Revista Inter-Legere: Didática Transdisciplinar Como Expressão de Uma Fenomenologia Complexa

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DIDÁTICA TRANSDISCIPLINAR COMO EXPRESSÃO DE UMA FENOMENOLOGIA COMPLEXA


Maria Cândida Moraes

DIDÁTICA TRANSDISCIPLINAR COMO EXPRESSÃO DE UMA


FENOMENOLOGIA COMPLEXA

TRANSDISCIPLINARY DIDATICS AS AN EXPRESSION OF A COMPLEX


PHENOMENOLOGY

Maria Cândida Moraes - Universidade Católica de Brasília

RESUMO

Neste ensaio, a didática transdisciplinar é reconhecida como expressão de uma


fenomenologia complexa, produto de uma tessitura dialógica, complexa e
autoeco-organizadora entre sujeito e objeto, que emerge em outro nível de
materialidade diferente daquele que lhe deu origem. O conhecimento
transdisciplinar emergente no ato didático é tecido nas fronteiras disciplinares,
na intersubjetividade dialógica, nos meandros da pluralidade de percepções e
significados emergentes, por meio de uma dinâmica complexa e
multirreferencial. Para tanto, é necessária a complexificação do ato didático,
superadora da fragmentação e do reducionismo dos processos de ensino e
aprendizagem, trabalhando, simultaneamente, os diferentes elementos
estruturantes da didática, a partir de uma racionalidade aberta nutrida pelos
operadores cognitivos do pensar complexo.

Palavras-chave: Didática transdisciplinar. Complexidade. Transdisciplinaridade.

ABSTRACT

This essay if you recognize the didatics transdisciplinary as an expression of a


phenomenology complex, product a tessitura dialogic, complex and autoeco-
organizer between subject and object, it emerges in another level of materiality
different the one that it gave rise. The knowledge transdisciplinary emerging in
the act teaching is woven disciplinary borders, on the intersubjectivity
dialogic, in the intricacies of pluralidades of perceptions and emergent
meanings from a complex dynamics and multirreferencial. For both it is
necessary the complexification the didactic act overcomes fragmentation and
the reductionism of the educational processes and learning, working,

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simultaneously, the different elements structuring of didactics, from a open


rationality nourished by cognitive operators the complex thinking.

Keywords: Transdisciplinary teaching. Complexity. Transdisciplinarity.

INTRODUÇÃO

É possível pensar a didática a partir da complexidade e da


transdisciplinaridade? Como trabalhar essa relação? Como ela se materializa
na prática pedagógica? O que ela traz de diferente em relação aos processos
de ensino e aprendizagem? Não seria o ato didático um fenômeno de natureza
complexa e transdisciplinar? Como se manifesta a mediação didática sob o
olhar da complexidade e da transdisciplinaridade? Inúmeras são as questões
que emergem e que exigem de nós um esforço intelectual e um cuidado para
melhor explicação e compreensão desse fenômeno.
Conceitualmente, a complexidade e a transdisciplinaridade vêm sendo
trabalhadas a partir de diferentes enfoques teórico-epistemológicos,
requerendo, assim, de imediato, um posicionamento claro a respeito do
enfoque assumido. Todavia, antes, é preciso esclarecer, dentre as definições e
compreensões existentes, qual o conceito de didática que melhor se coaduna
com as explicações ontológicas e epistemológicas da complexidade e qual o
conceito de transdisciplinaridade é mais compatível com as perspectivas
teóricas professadas. É possível compreender a didática como expressão de
uma fenomenologia complexa e transdisciplinar? Em relação às implicações
educacionais, qual a vantagem de se tentar ampliar as perspectivas teóricas e
epistemológicas da didática? Que novos horizontes educacionais tais
perspectivas nos oferecem?

DIDÁTICA: DEFININDO CONCEITOS E EXPLICITANDO COMPREENSÕES

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Desde Comenius, com sua “arte de ensinar tudo a todos”, inúmeras são
as definições propostas a respeito do termo didática, o que de certa forma
aumenta também a sua imprecisão. Etimologicamente, essa palavra vem do
grego: didaktiké, didátikos, do verbo didasko, que significa instruir, ensinar,
expor com clareza. Didaktikos é aquele que está apto para a docência
(MALLART, 2001). De acordo com Escudero (1980 apud MALLART, 2001), a
didática está mais relacionada com os processos de ensino e aprendizagem. O
autor em estudo a define como “a ciência que tem por objeto a organização e
orientação de situações de ensino-aprendizagem, de caráter instrutivo,
tendente à formação do indivíduo em estreita dependência de sua educação
integral” (MALLART, 2001, p. 30). Nota-se, nessa definição, o caráter instrutivo
ou formalizado da palavra didática.
Saturnino de la Torre (2012, p. 29), por sua vez, entende a didática
“como uma disciplina pedagógica reflexiva e prática que orienta a ação
formativa. De acordo com o autor, “a Didática, como qualquer disciplina que
aspira a um tipo de conhecimento específico, busca compreender e, na medida
do possível, explicar o processo formativo” (TORRE, 2012, p. 29). Para tanto,
“a Didática elabora teorias explicativas de ensino, seja a partir de uma reflexão
filosófica ou a partir da prática” (TORRE, 2012, p. 29). É uma disciplina que
constrói o saber mediante a práxis, a ação de seus agentes, tanto dentro como
fora da sala de aula, tendo como seu objeto os processos de ensino e
aprendizagem, os processos de formação, e como finalidade última o
desenvolvimento humano.
No Brasil, em especial, a partir de 1982, após a organização do
Seminário na PUC/SP, intitulado “A Didática em questão”, mais precisamente
durante a década de 1990 e o início do século passado, os estudos e as
discussões a respeito da didática vêm sendo cada vez mais aquecidos por
diversos olhares (CANDAU, 1993; LIBÂNEO, 2006, 2012a; OLIVEIRA, 1992;
VEIGA, 1989), os quais, de certa forma, convergem em relação ao conceito e
à perspectiva teórica que fundamenta o tema. Entre outros aspectos, para

