2010 Tese Mapbrito
2010 Tese Mapbrito
2010 Tese Mapbrito
Centro de Humanidades
Programa de Pós-Graduação em Linguística
Fortaleza
2010
Marcas linguísticas da interpretação psicanalítica
- heterogeneidades enunciativas e construção da referência -
Orientadora:
Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil
Fortaleza
2010
Esta tese foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Doutor em Linguística,
outorgado pela Universidade Federal do Ceará, e encontra-se à disposição dos
interessados na Biblioteca de Humanidades da referida Universidade.
A citação de qualquer trecho desta tese é permitida, desde que seja feita de acordo
com as normas científicas.
Tese aprovada em: 26/03/2010.
__________________________
Banca Examinadora
__________________________
Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante - UFC (Orientadora)
__________________________________________
Profa. Dra. Maria Hozanete Alves de Lima – UFRN (1ª Examinadora)
___________________________________________
Profa. Dra. Silvana Maria Calixto de Lima – UESPI/UFPI (2ª Examinadora)
__________________________________________
Profa. Dra. Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin – UFC (3ª Examinadora)
__________________________________________
Profa. Dra. Emília Maria Peixoto Farias – UFC (4ª Examinadora)
__________________________________________
Profa. Dra. Maria Elias Soares – UFC (Suplente interno)
___________________________________________
Profa. Dra. Maria Helenice Araújo Costa – UECE (Suplente externo)
3
Para a Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante, cúmplice.
4
AGRADECIMENTOS
À minha família pelo apoio incondicional.
À minha orientadora, Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante, pela
competência, dedicação e principalmente pelo tempo que dedicou a esta
tese.
À profa. Eulália, pela oportunidade que concedeu à Pós-Graduação de
conhecer os grandes teóricos da Linguística.
À profa. Maria Elias, sempre.
À profa. Hozanete, por ter aceitado com tanto carinho e interesse participar da
banca.
À profa. Silvana, pela amizade e competência.
Às profas. Margarete, Ana Célia e Emília, pela boa convivência.
À minha amiga Alena, pelas traduções e principalmente pela grande amizade.
Ao meu grande amigo Valdinar, pela generosidade.
Aos meus amigos Suelene, Antenor e Sâmia, pelo carinho inconfundível.
Ao meu amigo Franklin, pela paciência, em tudo.
Às minhas amigas Paloma, Gracy e Natália, pela convivência harmoniosa e feliz.
À minha mais nova amiga Gracinha e ao seu filho Felipe.
Às meninas e ao menino do Protexto: Jamille, karina, Adriana, Tatiana e
Júnior, pelos bons momentos no dia-a-dia.
Ao Grupo de Pesquisa Protexto, pelas discussões sempre produtivas.
À Letícia Adriana, à Otávia, à Livinha, à Dannytza, à Mirna, minhas
amigas.
Ao meu amigo Carlos Magno, único.
Ao Eduardo e à Antônia, pelo pronto atendimento nos momentos de aperreio.
À Capes e ao CNPq, pelo apoio financeiro.
5
“Você agiu conforme o seu desejo?”
Lacan (1988)
6
RESUMO
Neste trabalho, tem-se como objetivo analisar, através dos processos interpretativos,
as marcas linguísticas do atravessamento do Outro no fio discursivo, tomando como
critérios as heterogeneidades definidas por Authier-Revuz (1982) como constitutiva
e mostrada, esta se subdividindo em mostrada marcada e mostrada não-marcada.
Trava-se uma discussão em torno do esquema proposto pela autora, com vistas a
repensar a discretização das modalidades de heterogeneidade constitutiva, a saber, a
constitutiva, em oposição à mostrada, de modo a incluir fenômenos de natureza não
estritamente formal entre os fatos de linguagem tidos como não-marcados, como é o
caso do atravessamento do inconsciente no fio discursivo, ampliando, assim, o leque
de marcações. Para argumentar em favor dessa “abertura” para uma outra cena
discursiva, recorreu-se a processos de referenciação, que podem desempenhar o
papel de eficientes marcadores discursivos, sem que, para tanto, precisem vir
acompanhados de indicadores formais (como propõe AUTHIER-REVUZ, 1982), que
assinalem convencionalmente essa marcação. Pretende-se, pela análise da cadeia
significante, analisar não apenas a construção de significados, como afirmava Lacan
(1990), mas também, e necessariamente, a elaboração de referentes. Do ponto de
vista psicanalítico, sempre haverá marcas linguísticas, diversificadas que sejam, pois
as “marcas” não são, ou não são apenas, as que o enunciador percebe, ou supõe
perceber, mas aquelas que se destacam sob a forma de um sobressalto na fala, ou de
um tropeço. Utilizou-se como exemplário a interação das novas formas de
comunicação que se realizam através da mídia eletrônica, que podem ser
encontradas, por exemplo, nos bate-papos virtuais, daí a importância de se analisar a
evolução dos referentes, na medida em que eles se prestam à construção dos vários
sentidos de um texto. Acredita-se que o referente ofereça pistas suficientemente
plausíveis para, através dele, alcançar as marcas de heterogeneidades na enunciação
do sujeito.
(205 palavras)
7
ABSTRACT
The main goal of this study is to analyze the linguistic marks of the Other in
the discourse thread through the interpretative process. The criteria used are the
heterogeneities, such as defined by Authier-Revuz (1982) as constitutive and shown.
According to the author, the shown heterogeneity can be marked and unmarked.
I discuss the scheme proposed by the author, with the aim of rethinking the
discretization of the modalities of constitutive heterogeneity, i.e., constitutive in
opposition to shown heterogeneity, including phenomena, which are not strictly
formal among the facts of language taken as unmarked, as it is the case of the
unconscious leaks through the discursive thread. To argue in favor of this “opening”
to another discourse scene we resort to referentiation processes. Those can act as
efficient discourse markers with no need of formal indicators (according to
AUTHIER-REVUZ, 1982). By an analyzes of the signifying chain we intend not
only to investigate the construction of meanings, as stated in LACAN (1990), but
also and necessarily the construction of referents. From the psychoanalytic point of
view there are always linguistic marks, even if they are diversified, because the
“marks” are not, or are not just, those the utterer realizes or supposes to realize, they
can also reveal themselves in a gap in the speech or in an hesitation. Interactions in
the new forms of communication emerged from the electronic media, such as the
chats, were used as a collection of examples. Hence the importance of analyzing the
elaboration of referents, since they serve to construct the various meanings of a text.
We argue that the referent presents clues, which are plausible enough to reach the
marks of heterogeneities in the speech of the subject.
(284 words)
8
SUMÁRIO
1. Introdução... ..................................................................................................................... 11
2. A Linguística da enunciação e as heterogeneidades do discurso... ............................... 17
2.1 A linguística da enunciação ....................................................................... 17
2.2 As heterogeneidades ................................................................................... 21
2.2.1 As primeiras rupturas: discurso direto, discurso indireto, autonímia e
conotação autonímia e conotação autonímica................................................21
2.3 heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva......................27
2.3.1 Os exteriores teóricos: polifonia e psicanálise........................................28
2.3.2 Conotação autonímica..............................................................................34
2.4 As não-coincidências do dizer....................................................................37
3. A interpretação psicanalítica e a heterogeneidade a posteriori....................................44
3.1 O dialogismo Bakhtiano e a noção de outro..............................................46
3.2 Heterogeneidade e referenciação...............................................................49
3.3 Uma heterogeneidade a posteriori na interpretação psicanalítica............54
3.4 Os tropeços de linguagem ..........................................................................66
4 A psicanálise e a influência saussuriana.... ...................................................................... 72
4.1 Lacan com Saussure ..................................................................................... 72
4.2 O signo para Saussure..................................................................................83
4.3 O referente para o signo saussuriano..........................................................86
4.4 Benveniste anunciado.................................................................................89
4.5 Act of excluding – o ato de exclusão do referente.....................................95
4.6 Significado, denotação e referência..........................................................100
5. A referenciação includere – o ato de inclusão do referente ..................................... 104
5.1 A referenciação..........................................................................................104
5.2 A recategorização de desejo......................................................................113
6. Metodologia e análise dos dados. .................................................................................. 120
6.1 Contexto da pesquisa.................................................................................120
6.2 Procedimentos metodológicos..................................................................120
9
6.2.1 Etapas do trabalho .............................................................................120
6.2.1.1 Contribuições para uma abordagem teórica das heterogeneidades
enunciativas...................................................................................................120
6.2.1.2 Contribuições para a relação indissociável entre significante,
significado e referente na cena interpretativa.............................................121
6.3 Critérios de constituição do exemplário ................................................122
6.4 Delimitação e caracterização do exemplário..........................................124
6.5 Categorias de análise................................................................................126
6.6 As novas formas de comunicação ...........................................................129
6.7 Análise dos dados.....................................................................................134
6.7.1 A voz dos outros....................................................................................134
6.7.2 A recategorização de referentes............................................................139
6.7.3 As não-coincidências do dizer..............................................................142
6.7.4 A negação recategorizada......................................................................144
7 Considerações finais. .. ................................................................................................... 206
8 Referências......................................................................................................................210
10
1 Introdução
11
descobridor do inconsciente, Lacan aproveitou as teorizações de Saussure e
Jakobson, no que diz respeito, principalmente, à relação significante/significado e
metáfora/metonímia, respectivamente, para sua argumentação.
E é assim que até hoje muitos psicanalistas reproduzem fielmente a proposta
lacaniana, conforme constata Brito (2005), como se a Linguística toda se resumisse
apenas ao estruturalismo saussuriano com o qual Lacan trabalhou, sem questionar
alguns desses pressupostos linguísticos, nem avançar em direção a abordagens do
texto e do discurso, que têm em conta o uso.
Nosso estudo aponta alguns caminhos que se abrem para pesquisas
psicanalíticas posteriores que almejem pautar-se pelas atuais abordagens de texto,
discurso e enunciação. Settineri (2001) propõe, em sua pesquisa de doutorado,
realizar uma investigação linguística a partir do funcionamento da linguagem, no
decorrer das intervenções do psicanalista – a mesma meta que estamos perseguindo
neste trabalho, mas atendo-se aos mesmos pressupostos estruturalistas que respaldam
a psicanálise lacaniana. Para tanto, o autor se vale da pontuação, da escansão e da
interpretação para mostrar que essas intervenções seguem uma lógica e que
procuram promover a emergência do sujeito do inconsciente, consequentemente
introduzindo o falante na linguagem de seu próprio desejo.
Pensamos que uma das principais constatações de Settineri (2001) foi propor
uma nova forma de heterogeneidade: a que se dá a posteriori. Segundo o autor, a
heterogeneidade a posteriori é inferida por meio de um ato interpretativo, isto é, só
entra em ação a partir de uma intervenção do psicanalista. Através do ato
interpretativo, seria evidenciada a posteriori uma equivocidade na fala do sujeito.
Essa posição equívoca pode ser encontrada nos tropeços de linguagem,
especificamente nos lapsos. Neles, ocorre, geralmente, uma mudança, a troca de uma
palavra por outra, que, como argumenta Settineri, foi ressignificada em função do
cometimento da falha. Aproveitamos este conceito proposto pelo autor, mas
buscamos redescrevê-lo de modo a salientar que, existe não apenas uma
ressignificação, mas uma recategorização do significado inicialmente proferido.
12
Defendemos que, mais do que uma ressignificação, como assevera Settineri, ocorre,
por um outro prisma, uma recategorização do referente, além de processos
metonímicos de associação. Esta tese dá continuidade ao estudo que desenvolvemos,
em nossa dissertação (Cf. Brito, 2005), quando demonstramos que os processos de
referenciação sempre são, de algum modo, analisados numa interpretação, ainda que
a literatura sobre o assunto não explore esse aspecto, e ainda que a própria teoria
psicanalítica não tenha ciência desse procedimento em termos metodológicos. Um
dos nossos propósitos, agora, é descrever algumas dessas marcas linguísticas,
sobretudo as dos processos referenciais e as das heterogeneidades enunciativas, na
interação do enunciador na mídia eletrônica. Como argumentamos na dissertação,
na análise que fizemos da fala do esquizofrênico, os conceitos da Linguística de
Texto auxiliam na descrição científica da escuta psicanalítica.
Paralelamente a isso, abordaremos, em nossa pesquisa, um outro estudo, o de
Thá (2001), que descreveu os atos falhos a partir de um ponto de vista estritamente
linguístico e formal: através da semântica de modelo teórico. Thá afirmou com
Freud que existem um saber e uma verdade implicados em um ato falho. O autor
argumenta que, da perspectiva semântica, um lapso “expressa uma proposição”. O
que ocorre em um lapso é um déficit de saber, uma vez que o sujeito que o cometeu
não tinha consciência de uma outra proposição, que se manifestou por interferência.
Assim, “o lapso nada mais é do que o resultado da interferência entre essas duas
proposições, que indicam posturas distintas em relação a um mesmo fato” (THÁ,
2001, p.42). Isso, de modo particular, mobilizou a atenção de Authier-Revuz, na
medida em que a psicanálise também alega que, atrás da linearidade da emissão por
uma única voz, faz-se ouvir uma pluralidade de vozes, o discurso sendo
constitutivamente atravessado pelo discurso do O/outro. Esses tropeços assinalam a
revelação de um desejo inconsciente, ao mesmo tempo em que são o atestado de um
inconsciente estruturado como uma linguagem.
Também é nosso interesse, nesta pesquisa, mostrar que as formas de
heterogeneidade, num entrecruzamento de vozes do inconsciente, podem ser
13
encontradas em qualquer fala, daí por que exemplificamos com interações do
ambiente virtual, especificamente as dos chats. Consideramos fundamental o fato de
Authier-Revuz articular seu conceito de heterogeneidade enunciativa com o de
descentramento do sujeito em sua palavra, ou seja, várias vozes são sobrepostas,
restando somente ao sujeito uma ilusão normal e necessária para seu funcionamento
psíquico.
Analisaremos, através dos processos interpretativos, as marcas linguísticas do
atravessamento do outro no fio discursivo, tomando como critérios as
heterogeneidades marcadas e as não-marcadas definidas por Authier-Revuz.
Igualmente, seguiremos as heterogeneidades a partir dos processos de referenciação,
tendo em vista que o referente oferece pistas suficientemente plausíveis para, através
dele, alcançarmos as marcas de heterogeneidades na enunciação do sujeito.
Para tanto, trabalhamos com cerca de 30 falas dos sujeitos em interação nos
bate-papos virtuais. Identificamos os pontos mais reveladores, por assim dizer, do
diálogo e os associamos a uma outra cena para, desta forma, proceder a uma
simulação de interpretação, isto é, a uma demonstração de como tropeços do
inconsciente poderiam ser identificados numa sessão psicanalítica por marcas nunca
mencionadas na literatura sobre o assunto.
Tomamos como critérios de análise as marcas de heterogeneidade
identificadas em uma outra cena, aquela em que podemos observar o atravessamento
da voz do inconsciente, embora essas mesmas marcas possam também apontar,
simultaneamente, para outros discursos e influenciar na recategorização de desejos.
Recorremos, ainda, aos processos referenciais, que tomamos como critério de nossa
análise, para localizar os referentes na fala do sujeito.
Na primeira parte de nossa pesquisa, especificamente, no item 2, mostramos
que Authier-Revuz (1982) postula duas formas possíveis de manifestação da
heterogeneidade. A primeira, constitutiva, remete à presença do Outro diluída no
discurso, não como objeto, mas como presença integrada pelas palavras do outro,
condição mesma do discurso. A segunda, a heterogeneidade mostrada, marca o
14
discurso de modo a criar um mecanismo de distanciamento entre o sujeito e aquilo
que ele diz. Esta última forma de heterogeneidade pode ser ainda marcada e não-
marcada. A autora se volta inteiramente para as marcas descritíveis proferidas por
um sujeito que pensa ser dono de seu dizer. Para Authier-Revuz, as marcas só podem
ser identificadas porque o sujeito tem plena consciência de seu ato enunciativo: ele
para, olha, reflete e se distancia do seu dito. No entanto, cremos que outras marcas
podem ser observadas no dizer do sujeito, por isso decidimos, nesta pesquisa, refletir
sobre como essas marcas poderiam aplicar-se ao outro tipo de heterogeneidade,
ligada às vozes do inconsciente.
No item subsequente, abordamos um novo tipo de heterogeneidade, a
heterogeneidade a posteriori, esta conceituada a partir da interpretação realizada
através do ato do psicanalista.
Discutimos, no item 4, os principais conceitos psicanalíticos para mostrar que
através da análise da cadeia significante, chega-se não apenas à construção de
significados, como afirmava Lacan e como se repete amplamente, mas também, e
necessariamente, à elaboração de referentes. Para isso, lançamos mão da discussão
realizada por Bouquet (s/d), De Mauro (1995) , Joseph (1911) e Arrivé (1999) acerca
da concepção de signo saussuriano e o ato de exclusão do referente.
Resenhamos, ainda, no item 5, os conceitos básicos da referenciação e
propomos a recategorização de desejo, para mostrar que os trabalhos que se
ocuparam da recategorização, até hoje, descreveram-na sempre do ponto de vista dos
propósitos argumentativos do enunciador. É o que enfatiza Cavalcante (2004),
quando afirma que as expressões referenciais se prestam não apenas à identificação
de referentes, mas também podem exercer uma função argumentativa valiosa em
certos contextos discursivos. Mostramos aqui que a seleção das expressões pode estar
relacionada não só a esses propósitos, mas também a escolhas que dizem respeito a
uma outra cena, que pode facilmente ser identificada a partir dessas mesmas
expressões linguísticas que servem não somente à comunicação, mas também à
manifestação de um desejo inconsciente que se infiltra na fala do sujeito. A isso,
15
demos o nome de recategorização de desejo, que é aquilo que o sujeito expressa, em
uma outra cena, mais além da comunicação de um discurso. Para tal intento,
utilizamos como exemplário as interações que se processam no ambiente virtual,
especificamente nos bate-papos.
No item 6, descrevemos a metodologia e a análise dos dados. Optamos por não
coletar um corpus, na medida em que nosso objetivo não é elencar as
heterogeneidades ou ainda classificar as ocorrências referencias, mas, sim,
demonstrar que é possível encontrar marcas linguísticas das heterogeneidades que
não se restrinjam a estabelecer relações metaenunciativas e argumentativas, nem
somente sociodiscursivas. Deste modo, entendemos que uma das contribuições
teóricas de nossa tese foi demonstrar que, do ponto de vista psicanalítico e
linguístico-textual, sempre haverá marcas linguísticas, diversificadas que sejam, pois
as “marcas” não são, ou não são apenas, as que o enunciador percebe, ou supõe
perceber, mas aquelas em que se destacam ou não sob a forma de um sobressalto na
fala, ou de um tropeço.
16
2 A Linguística da Enunciação e as heterogeneidades do discurso
17
real de interação, as marcas linguísticas observáveis que inserem na cadeia de um
enunciado a subjetividade do locutor. Para Lopes (2008), o objeto da Linguística da
Enunciação, a qual Flores (2001) defende, está vinculado à dicotomia saussuriana
langue / parole, embora não derive nem de sua negação, nem de sua afirmação
absolutas. Segundo Flores, os fenômenos estudados nas teorias da enunciação
pertencem à língua, mas não se encerram nela; pertencem à fala, na medida em que
só nela e por ela têm existência e questionam a existência de ambas, já que emanam
tanto de uma quanto de outra. Podemos dizer, então, que para o autor a sua
Linguística da Enunciação situa-se na fronteira entre a langue e a parole
saussurianas. Lahud (1979, p.98) mostra exatamente isso quando entende que:
Flores afirma ainda que a Linguística da Enunciação toma para si não apenas
o estudo das marcas formais no enunciado, mas refere-se ao processo de sua
produção, ou seja, ao sujeito, ao tempo e ao espaço. No entanto, critica o fato de que
a Linguística da Enunciação não se centra no estudo das representações do sujeito
que enuncia e, sim, no próprio sujeito - este é objeto de outras áreas de estudo, não
propriamente da linguística. Tomando de empréstimo as concepções de Flores
(2001), Lopes (2008) faz eco com Fonseca (2007) quando afirma que situar-se no
campo da Linguística da Enunciação é tratar o sujeito como a representação que a
enunciação faz erigir em relação a ele e não tomá-lo como objeto de estudo dentro de
determinada teoria.
Ora, situar-se no âmbito da enunciação implica fazer girar a roda da
subjetividade com os riscos aí implicados. Dizer simplesmente que a enunciação se
define como uma reflexão sobre o dizer que é produzido pelo sujeito e não
exatamente sobre o dito, não encerra a questão, pelo contrário, suscita outras
18
reflexões. Esse dito é relevante na medida em que é por intermédio do sujeito que diz
que alcançamos o dizer e, por conseguinte, a enunciação.
Teixeira (2005) é precisa ao dizer que Authier-Revuz se filia a Benveniste, é
influenciada por Bakhtin e se distancia de Ducrot. Concordamos com a autora
quando diz que da obra de Benveniste, Authier-Revuz se aproveita de três pontos
fundamentais: o primeiro é o da propriedade reflexiva da língua, na medida em que
esta se coloca em relação privilegiada entre os sistemas semióticos; o segundo é o
reconhecimento de que há na língua uma ordem própria, sem com isso rejeitar o que
é da ordem do discurso; e o terceiro ponto, que, para nós, interessa particularmente,
é a indicação de que certas formas na língua (pronomes pessoais, performativos,
tempos verbais e delocutivos) são as marcas da presença de uma exterioridade que foi
excluída no ato mesmo da fundação da linguística. Milner (1982) afirma que essas
formas são sinais, na língua, do que lhe é radicalmente outro. Deste modo, a autora
destaca a importância da abertura à exterioridade para os estudos da linguística. Isso,
por si só, já confere um diferenciamento radical entre os pressupostos da Linguísitca
da Enunciação de Authier-Revuz e as outras. Os exteriores teóricos que a autora
convoca são o dialogismo de Bakhtin e a psicanálise lacaniana. Para ela, o campo da
enunciação é marcado por uma heterogeneidade teórica que reconhece como
inevitável a intervenção, na descrição dos fatos da língua, de escolhas estranhas à
linguística como tal, que dizem respeito ao sujeito e à sua relação com a linguagem.
Isto quer dizer que a heterogeneidade, a incompletude, a clivagem, o não-um é
constitutivo de toda enunciação. Segundo Authier-Revuz, um dos modos de rejeitar
a heterogeneidade é o que é representado pelas teorias que diluem o objeto da
linguística ou no social, ou no psicológico, ou no biológico. Outro modo de rejeição
da heterogeneidade seria o do fechamento à exterioridade pela suposição da
autonomia do campo da linguística, e este é o principal ponto em que ela rompe com
Ducrot. Segundo Teixeira (2005), Authier-Revuz critica Ducrot exatamente pela
ausência de explicitação de uma exterioridade teórica para a linguística, o que o faz
19
defender uma concepção intralinguística do sentido, apreendido como uma
representação que um enunciado traz em si mesmo de sua enunciação:
A abordagem ducrotiana promove uma espécie de „proteção‟ do
objeto contra a „contaminação‟ externa, um reforçamento de
fronteiras, que vem restaurar a homogeneização (imaginária) de um
campo que é heterogêneo na sua essência. Authier-Revuz ressalta o
caráter fantasmático dessa pretensão à „pureza linguística‟.
(TEIXEIRA, 2005, p.138)
20
2.2 As heterogeneidades
21
exemplifica com o discurso direto e com o discurso indireto (doravante DD e DI,
respectivamente) as variações morfossintáticas do fenômeno mais amplo do discurso
citado. Vejamos o exemplo:
Dizer {: “...” para o DD
Dizer {: que... para o DI
Authier-Revuz diz que o que, no DI, atesta uma operação de tradução, ou
seja, uma reutilização pelo locutor das palavras de um outro ato de enunciação, cujas
palavras originais foram irremediavelmente perdidas. Teixeira (2005) aponta para o
que essa análise tem de inovadora com relação à visão tradicional da gramática.1
Em seu texto, Palavras mantidas a distancia2, a autora aborda a questão das
aspas, mas sob uma perspectiva que aponta diretamente para o surgimento do outro
no discurso do sujeito. Primeiramente, ela liga ao sinal de distanciamento que o
locutor pode colocar quando escreve. Vale observar aqui que, para a língua francesa
principalmente, as aspas têm dois valores diferentes no seu uso: a autonímia e a
conotação autonímica. Esses termos pertencem ao semioticista Rey-Debove (1978,
p.144) e é dele a famosa frase: tome um signo, fale dele e você terá uma autonímia . E
é dele que Authier-revuz se vale em suas teorizações para definir o seu objeto de
estudo privilegiado, a modalização autonímica.
Por exemplo, em uma frase do tipo A palavra “boneca” tem três sílabas, a
palavra “boneca” é vista como tendo sido mencionada pelo locutor e não usada por
ele, o que configura um caso de autodesignação do signo, exatamente o que
caracteriza a autonímia. No entanto, Authier-Revuz não se restringe a reduzir esse
fenômeno a um emprego especial de menção em oposição ao seu emprego normal,
ou seja, em uso. Para ela, o signo autonímico é um outro, que não o signo em uso e
também não o signo em menção. Na passagem do signo comum ao signo
autonímico, uma transformação ocorre: signo de semiótica simples a um signo de
semiótica complexa, ou seja, nasce um novo signo, homônimo do primeiro.
1
para a gramática tradicional o que é um mero marcador da variação morfossintática que ocorre
na passagem do DD ao DI.
2
Cf o texto no original em francês: Paroles tênues à distance, 1981.
22
Em outros termos, o signo autonímico é um outro signo, mas que apresenta os
mesmos significantes do signo normal – em uso -, aquele que tem significante e
significado, assim como o de Saussure. Assim ilustra Authier-Revuz (1995) o seu
raciocínio com esses exemplos:
(a) Compor é difícil.
3
Cf. Authier-Revuz (1995, p. 30)
4
Observe-se que Authier-Revuz se vale da noção de referente dentro do signo, para propor a
complexidade do significado autonímico e da conotação autonímica.
23
A palavra torna-se objeto do dizer ao mesmo tempo em que é
utilizada: fala-se da “coisa” e simultaneamente da palavra pela qual
se fala da “coisa”, acumulando-se dois empregos: o uso e a menção.
