realidade cotidiana.
A linguística do texto contemporânea, representada por Koch (2007)
Marcuschi (2007), Cavalcante (2008) e outros, sustenta que os elementos linguísticos
e os elementos mundanos são inerentemente instáveis e só passam a adquirir
significação a partir de interações discursivas. Desta forma, não se pode mais aceitar
a definição de referente como uma entidade do mundo para a qual uma expressão
referencial remete. Ora, os usos linguísticos revelam não a realidade, mas, sim, uma
percepção do real, uma mesma “realidade” que pode ser concebida e expressa sob
diversas maneiras. É essa instabilidade que leva Mondada (2004) a propor um novo
olhar para os processos referenciais, em que se sai de uma visão estática do referente,
para uma visão dinâmica do objeto do mundo construído na própria interação, a
partir da negociação entre os pontos de vista dos participantes do ato enunciativo.
Eis por que a autora prefere falar de não de referência, mas de referenciação,
contemplando, com isso, a dinamicidade e a instabilidade dos modos de perceber e
de expressar as entidades do mundo, às quais, em vista disso, ela opta por chamar de
objetos de discurso.

103
5 A referenciação includere – o ato de inclusão do referente
5.1 A referenciação

Tomaremos como referencial teórico para nosso estudo os pressupostos da


Linguística Textual, especificamente o de referenciação e recategorização, dois
conceitos essenciais, neste estudo, para o desenvolvimento de nossa conjetura, qual
seja: a de que os processos referenciais recategorizadores mostram muito mais do que
apenas funções argumentativas em um determinado texto. Iniciaremos nossa
discussão com os novos estudos da linguística do texto sobre os processos
referenciais.
Se a referenciação é inerentemente social, não podemos desconsiderar que a
atividade é também cognitiva, visto que a interação linguística só ocorre porque os
sujeitos são capazes de processar intelectivamente os textos que produzem e
compreendem. O processamento referencial é estratégico, no sentido de que os
interlocutores selecionam formas de atuar dentro da dinâmica textual-discursiva,
utilizando para tanto o conhecimento (em algum nível) proveniente de sua
“bagagem” mental.
Ciulla e Silva (2008) pondera, a partir da noção de semelhança de família de
Wittgenstein (1975), que são os falantes, em sua atividade interativa e social, os
responsáveis pelas categorizações. Deste modo afirma:

afastamo-nos da ideia de protótipo-objeto (elemento concreto que


seja prototípico) e aproximamo-nos de uma noção de protótipo-
entidade cognitiva, isto é, uma construção resultante de operações
cognitivas, que produziria um efeito de prototipicidade, devido ao
caráter instável, múltiplo e flexível das categorias construídas pelos
seres humanos. (2008, p. 28)

Assim, a autora reitera o pressuposto de que a referenciação é uma operação


dinâmica e sociocognitiva:

104
quando falamos em categorias estabilizadas por protótipos, é preciso
lembrar pelo menos duas questões centrais: uma é a multiplicidade
e a imprevisibilidade de combinações que podem compor uma
categoria, bem como sua possível mutação; a outra é que as
operações cognitivas, como a prototipia, não podem ser vistas de
maneira independente da ação coletiva dos falantes. (CIULLA E
SILVA, 2008, p.28)

Custódio Filho (2008) também corrobora este pensamento e enfatiza a


importância de se tomar o processo de referenciação como o conjunto de operações
dinâmicas efetuadas pelos sujeitos, à medida que o discurso se desenvolve, com o
intuito de construir, compartilhadamente, os objetos de discurso que garantirão a
construção de sentidos.
Segundo Cavalcante (2004, fundada em Mondada, 1994), a referenciação é
uma operação pela qual denominamos e representamos, por meio de palavras, as
coisas do mundo: os objetos, os seres e os sentimentos. Mais do que nos referirmos
aos objetos, construímos representações durante nossa interação com o ambiente em
que vivemos. Daí Mondada e Dubois (1995) estabelecerem a sutil diferença entre
referente e objeto de discurso, de que falamos acima: o referente é o objeto do
mundo dado, enquanto que o objeto de discurso é uma construção discursiva e diz
respeito a um processo, o processo de referenciação:

Falaremos de referenciação, (...) como advindo de práticas


simbólicas mais que uma ontologia dada. (...) o problema não é
mais, então, de se perguntar como a informação é transmitida ou
como os estados do mundo são representados de modo adequado,
mas de se buscar como atividades humanas, cognitivas e
linguísticas, estruturam e dão um sentido ao mundo. (Mondada e
Dubois, 1995, p. 20)

Desta forma, as autoras entendem os referentes como “objetos de discurso”,


privilegiando a dimensão intersubjetiva das atividades linguísticas e cognitivas,
responsáveis pela mera ilusão de um mundo objetivo, “pronto” para ser apreendido
pelos indivíduos racionais que nele se encontram. O termo referenciação vem sendo
utilizado para designar essa moderna concepção de referência que, conforme se

105
apresenta, impõe um alargamento da perspectiva clássica, restrita a uma concepção
representacionalista da língua, na qual não há lugar para o papel do sujeito nem
para o contexto da enunciação. Ademais, essa abordagem volta-se para a
investigação de “como as atividades humanas, cognitivas e linguísticas, estruturam e
dão um sentido ao mundo” (MONDADA E DUBOIS, 1995, p. 276).

Esta posição é também compartilhada por Koch (2004), que toma a


referenciação como uma construção e reconstrução de objetos de discurso, tal como
pensam Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), que assumem uma concepção
“construtivista” da referência.

Por isso, Custódio-Filho (2008) sublinha que a mudança de nomenclatura (de


referência para referenciação) não é apenas estética, mas, acima de tudo, aponta para
uma ideia de referenciação que engloba os estudos dos fenômenos textuais em um
contexto bem mais abrangente, o da sociocognição, que não era considerado nos
estudos iniciais sobre referência, limitados, por exemplo, à análise dos mecanismos
de coesão cotextual.

Nessa perspectiva, os processos de categorização e de referenciação põem em


relevo não somente um sujeito real, mas, sobretudo, um sujeito sociocognitivo, “que
constrói o mundo ao curso do cumprimento de suas atividades sociais e o torna
estável graças às categorias – notadamente às categorias manifestadas no discurso”
(MONDADA E DUBOIS, 1995, p. 276).

Isso pressupõe uma dinamicidade desses processos, que conferem, como


estamos defendendo, possibilidades de escolha de referentes e de modos de designar,
que arrastam à revelia ou não do sujeito um desejo representado em sua fala. É o que
pretendemos investigar em nossa pesquisa, que o referente e muitas outras pistas
cotextuais (que também levam à construção da referência) apontam desejos mais do
que, simplesmente, marcas linguística de uma construção argumentativa.

Blikstein (1983) afirma que o referente é fabricado pelos estereótipos e que se


interpõe entre nós e a realidade, fingindo ser o “real”. É o que ele denomina de

106
„óculos sociais‟, por defender que não vemos a realidade tal qual ela se apresenta:
vemos o mundo através dos referentes. Estamos imersos num mundo construído por
meio das representações das coisas, durante nossas interações com o outro. Em
outras palavras, vivemos num mundo simbólico, mediatizado pela linguagem: não se
pode encarar o sol diretamente, nem tratar as palavras como coisas, Die Sache. É o
que ratifica Cavalcante (2004): “O referente não está no mundo, nem no texto, nem
se encontra isolado e pré-estabelecido na mente dos interlocutores; ele é uma
imagem que se fabrica durante o discurso, no contexto de comunicação, e é por ele
também influenciado”. (p.03)
Podemos identificar os referentes através dos diferentes tipos de expressão
referencial dentro de um texto oral ou escrito, dentre eles: nomes próprios, grupos
nominais, elipses, etc. Algumas dessas expressões referenciais remetem a referentes
que já foram introduzidos no discurso e são apenas retomados por formas com
significado semelhante, ou por expressões que recategorizam o referente; outras
vezes, podem remeter a objetos que nunca foram mencionados no texto, mas, que, às
vezes podem aparecer como se já fossem conhecidos de todos, pois, quando falamos,
recorremos a um compartilhamento de conhecimentos comuns e ao mesmo tempo
de conhecimentos de mundo. No primeiro caso, tem-se a chamada anáfora direta (ou
correferencial); no segundo, tem-se uma mera introdução de referentes.
Embora não seja interesse deste trabalho focalizar uma classificação de
estratégias de referenciação, teremos que utilizar os tipos de processos referenciais
para proceder à análise, pois este é um dos critérios que escolhemos para realizar a
análise empírica da pesquisa.
Mostraremos agora, brevemente, a classificação de estratégias referenciais
proposta por Cavalcante (2003), em que a autora agrupa as várias subdivisões
anafóricas. Cavalcante considera três fatores primordiais em sua classificação: a
função referencial, os traços de significação e o aspecto formal.

107
Consideramos o primeiro critério o mais importante dos três, uma vez que a
função referencial pode introduzir um novo referente no discurso ou, ainda, dar
continuidade aos referentes já estabelecidos no universo discursivo.
Exemplo de uma introdução referencial:

(36). Se um homem bate na mesa e grita, está impondo controle. Se


uma mulher faz o mesmo, está perdendo o controle.
(CAVALCANTE, 2003, P.87)

Neste exemplo, vemos que um homem e na mesa não estão atrelados a


nenhum elemento anteriormente mencionado no cotexto, ou no contexto
discursivo. São introduzidos cotextualmente pela primeira vez, por isso são
introduções referenciais.

Já as anáforas ocorrem em situações de retomada desses referentes que já


foram introduzidos no cotexto, por isso são casos de continuidade referencial.
Continuidade referencial não significa, obrigatoriamente, manutenção de um
mesmo referente, uma vez que é possível remeter a um outro referente que se
associa, de algum modo, ao que foi introduzido, mas que não é idêntico a ele.
Cavalcante (a sair) afirma que, a título de melhor compreensão dos processos
anafóricos, basta classificá-los em anáfora com retomada ou sem retomada e, desta
forma, deixar de lado todas as subclassificações que alguns estudos, muitas vezes,
repetem. Exemplos de anáfora direta:
(37). Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro
passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um
velho, uma mulher com uma criança e eu. O velho, um bêbado
esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras
amenas a um vizinho invisível e agora dormia. (CAVALCANTE,
2003, P.98)

(38). Betsy esperou a volta do homem para morrer.

108
Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite
incomum. (CAVALCANTE, 2003, P.103)

Nos dois textos, temos exemplos de anáforas diretas, ou seja, com retomada
do mesmo referente. No exemplo 2 o elemento o velho retomou um velho. No
exemplo 3 , ele retoma o homem.
Muitas vezes, porém, conforme mostram numerosos estudos (ver
MARCUSCHI, 2000), as informações culturalmente partilhadas permitem que uma
expressão referencial remeta a outras pistas textuais que lhe servem de âncora para
engatilhar um processo de anáfora indireta.
As anáforas indiretas, isto é, sem retomada do mesmo referente, remetem a
pistas (âncoras) do cotexto, às quais estão associadas, pois são inferidas a partir delas.
Elas são identificadas, principalmente, por não apresentarem correferencialidade e
introduzirem um referente novo, como se este já fosse conhecido:

(39). Coloque o amendoim em uma assadeira e leve ao forno médio


por 30 minutos. Mexa sempre até que o amendoim esteja torrado e a
pele saindo com facilidade. (CAVALCANTE, 2003, P.110)

(40). Nos últimos dias de agosto [...] a menina Rita Seidel acorda
num minúsculo quarto de hospital [...] A enfermeira chega até a
cama [...](CAVALCANTE, 2003, P.113)

Nos dois exemplos acima, os referentes grifados aparecem no texto como se já


fossem conhecidos do leitor, uma vez que a proximidade entre os elementos,
amendoim, a pele e quarto do hospital e enfermeira permite uma interpretação
satisfatória da leitura.

As expressões referenciais se classificam não apenas como introduções


referenciais e anáforas, mas também como dêiticas. As anáforas retomam os
referentes representados no cotexto, não importando a direção a que a expressão

109
remeta, se para frente ou se para trás, e podem ser diretas ou indiretas (cf.
Cavalcante, 2004)26, conforme dissemos. Já os dêiticos, ainda que remetam a um
referente representado no cotexto, precisam tomar como ponto de origem a
localização do falante no tempo/espaço real de fala. Os dêiticos, diferentemente dos
anafóricos, podem não ter âncoras e se constituírem meras introduções referenciais:
“Os dêiticos apontam não [necessariamente] para outras expressões ou porções
textuais, mas para referentes que representam entidades situadas ou pressupostas na
comunicação que se efetiva naquele momento”. (CAVALCANTE, 2004, p.06)
Há certas expressões que só podem ser plenamente depreendidas se o
interlocutor souber algumas “coordenadas” do enunciador: quem fala, para quem
fala, de onde fala e quando fala (CUSTÓDIO-FILHO, 2008). O fenômeno da dêixis
pode ser entendido como a localização e identificação de diversos aspectos (pessoas,
objetos, eventos, processos) em relação a um contexto espácio-temporal, criado em
uma situação de enunciação em que haja pelo menos um falante e um ouvinte. A
situação normal de enunciação é egocêntrica, no sentido de que o falante se coloca
no centro do processo enunciativo e relaciona tudo conforme o seu ponto de vista;
temos, assim, o processo dêitico:
(41). Apresentada na última sexta-feira pela polícia como uma das
autoras do assassinato de seus pais, ocorrido no mês passado, em
São Paulo, Suzane Richthofen, de 19 anos, tem muito a ensinar
sobre a atual geração de jovens de classe média.

(42). Homem: Este lugar está vago?


Mulher: Está, e este aqui onde estou também vai ficar se você se
sentar aí.

26
Não é nosso interesse aqui iniciarmos uma longa discussão sobre os processos referenciais, na
medida em que nosso objetivo princeps não é simplesmente identificar as expressões referencias
na superfície da fala, mas identificar a partir dos processos de recategorização a expressão de
um desejo.

110
Nos exemplos acima, vemos que o falante “aponta” para os elementos de
acordo com a posição onde se encontra: na última sexta-feira e mês passado indicam
uma determinada data no tempo em que o evento se passou. Esse apontar é
responsável pela construção de referentes textuais, que só podem ser interpretados
adequadamente se se levar em conta a posição inicial desse falante. É o que acontece
no exemplo 7, em que os personagens só falam conforme a sua posição no lugar em
estão ocupando no momento da interação.
Como dissemos, nossa preocupação maior não é simplesmente classificar, no
discurso, as expressões referenciais como anafóricas (diretas e indiretas) ou dêiticas;
nosso propósito é, antes de tudo, emprestar um olhar às novas formas de
comunicação que se realizam através da mídia eletrônica, que podem ser
encontradas, por exemplo, nos bate-papos virtuais, daí a importância de se analisar a
evolução dos referentes, na medida em que eles se prestam à construção dos vários
sentidos de um texto:

As expressões referenciais não se prestam exclusivamente à identificação


de referentes: elas podem exercer uma função argumentativa valiosa em
certos contextos discursivos. (...) a decisão de escolher formas distintas de
expressão da referência nunca é ingênua, porque tanto anafóricos como
dêiticos são fabulosos meios de veicular pontos de vista do enunciador.
(CAVALCANTE, 2004, p. 06)

Como bem disse Cavalcante (2004), as expressões referenciais não servem


apenas para identificar referentes, mas conservam, também, uma outra função no
contexto discursivo, qual seja, a função argumentativa. Para tanto, o enunciador se
vale de meios distintos para expressar seu ponto de vista. A recategorização de
referentes, principalmente, é muito utilizada no discurso com esse propósito:

(43). SOBE
CARLOS ALBERTO PARREIRA
O treinador tetracampeão do mundo voltou ao comando da
seleção brasileira.(CAVALCANTE, 2003, P. 124)

111
(44). [artigo relatando o julgamento de um automobilista
responsável por um acidente.] Ele reconhece ter rodado bêbado
(...) O Tribunal de correção infligiu ontem uma pena fechada a
este recidivista. (APOTHÉLOZ e REICHLER-BÉGUELIN, 1995, p.
247)

Vemos que os referentes, tomados como objetos de discurso, são, por


natureza, evolutivos, de modo que os usuários da língua, considerados como centro
das atividades de designação, podem lançar mão de vários recursos para elaborar e
fazer evoluir esses referentes. Os objetos de discurso constituem-se por um conjunto
de informações inclusas no saber compartilhado pelos interlocutores.
Para Lima (2004), na designação de um referente qualquer, o falante
pode deixar de lado a denominação-padrão correspondente ao nível básico da
categorização do conceito e fazer as devidas adaptações à expressão, atendendo aos
seus objetivos comunicacionais e operando, assim, um processo de recategorização
lexical. Esse processo também pode ser visto como uma reapresentação de um objeto
de discurso de um modo novo, a partir da qual se pode fazer uma nova predicação de
atributo.

Seguindo o mesmo posicionamento de Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995),


Koch (2002) constata que a recategorização não só opera uma referência, mas
também auxilia na interpretação dos sentidos realizada pelo recebedor do texto. Esta
observação reforça a ideia de que se dá uma reelaboração dos referentes pelo
interlocutor; o que estamos acrescentando aqui é que tal recategorização pode ser
vista através de uma outra cena, a de um desejo que se expressa à revelia do falante.

Discutiremos, no próximo item, o conceito de recategorização, até então


estudado pela literatura sobre o assunto, no entanto, iremos mostrar esse fenômeno
por um outro prisma, aquele que não se encontra na tessitura textual, mas na
expressão de um desejo do falante que se manifesta à revelia do sujeito, como nas
novas formas de comunicação da mídia eletrônica.

112
5.2 A recategorização de desejo

Acreditamos, com Cavalcante (2004), na possibilidade de se (re)construírem


variados sentidos a partir dos processos de referenciação. Dessa maneira, percebemos
claramente o fato de que os objetos sofrem uma “evolução referencial” no decorrer
da enunciação, ficando a cargo dos usuários da língua tal reconstrução através de
suas práticas simbólicas e intersubjetivas de linguagem. É a esse fenômeno de
reconstrução de referentes que, em linguística do texto, se dá o nome de
recategorização.
Os trabalhos que se ocuparam da recategorização, até hoje, descreveram-na
do ponto de vista dos propósitos argumentativos27 do enunciador, como se percebe
pelo seguinte comentário:

As expressões referenciais não se prestam exclusivamente à identificação


de referentes: elas podem exercer uma função argumentativa valiosa em
certos contextos discursivos. (...) a decisão de escolher formas distintas de
expressão da referência nunca é ingênua, porque tanto anafóricos como
dêiticos são fabulosos meios de veicular pontos de vista do enunciador.
(CAVALCANTE, 2004, p. 06)

Matos (2005) assevera que os referentes, enquanto objetos-de-discurso,


podem ser reformulados, desativados, modificados, rotulados, consoante certos
pontos de vista assumidos por qualquer produtor de textos mediante suas possíveis
intenções e necessidades comunicativas, dentro de certos contextos ou
circunstâncias da produção discursiva. Assim, um mesmo referente poderá ser
renomeado ou requalificado de forma alternativa, até por diversas vezes, no ato
enunciativo; em outras palavras: poderá ser recategorizado.

27
Lima (2009) trata o fenômeno em uma perspectiva cognitivo-referencial, no entanto não é
nosso interesse, na presente pesquisa, tratar da recategorização sob o ponto de vista cognitivo, já
que a maioria de nossas reflexões envolvem a noção de heterogeneidades enunciativas e
enfocam, assim, as vozes de vários posicionamentos discursivos e as vozes do inconsciente.
Admitimos que todos os processos mentais são cognitivos, mas, ainda que aceitando a definição
de recategorização de Lima, optamos por não encetar um debate em torno da Teoria dos
Modelos Cognitivos Idealizados de LAKOFF e colaboradores (1987).

113
Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), os primeiros autores a destacarem-se
no estudo específico sobre a recategorização, veem-na como um ato de referenciação
que evidencia a evolução da categorização de uma dada entidade durante a
interação. Essas entidades não são “mundanas”, ao contrário, são produtos culturais
concebidos pelo homem.
Para Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), que se ocuparam muito mais de
uma recategorização lexical, aquela que se realizava explicitamente no cotexto por
expressões referenciais recategorizadoras, a operação de designar referentes pode
ocasionar o abandono de uma denominação padrão, correspondente ao “nível de
base” da categorização, em prol da adaptação de sua expressão substitutiva a
possíveis objetivos persuasivos do indivíduo que a produz – note-se a constante
associação do fenômeno aos propósitos argumentativos do enunciador.
Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) afirmam, ainda, que o uso da
recategorização permite que se ultrapasse sua função puramente referencial e que se
penetre em outras funções, as quais podem ser de natureza argumentativa, social,
estético-conotativa e de outros tipos. Enfim, concluem os autores que o processo de
referenciação pode estar em “função de considerações superimpostas ao ato
referencial propriamente dito”. (cf. APOTHÉLOZ E REICHLER-BÉGUELIN, 1995,
p.19 – grifo dos autores). Esta observação é relevante para nossos objetivos porque
abre a discussão das anáforas recategorizadoras para outras finalidades, que não
apenas a de identificação de referentes no discurso e a de desenvolvimento
argumentativo.
O foco de análise de Apothéloz e Reichler-Béguelin, no entanto, assim
como a de muitos que trataram do fenômeno até hoje, é dominantemente a
construção argumentativa do texto. Os autores (1995), ao levar em conta o caráter
polissêmico do léxico das línguas naturais, postulam ainda que, na atividade
discursiva, o falante pode, para designar um dado objeto de discurso, lançar mão de
uma série aberta de expressões linguísticas. Estas expressões podem ser utilizadas em
condições referenciais iguais, cabendo ao locutor a escolha da expressão mais

114
adequada aos seus propósitos comunicativos. Diremos aqui que a seleção das
expressões pode estar relacionada não só a esses propósitos, mas também a escolhas
que dizem respeito a uma outra cena, que pode facilmente ser identificada a partir
dessas mesmas expressões linguísticas que servem não somente à comunicação, mas
também à manifestação de um desejo inconsciente que se infiltra na fala do sujeito.
E a isso demos o nome de recategorização de desejo, que é aquilo que o sujeito
expressa, em uma outra cena, mais além da comunicação de um discurso. Para tanto,
utilizamos como exemplário as interações que se processam no ambiente virtual,
especificamente nos bate-papos.
Veja-se um exemplo abaixo de recategorização analisado por Koch (2006):

(45) “Hoje, Laerte desperta ódio e perplexidade. Friamente,


confessou 11 assassinatos de crianças, entre quatro e dez anos.
Duas outras mortes foram confessadas informalmente à polícia, até
quinta-feira, 27. O Monstro de Rio Claro, como passou a ser
conhecido, gostava de registrar num caderno o dia e a cidade onde
passava (...) O andarilho da morte fez questão de dizer que tem
profissão: é engraxador de portas de estabelecimentos (...)” (IstoÉ,
02/02/00) (p.106)

Em (45), verifica-se a mudança de designação de “Laerte” de acordo com a


descrição feita pelo redator. Em consequência, vão sendo incorporadas novas
qualificações ao referente destacado, de acordo com o prosseguimento do texto.
Nota-se que as descrições sobre este objeto-de-discurso acabam por provocar outras
denominações alternativas como formas anafóricas, que, segundo Koch (2002),
seriam: “O Monstro de Rio Claro” e “O andarilho da morte”. Assim, estas espécies de
transformações só são possíveis porque as categorias formam-se ad hoc durante a
enunciação.