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D’Ávila e Veiga (2012), tal aquecimento vem sendo especialmente motivado


pela precariedade da formação pedagógica dos docentes universitários.
Em grande parte dos trabalhos desses autores, denota-se um enfoque
pautado na didática histórico-crítica, que procura superar os formalismos
próprios dos enfoques tradicionalistas, escolanovistas e tecnicistas, bem como
as dicotomias presentes nas dualidades escola/sociedade, teoria/prática,
forma/conteúdo, professor/aluno.
Em geral, a quase totalidade dos autores advoga por uma didática
crítica, socialmente comprometida, voltada para a compreensão e análise da
realidade social na qual a escola está incluída, pautada, portanto, na dialética,
na visão do aluno como ser concreto, historicamente situado e contextualizado,
bem como na percepção do ensino como difusor de conhecimento e
oportunidade de reelaboração crítica, sendo o professor o mediador entre
alunos e conteúdos ministrados. É uma didática preocupada em superar
aquele pedagogismo ingênuo que não leva em conta os determinantes sociais
do fenômeno educacional, em direção a uma proposta verdadeiramente
comprometida com a democratização da escola e a construção do saber a
serviço dos interesses das classes populares. A escola, neste estudo, é
concebida como instância difusora de conteúdos ligados às realidades sociais,
imbuída em seu papel de colaboradora no processo de transformação da
sociedade.
Um dos mais renomados expoentes brasileiros do pensamento didático
atual, José Carlos Libâneo (2012b) reconhece a didática como sendo,
simultaneamente, uma ciência profissional do professor, uma disciplina
pedagógica, bem como um campo de investigação e de exercício profissional.
Corroborando os demais autores, observa que sua especificidade
epistemológica é o estudo da atividade de ensino e aprendizagem em
situações pedagógicas contextualizadas, a partir de um processo que assegure
a unidade entre o aprender e o ensinar, para que o aluno possa apropriar-se
dos produtos da cultura, da ciência e da arte. Desse modo, o ensino deve ser
dirigido para a apropriação de conhecimento e sua aplicação prática, visando o

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desenvolvimento das capacidades intelectuais do aluno e de sua personalidade


global.
O autor supracitado aponta que a didática articularia a lógica dos
saberes a ensinar (dimensão epistemológica) e a lógica dos modos de
aprender (dimensão psicopedagógica), por onde se requer sua dependência
das epistemologias das disciplinas e, portanto, da relação
conteúdos/metodologias. Ao mesmo tempo, a didática interliga essas
dimensões às práticas socioculturais, formando, assim, a base da organização
social do ensino voltada para o desenvolvimento humano.
Nesse sentido, na tentativa de explicitar o quadro teórico revelador de
sua compreensão a respeito da didática, Libâneo (2012b) esclarece que os
elementos integrantes do triângulo didático (conteúdo/professor/aluno),
constitutivo das condições de ensino e aprendizagem, articulam-se com os
demais elementos socioculturais, linguísticos, éticos, estéticos, comunicacionais
e midiáticos na operacionalização do ato didático. Observa também que é
preciso evitar o reducionismo didático e a fragmentação entre os conceitos de
ensino e aprendizagem.
Resumidamente, podemos afirmar que, ao se caracterizar como ciência
descritivo-explicativa, a didática possui uma dimensão teórica e outra prática,
relacionada à elaboração de propostas de ação, duas dimensões
complementares que não deveriam apresentar-se separadamente. Como
proposta de ação, a didática procura regular os processos de ensino e
aprendizagem com base em processos realistas, factíveis e adaptados a cada
situação e ao contexto sociocultural. É a partir dessas dimensões que
pretendemos tecer algumas considerações.