(...) Relativamente à semiótica denotativa que fala do “mundo” (...)
e à semiótica metalinguística que fala do signo via autonímico (...), a
conotação autonímica aparece como uma estrutura em que se
acumulam as duas semióticas, constituindo um modo bastardo em
que se emprega e se cita o signo ao mesmo tempo (...). (TEIXEIRA,
p.142)
(3) Ora, muitas vezes, essa atividade da célula se torna lenta. A pele,
especialmente se for seca ou fina, “estica” e “se marca” por qualquer coisa.
5
Os exemplos fora retirados de Authier-Revuz (1980, 131).
24
É interessante destacar que a maioria dos usos das aspas está ligada a uma
espécie de defesa do enunciador, numa tentativa de preservação de faces. Brown e
Levinson (1987)6 consideram a polidez linguística como um sistema complexo de
estratégias que auxiliam no distanciamento de atos ameaçadores de face, que são
geradores potenciais de conflito na interação. Desta forma, baseados em Goffman
(1975), os autores criam uma nova teoria, denominada teoria da polidez. Esta diz
respeito às estratégias de polidez que são construídas durante a interação com o
intuito de prevenir a ameaça às faces dos interlocutores. Para Leech (1983), a polidez
linguística é uma estratégia de distanciamento conflitual que pode ser mensurada em
termos de níveis de esforço dentro do distanciamento de uma relação conflituosa,
assim como as não-coincidências do dizer. Deixaremos essa discussão para um futuro
trabalho que vamos desenvolver em outro momento. Voltemos para a terceira
classsificação de Authier-Revuz.
6
Para saber mais sobre a teoria da polidez, ver: BROWN, P. & LEVINSON, S. Politeness:
some universals in language usage. Cambrige: University Press, 1987.
25
5. Aspas de ênfase – usadas como forma de ressaltar aquilo que realmente se
quer dizer; funcionam como uma resposta à suspensão de responsabilidade
própria a qualquer colocação de aspas; esse último tipo pode ser substituído
por itálico ou negrito, conforme a autora:
(6) (...) LA CROIX lhe traz as informações, as precisões, os números
graças aos quais você formará uma opinião (“sua” opinião) e graças aos quais você
não se deixará enganar com facilidade.
26
Ao reconhecer que a linguagem emerge num ambiente não-Um, assumimos
que há, na enunciação, marcas linguísticas observáveis desse fenômeno que Authier-
Revuz (1990; 1998; 2004) denominou de Heterogeneidade Enunciativa.
27
diluir, mantendo-se em seu terreno, parece-me que a linguística deve levar em
conta, efetivamente, esses pontos de vista exteriores e os deslocamentos que eles
operam no seu próprio campo” (p.100).
Entendemos que, ao ter apontado para fora dos muros da linguísitica e ter
lançado as bases para uma pesquisa interdisciplinar, recorrendo a outras abordagens
fora de seu campo teórico, a autora já proporcionou a legitimação dos estudos que
trabalham na fronteira entre teorias distintas, como no presente estudo.
Não trataremos das heterogeneidades com o propósito principal de analisar o
atravessamento das vozes do outro, em diferentes discursos, mas com a finalidade de
refletir sobre o aparato teórico-metodológico que Authier-Revuz propõe, ainda que
não desenvolva, para as explicações das vozes do inconsciente.
28
Interressa a Authier-Revuz a abordagem em torno de um sujeito
estruturalmente clivado pelo inconsciente, por outras vozes, diferentes das vozes do
“outro de Bakhtin”:
29
constrói a não ser pelo atravessamento de uma variedade de discursos, as palavras
sendo já “habitadas” por outras e assim ad infinitum. Para Bakhtin (1993), não há
palavras neutras, todas as palavras estão fatalmente carregadas, atravessadas pela
alteridade. Todo discurso se encontra diretamente determinado por uma resposta
antecipada: “Ao se construir na atmosfera do já-dito, ele se orienta tanto para o
espaço interdiscursivo como para o discurso-resposta que ainda não foi dito, mas foi
solicitado a surgir, sendo já esperado” (p.89).
Teixeira (2005) diz, retomando Bakhtin, que somente um Adão mítico,
abordando com sua primeira fala um mundo ainda não posto em questão, estaria em
condições de ser ele próprio o produtor de um discurso isento do já-dito na fala do
outro.
A segunda concepção, à qual Authier-Revuz (1982) recorre, é a de diálogo
entre discursos. Para Bakhtin, o discurso não se constrói a não ser pelo
atravessamento de uma variedade de discursos, as palavras sendo já habitadas por
outras ressonâncias. Qualquer discurso se orienta para o já-dito, para o conhecido,
para a opinião pública. Bakhtin (1993) afirma ainda que todo discurso está também
imediata e diretamente determinado pela resposta antecipada, uma vez que, ao se
constituir na esfera do já-dito, ele se orienta para o espaço interdiscursivo como para
o discurso-resposta que ainda não foi dito, mas foi solicitado a surgir, sendo já
esperado.
Embora Bakhtin tenha se dedicado aos estudos dos efeitos estilísticos
engendrados no discurso literário, pela relação dialógica, não deixa de assinalar que o
fenômeno do dialogismo, em maior ou menor grau, encontra-se manifesto em todas
as esferas do discurso vivo.
Sabemos que a reflexão acerca do dialogismo extrapola o âmbito do estudo das
formas e gêneros literários, tendo muito a dizer às teorias do discurso e do sentido.
Consoante Authier-Revuz (1982), esse conceito faz da interação com o discurso do
outro a lei constitutiva de todo discurso. Esse outro a que Bakhtin se refere não é
30
nem o duplo de uma face a face, nem o diferente, mas é aquele outro que atravessa
constitutivamente o um, aquele que representa uma voz identificada a ideologias.
O outro de Bakhtin é eminentemente oposto ao outro impetrado pela
psicanálise. A psicanálise é trazida para o escopo teórico da autora pela dupla
concepção que apresenta de uma fala fundamentalmente heterogênea e de um
sujeito dividido em sua estrutura. Conforme Teixeira (2005), a palavra, supostamente
capaz de carregar em si uma intenção consciente que possibilita a comunicação
efetiva, frequentemente erra o alvo, tropeçando, falhando, de modo a quebrar a
continuidade lógica do pensamento e dos comportamentos da vida cotidiana. Essas
falhas, geralmente atribuídas ao acaso, estabelecem rupturas no discurso, levando o
falante a interromper o fluxo normal da conversa para pedir desculpas, tentar
reformular, apagar ou diluir seus efeitos.
Esses desvios, nomeados por Freud (1905, 1909) de atos falhos7, que se
apresentam sob a forma de lapsos, falsa leitura, falsa audição, perda, certos erros, etc.
e ainda podem ser detectados através de certos fenômenos psíquicos, como nos
sonhos, nos sintomas neuróticos e nos chistes8. Isso, de modo particular, mobilizou
a atenção de Authier-Revuz, na medida em que a psicanálise mostra que, atrás da
linearidade da emissão por uma única voz, faz-se ouvir uma pluralidade de vozes - a
descontinuidade: o discurso sendo constitutivamente atravessado pelo discurso do
O/outro. Esses tropeços assinalam a revelação de um desejo inconsciente, ao mesmo
tempo em que são o atestado de um inconsciente estruturado como uma linguagem.
O ponto nodal desse fenômeno para Authier-Revuz (1982) é a constatação de
que sempre nas palavras outras palavras são ditas, e é a própria estrutura material da
língua que permite a escuta dessas ressonâncias – não-intencionais, saliente-se - que
rompem a suposta homogeneidade do discurso. Dessa forma, a linguagem é duplicada
em uma outra cena pela própria linguagem, e isso se deixa surpreender na
linearidade, através de rupturas, choques e desvios. E o discurso deixa de ser apenas
7
Cf. exemplos de lapsos relatados por Freud no item 4 que trata da psicanálise.
8
Freud dedicou dois livros inteiros aos tropeços de linguagem: A psicopatologia da vida
cotidiana, de 1901, e Os chistes e sua relação com o inconsciente, de 1905.
31
explícito, e passa a ter o peso de um Outro, que ignoramos, ou recusamos, aquele cuja
presença permanente emerge sob a forma de uma falha.
Authier-Revuz (1982) diz que não há discurso próprio ao inconsciente; é na
fala normal que ele incide e insiste. O trabalho do inconsciente se faz na
materialidade da língua, sendo aí que a interpretação9 psicanalítica tem lugar:
Essa questão não pode ser tomada, estabelecendo-se uma relação de
transparência, ou seja, não se trata, para o analista, de produzir uma
tradução-comentário das palavras do paciente para chegar a um “sentido
oculto”, mas de um trabalho de escuta que se efetua sobre a materialidade
da fala. (p.127)
9
Ver o item 4, em que discutimos a interpretação.
32
O que interessa à teoria da heterogeneidade enunciativa quanto aos
pressupostos de Lacan (1985) é o fato de ele situar o inconsciente como lugar de um
saber constituído por um material linguístico em si mesmo, desprovido de qualquer
significação, como sendo a própria história do sujeito: constitutivo dele, portanto.
Para o autor, o inconsciente é esse capítulo da “minha história” que é marcada por
um branco ou ocupado por uma mentira: isto é, o capítulo censurado. Mas a verdade
pode ser reencontrada; o mais das vezes ela já está escrita em algum lugar.
O inconsciente não é uma estrutura profunda, não revelada, de um consciente
que está aí de modo evidente como uma face visível de um inconsciente oculto.
Sendo assim, é a superfície mesma da língua que permite, através da linearidade de
uma cadeia, a inscrição, pelo que tropeça, dessa outra cena, e não é por um simples
reflexo que isso se processa.
Segundo o autor, não há verdade e significação possíveis fora do campo da
linguagem. O discurso do Outro é teorizado como sendo uma cadeia de elementos
discretos, que, para se fazer reconhecer, insistem de modo a interferir nos cortes
oferecidos no discurso, constituindo um sintoma, o qual se resolve inteiramente
numa análise de linguagem, porque ele próprio é estruturado como uma linguagem,
que ele é linguagem cuja fala deve ser libertada10, conforme afirma Lacan (1985).
Para a psicanálise, a fala, principalmente o falar de seu sofrimento, de suas
angústias, etc. o falar em análise, provoca o desenrolar de associações que acabam
culminando em pontos críticos da vivência do paciente. Estas associações envolvem
situações dolorosas e, na maioria das vezes, sintomáticas como, por exemplo, o
desenvolvimento de gastrites, asmas, enxaquecas e muitos outros tipos de sofrimento
físico. Através de sessões clínicas, o paciente pode vir a se “libertar” de alguns de seus
sintomas, todavia, isso não é uma regra e muito menos uma promessa de cura. Freud
(1890), no início de seus atendimentos clínicos a histéricas, chegou a denominar a
psicanálise de „talking cure‟ , ou seja, cura através da fala, demonstrando, desta
forma, a importância da fala para a psicanálise.
10
Cf. o exemplo do p‟tit soldats mais adiante.
33
Os exteriores teóricos convocados por Authier-Revuz, dialogismo e
psicanálise, trazem essencialmente a ideia de que todo discurso se mostra atravessado
pelos outros discursos e pelo discurso do Outro.
34
Em 7, a enunciação é realizada em uma língua e, num momento pontual da
enunciação, o sujeito introduz uma outra língua, por meio da qual evidencia-se o
outro estrangeiro, para explicitar o termo original e, a um só tempo, proteger-se de
possíveis imprecisões de sentido. O rompimento da cadeia enunciativa por meio de
parênteses e a marca linguístico-formal empregada caracteriza a heterogeneidade
mostrada marcada. A marca, que nesse caso são as aspas, poderia ter sido outra, como
itálico ou negrito.
Já em 8, consoante a interpretação de Fonseca (2007), dá-se uma ocorrência
na escrita do que seria na oralidade um lapso de língua, ou um ato-falho. Segundo
Authier-Revuz (1982), casos assim não possuiriam qualquer marca formal, o que os
caracterizaria como um tipo de heterogeneidade mostrada não-marcada.
Objetar-se-á que o co-texto imediato e o contexto discursivo são
uma marca da heterogeneidade, no entanto, cremos firmemente
que, quando Authier-Revuz aborda as heterogeneidades, reporta-se
ao que é efetivamente dito, isto é, ao conteúdo enunciado e não ao
que se pretendia enunciar. É evidente, pelo contexto, que a
intenção do sujeito-enunciador era utilizar a palavra escopo e não
esgoto, mas o que foi dito - e justamente por isso se instaura a
heterogeneidade - foi esgoto, uma outra palavra, de um outro
contexto, pretendida por outras razões, que se apresenta, como no
jogo oportunista do inconsciente, o qual espera o sujeito distrair-se,
num momento preciso de enunciação, para tomar-lhe a palavra.
Exatamente por ser um processo inconsciente é que não há marcas,
pois o sujeito, em princípio, não percebe que teve sua enunciação
“invadida” por uma outra voz que não era a sua. (p.150, grifos
nossos)
35
Diferentemente da análise que realiza Fonseca, nestes exemplos, acreditamos
que o advento do inconsciente se deixa revelar por marcas. Além disso, estamos
propondo que o sujeito fazedor do lapso não é completamente alheio ao seu produto,
pelo contrário, segundo Thá (2001), existe, além de uma verdade relativa ao desejo
do sujeito, no cometimento do lapso, um saber sobre esse mesmo desejo, isto é, não
há inocentes para o que é da ordem do inconsciente. Embora Authier-Revuz não
trate analiticamente dessas marcas textuais, examinaremos na análise de nosso
exemplário as heterogeneidades que escapam da fala do sujeito no momento de sua
enunciação.
Para a autora, as formas de heterogeneidade mostrada representam uma
negociação obrigatória do sujeito falante com a heterogeneidade que o constitui e
que ele tem necessidade de desconhecer. E essa negociação assume a forma de uma
denegação11, na qual, segundo Settineri (1997), a emergência pontual do não-um é
mostrada e ao mesmo tempo obturada, isto é, o sujeito movido pela ilusão,
necessária, de ser o centro de sua enunciação, e ao mesmo tempo impossibilitado de
escapar da heterogeneidade que o constitui, abre, em seu discurso, espaço para o não-
um, por um processo que procura mostrar como homogêneo o que é heterogêneo em
sua essência.
Authier-Revuz vai se deter nessa problemática da dupla heterogeneidade sob
a forma das não-coincidências. O modo pelo qual se manifesta a negociação do
sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva é estudado por ela através da
modalização autonímica12, que é a propriedade de reflexibilidade da linguagem, a
11
Para Freud a denegação consiste em um pensamento oriundo do que foi recalcado, ou seja, do
que foi reprimido pelo sujeito, que ascende à consciência sob a forma de uma negação. O que
está em jogo na denegação é o ato de o paciente expressar um pensamento ao mesmo tempo em
que o nega veementemente. Freud observa que ao negar o paciente já está acolhendo na
consciência a ideia que foi rechaçada da consciência, muito embora ele não reconheça o vínculo
afetivo ligado ao pensamento negado. Por exemplo, quando o paciente, em determinado
momento de sua análise, diz: “eu não odeio a minha mãe”, ao proferir a sentença na forma
negativa o paciente permite que o conteúdo representacional da ideia incompatível com a
consciência possa se manifestar, na medida em que o afeto foi separado de sua representação
sob a forma de denegação, por isso a denegação é um mecanismo de defesa. Ao negar a
firmação, a ideia é revelada e o afeto mantido afastado da consciência. (Para saber mais sobre
este assunto, conferir o artigo de Sigmund Freud A negação, de 1925.)
12
Para aprofundar mais esse tema, ver a tese completa de Authier-revuz (1995)
36
capacidade que ela tem de ser sua própria metalinguagem. A autora mostra que as
formas da modalidade autonímica dividem a enunciação em dois territórios:
1. O do emprego standard das palavras, o território da coincidência;
2. O da inquietude crítica, que sente um problema e em função disso não
pode deixar a palavra funcionar sozinha, o território da não-coincidência.
Para Teixeira (2005), essas formas remetem à negociação obrigatória dos
enunciadores com as não-coincidências ou as heterogeneidades que,
constitutivamente, atravessam o dizer, representando, então, um ponto de não-um,
um ponto problemático na produção do sentido. Chegamos, assim, ao estudo de
Authier-Revuz (1990) que trata das não coincidências do dizer no fio discursivo.
13
Opacificação enunciativa é um dos efeitos provocados pela modalização autonímica que
consiste em uma demonstração de que o sentido da enunciação em curso não é óbvio, isto é, não
é transparente a(o) sujeito(s)-enunciador(es). Em outras palavras, tome uma enunciação e fale
dela e teremos uma opacificação enunciativa. Rey-Debove (1978) apresenta esse princípio com
o signo linguístico em si e diz, ao pé da letra: “tome um signo, fale dele e temos uma
opacificação”.
37
mobilizam duas bases teóricas distintas que, rigorosamente, não se relacionam,
somente se justapõem.
As bases apoiam-se no dialogismo bakhtiniano e na interdiscursividade de
Pêcheux, e ainda no discurso teórico da psicanálise freudo-lacaniana. Esses tipos de
enunciados possuem vários formatos linguísticos e apresentam diversas funções
discursivas.
As modalizações autonímicas são descritas como fatos de não-
coincidência, e a heterogeneidade é um princípio constitutivo da linguagem;
desta forma, as não-coincidências do dizer constituem uma das maneiras de essa
heterogeneidade se materializar. Vamos a elas:
38
3. Não-coincidência entre as palavras e as coisas, posta em jogo em glosas
que representam as pesquisas, hesitações, fracassos, êxitos, na produção da
“palavra certa”, plenamente adequada à coisa. Por exemplo, em: X, por assim
dizer; X, maneira de dizer; como eu diria? X; X, melhor dizendo, Y; X, não, mas
eu não encontro palavra; X, é essa a palavra; não há palavra; X, não existe outra
palavra; etc.
4. Não-coincidência das palavras com elas mesmas, em glosas que
designam, como uma recusa (por especificação de um sentido), ou ao contrário da
aceitação (por sua integração ao sentido) dos fatos de polissemia, de homonímia,
de trocadilho, etc., como em: X, em sentido próprio, figurado; X, não no
sentido...; X, nos dois sentidos; X em todos os sentidos do termo; X, é o caso de
dizê-lo, se ouso dizer; etc.
Vemos, desta forma, que a classificação da autora se volta inteiramente
para as marcas descritíveis proferidas por um sujeito que pensa ser dono de seu
dizer, ou seja, o sujeito, ao se deparar com a não-coincidência de seu dizer, se
volta para ele e faz um ato de reflexão-metaenunciativa. Para Authier-Revuz, as
marcas só podem ser identificadas porque o sujeito tem plena consciência de seu
ato enunciativo: ele para, olha, reflete e se distancia do seu dito. No entanto,
cremos que outras marcas podem ser observadas no dizer do sujeito, uma vez que
essa classificação, como podemos constatar, foi elaborada para uma
heterogeneidade relacionada ao outro e não ao Outro. Nesta pesquisa,
refletiremos sobre como essas marcas poderiam aplicar-se ao outro tipo de
heterogeneidade, ligada às vozes do inconsciente.
Consoante Authier-Revuz (1994), a utilização dessas formas
metaenunciativas é como uma costura aparente no tecido do dizer, visando a
obturar a falha constitutiva do sujeito. A autora privilegia as formas marcadas,
diretamente observáveis no fio do discurso: discurso relatado, retomadas,
reformulações no espaço de uma intertextualidade.
39
Cabe, aqui, esclarecer que, para Authier-Revuz, marca é sempre uma
marca de um outro que vem dobrar o mesmo, não pode ser tomada como
evidente, pois existe um processo de negociação em curso. Essas marcas não
têm o mesmo estatuto, segundo a autora, mas estão situadas numa escala que
varia de um grau maior a um grau menor de explicitação no fio discursivo.
Authier-Revuz (1998) desmembra os quatro tipos de não-coincidências
mostrados anteriormente em seis conjuntos de formas e alinha-os numa escala
que vai do que está linguisticamente marcado ao que depende estritamente da
interpretação. São elas:
40
13. Ele tinha muito disso, como é que vocês chamam?
14. As sociedades beneficentes organizam jogos e concursos para animar sua
clientela, como dizem vocês.
d) Formas sem elemento autonímico ou sem elemento metalinguístico
unívoco: X, quer dizer, Y...
Contrariamente aos anteriores, esse conjunto de formas pressupõe elementos
contextuais e interpretativos. Ele se caracteriza pela presença de expressões
destinadas a comentar, explicar, retificar outras expressões: isto é, ou seja, quer
dizer, para não dizer, eu ia dizer, se posso dizer, enfim...
15. Essa noção de exportação já está ultrapassada; a globalização, quer dizer,
a difusão das atividades da empresa para todo o mundo (...)
16. As coisas se complicam no final da competição, enfim, se confundem.
14
O conceito de interdiscurso, para Orlandi (2003), compromete a transparência antes conferida
aos discursos, de vez que é entendido enquanto memória discursiva, ou seja, como um conjunto
de já-ditos que sustenta, irremediavelmente, todo e qualquer dizer e que retorna sob a forma do
pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra.
41
Queremos mostrar que essa escala só se aplica a marcações de percepção
consciente, do equívoco, ou do que poderia parecer ao destinatário um equívoco.
Entendemos que, mesmo que o sujeito não se dá conta do seu dito, como no exemplo
do lapso do esgoto, mostrado anteriormente, há um saber implicado neste tipo de
enunciação e em outras semelhantes. Para Authier-Revuz, esses tipos de
heterogeneidade não são passíveis de análises descritíveis porque são não-marcados
em sua constituição.
Todavia, pensamos que, se a enunciação carrega um saber, então existe
consciência nesse dito, e isso já autoriza a identificação de uma marca, embora não
seja, necessariamente, o tipo de marca a que a autora se refere, com assinalações
tipográficas, ou com expressões autonímicas, de conotação autonímica ou de
modalização autonímica. Diremos que sempre haverá um tipo de marcação, pois,
afinal, é justamente essa marca de significante que salta que está na base dos estudos
psicanalíticos freudo-lacanianos. Acrescentamos, mais uma vez, que tais marcas
apenas permitem o início do processo de interpretação, que se construirá dentro de
uma outra cena, que leva sempre em conta a relação inseparável entre significante,
significado e referente. A escala da autora talvez só se aplique, então, a marcações de
percepção, consciente, do equívoco, ou do que poderia parecer ao destinatário um
equívoco. Nosso desafio é reconsiderar como seria essa escala na hora da pontuação
do analista.
Essa gradação alimentada pela autora, nas formas da modalização
autonímica, as quais se situam numa escala que vai das formas explícitas, passa pelas
formas marcadas menos explícitas, até chegar a um nível que não deixa marcas e que
depende essencialmente de um gesto interpretativo. Teixeira (2005, p.165) entende
que
42
Revuz e Pêcheux, ou seja, é por ele que se pode entender as
observações da autora ao domínio discursivo.
43
3 A interpretação psicanalítica e a heterogeineidade a posteriori
15
Expressão colhida de Reik (1948) para a escuta psicanalítica: “o analista ouve não apenas o
que está nas palavras; ele ouve também o que as palavras não dizem. Ouve com o „terceiro
ouvido‟, ouvindo não só o que o paciente fala mas também suas próprias vozes interiores, aquilo
que emerge das profundezas de seu próprio inconsciente. É mais importante [para o analista]
reconhecer o que a fala oculta e o que o silêncio revela”. (Reik, 1948: 125-126)
44
ouvidos para não ouvir, ou, dito de outra maneira, ouvir só o que deve ser ouvido,
pois não existem nem terceiro, nem quarto ouvidos para uma transaudição direta do
inconsciente.
Também não podemos conceber a escuta psicanalítica do discurso como um
comentário ou uma interpretação, como a escuta de um “a mais”, a partir daquilo
que foi dito.
Para Authier-Revuz (1982), a língua é o lugar por excelência da interpretação
psicanalítica, não se tratando, por conseguinte, de passar de um sentido manifesto ao
latente através de uma explicação verdadeira do enunciado, mas de um trabalho que
é de corte, de pontuação, de colocação em eco, e que se efetua sobre a materialidade
da cadeia falada. Authier-Revuz (1982), apesar de se referir à relação
especificamente psicanalítica, ou seja, aquela que se dá em transferência, sustenta
que a língua é sempre a mesma tanto para o psicanalista como para o linguista, pois
ambos estudam a língua em seu funcionamento: “se a situação analítica é anormal, a
língua é a língua normal, não uma língua analítica” (p.55).
Segundo a autora, o trabalho do inconsciente, incidindo na materialidade da
língua, estaria presente já desde Freud quando este apontou os tropeços da
linguagem como um rico material interpretativo. Para ela, baseando-se em Lacan
(1979), o trabalho psicanalítico vem a ser a escuta dos significantes, que consiste na
busca de um significante escondido, e não de um significado conscientemente
pretendido, convencionado, para se chegar ao sentido do desejo.
O trabalho interpretativo de análise seria levar a ouvir ao mesmo tempo as
diferentes vozes do discurso, mesmo que habitualmente dissonantes. Por isso,
Authier-Revuz afirma que todo discurso é polifônico, daí conceber o discurso como
sendo atravessado pelo discurso do Outro e por outros discursos. Assim, a autora
entende que a alteridade é condição constitutiva de todo enunciado, e o sujeito que
fala não é a única fonte de seu dizer, conquanto lhe seja necessária essa ilusão.
45
3.1 O dialogismo Bakhtiniano e a noção de outro
46
Espíndola (2004), o que Bakhtin denominou de discurso bivocal seria o discurso do
outro em nossa fala, somado ao nosso conhecimento prévio, de modo que não mais
seria o discurso do outro nem o nosso discurso, mas a soma dos dois.
Por um prisma psicanalítico, Lemaire (1988) postula que essa
heterogeneidade – para usarmos o termo da Linguística da Enunciação, repetido pela
Análise do Discurso – não se reduz ao dizer explícito nem apenas às vozes de outros
discursos; na verdade, o discurso carrega com ele o peso do outro de nós mesmos,
aquele que nós ignoramos ou recusamos.
Para Clément (1973), há continuamente um “avesso do discurso”, ou seja, o
avesso seria a pontuação do inconsciente. Não é um outro discurso, mas o discurso
do Outro, isto é, o mesmo tomado em seu avesso.