115
De acordo com Koch (2004), uma vez que o processamento cognitivo dos
referentes se dá mediante a existência de “endereços” ou nódulos cognitivos, estes
podem ser, durante o desenvolvimento discursivo, transformados ou expandidos de
tal modo que, “durante o processo de compreensão, desdobra-se uma unidade de
representação extremamente complexa, pelo acréscimo sucessivo e intermitente de
novas categorizações acerca do referente” (cf. KOCH, 2004, p. 63).
Portanto, o fenômeno em questão, para Koch, ocorre quando há uma
reativação do referente, seguida de acréscimos ou modificações em sua significação,
e também em sua referência, o que não deixa de ser uma grande estratégia de
construção textual, desempenhando funções de ordem cognitiva, discursivo-
argumentativa e interacional.
Cavalcante (2003), por sua vez, corrobora a ideia de que a recategorização
lexical se dá quando o enunciador discursivo renomeia uma forma referencial
anafórica, a fim de adaptá-la aos seus intuitos persuasivos. A autora sugere que esta
anáfora exerce algumas funções discursivas, tais como a de evitar repetições
estilisticamente indesejáveis ou de avaliar o referente ao acrescentar-lhe atributos
particulares.
Apesar de a autora ter definido o processo recategorizador como a passagem
de uma expressão designadora para outra, ela admite, em outro estudo (cf.
CAVALCANTE e JAGUARIBE, 2002), que é possível que certas repetições lexicais
que apontam para um mesmo referente não sejam co-significativas. Isto se dá
porque, mesmo que não haja novas designações, pode haver certas remodulações na
significação de um item reiterado discursivamente, como acontece com os termos
referenciais em certas produções textuais de cunho literário.
Tavares (2003) afirma que há um processo de mudança dos objetos na
enunciação, mas sustenta que a recategorização ocorre quando o locutor, ao julgar
inadequada ou insuficiente a designação de um objeto discursivo, seleciona outras
denominações mais convenientes ao contexto e aos seus propósitos comunicativos.
Neste caso, considera-se que tal uso anafórico evidencia significativas mudanças que

116
se devem a uma tentativa de construção de um léxico mais apropriado por parte do
locutor do discurso.
Para Matos (2005), o processo de recategorização não é essencialmente “uma
tentativa de construção lexical mais apropriada”, mas a sinalização de certas
transformações sofridas pelo referente ao longo do discurso, que atendem também a
outras funções de argumentação no discurso.
É óbvio conceber que a recategorização, uma vez sendo um processo
linguístico, envolve escolhas lexicais do indivíduo construtor. Contudo, nem todo
ato de recategorização pode ser definido como uma reação a um sentimento de não-
enquadramento das formas referenciais num determinado momento enunciativo.
Estamos reivindicando, como já dissemos, que a recategorização pode ser analisada
não apenas pelas funções argumentativas conscientemente ativadas pelo enunciador,
mas que também pode ser vista pelo que se expressa inconscientemente em uma
outra cena.
Pensamos com Matos (2006) que a recategorização é um processo textual que
revela as transformações de um referente, o que acarreta mudança de significação e
alterações na condução argumentativa, mas não podemos afirmar que todas as
escolhas atendem, necessariamente, a propósitos argumentativos. O conceito de
recategorização está atrelado a essa labilidade dos referentes no discurso, e é por essa
razão que pensamos ser possível retomá-la sob um outro viés: o do inconsciente.
Chamaremos de recategorização de desejo a expressão de um desejo que se processa
na interação.
Conforme demonstramos em estudo anterior (cf. BRITO, 2005), os processos
referenciais constituem um precioso recurso de auxílio na escuta psicanalítica.
Reproduzimos aqui um exemplo que analisamos no referido estudo que fizemos da
fala dos esquizofrênicos:

(46) F. M. – Eu era auxiliar de escritório. O nome do meu


namorado era Fridman, suíço. Nunca mais fui pra Beira-Mar...

117
F. M. – Tá bem, hein... Eu nasci de pé, parto pédico, é chocante...
Luís Cláudio Teixeira, ele queria me matar, ele mordeu minha
língua.... Sou psicóloga também, me empresta esse seu livro.
Gosto de Skinner, esse livro é de Skinner?
F.M. - Um homem lá na Bahia quis me fazer de lésbica.... (vai
embora).
F.M. – Meu marido não veio hoje.
Psicanalista – Qual o nome dele?
F.M. – Antônio Evandro... Pode não, tem que ser moça. Tem que
ser donzela, pobre, gostar de trabalhar, rezar...
F. M. – Eu fui noiva do Carvalho, mas apareceu outro. É triste uma
pessoa morrer.
Psicanalista - Ele morreu de quê?
F. M. – De bala, mataram ele à bala.
F.M. - Esse que toca a música aqui é irmão do Roberto Carlos
cearense, ele é feio, mas aparece na foto bonito.
F.M. - Uma mulher que tá aí é parecida com a mulher que o
homem me fez chupar ela. Eu nasci de pé, minha mãe levou uma
queda. Parto pédico, por isso o povo me chama de sapatão...
F.M. - Aquela mulher que o homem me fez chupar é parecida com
aquela, vem ver, é aquela ali a Aurivete. É parecida com aquela
sem dente...28 (p.88-89)

Vemos, no relato de F.M., a referência a um suposto “homem da Bahia”, que


a obrigou a realizar o ato. Logo em seguida, o tal homem é recategorizado como
“meu marido” e ao longo do relato notamos vários outros referentes que são
transformados em sua fala: “Antonio Evandro”, “Carvalho”, “o homem”. Adiante, ela
ainda recategoriza o referente da mulher como sendo “parecida com a Aurivete” e
28
Caso clínico de F.M.O.C. , 50 anos teve seu primeiro internamento aos 25 anos,
diagnosticada como esquizofrênica.

118
ainda como sendo “parecida com aquela sem dente”. Vale notar como a
recategorização muda de repente para uma qualificação depreciativa: feia, sem
dente, o que talvez represente não a descrição da mulher, por quem se sentira
atraída, mas o sentimento em si, o próprio desejo que ela abomina.

Constatamos, no caso de F.M., uma tentativa de resgate de sua história e


principalmente de nomeação dos sentidos das suas fantasias. Por isso reafirmamos
a importância de uma leitura psicanalítica e de uma análise da construção
referencial como princípio ético para com a verdade de cada sujeito.

Quando desenvolvemos esse estudo, realizamos uma primeira análise das


localizações referenciais, para manter e sustentar nossa argumentação de que os
processos de referenciação sempre são, de algum modo, analisados numa
interpretação, ainda que a literatura sobre o assunto não explore esse aspecto. Ao
final desse estudo, chegamos à conclusão de que mais importante do que identificar
referentes, seja no discurso do psicótico ou no do neurótico, é proporcionar uma
leitura que não se paute apenas por indicadores cotextuais, mas que permita que o
outro fale, que conte suas histórias, reais ou irreais, na medida em que acreditamos
na existência da verdade de um desejo.
As expressões de desejo podem se dar, principalmente, à revelia do
enunciador, na medida em que o sujeito é dividido em sua essência, é outro, é
heterogêneo, e, várias são as vozes que se fazem ouvir em seu discurso, como, por
exemplo, nas formações do inconsciente.

119
6 Metodologia e análise dos dados

6.1 Contexto da pesquisa

Nossa pesquisa tem um enfoque qualitativo-interpretativista. Seguindo


autores como Marconi e Lakatos (2002), Cervo e Bervian (2002), Machado (2005),
Bogdan e Biklen (1994), a análise pautou-se pelo método dialético-hermenêutico.
Este método, segundo os autores apontados, consiste em duas etapas principais: na
primeira (essencialmente dialética) selecionam-se partes do objeto de estudo,
descrevendo-as em sua constituição material, tarefa que fornecerá ao analista uma
visão minimamente detalhada de todos os componentes que interagem na formação
do fato observado; e a segunda (mais hermenêutica) é a fase definida como a parte da
pesquisa na qual o pesquisador, estabelecendo determinados critérios de análises,
realiza as interpretações, aponta as implicações e explora os eventuais planos de
explicações que o objeto de estudo comporta.

6.2 Procedimentos metodológicos

6.2.1 Etapas do trabalho

6.2.1.1 Contribuições para uma abordagem teórica das heterogeneidades


enunciativas
Nossa pesquisa procede a uma releitura crítica da teoria da heterogeneidade
enunciativa, instituída por Authier-Revuz (1982), definida da seguinte maneira:
heterogenidade constitutiva e heterogeneidade mostrada, esta se subdividindo em
mostrada marcada e mostrada não-marcada. Travamos uma discussão em torno do
esquema proposto pela autora, com vistas a repensar a discretização das modalidades
de heterogeneidade constitutiva, a saber, a constitutiva, em oposição à mostrada,
com vistas a cumprir nosso objetivo precípuo, qual seja, o de incluir fenômenos de

120
natureza não estritamente formal entre os fatos de linguagem tidos como não-
marcados, como é o caso do atravessamento do inconsciente no fio discursivo,
ampliando, assim, o leque de marcações.
Para argumentar em favor dessa “abertura” para uma outra cena discursiva,
recorremos a processos de referenciação, que podem desempenhar o papel de
eficientes marcadores discursivos, sem que, para tanto, precisem vir acompanhados
de indicadores formais (como propõe AUTHIER-REVUZ, 1982) que assinalem
convencionalmente essa marcação.
Tomamos ainda o conceito de heterogeneidade a posteriori, proposto por
Settineri (2002) e suas implicações na interpretação psicanalítica de um enunciado.
O heterogêneo a posteriori só pode ser inferido por meio de um ato interpretativo.
Acrescentamos a essa constatação que não é apenas um sentido novo que se constrói
a posteriori, mas também um referente novo, que não se desgarra de significantes e
significados. É para essa construção sígnica completa, incluindo o referente, que
direcionamos nossa análise e constatamos que os postulados lacanianos só serão
devidamente contemplados se considerarem o uso e, portanto, necessariamente,
atrelarem a supremacia do significante a seus significados e referentes correlatos.
Nossos esforços vão em direção à tentativa de evidenciar a autonomia de
certas marcas linguísticas que, inseridas em contextos específicos, promovem a
inscrição da alteridade no fio discursivo.

6.2.1.2 Contribuições para a relação indissociável entre significante, significado e


referente na cena interpretativa

Na primeira etapa desta investigação, fizemos um levantamento bibliográfico


do que já fora discutido na literatura sobre o conceito de signo e significante em
Saussure e a exclusão do referente, bem como na teoria lacaniana. Esta retomada foi
imprescindível para a nossa tese, uma vez que situamos nossas bases teóricas nos
processos referenciais, em relação à linguística estrutural saussuriana, seu conceito

121
de signo e a exclusão do referente, bem como refletimos, a partir do conceito do
signo saussuriano, redimensionado por Lacan, sobre o referente presente desde
sempre na linguagem em uso do sujeito. Nossa proposta se pauta pela
caracterização da cena interpretativa, em que se dá a construção de uma outra
relação entre significantes, significados e referentes, que nasce na referenciação,
dentro de uma perspectiva textual-discursiva, mas que se recria na cena da
interpretação psicanalítica, no momento mesmo em que o sujeito estabelece relações
até então desconhecidas por ele.
Também rediscutimos a noção de recategorização, que foi abordada aqui do
ponto de vista da reconstrução operada por uma pontuação, realizada por um
psicanalista, não pelo enunciador. A esse tipo de construção do objeto-de-discurso
em outra cena, denominamos de recategorização de desejo.
Settineri (2001) analisa a questão das entidades da língua, especificamente o
recorte das unidades. O autor procura mostrar, a partir de exemplos de ditos
espirituosos, a importância desse processo na interpretação. Evocando Saussure, o
autor afirma que o recorte das unidades é um momento principal da interpretação,
na medida em que o sujeito do inconsciente pode vir a surgir. Atentamos, no
entanto, para o fato de haver não apenas, com a interpretação do recorte das
unidades, uma ressignificação, mas um processo recategorizador de referentes, que
preferimos denominar de recategorização de desejo, uma vez que o processo
recategorizador não está mais simplesmente a serviço da argumentação discursiva,
mas revela algo da ordem de uma outra cena, do desejo do sujeito.

6.3. Critérios de constituição do exemplário

Analisamos as marcas linguísticas, na interação da mídia eletrônica, a partir


da conceituação de heterogeneidade enunciativa, de Authier-Revuz e de
referenciação, baseada nos novos estudos da Linguística de Texto preconizados por
Cavalcante (2008, 2009) e pelo Grupo de Pesquisa PROTEXTO da Universidade
Federal do Ceará.

122
Optamos por não coletar um corpus, uma vez que nosso objetivo não é elencar
as heterogeneidades ou ainda classificar as ocorrências referencias, mas, sim,
demonstrar que é possível encontrar marcas linguísticas que não se restrinjam a
estabelecer relações metaenunciativas e argumentativas, nem somente
sociodiscursivas. Esse é o ponto em que nos distanciamos da teoria das
heterogeneidades de Authier-Revuz e de outras abordagens teóricas que fazem uso
dos pressupostos da autora para finalidades outras dentro visão teórica que adotam.
O diferencial desta pesquisa não retrata exatamente uma oposição à proposta da
autora, mas, ao contrário, traz um acréscimo, um desdobramento, pois estamos
buscando analisar como os diferentes tipos de heterogeneidade enunciativa revelam,
por marcas diversas, nem sempre contempladas pela autora, a invasão de vozes no
discurso, mesmo que o sujeito não se dê conta disso. Do ponto de vista psicanalítico
(e estamos defendendo que também do ponto de vista linguístico), isso não
representa ausência de marcas, tal como postula Authier-Revuz (1982), para quem
são consideradas marcas as indicações linguísticas de que o sujeito percebeu (deu-se
conta de) que “teve sua enunciação invadida por outras vozes” – leia-se: uma voz que
representa o posicionamento discursivo do outro.

Uma das contribuições teóricas de nossa tese é demonstrar que, do ponto de


vista psicanalítico e linguístico-textual, sempre haverá marcas linguísticas,
diversificadas que sejam, pois as “marcas” não são, ou não são apenas, as que o
enunciador percebe, ou supõe perceber, mas aquelas em que se destacam sob a forma
de um sobressalto na fala, ou de um tropeço.

Tomamos como exemplário para o presente estudo em nossa pesquisa a fala


realizada na hipertextualidade, especificamente a que se processa nos bate-papos
abertos. É evidente que essa possibilidade de análise pode aplicar-se a outros
ambientes virtuais, como Orkut e MSN, mas, em vista do recorte que precisávamos
fazer, apenas deixaremos a porta aberta para que outras pesquisas venham a ser feitas
nesses outros ambientes virtuais, na medida em que qualquer tipo de interação é
atravessada por diferentes vozes e é, portanto, passível de ser interpretada. Não

123
pretendemos, obviamente, com esta análise do exemplário do ambiente virtual,
realizar uma “interpretação”, pois esta só seria verdadeiramente efetivada em sessões
de análise psicanalítica, num ambiente apropriado, numa conjunção entre analista e
paciente. Pretendemos tão-somente identificar na fala dos sujeitos, através dos
processos referenciais e das heterogeneidades enunciativas, as marcas do discurso do
Outro alastradas no diálogo realizado nos bate-papos virtuais.

6.4 Delimitação e caracterização do exemplário

O exemplário foi constituído a partir da nossa própria experiência dentro


destes ambientes virtuais e também de interações feitas pelos alunos da disciplina
Língua Portuguesa : Texto e Discurso, nas turmas A e C, ministrada pela profa.
Mônica Magalhães Cavalcante, na qual fizemos nosso estágio em Docência II do
Doutorado em Linguística. Dentre as atividades que realizamos nas turmas, uma
delas consistia em que cada aluno entrasse em um ambiente virtual, o chat, e
interagisse com os participantes para, a partir daí, observar a importância do
nickname na enunciação realizada neste ambiente.

Discutimos o estatuto do fenômeno da recategorização referencial como


atrelado à ordem do desejo, tendo como universo de investigação as produções
hipertextuais, especificamente as que se processam nos chats. Portanto, todos os
assuntos tratados procuraram versar sobre tópicos relevantes da disciplina que
também seriam importantes para a nossa pesquisa.
Apesar dessa interação, de que também participamos em certos momentos,
nossa pesquisa não apresenta um caráter etnográfico, ainda que tenha alguns traços
desse tipo de estudo. Segundo Mattos (2001), uma pesquisa efetivamente etnográfica
compreende o estudo, pela observação direta e por um período de tempo, das formas
costumeiras de viver de um grupo particular de pessoas: um grupo de pessoas
associadas de alguma maneira, uma unidade social representativa para estudo, seja
ela formada por poucos ou muitos elementos; por exemplo: uma vila, uma escola,
um hospital, etc. Não interessa a esta pesquisa a análise de relações sociais dentro de
um grupo específico, porque não nos restringimos a nenhum grupo social. Para

124
implementarmos nossos objetivos, não é necessária uma convivência de 24 horas
diárias em determinado lugar. Tampouco temos a preocupação social de estudar as
características de determinados grupos. As variáveis sexo, idade, classe social,
religião, grupo etc. não são relevantes para nossos objetivos, na medida em que
queremos analisar as marcas do outro, qualquer que seja ele, que se expressam nas
interações virtuais.

Recolhemos em torno de 30 falas dos sujeitos - o que estamos chamando aqui


de “falas” são as interações que estabelecemos com os sujeitos de nossa pesquisa nos
bate-papos. Procedemos aos processos de escansão e de pontuação no texto de cada
interação. Ou seja, identificamos os pontos mais reveladores, por assim dizer, do
diálogo e os associamos a uma outra cena para, desta forma, proceder no texto com a
interpretação pontual. Em seguida, relacionamos esses processos aos fenômenos
referenciais, que auxiliaram na realização do ato interpretativo.
No que diz respeito à preservação de identidade dos usuários e à solicitação de
autorização para a análise das conversas, entendemos que não haja esta necessidade,
em virtude de se tratar de ambientes públicos. Komesu (2005) apresenta uma
justificativa semelhante, em seu estudo sobre os blogs, argumentando que eram de
acesso livre, isto é, qualquer usuário da internet tinha a possibilidade de se tornar
leitor daqueles textos, sem a necessidade de senhas. A autora diz ainda que, por
circular em domínio público, o conjunto final dos textos obtidos não requeria
autorização de seus escreventes, podendo, assim, serem utilizados para a produção de
reflexões científicas, como as propostas no trabalho dela e também como as que
propomos em nossa pesquisa. Entendemos que isso funcione da mesma forma com a
maioria dos gêneros encontrados na internet. Isso vale para qualquer prática textual
que se realiza na WEB.
Lima-Neto (2009) também aponta nesta direção, quando justifica o não-
pedido de autorização dos sujeitos alegando que qualquer usuário de Orkut pode
entrar na página de recados de qualquer outro orkuteiro, mesmo que não se
conheçam. Além disso, o Orkut também tem ferramentas que bloqueiam o acesso a

125
determinadas partes do profile, inclusive um bloqueio para a página de recados para
aqueles que não fazem parte da rede de amigos. Então, se é permitido um acesso a
esse ambiente, entendemos que qualquer internauta que acesse um bate-papo virtual
possa se utilizar de qualquer informação lá colocada, inclusive para a reflexão
científica, que é o nosso objetivo.
Ao entrarmos no chat do Uol, tema livre, conversas dos chats foram copiadas
e coladas em um documento Word. Não trabalharemos com as variáveis dia, hora,
minuto ou ano, uma vez que, para nossos objetivos, este tipo de informação se faz
irrelevante; isso porque estamos atentos à atemporalidade da fala, uma vez que o que
nos interessa é a fala simplesmente, como expressão do inconsciente.
Nos bate-papos29, os participantes já entram no anonimato na medida em que
interagem a partir de um nick, escolhido pelo próprio participante de acordo com a
identificação ou desejo de cada um. Assim como o Orkut, no bate-papo que
escolhemos para exemplificação foi o aberto, tema livre do UOL, qualquer pessoa
pode entrar e sair, desde que a sala não esteja com a sua lotação esgotada: 50 pessoas.
Os participantes dos chats também podem escolher a cor e o tipo de letra do nick,
assim como podem também, se quiserem, anexar uma pequena foto, ou alguma
gravura.

6.5 Categorias de análise

Reservamo-nos o direito de observar apenas o que foi conveniente aos nossos


objetivos, uma vez que os fenômenos de referenciação e heterogeneidade que serão
investigados prescindem de uma transcrição que obedeça a um conjunto de normas,
as quais atendem a finalidades outras de análise.

Elegemos como critérios de análise as marcas de heterogeneidade


identificadas em uma outra cena, aquela em que podemos observar o atravessamento
da voz do inconsciente, embora essas mesmas marcas possam também apontar,
29
Embora saibamos que existem diferentes tipos de chat, não diferenciamos, em nossa pesquisa,
a designação de chat e de bate-papo; estamos usando as duas nomenclaturas como sinônimas, já
que estamos lidando sempre com o mesmo tipo de interação pela Web.

126
simultaneamente, para outros discursos e influenciar na recategorização de desejos.
Observamos tanto o que Authier-Revuz (1982) considera como heterogeneidade
mostrada marcada, como aquilo que ela julga ser mostrada não-marcada.
Entendemos que as marcas deixadas no texto pelo inconsciente podem ser
identificadas na fala. Para tanto, recorremos aos processos referenciais, que tomamos
como critério de nossa análise, para localizar os referentes na fala do sujeito.

As heterogeneidades poderiam ser observadas em qualquer tipo de discurso.


Authier-Revuz (1998) diz que examinou mais de quatro mil exemplos de
metaenunciados colhidos dos mais diversos “registros” de linguagem, orais e escritos,
todos devidamente atestados. Não obstante, optamos por examiná-las num tipo de
fala específico, o chat, que se processa em um meio relativamente novo de interação,
a internet. Essa escolha se deve ao fato de nossa preferência por este tipo de
enunciado, para mostrar que o inconsciente se presentifica e deixa suas marcas em
qualquer texto, até mesmo naqueles virtuais.
Alargamos, desta forma, o horizonte da proposta de Authier-Revuz para além
de possibilidades de heterogeneidades mostradas-marcadas da irrupção do alheio na
materialidade linguística, na medida em que colocamos em questão que outras
formas de marcação têm sua legitimidade calcada na presença do Outro no fio
discursivo. Isso porque nossa argumentação se pauta pela crença de que outras
marcas, que não apenas aqueles mais tipograficamente visíveis, nem as
conscientemente escolhidas como autonímicas, são acionados, mas também aquelas
que se revelam quando o sujeito não se dá conta, inconscientemente, de sinalizar a
presença do heterogêneo no fio discursivo: como os lapsos e a consequente
reconstrução dos procedimentos de natureza referencial dentro de uma outra cena
enunciativa.
Defendemos que o fato de o sujeito não “marcar”, conscientemente, tal como
o faz na heterogeneidade mostrada marcada, a ruptura produzida no fio discursivo
pela “irrupção” do outro não nos leva, necessariamente, a postular uma não-
marcação por parte do sujeito. Prova disso, reivindicamos, são os tropeços de

127
linguagem, extremamente comuns em uma fala, mas que, no entanto, não são
reconhecidos por Authier-Revuz (1982) como representando marcações. Para nós,
as várias maneiras de marcação – vez que defendemos que estratégias desse tipo
configuram um texto como marcado – são inteiramente legítimas, já que passíveis de
serem identificadas. Ocorre que tal identificação se dará por vias não prototípicas,
em uma outra cena de acesso à maneira pela qual o sujeito, ciente ou não de seu eu,
se deixa cindir pelo Outro em sua fala, marcando, desta forma, a alteração em seu
discurso.
A nosso ver, o fato de serem estas últimas tidas como não-marcadas apenas
pelo fato de a identificação da marcação depender do conhecimento consciente do
sujeito não descaracteriza o fenômeno em si. Diferentemente da concepção de
Authier-Revuz (1982), acreditamos que não podemos, com efeito, atrelar o fator
compreensão ao fato linguístico da marcação - mesmo que este procedimento não se
dê de maneira tão explícita. Assumimos, em consonância com Cavalcante (no prelo),
que toda entidade referida, ainda que seja uma manifestação do inconsciente, é
utilizada mediante a pressuposição de que se tornará acessível na interação por
alguma via. Na produção de um ato falho, por exemplo, existe sempre, além de uma
verdade relativa ao desejo de quem o praticou, um saber concomitante no dito. Por
isso, contestamos o “dar-se conta de”, a compreensão consciente, o voltar-se para o
próprio discurso, tão caro a Authier-Revuz (1998) como a única forma legítima de
marcação.
Além dos possíveis tropeços de linguagem, identificamos também, em nossa
análise, outras manifestações do inconsciente, que venham a se expressar na fala do
sujeito, independentemente de atos falhos. Esta é outra contribuição de nossa
pesquisa aos pressupostos de Authier-Revuz e da Psicanálise freudo-lacaniana. Para
tanto, analisamos os processos referenciais que, a partir da apreensão textual de tal
pressuposição, serão compreendidos como marcadores de fatos de heterogeneidade.

Observamos também as intervenções que porventura realizamos durante a


interação e os efeitos causados nos enunciadores após elas. Essas intervenções

128
foram de cunho estritamente dialogal, no sentido de não terem a pretensão de um
caráter interpretativo, verdadeiramente, como o que se dá em uma sessão clínica
terapêutica. Isso não impediu, no entanto, que as intervenções se prestassem a
esse destino, na medida em que o sujeito se espantou com, ou negou, seu próprio
dito. Esse ato é característico da reação de um indivíduo que se embaraça com o
seu próprio inconsciente. Vemos isso já na própria escolha de um nick em que a
pessoa diz que a escolha “não tem sentido algum, que foi feita aleatoriamente”,
mas que, ao longo da interação, se revela uma fonte de desejos.