ALGUNS PROBLEMAS CRUCIAIS DA DIDÁTICA

Fundamentado em estudo realizado em 2011, em cursos de formação


de professores de séries iniciais (Pedagogia), Libâneo (2012a) observa que,
nas ementas dessa disciplina, o foco está predominantemente no ensino em
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detrimento da aprendizagem, prevalecendo, assim, o trabalho com os


elementos do plano de ensino. Descuida-se, portanto, das relações entre o
ensino e a aprendizagem, ou seja, da mediação da aprendizagem em relação
aos conteúdos. O autor em discussão afirma que existiria uma tendência em
deixar de lado a aprendizagem e os processos de desenvolvimento humano
para serem trabalhados por outras disciplinas, como a psicologia educacional,
fragmentando, assim, as relações ocorrentes entre o ensino e a
aprendizagem.
Esse mesmo autor revela que, no pensamento didático atual, existe uma
tentativa de se priorizar a socialização do pensamento pedagógico em vez dos
processos de aprendizagem do aluno, ignorando-se, assim, a
interdependência de tais processos no que concerne ao contexto social e
cultural do aluno. Outro aspecto destacado por Libâneo (2012a), a partir da
análise de documentos oficiais de políticas curriculares, é a presença muito
frequente da centralidade em relação aos interesses e necessidades do aluno
em detrimento dos processos de construção do conhecimento e da
aprendizagem. Logicamente, sabemos que o atendimento às necessidades do
aluno é fundamental, mas este não deveria acontecer em prejuízo dos
aspectos cognitivo-emocionais presentes na dinâmica do conhecer e
aprender. Ambos os aspectos deveriam ser atendidos. Denota-se aqui a falta
de um pensamento complexo na abordagem da questão.
Outro aspecto bastante criticado por esse autor e considerado por ele um
problema didático crucial é a separação conteúdo/método da ciência versus
metodologia do ensino (LIBÂNEO, 2012a). Tal problema é muito frequente nos
cursos de licenciatura para as séries iniciais (Pedagogia) e nos cursos das
séries subsequentes. Os primeiros enfatizam o metodológico sem referências
aos conteúdos e, no segundo caso, há maior ênfase aos conteúdos em
detrimento do metodológico. De certa forma, todos esses aspectos criticados
revelam a ausência de clareza epistemológica por parte dos docentes, o que,
por sua vez, acarreta uma série de problemas metodológicos.

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Assim, fica mais fácil perceber nessas explicações que, em todas essas
definições e compreensões a respeito da didática, vários elementos
estruturantes se repetem, tais como: ensino, aprendizagem, instrução, contexto
sociocultural, mediação, formação, que, de certa forma, representam os
elementos em torno dos quais a didática, dependendo do enfoque
epistemológico adotado, desenvolve suas práticas.
É oportuno também observar que em vários textos explicativos sobre
estratégias didáticas, bem como em algumas ementas de cursos de Pedagogia
obtidas na internet, notamos que, por razões intrínsecas à própria natureza da
palavra didática, a maioria destaca um determinado elemento estruturante. Em
grande parte desses textos, encontramos um certo formalismo estrutural, um
formalismo lógico, em que nem o sujeito nem os conteúdos, ou o contexto
social, são os elementos estruturantes da ação pedagógica, porém atribuímos
esse formalismo à organização lógica dos conteúdos a partir de princípios
universais e lógicos que regem o processo instrucional. É a didática tradicional
centrada nos conteúdos. Há textos que reforçam o formalismo subjetivista,
centrado nas atividades do aluno e pautado mais na sequência de
competências e habilidades a serem aprendidas, em vez de priorizar os
conteúdos e o contexto. É o caso da didática escolanovista, centrada nos
métodos e técnicas e voltada para as atividades desenvolvidas pelo sujeito
“aprendente”.
Por outro lado, existem também aqueles que se preocupam mais
com os conteúdos ou com a racionalidade predominante no formalismo
técnico objetivista ou, então, aqueles textos didáticos de natureza tecnicista
que privilegiam a técnica em detrimento das demais dimensões, tendo como
preocupação fundamental a eficiência e a eficácia dos processos educacionais
desenvolvidos.
Na contramão desses enfoques predominantemente divorciados do social
e do cultural, encontra-se a didática histórico-crítica, voltada para as questões
sociais, com ênfase na dimensão sociopolítica das práticas pedagógicas.
Segundo Oliveira (1992), essa perspectiva teórica busca superar o formalismo

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próprio dos outros enfoques e as velhas dicotomias (escola/sociedade,


teoria/prática, forma/conteúdo), oferecendo uma didática mais comprometida
com a realidade social. A partir dessa perspectiva teórica, procura-se articular a
didática pensada com a didática vivida, tendo como ponto de partida os
problemas reais do cotidiano do aluno.
Em um artigo relativamente recente, Saturnino de la Torre (2012),
catedrático emérito de Didática da Universidade de Barcelona, reconhece que
a didática do presente continua presa ao paradigma positivista no que se refere
à investigação, ao paradigma crítico e interpretativo, aos processos formativos,
em geral, e à formação docente, em particular. Esse autor destaca que

o conhecimento científico de maior impacto (física, biologia,


neurociências...) avança, abrindo novos horizontes, mas a
investigação pedagógica e didática não se desliga de uma
tradição fortemente influenciada pelo paradigma positivista e a
metodologia empírico-analítica (2012:31). Para ele, é preciso
promover a mudança de paradigma educacional [...] em
direção à era da consciência (TORRE, 2012, p. 32).