Vale lembrar que, na teoria psicanalítica, especificamente a lacaniana,
encontramos dois “outros”, isto é, um pequeno outro, grafado como um “a”
minúsculo e um grande Outro, grafado com um “A” maiúsculo, também chamado de
Outro. O pequeno outro é o nosso próximo, é aquele a quem nos dirigimos no dia-a-
dia e que está pressuposto, ou muitas vezes posto, marcado em qualquer discurso; é
esse outro de que se fala em Linguística de Texto, em Análise do Discurso e em todas
as abordagens sociointeracionistas. Para Lacan (1998), esse “outrinho” é repleto do
imaginário, é o nosso semelhante a quem dirigimos nossa demanda de atenção,
reconhecimento, afeto, etc. Já o grande Outro, por sua vez, é aquele para quem nos
voltamos sem saber exatamente a quem, na medida em que ele está presente em toda
a nossa constituição psíquica simbólica, desde o nascimento até depois da morte.
Settineri (2001) afirma, com Cadeau (1998), que o Outro é o lugar onde depositamos
as questões relativas à nossa existência, à sexualidade, à procriação e à morte.
Portanto, o Outro não é o inconsciente – como equivocadamente se afirma em
alguns estudos linguísticos –, ainda que tenha um pé lá, mas uma instância psíquica
que assume vários lugares ao longo da vida do sujeito. É para esse Outro que,
inconscientemente, nos dirigimos e, nessa relação com ele, deixamos escapar nossos
desejos, a nosso ver, de algum modo marcados na linearidade da fala.
47
Authier-Revuz (1982) pondera que o Outro não é um objeto ou um ser
(exterior do qual se fala), mas uma condição (constitutiva) para que se fale do
discurso de um sujeito falante que não é fonte primeira desse discurso:
48
que todo discurso se constitui, pois, de acordos, recusas, conflitos, compromissos por
meio de outros discursos.
49
Costa (2001, p 89) diz que é o próprio movimento enunciativo do sujeito
sobre sua própria enunciação:
É todo um movimento enunciativo de retorno do sujeito à sua
própria enunciação, que, ao mesmo tempo, representa a
consciência do sujeito falante da inconsistência de seu discurso e,
por outro lado, a ilusão de que ele pode recuperar, reconstituir sua
enunciação desintegrada pela heterogeneidade constitutiva.
Movimento contraditório, pois ele mesmo quebra a unidade do
sujeito, na medida em que este passa a se ver como outro e a ver
com os olhos de outro(s) seu próprio discurso.
A autora acrescenta que, por meio do discurso direto, cria-se a ilusão de dar
significativo espaço à voz do outro. As aspas em “mais eficiência” apontam para uma
separação do eu, enunciador do jornal em relação ao outro, no caso, Lula.
50
Segundo Charaudeau e Maingueneau (2004), o co-enunciador pode
identificar as formas não-marcadas de heterogeneidade pelo discurso indireto livre,
por alusões, ironia, pastiche, etc.
Lopes (2008) chama a atenção para a familiaridade entre as heterogeneidades
marcada e não-marcada de Authier-Revuz e para as relações intertextuais explícitas
e implícitas feitas por Piègay-Gros (1996), na medida em que as autoras estabelecem
um caráter explícito e não-explícito para a intertextualidade.
Cavalcante (2006), no entanto, argumenta que toda intertextualidade se
revela por alguma marca, na medida em que o enunciador possui a consciência do
ato comunicativo que pretende realizar, daí a hipótese da autora, desenvolvida por
Lopes (2008), se pautar pelo reconhecimento de marcas diferentes de manifestação
das heterogeneidades - é o que Lopes chama de diferentes “graus de mostração”, que
vão desde os mais explícitos até aos menos explícitos, mas, todos mostrados, e isso
vai em contraposição à ausência de marcas textuais proposta por Piègay-Gros e por
Authier-Revuz. Lopes (2008) estende essa hipótese a todos os modos de
heterogeneidade mostrada, e reivindica que eles sempre apresentam algum tipo de
marcação. Desta forma, desconstrói o quadro classificatório de Authier-Revuz em
que esta faz uma separação entre as suas heterogeneidades: mostrada não-marcada.
Também fazem coro a essa posição os estudos de Jaguaribe (2005) e de Ciulla
e Silva (2005, 2008), para quem toda heterogeneidade mostrada é sempre marcada: o
que muda são apenas as marcas linguísticas:
51
As pistas linguísticas que costumam ser associadas à marcação de outras vozes
são, de fato, as citações, o discurso direto ou indireto, as aspas etc. Todavia, dizemos,
com Ciulla e Silva, que outros recursos linguísticos podem denunciar a
heterogeneidade mostrada e que um deles são os processos referenciais.
52
de dêixis que podem indicar a presença de outras vozes. (CIULLA
E SILVA, 2005, p.49, grifos nossos)
É importante para nossa pesquisa notar o modo como Ciulla e Silva (2008)
trata as heterogeneidades de Authier-Revuz. Numa análise voltada exclusivamente
para aspectos sociodiscursivos, Ciulla e Silva analisa as heterogeneidades não-
marcadas a partir dos processos referencias e ressalta que ocorre uma ancoragem
enunciativa sinalizada pelos processos dêiticos:
(20) Ela tem três filhos. Ela conduz e administra tudo aquilo com
uma atividade febril; impiedosamente, ela vai e vem: vestindo um,
banhando o outro, enfiando um chapéu neste rostinho, uma touca
neste pedacinho de cabeça, reformando calções, passando vestidos,
assoando o nariz deste, limpando aquele. (p.117)
53
caminhou para a porta. Antes de abri-la e sair, enxugou os olhos.
Não queria que o vissem assim. (Rubens Fonseca, Betsy) (p.117)
54
na referenciação textual-discursiva, mas que se recria na cena da interpretação
psicanalítica.
O heterogêneo a posteriori só pode ser inferido por meio de um ato de
interpretação, no só depois:
Eis aqui uma das maneiras em que pode ser pensada uma
heterogeneidade “generalizada”, nos pontos em que, a princípio, não
poderia ser caracterizada uma forma marcada de heterogeneidade, mas
nos quais, posteriormente, por meio de um ato de interpretação, seria
evidenciada uma posição equívoca. (SETTINERI, 2001, p.36)
55
ou de vários, além do manifesto, apresentado em um sonho, um ato falho, um lapso
e até mesmo em uma parte qualquer do discurso. Nesta tese, estamos acrescentando
a essa constatação que não é apenas um sentido novo que se constrói a posteriori,
mas também um referente novo, que não se desgarra de significantes e significados.
É para essa construção sígnica completa, incluindo o referente, que a psicanálise
lacaniana precisa atentar, para poder reconhecer que os postulados de Lacan sempre
consideraram o uso e, portanto, necessariamente, atrelaram a supremacia do
significante a seus significados e referentes correlatos.
É com base nesse pressuposto de heterogeneidade a posteriori que Settineri
(2001) investiga a sua grande hipótese, qual seja: as intervenções psicanalíticas de
pontuação, de escansão e de interpretação mudam o significado daquilo que foi dito.
A essa visão, acrescentaremos aqui: mudam também as referências construídas.
17
grifos nossos.
56
que ele teria de ficar mais magro. Começou, pois, a levantar-se da
mesa antes de servirem a sobremesa e apressar-se pela rua, sem o
chapéu, sob o calor ofuscante do sol de agosto; a seguir, também,
subiu com pressa uma montanha, até parar, forçado e vencido pela
transpiração. Certa época, suas intenções suicidas de fato
emergiram, sem disfarce, por detrás dessa mania de emagrecer:
quando se encontrava à beira de um precipício profundo, recebeu a
ordem de saltar, o que sem dúvida significaria sua morte. Nosso
paciente não seria capaz de imaginar explicação alguma para esse
comportamento obsessivo sem nenhum sentido, até que, de
repente, ocorreu-lhe que, ao mesmo tempo, também a sua dama
estava veraneando na companhia de um primo inglês, que era
muito solícito para com ela, e de quem o paciente estava muito
enciumado. O nome desse seu primo era Richard, e, conforme o
uso coloquial na Inglaterra, tinha o apelido de Dick. Nosso
paciente, então havia desejado matar o Dick; tinha estado muito
mais enciumado e enraivecido em relação a ele do que podia
admitir para si mesmo, e isso foi a razão por que se impusera esse
emagrecimento mediante uma punição. (p.99)
18
Conforme o dicionário: dick Adj 1 gordo, corpulento, obeso, forte, grosso, volumoso. 2
espesso, denso, compacto.
57
trabalho analítico entra em cena: depois de fazer a relação entre os dicks, o
significante tornou-se acessível ao sujeito, pois se relacionou a seus referentes e
sentidos:
Se ele é inacessível, é porque existe e possui uma forma. Entretanto,
as tentativas obsessivas de emagrecer só se esclarecem após a
operação freudiana de interpretação das cadeias associativas. Foi o
trabalho analítico que reuniu dick e Dick. O significado não estava
dado de maneira nenhuma. (SETTINERI, 2002, p.256)
58
É precisamente neste ponto da caracterização do processo interpretativo que
discordamos de Settineri, ou melhor, que somamos à explicação do autor o
entendimento de que esse novo sentido é dado pelo uso da palavra no momento real
de interação com o outro. Nesse caso, além da construção de novo sentido, há,
inegavelmente, a criação de um novo referente, constituído no momento do
desenrolar de uma sessão clínica e, portanto, dentro de uma outra cena. Queremos
dizer com isso que, diferentemente do signo em Saussure, que exclui o referente, o
signo para a psicanálise só pode ser pensado sem equívocos se tiver em conta a
relação com o referente no momento mesmo da interação, do uso, como aconteceu
no caso de un p‟tit soldats. Entendemos que o comando da mãe que dizia: um p‟tit
soda, sofreu uma ressignificação, e diríamos mais, uma recategorização e se
transformou em p‟tit soldats. Essa recategorização só foi construída no momento
mesmo da análise em que o paciente narrou a sua lembrança de infância ao analista.
Temos, então, uma marca (de heterogeneidade) da presença do Outro no discurso. O
paciente que, até o momento tinha absoluto domínio de seu dizer, a necessária ilusão
de completude que todos têm, descobre uma outra voz, de uma outra cena,
atravessando o seu discurso. Defendemos, deste modo, que os processos referenciais,
mostrados no exemplo, como materialidade linguística, podem ser compreendidos
como marcadores de fatos de heterogeneidade. Trataremos essa discussão no capítulo
subsequente de nossa pesquisa.
Desta forma, Settineri (2001) aponta para a importância dos recortes das
unidades no processo de interpretação. Como observa o autor, o mecanismo de
escansão não é novidade, uma vez que Saussure já havia afirmado que distinguir
unidades é um momento interpretativo. Para Saussure (s/d), a unidade consiste em
um trecho de sonoridade, que é, a exclusão daquilo que o precede e daquilo que se
segue na cadeia falada, o significante de um certo conceito. A diferença entre as
afirmações de Saussure e de Settineri residiria no tipo de recorte de unidades
significativas: enquanto, na linguística, se analisa uma escansão das unidades na
linearidade textual, supondo segmentos já convencionalmente discretizados, na
59
psicanálise se realiza uma escansão diferente, que permite, inclusive, juntar parte de
uma palavra ou expressão com parte de outra, reconstruindo significados a partir da
escuta do inconsciente.
Settineri (2001) examina alguns aspectos da questão das entidades da língua,
especificamente o dos recortes das unidades. O autor procura mostrar, a partir,
sobretudo, de exemplos de ditos espirituosos, a importância dessa operação no que se
refere ao processo interpretativo. Evocando Saussure, o autor afirma que o recorte
das unidades é um momento da interpretação: “O recorte, ou melhor, o corte, que
pode fazer surgir o sujeito do inconsciente, possui a dimensão do ato. E não é nem
simples, nem imediatamente dado. É o corte, entretanto, que faz as unidades”.
(SETTINERI, 2001, p.78)
Para ilustrar a ideia dos recortes das unidades, Settineri examina, dentre
outros, um chiste relatado por Freud (1905), de Joseph Unger, que tratava de um
determinado contemporâneo seu: “eu viajei tête-a-bête19 com ele”. Neste enunciado,
podemos localizar o sujeito do inconsciente na substituição. Prepara-se o ouvinte
para escutar tête-a-tête, e é essa proposição que vai entrar na cadeia associativa,
como possibilidade de se entender a frase dita. Settineri (2001) revela que a
intromissão, não do “b”, mas do bête, na posição do segundo tête é que irá nos
indicar que o locutor estava chamando o companheiro de viagem de besta. No
entanto, não se trata de uma simples combinatória de letras, qualquer outra
substituição literal não provocaria o mesmo efeito:
“Tête-a-bête” evoca um raciocínio por analogia, ou de quarta
proporcional, onde: “eu/tête”, assim como o “outro/bête”. Também
concorre para isso o fato de se substituir, em uma expressão fixa, um dos
elementos identificáveis de que se compõe por um outro: a expressão fixa
é recortada e interpretada, para depois ser alterada por analogia.
(SETTINERI, 2001, p.70)
19
Tête-a-tête expressão francesa que em português significa: face a face, frente a frente; bête
quer dizer besta, abestado, o abestado é tipicamente cearense, sem registro no Aurélio burro.
60
referente de besta naquela situação específica de uso. É para esse tipo de escansão,
que gera uma ressignificação, que chamamos a atenção nesta discussão teórica, a fim
de demonstrar que, neste processo, é imprescindível falar também da efetivação de
um processo recategorizador de referentes durante a interpretação. Cremos ainda,
que a própria condição do chiste, nesse caso, a troca de uma letra por outra, pode ser
pensada com um mecanismo formal de marcação da presença do outro no fio
discursivo.
Freud (1905) observa que, se este chiste fosse reduzido para o que ele
claramente significa, qual seja: “viajei com X tête-a-tête, e X é uma besta”, o dito
espirituoso não existiria, uma vez que o chiste emerge se se omite “besta”, e, em sua
substituição, o “t” de uma das “tête” converte-se em “b”. De modo que, com essa leve
modificação, e apesar dela, a palavra “besta” suprimida encontra expressão. Freud
chama esse tipo de chiste de “condensação acompanhada de leve modificação”
(p.39).
Um outro exemplo interessante dado por Settineri (2001) para sua
argumentação é o de um famoso chiste de Heine, relatado igualmente pelo
descobridor do inconsciente, envolvendo o neologismo “familionário”
(“famillionär”).
Freud (1905), na análise que faz deste chiste, diz haver uma condensação
acompanhada pela formação de um substituto. A formação do substituto consiste na
produção de uma palavra composta, daí o termo alemão Famillionär
(familionariamente). Essa palavra composta, que não encontra registro na língua,
61
mas é imediatamente compreendida em seu contexto e reconhecida como plena de
sentido, é o veículo do efeito compelidor do riso: “E não pode haver dúvida de que é
precisamente dessa estrutura verbal que dependem o caráter do chiste como chiste e
o seu poder de causar riso” (p.31/32).
Settineri (2001), baseando-se na análise que Freud faz, acrescenta que neste
caso existe a possibilidade de serem recortados dois enunciados que contrastam e
podem se desmentir: familiar/milionário, de forma que poderíamos desdobrá-lo da
seguinte maneira:
1. R. me tratou como a um dos seus, de um modo inteiramente familiar;
2. R. me tratou como um dos seus, de um modo inteiramente milionário, isto é,
como um milionário pode tratar uma pessoa pobre.
O efeito do dito espirituoso é dado pelo contraste evocado pelas diferentes
leituras, pelos diferentes referentes que emergem e pelas relações que se pode operar
entre elas. Por isso, Settineri, em sua análise deste exemplo, diz que este enunciado
faz surgir, no ouvinte, uma dificuldade de interpretação, resolvida somente pela
convivência de mais de um recorte possível, sendo que o segundo recorte, “Rotschild
me tratou como um milionário”, desmente o primeiro: “Rotschild me tratou como
um familiar”.
No caso do chiste de Heine, estão sendo ditas duas coisas, ou seja, há dois
enunciados possíveis, já apontados anteriormente, comandados cada um
deles por uma das leituras em questão. A intromissão do familionário
duplica a unidade (a frase tomada como unidade), não se trata ele mesmo
de uma unidade concreta da língua. E a leitura que contém milionário, a
segunda leitura possível, vai se interpor como um desmentido da que
seria esperada, preparada pelo restante do sintagma. (SETTINERI, 2001,
p.72)
62
desdobramentos para a captura de seu sentido, uma vez que, com a irrupção do
neologismo introduzido pelo sujeito que cometeu o chiste, confunde o espírito, no
momento de identificar aquilo de que está tratando.
Vejamos mais esse exemplo:
63
Observamos, nos exemplos acima relatados, que, através dos tropeços de
linguagem, conforme Settineri, são abordadas as heterogeneidades da língua, pelo
equívoco, de modo que é através da possibilidade dos deslizamentos na fala do
sujeito que se chega a uma positividade, não de comunicação, mas de uma
singularidade do discurso.
Partindo desse ponto, Settineri vê, nas equivocidades da linguagem humana,
nas ambiguidades, nos erros gramaticais, nos recortes da fala, a possibilidade de o
analista reconstruir as mais diversas formas de significações – e também as mais
diversas formas de elaboração da referência, como temos pleiteado. Assim sendo, a
interpretação visa à não-restrição dos efeitos de sentido, dando ao sujeito novas
significações, a partir dos novos referentes que ele, inconscientemente, deixa
entrever. E é através das teorizações psicanalíticas sobre a interpretação que as
brechas na fala ganharão todo o seu valor.
Pretendemos, em nossa pesquisa, analisar, através dos processos
interpretativos, as marcas linguísticas do atravessamento do outro no fio discursivo,
tomando como critérios as heterogeneidades marcadas e as não-marcadas definidas
por Authier-Revuz. Perseguiremos as heterogeneidades a partir dos processos de
referenciação. Acreditamos que o referente ofereça pistas suficientemente plausíveis
para, através dele, alcançar as marcas de heterogeneidades na enunciação do sujeito.
Diferentemente de Settineri (2001), que descreveu as intervenções
psicanalíticas de interpretação, escansão e pontuação a partir da operação de
capitonagem, tomando como critério linguístico a cadeia associativa e sintagmática
em relação com o recorte das unidades em Saussure, pensamos que, a esses critérios
utilizados pelo autor, deve-se aliar a construção dos processos referenciais.
A desconsideração do referente no signo saussuriano teve repercussões em
várias teorias. Lacan, um dos grandes teóricos da psicanálise, pautou toda a sua
argumentação pelo signo saussuriano, que desconsiderava o referente e as situações
efetivas de uso da língua. No entanto, como vimos, o referente está presente em
todas as interpretações construídas a partir da teorização psicanalítica, pois o
64
processo de interpretação opera sobre o enunciado construído a cada momento
particular de uso.
Como demonstramos em pesquisa anterior (cf. BRITO, 2005), em relação à
fala do esquizofrênico, é fundamental que se reflita sobre a escuta psicanalítica não
apenas a partir dos pressupostos da psicanálise, mas também com base nos novos
avanços da linguística do texto. Já nessa pesquisa, havíamos recorrido ao exame dos
processos referenciais, sobretudo aos anafóricos, para analisar a fala do
esquizofrênico por um viés linguístico e psicanalítico, numa perspectiva mais ampla,
não-presa à textualidade. Mostramos que, embora os relatos não possam ser
considerados como textos bem articulados, com continuidade temática e não-
contraditórios com a realidade do mundo, ainda assim expressam acentuadamente
uma verdade de desejos. Retomamos, aqui, um exemplo da fala de um
esquizofrênico, retirado de Brito (2005):
20
Caso clínico de C.O. N. 54 anos, diagnosticado como esquizofrênico.
65
referencias, como as anáforas indiretas, foi importante para a análise que fizemos da
fala do esquizofrênico, na medida em que elas ajudaram na reconstrução dos desejos
do sujeito e, de certa forma, colocaram por terra o consenso geral de que a fala do
esquizofrênico é sem sentido e incoerente, como apressadamente, concluem os
estudos que, até agora, abordaram essa problematização. Mostramos que é possível
encontrar marcas linguísticas que auxiliam na interpretação da fala do
esquizofrênico e que, com uma contextualização familiar da doença, essas marcam
encontram um norte, exatamente por um processo de construção de referentes
durante a cena da sessão de análise. Não estamos dizendo, com isso, que demos um
sentido à fala do esquizofrênico. Tentamos mostrar, apenas, a sutileza de uma fala
proscrita por todos. Afinal, Freud já disse que o delírio é uma tentativa de cura, de
forma que o que é dito pelo delirante encontra uma raiz em um primeiro
desenvolvimento do surto. O que fizemos foi investigar as migalhas deixadas por
João e Maria.
66
No primeiro capítulo, O esquecimento de nomes próprios, Freud suspeita que,
ao esquecermos um nome e tentarmos recuperá-lo, os substitutos que entram em
nossa consciência são falsos. Diz ainda que o processo que deveria conduzir ao
verdadeiro nome sofre um deslocamento:
Minha hipótese é que esse deslocamento não está sujeito a uma escolha
psíquica arbitrária, mas segue caminhos previsíveis que obedecem a leis
(...) suspeito que o nome ou os nomes substituídos estão ligados de
maneira inteligível com o nome perdido. (FREUD, p.20, s/d)
Para comprovar sua hipótese, Freud ilustra com seu próprio ato falho: o
esquecimento do nome de um famoso pintor italiano, Signorelli:
(26) Eu viajava em companhia de um estrangeiro, de Ragusa, na
Dalmácia, para um lugar na Herzegovina: eu perguntei ao meu
companheiro de viagem se ele já conhecia Orvieto e se já havia
visto os afrescos de lá, pintados por...(FREUD, p.20-21, s/d).
67
Freud diz que não queria comentar essa peculiaridade dos turcos para não tocar
num tema tão delicado com um companheiro de viagem: a morte e a sexualidade. No
entanto, não era apenas isso que ele queria evitar. E revela que a atenção dos seus
pensamentos também foi desviada, na medida em que o tema em questão remetia a
um de seus pacientes, a quem ele havia muito se dedicado e que tinha se suicidado
por causa de uma perturbação sexual incurável. Na verdade, o que o mestre queria
esquecer era esse episódio doloroso, ruim, e não exatamente o nome do pintor.
Freud afirma que não pode mais considerar esse esquecimento como um
evento casual, sem importância. O esquecimento teve um motivo e uma finalidade:
evitar que pensamentos dolorosos surgissem em sua consciência e lhe causassem
desprazer. É o tipo de esquecimento que foi motivado pelo recalque.
Thá (2001) observa que o produto do lapso é, de fato, uma afirmação com
conteúdo e significado. O autor ressalta a precisão de Freud ao afirmar que “o
fenômeno tem um sentido e por sentido entendemos significação, intenção,
propósito e posição em um contexto psíquico contínuo” (p.41).
Em um outro exemplo retirado da análise de uma de suas pacientes, Freud diz
que a ideia que desejamos apagar, esquecer é exatamente aquela que abre caminho
para o lapso:
68
negar, todos são pessoas fora do comum, todos eles possuem Geiz
(avareza)... eu queria dizer Geist (inteligência). (FREUD, p. 89, s/d)
A paciente havia reprimido esse pensamento que tinha de sua família e, para
tanto, afastou de sua memória a ideia de que todos eram avaros. Mas, apesar de ela
ter censurado seus verdadeiros sentimentos, expressou-os sob a forma de um ato
falho. Queremos chamar a atenção, neste momento, para a estreita relação entre o
fenômeno dos tropeços de linguagem, apontados já desde Freud, e a alteração dos
referentes enfocados. Observe-se, no caso mencionado acima, como o referente da
“inteligência” é substituído, inconscientemente pelo enunciador e, durante a
interpretação, é ressignificado pelo analista, numa heterogeneidade a posteriori,
como diria Settineri. É precisamente este tipo de relação entre as bases teóricas da
psicanálise e da linguística que pretendemos empreender na presente pesquisa.
Mais um exemplo relatado por O. Rank:
69
(30) de noite numa reunião social, o mesmo senhor conversava com a
mesma senhora sobre os amplos preparativos para a páscoa realizada em
Berlim. Ele perguntou: „a senhora já viu a exposição (Auslage) na
Wertheim? O lugar está completamente decotado. (FREUD, p.96, s/d)
Freud comenta que o senhor não ousara exprimir sua admiração pelo decote
da bela dama, mas o pensamento proibido veio à tona de maneira transformada: ao
invés de dizer que a vitrine estava decorada cometeu o lapso e disse que estava
decotada. A palavra exposição também indica um duplo sentido.
Desta forma, Freud observa que, a partir de comentários e associações
aparentemente casuais e sem importância, advém um outro tipo de pensamento que
se esforça para permanecer oculto, não obstante, não consegue evitar trair sua
existência, através dos lapsos de língua, principalmente.
A explicação da ocorrência dos lapsos não deve ser procurada na influência do
contato dos sons das palavras apenas, mas, reitera Freud, na influência de
pensamentos exteriores à fala intencionada. Thá (2001) argumenta que procurar as
causas dos lapsos em um distúrbio da atenção é equivalente a confundir um fator que
pode até ser considerado como facilitador ocasional, portanto, um fator contingente,
com o verdadeiro mecanismo causal, o fator necessário. Isto é, o engano cometido na
troca de palavras segue um propósito e um objetivo.
Freud, mesmo admitindo a explicação de alguns de seus colegas que justificam
os lapsos através de situações em que se fala apressadamente, ou quando a atenção é
distraída, não se contenta e insiste numa explicação em que o desejo inconsciente é
revelado por meio dos enganos – um pressuposto que assumimos também nesta
pesquisa:
70
O mestre reafirma que os lapsos dizem muito mais do que o que o falante
esperava dizer, alguma coisa de seu próprio desejo. Daí afirmar que o lapso torna-se
uma maneira de autotraição. Vamos a mais um exemplo:
71
4 A psicanálise e a influência saussuriana
72
Conceito
Signo Imagem acústica
significado
Signo significante
73
3. Em Lacan (1988), o significante é sempre pensado como passando
acima do significado, enquanto que, em Saussure, o signo é sempre
representado com o significado passando acima do significante, como
mostramos no esquema acima.
Significante
Signo significado
Lê-se: significante sobre significado, com a barra, que não mais será símbolo
de união, como em Saussure, mas de resistência, de separação. Mas o que isso
implica? Ora, separar significante de significado subentende uma autonomia e uma
soberania do significante em relação ao significado, e mais:
O significante não significa nada ou pode significar tudo, é puro non sense.