No próximo item, descreveremos muito brevemente, sem entrarmos nas


querelas que as teorias carregam, as concepções que versam sobre a
hipertextualidade. Achamos necessário esse percurso, uma vez que retiramos
nosso exemplário do ambiente virtual da internet, de forma que caracterizá-lo se
faz premente, na medida em que o sujeito virtual é influenciado pela
hipertextualidade que o abriga.

6.6 As novas formas de comunicação

Mostraremos, em nosso trabalho, que as interações que ocorrem na internet


são condutoras de desejo daquele que tecla, na medida em que, precisamente, as
comunicações se processam através de um computador, ou seja, o sujeito se sente
protegido e amparado atrás do computador. E, desta forma, “não cora, nem murcha”,
pelo contrário, se “esparrama pelo chão” – é o que expressa o poema de Cavalcante,
que trazemos a esta discussão apenas para falar da revelação de um sentimento
comum a muitos usuários da Web:
Salve o e-mail
Mônica Magalhães Cavalcante30
Sinto-me bem atrás dele.

30
Poema publicado no livro Poemas do intervalo. Fortaleza: Edições UFC, 2003. p. 26.

129
Não coro nem murcho,
Não cambaleio,
nem consinto...

E posso entreabir
as muitas portas
E esparramar no chão
o pouco dito
e o mal dizível também.
E ainda vou restar inteira
atrás do e-mail!

Somos tela e dedo


a um comando.
Mesmo os sobressaltos
se nos silenciam,
porque só vemos
o que permitimos.
E, quando nos permitimos
- eu ao outro, o outro a mim -,
ainda assim, avaliamos,
e nos medimos
nosso bom tamanho.

Nós nos enquadramos


- entre o curto e o longe,
entre a tela e o tempo,
entre o instante e o tudo,
entre a pele e o profundo -
atrás do e-mail.

O que pretendemos discutir, a partir dessa sensação de estar escudado pela


distância física do interlocutor e pela tela do computador, é que, no “esparramar-se”,
escapam as expressões de desejo, ou como lapsos de escrita ou como autonomeação
dos nicknames na contextualização do diálogo, ou como qualquer outra pista
linguística que contribua para a reconstrução de referentes que escapam à
consciência do enunciador.
Com a chegada da mídia eletrônica e do hipertexto, uma onda de
informações e transformações é verificada em vários níveis sociais, principalmente

130
nas formas de uso da linguagem e da comunicação. É no uso que fazemos dessa
comunicação hipertextual que vamos analisar o exemplário de nossa pesquisa.
Compartilhamos com Xavier (2002) que o hipertexto vem a ser um novo
modo de enunciação, o digital. O autor afirma que enunciar é uma forma de
expressão, comunicação e interação desenvolvida e aperfeiçoada pelos homens ao
longo da história, para se relacionar comunicativamente com os outros e com o
mundo: “em sentido amplo seriam as linguagens diversas semioticamente criadas,
socialmente convencionalizadas e pragmaticamente reproduzidas em contextos
situacionais adequados nas diferentes esferas sociais” (p.97).
Dessa forma, o hipertexto descentraliza a escrita, enquanto tecnologia
enunciativa dominante, na medida em que outros sentidos, principalmente o visual,
entram em cena na interação eletrônica. Isso também põe em xeque o domínio da
comunicação verbal. No entanto, outros recursos se fazem necessários ao hiperleitor:
vários outros modos de percepção que devem ser processados “todos ao mesmo
tempo agora” (p. 100).
Vale ressaltar a interessante discussão de que Xavier (2002) lança mão,
recorrendo a Eco, Kress e Bolter, para falar sobre a emergência das tecnologias
digitais nas sociedades contemporâneas e suas implicações sobre os modos de
representação e apreensão das ideias.
A partir dos autores acima mencionados, Xavier observa as diferentes
posições de cada um quanto ao advento do hipertexto. Para Eco (1996), que analisa
alguns dos impactos do computador na sociedade letrada, é necessária a permanência
do livro como suporte de escrita, apesar da forte concorrência que vem sofrendo das
versões eletrônicas de vários gêneros textuais. Eco defende, veementemente, o livro
impresso e rechaça a escrita hipertextual. Já Kress (1990) postula a ocorrência de
uma “revolução” semiótica. Essa mudança seria provocada pelo impacto das novas
tecnologias digitais de informação que, entre outras coisas, estaria, no seu entender,
“reconfigurando e revalorizando o uso das formas visuais de representação nos
vários domínios da comunicação pública” (p. 110). O posicionamento de Bolter

131
(1994) é um tanto mais radical. O pensador afirma que estamos em pleno processo
de transição no âmbito das tecnologias de escrita. Essa transição tem levado o livro
impresso a ceder lugar à escrita eletrônica comandada pelo computador,
instrumento que é ambivalentemente revolucionário e evolucionário. “Estamos
vivendo a última era da prensa e, por isso, as evidências da senilidade do livro
impresso estariam espalhadas por toda a parte”. (p.125)
Assim como Xavier (2002), também entendemos que é necessário ter um
pouco mais de discernimento quanto à exaltação da escrita eletrônica viabilizada
pela Internet: nem exaltaremos, nem condenaremos, apenas analisaremos,
objetivamente, o que a interação pela Web favorece nas relações humanas. Nosso
objetivo, aqui, é discutir, como bem observou Crystal (2005), a alternativa nova de
comunicação humana que a massificação do computador harmoniza através da
Internet.
Como afirma Xavier (2002), é o computador que promove o encontro de
todos os modos de enunciação no hipertexto:

A convergência de suportes de leitura propiciada pelo computador


produz, pela ordem inversa, uma nova tecnologia enunciativa – o
hipertexto -, que por sua vez faz nascer um novo modo de
enunciação, o digital, colocando à disposição do usuário todos os
modos enunciativos anteriores concomitantemente. (p.99, grifo do
autor)

Dessa forma, o hipertexto se destaca como um novo modo de enunciação31, o


digital, com a vantagem de propiciar uma interseção entre as demais formas de
enunciação. É o que também afirma Araújo (2006):

...a Internet proporcionou uma espécie de prosificação digital, já


que as possibilidades combinatórias de gêneros e de semioses em
um mesmo suporte é uma realidade que suscita gêneros prenhes de

31
Não é o nosso interesse aqui fazer uma discussão sobre as divergências quanto a esse novo
modo de enunciação.

132
muitas características comuns, como os elementos de natureza
hipertextual. (p.94)32

Marcuschi (2004) também compartilha com Xavier (2002) e Araújo (2006) 33


o pressuposto de que a Internet abarca, de maneira bastante complexa, diferentes
gêneros já existentes e, por outro lado, desenvolve outros realmente novos. Daí
Araújo (2004) considerar a Internet não apenas um suporte, mas uma esfera de
comunicação humana, “pois ela agrega e engendra variadas práticas discursivas que
trazem a reboque características bastante distintas” (p.115).
Marcuschi (2001) observou que, com a utilização da mídia digital, como, por
exemplo, o bate-papo, não surgiu uma nova escrita, mas sim, uma maneira nova de
se relacionar com ela. Segundo o autor, “escrever pelo computador no contexto da
produção discursiva dos bate-papos síncronos (on-line) é uma nova forma de nos
relacionarmos com a escrita, mas não propriamente uma nova forma de escrita” (p.
18). Da mesma forma, Possenti (2005) endossa as palavras de Marcuschi (2001):

Quando leio que intelectuais estão preocupados com o fato de que a


moçada está escrevendo “diferente” quando “tecla” em seus
computadores, o que logo me vem à cabeça é que não há
rigorosamente nada de novo nessa grafia. A novidade, o
bestialógico, consiste em chamar a isso de nova linguagem. (p.03)

O que consideramos genuinamente importante é o que essa linguagem,


concretizada via computadores, independentemente de ser considerada nova ou
não, traz de benefício em favor dos usuários desse novo meio comunicativo. Mais
do que analisar as características do internetês, interessam-nos as relações
humanas e como o inconsciente de cada sujeito se revela no ambiente
hipertextual. Destarte, empreenderemos, a partir da mostra do nosso exemplário,
a identificação de marcas linguísticas que expressem um desejo do sujeito que

32
A Internet, por sua própria constituição, comporta diferentes gêneros: como a carta, a
propaganda publicitária, o artigo de opinião, etc.
33
Cf. sobre os diferentes gêneros na Internet em Araújo (2006).

133
escreve, ou, no caso, que tecla, entrementes que “fala”, e diz muito mais do que
intencionava dizer em uma interação.

Essa nova forma de comunicação nos é preciosa, na medida em que podemos


localizar um sujeito atravessado pelo Outro nas várias manifestações que a
virtualidade propicia.
Dada a sutileza de nossa análise, seria impossível, e até contraditório, dizer
com precisão, ou por antecipação, que tipos de marca linguística serão buscadas, já
que o trio unificado significante-significado-referente pode ser qualquer um,
dependendo de vários fatores contextuais, individuais e subjetivos. Desse modo, os
processos referenciais serão verificados principalmente, embora não apenas, dentro
de uma outra cena, que não somente a que se costuma reconstruir nas análises da
Linguística de Texto com outros objetivos – organizacionais, argumentativos,
cognitivo-referenciais, dentre outros.

6.7 Análise dos dados

Apresentaremos, agora, uma pequena amostra do exemplário de nossa


pesquisa retirada de uma conversa encetada em um bate-papo.

6.7.1 A voz dos outros


Neste item, mostraremos a invasão da voz de outros discursos na fala do
sujeito sem que este perceba isso. Para tanto, identificaremos as marcas linguísticas
na interação virtual. Trataremos, portanto, de heterogeneidades enunciativas
mostradas (AUTHIER-REVUZ, 1982) e, para nós, sempre marcadas. Não nos
restringiremos, todavia, aos casos de modalização autonímica e de conotação
autonímica, em que o sujeito realiza “laçadas reflexivas” e, conscientemente, reflete
sobre seu próprio dizer, reformulando-o por motivos diversos, conscientes ou não.
São esses motivos diversos que nos interessam, ainda que não seja nosso propósito –

134
nem poderia ser – interpretá-los. Cumpre-nos apenas demonstrar como podem ser
identificadas as marcas para possíveis interpretações psicanalíticas em sessões reais
de análise. Com isso, estamos contribuindo não somente para os estudos linguísticos
sobre heterogeneidades enunciativas, como também para as pesquisas em Psicanálise
lacaniana, sempre centradas numa visão saussuriana de signo linguístico.

(47) A menina problematik

(02:37:02) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: Oi


(02:37:02) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: oi
(02:37:26) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: claro q xim
(02:37:44) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: por q esse nick?
(02:38:21) universitário (reservadamente) fala para paulo: qts anos?
(02:38:24) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: Hmm... eh pq sou uma
pessoinha q nao coxtuma estar muito felixxxx
(02:38:47) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: Problemas em ksa, na
escola, com amigos...
(02:39:18) universitário (reservadamente) fala para paulo: 21
(02:39:32) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: como assim?
(02:39:41) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: E vc?! Faix o q na
universidade?!
(02:39:47) universitário (reservadamente) fala para paulo: me add:gustavopausini@hotmail
(02:40:00) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: letras e vc faz facul?
(02:40:31) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: Não... faço 2º ano!
Meus pais nao sao muito compreensivos com meu modo d me vestir, as musicas q escuto...
(02:40:58) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: ah eu sei como é
(02:41:06) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: to fazendo uma
pesquisa pra faCUL
(02:41:11) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: to poesquisando sobre
bate pao
(02:41:14) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: Sério?!
(02:41:18) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: Como assim?!
(02:41:31) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: to pesquisando sobre
bate papo
(02:41:43) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: quero saber se posso
usar essa conversa

135
(02:42:19) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: só c a gente conversar
maix...
(02:42:28) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: claro
(02:42:43) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: me conta mais sobre a
sua relação com os seus pais
(02:42:48) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: mas nao vai dar
problemax pra mim naum?!
(02:43:18) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: não fique tranquila
(02:44:21) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: Axim... eu uso muito
preto, franja, escuto muito simple plan, blink, evanescence, 30 seconds to mars...
(02:44:59) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: então essas músicas são
reflexos de seus problemas
(02:45:04) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: e eles dizem q devo
escutar musicas menos pesadas...
(02:45:26) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: É, sei disso... elas
refletem o q sinto em vários momentox da minha vidinhah
(02:45:54) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: bem, tenho q ir
(02:46:11) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: oww... td bem!!! espero
ter lhe ajudado
(02:46:19) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: claro q xim
(02:46:30) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: obg e tchau

Neste exemplo, podemos, logo em um primeiro impulso, dizer que esse nick
é muito peculiar, uma vez que, no ambiente virtual bate-papo, os nicks escolhidos
são geralmente atraentes e, por vezes, pornográficos, com o objetivo de chamar a
atenção do outro para uma “teclada” ou uma transa virtual. É interessante notar que
o sujeito não se autonomeou, por exemplo, como Linda, Morena, Lulu, Alice, etc,
apelidos geralmente preferidos por aqueles que participam desse tipo de ambiente
virtual de interação. O escolhido foi uma alcunha que marca o distanciamento entre
o que se quer mostrar no chat e o que se é na realidade. A “menina problematik”
queria ou ser identificada por uma tribo, ou apontar para alguma coisa, ou ambas as
coisas. O fato é que o referente “menina problematik” já estabelece um
distanciamento entre o enunciador do discurso e as diferentes vozes aí identificadas
e não assumidas pelo sujeito, uma vez que o sujeito heterogeneizou o seu discurso.

136
Temos que o apelido recategoriza o sujeito real da enunciação ao mesmo tempo em
que o ressignifica, ou seja, torna-o outro, um outro referente, além disso.
Nesse ambiente, pouco se quer falar e muito menos escutar; vemos isso nesta
passagem:

“(02:45:54) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: bem, tenho q ir

(02:46:11) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: oww... td bem!!! espero


ter lhe ajudado”

A menina “problematik” estava muito “a fim de teclar”, de falar de seus


problemas de adolescente (imaginamos que seja uma adolescente e que o
universitário cortou abruptamente a conversa. Mas, ainda que ela não seja uma
adolescente na vida real, isso não tem relevância para outra “idade” que ela revela,
nem para as insatisfações e os desejos que ela deixa escapar).
No nick “menina problematik”, reconhecemos como outras “vozes”,
possivelmente dos pais, e provavelmente dos amigos, aí se manifestam.
“Problemática”, porque escuta certos tipos de músicas – que refletem seu estado de
espírito e também são estranhas para os pais –, porque briga com os amigos, ou se
mete em confusão, etc. Desse modo, um conjunto de estereótipos apreensíveis pelo
contexto ajuda a construir o referente para o nick “menina problematik”. Contudo,
mesmo estando ansiosa por extravasar alguma coisa, a “menina problematik” recua,
apesar de seu nick assumir o perfil de problemática. Ela própria manifesta a
possibilidade de que a entrevista lhe traga complicações:

“(02:41:31) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: to pesquisando sobre


bate papo
(02:41:43) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: quero saber se posso
usar essa conversa
(02:42:19) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: só c a gente conversar
maix...
(02:42:28) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: claro

137
(02:42:43) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: me conta mais sobre a
sua relação com os seus pais
(02:42:48) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: mas nao vai dar
problemax pra mim naum?!”

Existe uma voz que diz: sou problemática, mas não quero problemas com
isso, mesmo quando o sujeito tem a proteção de uma tela que guarda sua face. Nesse
caso, outras situações discursivas são barradas para referendar a expressão referencial
“menina problematik”. Essa barra parece se manifestar pelo fato de a “menina”
recusar certas “expressões referenciais”, como bem notou Lima (2009). Desta forma,
ao recusar certas “expressões referenciais”, a menina recusa um desejo, ao mesmo
tempo em que o assimila, não sabendo exatamente de onde isso vem. Todavia, esse
desejo faz eco, é assimilado e repetido em seu próprio nick. Por isso, ela recua diante
dos problemas - destes, ela quer manter distância, assim como de seu desejo, que é
barrado e que é protegido no bate-papo, virtual que seja, mas que se manifestou em
toda a sua “problematik”.
Como vemos, há marcas linguísticas, não só de expressões referenciais, mas
de outras pistas do cotexto que levam ao reconhecimento de vozes do inconsciente,
dentro das quais há referentes irreveláveis, mas, ainda assim, indiciáveis por marcas.
Não se deve, pois, limitar-se à afirmação de que o significante “salta” sozinho, já que
ele está, necessariamente, preso a um significado construído no momento da
enunciação, e a um referente, dos quais o sujeito não se dá conta.
Dentre outros aspectos, demos continuidade a essas constatações refletindo
sobre as marcas linguísticas da presença do inconsciente a partir da comunicação
eletrônica. Mostraremos que o nick não é somente um nome escolhido
aleatoriamente, pois ele pode revelar a história de um sujeito que deseja mais além
do que pode alcançar sua consciência. Desta forma, recorremos, como mostramos
em nossa discussão anterior, aos pressupostos psicanalíticos e ao conceito de
recategorização, já discutido acima, para apontar para uma nova forma de
recategorizar, que escapa a qualquer análise contextual de organização consciente do

138
texto e do discurso; diríamos ainda que foge a uma compreensão apenas cognitiva
dos processos referenciais. Como dissemos, denominamos de recategorização de
desejo34 a essa forma de nomeação que encontramos não só nos bate-papos virtuais,
mas também em outros tipos de interação mediatizada pelo computador, ou não.

Apresentamos, abaixo, outra pequena amostra retirada de um bate-papo (UOL ,


Tema Livre), em que encetamos uma conversa com um dos participantes que se
encontravam presentes na sala do chat.

6.7.2 A recategorização de referentes

As recategorizações rotineiramente analisadas na literatura concernem a


descrições textual-discursivas, argumentativas e sociocognitivas (ver item anterior).
Aqui, no entanto, a análise incidirá sobre a recategorização dentro de outra cena,
que poderia perfeitamente ser a da interpretação psicanalítica. Isso não significa
dizer que tal análise descarte os traços textual-discursivos de que o sujeito tem
consciência no momento em que profere o enunciado.

(48) O sexo de Lumpy

Entramos na sala de bate-papo com o nick Bia:

(06:15:47) Bia entra na sala...

(06:16:02) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: oi quer tc

(06:16:07) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: klaru

(06:16:41) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: e esse nick?

(06:16:50) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eh um personagem de


desenho animado

(06:17:01) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: naum conheço


34
Chamamos de recategorização de desejo a recategorização que pode ser encontrada em uma
outra cena, na fala do sujeito, marcada pela aparecimento de outras vozes em seu discurso.

139
(06:17:10) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eh americano

(06:17:13) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: como ele é?

(06:17:16) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eu te envio um link

(06:17:20) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: ai vc pode ver uns videos
meus tbm...

(06:17:25) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: que vídeos?

(06:17:37) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: videos caseros

(06:17:40) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: estilo engraçados

(06:17:43) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: o ke o lumpy faz?

(06:17:47) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eu achu q ele eh o


personagem mais da hora

(06:17:53) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eh um alce azul

(06:17:57) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: alce?

(06:18:03) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eu ia fala viadinho...mas ai


ia pega mal neh

(06:18:12) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: rsrsrsrs

(06:18:15) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: muito loko


(06:18:17) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: passa na sky?

(06:18:22) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: to de mal

(06:18:25) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: rsrsrs

(06:18:30) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: nao sei eh no canal g4


(06:18:32) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: passa a meia noite

(06:18:36) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: vc gosta ?

(06:18:40) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: sim

(06:18:44) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: vc vai passa o msn?


140
(06:18:47) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: quer ver meus videos?

(06:18:51) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: keru

(06:18:57) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: vc acessa o you tube?


(06:19:58) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: perai

(06:20:47) LUMPY (reservadamente) fala para Bia:


http://www.youtube.com/results?search_query=ninfetas&search=Search
(06:20:50) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: acessa o link ai

(06:20:53) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: o meu grupo se chama


ninfetas

(06:21:07) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: nao se assuste pelo


nome...

(06:21:09) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: tenho ai sete ou oito


videos

(06:25:47) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: eu vi

(06:25:57) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: olaaaaaa......

(06:26:01) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: assistiu?

Vemos neste diálogo que o nick LUMPY significava muito mais do que um
nome escolhido aleatoriamente, sem importância, pois, como diz Crystal (2002), o
“nick é a identidade eletrônica [e sempre] diz alguma coisa sobre quem são e como
agem os usuários de chat” (p. 160). Os nicknames não só dizem sobre quem são os
usuários, como também expressam alguma coisa do sujeito, como no trecho:
“(06:17:53) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eh um alce azul

(06:17:57) Bia (reservadamente) fala para LUMPY: alce?

(06:18:03) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eu ia fala viadinho...mas ai


ia pega mal neh”

141
Mais do que uma “identidade eletrônica”, podemos dizer que existe uma
identificação com o apelido em questão. LUMPY foi recategorizado e sofreu também
uma ressignificação, que se refletiu na própria expressão referencial: um alce azul.

Numa análise linguístico-textual, essa recategorização enveredaria para outros


aspectos atinentes à construção dos sentidos e da referência no universo discursivo
aberto pelo texto. Em nosso estudo, o referente que escapou, junto com o
significante-significado, só existe no plano do inconsciente, e é por isso que falamos
de uma “outra cena”, à qual o sujeito não tem acesso.

6.7.3 As não-coincidências do dizer35

Vemos ainda que, através das não-coincidências do dizer do dizer, também é


possível refletir sobre significados e referentes que se escondem e que se deixam
trair pelo modo como são nomeados e pelo emprego de expressões de não-
coincidência entre vozes do inconsciente que se embatem.

Na “outra cena”, a que nos referimos anteriormente, vislumbramos a


heterogeneidade configurar-se como uma nominalização de desejos que provoca um
afastamento defensivo entre Lumpy, “um alce azul, viadinho”, e sua própria
identitidade.

Quando Lumpy diz: “eu ia falar viadinho... mas ia pegar mal”, ele se voltou
para o seu próprio dizer; dessa forma, o referente foi recategorizado, mesmo no
sentido empregado pela Linguística de Texto, e o sentido sofreu uma ressignificação:
viadinho por alce. Importa à Psicanálise o que essa recategorização representaria
para a história de vida do sujeito.

Identificamos neste exemplo o que, na Linguística da Enunciação, Authier-


Revuz denomina de uma não-coincidência entre as palavras e as coisas. Interessante
observar que a não-coincidência entre as palavras e as coisas é caracterizada também

35
A separação do exemplário, conforme os critérios de análise, é apenas para fins de pesquisa,
uma vez que os critérios se imbricam e se justapõem.

142
pela autora a partir da perspectiva psicanalítica. As “coisas” são colocadas como
objeto-real a nomear, e as palavras, como o instrumento utilizado no processo
designativo, o aparelho simbólico significante. Acontece que o real36 é sempre
inalcançável em sua essência, e a linguagem, uma vez constitutivamente falha, não é
suficientemente adequada para nomeá-lo.

As palavras nunca alcançam satisfatoriamente a tarefa de nomear o real nem


de designá-lo. Authier-Revuz afirma que a manifestação linguística, dessa parte do
fenômeno, costuma expressar:
(i) dúvida quanto à enunciação, com verbos no futuro do pretérito ou futuro
do presente e retomada do termo;
(ii) anulação de sentido, construída através do verbo dizer ou chamar e
advérbio de negação;
(iii) explicitação da imperfeição do sistema linguístico.
Note-se que a preocupação maior da autora é com a relação entre o elenco de
formas de não-coincidências do dizer e o que isso representa em termos de
interdiscursividade. É importante salientar que esta não é a mesma preocupação da
Psicanálise.