Por sua vez, Batalloso (2010, p. 67) observa que

necessitamos, pois, desconstruir a didática com o fim, não


de analisá-la, nem de decompô-la em elementos, mas de
observá-la em sua complexidade, chegando a descobrir que
talvez a melhor didática seja a que não se decreta, a que não
está escrita, a que não está dita, porque, em realidade, se
algo nos pode oferecer, é a partir das emergências reflexivas
do presente de um processo vivo de comunicação humana, no
qual estão integrados e inseparavelmente ligados todos e cada
um dos elementos dos processos de ensino-aprendizagem.

Acreditamos que, atualmente, um dos grandes desafios dos educadores


está na superação de todo e qualquer reducionismo presente nessas diferentes
abordagens. Nesse sentido, concordamos com Candau (1993), o qual, há mais
de 20 anos, já destacava a necessidade de que o método didático possa ter

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diferentes estruturantes e o mais importante seja a capacidade de articular, de


otimizar uma dinâmica operacional entre eles e não excluir qualquer que seja.
Para Candau (1993), o grande desafio docente estaria na superação do
formalismo e do reducionismo e na necessária ênfase que deve ser dada ao
Relacional, à articulação e ao diálogo entre esses elementos, bem como na
necessidade de se construir ecossistemas educacionais diversificados, de
multiplicar o seu lócus, de assumir-se em diferentes espaços, favorecendo a
pluralidade de tempos e linguagens, já que a educação não pode continuar
sendo enquadrada por uma lógica unidimensional ou aprisionada por
determinado paradigma. Nessa perspectiva, toda rigidez, seja pedagógica,
institucional, seja de natureza pessoal, precisa ser seriamente questionada a
partir de novos referenciais – questionada a favor da flexibilidade, da dinâmica
processual, da necessidade enriquecedora das diferentes leituras de um
mesmo fenômeno, bem como a favor da pluralidade de formas de expressão e
possibilidades de construção do conhecimento.
Dessa forma, novas perguntas surgem: até que ponto é possível
superar qualquer visão dicotômica e dualista da didática diante de uma
perspectiva teórica pautada na complexidade das relações e na atitude
transdisciplinar? Como trabalhar os diferentes estruturantes didáticos e
construir um ambiente de aprendizagem agradável, rico em elementos
significativos e desafiadores, capaz de resgatar a alegria e o prazer em
aprender? Essas preocupações e constatações levam-nos, ainda, a outras
perguntas: como criar ambientes de aprendizagem, digitais e/ou presenciais,
que superem todo e qualquer formalismo didático ou visão dicotômica a partir
desses princípios? Como criar ecossistemas educacionais, ou seja, diferentes
espaços cognitivo-emocionais para a construção de identidades e o
desenvolvimento de práticas culturais e sociais, tendo a complexidade como
um dos fundamentos importantes? Será possível reinventar a escola tendo
como base uma nova didática iluminada pela complexidade e pela
transdisciplinaridade? O que um ato didático, pautado nessas teorias, traz de
diferente em relação ao conhecimento e aos processos de ensino e

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aprendizagem? Até que ponto a mediação pedagógica iluminada pelos


operadores cognitivos para um pensar complexo potencializa tais processos?

CONCEITUANDO COMPLEXIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE

A complexidade pode ser compreendida como um princípio regulador


do pensamento e da ação, capaz de articular relações, conexões, interações,
além de nos auxiliar a organizar o pensamento para melhor compreender a
realidade, a ver os objetos relacionalmente, inseridos em seus respectivos
contextos e dependentes deles. Com ela, Morin nos ajuda a tentar religar, no
domínio do pensamento e da ação, o que já se encontra, direta ou
indiretamente, ligado na natureza, na organização do mundo material. Dessa
forma, a complexidade não perde de vista a realidade dos fenômenos, não
separa a subjetividade da objetividade e não exclui o espírito humano, o sujeito,
a cultura e a sociedade (MORIN, 1996a).
Fundamentado no Pensamento Complexo de Edgar Morin (1995) é
possível perceber que a chave da complexidade está em compreender a união
da simplificação e da complexidade, em entender os interjogos existentes entre
análise e síntese, sujeito e objeto, indivíduo e contexto, educador e educando,
percebendo a complementaridade dos processos envolvidos. Isso ocorre
porque todo fenômeno complexo é constituído por um conjunto de objetos
inter-relacionados por interações lineares e não lineares.
A complexidade pauta-se também pela indeterminação, pela
imprevisibilidade entranhada no tecido do universo, pela diversidade
constitutiva do real, pelas emergências presentes em todas as dimensões da
vida, pela incerteza como expressão das múltiplas potencialidades do real e
como condição do existir humano – incerteza como condição ontológica e
epistemológica, presente nas relações sujeito/meio, sujeito/objeto,
indivíduo/sociedade/natureza.
Em sua dimensão organizacional, a complexidade nos revela que a
realidade é multidimensional em sua natureza complexa, interdependente,
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mutável, entrelaçada e nutrida pelos fluxos que acontecem no ambiente e a