Assim declara o autor: “O significante como tal não se refere a nada, a não ser
que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma
utilização da linguagem como liame.” (LACAN, 1982, p. 43).
Só pode haver articulação entre os significantes na medida em que são puros
elementos diferenciais. Daí, o sentido insistir na cadeia significante, estando, deste
modo, independente do significado.
74
A organização dos significantes se faz através de duas operações, que são a
metáfora e a metonímia, a “Verdichtung” e o “Verschiebung”, em Freud.
Dor (1989) afirma que os processos metafóricos e metonímicos são
testemunhos incontornáveis do caráter primordial do significante. Vemos isso, por
exemplo, nas psicoses, no caso do delírio. Lacan (1956) faz uma análise do caso do
Presidente Schreber21, feito anteriormente por Freud (1909), e conclui que, no
delírio há uma invasão progressiva do significante. Para Dor (1989), o significante se
libertaria pouco a pouco de seu significado. Vemos isso nestas duas falas de pacientes
diagnosticados como esquizofrênicos de um hospital psiquiátrico22:
21
Conferir caso completo em: FREUD, S. O caso Schreber, notas psicanalíticas sobre um relato
autobiográfico de um caso de paranoia – dementia paranoides. in Obras completas, vol. XII ,
Rio de Janeiro (Brasil): Editora Imago, 1990.
22
Para saber mais, ver a dissertação completa de Brito (2005).
75
S1
__ imagem acústica: “psicanálise”
Conceito de psicanálise
s1
S2
76
ministro e substitui a carta por outra, sem o ministro saber. Dor (1989) diz que a
carta mobilizou a todos, mesmo sem os envolvidos saberem do conteúdo dela. Deste
modo, Lacan pôde comprovar o poder embutido no significante, capaz de mobilizar
o sujeito.
Algumas reflexões ressaltam dessa visão. A primeira delas se relaciona
diretamente a uma das hipóteses desta pesquisa: pela análise da cadeia significante,
chega-se não apenas à construção de significados, como afirmava Lacan e como se
repete amplamente, mas também, e necessariamente, à elaboração de referentes.
Outra reflexão importante, decorrente da primeira, diz respeito à suposta
autonomia do significante em relação ao significado, e agora estamos acrescentando
à referência. Estamos propondo, neste trabalho, que, somente no momento da
pontuação do analista, os significantes se desgarram, inconscientemente, do
significado e da referência que assumem no texto. Além disso, também estamos
propondo que o psicanalista escande a cadeia de significantes e a recompõe de outro
modo, em todas as etapas da interpretação, levando em conta a relação intrínseca
entre significante, significado e referência.
Com isso, argumentamos que a articulação significante não se produz
sozinha: é necessário que haja um sujeito operando na cadeia do significante. Não
seria possível olhar para esse sujeito, para sua fala, para seus desejos sem considerar
as situações reais de uso, o que já se distancia radicalmente dos pressupostos da
linguística saussuriana.
Uma diferença importante entre os dois algoritmos representados acima é a
supressão do círculo que circunda o signo saussuriano, como também das flechas que
indicam, em Saussure, a relação de dependência de um elemento com o outro no
interior do signo linguístico. Segundo Arrivé (1999), Lacan, com essa elisão, queria
explicar o que ele chama de deslizamento incessante do significado sob o
significante, o que não significa, lembra Arrivé, que o significado esteja livre de
qualquer amarração com o significante. Muito pelo contrário, Lacan afirma,
77
inclusive, que é necessário um número mínimo de “amarração” entre significante e
significado para que um ser humano fale e produza significações.
Nóbrega (2002) afirma que, em algum momento, o encontro entre significado
e significante faz com que o signo saussuriano surja na teoria lacaniana sem as
diferenças aqui colocadas. A autora está se referindo ao ponto de estofo. A sutil
união entre significado e significante é o que a teoria lacaniana denomina de estofo.
Segundo Lacan (1981), o ponto de estofo é uma operação segundo a qual o
significante detém o deslizamento infinito da significação.
Outra noção igualmente importante desenvolvida por Saussure é a de valor.
A partir dessa perspectiva, o signo não é mais somente a união entre o significante e
o significado, mas cada um dos elementos ganhará valor no sistema, e
interdependência.
Saussure (s/d) utiliza a metáfora do jogo de xadrez: um cavalo, na sua
realidade pura, por si só, fora da sua casa e das outras condições do jogo não é um
elemento do jogo de xadrez. Para o mestre genebrino, o cavalo só se torna um
elemento real e concreto quando revestido de seu valor e fazendo corpo com ele.
A peça poderá ser substituída por outra, mesmo que com aparência
completamente diferente da sua, sem prejudicar o jogo, “contanto que se lhe
atribua o mesmo valor. Eis por que, em definitivo, a noção de valor recobre as de
unidade, de entidade concreta e de realidade” (Saussure, s/d, p.128).
78
O valor resulta do fato de que na língua todos os termos são solidários.
Saussure faz uma comparação com o sistema semiológico da moeda e conclui que
uma moeda é só um metal sujo com uma inscrição; o valor advindo dela é retirado
de suas correlações dentro do sistema. Da mesma forma, o valor de uma palavra só
será apreendido se ela puder ser trocada por uma ideia, uma vez que o valor faz
sempre menção ao dessemelhante.
No plano material do signo linguístico, o que é importante numa palavra não
é o som enquanto tal, mas as diferenças fônicas que permitem diferenciar uma
palavra das outras. O valor só será apresentado na oposição dos elementos dentro do
sistema.
23Segundo o Houaiss, tergo vem do lat. tergum ou tergus,i 'costas (das pessoas), parte traseira,
retaguarda (de tropa)'; ver terg(i)-.
79
encontrar um sentido e um destino à cena, relacionando-a à cópula entre os lobos e
remetendo a uma cadeia significante. O significante é o suporte material do discurso,
a letra ou os sons. Daí Freud ter dito que devemos tomar tudo ao pé da letra.
Seguindo a esteira de Freud, Lacan propõe um novo modelo de representação
significante:
CAVALHEIROS DAMAS
Cabas afirma que este texto teria que ser lido preferencialmente por uma
mulher, para dar, a partir da supressão dos termos, um sentido sexual, que é
compartilhado por aqueles que a escutam. O sentido é um efeito, efeito de
significação. Essa constatação nos leva a propor um novo olhar para a supremacia do
significante em relação ao significado: entendemos que afirmar que o sentido é
80
produto da combinatória das cadeias significantes já é admitir que o significante se
desgarra dos significados convencionais, mas se associa inevitavelmente a outros
significados, que, por sua vez, se ligam sempre a referentes. No “ai, querido, assim
não...”, instaura-se um sentido sexual, advindo de um processo retroativo: cada
elemento da frase retorna ao anterior, estabelecendo, assim, o efeito de sentido
denominado por Lacan de après-coup (só-depois), isto é, efeito retroativo ou
retrospectivo na cadeia significante, produzindo uma significação e, agora diremos,
uma referência clara ao ato sexual. O enunciado “ai, querido, assim não...” não está
limitado à cadeia: abre-se para outras relações - a sexual, por exemplo. Para Cabas
(1982), o sentido é sempre uma relação:
81
Lacan (1998), aproveitando-se do desenvolvimento teórico da linguagem em
Jakobson, afirma que a organização dos significantes se faz através de duas
operações, que são a metáfora e a metonímia, a “Verdichtung” e o “Verschiebung”,
como já mencionamos anteriormente. Freud (1900) já havia demonstrado que o
inconsciente tem leis próprias, que são presentificadas através da condensação e do
deslocamento. Posteriormente, em sua releitura de Freud, Lacan dirá que a
condensação e o deslocamento são metáforas e metonímias, respectivamente.
24
Em português, traduzido como ponto de capitonê ou ponto de estofo, ou simplesmente
capitonê.
82
No entanto, como afirma Lemaire (1988), o ponto de estofo é mítico, na
medida em que o significante final buscado é radicalmente excluído do pensamento,
ou seja, inalcançável, porque situado em uma dimensão incomensurável, da ordem
do real.
A apreensão que podemos ter dos significantes é em sua dimensão simbólica.
Daí a possibilidade de a língua se prestar a todo tipo de engodo, a respeito da
compreensão humana, uma vez que tem a capacidade de representar uma coisa por
outra do que diz ou do que quer dizer conscientemente. Ora, isso só acontece
porque o sujeito falante é não-todo em seu discurso, ou seja, é clivado, é “vários” em
uma mesma fala.
No Curso de linguística geral, Saussure (s/d) afirma que o signo une não uma
coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica, isto é, a representação da
palavra fora de qualquer realização pela fala. O nível da parole ficou fora das
preocupações descritivas do mestre genebrino. Como sempre se repetiu a partir dos
ensinamentos saussurianos, a imagem acústica não é propriamente o som, mas a
impressão psíquica dele: “o significante em sua essência (...) não é de modo algum
fônico; é incorpóreo, constituído não por sua substância material, mas unicamente
pelas diferenças que separam sua imagem acústica de todas as outras.” (s/d, p. 137-
138).
No entanto, essas noções não são tão pacíficas assim. Sabemos que, depois da
publicação do Curso, a polêmica se instalou em torno do que Saussure afirmara ou
não e do que poderia ter sido mera inferência, autorizada ou não, de seus alunos.
Arrivé (1999) põe em dúvida o que foi verdadeiramente dito pelo mestre e o que foi
publicado no Curso. De Mauro (1995) já havia questionado a fidelidade dos
seguidores à voz do mestre genebrino, todavia o autor argumenta que, mesmo se se
83
tomassem, hoje, todas as fontes manuscritas feitas pelos alunos de Saussure, ainda
assim o livro não sairia melhor que o Curso. Diferentemente de De Mauro (1995),
Bouquet (s/d), assim como Arrivé (1999), afirma que há um abismo entre o Curso,
publicado pelos seguidores de Saussure, e as fontes manuscritas:
84
terminológico” com essa criação “neológica”: “a criação neológica - à qual Saussure
não é acostumado - é ela própria apresentada em um outro texto, como uma
tentativa de frear esse deslizamento.” (BOUQUET, s/d, p.01)
Bouquet faz justiça às constantes inquietações de Saussure com o conceito de
signo; verificamos isso nesta passagem: “mesmo um termo como soma se tornaria,
em muito pouco tempo, se ele tivesse a chance de ser adotado, sinônimo de sema, ao
qual ele quer ser oposto. É aqui que a terminologia linguística paga seu tributo à
própria verdade que estabelecemos como fato de observação.” (p.02)
Saussure, de fato, se questionou sobre as diferenças entre os conceitos:
Não obtivemos essa palavra que nos falta e que designaria sem
ambiguidade possível seu conjunto. Não importa qual termo que se
escolher (signo, termo, palavra, etc.), ele deslizará um pouco e
estará em perigo de designar apenas uma parte. É mesmo provável
que possa não haver nenhum. (JOSEPH, 1911, p. 425)
85
designassem as três noções aqui em presença por nomes que se
chamam uns aos outros, ao mesmo tempo que se opondo.” Esse
raciocínio não apenas não está fundado sobre nenhuma fonte
manuscrita, mas está ainda em flagrante contradição com a tese de
Saussure! (BOUQUET, s/d, p.05)
86
fenômenos linguísticos, ele propõe que a linguística se ocupe apenas da langue e
deixe de lado a parole, o que significa eliminar da língua “tudo o que lhe seja
estranho ao organismo, ao sistema, numa palavra: tudo quanto se designa pelo termo
„linguística externa‟” (SAUSSURE, s/d, p. 29).
Costa (2007) observa que, com esse recorte, Saussure opta por eximir os
estudos linguísticos da responsabilidade de tratar da referência. Araújo (2004)
também comenta que, para esse ponto de vista, as únicas relações a serem
consideradas são as “intrassígnicas” (p. 02). Segundo a autora, essa solução gerou
consequências positivas e negativas. Uma vantagem, ela explica, é que essa visão de
língua vai contra a ideia milenar de uma correspondência obrigatória entre a
linguagem e o real. Afinal, como ela argumenta com precisão, “falar é relacionar
signos entre si e não signos com a realidade” (p.02).
87
referência de Saussure é ainda a de uma relação direta, transparente, das palavras
com os objetos do mundo. A ideia de um referente que não se confunde com a
substância, mas também que se diferencia do significado; que é em parte constituído
culturalmente, mas em parte fabricado pelo discurso, parece não ser admitida por
Saussure. Daí o radicalismo de sua solução, que é criticada por Cardoso (2003). Para
a autora, extraditar o referente do signo linguístico significa negar, de uma vez por
todas, os aspectos simbólicos da linguagem. Já para Araújo (2004, p. 7), significa
“excluir toda uma série de fatores e fenômenos nada secundários, não só a coisa
referida (conotatum), como também a fala, a intenção, o uso, as interações verbais”,
justamente os elementos que demonstrariam a dimensão discursiva da referência.
Conforme Costa (2007), a teoria de Saussure, como é amplamente
demonstrado na história dos estudos da linguagem, influencia, com maior ou menor
força, as chamadas correntes estruturalistas. Por um “consenso antigo”, observa Ilari
(2004), reconhecem-se como “linguísticas saussurianas" a linha de investigação
desenvolvida pela Escola de Praga, a glossemática de Hjelmslev, o funcionalismo de
Martinet e o funcionalismo linguístico de Jakobson. Comum a essas correntes,
estaria o “ideário saussuriano”, resumido nos seguintes princípios: prioridade da
análise do sistema, concepção da língua como forma, descarte da substância,
preferência pela sincronia.
88
sobre essa questão, mas antes reflitamos um pouco sobre o pensamento de
Benveniste.
25
Sobre Linguística da Língua e Linguística da Fala, consultar SAUSSURE, F. de. Curso de
Linguística Geral. Cap. IV. São Paulo: Cultrix, s/d, pp. 26-28.
89
materialmente em enunciados, e a linguagem, por sua vez, “só é possível porque
cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu
discurso” (BENVENISTE, 1995, p. 286).
Lacan (1985) se apoia nessa concepção em sua teoria sobre o sujeito e a
subjetividade, pois defende que “o sujeito só é sujeito quando fala”. A subjetividade
é, portanto, a condição da linguagem e do discurso, como Benveniste (1995, p. 289)
afirma: “a linguagem é, pois, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter
sempre as formas linguísticas apropriadas à sua expressão”.
É justamente com essa noção de “formas linguísticas apropriadas” à expressão
da linguagem que Benveniste introduz o segundo eixo de estudo a que nos
referimos, qual seja, o aparelho formal da enunciação. Para o autor, a enunciação
deve ser entendida numa perspectiva tridimensional, que comporta as categorias de
pessoa, tempo e espaço ― eu, agora, aqui ―, definidas em seu escopo como o
“colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”
(BENVENISTE, 1989, p. 82). Alegando que, “depois da enunciação, a língua é
efetuada em uma instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que
atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno” (BENVENISTE,
1989, p. 84), o autor demonstra que o „ato individual‟ é ancorado em uma
perspectiva responsiva que orienta a formulação dos enunciados em uma ou outra
maneira específica. Argumenta, assim, que o sujeito-enunciador estabelece os
objetivos de seu discurso de acordo com as relações estabelecidas socialmente porque
“a enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso” (BENVENISTE,
1989, p. 83) numa adesão explícita à ideia de que o discurso é eminentemente social,
regulado por regras sociais e autorizado por práticas sociais institucionalizadas.
Não obstante, a enunciação não é o objeto de investigação de Benveniste,
uma vez que ele se inscreve num estruturalismo pós-saussuriano. Seu objeto de
estudo é o enunciado, produto do ato de enunciação, com suas regularidades
atreladas às formas da língua:
90
é preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o
ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado,
que é nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que mobiliza a
língua por sua conta. A relação do locutor com a língua determina
os caracteres linguísticos da enunciação. Deve-se considerá-la
como o fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos
caracteres que marcam esta relação. (1989, p. 82).
91
linguística, quaisquer resquícios de subjetividade. Mesmo com todo o cuidado de
Benveniste em manter a sua vinculação estrutural, em sua essência, não podemos
negar o abismo entre as duas abordagens. Cardoso (2003) nos diz que não há, por
parte de Benveniste, uma rejeição a Saussure, muito pelo contrário, a autora declara
que a linguística saussuriana poderia dar perfeitamente conta do modo de
significação semiótico, mas não do semântico. É o que constata Benveniste:
Costa (2007) afirma que, com essas observações, Benveniste constata, por um
lado, quão restritivo seria um estudo da língua que tomasse como objeto apenas a
“distintividade” ou o “valor”, conforme prega a teoria saussuriana, mas, por outro
lado, diz que tais elementos devem ser considerados, uma vez que constituem
92
“material necessário da enunciação”. Deste modo, vemos um Benveniste agarrado à
linguística científica encarnado em Saussure e um outro Benveniste desejoso por
mudanças aqui e agora.
Segundo Costa (2007), na teoria benvenistiana, o signo não pode ser erigido
como “princípio único”: há que se buscarem outras explicações para o
funcionamento da linguagem, por isso que ele acrescenta ao “modo de significância
semiótico”, já proposto por Saussure, o “modo de significância semântico”, que
preencheria a lacuna deixada por Saussure - cuidaria do sentido produzido na língua
em uso e, nesse processo, resgataria a questão da referência, que fora ignorada pelo
estruturalismo, como um dos elementos importantes na produção desse sentido. É o
que lemos nas palavras do próprio autor:
93
Para Cardoso (2003), a obra de Benveniste é uma evolução do conceito de
referência. Tal evolução ocorreria com o abandono da ideia da oposição “pessoa/não
pessoa”, que separa os “signos plenos” (que poderiam remeter a uma mesma
referência) dos signos “vazios” (que instaurariam uma referência mais incidental,
remetendo apenas à „realidade do discurso‟), em função do alargamento das noções
de discurso e enunciação. Costa (2007) critica essa separação dicotômica e afirma
que, quando o autor admite a presença - quer explícita, quer implícita - de um
alocutário nos atos enunciativos, está, na prática, rompendo com a dicotomia “plano
do discurso / plano da história” e se afastando, de certa maneira, da ideia de que
haveria dois tipos de referência, um dos quais (o dos signos “plenos”) remeteria aos
“objetos „reais‟”, “aos tempos e lugares „históricos‟”. Cardoso (2003, p. 79) também
rebate essa distinção argumentando que a noção de signos plenos, cumprindo “uma
função representacional, simbólica, constatativa, (...) provém da concepção clássica
de referência” e, logicamente, não condiz com a visão enunciativa da linguagem.
Outra crítica apontada por Cardoso (2003) a Benveniste, em sua proposta de
subjetividade, diz respeito ao fato de o sujeito idealizado por Benveniste (1986, p.
84) ser alguém que “se apropria”, individualmente, “do aparelho formal da língua” e
o utiliza em função de seus propósitos comunicativos, em cada ato enunciativo
singular. O “alocutário” ao qual o autor se refere é “implantado” por esse sujeito, que
assume a posição de locutor.
Cardoso (2003), com o pensamento em sintonia com os pressupostos da
análise do discurso, critica o que ela chama de “fugacidade da enunciação”: o ato
enunciativo seria concebido sem levar em conta “os lugares sociais de onde falam os
interlocutores” (p. 81). Poderia, então, ser vista como “elementar” essa visão
imediatista da enunciação (p. 83), em que “A referência, tão circunstancial quanto o
discurso, acaba sendo apenas um acontecimento, pode-se dizer, um acontecimento
que desaparece” (p. 81).
Outros autores, como Mondada, Apothéloz, Koch e Cavalcante, só para citar
alguns, também compartilham dessa concepção mais ampla de enunciação, pois
94
trabalham em uma linha mais sociointeracionista do texto/discurso, e reconhecem a
influência do contexto social mais amplo na produção do discurso. A tão efêmera
autonomia do sujeito pregada por Benveniste esbarra no caráter intersubjetivo dos
atos referenciais, por meio dos quais os referentes se constroem e se reconstroem
conjuntamente na dinâmica das práticas sociais. Nessa perspectiva, não haveria lugar
para esse sujeito benvenistiano, que, senhor do „aparelho formal da língua‟, numa
atitude cartesiana, “sacaria” de lá as formas adequadas à consecução de seus objetivos
comunicativos.
De qualquer forma, concordamos com Costa (2007) e com Cardoso (2003),
que reconhecem em Benveniste uma grande contribuição para o avanço das teorias
que estudam os fenômenos da linguagem, sejam elas mais voltadas para “situar o
discurso num eixo histórico mais amplo do que o eixo histórico do acontecimento”,
sejam elas voltadas para o uso da língua como ação conjunta, por sujeitos sociais, que
se instituem enquanto produzem discurso em suas práticas cotidianas. O olhar sobre
o funcionamento da língua, promovido pelo autor, não deixa de ser um passo
importante para levar a qualquer um desses dois caminhos.
Como mostramos acima, toda a teorização de Benveniste é um abalroamento
nos pressupostos saussurianos. Benveniste, de todo modo, mesmo que sutilmente,
apontou uma falha no signo linguístico por ter excluído o referente da sua
teorização.
Para Arrivé (1999), no entanto, a exclusão do referente não é uma falha, mas
uma opção: “o que é o signo para Saussure? É preciso começar por um gesto de
exclusão: o da “coisa”, designação saussuriana daquilo que, mais tarde, os linguistas
chamarão de referente. (p.39)
A afirmação de que o signo linguístico une não uma coisa e um nome, mas
um conceito e uma imagem acústica, retira o referente de pauta. O exemplo dado
95
para ilustrar a exclusão do referente é o esquema representado por um cavalo e uma
árvore diante de palavras latinas arbo e equos, que são correspondentes. A exclusão
da coisa, conforme cita Engler (1967) em suas notas, é a consequência imediata da
recusa em conceber a língua como nomenclatura, ou seja, como um vocabulário de
nomes: “uma lista de termos correspondentes a outras tantas coisas.” (p.97)
Para Arrivé (1999), Saussure (s/d) não desconhecia o problema das relações
entre linguagem e realidade: “essa concepção - da língua como nomenclatura – deixa
supor que o laço que une um nome a uma coisa é uma operação muito simples, o que
está longe de ser verdade.” (p.97). Arrivé (1999), com base nisso, argumenta, ainda,
que o termo “operação”, que o mestre genebrino menciona, é o processo linguístico
pelo qual o referente é assumido pelo signo: “temos, pois, um esboço da teoria
saussuriana da refenciação” (p.39). Arrivé, no entanto, não justifica suficientemente
esta afirmação, que ele lança e não argumenta mais profundamente em relação à
defesa de uma base referencial na teoria saussuriana:
96
línguas diferentes: o significado „boeuf‟ tem como significante b-ö-f de um lado da
fronteira e o-k-s (ochs) do outro.” (p.100). Desta forma, Arrivé (1999) detecta a falha
no raciocínio saussuriano: “passar de uma língua para outra para provar, em uma
delas, a arbitrariedade do signo é supor que o significado de „boeuf‟ é exatamente
idêntico ao de „Ochs‟. Isso está em plena contradição com as posições mais explícitas
defendidas pelo próprio Saussure.” (p.42). Mostramos anteriormente que o mestre
negava a concepção de língua como nomenclatura. E Arrivé (1999) reconhece: “se
ele se afastou da concepção de língua como „nomenclatura‟, é precisamente porque
ela supõe ideias já constituídas, preexistentes às palavras.” (p.42)
Engler (1967) mostra que, nas fontes manuscritas, Saussure nega a
possibilidade de correspondência entre signos de línguas diferentes:
(...) o signo é arbitrário, pois um significante tal com b-ö-f não tem
nenhuma relação com o seu significado. A possibilidade de expressar em
alemão o mesmo significado pelo significante o-k-s é realmente a prova
desse caráter arbitrário. Não é necessário ir mais longe; o erro de Saussure
é, na minha opinião, evidente. Ele consiste no fato de que Saussure não se
dá conta de que introduz no curso da demonstração elementos que não
estavam no enunciado. Define primeiro o significado como sendo a ideia
97
geral de boi, ou pelo menos a imagem sensorial de um boi... Ora, essas são
duas coisas completamente diferentes. (p. 26)
Saussure declara, nos seus próprios termos (p.100), que o signo linguístico
une não uma coisa a um nome, mas um conceito e uma imagem acústica.
Mas afirma, logo depois, que a natureza do signo é arbitrária porque ele
não tem, com o significado, nenhuma ligação natural na realidade. É claro
que o raciocínio se torna falso pelo recurso inconsciente e sub-reptício a
um terceiro termo, que não estava compreendido na definição inicial. Esse
terceiro termo é a própria coisa, a realidade (...). Quando ele fala da
diferença entre b-ö-f e o-k-s, refere-se sem querer ao fato de que esses dois
termos se aplicam à mesma realidade. Aí está pois a coisa, expressamente
excluída, de início, da definição de signo, e que se introduz nela por um
desvio, instalando permanentemente a contradição. (BENVENISTE, 1939,
p.50)
O que é que representa esse “erro” ou essa derrapagem de Saussure (s/d) para
a teorização do signo? Arrivé (1999) avalia que as críticas, tanto de Pichon (1937)
como de Benveniste (1939), são incontestáveis. Afinal, qual a importância do
referente para a teoria do signo e por que, inicialmente, ele foi rejeitado, para depois
ser recuperado, sem que Saussure percebesse a coisa em sua teorização? Arrivé
(1999) conclui que ele tem desculpas, pois, embora o signo seja exclusivamente
constituído do significante e do significado, é necessário que, de alguma forma, o
significado tenha alguma relação com o referente: “a mais „imanente‟ das semânticas
nunca consegue eliminar completamente o fato de que um referente deve apresentar
traços compatíveis com os do significado que assume.” (p.44)
É interessante notar que Arrivé (1999) recorre também a Lacan para dizer
que este, assim como Saussure, também escorregou no referente, quando levantou o
problema do elefante e da girafa, vejamos:
98
o fundamento mesmo da estrutura da linguagem é o significante, que é
sempre material e que reconhecemos em Santo Agostinho no verbum, e o
significado. Tomados um a um, estão numa relação que parece
estritamente arbitrária. Não há mais razão para chamar a girafa girafa e ao
elefante elefante, do que para chamar à girafa elefante e ao elefante girafa.