36
Segundo Žižek (1992), o "real" resulta ser um termo bastante enigmático, e não deve ser equiparado
com a realidade, uma vez que a nossa realidade está construída simbolicamente; “o real, pelo contrário, é
um núcleo duro, algo traumático que não pode ser simbolizado (isto é, expressado com palavras). O real
não tem existência positiva; só existe como abstracto.” Para o autor, a realidade pode ser desmascarada
como uma ficção; basta ter presente certos aspectos - pontos indeterminados - que têm a ver com o
antagonismo social, a vida, a morte e a sexualidade. Temos que enfrentar estes aspectos se quisermos
simbolizá-los. O real não é nenhuma espécie de realidade atrás da realidade, mas sim o vazio que deixa a
própria realidade incompleta e inconsistente. É o espectro do fantasma; o próprio espectro em si é o que
distorce a nossa percepção da realidade. A trilogia do simbólico/imaginário/real, inventado por Lacan
(1954-55) se reproduz dentro de cada parte individual da subdivisão. Há também três modalidades do
real: o "real simbólico", em que o significante é reduzido a uma fórmula sem sentido (como em física
quântica, que como toda ciência parece arranhar o real, mas só produz conceitos apenas compreensíveis);
o "real real", que é algo horrível, aquilo que transmite o sentido do terror nas películas de terror; e o "real
imaginário", que é como algo insondável que permeia as coisas como um pedaço do sublime. A
psicanálise ensina que a realidade (pós-moderna) precisamente não deve ser vista como uma narrativa,
mas como o sujeito há de reconhecer, suportar e ficcionar o núcleo duro do real dentro de sua própria
ficção.

143
A diversidade de figuras linguísticas nas quais esse fenômeno se apresenta é
imensa. Authier-Revuz (1998, p. 24) coloca essa dificuldade explicando que as
formas de não-coincidências das palavras com as coisas
aparecem, de forma notável, por um lado, no plano dos fenômenos
“tratados”, reflexivamente, pelos enunciadores, entre outros, a metáfora, o
neologismo, o eufemismo e a hipérbole, e um conjunto de oposições
gramaticais (finitude, número, tempo, modo...) muito raramente em causa
nos outros campos de não-coincidência e, por outro lado, no plano das
formas de glosa, a importância particular da modalização explícita que
apresenta uma encenação complexa de recursos modais da língua
(modalidade de enunciação, polaridade afirmativa/negativa, auxiliares
modais, modos e tempos com valor modal, advérbios, subordinadas...).

Mais do que a marca descritível identificada no exemplo, interessa-nos a


mostração do desejo do sujeito refletido em sua enunciação: representa muito mais
do que uma simples curtição de um desenho animado, pois mostrou o lugar para
onde o desejo do enunciador está apontando: para uma sexualidade que pode “pega
mal neh”?

Em uma outra interação, temos uma negação recategorizada, como veremos


no item seguinte.

6.7.4 A negação recategorizada

Crystal (2002) afirma que o nick é um índice extremamente característico da


linguagem dos grupos de chat e observa que “a eleição de um nickname é um ato
ritual que identifica o grupo ao qual o indivíduo aspira pertencer; por isso, é um
assunto de grande complexidade e sensibilidade” (p.186). Araújo (2005) também
reforça a ideia de que o interesse sobre o nick ultrapassa as fronteiras da Linguística
e chega à Psicologia Social. Nossa preocupação nesta pesquisa não reside, no entanto,
na descrição de comportamentos sociais estereotipados (embora não seja possível
não notá-los, pois eles fazem parte da conjuntura social que leva o indivíduo a ter
certas crenças e a falar e a agir conforme sua identificação com o grupo ao qual

144
pertence), mas na análise das heterogeneidades nesta outra cena, viabilizada por um
sujeito que deseja.

(49) O não-saber do lover boy37

Bia entra na sala

(05:31:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: =~.~= oi gatinha sera
que vc poderia tc comigo????
(05:31:03) Bia (reservadamente) fala para lover boy: oi, td b/
(05:31:06) lover boy (reservadamente) fala para Bia: 21
(05:32:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrsrs
(05:32:10) lover boy (reservadamente) fala para Bia: e o q gosta de fazer de
fds
(05:33:05) Bia (reservadamente) fala para lover boy: adoru internet,
cinema...
(05:33:07) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrs eu tmbm

(05:34:08) Bia (reservadamente) fala para lover boy: gostei do seu nick
(05:34:11) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrs
(05:35:02) lover boy (reservadamente) fala para Bia: brigaduuuuuuuuuu
(05:35:40) Bia (reservadamente) fala para lover boy: porke esse nome?
(05:36:01) lover boy (reservadamente) fala para Bia: =~.^=
(05:36:09) lover boy (reservadamente) fala para Bia: alvaro
(05:37:02) Bia (reservadamente) fala para lover boy: escolheu lover boy por
que/
(05:37:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: vc sabe o q significa
LOVER BOY
(05:37:09) Bia (reservadamente) fala para lover boy: o q significa?
(05:37:40) lover boy (reservadamente) fala para Bia: amante
37
Optamos por intitular cada exemplo de nossa análise de acordo com o relato da interação
virtual, como se fosse um relato de um caso clínico.

145
(05:38:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrs
(05:38:20) lover boy (reservadamente) fala para Bia: estranho né
(05:38:22) Bia (reservadamente) fala para lover boy: é mesmo?
(05:38:40) Bia (reservadamente) fala para lover boy: vc se sente assim?
(05:38:43) lover boy (reservadamente) fala para Bia: ñ
(05:38:50) lover boy (reservadamente) fala para Bia: eu ñ sabia o q
significava
(05:38:54) Bia (reservadamente) fala para lover boy: soube agora?
(05:38:59) lover boy (reservadamente) fala para Bia: fikei sabendo a poko
tempo
(05:39:02) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrsrs
(05:39:05) lover boy (reservadamente) fala para Bia: mais acho legal
(05:39:10) lover boy (reservadamente) fala para Bia: =~.^=
(05:39:15) Bia (reservadamente) fala para lover boy: e continuou com o
nick?
(05:39:17) lover boy (reservadamente) fala para Bia: sim

(05:39:20) Bia (reservadamente) fala para lover boy: então gostou?

(05:39:27) lover boy (reservadamente) fala para Bia: vamos c diser q sim e ñ

(05:39:30) lover boy (reservadamente) fala para Bia: é diferente

Neste exemplo, diferentemente do anterior, o interlocutor chegou a revelar seu


verdadeiro nome “Álvaro”, que foi recategorizado como lover boy, apesar de o
falante ter demonstrado não saber exatamente o que significava, como se vê no
trecho abaixo:

“(05:38:50) lover boy (reservadamente) fala para Bia: eu ñ sabia o q significava


(05:38:54) Bia (reservadamente) fala para lover boy: soube agora?
(05:38:59) lover boy (reservadamente) fala para Bia: fikei sabendo a poko tempo”

Vale lembrar que Crystal (2002) elenca os nicknames segundo o significado


que denotam, de modo que é possível encontrar apelidos ligados ao clube de futebol

146
preferido, indicando a cidade de origem, ou, ainda, apelidos que funcionam como
uma alusão a personalidades famosas da televisão, além de nicknames híbridos, no
que se refere à mistura das línguas portuguesa e inglesa, ou ainda nicks só com
palavras estrangeiras, como em lover boy. No exemplo em pauta, o falante mostra
não ter consciência do que motivou a escolha da designação. Nesta interação, o
falante recorreu aos emoticons, como um recurso para simular a presença física,
quem sabe como um reforço de sua busca:

“(05:31:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: =~.~= oi gatinha sera
que vc poderia tc comigo????

(05:39:10) lover boy (reservadamente) fala para Bia: =~.^=”

Araújo (2005) explica que a palavra emoticon vem do inglês emotion + icons
e significa, literalmente, ícones de emoção. “Estes elementos, que resultam da
combinação entre os caracteres disponíveis no teclado do computador,
transformaram-se em marcas relevantes nas comunicações via Internet porque os
participantes não contam com a presença física uns dos outros” (p.10). Os emoticons
são sinais que revelam aquilo que o interlocutor está pensando ou sentindo, como
riso, choro, tristeza, raiva, etc., daí por que são também relevantes para nossa análise
do contexto como um todo.

Neste exemplo, vemos que o lover boy primeiramente fez uma cara de
gatinho e, no decorrer da interação, desenha outra cara de gatinho piscando. Para
tanto, apelou para recursos do próprio teclado para criar as figuras. Deste modo, com
a ajuda dos emoticons, o falante instalou um clima de sedução entre ele e Bia, apesar
de ele achar estranho o nick e negar a sua condição de amante:

“(05:38:20) lover boy (reservadamente) fala para Bia: estranho né


(05:38:22) Bia (reservadamente) fala para lover boy: é mesmo?
(05:38:40) Bia (reservadamente) fala para lover boy: vc se sente assim?
(05:38:43) lover boy (reservadamente) fala para Bia: ñ”

147
Observamos que o sujeito, mesmo afirmando não saber o significado das
palavras, se identificou com o nick e permaneceu com ele, mesmo achando estranho
e diferente. Lover, em sua tradução literal, quer dizer “amante, amado, namorado”, e
boy significa “menino, garoto, moço”; são palavras comuns na nossa língua. Desta
forma, pensamos que a irrupção do estrangeiro, responsável pelo comprometimento
da transparência do dizer (o que consubstancia um procedimento marcativo, que se
revela linguisticamente) define o outro no fio discursivo.

(50) As várias faces de Hórus38

Nesta interação, Hórus, assim como Lover Boy, também alega desconhecer o
significado de seu nick:

Paola
23:31:19
entra na sala
Paola 23:31:47 bo
reservadamente fala com horus a noite

Paola 23:32:00 quer


reservadamente fala com horus tc?

horus 23:32:05 oi
reservadamente fala com Paola boa noiea
horus 23:32:15
reservadamente fala com Paola
sim

Paola 23:32:25 tc

38
Hórus é um Deus egípcio, é o deus dos céus, muito embora sua concepção tenha ocorrido após a morte
de Osíris. Tinha cabeça de falcão e os olhos representavam o sol e a lua. Matou Seth, tanto por vingança
pela morte do pai, Osíris, como pela disputa do comando do Egito. Após derrotar Seth, tornou-se o rei dos
vivos no Egito. Perdeu um olho lutando com Seth, que foi substituído por um amuleto de serpente, (que
os faraós passaram a usar na frente das coroas), o olho de Hórus, (anteriormente chamado de Olho de Rá,
que simbolizava o poder real e foi um dos amuletos mais usados no Egito em todas as épocas. Depois da
recuperação, Hórus pôde organizar novos combates que o levaram à vitória decisiva sobre Seth. O olho
que Hórus feriu (o olho esquerdo) é o olho da lua, o outro é o olho do sol. Esta é uma explicação dos
egípcios para as fases da lua, que seria o olho ferido de Hórus. Alguns detalhes do personagem foram
alterados ou mesclados com outros personagens ao longo das várias dinastias, seitas e religiões egípcias.
Por exemplo, quando Heru (Hórus) se funde com Ra O Deus Sol, ele se torna Ra-Horakhty. O olho de
Horus egípcio tornou-se um importante símbolo de poder.

148
reservadamente fala com horus de onde?

horus 23:32:46 são


reservadamente fala com Paola paulo evc?

Paola 23:32:59 Fortaleza


reservadamente fala com horus -CE

horus 23:33:18 pertinho


reservadamente fala com Paola rsrsrs

Paola 23:33:36
r
reservadamente fala com
horus srsrsrs
Paola 23:33:40 então o q vc faz aí
reservadamente fala com horus em SP?
horus 23:34:00
adestrador
reservadamente fala com
Paola de cães evc?

Paola 23:34:37 e
reservadamente fala com horus studo

horus 23:34:48 quantos


reservadamente fala com Paola anos vc tem

Paola 23:34:56
reservadamente fala com horus
22

Paola 23:35:01
reservadamente fala com horus
e vc?

horus 23:35:31 34
reservadamente fala com Paola anos

Paola 23:35:52 oq
reservadamente fala com horus significa horus?

horus 23:35:56
reservadamente fala com Paola
curt caras mais velhos?

Paola 23:36:08 ssim


reservadamente fala com horus
horus 23:36:48 horus é o nome do meu
reservadamente fala com Paola cachorro!!rsrsrrssr

149
Paola 23:37:05
reservadamente fala com horus
rsrsrs não acredito
Paola 23:37:34 achei diferente não tem nenhum
reservadamente fala com horus significado?

horus 23:38:27 é
reservadamente fala com Paola grego

Paola 23:38:56 mas é o nome de algum


reservadamente fala com horus Deus grego?

horus 23:39:15 ja
reservadamente fala com Paola não sei

horus 23:39:35 aquim tem hum motél com esse


reservadamente fala com Paola nome !!rsrs

Paola 23:41:08
então se vc escolheu esse apelido por algum motivo
reservadamente fala com
horus específico

horus 23:41:15 mas de amor ele não tem nada é


reservadamente fala com Paola umpit bull

Paola 23:41:45 desculpa maso q


reservadamente fala com horus significa isso?

horus 23:41:57 escolhi porque é um


reservadamente fala com Paola nome forte!!

Paola 23:42:25 Foi o q eu


reservadamente fala com horus imaginei

Paola 23:42:36 como vc é


reservadamente fala com horus fisicamente?

150
horus 23:43:40 tenho183de atura98kg cabelos e olhos
reservadamente fala com Paola castanho evc

Paola 23:44:0
reservadamente fala com horus
Nossa

Paola 23:44:37
então se Horus for realmente um Deus grego tem tudo
reservadamente fala com
horus haver com vc

horus 23:44:49 rsrrs


reservadamente fala com Paola brigadu

Paola 23:45:06 vc concorda


reservadamente fala com horus comigo?

horus 23:45:12 ha e sou moreno de


reservadamente fala com Paola sol!!rsrsr

horus 23:45:45 se vc ta falando né,ja


reservadamente fala com Paola falaram isso

Paola 23:45:56 r
reservadamente fala com horus srrsrs

Paola 23:46:09 eu
reservadamente fala com horus sabia

horus 23:46:32 o
reservadamente fala com Paola que??

Paola 23:46:45 então realmente a escolha de Horus tem um


reservadamente fala com horus significado
Paola 23:46:58
reservadamente fala com horus
estou certa?

151
horus 23:47:19 s
reservadamente fala com Paola sim

Paola 23:47:54
então me diga qual é pra ver se bate com o q estou
reservadamente fala com
horus imaginando

horus 23:48:25 pod


reservadamente fala com Paola e falar
Paola 23:48:32 r
reservadamente fala com horus srsrsrs

Paola 23:48:53 vc é q tem q dizer pra eu ver


reservadamente fala com horus se acertei

horus 23:49:14 f
reservadamente fala com Paola fala

Paola 23:50:01 ai não acredito vc ~vai me deixar na


reservadamente fala com horus dúvida?

horus 23:50:06 s
reservadamente fala com Paola sumiu

horus 23:50:26 fala oque ta


reservadamente fala com Paola pensando

Paola 23:51:23
Um homem com a descrição q vc deu e q coloca um
reservadamente fala com
horus nome forte como Horus

Paola 23:52:13 é um gato q tem bastante auto-


reservadamente fala com horus confiança

horus 23:52:14 se aquilo é


reservadamente fala com Paola big? é isso

Paola 23:52:31 r
reservadamente fala com horus srsrs
152
horus 23:52:33 rsrsrs
reservadamente fala com Paola rsrsr???

Paola 23:52:37 n
reservadamente fala com horus não

Paola 23:53:02 essa


reservadamente fala com horus foi ótima

horus 23:53:52 então me fala vc, eu to


reservadamente fala com Paola curioso

Paola acontece que como provavelmente não iremos nos conhecer


23:54:41 pessoalmente gostaria de saber um pouquinho de sua personalidade se
reservadamente vc me dissesse o motivo da escolha de Horus seria uma forma de te
fala com horus
conhecer um pouco

horus 23:55:14 vc tem msn?ai vc me conhece


reservadamente fala com Paola melhor

Paola 23:55:15 eu tenho uma idéia mas só vc pode


reservadamente fala com horus comprovar
horus 23:55:25
reservadamente fala com Paola
ok

Paola 23:55:52 tenho MSN, orkut mas me diz o motivo tô


reservadamente fala com horus curiosa
Paola 23:56:14
reservadamente fala com horus
vc tmb vai me conhecer melhor

horus 23:56:24 é porque é nome forte


reservadamente fala com Paola e bonito

Paola 23:56:35 assim


reservadamente fala com horus como vc?

153
horus 23:57:22 so m vendo para vc
reservadamente fala com Paola saber!!rsrsr

horus 23:57:34 eai pode me


reservadamente fala com Paola passar?

Paola 23:57:40 eu
reservadamente fala com horus acho q é

No dialógo, vemos como Hórus se ressignifica de várias maneiras: “cachorro,


motel, deus grego, pit Bull”, aquele que tem “aquilo big”. Essas recategorizações
mostram as várias faces do sujeito por trás do apelido, mesmo este alegando
desconhecer o significado, assim como fez também o Lover boy:

“horus 23:36:48 horus é o nome do meu


reservadamente fala com Paola cachorro!!rsrsrrssr

Paola 23:37:05 rsrsrs não


reservadamente fala com horus acredito

(....)
horus 23:41:15 mas de amor ele não tem nada é
reservadamente fala com Paola umpit Bull”

Primeiro, Hórus informa que esse é o nome do seu cachorro, no entanto, não
é qualquer cachorro: é um pit bull. O pit bull é considerado um cachorro agressivo,
valente, forte, temido, etc. Essas qualidades têm um peso social muito grande e são
muito valorizadas como símbolo de masculinidade: “durante a primeira metade do
século XX, a imagem do homem másculo foi ligada ao trabalho braçal e à
industrialização” (SEMÍRAMS, 2007) Ora, esse cultivo da agressividade como
sinônimo de masculinidade deveria ter ficado no passado, na medida em que as
relações hoje são outras, mais igualitárias, e isso não significa uma diminuição no
papel masculino que necessite ser compensada pela violência, doméstica ou não, mas
uma adaptação na qual o homem possa se humanizar e não precise parecer que é um
herói o tempo todo. No entanto, não é isso o que acontece, vemos os homens se

154
mostrando de forma agressiva, por vezes acintosa, em busca de aprovação e respeito.
O trecho abaixo, da interação, reflete exatamente isso:

“Paola 23:51:23
Um homem com a descrição q vc deu e q coloca um
reservadamente fala com
horus nome forte como Horus

Paola 23:52:13 é um gato q tem bastante auto-


reservadamente fala com horus confiança

horus 23:52:14 se aquilo é


reservadamente fala com Paola big? é isso

Paola 23:52:31 R
reservadamente fala com horus srsrs”

Nesse trecho, a conversa assume um viés sexual explícito, o macho39 tentando


impressionar a fêmea com o seu grande órgão. Afinal, Hórus “é um nome forte e
bonito”. Mas Paola, como toda histérica, não ficou satisfeita com os sutis significados
do nick e insistiu:

“Paola acontece que como provavelmente não iremos nos conhecer


23:54:41 pessoalmente gostaria de saber um pouquinho de sua personalidade se
reservadamente vc me dissesse o motivo da escolha de Horus seria uma forma de te
fala com horus
conhecer um pouco”

39
Calligaris (2009), em uma entrevista à revista Veja, diz o seguinte sobre o homem: “O
homem ainda mente muito sobre sexo? Sim, sobretudo dizendo que pensa nisso mais do que
verdadeiramente pensa. O homem mente porque um dos lugares onde ele joga e arrisca sua
imagem masculina é no sexo. Ele mente também sobre o caráter aventuroso dele e sobre a
própria intensidade de seu interesse por sexo. Ele vive tentando demonstrar que o sexo está
constantemente presente na cabeça dele, o que muitas vezes não é verdade. Isso porque a
intensidade de seu desejo é uma demonstração de virilidade. Para a mulher, de alguma
forma, é mais fácil. Mesmo às que têm uma vida sexual pobre não faltam ocasiões em que
podem se assegurar da própria feminilidade. Um exemplo claro é entrar em um restaurante e
ver que há vários homens olhando para ela. Já para o homem, isso não é tão fácil. Para se
assegurar de sua masculinidade é necessário que ele cultive seu desejo sexual.”

155
Como já dissemos anteriormente, o corpus foi colhido também pelos alunos do
curso de Letras, da disciplina de Língua Portuguesa: Texto e Discurso, no qual eles
foram orientados a entrar no chat e obter o significado do nick. Eles também sabiam
que o material iria ser analisado por uma psicanalista e que faria parte da nossa tese de
doutorado. Cremos que ficar a par de todas essas informações causou uma certa
ansiedade nos próprios alunos responsáveis pela coleta dos dados. Isso justifica a
insistência de Paola em busca de um significado ideal que ela pensa ou deseja existir:
“...gostaria de saber um pouquinho de sua personalidade se vc me dissesse o motivo da
escolha de Horus seria uma forma de te conhecer um pouco”. A pressa de alguns dos
alunos, como o Universitário da menina problematik, também pode denunciar uma
defensiva inconsciente, desta vez dos próprios alunos.

Veremos mais adiante como, de uma maneira ou de outra, os alunos foram


afetados por essas informações e, também, por um certo receio de serem “analisados”
pela psicanalista. Sabemos que, ainda hoje, existe a crença de que um psicólogo, ou um
psicanalista40, ou um psiquiatra, passa o tempo todo analisando todas as pessoas ao seu
redor. Esse estereótipo intimida as pessoas, porque se alia a uma outra voz do senso
comum, que diz que ir a um profissional da área psíquica é “coisa para doido”. Dito
isso, faremos as devidas observações, quando necessárias, a toda interação virtual, para
que possamos extrair as marcas de heterogeneidade de todo o contexto da enunciação.

(51) Kekaritomene, Lewry, Deadpool, Shawn e a vontade de ser

Nesta interação, Kekaritomene trata de se cercar dos nomes mais esdrúxulos


possíveis: Lewry, Deadpool, Shawn. E ela vai em busca de alguma coisa que sempre

40
Como ilustração dessa “implicância”, citamos o poema de Mário Quintana:
“Os psicanalistas, como o caso deles me preocupa!
Eles próprios sofrem de um dos mais terríveis complexos do mundo,
Que é o complexo dos complexos.
Ah, se a gente pudesse ter uma simples e amistosa conversa com eles,
sem que descubram coisas por trás!
E se, por acaso,
Tombar um ovo choco no chão,
Por que hei de ser um maníaco homicida,
Um fabricante de anjinhos?!
Por que não vão eles inquirir sobre isso o próprio acaso,
Que não sabe de nada... (Velório sem defunto, 1990)

156
escapa. Diferentemente de seus colegas de turma, ela não receia, pelo contrário, expõe-
se, pergunta, quer saber: sou h ou m?

(07:12:00) KEKARITOMENE entra na sala...


(07:13:07) KEKARITOMENE fala para lewry: e aí,quer tc?
(07:14:06) lewry fala para KEKARITOMENE: ola qual seu nome por favor
(07:14:32) KEKARITOMENE fala para LOBO: flavia
(07:15:02) lewry fala para KEKARITOMENE: e serio mesmo
(07:15:13) KEKARITOMENE fala para lewry: foi mal.é pra ti
(07:15:37) KEKARITOMENE fala para lewry: e o teu?
(07:16:16) lewry fala para KEKARITOMENE: meu nome começa com le
(07:16:55) lewry fala para KEKARITOMENE: pq
(07:17:49) KEKARITOMENE fala para lewry: pq vc disse q começava com Le..e
pode ser q seja esse nome
(07:18:18) lewry fala para KEKARITOMENE: leo
(07:18:34) KEKARITOMENE fala para lewry: prazer Leo
(07:18:53) KEKARITOMENE fala para lewry: de q lugar tc?
(07:19:01) lewry fala para KEKARITOMENE: qual sua idade
(07:19:51) KEKARITOMENE fala para lewry: 22
(07:19:57) lewry fala para KEKARITOMENE: e onde moras
(07:20:09) KEKARITOMENE fala para lewry: FOrtaleza
(07:20:36) lewry fala para KEKARITOMENE: adoro esse estado
(07:20:42) KEKARITOMENE fala para lewry: e tu?
(07:21:10) KEKARITOMENE fala para lewry: É aqui é maravilhoso
(07:21:28) lewry fala para KEKARITOMENE: 19 e moro longe em jacareí
(07:21:59) KEKARITOMENE fala para lewry: estuda?
(07:22:38) KEKARITOMENE fala para lewry: são paulo é corrido né
lewry fala para KEKARITOMENE: nao mas atualmente estou na
(07:22:55)
monitoria numa escola de informatica
(07:23:39) KEKARITOMENE fala para lewry: gosta de informatica
(07:23:44) lewry fala para KEKARITOMENE: sao paulo é corrido mas jacarei é
parada pra caramba
(07:23:52) KEKARITOMENE fala para lewry: q bom
(07:2:11) lewry fala para KEKARITOMENE: não gosto adoro
(07:24:38) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: ola´tb afim
d tc?
(07:25:44) KEKARITOMENE fala para lewry: não gosta da calma?
(07:26:13) lewry fala para KEKARITOMENE: de vez em quando é bom mas não
sempre
(07:26:44) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: pode ser
reservado?
(07:27:37) lewry fala para KEKARITOMENE: qual teu nome por favor gata
(07:27:41) KEKARITOMENE fala para lewry: aqui ´ebem agitado

157
(07:28:57) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: ´´e flavia
mesmo
(07:29:25) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: tudo bem?
(07:29:50) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: olá
(07:29:52) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: tb
(07:29:54) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: e vc?
lewry fala para KEKARITOMENE: adorei teu nome gata se eu for
(07:30:05)
seguir pelo teu nome você é linda
(07:30:16) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: cmg esta
bem,so meio cansada...
(07:30:37) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: é..
(07:30:52) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: e esse seu
apelido..é engraçado
(07:31:11) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: de onde tirou?
(07:31:22) lewry fala para KEKARITOMENE: beleza,mas nem eu sei o por que

(07:31:38) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: engraçado


esse teu nome...qual a explicação?