partir do que cada um faz. É contínua e descontínua, indeterminada em sua
dinâmica operacional que se manifesta dependendo do contexto, das situações
vividas e das circunstâncias criadas.
Em sua dimensão lógica, ou seja, em sua dialógica1, a complexidade
nos oferece outra perspectiva teórica que nos auxilia a avançar no processo de
construção do conhecimento. Assim, para se construir um conhecimento
transdisciplinar, capaz de transcender as fronteiras disciplinares, é preciso
trabalhar a partir de outra lógica, não mais dualista, no sentido de transcender o
nível de realidade primordial para que o conhecimento possa emergir em outro
nível, superando contradições e ambivalências. Cada nível de realidade requer
um conjunto de leis para sua explicação. Essas leis se rompem na passagem
de um nível a outro. Se não se rompessem, o conhecimento ficaria restrito a
um mesmo nível de realidade ou de materialidade do objeto, a uma única
disciplina ou área de conhecimento.
Por outro lado, o conceito de níveis de realidade pode também ser
aplicado aos campos ou às áreas de conhecimento, segundo Nicolescu (2002).
Dessa forma, podemos entender melhor a aplicação desses conceitos,
reconhecendo os diferentes níveis presentes no ato didático, no caso nos
processos de ensino e aprendizagem. Nessa relação, o ensino pode ser
considerado como pertencente a um nível de realidade e a aprendizagem a
outro, já que pertencem a dois domínios distintos. A passagem de um a outro
implica mudanças de conceitos, pressupostos, leis etc. O que funciona na
explicação de um não funciona para o outro.
Assim, unindo os diferentes níveis de realidade está a complexidade,
considerada uma propriedade sistêmica organizacional de caráter universal que
nos permite melhor compreender o acoplamento estrutural ocorrente entre os
diferentes níveis. Tal acoplamento energético, material ou informacional pode
acontecer tanto em um mesmo nível de materialidade como entre diferentes

1
Segundo Morin (1997, p. 45), a dialógica é “a unidade complexa entre duas lógicas,
entidades ou instâncias complementares, concorrentes ou antagônicas que se nutrem, se
completam, mas também se opõem e se combatem”.
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níveis. É o que acontece nos processos de ensino e aprendizagem ao se


constituírem como unidade processual de natureza complexa. Para melhor
compreensão dessa dinâmica operacional, utilizamos, assim, a complexidade,
a partir dos operadores cognitivos propostos por Edgar Morin (1997).
Qual é o papel de tais operadores? Esses operadores conduzem-nos a
pensar de maneira complexa, a reorganizar o pensamento, por meio de uma
dinâmica dialógica, recursiva, autoeco-organizadora. Para tanto, usamos a
epistemologia da complexidade, a lógica da complexidade e nos apoiamos
nesses operadores cognitivos. Quais seriam eles? Dentre outros, destacamos
os princípios dialógico, recursivo, hologramático e autoeco-organizador.
Assim, a complexidade, nutrida por tais operadores, constitui um dos eixos da
transdisciplinaridade, segundo Basarab Nicolescu (2002).
Em relação à transdisciplinaridade, dependendo do enfoque trabalhado,
ela é compreendida de determinada maneira. A maioria dos artigos ou ensaios
acadêmicos trabalha a transdisciplinaridade em nível de conteúdos
disciplinares, integrando-os a partir de diferentes dimensões da realidade ou
domínios linguísticos e apresentando, ao final, um texto inspirado nas diversas
disciplinas, mas que não se enquadra em nenhuma delas. Entretanto,
apoiando-se em Nicolescu (2002), foi possível ampliar o conceito de
transdisciplinaridade com base em um mecanismo operacional, envolvendo a
compreensão de três dimensões: nível de realidade, nível de percepção e
lógica do terceiro incluído. Tais dimensões nos levam a compreender
determinados fenômenos relacionados ao conhecimento e à aprendizagem,
bem como a ressignificar nossas práticas educacionais, a ampliar as
competências docentes, indo além da instrumentalização pedagógica
necessária, em direção ao desenvolvimento e evolução da consciência
humana.
Mas, o que é a transdisciplinaridade? Como ela se apresenta em relação
ao conhecimento? Nicolescu, em todas as suas obras, artigos e ensaios,
reconhece a transdisciplinaridade como metodologia e ratifica a definição por
ele construída: transdisciplinaridade é aquilo que transcende as disciplinas, que

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está entre, através e além das disciplinas (NICOLESCU, 1999b, p. 33).