Não há nenhuma razão para dizer que a girafa tem uma tromba e que o
elefante tem um pescoço muito longo. (LACAN, 1988, p. 300)
Arrivé (1999) observa que, assim como Saussure (s/d), Lacan (1988) situa
primeiro a arbitrariedade entre o par significante e significado. No entanto, a
sequência de sua análise leva-o a introduzir, o referente: “gesto quase inevitável. Se
elefante é o significante de „girafa‟, o elefante (o da savana ou do jardim Zoológico de
Vincennes, o „objeto designado‟, a „coisa‟, o referente, enfim) tem necessariamente o
pescoço muito comprido.” (p.44). Arrivé (1999) admite um “isomorfismo”
necessário do significado e do referente, daí a derrapagem de Saussure e de Lacan.
Quais as consequências dessa “derrapagem”? O que significa admitir o
referente na composição do signo? A inclusão do referente na teorização lacaniana
modifica o modo de pensar a teoria? Pensamos que não: o que muda é apenas o
reconhecimento da inevitável presença do referente nas considerações sobre signo.
Este reconhecimento, que já estava em Benveniste, foi reafirmado por outros
estudiosos, como Bouquet, Arrivé, Pichon, Cardoso e Araújo, dentre outros, e é
particularmente enfatizado nesta pesquisa.
Com todas essas considerações, interessa-nos, sobremaneira, questionar a
suposição, sempre tacitamente aceita, de que toda a teoria psicanalítica lacaniana se
funda na concepção de signo da linguística saussuriana. Mas não estamos realmente
diante da mesma noção de signo.
99
4.6 Significado, denotação e referência
100
O autor discute também a constituição do nome próprio e diz que não é
inteiramente subjetiva como a representação:
101
signo, ele discute, na verdade, a significação, não o signo linguístico: “o arbitrário só
existe em relação com o fenômeno ou o objeto material e não intervém na
constituição própria do signo.” (p. 57)
Ao afirmar, porém, a arbitrariedade do signo, Saussure inclui, sem o
pretender, a realidade na definição inicial.
Tomar o signo como arbitrário, quer dizer que é arbitrário em relação à coisa
designada, como já havia afirmado Frege (1978).
É o que tenta demonstrar Arrivé, quando diz que há em Saussure uma
primeira teoria da referenciação. É importante notar que a relação que une os
componentes do signo não pode ser tomada como sendo o próprio signo, mas, sim, o
“total resultante” dessa associação. Daí Benveniste (1991, p. 55) propor que “entre o
significante e o significado, o laço não é arbitrário; pelo contrário, é necessário”.
Vemos essa relação “necessária” presente no próprio texto de Saussure (s/d, p.80), de
uma forma discreta, quando diz: “esses dois elementos estão intimamente unidos e
um reclama o outro”.
A confusão entre o que é arbitrário no signo linguístico tem relação com a
discussão entre sentido e referência. Para Benveniste (1989), “o sentido de uma
palavra é seu emprego” e o referente “é o objeto particular a que a palavra
corresponde no caso concreto da circunstância ou do uso.” O autor adverte que “é
desta confusão extremamente frequente entre sentido e referência, ou entre
referente e signo, que nascem tantas discussões vãs sobre o que se chama o princípio
da arbitrariedade do signo” (BENVENISTE, 1989, p.231).
Quando autores como Frege (1978), Benveniste (1989) e até Arrivé (1999)
abordam a questão da referência, será que é de referência mesmo, como entende
hoje a linguística do texto, ou eles, na verdade, dizem referência querendo dizer
denotação? Como observa Cavalcante (a sair):
102
virtual, estocada na nossa memória coletiva, entre a palavra e o conjunto
dos membros de uma classe que ela representa (cf. Lyons, 1977). Eis por
que é possível dizer que o nome cavalo denota a classe de indivíduos que
podem ser designados como tal. Quando tratamos da denotação de uma
palavra como cavalo, ocorre-nos a ideia de uma série de animais, mais ou
menos semelhantes, que poderíamos chamar assim. Já a referência
costuma estar associada ao uso que os sujeitos podem fazer das expressões
referenciais em enunciados efetivos, em contextos particulares, para se
reportarem a entidades. Não poderíamos falar de referência considerando
apenas a palavra fora de contexto, em estado de dicionário, mas
poderíamos, sim, tratar de denotação.
103
5 A referenciação includere – o ato de inclusão do referente
5.1 A referenciação
104
quando falamos em categorias estabilizadas por protótipos, é preciso
lembrar pelo menos duas questões centrais: uma é a multiplicidade
e a imprevisibilidade de combinações que podem compor uma
categoria, bem como sua possível mutação; a outra é que as
operações cognitivas, como a prototipia, não podem ser vistas de
maneira independente da ação coletiva dos falantes. (CIULLA E
SILVA, 2008, p.28)
105
apresenta, impõe um alargamento da perspectiva clássica, restrita a uma concepção
representacionalista da língua, na qual não há lugar para o papel do sujeito nem
para o contexto da enunciação. Ademais, essa abordagem volta-se para a
investigação de “como as atividades humanas, cognitivas e linguísticas, estruturam e
dão um sentido ao mundo” (MONDADA E DUBOIS, 1995, p. 276).
106
„óculos sociais‟, por defender que não vemos a realidade tal qual ela se apresenta:
vemos o mundo através dos referentes. Estamos imersos num mundo construído por
meio das representações das coisas, durante nossas interações com o outro. Em
outras palavras, vivemos num mundo simbólico, mediatizado pela linguagem: não se
pode encarar o sol diretamente, nem tratar as palavras como coisas, Die Sache. É o
que ratifica Cavalcante (2004): “O referente não está no mundo, nem no texto, nem
se encontra isolado e pré-estabelecido na mente dos interlocutores; ele é uma
imagem que se fabrica durante o discurso, no contexto de comunicação, e é por ele
também influenciado”. (p.03)
Podemos identificar os referentes através dos diferentes tipos de expressão
referencial dentro de um texto oral ou escrito, dentre eles: nomes próprios, grupos
nominais, elipses, etc. Algumas dessas expressões referenciais remetem a referentes
que já foram introduzidos no discurso e são apenas retomados por formas com
significado semelhante, ou por expressões que recategorizam o referente; outras
vezes, podem remeter a objetos que nunca foram mencionados no texto, mas, que, às
vezes podem aparecer como se já fossem conhecidos de todos, pois, quando falamos,
recorremos a um compartilhamento de conhecimentos comuns e ao mesmo tempo
de conhecimentos de mundo. No primeiro caso, tem-se a chamada anáfora direta (ou
correferencial); no segundo, tem-se uma mera introdução de referentes.
Embora não seja interesse deste trabalho focalizar uma classificação de
estratégias de referenciação, teremos que utilizar os tipos de processos referenciais
para proceder à análise, pois este é um dos critérios que escolhemos para realizar a
análise empírica da pesquisa.
Mostraremos agora, brevemente, a classificação de estratégias referenciais
proposta por Cavalcante (2003), em que a autora agrupa as várias subdivisões
anafóricas. Cavalcante considera três fatores primordiais em sua classificação: a
função referencial, os traços de significação e o aspecto formal.
107
Consideramos o primeiro critério o mais importante dos três, uma vez que a
função referencial pode introduzir um novo referente no discurso ou, ainda, dar
continuidade aos referentes já estabelecidos no universo discursivo.
Exemplo de uma introdução referencial:
108
Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite
incomum. (CAVALCANTE, 2003, P.103)
Nos dois textos, temos exemplos de anáforas diretas, ou seja, com retomada
do mesmo referente. No exemplo 2 o elemento o velho retomou um velho. No
exemplo 3 , ele retoma o homem.
Muitas vezes, porém, conforme mostram numerosos estudos (ver
MARCUSCHI, 2000), as informações culturalmente partilhadas permitem que uma
expressão referencial remeta a outras pistas textuais que lhe servem de âncora para
engatilhar um processo de anáfora indireta.
As anáforas indiretas, isto é, sem retomada do mesmo referente, remetem a
pistas (âncoras) do cotexto, às quais estão associadas, pois são inferidas a partir delas.
Elas são identificadas, principalmente, por não apresentarem correferencialidade e
introduzirem um referente novo, como se este já fosse conhecido:
(40). Nos últimos dias de agosto [...] a menina Rita Seidel acorda
num minúsculo quarto de hospital [...] A enfermeira chega até a
cama [...](CAVALCANTE, 2003, P.113)
109
remeta, se para frente ou se para trás, e podem ser diretas ou indiretas (cf.
Cavalcante, 2004)26, conforme dissemos. Já os dêiticos, ainda que remetam a um
referente representado no cotexto, precisam tomar como ponto de origem a
localização do falante no tempo/espaço real de fala. Os dêiticos, diferentemente dos
anafóricos, podem não ter âncoras e se constituírem meras introduções referenciais:
“Os dêiticos apontam não [necessariamente] para outras expressões ou porções
textuais, mas para referentes que representam entidades situadas ou pressupostas na
comunicação que se efetiva naquele momento”. (CAVALCANTE, 2004, p.06)
Há certas expressões que só podem ser plenamente depreendidas se o
interlocutor souber algumas “coordenadas” do enunciador: quem fala, para quem
fala, de onde fala e quando fala (CUSTÓDIO-FILHO, 2008). O fenômeno da dêixis
pode ser entendido como a localização e identificação de diversos aspectos (pessoas,
objetos, eventos, processos) em relação a um contexto espácio-temporal, criado em
uma situação de enunciação em que haja pelo menos um falante e um ouvinte. A
situação normal de enunciação é egocêntrica, no sentido de que o falante se coloca
no centro do processo enunciativo e relaciona tudo conforme o seu ponto de vista;
temos, assim, o processo dêitico:
(41). Apresentada na última sexta-feira pela polícia como uma das
autoras do assassinato de seus pais, ocorrido no mês passado, em
São Paulo, Suzane Richthofen, de 19 anos, tem muito a ensinar
sobre a atual geração de jovens de classe média.
26
Não é nosso interesse aqui iniciarmos uma longa discussão sobre os processos referenciais, na
medida em que nosso objetivo princeps não é simplesmente identificar as expressões referencias
na superfície da fala, mas identificar a partir dos processos de recategorização a expressão de
um desejo.
110
Nos exemplos acima, vemos que o falante “aponta” para os elementos de
acordo com a posição onde se encontra: na última sexta-feira e mês passado indicam
uma determinada data no tempo em que o evento se passou. Esse apontar é
responsável pela construção de referentes textuais, que só podem ser interpretados
adequadamente se se levar em conta a posição inicial desse falante. É o que acontece
no exemplo 7, em que os personagens só falam conforme a sua posição no lugar em
estão ocupando no momento da interação.
Como dissemos, nossa preocupação maior não é simplesmente classificar, no
discurso, as expressões referenciais como anafóricas (diretas e indiretas) ou dêiticas;
nosso propósito é, antes de tudo, emprestar um olhar às novas formas de
comunicação que se realizam através da mídia eletrônica, que podem ser
encontradas, por exemplo, nos bate-papos virtuais, daí a importância de se analisar a
evolução dos referentes, na medida em que eles se prestam à construção dos vários
sentidos de um texto:
(43). SOBE
CARLOS ALBERTO PARREIRA
O treinador tetracampeão do mundo voltou ao comando da
seleção brasileira.(CAVALCANTE, 2003, P. 124)
111
(44). [artigo relatando o julgamento de um automobilista
responsável por um acidente.] Ele reconhece ter rodado bêbado
(...) O Tribunal de correção infligiu ontem uma pena fechada a
este recidivista. (APOTHÉLOZ e REICHLER-BÉGUELIN, 1995, p.
247)
112
5.2 A recategorização de desejo
27
Lima (2009) trata o fenômeno em uma perspectiva cognitivo-referencial, no entanto não é
nosso interesse, na presente pesquisa, tratar da recategorização sob o ponto de vista cognitivo, já
que a maioria de nossas reflexões envolvem a noção de heterogeneidades enunciativas e
enfocam, assim, as vozes de vários posicionamentos discursivos e as vozes do inconsciente.
Admitimos que todos os processos mentais são cognitivos, mas, ainda que aceitando a definição
de recategorização de Lima, optamos por não encetar um debate em torno da Teoria dos
Modelos Cognitivos Idealizados de LAKOFF e colaboradores (1987).
113
Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), os primeiros autores a destacarem-se
no estudo específico sobre a recategorização, veem-na como um ato de referenciação
que evidencia a evolução da categorização de uma dada entidade durante a
interação. Essas entidades não são “mundanas”, ao contrário, são produtos culturais
concebidos pelo homem.
Para Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), que se ocuparam muito mais de
uma recategorização lexical, aquela que se realizava explicitamente no cotexto por
expressões referenciais recategorizadoras, a operação de designar referentes pode
ocasionar o abandono de uma denominação padrão, correspondente ao “nível de
base” da categorização, em prol da adaptação de sua expressão substitutiva a
possíveis objetivos persuasivos do indivíduo que a produz – note-se a constante
associação do fenômeno aos propósitos argumentativos do enunciador.
Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) afirmam, ainda, que o uso da
recategorização permite que se ultrapasse sua função puramente referencial e que se
penetre em outras funções, as quais podem ser de natureza argumentativa, social,
estético-conotativa e de outros tipos. Enfim, concluem os autores que o processo de
referenciação pode estar em “função de considerações superimpostas ao ato
referencial propriamente dito”. (cf. APOTHÉLOZ E REICHLER-BÉGUELIN, 1995,
p.19 – grifo dos autores). Esta observação é relevante para nossos objetivos porque
abre a discussão das anáforas recategorizadoras para outras finalidades, que não
apenas a de identificação de referentes no discurso e a de desenvolvimento
argumentativo.
O foco de análise de Apothéloz e Reichler-Béguelin, no entanto, assim
como a de muitos que trataram do fenômeno até hoje, é dominantemente a
construção argumentativa do texto. Os autores (1995), ao levar em conta o caráter
polissêmico do léxico das línguas naturais, postulam ainda que, na atividade
discursiva, o falante pode, para designar um dado objeto de discurso, lançar mão de
uma série aberta de expressões linguísticas. Estas expressões podem ser utilizadas em
condições referenciais iguais, cabendo ao locutor a escolha da expressão mais
114
adequada aos seus propósitos comunicativos. Diremos aqui que a seleção das
expressões pode estar relacionada não só a esses propósitos, mas também a escolhas
que dizem respeito a uma outra cena, que pode facilmente ser identificada a partir
dessas mesmas expressões linguísticas que servem não somente à comunicação, mas
também à manifestação de um desejo inconsciente que se infiltra na fala do sujeito.
E a isso demos o nome de recategorização de desejo, que é aquilo que o sujeito
expressa, em uma outra cena, mais além da comunicação de um discurso. Para tanto,
utilizamos como exemplário as interações que se processam no ambiente virtual,
especificamente nos bate-papos.
Veja-se um exemplo abaixo de recategorização analisado por Koch (2006):
115
De acordo com Koch (2004), uma vez que o processamento cognitivo dos
referentes se dá mediante a existência de “endereços” ou nódulos cognitivos, estes
podem ser, durante o desenvolvimento discursivo, transformados ou expandidos de
tal modo que, “durante o processo de compreensão, desdobra-se uma unidade de
representação extremamente complexa, pelo acréscimo sucessivo e intermitente de
novas categorizações acerca do referente” (cf. KOCH, 2004, p. 63).
Portanto, o fenômeno em questão, para Koch, ocorre quando há uma
reativação do referente, seguida de acréscimos ou modificações em sua significação,
e também em sua referência, o que não deixa de ser uma grande estratégia de
construção textual, desempenhando funções de ordem cognitiva, discursivo-
argumentativa e interacional.
Cavalcante (2003), por sua vez, corrobora a ideia de que a recategorização
lexical se dá quando o enunciador discursivo renomeia uma forma referencial
anafórica, a fim de adaptá-la aos seus intuitos persuasivos. A autora sugere que esta
anáfora exerce algumas funções discursivas, tais como a de evitar repetições
estilisticamente indesejáveis ou de avaliar o referente ao acrescentar-lhe atributos
particulares.
Apesar de a autora ter definido o processo recategorizador como a passagem
de uma expressão designadora para outra, ela admite, em outro estudo (cf.
CAVALCANTE e JAGUARIBE, 2002), que é possível que certas repetições lexicais
que apontam para um mesmo referente não sejam co-significativas. Isto se dá
porque, mesmo que não haja novas designações, pode haver certas remodulações na
significação de um item reiterado discursivamente, como acontece com os termos
referenciais em certas produções textuais de cunho literário.
Tavares (2003) afirma que há um processo de mudança dos objetos na
enunciação, mas sustenta que a recategorização ocorre quando o locutor, ao julgar
inadequada ou insuficiente a designação de um objeto discursivo, seleciona outras
denominações mais convenientes ao contexto e aos seus propósitos comunicativos.
Neste caso, considera-se que tal uso anafórico evidencia significativas mudanças que
116
se devem a uma tentativa de construção de um léxico mais apropriado por parte do
locutor do discurso.
Para Matos (2005), o processo de recategorização não é essencialmente “uma
tentativa de construção lexical mais apropriada”, mas a sinalização de certas
transformações sofridas pelo referente ao longo do discurso, que atendem também a
outras funções de argumentação no discurso.
É óbvio conceber que a recategorização, uma vez sendo um processo
linguístico, envolve escolhas lexicais do indivíduo construtor. Contudo, nem todo
ato de recategorização pode ser definido como uma reação a um sentimento de não-
enquadramento das formas referenciais num determinado momento enunciativo.
Estamos reivindicando, como já dissemos, que a recategorização pode ser analisada
não apenas pelas funções argumentativas conscientemente ativadas pelo enunciador,
mas que também pode ser vista pelo que se expressa inconscientemente em uma
outra cena.
Pensamos com Matos (2006) que a recategorização é um processo textual que
revela as transformações de um referente, o que acarreta mudança de significação e
alterações na condução argumentativa, mas não podemos afirmar que todas as
escolhas atendem, necessariamente, a propósitos argumentativos. O conceito de
recategorização está atrelado a essa labilidade dos referentes no discurso, e é por essa
razão que pensamos ser possível retomá-la sob um outro viés: o do inconsciente.
Chamaremos de recategorização de desejo a expressão de um desejo que se processa
na interação.
Conforme demonstramos em estudo anterior (cf. BRITO, 2005), os processos
referenciais constituem um precioso recurso de auxílio na escuta psicanalítica.
Reproduzimos aqui um exemplo que analisamos no referido estudo que fizemos da
fala dos esquizofrênicos:
117
F. M. – Tá bem, hein... Eu nasci de pé, parto pédico, é chocante...
Luís Cláudio Teixeira, ele queria me matar, ele mordeu minha
língua.... Sou psicóloga também, me empresta esse seu livro.
Gosto de Skinner, esse livro é de Skinner?
F.M. - Um homem lá na Bahia quis me fazer de lésbica.... (vai
embora).
F.M. – Meu marido não veio hoje.
Psicanalista – Qual o nome dele?
F.M. – Antônio Evandro... Pode não, tem que ser moça. Tem que
ser donzela, pobre, gostar de trabalhar, rezar...
F. M. – Eu fui noiva do Carvalho, mas apareceu outro. É triste uma
pessoa morrer.
Psicanalista - Ele morreu de quê?
F. M. – De bala, mataram ele à bala.
F.M. - Esse que toca a música aqui é irmão do Roberto Carlos
cearense, ele é feio, mas aparece na foto bonito.
F.M. - Uma mulher que tá aí é parecida com a mulher que o
homem me fez chupar ela. Eu nasci de pé, minha mãe levou uma
queda. Parto pédico, por isso o povo me chama de sapatão...
F.M. - Aquela mulher que o homem me fez chupar é parecida com
aquela, vem ver, é aquela ali a Aurivete. É parecida com aquela
sem dente...28 (p.88-89)
118
ainda como sendo “parecida com aquela sem dente”. Vale notar como a
recategorização muda de repente para uma qualificação depreciativa: feia, sem
dente, o que talvez represente não a descrição da mulher, por quem se sentira
atraída, mas o sentimento em si, o próprio desejo que ela abomina.
119
6 Metodologia e análise dos dados
120
natureza não estritamente formal entre os fatos de linguagem tidos como não-
marcados, como é o caso do atravessamento do inconsciente no fio discursivo,
ampliando, assim, o leque de marcações.
Para argumentar em favor dessa “abertura” para uma outra cena discursiva,
recorremos a processos de referenciação, que podem desempenhar o papel de
eficientes marcadores discursivos, sem que, para tanto, precisem vir acompanhados
de indicadores formais (como propõe AUTHIER-REVUZ, 1982) que assinalem
convencionalmente essa marcação.
Tomamos ainda o conceito de heterogeneidade a posteriori, proposto por
Settineri (2002) e suas implicações na interpretação psicanalítica de um enunciado.
O heterogêneo a posteriori só pode ser inferido por meio de um ato interpretativo.
Acrescentamos a essa constatação que não é apenas um sentido novo que se constrói
a posteriori, mas também um referente novo, que não se desgarra de significantes e
significados. É para essa construção sígnica completa, incluindo o referente, que
direcionamos nossa análise e constatamos que os postulados lacanianos só serão
devidamente contemplados se considerarem o uso e, portanto, necessariamente,
atrelarem a supremacia do significante a seus significados e referentes correlatos.
Nossos esforços vão em direção à tentativa de evidenciar a autonomia de
certas marcas linguísticas que, inseridas em contextos específicos, promovem a
inscrição da alteridade no fio discursivo.
121
de signo e a exclusão do referente, bem como refletimos, a partir do conceito do
signo saussuriano, redimensionado por Lacan, sobre o referente presente desde
sempre na linguagem em uso do sujeito. Nossa proposta se pauta pela
caracterização da cena interpretativa, em que se dá a construção de uma outra
relação entre significantes, significados e referentes, que nasce na referenciação,
dentro de uma perspectiva textual-discursiva, mas que se recria na cena da
interpretação psicanalítica, no momento mesmo em que o sujeito estabelece relações
até então desconhecidas por ele.
Também rediscutimos a noção de recategorização, que foi abordada aqui do
ponto de vista da reconstrução operada por uma pontuação, realizada por um
psicanalista, não pelo enunciador. A esse tipo de construção do objeto-de-discurso
em outra cena, denominamos de recategorização de desejo.
Settineri (2001) analisa a questão das entidades da língua, especificamente o
recorte das unidades. O autor procura mostrar, a partir de exemplos de ditos
espirituosos, a importância desse processo na interpretação. Evocando Saussure, o
autor afirma que o recorte das unidades é um momento principal da interpretação,
na medida em que o sujeito do inconsciente pode vir a surgir. Atentamos, no
entanto, para o fato de haver não apenas, com a interpretação do recorte das
unidades, uma ressignificação, mas um processo recategorizador de referentes, que
preferimos denominar de recategorização de desejo, uma vez que o processo
recategorizador não está mais simplesmente a serviço da argumentação discursiva,
mas revela algo da ordem de uma outra cena, do desejo do sujeito.
122
Optamos por não coletar um corpus, uma vez que nosso objetivo não é elencar
as heterogeneidades ou ainda classificar as ocorrências referencias, mas, sim,
demonstrar que é possível encontrar marcas linguísticas que não se restrinjam a
estabelecer relações metaenunciativas e argumentativas, nem somente
sociodiscursivas. Esse é o ponto em que nos distanciamos da teoria das
heterogeneidades de Authier-Revuz e de outras abordagens teóricas que fazem uso
dos pressupostos da autora para finalidades outras dentro visão teórica que adotam.
O diferencial desta pesquisa não retrata exatamente uma oposição à proposta da
autora, mas, ao contrário, traz um acréscimo, um desdobramento, pois estamos
buscando analisar como os diferentes tipos de heterogeneidade enunciativa revelam,
por marcas diversas, nem sempre contempladas pela autora, a invasão de vozes no
discurso, mesmo que o sujeito não se dê conta disso. Do ponto de vista psicanalítico
(e estamos defendendo que também do ponto de vista linguístico), isso não
representa ausência de marcas, tal como postula Authier-Revuz (1982), para quem
são consideradas marcas as indicações linguísticas de que o sujeito percebeu (deu-se
conta de) que “teve sua enunciação invadida por outras vozes” – leia-se: uma voz que
representa o posicionamento discursivo do outro.
123
pretendemos, obviamente, com esta análise do exemplário do ambiente virtual,
realizar uma “interpretação”, pois esta só seria verdadeiramente efetivada em sessões
de análise psicanalítica, num ambiente apropriado, numa conjunção entre analista e
paciente. Pretendemos tão-somente identificar na fala dos sujeitos, através dos
processos referenciais e das heterogeneidades enunciativas, as marcas do discurso do
Outro alastradas no diálogo realizado nos bate-papos virtuais.
124
implementarmos nossos objetivos, não é necessária uma convivência de 24 horas
diárias em determinado lugar. Tampouco temos a preocupação social de estudar as
características de determinados grupos. As variáveis sexo, idade, classe social,
religião, grupo etc. não são relevantes para nossos objetivos, na medida em que
queremos analisar as marcas do outro, qualquer que seja ele, que se expressam nas
interações virtuais.
125
determinadas partes do profile, inclusive um bloqueio para a página de recados para
aqueles que não fazem parte da rede de amigos. Então, se é permitido um acesso a
esse ambiente, entendemos que qualquer internauta que acesse um bate-papo virtual
possa se utilizar de qualquer informação lá colocada, inclusive para a reflexão
científica, que é o nosso objetivo.
Ao entrarmos no chat do Uol, tema livre, conversas dos chats foram copiadas
e coladas em um documento Word. Não trabalharemos com as variáveis dia, hora,
minuto ou ano, uma vez que, para nossos objetivos, este tipo de informação se faz
irrelevante; isso porque estamos atentos à atemporalidade da fala, uma vez que o que
nos interessa é a fala simplesmente, como expressão do inconsciente.
Nos bate-papos29, os participantes já entram no anonimato na medida em que
interagem a partir de um nick, escolhido pelo próprio participante de acordo com a
identificação ou desejo de cada um. Assim como o Orkut, no bate-papo que
escolhemos para exemplificação foi o aberto, tema livre do UOL, qualquer pessoa
pode entrar e sair, desde que a sala não esteja com a sua lotação esgotada: 50 pessoas.
Os participantes dos chats também podem escolher a cor e o tipo de letra do nick,
assim como podem também, se quiserem, anexar uma pequena foto, ou alguma
gravura.
126
simultaneamente, para outros discursos e influenciar na recategorização de desejos.