(07:32:14) UOL (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: Você


está ignorando: lewry.

(07:32:24) UOL (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: Você


está aceitando mensagens de Todos.
(07:32:46) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: eu adoro
(07:32:48) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: ele
(07:32:57) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: q
personagem?
deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: ele é um
(07:33:23)
herói q faz piadas de todos mundo
(07:33:27) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: sim,+ o q
é?o q faz? essas coisas..é animal
(07:33:30) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: gente
(07:33:40) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: ah ta

(07:33:42) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: gente

(07:33:44) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: legal


(07:33:58) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: muage
minha
(07:34:07) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: e a d onde
vc é?
(07:34:22) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: de fortaleza
(07:34:42) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: legal
(07:34:46) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): tud
bem?
(07:34:58) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: sou d
campo grande ms

158
(07:35:09) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: tudo vc
éoq?
(07:35:35) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: mulher

(07:35:35) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: quantos


anos
(07:35:38) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): rs
(07:35:52) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: vc da
rsrsr ?
(07:35:57) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: quantos
anos tem?
(07:36:30) lewry fala para KEKARITOMENE: você tem msn
(07:36:44) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: ola
(07:36:49) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: por incrivel q
pareça,nao
(07:37:02) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): muher
(07:37:05) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: vc ñ
quer tc ?
(07:37:47) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: nem me
leve a mau ?
(07:37:55) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: mas q
nome é esse ?
(07:38:07) lewry fala para KEKARITOMENE: posso saber uma coisa de você
sem desrespeito nemhum
(07:38:26) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ):
desculpa,é pq meu pai pede muiot favor
(07:38:38) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: diz
(07:39:12) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: opa
(07:39:17) lewry fala para KEKARITOMENE: a senhorita tá solteira ou
comprometida
(07:39:17) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: qtos
anos vc tem ?
(07:39:25) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: eu tava
resouvendo um negocio
(07:39:29) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: solteira
(07:39:34) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: eu tenho 17
e vc
(07:39:51) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: eu
tenho 23 cheio de disposiçao !!!
(07:39:59) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): 22
(07:40:23) lewry fala para KEKARITOMENE: tem orkut

(07:40:23) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: viado porq ?

(07:40:24) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: 22


(07:40:53) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: tu deve estar
me achando anti-quada,porem nao tenho

159
(07:41:11) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): nao sou
viado
(07:41:21) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: deixa
pra lá .....
(07:41:31) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): vc é?
(07:41:50) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): ô porq
deste apelido?
Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: mano
(07:42:00)
vc tah viajando nas ideia !!!
(07:42:11) lewry fala para KEKARITOMENE: não acho isso,nem todos daqui
tem ok me desculpa se você entendeu assim
(07:42:47) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: acho q
vc tem uns 15 no maximo !!!!!
(07:43:06) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: q bom
(07:43:34) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ):
kkkk...se enagou completamente..
(07:43:50) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE:
seraaaaaaaa........
(07:43:52) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): qual
teu nome?
lewry fala para KEKARITOMENE: gostei do seu apelido posso se
(07:43:55)
saber de onde,é uma escolha sua fala se quiser,eu entenderei
(07:44:05) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: me fala
o seu ?
(07:44:20) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: é em
grego.significa cheia de graça
(07:44:36) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ):
perguntei primeiro
(07:45:05) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): +...é
flavia
(07:45:17) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: pq não esta
estudando?so trabalhando?
(07:45:22) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: vc vai ficar fazendo esse
joguinho ?
(07:45:39) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: por incrivel q
pareça,to falando serio
(07:45:59) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): + vc é
homem ,né?!
(07:46:14) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: mas claro .......
(07:46:39) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): quantos
anos?
(07:46:56) lewry fala para KEKARITOMENE: eu esqueci de falar que onde eu
trabalho faço curso de hardware e software
(07:46:58) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: 23 eo seu
(07:47:46) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: eae perdeu a fala !!!!!!
Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: vc tah fazendo muito
(07:48:28)
favor...heimmmm
(07:48:46) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): calma

160
(07:48:48) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): 22
(07:49:24) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): pq vc é
taõ impaciene?
(07:49:42) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: em relação ao
meu apelido
(07:50:02) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: faço
desenvolvimento de software
(07:50:08) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: 1º semetre
(07:51:29) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: oi
(07:51:47) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: ker tc?
(07:52:01) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: vc e h ou m???
(07:52:05) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: m
(07:52:17) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: e vc?
(07:52:45) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: h
(07:52:59) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: q bom
(07:53:08) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: ta td
bem?
(07:53:43) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: td ,vctc dond ,tem qtos anos

(07:54:47) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: kd vc


(07:55:08) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: q nome e esse
(07:56:54) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: tantas
perguntas
(07:57:13) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: é em
grego.significa cheia de graça
(07:57:14) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: pra vc???
(07:57:23) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: e esse
teu nome?
(07:57:27) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: q bom
(07:58:05) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: tirei do slipknot
(07:59:25) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: o q é
isso?desclpa a ignorancia
(07:59:26)lewry fala para KEKARITOMENE: beleza siga em frente gata espero
que você se de bem boa sorte
(07:59:47) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: tchau.bj
(08:00:07) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: banda d rock q todos usam
mask
(08:00:27) lewry fala para KEKARITOMENE: pra você também
(08:01:40) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: legal
(08:01:54) lewry fala para KEKARITOMENE: ainda está ai gata
(08:01:57) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: + num é o
shaman nao ne
(08:02:05) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: vc ta viva
(08:02:09) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: foi mal
(08:02:35) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: pq +1 mulher no mundo pra

161
mim
(08:02:38) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: + num é
o shaman nao,é?
(08:02:56) lewry fala para KEKARITOMENE: não gata,que isso para mim não
precisa se desculpar
(08:03:00) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: e vcs tem
tantas mulheres assim?
(08:03:12) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: shaman???
(08:03:21) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: blz..bjo..tchau...
(08:03:36) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: sim
(08:03:41) lewry fala para KEKARITOMENE: agora é pra valer
(08:04:14) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: isso e banda d heavy

O que é mais intrigante neste diálogo é a indefinição sexual de seus atores.


Kekaritomene é h ou m? Lewry é h ou m? E Deadpool? E Shawn? E Oriental, que se
aplicaria, como adjetivo, a ambos os sexos? Todos eles se recategorizam, mas, no
entanto, permanecem na dúvida: sou homem ou mulher? E Kekaritomene revela todas
as incertezas possíveis, inclusive as dela própria, quanto ao seu sexo e ao do Outro.
Freud diz em seu texto de 1936 que "A proporção em que masculino e feminino se
misturam num indivíduo está sujeita a flutuações muito amplas. (...) e aquilo que
constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge
do alcance da anatomia." (p.67). Desta forma, o modelo freudiano do masculino e do
feminino, lacunar e fechado num sistema simétrico binário, reflete a dificuldade do
próprio Freud em denominar o que seja da ordem destas noções. Para Ceccarelli
(1998), as posições teóricas de Freud revelam que sua escuta não era imune a seus
próprios complexos inconscientes, à sua própria organização identificatória e ao
discurso social de sua época:
ao expressar-se sobre a questão do masculino e do feminino, fala de
conceitos, de noções e até mesmo de qualidade psíquicas. Em
determinados momentos, refere-se ao masculino e ao feminino em termos
de atividade e passividade; em outros observa que, tratando-se de seres
humanos, esta relação é insuficiente. (p.51)

Seja como for, a posição de Freud ao chamar a atenção para a dificuldade de


definir masculino e feminino é revolucionária, na medida em que não se submete à
realidade anatômica, subordinando, assim, a significação desses dois conceitos a
processos bem mais complexos do que as determinações instintuais. Em outras

162
palavras, a anatomia não é o destino, isso porque a sexualidade está não
especificamente no corpo em si, no corpo real, anatômico, mas na linguagem.
Kekaritomene e seus parceiros demonstram claramente isso em suas constantes
indagações sobre ser homem ou mulher.

“shawn #6# fala para KEKARITOMENE: vc e h ou m???


(07:35:09) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: tudo vc
éoq?
(07:35:35) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: mulher

(07:35:38) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): rs


(07:35:52) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: vc da
rsrsr ?

KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): nao sou viado

(07:45:59) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): + vc é


homem ,né?!
(07:46:14) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: mas claro .......”

A certa altura dos diálogos, Kekaritomene, que tecla com 2 ou 3 ao mesmo


tempo, perde o fio da meada e se confunde ao falar com um, pensando que está falando
com outro:
“(07:46:58) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: 23 eo seu
(07:47:46) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: eae perdeu a fala !!!!!!
(07:48:28) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: vc tah fazendo muito
favor...heimmmm
(08:01:57) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: + num é o
shaman nao ne
KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: foi mal
(08:02:09)
lewry fala para KEKARITOMENE: não gata,que isso para mim não
(08:02:56)
precisa se desculpar”

Desta forma, a “cheia de graça”, Kekaritomene, prossegue em sua vontade de


ser e ignora, inclusive, as advertências do “Grande Olho”:

(07:32:14) UOL (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: Você está


ignorando: lewry.

(07:32:24) UOL (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: Você


está aceitando mensagens de Todos.

163
Que marcas de heterogeneidade enunciativa poderíamos identificar nessas
ocorrências, em que saltam pistas de desejos, insatisfações, incompletudes nas vozes
do inconsciente? Nenhuma que a literatura sobre o assunto tenha descrito, mas elas
existem em todos esses indícios, ora manifestados por expressões referenciais, ora
realizados por outras sinalizações linguísticas que auxiliam na recategorização dos
referentes, ainda que isso não seja homologado por expressão referencial alguma.

(52) O analista, de Bagé41 e a moça na janela

Diferentemente de Kekaritomene, que se lançou despretensiosamente no bate-


papo, o aluno que coletou estes dados, sob o nick de ANALISTA DE BAGÉ, por sua vez,
guarda todo o seu temor em se mostrar a um analista. Note-se como, inicialmente, ele
põe o nome em caixa alta e como, posteriormente, parece proteger-se em seus versos:

ANALISTA de
BAGÉ 21:29:10
entra na sala

ANALISTA de BAGÉ 21:30:12 O


reservadamente fala com MoçaNaJanela olá!

ANALISTA de BAGÉ
21:31:02 Percebo que vc gosta muito de olhar o passeio
reservadamente fala com público....
MoçaNaJanela

ANALISTA de BAGÉ 21:31:20 Ou... admirar a


reservadamente fala com MoçaNaJanela natureza...

ANALISTA de BAGÉ
21:31:50 Quem sabe, sentir a brisa roçando ao rosto...
reservadamente fala com

41
O Analista de Bagé é um livro de Luís Fernando Veríssimo, é a combinação entre a rude
sinceridade e a franqueza do homem do interior gaúcho. São 27 hilariantes histórias do
impagável analista gaúcho, freudiano, machista, que costuma tratar seus pacientes a tapa. É um
clássico do humor brasileiro. Com práticas pouco convencionais, o analista barbudo, macho e
sistemático não deixa de picar fumo e tomar chimarrão nas consultas. O sotaque forte e suas
conclusões sobre os problemas dos clientes geram uma combinação divertida. Na obra, Luís
Fernando Veríssimo apresenta as relações analista/cliente de forma irônica e debochada,
fazendo alusões ao regionalismo, à política nacional, à intelectualidade – sempre de forma
iconoclasta e irreverente.

164
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:32:21 e imagino tuas faces venustas, serenas, suaves
reservadamente fala com como a seda...
MoçaNaJanela

ANALISTA de BAGÉ 21:32:32 quer


reservadamente fala com MoçaNaJanela tc?!!
MoçaNaJanela 21:32:42 tu é
fala com ANALISTA de BAGÉ poeta é...rs

ANALISTA de BAGÉ 21:32:53 Apren


reservadamente fala com MoçaNaJanela diz de...

ANALISTA de BAGÉ 21:33:12 Digo isto pelo


reservadamente fala com MoçaNaJanela teu nick...

MoçaNaJanela 21:33:47 como


fala com ANALISTA de BAGÉ assim?

ANALISTA de
BAGÉ 21:34:01 Uma moça na janela é muito sugestivo para uma
reservadamente fala com pluralidade de leituras lírico-românticas!!!
MoçaNaJanela

ANALISTA de BAGÉ 21:34:36 Afinal, qual seria então a razão do teu


reservadamente fala com MoçaNaJanela nick?!!

MoçaNaJanela
21:34:52 rsss....Gosto de apreciar o que a natureza pode me
fala com ANALISTA de mostrar, como a lua..o sol...
BAGÉ

ANALISTA de BAGÉ
21:35:42 Mas que belo gosto, isso reflete tua'lma teu ser,
reservadamente fala com teu caráter cândido.....
MoçaNaJanela

ANALISTA de BAGÉ 21:36:09 É essa mesma a


reservadamente fala com MoçaNaJanela razão?....

165
MoçaNaJanela 21:36:11 aanalisando a alma
fala com ANALISTA de BAGÉ humana...rss

MoçaNaJanela 21:36:36 Gosto muito da vista da minha janela


reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ em casa

ANALISTA de BAGÉ
21:36:40 Principalmente das moças incautas e um tanto
reservadamente fala com quanto sublimes.....
MoçaNaJanela

MoçaNaJanela 21:36:49 e tenho fotos tiraas


reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ nela, só isso

ANALISTA de BAGÉ 21:37:07 Mas que


reservadamente fala com MoçaNaJanela história....

ANALISTA de BAGÉ 21:37:32 Como te chamas


reservadamente fala com MoçaNaJanela realmente?

ANALISTA de BAGÉ
21:38:03
reservadamente fala com Não... hehehe
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:38:21 Sou apenas uma cobaia do
reservadamente fala com destino!!! hhehe
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:38:48
reservadamente fala com Não me revelaste o teu nome....
MoçaNaJanela

MoçaNaJanela 21:38:57
Por acaso é um professor de
reservadamente fala com ANALISTA
de BAGÉ literatura?..poeta....curioso..ou o que?

MoçaNaJanela 21:39:13 L
fala com ANALISTA de BAGÉ lua

ANALISTA de BAGÉ 21:39:18 Manterá


reservadamente fala com MoçaNaJanela segredo

166
ANALISTA de BAGÉ 21:39:37 Sou apenas, hum...
reservadamente fala com MoçaNaJanela cobaia!!

ANALISTA de BAGÉ 21:40:01 Sem muito sal para a arte


reservadamente fala com MoçaNaJanela literária

MoçaNaJanela 21:40:10 O mmistério as vzs faz parte de boas


reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ leituras

MoçaNaJanela 21:41:06 mas usa as palavras com


reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ maestria

ANALISTA de Vejo então que tu és, ou melhor, tu pertences ao


BAGÉ 21:41:25
reservadamente fala com
pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e
MoçaNaJanela pensar.

ANALISTA de
BAGÉ 21:42:32 Quando deparei-me com o teu nick, a minha tristeza de
reservadamente fala com ser uma cobaia logo converteu-se em súbita alegria.....
MoçaNaJanela

MoçaNaJanela 21:42:40
qdo a cabeça não pensa o corpo padece...frase
reservadamente fala com ANALISTA
de BAGÉ de botiquim..mas profunda

ANALISTA de Profunda para aqueles que sabem tirar de ambientes


BAGÉ 21:43:54
reservadamente fala com
desagradáveis um perfume caro que traz reflexões sinceras
MoçaNaJanela n'alma...

MoçaNaJanela 21:44:16 Vc se
reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ superou....rssss

ANALISTA de BAGÉ
21:44:56 Sou apenas uma cobaia da lingüística
reservadamente fala com de tex.... hum! Deixxa pra lá!!!
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela 21:46:09
reservadamente fala com pq essa de deixa pra lá?
ANALISTA de BAGÉ

167
ANALISTA de BAGÉ
21:46:15 Assim, um nome que inspira paixão, amor etéreo e
reservadamente fala com sublimações n'alma???
MoçaNaJanela

MoçaNaJanela 21:46:26
Não..mas todos os meus amigos(as) aqui
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ me chaman de lua

ANALISTA de Se você me der teu e-mail para nós ainda mantermos


BAGÉ 21:47:24
reservadamente fala com
contatos eu revelarei esse meu mistério, o porquê de eu ser uma
MoçaNaJanela cobaia!!!

MoçaNaJanela 21:47:32
sou uma apaixonada pela lua..e como ela
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ cheia de fases

MoçaNaJanela 21:48:32 pq não


reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ revelar aqui

ANALISTA Eis tudo (...) falarei ao teu coração.... Espírito e coração


de BAGÉ 21:50:29 como os teus são prendas raras; alma tão boa e tão elevada,
reservadamente fala sensibilidade tão melindrosa, razão tão reta não são bens que a
com MoçaNaJanela natureza espalhasse às mãos cheias pelo teu sexo.

ANALISTA de BAGÉ 21:51:18 Sou apenas uma cobaia...


reservadamente fala com MoçaNaJanela hhehhe

MoçaNaJanela 21:52:13
é de sua autoria, ou de quem? Belo o que
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ vc escreveu

MoçaNaJanela mas já conquistei otimos amigos aqui e os conservo a


21:53:04
reservadamente fala com muito tempo,,até anos...isso é importante..o depois..pertence
ANALISTA de BAGÉ a Deus

ANALISTA de É de um amigo meu... muitos dizem que ele é um poeta


BAGÉ 21:53:18
reservadamente fala com
medíocre mas, sei que não pode agradar a todos. Esse é
MoçaNaJanela Machado de Assis!

MoçaNaJanela 21:53:33 Vc já fez muitos amigos aqui

168
reservadamente fala com ANALISTA de Cobaia....
BAGÉ
MoçaNaJanela 21:53:37
reservadamente fala com ANALISTA de rsssss
BAGÉ
MoçaNaJanela 21:54:03
reservadamente fala com ANALISTA de ou analista...qual teu nome?
BAGÉ

ANALISTA de BAGÉ
21:54:16 Não, mas revelarei para ti o meu segredo se tu
reservadamente fala com dispensares para mim paciência!
MoçaNaJanela

MoçaNaJanela 21:54:21
Seu amigo deve ser uma
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ figura...rs
ANALISTA de BAGÉ 21:54:35 Se é!!...
reservadamente fala com MoçaNaJanela hehehe.

ANALISTA de BAGÉ 21:54:52 Faz sucesso na faculdade


reservadamente fala com MoçaNaJanela de Letras

ANALISTA de BAGÉ 21:55:18 Vou agora revelar-te meu


reservadamente fala com MoçaNaJanela segredo

ANALISTA de BAGÉ 21:55:28 vc tem


reservadamente fala com MoçaNaJanela curiosidade

MoçaNaJanela 21:56:11 bem, curiosidade não é o meu


reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ forte...rs

MoçaNaJanela 21:57:43 e o segredo..estou


reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ esperando...rs

MoçaNaJanela, o negócio é o seguinte, eu sou estudante de


Lingüística Textual pela graduação em Letras - Espanhol e foi-me
ANALIST solicitado que eu entrasse numa sala de Chat e travasse um
A de BAGÉ 21:59:29
“interlóquio” com alguma pessoa e isso eu fiz, minha tarefa era
reservadamente
fala com procurar a razão da escolha do nick e vc foi uma ótima escolha minha
MoçaNaJanela pois além da tua candura e sublimidade em se relacionar com as
pessoas vc mostrou-me, ainda que não soubesse do meu verdadeiro
intento, o significado do teu nick.... a saber, MoçaNaJanela.

169
MoçaNaJanela 22:00:40
Rssss..quer dizer que passei no
reservadamente fala com
ANALISTA de BAGÉ teste
ANALISTA de
BAGÉ 22:00:58 Agora, peço desculpas a ti, a ti mesma se
reservadamente fala com eu te aborreci com essa minha revelação...
MoçaNaJanela

ANALISTA de BAGÉ
22:01:10
reservadamente fala com Na realidade, sim!!
MoçaNaJanela

MoçaNaJanela 22:01:36
reservadamente fala com Não por isso
ANALISTA de BAGÉ
ANALISTA de
BAGÉ 22:02:01 Você me autoriza, eu salvar esse
reservadamente fala com nosso diálogo e apresentá-lo na faculdade?
MoçaNaJanela

ANALISTA de BAGÉ 22:02:25 Gostaria de manter o contato caso vc


reservadamente fala com MoçaNaJanela desejar?

MoçaNaJanela 22:02:41
Não poderia dizer não , vc foi
reservadamente fala com
ANALISTA de BAGÉ muito gentil
ANALISTA de BAGÉ
22:02:42 Não se
reservadamente fala com aborreça comigo!!!
MoçaNaJanela

ANALISTA de BAGÉ 22:02:54 Obri


reservadamente fala com MoçaNaJanela gado!!!

ANALISTA de BAGÉ 22:03:19 Meu nome é Júlio


reservadamente fala com MoçaNaJanela Carrillo
ANALISTA de BAGÉ 22:03:33 Vc queria saber
reservadamente fala com MoçaNaJanela não?!

MoçaNaJanela 22:04:54
Sabe Julio, as pessoas muitas vzs assim como
reservadamente fala com
ANALISTA de BAGÉ eu, entrão aqui só para passar o tempo

170
Não penses que aquilo tudo que eu falei não seja
ANALIST verdade a teu respeito; ainda que atendendo a uma tarefa na
A de BAGÉ 22:05:09
reservadamente fala
qual vc não poderia tomar conhecimento até que a tal se
com MoçaNaJanela concretizasse, eu pude realmente perceber o quanto tu és
simpática...

O Analista de Bagé não perde tempo, depois de lançar alguns versos ao espelho,
ele logo vai ao que o interessa:

“ANALISTA de
BAGÉ 21:34:36 Afinal, qual seria então a razão do
reservadamente fala com teu nick?!!
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela
21:34:52 rsss....Gosto de apreciar o que a natureza
fala com ANALISTA de pode me mostrar, como a lua..o sol...”
BAGÉ

Mas, ele duvida:

“ANALISTA de BAGÉ 21:36:09 É essa mesma a


reservadamente fala com MoçaNaJanela razão?....”

E a MoçaNaJanela, perspicazmente, retruca:


“MoçaNaJanela
21:36:11 aanalisando a alma humana...rss
fala com ANALISTA de
BAGÉ
MoçaNaJanela Gosto muito
21:36:36
reservadamente fala com da vista da minha
ANALISTA de BAGÉ janela em casa”

Sem muito interesse, o ANALISTA DE BAGÉ pergunta o verdadeiro nome da


MoçaNaJanela:

“ANALISTA de BAGÉ 21:37:32 Como te chamas


reservadamente fala com MoçaNaJanela realmente?

ANALISTA de BAGÉ
21:38:03
reservadamente fala com Não... hehehe
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:38:21 Sou apenas uma cobaia do
reservadamente fala com destino!!! hhehe
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:38:48 Não me revelaste o teu nome....”
reservadamente fala com

171
MoçaNaJanela

E, logo em seguida, ele se recategoriza insistentemente, talvez por não esperar


que os papéis tivessem se invertido de repente. Então, ele se põe na defensiva:

Sou apenas, hum...


“ANALISTA de BAGÉ 21:39:37 cobaia!!
reservadamente fala com MoçaNaJanela

ANALISTA de BAGÉ
21:44:56 Sou apenas uma cobaia da lingüística de tex....
reservadamente fala com hum! Deixxa pra lá!!!
MoçaNaJanela

ANALISTA de Se você me der teu e-mail para nós ainda mantermos


BAGÉ 21:47:24
reservadamente fala com
contatos eu revelarei esse meu mistério, o porquê de eu ser uma
MoçaNaJanela cobaia!!!