Transcende o que aí está ao romper com a lógica binária, tradicional, dualista,
colonizadora do modo de pensar ocidental, que interpreta os fenômenos
baseada na dicotomia dos polos binários, reforçando, assim, a estrutura dual
do ensino. Entretanto, o que é que está além das disciplinas? Além das
disciplinas, dos objetos do conhecimento, dos níveis de realidade ou de
materialidade do objeto, está o ser humano em toda sua
multidimensionalidade. Para esse autor, está o sujeito que se encontra além
do campo disciplinar. “A transcendência imanente a transdisciplinaridade é a
transcendência do sujeito” (NICOLESCU, 2014, p. 56), com o que também
concorda Patrick Paul (2009).
Para Nicolescu (2002), essa definição implica o uso de uma
epistemologia e de uma metodologia estruturada a partir da articulação
competente destes três pilares: a complexidade, os níveis de realidade e a
lógica do terceiro incluído. A complexidade como fator constitutivo do real
encontra-se presente na organização das estruturas complexas que
caracterizam e articulam os diferentes níveis de realidade ou de materialidade
dos objetos. Entende-se por lógica ternária, ou lógica do terceiro termo incluído,
aquela que admite a possibilidade da inclusão de um terceiro dinamismo
energético ou informacional, fruto de outra modalidade de interação ou de
explicação da realidade a partir do A e do não A, que, na lógica clássica,
tradicional, estão separados. Para o axioma do terceiro incluído, existiria um
terceiro termo T que é, ao mesmo tempo, A e não A. Assim, a lógica ternária
formaliza a dinâmica operacional dos opostos, ao articular, dialogicamente, os
diferentes enfoques sobre determinado fenômeno. É o caso, por exemplo, da
onda e da partícula que se materializam como quantum, sendo este o terceiro
dinamismo energético possível a ser considerado. Em relação aos processos
de ensino e aprendizagem, não existiria sempre uma terceira ou quarta
possibilidade de interação entre essas duas polaridades, ou ainda uma outra
estratégia didática ainda não explorada?

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Isso significa que o conhecimento transdisciplinar é produto de uma


tessitura complexa, dialógica e autoeco-organizadora entre sujeito e objeto,
que emerge em um outro nível de materialidade diferente daquele que lhe deu
origem. No ato didático, ele é tecido nos interstícios, nas tramas fronteiriças
dos processos de ensino e aprendizagem, na intersubjetividade dialógica, nos
meandros da pluralidade de percepções e significados emergentes, a partir
de uma dinâmica complexa presente nos fenômenos, eventos e processos
ocorrentes. Para tanto, não se opera aqui no nível da fragmentação da
realidade, privilegiando, por exemplo, apenas os conteúdos disciplinares, mas
na unidade do que é diverso, na unidade aberta do conhecimento que se
apresenta na relação sujeito/objeto. É, portanto, um conhecimento que é
produto de interações ocorrentes entre os níveis de realidade representativos
do objeto e os níveis de percepção do sujeito. É um conhecimento que
estabelece a ponte entre o mundo exterior do objeto e o mundo interior do
sujeito e a constrói com base em uma dinâmica que envolve a articulação do
que acontece nos níveis de realidade dos objetos e nos níveis de percepção
dos sujeitos.
Nessa compreensão, todo conhecimento transdisciplinar vai além do
horizonte conhecido, logo implicando travessia de fronteiras, mestiçagem,
criação permanente, aceitação do diferente e renovação das formas
aparentemente acabadas de conhecimento. Pela transdisciplinaridade,
articulamos os opostos e os transcendemos, criamos algo novo que pode surgir
de um insight, de um instante de luz na consciência, de processos
intersubjetivos em sinergia, em que algo acontece envolvendo as diferentes
dimensões humanas. Ao trabalhar tendo em vista a multidimensionalidade
humana, o conhecimento de natureza transdisciplinar reconhece a importância
das emoções, dos sentimentos e afetos nos processos de construção do
conhecimento e na aprendizagem, bem como a voz da intuição ou do
imaginário ao colocá-la em diálogo com a razão e com as emoções
subjacentes.

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Assim, todo conhecimento de natureza transdisciplinar proveniente de


uma mediação didática procura explorar aquilo que circula entre os diferentes
níveis disciplinares e de percepção dos sujeitos, atento, inclusive, àquilo que se
encontra na ordem implicada, dobrada, escondida dentro de cada um de nós e
que se materializa por meio do diálogo intuição/razão, conhecimento
noturno/diurno, como explicado por Patrick Paul (2009).

A UNIDADE COMPLEXA DO ATO DIDÁTICO

Como então trabalhar os elementos estruturantes do ato didático


considerando a complexidade e a transdisciplinaridade? Que outras
compreensões esse arcabouço teórico difere de algumas explicações
consolidadas na área? Iniciemos esse diálogo com base na própria definição
de Libâneo (2012b, p. 44), ao reconhecer que

a didática tem como especificidade epistemológica o processo


instrucional (processo de ensino-aprendizagem) que orienta e
assegura a unidade entre o aprender e o ensinar na relação
com o saber, em situações contextualizadas, nas quais o aluno
é orientado para o desenvolvimento de sua autonomia, no
sentido de apropriar-se dos produtos da experiência humana
na cultura e na ciência, visando o desenvolvimento humano.