Observamos tanto o que Authier-Revuz (1982) considera como heterogeneidade
mostrada marcada, como aquilo que ela julga ser mostrada não-marcada.
Entendemos que as marcas deixadas no texto pelo inconsciente podem ser
identificadas na fala. Para tanto, recorremos aos processos referenciais, que tomamos
como critério de nossa análise, para localizar os referentes na fala do sujeito.
127
linguagem, extremamente comuns em uma fala, mas que, no entanto, não são
reconhecidos por Authier-Revuz (1982) como representando marcações. Para nós,
as várias maneiras de marcação – vez que defendemos que estratégias desse tipo
configuram um texto como marcado – são inteiramente legítimas, já que passíveis de
serem identificadas. Ocorre que tal identificação se dará por vias não prototípicas,
em uma outra cena de acesso à maneira pela qual o sujeito, ciente ou não de seu eu,
se deixa cindir pelo Outro em sua fala, marcando, desta forma, a alteração em seu
discurso.
A nosso ver, o fato de serem estas últimas tidas como não-marcadas apenas
pelo fato de a identificação da marcação depender do conhecimento consciente do
sujeito não descaracteriza o fenômeno em si. Diferentemente da concepção de
Authier-Revuz (1982), acreditamos que não podemos, com efeito, atrelar o fator
compreensão ao fato linguístico da marcação - mesmo que este procedimento não se
dê de maneira tão explícita. Assumimos, em consonância com Cavalcante (no prelo),
que toda entidade referida, ainda que seja uma manifestação do inconsciente, é
utilizada mediante a pressuposição de que se tornará acessível na interação por
alguma via. Na produção de um ato falho, por exemplo, existe sempre, além de uma
verdade relativa ao desejo de quem o praticou, um saber concomitante no dito. Por
isso, contestamos o “dar-se conta de”, a compreensão consciente, o voltar-se para o
próprio discurso, tão caro a Authier-Revuz (1998) como a única forma legítima de
marcação.
Além dos possíveis tropeços de linguagem, identificamos também, em nossa
análise, outras manifestações do inconsciente, que venham a se expressar na fala do
sujeito, independentemente de atos falhos. Esta é outra contribuição de nossa
pesquisa aos pressupostos de Authier-Revuz e da Psicanálise freudo-lacaniana. Para
tanto, analisamos os processos referenciais que, a partir da apreensão textual de tal
pressuposição, serão compreendidos como marcadores de fatos de heterogeneidade.
128
foram de cunho estritamente dialogal, no sentido de não terem a pretensão de um
caráter interpretativo, verdadeiramente, como o que se dá em uma sessão clínica
terapêutica. Isso não impediu, no entanto, que as intervenções se prestassem a
esse destino, na medida em que o sujeito se espantou com, ou negou, seu próprio
dito. Esse ato é característico da reação de um indivíduo que se embaraça com o
seu próprio inconsciente. Vemos isso já na própria escolha de um nick em que a
pessoa diz que a escolha “não tem sentido algum, que foi feita aleatoriamente”,
mas que, ao longo da interação, se revela uma fonte de desejos.
30
Poema publicado no livro Poemas do intervalo. Fortaleza: Edições UFC, 2003. p. 26.
129
Não coro nem murcho,
Não cambaleio,
nem consinto...
E posso entreabir
as muitas portas
E esparramar no chão
o pouco dito
e o mal dizível também.
E ainda vou restar inteira
atrás do e-mail!
130
nas formas de uso da linguagem e da comunicação. É no uso que fazemos dessa
comunicação hipertextual que vamos analisar o exemplário de nossa pesquisa.
Compartilhamos com Xavier (2002) que o hipertexto vem a ser um novo
modo de enunciação, o digital. O autor afirma que enunciar é uma forma de
expressão, comunicação e interação desenvolvida e aperfeiçoada pelos homens ao
longo da história, para se relacionar comunicativamente com os outros e com o
mundo: “em sentido amplo seriam as linguagens diversas semioticamente criadas,
socialmente convencionalizadas e pragmaticamente reproduzidas em contextos
situacionais adequados nas diferentes esferas sociais” (p.97).
Dessa forma, o hipertexto descentraliza a escrita, enquanto tecnologia
enunciativa dominante, na medida em que outros sentidos, principalmente o visual,
entram em cena na interação eletrônica. Isso também põe em xeque o domínio da
comunicação verbal. No entanto, outros recursos se fazem necessários ao hiperleitor:
vários outros modos de percepção que devem ser processados “todos ao mesmo
tempo agora” (p. 100).
Vale ressaltar a interessante discussão de que Xavier (2002) lança mão,
recorrendo a Eco, Kress e Bolter, para falar sobre a emergência das tecnologias
digitais nas sociedades contemporâneas e suas implicações sobre os modos de
representação e apreensão das ideias.
A partir dos autores acima mencionados, Xavier observa as diferentes
posições de cada um quanto ao advento do hipertexto. Para Eco (1996), que analisa
alguns dos impactos do computador na sociedade letrada, é necessária a permanência
do livro como suporte de escrita, apesar da forte concorrência que vem sofrendo das
versões eletrônicas de vários gêneros textuais. Eco defende, veementemente, o livro
impresso e rechaça a escrita hipertextual. Já Kress (1990) postula a ocorrência de
uma “revolução” semiótica. Essa mudança seria provocada pelo impacto das novas
tecnologias digitais de informação que, entre outras coisas, estaria, no seu entender,
“reconfigurando e revalorizando o uso das formas visuais de representação nos
vários domínios da comunicação pública” (p. 110). O posicionamento de Bolter
131
(1994) é um tanto mais radical. O pensador afirma que estamos em pleno processo
de transição no âmbito das tecnologias de escrita. Essa transição tem levado o livro
impresso a ceder lugar à escrita eletrônica comandada pelo computador,
instrumento que é ambivalentemente revolucionário e evolucionário. “Estamos
vivendo a última era da prensa e, por isso, as evidências da senilidade do livro
impresso estariam espalhadas por toda a parte”. (p.125)
Assim como Xavier (2002), também entendemos que é necessário ter um
pouco mais de discernimento quanto à exaltação da escrita eletrônica viabilizada
pela Internet: nem exaltaremos, nem condenaremos, apenas analisaremos,
objetivamente, o que a interação pela Web favorece nas relações humanas. Nosso
objetivo, aqui, é discutir, como bem observou Crystal (2005), a alternativa nova de
comunicação humana que a massificação do computador harmoniza através da
Internet.
Como afirma Xavier (2002), é o computador que promove o encontro de
todos os modos de enunciação no hipertexto:
31
Não é o nosso interesse aqui fazer uma discussão sobre as divergências quanto a esse novo
modo de enunciação.
132
muitas características comuns, como os elementos de natureza
hipertextual. (p.94)32
32
A Internet, por sua própria constituição, comporta diferentes gêneros: como a carta, a
propaganda publicitária, o artigo de opinião, etc.
33
Cf. sobre os diferentes gêneros na Internet em Araújo (2006).
133
escreve, ou, no caso, que tecla, entrementes que “fala”, e diz muito mais do que
intencionava dizer em uma interação.
134
nem poderia ser – interpretá-los. Cumpre-nos apenas demonstrar como podem ser
identificadas as marcas para possíveis interpretações psicanalíticas em sessões reais
de análise. Com isso, estamos contribuindo não somente para os estudos linguísticos
sobre heterogeneidades enunciativas, como também para as pesquisas em Psicanálise
lacaniana, sempre centradas numa visão saussuriana de signo linguístico.
135
(02:42:19) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: só c a gente conversar
maix...
(02:42:28) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: claro
(02:42:43) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: me conta mais sobre a
sua relação com os seus pais
(02:42:48) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: mas nao vai dar
problemax pra mim naum?!
(02:43:18) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: não fique tranquila
(02:44:21) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: Axim... eu uso muito
preto, franja, escuto muito simple plan, blink, evanescence, 30 seconds to mars...
(02:44:59) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: então essas músicas são
reflexos de seus problemas
(02:45:04) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: e eles dizem q devo
escutar musicas menos pesadas...
(02:45:26) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: É, sei disso... elas
refletem o q sinto em vários momentox da minha vidinhah
(02:45:54) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: bem, tenho q ir
(02:46:11) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: oww... td bem!!! espero
ter lhe ajudado
(02:46:19) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: claro q xim
(02:46:30) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: obg e tchau
Neste exemplo, podemos, logo em um primeiro impulso, dizer que esse nick
é muito peculiar, uma vez que, no ambiente virtual bate-papo, os nicks escolhidos
são geralmente atraentes e, por vezes, pornográficos, com o objetivo de chamar a
atenção do outro para uma “teclada” ou uma transa virtual. É interessante notar que
o sujeito não se autonomeou, por exemplo, como Linda, Morena, Lulu, Alice, etc,
apelidos geralmente preferidos por aqueles que participam desse tipo de ambiente
virtual de interação. O escolhido foi uma alcunha que marca o distanciamento entre
o que se quer mostrar no chat e o que se é na realidade. A “menina problematik”
queria ou ser identificada por uma tribo, ou apontar para alguma coisa, ou ambas as
coisas. O fato é que o referente “menina problematik” já estabelece um
distanciamento entre o enunciador do discurso e as diferentes vozes aí identificadas
e não assumidas pelo sujeito, uma vez que o sujeito heterogeneizou o seu discurso.
136
Temos que o apelido recategoriza o sujeito real da enunciação ao mesmo tempo em
que o ressignifica, ou seja, torna-o outro, um outro referente, além disso.
Nesse ambiente, pouco se quer falar e muito menos escutar; vemos isso nesta
passagem:
137
(02:42:43) universitário (reservadamente) fala para MeNiNaPrObLeMaTiK: me conta mais sobre a
sua relação com os seus pais
(02:42:48) MeNiNaPrObLeMaTiK (reservadamente) fala para universitário: mas nao vai dar
problemax pra mim naum?!”
Existe uma voz que diz: sou problemática, mas não quero problemas com
isso, mesmo quando o sujeito tem a proteção de uma tela que guarda sua face. Nesse
caso, outras situações discursivas são barradas para referendar a expressão referencial
“menina problematik”. Essa barra parece se manifestar pelo fato de a “menina”
recusar certas “expressões referenciais”, como bem notou Lima (2009). Desta forma,
ao recusar certas “expressões referenciais”, a menina recusa um desejo, ao mesmo
tempo em que o assimila, não sabendo exatamente de onde isso vem. Todavia, esse
desejo faz eco, é assimilado e repetido em seu próprio nick. Por isso, ela recua diante
dos problemas - destes, ela quer manter distância, assim como de seu desejo, que é
barrado e que é protegido no bate-papo, virtual que seja, mas que se manifestou em
toda a sua “problematik”.
Como vemos, há marcas linguísticas, não só de expressões referenciais, mas
de outras pistas do cotexto que levam ao reconhecimento de vozes do inconsciente,
dentro das quais há referentes irreveláveis, mas, ainda assim, indiciáveis por marcas.
Não se deve, pois, limitar-se à afirmação de que o significante “salta” sozinho, já que
ele está, necessariamente, preso a um significado construído no momento da
enunciação, e a um referente, dos quais o sujeito não se dá conta.
Dentre outros aspectos, demos continuidade a essas constatações refletindo
sobre as marcas linguísticas da presença do inconsciente a partir da comunicação
eletrônica. Mostraremos que o nick não é somente um nome escolhido
aleatoriamente, pois ele pode revelar a história de um sujeito que deseja mais além
do que pode alcançar sua consciência. Desta forma, recorremos, como mostramos
em nossa discussão anterior, aos pressupostos psicanalíticos e ao conceito de
recategorização, já discutido acima, para apontar para uma nova forma de
recategorizar, que escapa a qualquer análise contextual de organização consciente do
138
texto e do discurso; diríamos ainda que foge a uma compreensão apenas cognitiva
dos processos referenciais. Como dissemos, denominamos de recategorização de
desejo34 a essa forma de nomeação que encontramos não só nos bate-papos virtuais,
mas também em outros tipos de interação mediatizada pelo computador, ou não.
139
(06:17:10) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eh americano
(06:17:20) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: ai vc pode ver uns videos
meus tbm...
Vemos neste diálogo que o nick LUMPY significava muito mais do que um
nome escolhido aleatoriamente, sem importância, pois, como diz Crystal (2002), o
“nick é a identidade eletrônica [e sempre] diz alguma coisa sobre quem são e como
agem os usuários de chat” (p. 160). Os nicknames não só dizem sobre quem são os
usuários, como também expressam alguma coisa do sujeito, como no trecho:
“(06:17:53) LUMPY (reservadamente) fala para Bia: eh um alce azul
141
Mais do que uma “identidade eletrônica”, podemos dizer que existe uma
identificação com o apelido em questão. LUMPY foi recategorizado e sofreu também
uma ressignificação, que se refletiu na própria expressão referencial: um alce azul.
Quando Lumpy diz: “eu ia falar viadinho... mas ia pegar mal”, ele se voltou
para o seu próprio dizer; dessa forma, o referente foi recategorizado, mesmo no
sentido empregado pela Linguística de Texto, e o sentido sofreu uma ressignificação:
viadinho por alce. Importa à Psicanálise o que essa recategorização representaria
para a história de vida do sujeito.
35
A separação do exemplário, conforme os critérios de análise, é apenas para fins de pesquisa,
uma vez que os critérios se imbricam e se justapõem.
142
pela autora a partir da perspectiva psicanalítica. As “coisas” são colocadas como
objeto-real a nomear, e as palavras, como o instrumento utilizado no processo
designativo, o aparelho simbólico significante. Acontece que o real36 é sempre
inalcançável em sua essência, e a linguagem, uma vez constitutivamente falha, não é
suficientemente adequada para nomeá-lo.
36
Segundo Žižek (1992), o "real" resulta ser um termo bastante enigmático, e não deve ser equiparado
com a realidade, uma vez que a nossa realidade está construída simbolicamente; “o real, pelo contrário, é
um núcleo duro, algo traumático que não pode ser simbolizado (isto é, expressado com palavras). O real
não tem existência positiva; só existe como abstracto.” Para o autor, a realidade pode ser desmascarada
como uma ficção; basta ter presente certos aspectos - pontos indeterminados - que têm a ver com o
antagonismo social, a vida, a morte e a sexualidade. Temos que enfrentar estes aspectos se quisermos
simbolizá-los. O real não é nenhuma espécie de realidade atrás da realidade, mas sim o vazio que deixa a
própria realidade incompleta e inconsistente. É o espectro do fantasma; o próprio espectro em si é o que
distorce a nossa percepção da realidade. A trilogia do simbólico/imaginário/real, inventado por Lacan
(1954-55) se reproduz dentro de cada parte individual da subdivisão. Há também três modalidades do
real: o "real simbólico", em que o significante é reduzido a uma fórmula sem sentido (como em física
quântica, que como toda ciência parece arranhar o real, mas só produz conceitos apenas compreensíveis);
o "real real", que é algo horrível, aquilo que transmite o sentido do terror nas películas de terror; e o "real
imaginário", que é como algo insondável que permeia as coisas como um pedaço do sublime. A
psicanálise ensina que a realidade (pós-moderna) precisamente não deve ser vista como uma narrativa,
mas como o sujeito há de reconhecer, suportar e ficcionar o núcleo duro do real dentro de sua própria
ficção.
143
A diversidade de figuras linguísticas nas quais esse fenômeno se apresenta é
imensa. Authier-Revuz (1998, p. 24) coloca essa dificuldade explicando que as
formas de não-coincidências das palavras com as coisas
aparecem, de forma notável, por um lado, no plano dos fenômenos
“tratados”, reflexivamente, pelos enunciadores, entre outros, a metáfora, o
neologismo, o eufemismo e a hipérbole, e um conjunto de oposições
gramaticais (finitude, número, tempo, modo...) muito raramente em causa
nos outros campos de não-coincidência e, por outro lado, no plano das
formas de glosa, a importância particular da modalização explícita que
apresenta uma encenação complexa de recursos modais da língua
(modalidade de enunciação, polaridade afirmativa/negativa, auxiliares
modais, modos e tempos com valor modal, advérbios, subordinadas...).
144
pertence), mas na análise das heterogeneidades nesta outra cena, viabilizada por um
sujeito que deseja.
(05:31:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: =~.~= oi gatinha sera
que vc poderia tc comigo????
(05:31:03) Bia (reservadamente) fala para lover boy: oi, td b/
(05:31:06) lover boy (reservadamente) fala para Bia: 21
(05:32:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrsrs
(05:32:10) lover boy (reservadamente) fala para Bia: e o q gosta de fazer de
fds
(05:33:05) Bia (reservadamente) fala para lover boy: adoru internet,
cinema...
(05:33:07) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrs eu tmbm
(05:34:08) Bia (reservadamente) fala para lover boy: gostei do seu nick
(05:34:11) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrs
(05:35:02) lover boy (reservadamente) fala para Bia: brigaduuuuuuuuuu
(05:35:40) Bia (reservadamente) fala para lover boy: porke esse nome?
(05:36:01) lover boy (reservadamente) fala para Bia: =~.^=
(05:36:09) lover boy (reservadamente) fala para Bia: alvaro
(05:37:02) Bia (reservadamente) fala para lover boy: escolheu lover boy por
que/
(05:37:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: vc sabe o q significa
LOVER BOY
(05:37:09) Bia (reservadamente) fala para lover boy: o q significa?
(05:37:40) lover boy (reservadamente) fala para Bia: amante
37
Optamos por intitular cada exemplo de nossa análise de acordo com o relato da interação
virtual, como se fosse um relato de um caso clínico.
145
(05:38:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrs
(05:38:20) lover boy (reservadamente) fala para Bia: estranho né
(05:38:22) Bia (reservadamente) fala para lover boy: é mesmo?
(05:38:40) Bia (reservadamente) fala para lover boy: vc se sente assim?
(05:38:43) lover boy (reservadamente) fala para Bia: ñ
(05:38:50) lover boy (reservadamente) fala para Bia: eu ñ sabia o q
significava
(05:38:54) Bia (reservadamente) fala para lover boy: soube agora?
(05:38:59) lover boy (reservadamente) fala para Bia: fikei sabendo a poko
tempo
(05:39:02) lover boy (reservadamente) fala para Bia: rsrsrsrs
(05:39:05) lover boy (reservadamente) fala para Bia: mais acho legal
(05:39:10) lover boy (reservadamente) fala para Bia: =~.^=
(05:39:15) Bia (reservadamente) fala para lover boy: e continuou com o
nick?
(05:39:17) lover boy (reservadamente) fala para Bia: sim
(05:39:27) lover boy (reservadamente) fala para Bia: vamos c diser q sim e ñ
146
preferido, indicando a cidade de origem, ou, ainda, apelidos que funcionam como
uma alusão a personalidades famosas da televisão, além de nicknames híbridos, no
que se refere à mistura das línguas portuguesa e inglesa, ou ainda nicks só com
palavras estrangeiras, como em lover boy. No exemplo em pauta, o falante mostra
não ter consciência do que motivou a escolha da designação. Nesta interação, o
falante recorreu aos emoticons, como um recurso para simular a presença física,
quem sabe como um reforço de sua busca:
“(05:31:03) lover boy (reservadamente) fala para Bia: =~.~= oi gatinha sera
que vc poderia tc comigo????
Araújo (2005) explica que a palavra emoticon vem do inglês emotion + icons
e significa, literalmente, ícones de emoção. “Estes elementos, que resultam da
combinação entre os caracteres disponíveis no teclado do computador,
transformaram-se em marcas relevantes nas comunicações via Internet porque os
participantes não contam com a presença física uns dos outros” (p.10). Os emoticons
são sinais que revelam aquilo que o interlocutor está pensando ou sentindo, como
riso, choro, tristeza, raiva, etc., daí por que são também relevantes para nossa análise
do contexto como um todo.
Neste exemplo, vemos que o lover boy primeiramente fez uma cara de
gatinho e, no decorrer da interação, desenha outra cara de gatinho piscando. Para
tanto, apelou para recursos do próprio teclado para criar as figuras. Deste modo, com
a ajuda dos emoticons, o falante instalou um clima de sedução entre ele e Bia, apesar
de ele achar estranho o nick e negar a sua condição de amante:
147
Observamos que o sujeito, mesmo afirmando não saber o significado das
palavras, se identificou com o nick e permaneceu com ele, mesmo achando estranho
e diferente. Lover, em sua tradução literal, quer dizer “amante, amado, namorado”, e
boy significa “menino, garoto, moço”; são palavras comuns na nossa língua. Desta
forma, pensamos que a irrupção do estrangeiro, responsável pelo comprometimento
da transparência do dizer (o que consubstancia um procedimento marcativo, que se
revela linguisticamente) define o outro no fio discursivo.
Nesta interação, Hórus, assim como Lover Boy, também alega desconhecer o
significado de seu nick:
Paola
23:31:19
entra na sala
Paola 23:31:47 bo
reservadamente fala com horus a noite
horus 23:32:05 oi
reservadamente fala com Paola boa noiea
horus 23:32:15
reservadamente fala com Paola
sim
Paola 23:32:25 tc
38
Hórus é um Deus egípcio, é o deus dos céus, muito embora sua concepção tenha ocorrido após a morte
de Osíris. Tinha cabeça de falcão e os olhos representavam o sol e a lua. Matou Seth, tanto por vingança
pela morte do pai, Osíris, como pela disputa do comando do Egito. Após derrotar Seth, tornou-se o rei dos
vivos no Egito. Perdeu um olho lutando com Seth, que foi substituído por um amuleto de serpente, (que
os faraós passaram a usar na frente das coroas), o olho de Hórus, (anteriormente chamado de Olho de Rá,
que simbolizava o poder real e foi um dos amuletos mais usados no Egito em todas as épocas. Depois da
recuperação, Hórus pôde organizar novos combates que o levaram à vitória decisiva sobre Seth. O olho
que Hórus feriu (o olho esquerdo) é o olho da lua, o outro é o olho do sol. Esta é uma explicação dos
egípcios para as fases da lua, que seria o olho ferido de Hórus. Alguns detalhes do personagem foram
alterados ou mesclados com outros personagens ao longo das várias dinastias, seitas e religiões egípcias.
Por exemplo, quando Heru (Hórus) se funde com Ra O Deus Sol, ele se torna Ra-Horakhty. O olho de
Horus egípcio tornou-se um importante símbolo de poder.
148
reservadamente fala com horus de onde?
Paola 23:33:36
r
reservadamente fala com
horus srsrsrs
Paola 23:33:40 então o q vc faz aí
reservadamente fala com horus em SP?
horus 23:34:00
adestrador
reservadamente fala com
Paola de cães evc?
Paola 23:34:37 e
reservadamente fala com horus studo
Paola 23:34:56
reservadamente fala com horus
22
Paola 23:35:01
reservadamente fala com horus
e vc?
horus 23:35:31 34
reservadamente fala com Paola anos
Paola 23:35:52 oq
reservadamente fala com horus significa horus?
horus 23:35:56
reservadamente fala com Paola
curt caras mais velhos?
149
Paola 23:37:05
reservadamente fala com horus
rsrsrs não acredito
Paola 23:37:34 achei diferente não tem nenhum
reservadamente fala com horus significado?
horus 23:38:27 é
reservadamente fala com Paola grego
horus 23:39:15 ja
reservadamente fala com Paola não sei
Paola 23:41:08
então se vc escolheu esse apelido por algum motivo
reservadamente fala com
horus específico
150
horus 23:43:40 tenho183de atura98kg cabelos e olhos
reservadamente fala com Paola castanho evc
Paola 23:44:0
reservadamente fala com horus
Nossa
Paola 23:44:37
então se Horus for realmente um Deus grego tem tudo
reservadamente fala com
horus haver com vc
Paola 23:45:56 r
reservadamente fala com horus srrsrs
Paola 23:46:09 eu
reservadamente fala com horus sabia
horus 23:46:32 o
reservadamente fala com Paola que??
151
horus 23:47:19 s
reservadamente fala com Paola sim
Paola 23:47:54
então me diga qual é pra ver se bate com o q estou
reservadamente fala com
horus imaginando
horus 23:49:14 f
reservadamente fala com Paola fala
horus 23:50:06 s
reservadamente fala com Paola sumiu
Paola 23:51:23
Um homem com a descrição q vc deu e q coloca um
reservadamente fala com
horus nome forte como Horus
Paola 23:52:31 r
reservadamente fala com horus srsrs
152
horus 23:52:33 rsrsrs
reservadamente fala com Paola rsrsr???
Paola 23:52:37 n
reservadamente fala com horus não
153
horus 23:57:22 so m vendo para vc
reservadamente fala com Paola saber!!rsrsr
Paola 23:57:40 eu
reservadamente fala com horus acho q é
(....)
horus 23:41:15 mas de amor ele não tem nada é
reservadamente fala com Paola umpit Bull”
Primeiro, Hórus informa que esse é o nome do seu cachorro, no entanto, não
é qualquer cachorro: é um pit bull. O pit bull é considerado um cachorro agressivo,
valente, forte, temido, etc. Essas qualidades têm um peso social muito grande e são
muito valorizadas como símbolo de masculinidade: “durante a primeira metade do
século XX, a imagem do homem másculo foi ligada ao trabalho braçal e à
industrialização” (SEMÍRAMS, 2007) Ora, esse cultivo da agressividade como
sinônimo de masculinidade deveria ter ficado no passado, na medida em que as
relações hoje são outras, mais igualitárias, e isso não significa uma diminuição no
papel masculino que necessite ser compensada pela violência, doméstica ou não, mas
uma adaptação na qual o homem possa se humanizar e não precise parecer que é um
herói o tempo todo. No entanto, não é isso o que acontece, vemos os homens se
154
mostrando de forma agressiva, por vezes acintosa, em busca de aprovação e respeito.
O trecho abaixo, da interação, reflete exatamente isso:
“Paola 23:51:23
Um homem com a descrição q vc deu e q coloca um
reservadamente fala com
horus nome forte como Horus
Paola 23:52:31 R
reservadamente fala com horus srsrs”
39
Calligaris (2009), em uma entrevista à revista Veja, diz o seguinte sobre o homem: “O
homem ainda mente muito sobre sexo? Sim, sobretudo dizendo que pensa nisso mais do que
verdadeiramente pensa. O homem mente porque um dos lugares onde ele joga e arrisca sua
imagem masculina é no sexo. Ele mente também sobre o caráter aventuroso dele e sobre a
própria intensidade de seu interesse por sexo. Ele vive tentando demonstrar que o sexo está
constantemente presente na cabeça dele, o que muitas vezes não é verdade. Isso porque a
intensidade de seu desejo é uma demonstração de virilidade. Para a mulher, de alguma
forma, é mais fácil. Mesmo às que têm uma vida sexual pobre não faltam ocasiões em que
podem se assegurar da própria feminilidade. Um exemplo claro é entrar em um restaurante e
ver que há vários homens olhando para ela. Já para o homem, isso não é tão fácil. Para se
assegurar de sua masculinidade é necessário que ele cultive seu desejo sexual.”