ANALISTA de BAGÉ 21:51:18 Sou apenas uma cobaia42...


reservadamente fala com MoçaNaJanela hhehhe”

Vemos nesses excertos que o aluno, que inicialmente tinha a intenção de


ocupar um lugar de analista-mestre, fala demais e cai em sua própria armadilha, qual
seja: a de analisar um discurso. Neste momento o ANALISTA DE BAGÉ se lança em
uma demanda43 por uma escuta, semelhante à demanda analista-analisante de uma
sessão clínica. O lugar em que o ANALISTA DE BAGÉ se colocou é de objeto de
desejo do Outro: “me ame, me use” “sou apenas uma cobaia heheehe”.
Para Nóbrega (2004), o desejo é a verdade do sujeito, verdade que não reside
na obediência ao princípio do prazer e, sim, a um mais além do princípio do prazer,

42
Segundo o Houaiss, cobaia é um substantivo feminino e quer dizer: qualquer animal ou
pessoa que se usa em experimentos científicos. 2 campo, assunto ou objeto de experiências. Ex.:
ele não a amava, apenas a usava.
43
O termo demanda utilizado na clínica psicanalítica vai diferenciar-se do sentido que existe no
vocabulário jurídico: o termo demanda tem sua origem no campo comercial e designa o pedido,
a solicitação, a encomenda como contraponto do termo oferta, que fundamneta a relação
demanda-oferta. Segundo Fernandes, Luft & Guimarães (1994) demanda é também referido
como sinônimo da ação judicial, bem como do termo litígio. Freud (1990) empregou o termo
Begierde para se tratar da propensão, desejo, ou anseio por algo. Esse sentido estava ligado aos
traços e inscrições mnemônicas na sua relação com a sexualidade, sempre relacinado ao
inconsciente. Lacan (1999) utiliza o termo Begierde para definir a demanda como desejo de um
desejo, no seu distanciamento da demanda em si e da necessidade.

172
onde está a causa, a Coisa inacessível, objeto desde sempre perdido. A teoria do
sujeito dividido, tão caro a Authier-Revuz (1982), mostra-nos justamente que somos
destinados a nunca nos satisfazermos com um mundo calculado para nos fornecer
prazeres.
Desta forma, vemos o campo da enunciação marcado por uma
heterogeneidade desconhecida pelo sujeito, mas que se faz ouvir e deixa as suas pistas
como inevitável, na descrição mesma dos fatos da língua, de escolhas estranhas à
linguística como tal, que dizem respeito somente ao sujeito e à sua relação com a
linguagem e com o seu inconsciente.
E a MoçaNaJanela fica a falar sozinha “na janela”...

Não..mas todos os meus amigos(as) aqui


“MoçaNaJanela 21:46:26
reservadamente fala com ANALISTA de me chaman de lua
BAGÉ

ANALISTA de Se você me der teu e-mail para nós ainda


BAGÉ 21:47:24
reservadamente fala com
mantermos contatos eu revelarei esse meu mistério, o
MoçaNaJanela porquê de eu ser uma cobaia!!!
MoçaNaJanela
21:47:32 sou uma apaixonada pela lua..e como ela
reservadamente fala com cheia de fases
ANALISTA de BAGÉ

MoçaNaJanela 21:48:32 pq não


reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ revelar aqui

ANALISTA Eis tudo (...) falarei ao teu coração.... Espírito e coração


de BAGÉ 21:50:29 como os teus são prendas raras; alma tão boa e tão elevada,
reservadamente fala sensibilidade tão melindrosa, razão tão reta não são bens que a
com MoçaNaJanela natureza espalhasse às mãos cheias pelo teu sexo.

ANALISTA de BAGÉ 21:51:18 Sou apenas uma cobaia...


reservadamente fala com MoçaNaJanela hhehhe

MoçaNaJanela 21:52:13
é de sua autoria, ou de quem? Belo o que
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ vc escreveu

MoçaNaJanela mas já conquistei otimos amigos aqui e os conservo a


21:53:04
reservadamente fala com muito tempo,,até anos...isso é importante..o depois..pertence
ANALISTA de BAGÉ a Deus”
173
...enquanto o ANALISTA DE BAGÉ está mais preocupado com o seu segredo de
ser uma “cobaia”. Até que ela perde a paciência e o chama de “cobaia”:

Vc já fez muitos amigos aqui


“MoçaNaJanela 21:53:33
reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ Cobaia....”

E, finalmente, o ANALISTA DE BAGÉ consegue conduzir a MoçaNajanela para


o seu gran finale e revela o seu segredo:

“Vou agora revelar-te meu


ANALISTA de BAGÉ 21:55:18 segredo
reservadamente fala com MoçaNaJanela

ANALISTA de BAGÉ 21:55:28


reservadamente fala com MoçaNaJanela
vc tem curiosidade
MoçaNaJanela 21:56:11
bem, curiosidade não é o
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ meu forte...rs

MoçaNaJanela 21:57:43 e o segredo..estou


reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ esperando...rs

MoçaNaJanela, o negócio é o seguinte, eu sou estudante de


Lingüística Textual pela graduação em Letras - Espanhol e foi-me
ANALIST solicitado que eu entrasse numa sala de Chat e travasse um
A de BAGÉ 21:59:29
“interlóquio” com alguma pessoa e isso eu fiz, minha tarefa era
reservadamente
fala com procurar a razão da escolha do nick e vc foi uma ótima escolha minha
MoçaNaJanela pois além da tua candura e sublimidade em se relacionar com as
pessoas vc mostrou-me, ainda que não soubesse do meu verdadeiro
intento, o significado do teu nick.... a saber, MoçaNaJanela.”

Depois da revelação do segredo do ANALISTA DE BAGÉ, a MoçaNajanela


intervém do alto da sua janela:

“MoçaNaJanela 22:04:54
Sabe Julio, as pessoas muitas vzs assim como
reservadamente fala com
ANALISTA de BAGÉ eu, entrão aqui só para passar o tempo”

Ela, neste momento, mostra quem verdadeiramente poderia ser um analista e o


chama pelo seu nome de verdade. Mesmo sem saber, talvez, relembra o velho Freud,
quando ele diz: às vezes um cachimbo é apenas um cachimbo.
Vimos, nesta interação, que a presença da heterogeneidade, fenômeno de
linguagem em que o distanciamento entre as enunciações, a divisão das vozes
discursivas e a clivagem do sujeito-enunciador aparecem como fatos marcantes no

174
uso da linguagem verbal, não se fez apenas através de marcas tipográficas, como

propunha Authier-Revuz (1982), mas também por meio de processos referenciais


recategorizadores de desejos.

(53) “Seu amigo” de face preservada

Authier-Revuz (1980) descreve cinco tipos de aspas de conotação autonímica,


estas utilizadas como uma espécie de proteção do enunciador contra o seu próprio
enunciado, ou seja, o sujeito tenta preservar a sua face. Este estudo desemboca no que
mais tarde ela irá nomear de não-coincidências do dizer.
No diálogo abaixo, temos a escolha do nick, feita exclusivamnete com o
propósito do sujeito preservar a sua face positiva:

(08:30:55) Gil! entra na sala...


(08:31:15) Gil! fala para seu amigo: oiiiiiiiiiiii
(08:31:25) Gil! fala para seu amigo: pronto
(08:31:52) Gil! fala para seu amigo: gostei de seu nyck
(08:32:32) Gil! fala para seu amigo: vc
(08:32:43) Gil! fala para seu amigo: QUER TECLAR COMIGO?
(08:34:02) Gil! fala para seu amigo: OIIIIIIIIIII!
(08:36:02) Gil! fala para seu amigo: OIIIIIIIIIIIII
(08:36:35) Gil! fala para seu amigo: VC QUER TECLAR COMIGO?

08:37:06) Gil! fala para seu amigo: OIIIIIIIIIIIIII


(08:38:54) seu amigo2 fala para Gil!: oi
(08:39:05) Gil! fala para seu amigo2: OIIIIIIIIIII
(08:39:13) seu amigo2 fala para Gil!: como vai
(08:39:26) Gil! fala para seu amigo2: VC QUER TECLAR COMIGO?
(08:39:33) seu amigo2 fala para Gil!: sim
(08:39:35) Gil! fala para seu amigo2: BEM
(08:39:37) seu amigo2 fala para Gil!: posso

(08:39:48) seu amigo2 fala para Gil!: que otimo


(08:39:50) Gil! fala para seu amigo2: GOSTEI DO SEU NYCK

08:39:59) seu amigo2 fala para Gil!: obrigado


(08:40:17) Gil! fala para seu amigo2: POR QUE VC O ESCOLHEU?

175
(08:40:46) seu amigo2 fala para Gil!: por que eu gosto de ser amigo das outra s
pesoa

(08:41:13) Gil! fala para seu amigo2: SERÁ QUE UM DIA IREMOS SER AMIGOS?

(08:41:38) seu amigo2 fala para Gil!: sim vc quiser ser minha amiga toda hora

(08:42:01) Gil! fala para seu amigo2: VC TEM MUIITOS AMIGOS?

(08:42:07) seu amigo2 fala para Gil!: sim


(08:42:10) Gil! fala para seu amigo2: OU AMIGAS?

08:42:14) seu amigo2 fala para Gil!: e muito


(08:42:19) seu amigo2 fala para Gil!: os dois
(08:42:50) Gil! fala para seu amigo2: QUEM VC ACHA QUE É MAS FIEL NUMA
AMIZADE, O HOMEM OU A MULHER?
(08:43:07) seu amigo2 fala para Gil!: depende
(08:43:14) seu amigo2 fala para Gil!: da pessoa

(08:43:17) Gil! fala para seu amigo2: DE QUE

(08:42:50) Gil! fala para seu amigo2: QUEM VC ACHA QUE É MAS FIEL NUMA
AMIZADE, O HOMEM OU A MULHER? ======O VIADO E MAIS FIEL DE TODOS
(08:43:32) seu amigo2 fala para Gil!: DA PESSOA
(08:43:41) Gil! fala para seu amigo2: MAS POR EXPERIENCIA PRÓPRIA?
(08:43:58) seu amigo2 fala para Gil!: MULHER
(08:44:16) Gil! fala para seu amigo2: SÉRIO!
08:44:25) seu amigo2 fala para Gil!: SIM
(08:44:35) Gil! fala para seu amigo2: ENTÃO AS MINHAS CHANCES SÓ
ALMENTARAM

08:44:45) Gil! fala para seu amigo2: DE SER SUA AMIGA


(08:45:07) seu amigo2 fala para Gil!: LOGICO
(08:45:34) Gil! fala para seu amigo2: VC SABE CULTIVAR UMA AMIZADE?
(08:45:40) seu amigo2 fala para Gil!: SIM
(08:45:43) seu amigo2 fala para Gil!: E COMO
(08:45:56) Gil! fala para seu amigo2: QULA É O SECREDO?
(08:46:20) seu amigo2 fala para Gil!: SER SEMPRE SINCERO HEIM TUDO
(08:46:37) Gil! fala para seu amigo2: SÓ ISTO?
(08:47:07) seu amigo2 fala para Gil!: REPEDE
(08:47:41) Gil! fala para seu amigo2: SÓ A SINSERIDADE É IMPORTANTE PARA

176
SE CULTIVAR A AMIZADE?
(08:48:02) seu amigo2 fala para Gil!: E SSBE COMPREENDER AS PESSOA
(08:48:07) seu amigo2 fala para Gil!: E MUITO
(08:49:06) Gil! fala para seu amigo2: EU ACHO QUE O COMPANHEIRISMO É
FUNDAMENTAL
(08:49:14) seu amigo2 fala para Gil!: TBM
(08:49:15) seu amigo2 fala para Gil!: E
(08:50:26) Gil! fala para seu amigo2: EU POSSO USAR O NOSSO BATE PAPO
NUMA PESQUISA LINGÜÍSTICA?

(08:50:40) seu amigo2 fala para Gil!: SIM


(08:50:42) Gil! fala para seu amigo2: DA FACUL?
08:50:59) seu amigo2 fala para Gil!: SERA 1 PRAZER
(08:51:03) seu amigo2 fala para Gil!: DE AJUDA
(08:51:38) Gil! fala para seu amigo2: É MAIS UMA VEZ VC MOSTROU PORQUE
USOU ESTE NYCK
(08:52:02) Gil! fala para seu amigo2: OBRIGADA TÁ MEU AMIGO
(08:52:04) seu amigo2 fala para Gil!: AGORA SOMOS AMIGOS
(08:52:22) Gil! fala para seu amigo2: AGORA VC É MEU AMIGO!
(08:52:35) Gil! fala para seu amigo2: OBRIGADA TÁ DE VERDADE!
(08:52:40) seu amigo2 fala para Gil!: ISSO E E BOM
(08:52:47) Gil! fala para seu amigo2: VC TEM MEU MSN
(08:52:48) seu amigo2 fala para Gil!: POR NADA
(08:52:51) seu amigo2 fala para Gil!: SIM
08:53:15) Gil! fala para seu amigo2: QUALQUER COISA É SÓ ME ESCREVER UM
EMAIL
(08:53:22) seu amigo2 fala para Gil!: SIM
(08:53:29) Gil! fala para seu amigo2: FOI UM PRAZER

08:53:31) seu amigo2 fala para Gil!: VOU ESCREVE


(08:53:45 seu amigo2 fala para Gil!: O PRAZER E TODO MEU
(08:53:51) Gil! fala para seu amigo2: OBRIGADÃO
(08:53:57) seu amigo2 fala para Gil!: POR NADA
(08:54:04) Gil! fala para seu amigo2: UM ABRAÇOOOOOOOOOOOOOOO!
(08:54:15) seu amigo2 fala para Gil!: OUTRO
(08:54:19) Gil! fala para seu amigo2: ATÉ A PRÓXIMA!
(08:54:28) Gil! fala para seu amigo2: FUIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!
(08:54:36) seu amigo2 fala para Gil!: ATE MAIS BEIJO
(08:54:42) seu amigo2 fala para Gil!: TXAU
(08:54:54) Gil! fala para seu amigo2: TCHAUUUUUUUU

177
Goffman (1967) afirma que em um ambiente social o sujeito utiliza uma

autoimagem pública. Desta forma, define o termo face como o valor social positivo
que uma pessoa cria para ser aprovada perante os seus pares: “face é a imagem da
pessoa delineada em termos de atributos sociais aprovados, ainda que se trate de uma
imagem que outros possam compartilhar, como quando uma pessoa enaltece a sua
profissão, ou sua religião, graças aos seus méritos” (1967, p.13).
Seu amigo procede exatamente como explicam os ensinamentos de Goffman:
expõe a sua face positiva para ser bem aceito pelos demais colegas de interação:

“(08:39:50) Gil! fala para seu amigo2: GOSTEI DO SEU NYCK

08:39:59) seu amigo2 fala para Gil!: obrigado


(08:40:17) Gil! fala para seu amigo2: POR QUE VC O ESCOLHEU?”

O conceito de face de Goffman (1967) foi expandido pelos estudos de polidez


desenvolvidos por Brown e Levinson (1987), os quais acreditam que a autoimagem
construída socialmente se subdivide em duas faces, uma pública, a face positiva, e uma
reservada, a face negativa. A polidez, segundo os autores, é uma estratégia
sociointeracional que contribui para o desenvolvimento do processo interativo.
Desse modo, a polidez positiva é direcionada para o falante explicitar o que ele
deseja que o outro perceba a seu respeito, ou sobre o que ele percebe do seu
interlocutor:

“(08:45:34) Gil! fala para seu amigo2: VC SABE CULTIVAR UMA AMIZADE?
(08:45:40) seu amigo2 fala para Gil!: SIM
(08:45:43) seu amigo2 fala para Gil!: E COMO
(08:45:56) Gil! fala para seu amigo2: QULA É O SECREDO?
(08:46:20) seu amigo2 fala para Gil!: SER SEMPRE SINCERO HEIM TUDO
(08:46:37) Gil! fala para seu amigo2: SÓ ISTO?
(08:47:07) seu amigo2 fala para Gil!: REPEDE
(08:47:41) Gil! fala para seu amigo2: SÓ A SINSERIDADE É IMPORTANTE PARA
SE CULTIVAR A AMIZADE?
(08:48:02) seu amigo2 fala para Gil!: E SSBE COMPREENDER AS PESSOA
(08:48:07) seu amigo2 fala para Gil!: E MUITO”

178
O principal objetivo da polidez positiva é a aproximação entre os participantes
da interação, e Seu amigo cumpre muito bem o seu papel de se aproximar do outro ao
mesmo tempo em que se afasta, na medida em que se protege do Outro ao usar uma
máscara social aceita e compreendida por seus interlocutores:

“(08:50:26) Gil! fala para seu amigo2: EU POSSO USAR O NOSSO BATE PAPO
NUMA PESQUISA LINGÜÍSTICA?

(08:50:40) seu amigo2 fala para Gil!: SIM


(08:50:42) Gil! fala para seu amigo2: DA FACUL?
08:50:59) seu amigo2 fala para Gil!: SERA 1 PRAZER
(08:51:03) seu amigo2 fala para Gil!: DE AJUDA
(08:51:38) Gil! fala para seu amigo2: É MAIS UMA VEZ VC MOSTROU PORQUE
USOU ESTE NYCK
(08:52:02) Gil! fala para seu amigo2: OBRIGADA TÁ MEU AMIGO
(08:52:04) seu amigo2 fala para Gil!: AGORA SOMOS AMIGOS
(08:52:22) Gil! fala para seu amigo2: AGORA VC É MEU AMIGO!
(08:52:35) Gil! fala para seu amigo2: OBRIGADA TÁ DE VERDADE!
(08:52:40) seu amigo2 fala para Gil!: ISSO E E BOM”

Segundo Leech (1983), a polidez linguística é uma estratégia de


distanciamento conflitual, ou seja, o sujeito só mostra o que tem de positivo, o que é
aceito socialmente, a sua face positiva, que pode ser mensurada em termos de níveis
de esforço dentro do distanciamento que ele consegue manter para evitar uma
relação conflituosa. Isso também pode ser visto nas não-coincidências do dizer, em
que o sujeito se protege de seu próprio enunciado.

(54) Cinco histórias de Naty

Nas três primeiras histórias, Naty não tem muita sorte com os seus
interlocutores, na medida em que os nicks das interações escolhidas correspondem
exatamente ao nome. Não estamos querendo dizer com isso que os exemplos só
serviriam se tivessem um nick enigmático ou suspeito, mas que, geralmente, quando o
sujeito é indagado acerca da escolha do Nick, a resposta é sempre óbvia, como

179
mostramos abaixo. Os nicknames correspondem exatamente ao que é dito, ou seja, ao
que ele denota ou significa:

“(02:23:37) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: pq esse nome:
moreno orkut msn?

(02:24:08) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: porque


sou moreno tenho msn e orkut

(02:24:14) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: kk


(02:24:18) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: blz”

Na segunda interação, a cena é a mesma:


“(02:34:46) naty (reservadamente) fala para jack: e pq jack?
(02:35:01) jack (reservadamente) fala para naty: ABREVIAÇAO DO MEU
NOME?
(02:35:35) naty (reservadamente) fala para jack: blz”

E na terceira também:
“(02:49:06) naty fala para AMIGO DE LESBICA: e pq esse nome?
(02:49:22) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: sou amigo
de lesbicas tenho um montao de amigas lesbicas e bi”

Abaixo, mostramos os diálogos na íntegra:

(02:18:30) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: e ai gata

(02:18:32) jack (reservadamente) fala para naty: OI

(02:18:32) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: afi mde
tc

(02:20:26) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: oi

(02:20:32) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: tc d


eonde gata

180
(02:20:35) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: td bem?

(02:20:42) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: tudo

(02:20:44) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: tc d


eonde
(02:20:46) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: fortaleza
(02:20:48) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: e vc?

(02:20:50) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: tem msn
gata

(02:20:53) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: sao


paulo

(02:20:54) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: tem msn

(02:21:01) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: n ta entrando

(02:21:09) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: tem


orkut
(02:21:11) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: problema no
computador

(02:21:15) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: humm

(02:21:31) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: sao


paulo

(02:21:55) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: 27 e


voce
(02:22:00) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: 23

(02:22:05) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: humm

(02:23:12) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: quria te


evr no msn
naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: pq esse nome:
(02:23:37)
moreno orkut msn?

181
(02:24:08) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: porque
sou moreno tenho msn e orkut

(02:24:14) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: kk


(02:24:18) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: blz

(02:24:22) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: rss

2
(02:31:00) naty (reservadamente) fala para jack: oi
(02:31:08) jack (reservadamente) fala para naty: OI
(02:31:10) naty (reservadamente) fala para jack: td bem?
(02:31:32) jack (reservadamente) fala para naty: TUDO TC D ONDE?
(02:32:15) naty (reservadamente) fala para jack: fortaleza
(02:32:17) naty (reservadamente) fala para jack: we vc?
(02:32:47) jack (reservadamente) fala para naty: MGA PARANA ?
(02:32:51) jack (reservadamente) fala para naty: TEM MSN?
(02:33:04) naty (reservadamente) fala para jack: qts anos vc tem?
(02:33:25) naty (reservadamente) fala para jack: como vc é?
jack (reservadamente) fala para naty: 28 ANOS 175ALT 75 KG
(02:34:04)
MORENO CLARO CABELO E @@ CASTANHOS
(02:34:46) naty (reservadamente) fala para jack: e pq jack?
(02:35:01) jack (reservadamente) fala para naty: ABREVIAÇAO DO MEU
NOME?
(02:35:35) naty (reservadamente) fala para jack: blz

3
(02:48:10) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: tc
(02:48:30) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: tc de onde
amiga?
(02:48:40) naty fala para AMIGO DE LESBICA: fortaleza
(02:48:44) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: idade?
(02:48:45) naty fala para AMIGO DE LESBICA: e vc?
(02:48:49) naty fala para AMIGO DE LESBICA: 25

(02:48:51) naty fala para AMIGO DE LESBICA: e vc?

182
(02:48:53) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: sao paulo
(02:48:55) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: 28
(02:48:58) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: tem cam?
(02:49:06) naty fala para AMIGO DE LESBICA: e pq esse nome?
(02:49:22) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: sou amigo
de lesbicas tenho um montao de amigas lesbicas e bi
(02:49:43) naty fala para AMIGO DE LESBICA: we pq o interesse?
(02:50:22) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: eu gosto sa
legais

4
Nesta quarta interação, Naty descobre Petra, personagem de um filme, uma
homossexual que se apaixona por outra mulher:

(02:55:33) naty fala para PETRA: oie


(02:55:36) naty fala para PETRA: td bem?
(02:55:41) naty fala para PETRA: tc de onde?
(02:56:01) PETRA (reservadamente) fala para naty: OI

(02:56:11) PETRA (reservadamente) fala para naty: BELEM E VC


(02:56:21) naty fala para PETRA: fortaleza
(02:56:26) naty fala para PETRA: pq esse nome?
(02:56:42) PETRA (reservadamente) fala para naty: é nome de uma personagem

(02:57:05) PETRA44 (reservadamente) fala para naty: do filme,"quando a noite cai"

PETRA (reservadamente) fala para naty: filme de duas mulheresm q se


(02:57:19)
apaixonam...
(02:57:27) naty fala para PETRA: vc se acha parececida?
(02:57:31) naty fala para PETRA: haa
(02:57:33) PETRA (reservadamente) fala para naty: e a Petra se parece comigo,

(02:57:45) PETRA (reservadamente) fala para naty: eu n as pessoas q acham

44
O filme é: When the night is falling, de 1995, traduzido por Quando a Noite Cai conta a
história de uma professora de Mitologia em um Colégio Protestante, Camille (Pascalle Bussières). Ela
tem uma vida pacata ao lado de seu namorado, sem qualquer emoção e interesse. Quando Camille
conhece a artista circense Petra (Rachael Crawford), sua vida sem interesses transforma-se em um
inebriante misto de cores. Camille luta contra o sentimento que a cerca, mas Petra não mede esforços para
a conquistar.