Um dos aspectos a serem comentados está relacionado à palavra


unidade e ao reconhecimento das dinâmicas de ensino e aprendizagem como
constituídas por um único processo, uma unidade integradora. De acordo com o
Dicionário Houaiss (2009), unidade “é a qualidade ou estado de ser um ou
único, a qualidade de ser uno, de não poder ser dividido”. Será mesmo que os
processos de ensino e aprendizagem constituem uma unidade? Mas, que tipo
de unidade? É possível reconhecer a unidade processual entre o ensino e a
aprendizagem à margem da natureza biológica do sujeito complexo? A
palavra unidade revela a existência de algo inseparável em sua dinâmica
operacional. No entanto, até que ponto é possível compreender a existência de
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uma complexidade ou pluralidade afeita ao que é uno? Existiria uma


causalidade linear e um determinismo na dinâmica operacional integrada entre
o ensinar e o aprender? Talvez esteja aqui um dos pontos a serem explicitados.
Nesse sentido, Candau, no ano de 1993, avisava que talvez fosse
preciso entender que “a unidade é assegurada pela relação simultânea e
recíproca de autonomia e dependência de uma em relação à outra [...]. Nela,
os dois polos se contrapõem e se negam constituindo uma unidade” (CANDAU,
1993, p. 54). Vasquez, citado também por Candau (1993, p. 56), na década de
1970, reconhecia e anunciava a complexidade presente nas relações teoria e
prática, observando que esta “não é direta e nem imediata, fazendo-se através
de um processo complexo, no qual algumas vezes se passa da prática para a
teoria e outras destas à prática”.
Pois bem, se partirmos do fato de que a aprendizagem é um processo de
natureza complexa, que traz consigo incertezas, emergências, diálogos com o
imprevisto e o inesperado, frutos de múltiplas interações emergentes,
envolvendo os mais diferentes componentes físico-químicos, biológicos,
neurológicos, afetivos etc., presentes na complexidade da organização
humana, a partir do seu acoplamento estrutural com o mundo sociocultural,
então fica mais fácil perceber que não existe uma equivalência automática entre
os processos de ensino e aprendizagem. Amparados nas teorias biológicas de
Maturana e Varela (1995, 1997), compreendemos que são dois processos
complexos de naturezas distintas que, embora envolvam implicações mútuas,
coerências operacionais e processos em codeterminação, no ato didático, há
dois protagonistas diferentes, com seus respectivos determinismos estruturais.
Isso ocorre porque, segundo Maturana (1997, p. 71),

o sistema vivente é estruturalmente determinado e como tal,


nada externo a ele pode especificar o que passa com ele; de
fato para a operação do sistema vivo não existe interior ou
exterior e é impossível fazer uma representação do que um
observador vê como exterior a ele.

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Para Maturana (1999), as interações instrutivas não existem. O


organismo não reage a estímulos ambientais por meio de uma cadeia linear de
causa e efeito. Qualquer ação física ou mental envolve interações entre o
indivíduo e o meio ambiente e este somente seleciona as mudanças estruturais
do organismo, mas não as especifica. Segundo Maturana e Varela (1995), o
que acontece externamente influencia, mas não determina a direção da
mudança estrutural que o organismo realizará em seu domínio organizacional
existencial.
Tal fato indica que nem sempre um bom ensino produz uma
aprendizagem equivalente, demonstrando-nos que não há uma
correspondência direta, biunívoca, entre uma boa didática e um bom resultado
discente. Biologicamente falando, não existe essa aparente obviedade, ou seja,
que um bom ensino produza uma aprendizagem equivalente. Isso porque não
podemos predizer, com certeza, o que vai se passar nas estruturas cognitivas
de um sistema vivo. Assim, o fato de, no ato didático, o docente selecionar e
utilizar diversos procedimentos, métodos ou estratégias, visando a
aprendizagem do aluno, não implica que o planejamento didático se materialize
como o esperado. Mallart (2001, p. 40) concorda com essa observação ao
afirmar que nem sempre é possível assegurar que o grau de efetividade do
ensino seja a causa da aprendizagem, com o qual concordamos.
Retomando o questionamento anterior sobre a palavra unidade,
acreditamos que a complexidade fenomenológica exige de nossa parte que
acrescentemos à palavra unidade, no que se refere ao ensino e à
aprendizagem, sua dinâmica operacional de natureza complexa, resgatando-
se, assim, a unidade complexa das relações e o caráter multidimensional do
sujeito e da realidade educativa. Dessa forma, reconhecemos que a
aprendizagem é uma atividade humana extremamente complexa, na qual as
dimensões cognitivas, psicomotoras, psicossociais e culturais se mesclam em
uma dinâmica processual nutrida por uma realidade histórica e sociocultural,
que alimenta os demais elementos estruturantes do processo. Entendemos que
os processos de ensino e aprendizagem constituem não um mesmo e único

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processo, mas uma unidade múltipla complexa, a partir de interações


emergentes. Nesse sentido, concordamos com Edgar Morin (1995, p. 183), ao
observar que “há não apenas diversidade no uno, mas também relatividade no
uno, relacionalidade, alteridade, incertezas, ambiguidades, dualidades, cisões,
complementaridade, antagonismos”.
Para melhor compreensão das relações pedagógicas que se
materializam no ato didático, é importante ajustar alguns pressupostos das
teorias construtivista e interacionista às novas teorias biológicas que envolvem
a autoeco-organização do vivo, bem como às recentes descobertas da
neurociência, para que possamos melhor entender a biopsicossociogênese do
conhecimento humano (MORAES, 2008).