155
Como já dissemos anteriormente, o corpus foi colhido também pelos alunos do
curso de Letras, da disciplina de Língua Portuguesa: Texto e Discurso, no qual eles
foram orientados a entrar no chat e obter o significado do nick. Eles também sabiam
que o material iria ser analisado por uma psicanalista e que faria parte da nossa tese de
doutorado. Cremos que ficar a par de todas essas informações causou uma certa
ansiedade nos próprios alunos responsáveis pela coleta dos dados. Isso justifica a
insistência de Paola em busca de um significado ideal que ela pensa ou deseja existir:
“...gostaria de saber um pouquinho de sua personalidade se vc me dissesse o motivo da
escolha de Horus seria uma forma de te conhecer um pouco”. A pressa de alguns dos
alunos, como o Universitário da menina problematik, também pode denunciar uma
defensiva inconsciente, desta vez dos próprios alunos.
40
Como ilustração dessa “implicância”, citamos o poema de Mário Quintana:
“Os psicanalistas, como o caso deles me preocupa!
Eles próprios sofrem de um dos mais terríveis complexos do mundo,
Que é o complexo dos complexos.
Ah, se a gente pudesse ter uma simples e amistosa conversa com eles,
sem que descubram coisas por trás!
E se, por acaso,
Tombar um ovo choco no chão,
Por que hei de ser um maníaco homicida,
Um fabricante de anjinhos?!
Por que não vão eles inquirir sobre isso o próprio acaso,
Que não sabe de nada... (Velório sem defunto, 1990)
156
escapa. Diferentemente de seus colegas de turma, ela não receia, pelo contrário, expõe-
se, pergunta, quer saber: sou h ou m?
157
(07:28:57) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: ´´e flavia
mesmo
(07:29:25) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: tudo bem?
(07:29:50) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: olá
(07:29:52) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: tb
(07:29:54) deadpool (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: e vc?
lewry fala para KEKARITOMENE: adorei teu nome gata se eu for
(07:30:05)
seguir pelo teu nome você é linda
(07:30:16) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para deadpool: cmg esta
bem,so meio cansada...
(07:30:37) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: é..
(07:30:52) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: e esse seu
apelido..é engraçado
(07:31:11) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: de onde tirou?
(07:31:22) lewry fala para KEKARITOMENE: beleza,mas nem eu sei o por que
158
(07:35:09) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: tudo vc
éoq?
(07:35:35) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: mulher
159
(07:41:11) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): nao sou
viado
(07:41:21) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: deixa
pra lá .....
(07:41:31) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): vc é?
(07:41:50) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): ô porq
deste apelido?
Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: mano
(07:42:00)
vc tah viajando nas ideia !!!
(07:42:11) lewry fala para KEKARITOMENE: não acho isso,nem todos daqui
tem ok me desculpa se você entendeu assim
(07:42:47) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: acho q
vc tem uns 15 no maximo !!!!!
(07:43:06) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: q bom
(07:43:34) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ):
kkkk...se enagou completamente..
(07:43:50) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE:
seraaaaaaaa........
(07:43:52) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): qual
teu nome?
lewry fala para KEKARITOMENE: gostei do seu apelido posso se
(07:43:55)
saber de onde,é uma escolha sua fala se quiser,eu entenderei
(07:44:05) Oriental ( H ) (reservadamente) fala para KEKARITOMENE: me fala
o seu ?
(07:44:20) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: é em
grego.significa cheia de graça
(07:44:36) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ):
perguntei primeiro
(07:45:05) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): +...é
flavia
(07:45:17) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: pq não esta
estudando?so trabalhando?
(07:45:22) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: vc vai ficar fazendo esse
joguinho ?
(07:45:39) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: por incrivel q
pareça,to falando serio
(07:45:59) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): + vc é
homem ,né?!
(07:46:14) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: mas claro .......
(07:46:39) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): quantos
anos?
(07:46:56) lewry fala para KEKARITOMENE: eu esqueci de falar que onde eu
trabalho faço curso de hardware e software
(07:46:58) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: 23 eo seu
(07:47:46) Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: eae perdeu a fala !!!!!!
Oriental ( H ) fala para KEKARITOMENE: vc tah fazendo muito
(07:48:28)
favor...heimmmm
(07:48:46) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): calma
160
(07:48:48) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): 22
(07:49:24) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para Oriental ( H ): pq vc é
taõ impaciene?
(07:49:42) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: em relação ao
meu apelido
(07:50:02) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: faço
desenvolvimento de software
(07:50:08) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: 1º semetre
(07:51:29) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: oi
(07:51:47) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: ker tc?
(07:52:01) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: vc e h ou m???
(07:52:05) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: m
(07:52:17) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: e vc?
(07:52:45) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: h
(07:52:59) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: q bom
(07:53:08) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: ta td
bem?
(07:53:43) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: td ,vctc dond ,tem qtos anos
161
mim
(08:02:38) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: + num é
o shaman nao,é?
(08:02:56) lewry fala para KEKARITOMENE: não gata,que isso para mim não
precisa se desculpar
(08:03:00) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: e vcs tem
tantas mulheres assim?
(08:03:12) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: shaman???
(08:03:21) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para lewry: blz..bjo..tchau...
(08:03:36) KEKARITOMENE (reservadamente) fala para shawn #6#: sim
(08:03:41) lewry fala para KEKARITOMENE: agora é pra valer
(08:04:14) shawn #6# fala para KEKARITOMENE: isso e banda d heavy
162
palavras, a anatomia não é o destino, isso porque a sexualidade está não
especificamente no corpo em si, no corpo real, anatômico, mas na linguagem.
Kekaritomene e seus parceiros demonstram claramente isso em suas constantes
indagações sobre ser homem ou mulher.
163
Que marcas de heterogeneidade enunciativa poderíamos identificar nessas
ocorrências, em que saltam pistas de desejos, insatisfações, incompletudes nas vozes
do inconsciente? Nenhuma que a literatura sobre o assunto tenha descrito, mas elas
existem em todos esses indícios, ora manifestados por expressões referenciais, ora
realizados por outras sinalizações linguísticas que auxiliam na recategorização dos
referentes, ainda que isso não seja homologado por expressão referencial alguma.
ANALISTA de
BAGÉ 21:29:10
entra na sala
ANALISTA de BAGÉ
21:31:02 Percebo que vc gosta muito de olhar o passeio
reservadamente fala com público....
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:31:50 Quem sabe, sentir a brisa roçando ao rosto...
reservadamente fala com
41
O Analista de Bagé é um livro de Luís Fernando Veríssimo, é a combinação entre a rude
sinceridade e a franqueza do homem do interior gaúcho. São 27 hilariantes histórias do
impagável analista gaúcho, freudiano, machista, que costuma tratar seus pacientes a tapa. É um
clássico do humor brasileiro. Com práticas pouco convencionais, o analista barbudo, macho e
sistemático não deixa de picar fumo e tomar chimarrão nas consultas. O sotaque forte e suas
conclusões sobre os problemas dos clientes geram uma combinação divertida. Na obra, Luís
Fernando Veríssimo apresenta as relações analista/cliente de forma irônica e debochada,
fazendo alusões ao regionalismo, à política nacional, à intelectualidade – sempre de forma
iconoclasta e irreverente.
164
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:32:21 e imagino tuas faces venustas, serenas, suaves
reservadamente fala com como a seda...
MoçaNaJanela
ANALISTA de
BAGÉ 21:34:01 Uma moça na janela é muito sugestivo para uma
reservadamente fala com pluralidade de leituras lírico-românticas!!!
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela
21:34:52 rsss....Gosto de apreciar o que a natureza pode me
fala com ANALISTA de mostrar, como a lua..o sol...
BAGÉ
ANALISTA de BAGÉ
21:35:42 Mas que belo gosto, isso reflete tua'lma teu ser,
reservadamente fala com teu caráter cândido.....
MoçaNaJanela
165
MoçaNaJanela 21:36:11 aanalisando a alma
fala com ANALISTA de BAGÉ humana...rss
ANALISTA de BAGÉ
21:36:40 Principalmente das moças incautas e um tanto
reservadamente fala com quanto sublimes.....
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:38:03
reservadamente fala com Não... hehehe
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:38:21 Sou apenas uma cobaia do
reservadamente fala com destino!!! hhehe
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:38:48
reservadamente fala com Não me revelaste o teu nome....
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela 21:38:57
Por acaso é um professor de
reservadamente fala com ANALISTA
de BAGÉ literatura?..poeta....curioso..ou o que?
MoçaNaJanela 21:39:13 L
fala com ANALISTA de BAGÉ lua
166
ANALISTA de BAGÉ 21:39:37 Sou apenas, hum...
reservadamente fala com MoçaNaJanela cobaia!!
ANALISTA de
BAGÉ 21:42:32 Quando deparei-me com o teu nick, a minha tristeza de
reservadamente fala com ser uma cobaia logo converteu-se em súbita alegria.....
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela 21:42:40
qdo a cabeça não pensa o corpo padece...frase
reservadamente fala com ANALISTA
de BAGÉ de botiquim..mas profunda
MoçaNaJanela 21:44:16 Vc se
reservadamente fala com ANALISTA de BAGÉ superou....rssss
ANALISTA de BAGÉ
21:44:56 Sou apenas uma cobaia da lingüística
reservadamente fala com de tex.... hum! Deixxa pra lá!!!
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela 21:46:09
reservadamente fala com pq essa de deixa pra lá?
ANALISTA de BAGÉ
167
ANALISTA de BAGÉ
21:46:15 Assim, um nome que inspira paixão, amor etéreo e
reservadamente fala com sublimações n'alma???
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela 21:46:26
Não..mas todos os meus amigos(as) aqui
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ me chaman de lua
MoçaNaJanela 21:47:32
sou uma apaixonada pela lua..e como ela
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ cheia de fases
MoçaNaJanela 21:52:13
é de sua autoria, ou de quem? Belo o que
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ vc escreveu
168
reservadamente fala com ANALISTA de Cobaia....
BAGÉ
MoçaNaJanela 21:53:37
reservadamente fala com ANALISTA de rsssss
BAGÉ
MoçaNaJanela 21:54:03
reservadamente fala com ANALISTA de ou analista...qual teu nome?
BAGÉ
ANALISTA de BAGÉ
21:54:16 Não, mas revelarei para ti o meu segredo se tu
reservadamente fala com dispensares para mim paciência!
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela 21:54:21
Seu amigo deve ser uma
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ figura...rs
ANALISTA de BAGÉ 21:54:35 Se é!!...
reservadamente fala com MoçaNaJanela hehehe.
169
MoçaNaJanela 22:00:40
Rssss..quer dizer que passei no
reservadamente fala com
ANALISTA de BAGÉ teste
ANALISTA de
BAGÉ 22:00:58 Agora, peço desculpas a ti, a ti mesma se
reservadamente fala com eu te aborreci com essa minha revelação...
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
22:01:10
reservadamente fala com Na realidade, sim!!
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela 22:01:36
reservadamente fala com Não por isso
ANALISTA de BAGÉ
ANALISTA de
BAGÉ 22:02:01 Você me autoriza, eu salvar esse
reservadamente fala com nosso diálogo e apresentá-lo na faculdade?
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela 22:02:41
Não poderia dizer não , vc foi
reservadamente fala com
ANALISTA de BAGÉ muito gentil
ANALISTA de BAGÉ
22:02:42 Não se
reservadamente fala com aborreça comigo!!!
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela 22:04:54
Sabe Julio, as pessoas muitas vzs assim como
reservadamente fala com
ANALISTA de BAGÉ eu, entrão aqui só para passar o tempo
170
Não penses que aquilo tudo que eu falei não seja
ANALIST verdade a teu respeito; ainda que atendendo a uma tarefa na
A de BAGÉ 22:05:09
reservadamente fala
qual vc não poderia tomar conhecimento até que a tal se
com MoçaNaJanela concretizasse, eu pude realmente perceber o quanto tu és
simpática...
O Analista de Bagé não perde tempo, depois de lançar alguns versos ao espelho,
ele logo vai ao que o interessa:
“ANALISTA de
BAGÉ 21:34:36 Afinal, qual seria então a razão do
reservadamente fala com teu nick?!!
MoçaNaJanela
MoçaNaJanela
21:34:52 rsss....Gosto de apreciar o que a natureza
fala com ANALISTA de pode me mostrar, como a lua..o sol...”
BAGÉ
ANALISTA de BAGÉ
21:38:03
reservadamente fala com Não... hehehe
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:38:21 Sou apenas uma cobaia do
reservadamente fala com destino!!! hhehe
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:38:48 Não me revelaste o teu nome....”
reservadamente fala com
171
MoçaNaJanela
ANALISTA de BAGÉ
21:44:56 Sou apenas uma cobaia da lingüística de tex....
reservadamente fala com hum! Deixxa pra lá!!!
MoçaNaJanela
42
Segundo o Houaiss, cobaia é um substantivo feminino e quer dizer: qualquer animal ou
pessoa que se usa em experimentos científicos. 2 campo, assunto ou objeto de experiências. Ex.:
ele não a amava, apenas a usava.
43
O termo demanda utilizado na clínica psicanalítica vai diferenciar-se do sentido que existe no
vocabulário jurídico: o termo demanda tem sua origem no campo comercial e designa o pedido,
a solicitação, a encomenda como contraponto do termo oferta, que fundamneta a relação
demanda-oferta. Segundo Fernandes, Luft & Guimarães (1994) demanda é também referido
como sinônimo da ação judicial, bem como do termo litígio. Freud (1990) empregou o termo
Begierde para se tratar da propensão, desejo, ou anseio por algo. Esse sentido estava ligado aos
traços e inscrições mnemônicas na sua relação com a sexualidade, sempre relacinado ao
inconsciente. Lacan (1999) utiliza o termo Begierde para definir a demanda como desejo de um
desejo, no seu distanciamento da demanda em si e da necessidade.
172
onde está a causa, a Coisa inacessível, objeto desde sempre perdido. A teoria do
sujeito dividido, tão caro a Authier-Revuz (1982), mostra-nos justamente que somos
destinados a nunca nos satisfazermos com um mundo calculado para nos fornecer
prazeres.
Desta forma, vemos o campo da enunciação marcado por uma
heterogeneidade desconhecida pelo sujeito, mas que se faz ouvir e deixa as suas pistas
como inevitável, na descrição mesma dos fatos da língua, de escolhas estranhas à
linguística como tal, que dizem respeito somente ao sujeito e à sua relação com a
linguagem e com o seu inconsciente.
E a MoçaNaJanela fica a falar sozinha “na janela”...
MoçaNaJanela 21:52:13
é de sua autoria, ou de quem? Belo o que
reservadamente fala com ANALISTA de
BAGÉ vc escreveu
“MoçaNaJanela 22:04:54
Sabe Julio, as pessoas muitas vzs assim como
reservadamente fala com
ANALISTA de BAGÉ eu, entrão aqui só para passar o tempo”
174
uso da linguagem verbal, não se fez apenas através de marcas tipográficas, como
175
(08:40:46) seu amigo2 fala para Gil!: por que eu gosto de ser amigo das outra s
pesoa
(08:41:13) Gil! fala para seu amigo2: SERÁ QUE UM DIA IREMOS SER AMIGOS?
(08:41:38) seu amigo2 fala para Gil!: sim vc quiser ser minha amiga toda hora
(08:42:50) Gil! fala para seu amigo2: QUEM VC ACHA QUE É MAS FIEL NUMA
AMIZADE, O HOMEM OU A MULHER? ======O VIADO E MAIS FIEL DE TODOS
(08:43:32) seu amigo2 fala para Gil!: DA PESSOA
(08:43:41) Gil! fala para seu amigo2: MAS POR EXPERIENCIA PRÓPRIA?
(08:43:58) seu amigo2 fala para Gil!: MULHER
(08:44:16) Gil! fala para seu amigo2: SÉRIO!
08:44:25) seu amigo2 fala para Gil!: SIM
(08:44:35) Gil! fala para seu amigo2: ENTÃO AS MINHAS CHANCES SÓ
ALMENTARAM
176
SE CULTIVAR A AMIZADE?
(08:48:02) seu amigo2 fala para Gil!: E SSBE COMPREENDER AS PESSOA
(08:48:07) seu amigo2 fala para Gil!: E MUITO
(08:49:06) Gil! fala para seu amigo2: EU ACHO QUE O COMPANHEIRISMO É
FUNDAMENTAL
(08:49:14) seu amigo2 fala para Gil!: TBM
(08:49:15) seu amigo2 fala para Gil!: E
(08:50:26) Gil! fala para seu amigo2: EU POSSO USAR O NOSSO BATE PAPO
NUMA PESQUISA LINGÜÍSTICA?
177
Goffman (1967) afirma que em um ambiente social o sujeito utiliza uma
autoimagem pública. Desta forma, define o termo face como o valor social positivo
que uma pessoa cria para ser aprovada perante os seus pares: “face é a imagem da
pessoa delineada em termos de atributos sociais aprovados, ainda que se trate de uma
imagem que outros possam compartilhar, como quando uma pessoa enaltece a sua
profissão, ou sua religião, graças aos seus méritos” (1967, p.13).
Seu amigo procede exatamente como explicam os ensinamentos de Goffman:
expõe a sua face positiva para ser bem aceito pelos demais colegas de interação:
“(08:45:34) Gil! fala para seu amigo2: VC SABE CULTIVAR UMA AMIZADE?
(08:45:40) seu amigo2 fala para Gil!: SIM
(08:45:43) seu amigo2 fala para Gil!: E COMO
(08:45:56) Gil! fala para seu amigo2: QULA É O SECREDO?
(08:46:20) seu amigo2 fala para Gil!: SER SEMPRE SINCERO HEIM TUDO
(08:46:37) Gil! fala para seu amigo2: SÓ ISTO?
(08:47:07) seu amigo2 fala para Gil!: REPEDE
(08:47:41) Gil! fala para seu amigo2: SÓ A SINSERIDADE É IMPORTANTE PARA
SE CULTIVAR A AMIZADE?
(08:48:02) seu amigo2 fala para Gil!: E SSBE COMPREENDER AS PESSOA
(08:48:07) seu amigo2 fala para Gil!: E MUITO”
178
O principal objetivo da polidez positiva é a aproximação entre os participantes
da interação, e Seu amigo cumpre muito bem o seu papel de se aproximar do outro ao
mesmo tempo em que se afasta, na medida em que se protege do Outro ao usar uma
máscara social aceita e compreendida por seus interlocutores:
“(08:50:26) Gil! fala para seu amigo2: EU POSSO USAR O NOSSO BATE PAPO
NUMA PESQUISA LINGÜÍSTICA?
Nas três primeiras histórias, Naty não tem muita sorte com os seus
interlocutores, na medida em que os nicks das interações escolhidas correspondem
exatamente ao nome. Não estamos querendo dizer com isso que os exemplos só
serviriam se tivessem um nick enigmático ou suspeito, mas que, geralmente, quando o
sujeito é indagado acerca da escolha do Nick, a resposta é sempre óbvia, como
179
mostramos abaixo. Os nicknames correspondem exatamente ao que é dito, ou seja, ao
que ele denota ou significa:
“(02:23:37) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: pq esse nome:
moreno orkut msn?
E na terceira também:
“(02:49:06) naty fala para AMIGO DE LESBICA: e pq esse nome?
(02:49:22) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: sou amigo
de lesbicas tenho um montao de amigas lesbicas e bi”
(02:18:32) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: afi mde
tc
180
(02:20:35) naty (reservadamente) fala para moreno orkut msn: td bem?
(02:20:50) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: tem msn
gata
(02:20:54) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: tem msn
181
(02:24:08) moreno orkut msn (reservadamente) fala para naty: porque
sou moreno tenho msn e orkut
2
(02:31:00) naty (reservadamente) fala para jack: oi
(02:31:08) jack (reservadamente) fala para naty: OI
(02:31:10) naty (reservadamente) fala para jack: td bem?
(02:31:32) jack (reservadamente) fala para naty: TUDO TC D ONDE?
(02:32:15) naty (reservadamente) fala para jack: fortaleza
(02:32:17) naty (reservadamente) fala para jack: we vc?
(02:32:47) jack (reservadamente) fala para naty: MGA PARANA ?
(02:32:51) jack (reservadamente) fala para naty: TEM MSN?
(02:33:04) naty (reservadamente) fala para jack: qts anos vc tem?
(02:33:25) naty (reservadamente) fala para jack: como vc é?
jack (reservadamente) fala para naty: 28 ANOS 175ALT 75 KG
(02:34:04)
MORENO CLARO CABELO E @@ CASTANHOS
(02:34:46) naty (reservadamente) fala para jack: e pq jack?
(02:35:01) jack (reservadamente) fala para naty: ABREVIAÇAO DO MEU
NOME?
(02:35:35) naty (reservadamente) fala para jack: blz
3
(02:48:10) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: tc
(02:48:30) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: tc de onde
amiga?
(02:48:40) naty fala para AMIGO DE LESBICA: fortaleza
(02:48:44) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: idade?
(02:48:45) naty fala para AMIGO DE LESBICA: e vc?
(02:48:49) naty fala para AMIGO DE LESBICA: 25
182
(02:48:53) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: sao paulo
(02:48:55) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: 28
(02:48:58) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: tem cam?
(02:49:06) naty fala para AMIGO DE LESBICA: e pq esse nome?
(02:49:22) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: sou amigo
de lesbicas tenho um montao de amigas lesbicas e bi
(02:49:43) naty fala para AMIGO DE LESBICA: we pq o interesse?
(02:50:22) AMIGO DE LESBICA (reservadamente) fala para naty: eu gosto sa
legais
4
Nesta quarta interação, Naty descobre Petra, personagem de um filme, uma
homossexual que se apaixona por outra mulher:
44
O filme é: When the night is falling, de 1995, traduzido por Quando a Noite Cai conta a
história de uma professora de Mitologia em um Colégio Protestante, Camille (Pascalle Bussières). Ela
tem uma vida pacata ao lado de seu namorado, sem qualquer emoção e interesse. Quando Camille
conhece a artista circense Petra (Rachael Crawford), sua vida sem interesses transforma-se em um
inebriante misto de cores. Camille luta contra o sentimento que a cerca, mas Petra não mede esforços para
a conquistar.
183
E, quando Petra é indagada a respeito de sua aparência com a personagem do
filme, ela dá um passo atrás e diz que não é ela quem acha, mas as pessoas. Petra se
voltou para o seu próprio dizer, num processo autonímico, para mostrar que o dito não
coincidia com o que ela julgava tencionar dizer, e negou o que já tinha dito
anteriormente.
Freud (1925) observa que um pensamento reprimido pode abrir caminho até a
consciência, conquanto ele seja negado. A negação vem a ser um modo de tomar
conhecimento do reprimido, mas não a sua aceitação. Neste momento, percebe-se a
função intelectual se dissociar do processo afetivo. Freud ilustra com o exemplo de um
de seus atendimentos, quando o paciente comenta a respeito de uma ideia obsessiva e
imediatamente a nega: “tive uma ideia obsessiva e logo me ocorreu que poderia
significar determinada coisa. Mas não, não pode ser verdade, senão não poderia ter me
ocorrido.” Carone (200, p.129) diz o seguinte: “com o auxílio da negação só se revoga
uma das consequências do processo de repressão, ou seja, o fato de que o conteúdo da
representação não tem acesso à consciência. Disso, resulta uma espécie de aceitação
intelectual do reprimido, mantendo-se a repressão do conteúdo essencial, qual seja, uma
verdade com a qual o sujeito não sabe ou não quer lidar, relativa a algo da ordem de um
desejo. Isso também está na base de um fenômeno denominado por Freud (1925) de
invocação. Quando uma pessoa diz, por exemplo: “que bom que eu não tenho dor de
cabeça há tanto tempo”, este é o prenúncio do sinal de um acesso, cuja aproximação já
está sendo sentida, mas na qual não se quer acreditar.
Petra passa pelo processo da negação:
“(02:57:27) naty fala para PETRA: vc se acha parececida?
(02:57:31) naty fala para PETRA: haa
(02:57:33) PETRA (reservadamente) fala para naty: e a Petra se parece comigo,
184
o condenam. No trecho da conversa, Petra nega a designação por temer que a
interlocutora a julgue como uma homossexual. Então, ela denega e, em outras
palavras, deixa implícito: onde se lê Petra = homossexual, leia-se Petra = por
semelhança física com a personagem do filme. Nesse tipo de não-coincidência, o
sujeito assinala no discurso a presença estranha de palavras marcadas como
pertencentes a outro discurso – palavras que povoam o espaço do interdito, como
se diz em Análise do Discurso de orientação francesa -, através de um leque
completo de relações com o outro.
É o que faz Petra ao dizer que: “ eu n as pessoas que acham”. Para Freud
(1905), difererentemente do que fala o senso comum, não haveria sentido ipso facto
para o sujeito “tornar-se homossexual”. Não existe, portanto, uma receita, uma
equação cartesiana ou um único caminho a ser seguido, que indique que o indivíduo
escolha a homossexualidade em detrimento da heterossexualidade.
Freud (1920) relata o caso de uma bela jovem de 18 anos que coloca sua
reputação e seu relacionamento familiar em risco ao se apaixonar por uma mulher
de má fama, uma conhecida demi-mondaine da sociedade vienense. Esta história se
tornou conhecida no meio psicanalítico como "O caso da jovem homossexual”:
185
àquela ”amizade”. A moça, não suportando perder, para sempre, a sua
amada, tentou pôr fim à própria vida. (p.82-83)
186
disposição bissexual de todo o ser humano e que esta ganha força considerável no início
do desenvolvimento. Com isso quero dizer que inicialmente não há a clara definição
entre ser homem ou ser mulher” (p.87).