183
E, quando Petra é indagada a respeito de sua aparência com a personagem do
filme, ela dá um passo atrás e diz que não é ela quem acha, mas as pessoas. Petra se
voltou para o seu próprio dizer, num processo autonímico, para mostrar que o dito não
coincidia com o que ela julgava tencionar dizer, e negou o que já tinha dito
anteriormente.
Freud (1925) observa que um pensamento reprimido pode abrir caminho até a
consciência, conquanto ele seja negado. A negação vem a ser um modo de tomar
conhecimento do reprimido, mas não a sua aceitação. Neste momento, percebe-se a
função intelectual se dissociar do processo afetivo. Freud ilustra com o exemplo de um
de seus atendimentos, quando o paciente comenta a respeito de uma ideia obsessiva e
imediatamente a nega: “tive uma ideia obsessiva e logo me ocorreu que poderia
significar determinada coisa. Mas não, não pode ser verdade, senão não poderia ter me
ocorrido.” Carone (200, p.129) diz o seguinte: “com o auxílio da negação só se revoga
uma das consequências do processo de repressão, ou seja, o fato de que o conteúdo da
representação não tem acesso à consciência. Disso, resulta uma espécie de aceitação
intelectual do reprimido, mantendo-se a repressão do conteúdo essencial, qual seja, uma
verdade com a qual o sujeito não sabe ou não quer lidar, relativa a algo da ordem de um
desejo. Isso também está na base de um fenômeno denominado por Freud (1925) de
invocação. Quando uma pessoa diz, por exemplo: “que bom que eu não tenho dor de
cabeça há tanto tempo”, este é o prenúncio do sinal de um acesso, cuja aproximação já
está sendo sentida, mas na qual não se quer acreditar.
Petra passa pelo processo da negação:
“(02:57:27) naty fala para PETRA: vc se acha parececida?
(02:57:31) naty fala para PETRA: haa
(02:57:33) PETRA (reservadamente) fala para naty: e a Petra se parece comigo,

(02:57:45) PETRA (reservadamente) fala para naty: eu n as pessoas q acham”

Temos assim, aquilo que Authier-Revuz (1982) classifica como as não-


coincidências do dizer, especificamente a não-coincidência do discurso com ele
mesmo. Petra remete a uma imagem de homossexual feminina e,
consequentemente, a discursos que defendem o homossexualismo e a outros que

184
o condenam. No trecho da conversa, Petra nega a designação por temer que a
interlocutora a julgue como uma homossexual. Então, ela denega e, em outras
palavras, deixa implícito: onde se lê Petra = homossexual, leia-se Petra = por
semelhança física com a personagem do filme. Nesse tipo de não-coincidência, o
sujeito assinala no discurso a presença estranha de palavras marcadas como
pertencentes a outro discurso – palavras que povoam o espaço do interdito, como
se diz em Análise do Discurso de orientação francesa -, através de um leque
completo de relações com o outro.
É o que faz Petra ao dizer que: “ eu n as pessoas que acham”. Para Freud
(1905), difererentemente do que fala o senso comum, não haveria sentido ipso facto
para o sujeito “tornar-se homossexual”. Não existe, portanto, uma receita, uma
equação cartesiana ou um único caminho a ser seguido, que indique que o indivíduo
escolha a homossexualidade em detrimento da heterossexualidade.
Freud (1920) relata o caso de uma bela jovem de 18 anos que coloca sua
reputação e seu relacionamento familiar em risco ao se apaixonar por uma mulher
de má fama, uma conhecida demi-mondaine da sociedade vienense. Esta história se
tornou conhecida no meio psicanalítico como "O caso da jovem homossexual”:

Seus pais me procuraram por estarem preocupados com a adoração e


admiração que uma “certa dama da sociedade”, cerca de dez anos mais
velha, despertava em sua filha. Sabia-se que essa dama vivia com uma
amiga numa relação bastante íntima, ao mesmo tempo em que mantinha
relações promíscuas com alguns homens; fatos que em nada interferiam
nos sentimentos da jovem moça. (...) Apesar da vigilância e das proibições,
ela sempre buscava formas de se encontrar com a sua amada. A dama lhe
recomendava que ela se afastasse não só dela, mas como das mulheres em
geral, rejeitando, portanto, todos os avanços da jovem; avanços esses que
não se tratavam de contatos físicos já que a própria jovem não tinha a
intenção de concretizá-los. Embora utilizasse, com os pais, artifícios
mentirosos para que tais encontros fossem possíveis, por outro lado,
parecia não demonstrar o menor escrúpulo em aparecer publicamente em
companhia de sua amada. (...) Seis meses antes dos pais decidirem procurar
algum tipo de ajuda, o pai encontrou a filha em companhia da dama numa
das ruas da cidade e não escondeu a sua ira. A jovem, diante disso, saiu
correndo e tentou o suicídio se jogando na linha ferroviária. Após esse
episódio os pais passaram a tratar a paixão da filha, pela dama, sem tanta
hostilidade; além de que a própria dama passou a conceder à jovem um
tratamento mais amistoso. Mais tarde, vim a saber que o verdadeiro
motivo da tentativa de suicídio foi que a dama, ao saber que aquele era o
pai da moça e do seu desagrado em vê-las juntas, pôs fim, prontamente,

185
àquela ”amizade”. A moça, não suportando perder, para sempre, a sua
amada, tentou pôr fim à própria vida. (p.82-83)

Ao longo do tratamento45, Freud (1920) afirma que o complexo de Édipo havia


sido vivido pela jovem, segundo as características próprias do conflito experenciado
pelas meninas, em geral. Isto é, identificou-se com a mãe e escolheu o pai como
objeto amoroso: “o fato que parecia corroborar tal hipótese era que, aos treze anos,
portanto na puberdade, a jovem apresentou uma forte afeição por um menino de três
anos de idade, o que denota um forte desejo de ser mãe e possuir um filho”. (p.85)
O autor prossegue em sua análise afirmando que existiu um acontecimento que
marcou essa mudança: foi o fato de a mãe ter engravidado do terceiro filho quando a
jovem contava dezesseis anos. E, a partir da análise dos sonhos dessa jovem, Freud foi
construindo uma forma de compreensão dos fatos objetivos em relação à forma como a
jovem escolhia seus objetos amorosos. A análise deixou claro que a dama era a
substituta de sua mãe: a dama era somente mais uma eleita para ser objeto de sua
afeição, pois, já na infância, a jovem demonstrava certa afeição por mulheres/mães mais
velhas. Assim, Freud (1920) afirma, mais uma vez, que não é possível sustentar que foi
o desapontamento experimentado pela jovem que determinou a sua homossexualidade.
Outros fatores especiais externos ao trauma, mas de natureza interna, talvez tenham
contribuído para tal desenlace: “apontei há algum tempo (ver Três ensaios, 1905) a
45
Freud (1920) não considerava esse caso como sendo de fácil análise, uma vez que a jovem
tinha sido levada pelos pais para o tratamento: “a situação que devia tratar não era a que a análise exige,
na qual somente ela pode demonstrar sua eficácia. Sabe-se bem que a situação ideal para a análise é a
circunstância de alguém que, sob outros aspectos, é seu próprio senhor, está no momento sofrendo de um
conflito interno, que é incapaz de resolver sozinho; assim leva seu problema ao analista e lhe pede
auxílio. O médico então trabalha de mãos dadas com uma das partes da personalidade patologicamente
dividida, contra a outra parte no conflito. Qualquer situação que dessa difira é, em maior ou menor grau,
desfavorável para a psicanálise e acrescenta novas dificuldades às internas, já presentes. Situações como
as de um proprietário em perspectiva, que ordena a um arquiteto construir-lhe uma vivenda de acordo
com seus próprios gostos e exigências, ou de doador piedoso que comissiona um artista para pintar um
quadro sacro, em cujo canto deve haver um seu retrato em adoração: tais são, no fundo, incompatíveis
com as condições necessárias à psicanálise. Assim, acontece constantemente que um marido instrua o
médico do seguinte modo: „Minha esposa sofre dos nervos e, por isso, dá-se muito mal comigo; por favor,
cure-a, a fim de podermos levar novamente uma vida conjugal feliz.‟ Com muita frequência, porém, fica
provado que a um pedido desses é impossível atender, isto é, o médico não poder expor o resultado para o
qual o marido procurou o tratamento. Assim que a esposa se liberta de suas inibições neuróticas, põe-se a
conseguir uma separação, porque sua neurose era a única condição sob a qual o matrimônio podia ser
mantido. Ou então os pais esperam que curem seu filho nervoso e desobediente. Entendem por criança
sadia a que nunca cause problemas aos pais e nada lhes dê senão prazer. O médico pode conseguir a cura
da criança, mas, depois, ela faz o que quer com mais decisão ainda, e a insatisfação dos pais é bem maior
que antes. Em suma, não é indiferente que alguém venha à psicanálise por sua própria vontade ou seja
levado a ela, quando é ele próprio que deseja mudar, ou apenas os seus parentes, que o amam (ou se
supõe que o amem). (p. 83-84)

186
disposição bissexual de todo o ser humano e que esta ganha força considerável no início
do desenvolvimento. Com isso quero dizer que inicialmente não há a clara definição
entre ser homem ou ser mulher” (p.87).
Para Lacan (1998), a homossexualidade na mulher seria mais bem definida se não
passasse pelo apoio “cômodo” da identificação, tratando-se essencialmente de uma
substituição de objeto:
(...) a substituição parece vir acoplada ao desafio, característica muito
presente na homossexualidade feminina e, às vezes, tão forte que a pessoa
se dispõe a perder tudo, apenas para conseguir levar adiante seu desejo
sexual. A figura paterna é extremamente desafiada no que diz respeito ao
seu poder, talvez para demonstrar ao pai como se deve amar. Há, pelo
menos, uma coisa que o pai tanto não pode quanto não sabe. Logo, o
desafio tem sua origem em uma exigência de amor, situando o desejo como
um desafio ao desejo paterno. Os modos de configuração homossexual,
entretanto, são tão diversos quanto na heterossexualidade, incluindo-se aí
o fator de sua diferenciação quanto a seu estatuto na neurose, na perversão
ou na psicose. (p.173)

Independemente do fato da discordância quanto à origem da


homossexualidade feminina, o fato é que, para ambos, Freud e Lacan, o que está em
jogo é um desejo sempre presente de busca e realização. No nosso exemplo, Petra,
em um primeiro instante, afirma a sua aparência com a homossexual do filme, para
depois negar: “PETRA (reservadamente) fala para naty: e a Petra se parece
comigo PETRA (reservadamente) fala para naty: eu n as pessoas q acham” . Petra
parou, refletiu e se voltou para seu próprio discurso para negá-lo. Temos o
atravessamento da voz do Outro, que grita veementemente.

5
(03:01:38) Lulão fala para naty: é voce

(03:01:50) naty fala para Lulão: fortaleza


(03:01:57) naty fala para Lulão: pq esse nome?
(03:02:06) Lulão fala para naty: bronzeada então?
(03:02:22) naty fala para Lulão: isso mesmo
(03:02:29) Lulão fala para naty: e ki sou Luis
(03:02:50) Lulão fala para naty: transa gostoso
(03:03:28) naty fala para Lulão: por isso é lulão?
(03:03:36) Lulão fala para naty: isso

187
Aqui, Naty se depara com o Lulão, num forte apelo sexual de quem “transa
gostoso”. E ela fica sem saber se é Lulão, porque é Luis ou porque “transa gostoso”.
Mas Naty não quis saber de nada disso, encerrou imediatamnete o assunto e saiu da sala
de bate-papo.

(55) Amelie não é a Amélia

Nesta interação, Rach conversa com Amelie, que faz questão de dizer que não é
nenhuma Amélia:

(05:50:41) Rach entra na sala...

(05:51:27) Rach fala para Amelie Poulain: oi


(05:52:10) Amelie Poulain46 (reservadamente) fala para Rach: Olá!
(05:52:21) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: blza?

(05:52:36) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Td bem comigo

(05:52:38) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: E vc?


(05:52:45) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ker tc?
(05:52:54) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu to bem
(05:53:02) Rach (reservadamente) fala para Morzão: oi
(05:53:04) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sim...pode falar

(05:53:25) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: nao parece com
muita vontade, mas vou tentar
(05:53:27) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkkk
(05:53:49) Rach (reservadamente) fala para Morzão: m
(05:53:57) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: vc é de onde?

(05:54:05) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach:

46
O nome faz referência direta à personagem do filme O fabuloso destino de Amelie Poulain,
título original em francês: Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain. O filme trata da vida de uma inocente
jovem, que deixa a vida do subúrbio onde morava com a família, Amélie (Audrey Tautou) e passa a
morar no bairro parisiense de Montmartre, onde começa a trabalhar como garçonete. Certo dia, encontra
uma caixa escondida no banheiro de sua casa e, pensando que pertencesse ao antigo morador, decide
procurá-lo e é assim que encontra Dominique (Maurice Bénichou). Ao ver que ele chora de alegria ao
reaver o seu objeto, a moça fica impressionada e adquire uma nova visão do mundo. Então, a partir de
pequenos gestos, ela passa a ajudar as pessoas que a rodeiam, vendo nisto um novo sentido para sua
existência. Contudo, ainda sente falta de um grande amor.

188
(05:54:13) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: tá com sono?
(05:54:17) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkk
(05:54:23)Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Eu disse que
sim...que iria teclar...rs
(05:54:26) Rach (reservadamente) fala para Morzão: mulher
(05:54:35) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sou de BH, e vc?

(05:54:46) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu sou de


Fortaleza
(05:54:51) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: conhece?
(05:54:59) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Não, a carinha foi
de assustada...

(05:55:06) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain:


(05:55:11) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Ah, Fortaleza!

(05:55:11) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ah ta


(05:55:16) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Uma cidade linda!

(05:55:28) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Conheço, viajei


pra Fortaleza nas minhas férias
(05:55:31) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu já ouvi falar
muito bem de BH
(05:55:40) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: nossa, que legal!!
(05:55:46) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Mas ñ conhece?Q
pena
(05:55:51) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: vc tem familia em
fortal?
(05:56:13) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Não...é pq gosto
de praia...e trauma de mineira pq aki ñ tem praia...hahaha
(05:56:15) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu nunca fui em
BH
(05:56:20) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain:
kkkkkkkkkkkkkkkkkk
(05:56:36) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: mas tenho umas
primas q moram em itabira
(05:56:47) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Venha, aqui tb
não deixa a desejar...agrada aos olhos e ao paladar...gosta de pão de queijo?
(05:56:49) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: Mineiro adora
praia né?
(05:57:09) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: amo pao de queijo
(05:57:12) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: mto bom
(05:57:20) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: A maioria gosta

(05:57:30) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: tenho uma amiga
q come mto pao de queijo
(05:57:39) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: e ela é de fortal

189
(05:57:48) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: outros é mais por estar
próximo do que está longe do alcance
(05:57:55) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: até ja almoçei pao
de queijo na casa dela
(05:58:26) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: qnd anos vc tem?
(05:58:28) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Hahaha
(05:58:36) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Pão de queijo é
ótimo...
(05:58:59) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: 21, e vc?
(05:59:05) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: 20
(05:59:07) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: hehe
(05:59:31) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Venha qualquer
dia por aqui com sua amiga
(05:59:36) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: haha
(05:59:40) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: talvez
(05:59:47) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ei, o q vc faz em
BH?
(05:59:51) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Indico lugares que
tem ótimas comidas...rs
(06:00:09) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Estudo ...Nutrição

(06:00:11) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: E vc?


(06:00:41) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu sou guia de
turismo, mas no momento faço letras ingles
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Meu pai tem
(06:00:41)
negócios na área de Fitness e penso um dia tb montar um Spa
(06:00:57) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Oh, my God!
(06:00:58) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: nossa q chik
(06:01:02) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain:
kkkkkkkkkkkkkkkk
(06:01:05) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: hahaha
(06:01:08) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: e o q vc faz em
chats?
(06:01:08) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Cool!
(06:01:18) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: all right
(06:01:26) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: let´s talk
(06:01:39) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Procuro pessoa
com uma boa conversa, gosto de conversar sobre muitos assuntos
(06:01:43) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: trocar idéias
(06:01:55) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: mas em chat é
dificil encontar pessoas legais
(06:02:20) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: concorda?
(06:02:32) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Com certeza...
(06:02:51) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: As pessoas usam
um alter ego em chats

190
(06:02:52) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: a maioria dos
chats só tem pornografia
(06:03:46) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Realmente...
(06:03:51) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: o q vc gosta de
fazer qnd nao ta na facul?
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Vendem muita
(06:04:18)
coisa vulgar,pornografia infantil, etc
(06:04:23) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: é vero
(06:04:26) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkkk
(06:04:35) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: uma baixaria total
(06:05:05) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Gosto de ir ao
cinema, como não tem praia aqui...hahaha... as vezes vou pra perto da Lagoa da
pampulha
(06:05:16) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: q legal
(06:05:20) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu tb adoro
cinema
(06:06:07) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: seu nick é de um
filme né?
(06:06:17) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Tem uma área
verde ótima por lá..parque...gosto da natureza
(06:06:30) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sim!
(06:06:37) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: aqui em fortal nao
tem mto verde
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: O Fabuloso
(06:06:43)
Destino de Amelie Poulain
(06:06:46) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu já vi esse filme
(06:06:50) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: mto bom
(06:07:03) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Não lembro o
nome...hehe
(06:07:09) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: tem mas tao
destruindo
(06:07:16) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: cocó
(06:07:37) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Que pena
(06:07:45) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Qualquer dia viro
ecoterrorista, viu
(06:07:51) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: pq vc colcou seu
nick amelia? vc parece com ela?
(06:07:58) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Amelie
(06:07:59) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: amelie
(06:08:02) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkkk
(06:08:13) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Amélia é mulher
que lava, passa, cozinha...tô brincando
(06:08:21) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: aff

(06:08:30) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain:


(06:08:34) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sim..eu me

191
identifiquei com ela
(06:08:44) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sabe, eu adorei
mesmo o filme
(06:08:50) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Vc nunca assistiu?

(06:08:55) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: fisicamente ou


psicologicamente?
(06:08:59) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu já vi
(06:09:00) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Ah, desculpe
(06:09:12) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ela faz umas
coisas bem engraçadas no filme
(06:09:19) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkk
(06:09:24) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: li agora que você
já viu...é pq meu celular tava tocando...tô fazendo mil e uma coisas ao mesmo
tempo...haha
(06:09:29) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: mas nao lembro
mta coisa
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: O que mais gosto
(06:09:41)
é que ela gosta de ajudar as pessoas
(06:10:19) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: e vc ajuda as
pessoas ou só gostaria de ajudar?
(06:10:20) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Fisicamente não

(06:10:21) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkkk


(06:10:27) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: rsrsrs
(06:10:39) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Tenho os olhos
verdes
(06:10:47) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ah é?
(06:10:53) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sou mais
bonita...hahaha...mas ela tb é linda
(06:11:08) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Eu ajudo
(06:11:28) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: só isso?
(06:11:47) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Tipo que se
alguem avisa que vai se matar...eu sou conselhos pra que faça isso de uma forma que
não ocorra erro
(06:11:56) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: brincadeira...eu
gosto desse lado social
(06:11:58) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain:
kkkkkkkkkkkkkkkk

(06:12:15) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: e pq faz nutrição?


(06:12:18) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Não...Amelie tem
umas idéias
(06:12:21) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Umas neuras
(06:12:25) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: devia fazer serviço
social
(06:12:28) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkkkk

192
(06:12:31) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Umas viagens mto
interessantes
(06:12:46) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: o filme é frances
né?
(06:12:54) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Isso sem usar
psicotrópicos
(06:12:56) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: haha
(06:13:09) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sim..é do diretor
Jean Pierre
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Engraçado que
(06:13:31)
dizem que os franceses não são bons em filmes de comédia...mas esse foi ótimo
(06:13:45) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Superou muitos
"enlatados" americanos
(06:13:56) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Vc deveria assistir
novamente
(06:13:56) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: nao sabia disso?
(06:14:04) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: vou ver em sua
homenagem
(06:14:06) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkk
(06:14:19) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu adoro filme
americano
(06:14:53) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Obrigada
(06:15:06) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Qual seu filme
favorito?
(06:15:18) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: nao tenho filme
favorito
(06:15:26) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: mas tenho seriado
favorito
(06:15:30) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Qual?
(06:15:47) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: FRIENDS
(06:16:04) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Ohhhhh, myyy
God!
(06:16:11) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: vc sempre entra
na net com esse nick?
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Eu tb curto pra
(06:16:22)
caramba FRIENDS!
(06:16:31) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: i love friends a lot
(06:16:37) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Algumas vezes
sim
(06:16:46) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: i´m completely
crazy about FRIENDS
(06:16:51) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Principalmente
quando entro em salas de CINEMA!
(06:16:55) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ahh
(06:17:06) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ei qual seu email?
(06:17:21) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: vou ter q sair
agora, mas achei vc uma otima pessoa

193
(06:17:37) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Meu e-mail é
[email protected]
(06:17:40) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: E o seu?
(06:17:45) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Já vai?
(06:17:47) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Pq?
(06:17:50) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eupisteme?q
diferente!!!
(06:18:06) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: o meu é
[email protected]
(06:19:21) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach:
É...episteme...gosto dessa palavbra
(06:19:41) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Tb achei o papo
bem legal
(06:19:55) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Anotei seu mail,
depois escreverei
(06:19:58) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Beijos!

Gostaríamos primeiramente de chamar a atenção para o comentário que Amelie


faz:
“(06:02:51) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: As pessoas usam
um alter ego em chats”

Para ela, o nick de um bate-papo é um alterego, ou seja, um outro ego, um outro


eu. A palavra vem do latim alter = outro e ego = eu. Já neste momento, evidencia-se a
distância que Amelie Poulain coloca entre o eu dela e o ego que ela apresenta nos chats.
Parafraseando Authier-Revuz, podemos dizer que é uma não-coincidência entre o
sujeito e ele mesmo. Em outras palavras, Amelie Poulain demonstra um divisão de egos,
entre o eu privado dela e o que ela demonstra nos bate-papos.

“(06:07:51) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: pq vc colcou seu


nick amelia? vc parece com ela?
(06:07:58) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Amelie

Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Amélia47 é mulher


(06:08:13)
que lava, passa, cozinha...tô brincando

47
Para horror das feministas, Ataulpho Alves e Mário Lago compuseram a famigerada música:

Ai que saudades da Amélia

Nunca vi fazer tanta exigência


Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza

194
(06:08:34) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sim..eu me
identifiquei com ela
(06:08:44) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sabe, eu adorei
mesmo o filme”

Amelie Poulin reage quando escuta Rach chamá-la de Amélia e diz, incisiva: “é
Amelie, Amélia é a mulher que passa, cozinha, lava.” Aí reconsidera seu dizer e
comenta: “to brincando”. Mais uma vez, temos a marca de uma não-coincidência do
dizer, na qual o sujeito se defende de seu próprio dito. Ela está se defendendo do que o
outro poderia estar pensando dela e de um estereótipo de mulher submissa presente num
discurso machista de todos (homens e mulheres) os que ainda acham que essa deve ser a
condição da mulher na sociedade. O significante-significado-referente de Amélia
denuncia esse tipo de discurso a que Amelie se contrapõe, pois é uma marca linguística
típica dele.
Na nossa cultura, Amélia é a mulher que a tudo cede, é submissa, dependente,
etc. É isso que faz com que Amelie Poulain se recuse a ser chamada de Amélia. Ela se
identificou com a Amelie do filme que ajuda todo mundo, todavia se acha muito mais
bonita, tem os olhos verdes e tudo, mas a mocinha do filme também é linda:

Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: O que mais gosto


“(06:09:41)
é que ela gosta de ajudar as pessoas
(06:10:19) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: e vc ajuda as
pessoas ou só gostaria de ajudar?
(06:10:20) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Fisicamente não

(06:10:21) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkkk


(06:10:27) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: rsrsrs
(06:10:39) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Tenho os olhos

Tudo que você vê você quer


Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher

Às vezes passava fome ao meu lado


E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado
Dizia: Meu filho, que se há de fazer

Amélia não tinha a menor vaidade


Amélia é que era mulher de verdade
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade.

195
verdes
(06:10:47) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ah é?
(06:10:53) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sou mais
bonita...hahaha...mas ela tb é linda”

Amelie Poulain afirma ainda que gosta muito de ajudar as pessoas, mas não
fisicamente, e prossegue:

(06:11:08) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Eu ajudo


(06:11:28) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: só isso?
(06:11:47) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Tipo que se
alguem avisa que vai se matar...eu sou conselhos pra que faça isso de uma forma que
não ocorra erro
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: brincadeira...eu
(06:11:56)
gosto desse lado social
(06:11:58) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain:
kkkkkkkkkkkkkkkk
(06:12:15) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: e pq faz
nutrição?
(06:12:18) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Não...Amelie tem
umas idéias
(06:12:21) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Umas neuras

Amelie Poulain revela seu lado sádico quando diz que: “alguem avisa que vai se
matar...eu sou conselhos pra que faça isso de uma forma que não ocorra erro”.
Novamente, recua e conserta dizendo que é só brincadeira, ou seja, ela está todo o
tempo se defendo do que realmente pensa, acha, sente ou deseja, porque usa o seu
alterego para interagir nos bate-papos. Dessa forma, ela preserva a sua face positiva
frente ao outro, assim como o Seu amigo do exemplo já citado e se resguarda de mostrar
a sua verdade a sua cara.
Chama-nos, porém, a atenção o modo como ela interpreta a ajuda que a
verdadeira Amelie Poulain, do filme, concede às pessoas. A ajuda concedida pela
protagonista do filme não tem nada de assistencial, muito pelo contrário, ela ajuda as
pessoas a realizarem os seus próprios desejos. E realizar um desejo não tem exatamente
nada de “social”.

196
(56) Sambanga, o tipo mongolóide

Nesta conversa, vemos um traço muito claro de sedução do começo ao fim do


diálogo. Sambanga só queria a Kel, como o confirma o diálogo a seguir:

(05:13:41) Kel entra na sala...


(05:14:00) Kel fala para Todos: oii
(05:14:18) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Oi Kel seja
bem vinda...
(05:14:23) Kel fala para Todos: ^^
(05:14:25) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: posso saber
sua idade
(05:14:26) Kel fala para Todos: vlw
(05:14:46) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: 21
(05:14:50) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: e vc?
(05:15:06) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: tenho 30 sou
velho?
(05:15:11) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hehe
(05:15:15) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: não
(05:15:19) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: pq?
(05:15:30) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: vc é d onde?
(05:16:08) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: sou de
Uberaba minas e você?
(05:16:22) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: fortaleza
Ceará
(05:16:40) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Queimadinha
de praia
(05:16:48) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hehe
(05:16:55) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: qnd possível
(05:17:11) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: dizem que as
mulheres mais fogosas são dessa região...
(05:17:28) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: sei disso não
(05:17:44) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: o q é
sambanga?
(05:17:51) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Aqui em
minas nóis é queimado é de beira de brecho mesmo....
(05:17:58) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hueheuheu
(05:18:07) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: gostou né
(05:18:33) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Sambanga é
homem meio louco e bastante dotado....
(05:18:44) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: ¬¬
(05:19:00) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: e beira d
brecho?
(05:19:03) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: desculpe você
perguntou
(05:19:33) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: corguinho,

197
lagoa, entende?
(05:19:33) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: é como gíria
daí?
(05:19:40) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hum
(05:20:19) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas tu
escolheu esse nick pq?
(05:20:27) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: acho q
ninguém entende
(05:21:40) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: quem pegue
explicação eu digo...
(05:21:51) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: huehuehu
(05:22:02) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: nickname
estranho chamam a atenção...despetam a curiosidade....
(05:22:13) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: eh
(05:22:16) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: realmente
(05:22:17) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Muitas vezs
(05:22:40) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: uma gata
tecla com você só por causa do nickname...
(05:23:06) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Como você
minha linda de Fortaleza....
(05:23:12) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: ^^
(05:23:16) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: e ai...
(05:23:21) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: o q vc faz?
(05:23:29) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: trabalho
numa empresa como comprador e sou formado em administração..
(05:23:38) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: humm
(05:23:44) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Gostou?
(05:23:47) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mto legal
(05:24:16) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: espera eu
disser que além disso sou muito gato, anda só bem vestido e perfumado....
(05:24:24) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hueheuheu
(05:24:38) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: iss
(05:24:56) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: posso
entender isso como um grito de euforia....?
(05:25:24) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: tecla de onde
casa, lan...
(05:25:30) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: casa
(05:25:48) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: é sinal que
está bem a vontade...
(05:26:06) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: descreva-me
como está...
(05:26:14) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: achei mto
interessante sua explicação do nick
(05:26:29) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: tem alguém
além de você lendo seu monitor..?
(05:26:43) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: legal
(05:26:44) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: não

198
(05:26:49) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: bom
(05:26:52) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas meus
pais estão aki perto
(05:27:02) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: descreva me
você ? Podes?
(05:27:22) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: bem perto?
(05:27:29) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: num gosto
mto d me descrever
(05:27:35) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: eh...
(05:27:39) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: o pc eh na
sala
(05:27:51) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: cara leva pro
quarto
(05:28:06) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: huehuehue
(05:28:22) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: eh pq eh meu
e da minha irmã
(05:28:37) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: e nossos
quartos são separados
(05:28:42) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: ela é bonita
como você?
(05:28:49) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: humrrum
(05:28:59) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: eh bailarina e
talz
(05:29:01) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Cara que
família...
(05:29:06) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hueheuhe
(05:29:17) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: preciso te
pedir uma coisa
(05:29:18) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: talvez o que?
(05:29:24) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: fala
(05:29:30) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: pida...
(05:29:52) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: será q eu
poderia usar sua explicaçao para o nick como exemplo p/ um trabalho da
facu?
(05:30:39) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: trabalho de
faculdade não sei
(05:30:47) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: own
(05:30:51) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: deixa explicar
melhor
(05:30:58) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: por favor...
(05:31:10) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: num vou nem
dizer teu nome...
(05:31:17) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: na verdade
nem sei qual é
(05:31:19) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: ^^
(05:31:32) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: sambanga
realmente quer dizer tipo mongolóide, fraco da cabeça...
(05:31:53) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: humm

199
(05:31:56) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: huehuehue
(05:31:59) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: não sei se
seria de bom tom...usar
(05:32:17) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: é usado em
sentido pejorativo...
(05:32:28) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas num eh
bem isso q quero usar...
(05:33:22) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: a parte do
dotado é que geralmente os fracos da cabeça, Sambangas são bem dotados
(geralmente).
(05:34:01) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Se quiser
pode usar
(05:34:02) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas acho que
não teria problema
(05:34:11) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: se acha que é
correto...
(05:34:26) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: pois então
tá...
(05:34:30) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: obrigada
(05:34:31) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: só um minuto
vou atender o telefone...
(05:34:38) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: tá

Kel, sem mais delongas, pergunta o que é Sambanga:

(05:17:44) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: o q é


sambanga?
(05:17:51) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Aqui em
minas nóis é queimado é de beira de brecho mesmo....
(05:17:58) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hueheuheu
(05:18:07) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: gostou né
(05:18:33) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Sambanga é
homem meio louco e bastante dotado....
Sambanga vai direto ao que interessa quando comenta “que é um homem
bastante dotado”. A interlocutora, do alto de sua inocência, pergunta:

(05:20:19) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas tu


escolheu esse nick pq?
(05:20:27) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: acho q
ninguém entende
(05:21:40) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: quem pegue
explicação eu digo...
(05:21:51) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: huehuehu
(05:22:02) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: nickname
estranho chamam a atenção...despetam a curiosidade....

200
Sambanga diz que é para chamar atenção com o seu nickname estranho.
Contudo, mais adiante, quando a Kel revela seu verdadeiro interesse, ele volta atrás e
diz o significado de Sambanga:

“(05:29:52) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: será q eu poderia usar


sua explicaçao para o nick como exemplo p/ um trabalho da facu?
(05:31:32) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: sambanga
realmente quer dizer tipo mongolóide, fraco da cabeça...
(05:31:53) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: humm
(05:31:56) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: huehuehue
(05:31:59) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: não sei se
seria de bom tom...usar
(05:32:17) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: é usado em
sentido pejorativo...
(05:32:28) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas num eh
bem isso q quero usar...”

É interessante notar aqui, neste diálogo, o que faz o Sambanga usar um apelido
como esse, sabendo que o que quer dizer é que é um “mongoloide”, embora seja ainda
bem-dotado, “mas não todos” são assim, ele frisa. Entendemos que Sambanga cai na
armadilha de sua própria ficção, na medida em que protagoniza várias cenas de uma
mesma personagem que faz com que ele se reinvente em cada significado produzido por
ele:
Sambanga = homem meio louco e bastante dotado
Sambanga = nicknames estranhos chamam a atenção...despetam a curiosidade....
Sambanga = uma gata tecla com você só por causa do nickname...
Sambanga = sambanga realmente quer dizer tipo mongoloide, fraco da cabeça...
Sambanga = usado em sentido pejorativo...
Desse modo, vemos que Sambanga criou uma série de recategorizações que
reafirmam, uma após outra, seu desejo de ser objeto do desejo do Outro48, até que, por
fim, ele se afasta de tudo o que tinha dito antes e outra voz surge: “é usado em sentido
pejorativo...” ou seja, não é ele que usa em sentido pejorativo, mas os outros. Nesse
instante, é como se ele tivesse sido desmascarado em sua ficção.

48
Para Lacan (1958), é na posição de objeto, entendido como falo, que a criança se coloca como
suposto completar o que falta à mãe, esta vista como Grande Outro. Ao querer constituir-se como falo
materno, a criança se coloca como único objeto de desejo da mãe, assujeitando seu desejo ao dela. O
que a criança busca é se fazer desejo de desejo, é poder satisfazer o desejo da mãe, quer dizer: to be or
not to be o objeto de desejo do Outro. Essa situação se repete por toda a vida.

201
Lacan (1955) considera “a relação do narcisismo como a relação imaginária
central para a relação inter-humana”. Para ele, a relação narcísica, como relação de
identificação à imagem especular, objeto de desejo do Outro, é uma relação erótica que
constitui também a base de toda tensão agressiva, onde há sempre uma marca de
exclusão (p. 110).

“(05:23:21) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: o q vc faz?


(05:23:29) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: trabalho
numa empresa como comprador e sou formado em administração..
(05:23:38) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: humm
(05:23:44) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Gostou?
(05:23:47) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mto legal
(05:24:16) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: espera eu
disser que além disso sou muito gato, anda só bem vestido e perfumado....
(05:24:24) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hueheuheu
(05:24:38) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: iss
(05:24:56) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: posso
entender isso como um grito de euforia....?”

Neste diálogo, vemos Sambanga se colocar como objeto fálico do desejo do


outro: “trabalho numa empresa como comprador e sou formado em administração..”
“espera eu disser que além disso sou muito gato, anda só bem vestido e perfumado....”.
Sambanga espera que, em seu imaginário, o outro o tome como objeto de amor: “me
ame, pois eu sou tudo isso” mas isso não é o suficiente, por isso tenho que ser também
um Sambanga: meio louco, mongoloide, bem dotado, enfim. Lacan (1955) afirma que,
no plano imaginário, o sujeito humano é constituído de forma a que o outro “está
sempre prestes a retomar seu lugar de domínio em relação a ele, que nele há um eu que
sempre é em parte estranho a ele, senhor implantado nele acima do conjunto de suas
tendências, de seus comportamentos, de seus instintos, de suas pulsões (p. 111).
Sambanga é, então, para Sambanga, o estranho próximo, o das Unheimlich49, de
Freud, o estranho íntimo, aquele que se desconhece, mas que é conhecido em outra
cena, em outro lugar. Se Sambunga estivesse em um divã, provavelmente as suas
associações nos levariam a uma cena em que a escolha do seu nick remontaria a uma
recategorização de seu desejo.

49
Freud (1919) utiliza o conto do escritor Hoffman "O Estranho" (Das Unheimlich), para
explorar a vinculação da noção de "estranho" remetendo a algo conhecido, familiar, ainda que
assustador, aos processos psíquicos que o originam.

202
(57) O mentiroso
Nesta interação, Kraven é extremanente misterioso, mas acaba revelando o seu
segredo:
(04:31:53) Bia (reservadamente) fala para kraven: oi
(04:31:56) Bia (reservadamente) fala para Kraven: quer tc?
(04:31:59) Kraven (reservadamente) fala para Bia: tc de onde?
(04:32:17) Bia (reservadamente) fala para Kraven: fortal e vc?
(04:32:28) Kraven (reservadamente) fala para Bia: sao paulo
(04:33:22) Kraven (reservadamente) fala para Bia: o que faz aki a
essa hr?
(04:34:01) Bia (reservadamente) fala para Kraven: o que é kraven?
(04:34:02) Kraven (reservadamente) fala para Bia: eh uma longa
historia outro dia conto
(04:34:11) Bia (reservadamente) fala para Kraven: valha... ta
cansado?
(04:34:26) Bia (reservadamente) fala para Kraven: pois então tá...
(04:34:30) Kraven (reservadamente) fala para Bia: outro dia conto
eh longa
(04:34:31) Bia (reservadamente) fala para Kraven: anota o meu MSN
[email protected]
(04:34:33) Kraven (reservadamente) fala para Bia: anotei
(04:34:39) Bia (reservadamente) fala para Kraven: vou esperar no
meu e-mail
(04:34:45) Kraven (reservadamente) fala para Bia: pq que saber do
nome?
(04:34:52) Bia (reservadamente) fala para Kraven: sou uma
pesquisadora, procuro nicks interessantes
(04:35:38) Kraven (reservadamente) fala para Bia: ah
(04:36:22) Kraven (reservadamente) fala para Bia: conto tudo
(04:37:01) Bia (reservadamente) fala para Kraven: tá bom
(04:37:22) Bia (reservadamente) fala para Kraven: tchau
(04:37:41) Kraven (reservadamente) fala para Bia: ja vai?
(04:38:06) Bia (reservadamente) fala para Kraven: hunrum
(04:38:30) Bia (reservadamente) fala para Kraven: bj
(04:38:41) Kraven (reservadamente) fala para Bia: bjaum
(04:38:58) Bia (reservadamente) fala para Kraven: tchau

Neste bate-papo, o sujeito não quis revelar a origem do nome Kraven, mas,
posteriormente, por e-mail, ele enviou. Conforme o combinado no bate-papo,
trancrevemos agora o conteúdo do e-mail enviado:

“De: #############

203
Para: Mariza Angélica Paiva Brito ([email protected])

É longa espero que ajude:

Primeiro para entender o nome vamos entender a cultura _ >

Segundo a versão mais difundida, o termo "gótico" deriva de Godos, o povo germânico
que habitava a Escandinávia e se vestiam todos de preto e admiravam a trsitesa como
uma arte porem eram uma especie de padres não como os de hj pois a cultura evoluiu
(na minha opinião regrediu ) . Porém, em O Mistério das Catedrais, Fulcanelli nos
apresenta uma outra versão. A palavra "gótico" seria uma deformação fonética de
Argoth (ou Art Goth), uma linguagem restrita utilizada somente por Iniciados em
Ocultismo. Embora historicamente essa versão seja incoerente, é uma visão interessante
de um grande alquimista,( interessante vc ler o mistério das catedrais), entendendo isso
o nom e Kraven é como Lucifer (para alguns Estrela da manhã para outros O mal mas
chamar de demonio algo ruim esta sempre errado mas isso é outro tópico) se disserem
pra vc que existe duas vergentes não acredite realmente os godos difundiram a arte
gothica tb....infelizmente esse conceito virou um estilo de vida graças a nossa mídia na
verdade mídia americana entre 1967 e 1970 com as musicas do The cure, The Ghost Of
Lemora, Scary Bitches, Blutengel, Diva Destruction, Katscan existem várias ...rs
....mas em resumo o Nome Kraven é gothico sinónimo de Mefisto ou mephistofeles
...senhor da mentira o demonio mais baixo do rank dos demonios no
decronomicon, caso queira ir a fundo em demonologia sugiro alguns livros :

Demonolatria libre - Nicolas Remes


Compedium Maleficarum - Francesco Maria Guazo
Biblias de Gutenberg
Ars Diavoli
Dictionnarie Infernal - Plancy- 1844
Compendi di Secreti - Leonardo Fioravanti 1571

Mas sempre tem a desculpe o palavriado a merda do "Malleus Maleficarum" livro


ridiculo feito apenas para matar descendentes de Jesus na época renascentista
trata-se de um exaustivo manual sobre a caça as bruxas.......

Mas sem mais delongas Kraven = "O MENTIROSO" ... e eu uso esse nick pq eu
manipulo as pessoas ao meu redor, não consigo ser verdadeiro e não gosto que ninguem
goste de mim e eu não sou feio o que não contribue com a minha ideia. Desculpa
qualquer coisa BJAUM !”

Nesta explicação, Kraven diz que o seu nick significa “Lucifer, Mefisto,
mephistofeles, senhor da mentira”. Uma vez que dissemos de nossa condição de
pesquisadora, ele não poupou esforços para nos impressionar; para tanto, recomendou
alguns livros sobre demologia e criticou o mais conhecido deles: o “Malles
Maleficarum”. É interessante notar o que ele comenta no final: “... e eu uso esse nick
pq eu manipulo as pessoas ao meu redor, não consigo ser verdadeiro e não gosto que
ninguem goste de mim e eu não sou feio o que não contribue com a minha ideia.
Desculpa qualquer coisa BJAUM !”

204
Kraven se defende dele mesmo. Diz que não consegue ser verdadeiro, que
manipula as pessoas e que não gosta que as pessoas gostem dele e que não é feio, o que
dificulta a sua intenção.

205
7. Considerações finais

A partir da problematização das heterogeneidades do tipo mostrada e não-


mostrada de Authier-Revuz (1982), que levam em consideração apenas a marca
consciente implementada pelo enunciador, redescrevemos, acrescentando o que nos
pareceu pertinente, outras marcas que transcenderam aquelas consagradas (negrito,
mudança de fonte, aspas, discurso direto), como sendo formas de marcação da
presença do outro no fio discursivo. Discutimos com Authier-Revuz a discretização
das modalidades de heterogeneidade constitutiva, a saber, a constitutiva, em
oposição à mostrada, para a inclusão de fenômenos de natureza não estritamente
formal entre os fatos de linguagem tidos como não-marcados, como é o caso da
presença do inconsciente no fio discursivo, ampliando, assim, o leque de marcações.
Para a autora, existe uma falha generalizada no sistema linguístico e que é
constitutiva. Essa constatação nos autorizou a buscar as marcas linguísticas dessas
falhas na enunciação mesma do sujeito.
Encontramos essas marcas em uma outra cena, a do inconsciente, como
demonstramos na exemplificação das análises. Comungamos com Authier-Revuz
(1982) o ponto de vista de que o inconsciente está presente em todo e qualquer
discurso e de que o trabalho de interpretação psicanalítica pode ser feito através das
marcas encontradas na materialidade da fala.
Authier-Revuz afirma que as marcas só podem ser identificadas porque o
sujeito tem plena consciência de seu ato enunciativo: ele para, olha, reflete e se
distancia do seu dito. No entanto, mostramos que outras marcas podem ser
observadas no dizer do sujeito, uma vez que a classificação da autora, como podemos
constatar, foi elaborada para uma heterogeneidade relacionada ao outro e não ao
Grande Outro. Em nossa pesquisa, consideramos não apenas a heterogeneidade
relacionada ao semelhante, mas também a que se processa em uma outra cena. Na
análise do exemplário encontramos outras marcas que se expressaram à revelia do
dito consciente do sujeito, ligada às vozes do inconsciente. Propusemos que, em vez

206
de se falar em heterogeneidade realizada somente pela reflexão autonímica do sujeito
acerca da sua fala, a heterogeneidade também revelaria a descontinuidade do dizer
que pode ser linguisticamente explicitada por outras marcas, que apontam para a
cena do inconsciente, o que nos faz considerar o campo da enunciação marcado por
uma heterogeneidade desconhecida pelo sujeito, mas que se faz ouvir e deixa as suas
pistas como inevitáveis.
Sabemos que, para a Psicanálise, existe no discurso uma outra intenção
(inconsciente) além de uma simples comunicação entre os atores. Essa segunda
intenção do discurso, que, como afirma Lacan (1959), interroga as coisas em relação
ao próprio sujeito, em relação a sua situação no discurso - que não é mais exclamação
ou interpelação, mas uma necessidade de nomeação, uma necessidade de expressão -
se operacionaliza porque vem quebrar a ordem linear do discurso através da inserção
de uma não-coincidência do dizer. As não-coincidências do dizer aparecem porque
existe no discurso mais de uma intenção além da de comunicar. E esse além se dá em
uma outra cena.
Argumentamos, ao longo da pesquisa, em favor de uma abertura para uma
outra cena enunciativa e, para tanto, recorremos a processos de referenciação, que
desempenham o papel de eficientes marcadores discursivos, sem que, para isso,
precisem vir acompanhados de indicadores formais que assinalem
convencionalmente essa marcação, como descreve Authier-Revuz (1982).
Discutimos ainda a criação do conceito de heterogeneidade a posteriori,
proposto por Settineri (2002) e suas implicações na interpretação psicanalítica de um
enunciado. Para o autor, o heterogêneo a posteriori só pode ser inferido por meio de
um ato interpretativo em que se dá uma ressignificação dos elementos expressos.
Acrescentamos a essa constatação que não é apenas um sentido novo que se constrói
a posteriori, mas também um referente novo, que não se desgarra de significantes e
significados. Foi para essa construção sígnica completa, incluindo o referente, que
realizamos nossa análise e constatamos que os postulados lacanianos só serão

207
devidamente contemplados se considerar o uso e, portanto, necessariamente, atrelar
a supremacia do significante a seus significados e referentes correlatos.
Destarte, grifamos o fato de haver não apenas uma ressignificação construída
pelo analista, mas uma recategorização do referente, como no exemplo comentado
de bête50 . Neste, vemos que houve uma recategorização do referente de bête para o
referente de besta naquela situação específica de uso. É para esse tipo de escansão,
que gera uma ressignificação, que chamamos a atenção nesta discussão teórica, a fim
de demonstrar que, neste processo, é imprescindível falar também da efetivação de
um processo recategorizador de referentes durante a interpretação. No entanto,
constatamos que não é apenas uma recategorização utilizada com o intuito de
argumentar. O foco dos autores que analisam esse fenômeno é dominantemente
voltado para a construção argumentativa. Diferentemente desses estudos, mostramos
que a recategorização pode ser vista com outros propósitos além do de argumentar,
na medida em que a seleção das expressões pode estar relacionada não só com
intuitos argumentativos, mas também com escolhas que dizem respeito a uma outra
cena, que pode facilmente ser identificada a partir dessas mesmas expressões
linguísticas, que servem não somente à comunicação, mas também à manifestação de
um desejo do inconsciente infiltrado na fala do sujeito. A isso, demos o nome de
recategorização de desejo - aquilo que o sujeito revela inconscientemente, em uma
enunciação mais além da comunicação de um discurso.
Desta forma, tentamos contribuir para os pressupostos teóricos das
heterogeneidades enunciativas quando salientamos marcas linguísticas não
consideradas por Authier-Revuz e quando demonstramos como se dá o embate das
vozes do inconsciente.
Constatamos, outrossim, que, para a Psicanálise, a construção da referência
deveria ser indissociável da pontuação dos seus significantes. Para isso, fizemos um
levantamento bibliográfico do que já fora discutido na literatura sobre o conceito de
signo e significante em Saussure e a exclusão do referente. Entendemos que esta

50
Ver o exemplo na página 61.

208
retomada foi imprescindível para a nossa tese, uma vez que situamos nossas bases
teóricas nos processos referenciais, em relação à linguística estrutural saussuriana,
seu conceito de signo e a exclusão do referente. A partir daí, refletimos, com base no
conceito do signo saussuriano, redimensionado por Lacan, sobre o referente
presente desde sempre na linguagem em uso do sujeito. Diferentemente do signo
em Saussure, que exclui o referente, admitimos que o signo para a Psicanálise só
pode ser pensado sem equívocos se tiver em conta a relação com o referente no
momento mesmo da interação. Nossa proposta se pautou pela caracterização da cena
interpretativa, em que se dá a construção de uma outra relação entre significantes,
significados e referentes, que nasce na referenciação, dentro de uma perspectiva
textual-discursiva, mas que se recria na cena da interpretação psicanalítica, no
momento mesmo em que o sujeito estabelece relações até então desconhecidas por
ele.
Para a Linguística de Texto, contribuímos com o alargamento das
possibilidades de uso das marcas referencias no universo discursivo. Isso porque
entendemos que a construção referencial pode ser utilizada muito além dos fatos
argumentativos, mas ser encenada paralelamente (não isoladamente) aos de um
outro universo, a que o sujeito não tem alcance.
Deste modo, deixamos abertos caminhos para novos estudos que queiram
admitir um outro olhar, tanto para a Linguísitica de Texto como para as pesquisas em
Psicanálise, a fim de se aprofundem as análises aqui iniciadas.

209
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