Para Lacan (1998), a homossexualidade na mulher seria mais bem definida se não
passasse pelo apoio “cômodo” da identificação, tratando-se essencialmente de uma
substituição de objeto:
(...) a substituição parece vir acoplada ao desafio, característica muito
presente na homossexualidade feminina e, às vezes, tão forte que a pessoa
se dispõe a perder tudo, apenas para conseguir levar adiante seu desejo
sexual. A figura paterna é extremamente desafiada no que diz respeito ao
seu poder, talvez para demonstrar ao pai como se deve amar. Há, pelo
menos, uma coisa que o pai tanto não pode quanto não sabe. Logo, o
desafio tem sua origem em uma exigência de amor, situando o desejo como
um desafio ao desejo paterno. Os modos de configuração homossexual,
entretanto, são tão diversos quanto na heterossexualidade, incluindo-se aí
o fator de sua diferenciação quanto a seu estatuto na neurose, na perversão
ou na psicose. (p.173)
5
(03:01:38) Lulão fala para naty: é voce
187
Aqui, Naty se depara com o Lulão, num forte apelo sexual de quem “transa
gostoso”. E ela fica sem saber se é Lulão, porque é Luis ou porque “transa gostoso”.
Mas Naty não quis saber de nada disso, encerrou imediatamnete o assunto e saiu da sala
de bate-papo.
Nesta interação, Rach conversa com Amelie, que faz questão de dizer que não é
nenhuma Amélia:
(05:53:25) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: nao parece com
muita vontade, mas vou tentar
(05:53:27) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkkk
(05:53:49) Rach (reservadamente) fala para Morzão: m
(05:53:57) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: vc é de onde?
46
O nome faz referência direta à personagem do filme O fabuloso destino de Amelie Poulain,
título original em francês: Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain. O filme trata da vida de uma inocente
jovem, que deixa a vida do subúrbio onde morava com a família, Amélie (Audrey Tautou) e passa a
morar no bairro parisiense de Montmartre, onde começa a trabalhar como garçonete. Certo dia, encontra
uma caixa escondida no banheiro de sua casa e, pensando que pertencesse ao antigo morador, decide
procurá-lo e é assim que encontra Dominique (Maurice Bénichou). Ao ver que ele chora de alegria ao
reaver o seu objeto, a moça fica impressionada e adquire uma nova visão do mundo. Então, a partir de
pequenos gestos, ela passa a ajudar as pessoas que a rodeiam, vendo nisto um novo sentido para sua
existência. Contudo, ainda sente falta de um grande amor.
188
(05:54:13) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: tá com sono?
(05:54:17) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkk
(05:54:23)Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Eu disse que
sim...que iria teclar...rs
(05:54:26) Rach (reservadamente) fala para Morzão: mulher
(05:54:35) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sou de BH, e vc?
(05:57:30) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: tenho uma amiga
q come mto pao de queijo
(05:57:39) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: e ela é de fortal
189
(05:57:48) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: outros é mais por estar
próximo do que está longe do alcance
(05:57:55) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: até ja almoçei pao
de queijo na casa dela
(05:58:26) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: qnd anos vc tem?
(05:58:28) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Hahaha
(05:58:36) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Pão de queijo é
ótimo...
(05:58:59) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: 21, e vc?
(05:59:05) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: 20
(05:59:07) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: hehe
(05:59:31) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Venha qualquer
dia por aqui com sua amiga
(05:59:36) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: haha
(05:59:40) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: talvez
(05:59:47) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ei, o q vc faz em
BH?
(05:59:51) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Indico lugares que
tem ótimas comidas...rs
(06:00:09) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Estudo ...Nutrição
190
(06:02:52) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: a maioria dos
chats só tem pornografia
(06:03:46) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Realmente...
(06:03:51) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: o q vc gosta de
fazer qnd nao ta na facul?
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Vendem muita
(06:04:18)
coisa vulgar,pornografia infantil, etc
(06:04:23) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: é vero
(06:04:26) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkkk
(06:04:35) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: uma baixaria total
(06:05:05) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Gosto de ir ao
cinema, como não tem praia aqui...hahaha... as vezes vou pra perto da Lagoa da
pampulha
(06:05:16) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: q legal
(06:05:20) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu tb adoro
cinema
(06:06:07) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: seu nick é de um
filme né?
(06:06:17) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Tem uma área
verde ótima por lá..parque...gosto da natureza
(06:06:30) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sim!
(06:06:37) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: aqui em fortal nao
tem mto verde
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: O Fabuloso
(06:06:43)
Destino de Amelie Poulain
(06:06:46) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu já vi esse filme
(06:06:50) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: mto bom
(06:07:03) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Não lembro o
nome...hehe
(06:07:09) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: tem mas tao
destruindo
(06:07:16) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: cocó
(06:07:37) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Que pena
(06:07:45) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Qualquer dia viro
ecoterrorista, viu
(06:07:51) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: pq vc colcou seu
nick amelia? vc parece com ela?
(06:07:58) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Amelie
(06:07:59) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: amelie
(06:08:02) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkkk
(06:08:13) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Amélia é mulher
que lava, passa, cozinha...tô brincando
(06:08:21) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: aff
191
identifiquei com ela
(06:08:44) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sabe, eu adorei
mesmo o filme
(06:08:50) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Vc nunca assistiu?
192
(06:12:31) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Umas viagens mto
interessantes
(06:12:46) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: o filme é frances
né?
(06:12:54) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Isso sem usar
psicotrópicos
(06:12:56) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: haha
(06:13:09) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sim..é do diretor
Jean Pierre
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Engraçado que
(06:13:31)
dizem que os franceses não são bons em filmes de comédia...mas esse foi ótimo
(06:13:45) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Superou muitos
"enlatados" americanos
(06:13:56) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Vc deveria assistir
novamente
(06:13:56) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: nao sabia disso?
(06:14:04) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: vou ver em sua
homenagem
(06:14:06) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: kkkkkkkkkkk
(06:14:19) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eu adoro filme
americano
(06:14:53) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Obrigada
(06:15:06) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Qual seu filme
favorito?
(06:15:18) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: nao tenho filme
favorito
(06:15:26) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: mas tenho seriado
favorito
(06:15:30) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Qual?
(06:15:47) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: FRIENDS
(06:16:04) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Ohhhhh, myyy
God!
(06:16:11) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: vc sempre entra
na net com esse nick?
Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Eu tb curto pra
(06:16:22)
caramba FRIENDS!
(06:16:31) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: i love friends a lot
(06:16:37) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Algumas vezes
sim
(06:16:46) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: i´m completely
crazy about FRIENDS
(06:16:51) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Principalmente
quando entro em salas de CINEMA!
(06:16:55) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ahh
(06:17:06) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ei qual seu email?
(06:17:21) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: vou ter q sair
agora, mas achei vc uma otima pessoa
193
(06:17:37) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Meu e-mail é
[email protected]
(06:17:40) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: E o seu?
(06:17:45) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Já vai?
(06:17:47) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Pq?
(06:17:50) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: eupisteme?q
diferente!!!
(06:18:06) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: o meu é
[email protected]
(06:19:21) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach:
É...episteme...gosto dessa palavbra
(06:19:41) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Tb achei o papo
bem legal
(06:19:55) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Anotei seu mail,
depois escreverei
(06:19:58) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Beijos!
47
Para horror das feministas, Ataulpho Alves e Mário Lago compuseram a famigerada música:
194
(06:08:34) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sim..eu me
identifiquei com ela
(06:08:44) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sabe, eu adorei
mesmo o filme”
Amelie Poulin reage quando escuta Rach chamá-la de Amélia e diz, incisiva: “é
Amelie, Amélia é a mulher que passa, cozinha, lava.” Aí reconsidera seu dizer e
comenta: “to brincando”. Mais uma vez, temos a marca de uma não-coincidência do
dizer, na qual o sujeito se defende de seu próprio dito. Ela está se defendendo do que o
outro poderia estar pensando dela e de um estereótipo de mulher submissa presente num
discurso machista de todos (homens e mulheres) os que ainda acham que essa deve ser a
condição da mulher na sociedade. O significante-significado-referente de Amélia
denuncia esse tipo de discurso a que Amelie se contrapõe, pois é uma marca linguística
típica dele.
Na nossa cultura, Amélia é a mulher que a tudo cede, é submissa, dependente,
etc. É isso que faz com que Amelie Poulain se recuse a ser chamada de Amélia. Ela se
identificou com a Amelie do filme que ajuda todo mundo, todavia se acha muito mais
bonita, tem os olhos verdes e tudo, mas a mocinha do filme também é linda:
195
verdes
(06:10:47) Rach (reservadamente) fala para Amelie Poulain: ah é?
(06:10:53) Amelie Poulain (reservadamente) fala para Rach: Sou mais
bonita...hahaha...mas ela tb é linda”
Amelie Poulain afirma ainda que gosta muito de ajudar as pessoas, mas não
fisicamente, e prossegue:
Amelie Poulain revela seu lado sádico quando diz que: “alguem avisa que vai se
matar...eu sou conselhos pra que faça isso de uma forma que não ocorra erro”.
Novamente, recua e conserta dizendo que é só brincadeira, ou seja, ela está todo o
tempo se defendo do que realmente pensa, acha, sente ou deseja, porque usa o seu
alterego para interagir nos bate-papos. Dessa forma, ela preserva a sua face positiva
frente ao outro, assim como o Seu amigo do exemplo já citado e se resguarda de mostrar
a sua verdade a sua cara.
Chama-nos, porém, a atenção o modo como ela interpreta a ajuda que a
verdadeira Amelie Poulain, do filme, concede às pessoas. A ajuda concedida pela
protagonista do filme não tem nada de assistencial, muito pelo contrário, ela ajuda as
pessoas a realizarem os seus próprios desejos. E realizar um desejo não tem exatamente
nada de “social”.
196
(56) Sambanga, o tipo mongolóide
197
lagoa, entende?
(05:19:33) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: é como gíria
daí?
(05:19:40) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hum
(05:20:19) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas tu
escolheu esse nick pq?
(05:20:27) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: acho q
ninguém entende
(05:21:40) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: quem pegue
explicação eu digo...
(05:21:51) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: huehuehu
(05:22:02) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: nickname
estranho chamam a atenção...despetam a curiosidade....
(05:22:13) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: eh
(05:22:16) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: realmente
(05:22:17) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Muitas vezs
(05:22:40) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: uma gata
tecla com você só por causa do nickname...
(05:23:06) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Como você
minha linda de Fortaleza....
(05:23:12) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: ^^
(05:23:16) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: e ai...
(05:23:21) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: o q vc faz?
(05:23:29) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: trabalho
numa empresa como comprador e sou formado em administração..
(05:23:38) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: humm
(05:23:44) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Gostou?
(05:23:47) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mto legal
(05:24:16) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: espera eu
disser que além disso sou muito gato, anda só bem vestido e perfumado....
(05:24:24) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hueheuheu
(05:24:38) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: iss
(05:24:56) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: posso
entender isso como um grito de euforia....?
(05:25:24) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: tecla de onde
casa, lan...
(05:25:30) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: casa
(05:25:48) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: é sinal que
está bem a vontade...
(05:26:06) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: descreva-me
como está...
(05:26:14) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: achei mto
interessante sua explicação do nick
(05:26:29) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: tem alguém
além de você lendo seu monitor..?
(05:26:43) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: legal
(05:26:44) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: não
198
(05:26:49) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: bom
(05:26:52) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas meus
pais estão aki perto
(05:27:02) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: descreva me
você ? Podes?
(05:27:22) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: bem perto?
(05:27:29) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: num gosto
mto d me descrever
(05:27:35) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: eh...
(05:27:39) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: o pc eh na
sala
(05:27:51) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: cara leva pro
quarto
(05:28:06) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: huehuehue
(05:28:22) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: eh pq eh meu
e da minha irmã
(05:28:37) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: e nossos
quartos são separados
(05:28:42) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: ela é bonita
como você?
(05:28:49) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: humrrum
(05:28:59) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: eh bailarina e
talz
(05:29:01) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Cara que
família...
(05:29:06) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: hueheuhe
(05:29:17) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: preciso te
pedir uma coisa
(05:29:18) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: talvez o que?
(05:29:24) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: fala
(05:29:30) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: pida...
(05:29:52) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: será q eu
poderia usar sua explicaçao para o nick como exemplo p/ um trabalho da
facu?
(05:30:39) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: trabalho de
faculdade não sei
(05:30:47) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: own
(05:30:51) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: deixa explicar
melhor
(05:30:58) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: por favor...
(05:31:10) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: num vou nem
dizer teu nome...
(05:31:17) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: na verdade
nem sei qual é
(05:31:19) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: ^^
(05:31:32) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: sambanga
realmente quer dizer tipo mongolóide, fraco da cabeça...
(05:31:53) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: humm
199
(05:31:56) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: huehuehue
(05:31:59) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: não sei se
seria de bom tom...usar
(05:32:17) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: é usado em
sentido pejorativo...
(05:32:28) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas num eh
bem isso q quero usar...
(05:33:22) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: a parte do
dotado é que geralmente os fracos da cabeça, Sambangas são bem dotados
(geralmente).
(05:34:01) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: Se quiser
pode usar
(05:34:02) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: mas acho que
não teria problema
(05:34:11) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: se acha que é
correto...
(05:34:26) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: pois então
tá...
(05:34:30) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: obrigada
(05:34:31) Sambanga (reservadamente) fala para Kel: só um minuto
vou atender o telefone...
(05:34:38) Kel (reservadamente) fala para Sambanga: tá
200
Sambanga diz que é para chamar atenção com o seu nickname estranho.
Contudo, mais adiante, quando a Kel revela seu verdadeiro interesse, ele volta atrás e
diz o significado de Sambanga:
É interessante notar aqui, neste diálogo, o que faz o Sambanga usar um apelido
como esse, sabendo que o que quer dizer é que é um “mongoloide”, embora seja ainda
bem-dotado, “mas não todos” são assim, ele frisa. Entendemos que Sambanga cai na
armadilha de sua própria ficção, na medida em que protagoniza várias cenas de uma
mesma personagem que faz com que ele se reinvente em cada significado produzido por
ele:
Sambanga = homem meio louco e bastante dotado
Sambanga = nicknames estranhos chamam a atenção...despetam a curiosidade....
Sambanga = uma gata tecla com você só por causa do nickname...
Sambanga = sambanga realmente quer dizer tipo mongoloide, fraco da cabeça...
Sambanga = usado em sentido pejorativo...
Desse modo, vemos que Sambanga criou uma série de recategorizações que
reafirmam, uma após outra, seu desejo de ser objeto do desejo do Outro48, até que, por
fim, ele se afasta de tudo o que tinha dito antes e outra voz surge: “é usado em sentido
pejorativo...” ou seja, não é ele que usa em sentido pejorativo, mas os outros. Nesse
instante, é como se ele tivesse sido desmascarado em sua ficção.
48
Para Lacan (1958), é na posição de objeto, entendido como falo, que a criança se coloca como
suposto completar o que falta à mãe, esta vista como Grande Outro. Ao querer constituir-se como falo
materno, a criança se coloca como único objeto de desejo da mãe, assujeitando seu desejo ao dela. O
que a criança busca é se fazer desejo de desejo, é poder satisfazer o desejo da mãe, quer dizer: to be or
not to be o objeto de desejo do Outro. Essa situação se repete por toda a vida.
201
Lacan (1955) considera “a relação do narcisismo como a relação imaginária
central para a relação inter-humana”. Para ele, a relação narcísica, como relação de
identificação à imagem especular, objeto de desejo do Outro, é uma relação erótica que
constitui também a base de toda tensão agressiva, onde há sempre uma marca de
exclusão (p. 110).
49
Freud (1919) utiliza o conto do escritor Hoffman "O Estranho" (Das Unheimlich), para
explorar a vinculação da noção de "estranho" remetendo a algo conhecido, familiar, ainda que
assustador, aos processos psíquicos que o originam.
202
(57) O mentiroso
Nesta interação, Kraven é extremanente misterioso, mas acaba revelando o seu
segredo:
(04:31:53) Bia (reservadamente) fala para kraven: oi
(04:31:56) Bia (reservadamente) fala para Kraven: quer tc?
(04:31:59) Kraven (reservadamente) fala para Bia: tc de onde?
(04:32:17) Bia (reservadamente) fala para Kraven: fortal e vc?
(04:32:28) Kraven (reservadamente) fala para Bia: sao paulo
(04:33:22) Kraven (reservadamente) fala para Bia: o que faz aki a
essa hr?
(04:34:01) Bia (reservadamente) fala para Kraven: o que é kraven?
(04:34:02) Kraven (reservadamente) fala para Bia: eh uma longa
historia outro dia conto
(04:34:11) Bia (reservadamente) fala para Kraven: valha... ta
cansado?
(04:34:26) Bia (reservadamente) fala para Kraven: pois então tá...
(04:34:30) Kraven (reservadamente) fala para Bia: outro dia conto
eh longa
(04:34:31) Bia (reservadamente) fala para Kraven: anota o meu MSN
[email protected]
(04:34:33) Kraven (reservadamente) fala para Bia: anotei
(04:34:39) Bia (reservadamente) fala para Kraven: vou esperar no
meu e-mail
(04:34:45) Kraven (reservadamente) fala para Bia: pq que saber do
nome?
(04:34:52) Bia (reservadamente) fala para Kraven: sou uma
pesquisadora, procuro nicks interessantes
(04:35:38) Kraven (reservadamente) fala para Bia: ah
(04:36:22) Kraven (reservadamente) fala para Bia: conto tudo
(04:37:01) Bia (reservadamente) fala para Kraven: tá bom
(04:37:22) Bia (reservadamente) fala para Kraven: tchau
(04:37:41) Kraven (reservadamente) fala para Bia: ja vai?
(04:38:06) Bia (reservadamente) fala para Kraven: hunrum
(04:38:30) Bia (reservadamente) fala para Kraven: bj
(04:38:41) Kraven (reservadamente) fala para Bia: bjaum
(04:38:58) Bia (reservadamente) fala para Kraven: tchau
Neste bate-papo, o sujeito não quis revelar a origem do nome Kraven, mas,
posteriormente, por e-mail, ele enviou. Conforme o combinado no bate-papo,
trancrevemos agora o conteúdo do e-mail enviado:
“De: #############
203
Para: Mariza Angélica Paiva Brito ([email protected])
Segundo a versão mais difundida, o termo "gótico" deriva de Godos, o povo germânico
que habitava a Escandinávia e se vestiam todos de preto e admiravam a trsitesa como
uma arte porem eram uma especie de padres não como os de hj pois a cultura evoluiu
(na minha opinião regrediu ) . Porém, em O Mistério das Catedrais, Fulcanelli nos
apresenta uma outra versão. A palavra "gótico" seria uma deformação fonética de
Argoth (ou Art Goth), uma linguagem restrita utilizada somente por Iniciados em
Ocultismo. Embora historicamente essa versão seja incoerente, é uma visão interessante
de um grande alquimista,( interessante vc ler o mistério das catedrais), entendendo isso
o nom e Kraven é como Lucifer (para alguns Estrela da manhã para outros O mal mas
chamar de demonio algo ruim esta sempre errado mas isso é outro tópico) se disserem
pra vc que existe duas vergentes não acredite realmente os godos difundiram a arte
gothica tb....infelizmente esse conceito virou um estilo de vida graças a nossa mídia na
verdade mídia americana entre 1967 e 1970 com as musicas do The cure, The Ghost Of
Lemora, Scary Bitches, Blutengel, Diva Destruction, Katscan existem várias ...rs
....mas em resumo o Nome Kraven é gothico sinónimo de Mefisto ou mephistofeles
...senhor da mentira o demonio mais baixo do rank dos demonios no
decronomicon, caso queira ir a fundo em demonologia sugiro alguns livros :
Mas sem mais delongas Kraven = "O MENTIROSO" ... e eu uso esse nick pq eu
manipulo as pessoas ao meu redor, não consigo ser verdadeiro e não gosto que ninguem
goste de mim e eu não sou feio o que não contribue com a minha ideia. Desculpa
qualquer coisa BJAUM !”
Nesta explicação, Kraven diz que o seu nick significa “Lucifer, Mefisto,
mephistofeles, senhor da mentira”. Uma vez que dissemos de nossa condição de
pesquisadora, ele não poupou esforços para nos impressionar; para tanto, recomendou
alguns livros sobre demologia e criticou o mais conhecido deles: o “Malles
Maleficarum”. É interessante notar o que ele comenta no final: “... e eu uso esse nick
pq eu manipulo as pessoas ao meu redor, não consigo ser verdadeiro e não gosto que
ninguem goste de mim e eu não sou feio o que não contribue com a minha ideia.
Desculpa qualquer coisa BJAUM !”
204
Kraven se defende dele mesmo. Diz que não consegue ser verdadeiro, que
manipula as pessoas e que não gosta que as pessoas gostem dele e que não é feio, o que
dificulta a sua intenção.
205
7. Considerações finais
206
de se falar em heterogeneidade realizada somente pela reflexão autonímica do sujeito
acerca da sua fala, a heterogeneidade também revelaria a descontinuidade do dizer
que pode ser linguisticamente explicitada por outras marcas, que apontam para a
cena do inconsciente, o que nos faz considerar o campo da enunciação marcado por
uma heterogeneidade desconhecida pelo sujeito, mas que se faz ouvir e deixa as suas
pistas como inevitáveis.
Sabemos que, para a Psicanálise, existe no discurso uma outra intenção
(inconsciente) além de uma simples comunicação entre os atores. Essa segunda
intenção do discurso, que, como afirma Lacan (1959), interroga as coisas em relação
ao próprio sujeito, em relação a sua situação no discurso - que não é mais exclamação
ou interpelação, mas uma necessidade de nomeação, uma necessidade de expressão -
se operacionaliza porque vem quebrar a ordem linear do discurso através da inserção
de uma não-coincidência do dizer. As não-coincidências do dizer aparecem porque
existe no discurso mais de uma intenção além da de comunicar. E esse além se dá em
uma outra cena.
Argumentamos, ao longo da pesquisa, em favor de uma abertura para uma
outra cena enunciativa e, para tanto, recorremos a processos de referenciação, que
desempenham o papel de eficientes marcadores discursivos, sem que, para isso,
precisem vir acompanhados de indicadores formais que assinalem
convencionalmente essa marcação, como descreve Authier-Revuz (1982).
Discutimos ainda a criação do conceito de heterogeneidade a posteriori,
proposto por Settineri (2002) e suas implicações na interpretação psicanalítica de um
enunciado. Para o autor, o heterogêneo a posteriori só pode ser inferido por meio de
um ato interpretativo em que se dá uma ressignificação dos elementos expressos.
Acrescentamos a essa constatação que não é apenas um sentido novo que se constrói
a posteriori, mas também um referente novo, que não se desgarra de significantes e
significados. Foi para essa construção sígnica completa, incluindo o referente, que
realizamos nossa análise e constatamos que os postulados lacanianos só serão
207
devidamente contemplados se considerar o uso e, portanto, necessariamente, atrelar
a supremacia do significante a seus significados e referentes correlatos.
Destarte, grifamos o fato de haver não apenas uma ressignificação construída
pelo analista, mas uma recategorização do referente, como no exemplo comentado
de bête50 . Neste, vemos que houve uma recategorização do referente de bête para o
referente de besta naquela situação específica de uso. É para esse tipo de escansão,
que gera uma ressignificação, que chamamos a atenção nesta discussão teórica, a fim
de demonstrar que, neste processo, é imprescindível falar também da efetivação de
um processo recategorizador de referentes durante a interpretação. No entanto,
constatamos que não é apenas uma recategorização utilizada com o intuito de
argumentar. O foco dos autores que analisam esse fenômeno é dominantemente
voltado para a construção argumentativa. Diferentemente desses estudos, mostramos
que a recategorização pode ser vista com outros propósitos além do de argumentar,
na medida em que a seleção das expressões pode estar relacionada não só com
intuitos argumentativos, mas também com escolhas que dizem respeito a uma outra
cena, que pode facilmente ser identificada a partir dessas mesmas expressões
linguísticas, que servem não somente à comunicação, mas também à manifestação de
um desejo do inconsciente infiltrado na fala do sujeito. A isso, demos o nome de
recategorização de desejo - aquilo que o sujeito revela inconscientemente, em uma
enunciação mais além da comunicação de um discurso.
Desta forma, tentamos contribuir para os pressupostos teóricos das
heterogeneidades enunciativas quando salientamos marcas linguísticas não
consideradas por Authier-Revuz e quando demonstramos como se dá o embate das
vozes do inconsciente.
Constatamos, outrossim, que, para a Psicanálise, a construção da referência
deveria ser indissociável da pontuação dos seus significantes. Para isso, fizemos um
levantamento bibliográfico do que já fora discutido na literatura sobre o conceito de
signo e significante em Saussure e a exclusão do referente. Entendemos que esta
50
Ver o exemplo na página 61.
208
retomada foi imprescindível para a nossa tese, uma vez que situamos nossas bases
teóricas nos processos referenciais, em relação à linguística estrutural saussuriana,
seu conceito de signo e a exclusão do referente. A partir daí, refletimos, com base no
conceito do signo saussuriano, redimensionado por Lacan, sobre o referente
presente desde sempre na linguagem em uso do sujeito. Diferentemente do signo
em Saussure, que exclui o referente, admitimos que o signo para a Psicanálise só
pode ser pensado sem equívocos se tiver em conta a relação com o referente no
momento mesmo da interação. Nossa proposta se pautou pela caracterização da cena
interpretativa, em que se dá a construção de uma outra relação entre significantes,
significados e referentes, que nasce na referenciação, dentro de uma perspectiva
textual-discursiva, mas que se recria na cena da interpretação psicanalítica, no
momento mesmo em que o sujeito estabelece relações até então desconhecidas por
ele.
Para a Linguística de Texto, contribuímos com o alargamento das
possibilidades de uso das marcas referencias no universo discursivo. Isso porque
entendemos que a construção referencial pode ser utilizada muito além dos fatos
argumentativos, mas ser encenada paralelamente (não isoladamente) aos de um
outro universo, a que o sujeito não tem alcance.
Deste modo, deixamos abertos caminhos para novos estudos que queiram
admitir um outro olhar, tanto para a Linguísitica de Texto como para as pesquisas em
Psicanálise, a fim de se aprofundem as análises aqui iniciadas.
209
Referências
210
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no discurso literário. Projeto de Pesquisa/ Doutorado em Lingüística/ Fortaleza:
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