POR UMA DIDÁTICA TRANSDISCIPLINAR ILUMINADA PELA


COMPLEXIDADE FENOMENOLÓGICA

Como passar de uma didática tradicional, positivista, para uma didática


transdisciplinar iluminada por uma epistemologia complexa? O que ela traz de
diferente em relação aos processos de ensino e aprendizagem? Vários são os
aspectos a serem repensados na mediação do ato didático construído a partir
da perspectiva teórica da complexidade e da transdisciplinaridade. Em seguida,
comentaremos alguns deles.
Primeiramente, essa passagem requer a complexificação do
pensamento pedagógico, aprisionado em suas gaiolas epistemológicas e
disciplinares, nas rotinas pedagógicas e didáticas que necessitam ser
desconstruídas, pois sua insistente permanência continua dificultando a
materialização da responsabilidade social da educação e o alcance de sua
missão transcendental voltada para o desenvolvimento humano. A
complexificação do pensamento pedagógico, usando-se outra lógica, exige que
trabalhemos, simultaneamente, tanto a vertente do ensino como a da
aprendizagem, mediante uma ontologia complexa que melhor explique a
complexidade da condição humana, inserida numa realidade biopsicofísica de
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natureza multidimensional, constituída por diferentes níveis de materialidade


que coexistem em sua dinâmica operacional.
Isso porque não podemos continuar fragmentando a realidade, o ser, o
conhecer e o aprender e, consequentemente, os processos de mediação
didática. A fragmentação de tais processos tem provocado dor e sofrimento no
aluno, comprometido seu processo de desenvolvimento integral e dificultado seu
acoplamento estrutural ao contexto sociocultural em que vive.
Uma educação que reconheça a complexidade da condição humana é
aquela que trabalha para além dos conteúdos disciplinares desprovidos de
conhecimento psicológico, sociopolítico, cultural e espiritual e vai ao reencontro
do sujeito, já não mais esquecido pela ciência pedagógica ou abandonado em
seus questionamentos, curiosidades, motivações e interesses.
Dessa forma, a transdisciplinaridade, amparada numa ontologia
complexa, resgata a subjetividade humana tecida na articulação do individual
com o sociocultural, não mais se referindo apenas aos aspectos psicológicos
nem à subjetividade individual, compreensão predominante no senso comum. A
partir desse arcabouço teórico, entendemos que as subjetividades individuais e
coletivas (intersubjetividade) constituem-se mutuamente, como configurações
de sentidos e de significados que vão sendo construídas mediante múltiplos
elementos, processos e condições, em que a relevância de uma não pode ser
compreendida fora de suas relações com a outra. Tal fato nos leva a ponderar
que, no ato didático, a dimensão subjetiva se refere tanto à subjetividade do
aluno como a do professor e a dos demais agentes do processo educacional.
A complexificação do ato didático requer que superemos o reducionismo,
a fragmentação, o determinismo, a causalidade linear e o formalismo técnico e
didático e repensemos os métodos empregados a partir de uma dinâmica
operacional de natureza complexa, envolvendo os diferentes elementos
estruturantes. Com isso, entendemos que, na estruturação do método didático,
é preciso articular, com competência e sabedoria, tanto os conteúdos
específicos de cada área do conhecimento, as necessidades e os interesses dos
alunos quanto as demandas do contexto sociocultural. Deve-se articular,

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criticamente, conteúdos, estratégias, sujeitos e contextos, teoria e prática


docente, superando todo e qualquer reducionismo e visão dicotômica dos
processos de ensino e aprendizagem. De certo modo, era o que Vera Candau,
há mais de 20 anos, sinalizava em seu livro Rumo a uma Nova Didática,
publicado em 1993.
Articular todos esses elementos requer atenção especial às interações e
inter-relações emergentes entre todos os estruturantes do ato didático,
sabendo, de antemão, que toda e qualquer ação, docente ou discente, é
sempre uma ação ecologizada (MORIN, 1997), fruto de inter-retroações de
natureza complexa que fazem com que a ação empreendida, ao entrar no
jogo das interações ocorrentes, escape do controle de seu autor. É o que
muitas vezes acontece numa sala de aula, seja presencial, seja virtual. Apesar
de um planejamento meticuloso, detalhado, e da intencionalidade docente, algo
acaba interferindo e escapando do controle, provocando bifurcações de rota e
mudanças no percurso planejado, por meio de processos autoeco-
organizadores emergentes, envolvendo todos os elementos.
A compreensão e o reconhecimento de tais fenômenos, ou seja, da
existência de processos autoeco-organizadores emergentes e transcendentes,
de bifurcações e instabilidades processuais, de trajetórias divergentes,
mediante os quais novas formas de ordem e de estruturas podem surgir,
constituem algo muito importante, pois colocam em questão teorias
cientificamente equivocadas, mas que ainda ocupam espaços importantes no
cotidiano escolar. Sabemos que qualquer ação humana, de um modo ou de
outro, repercute, energética, material ou informacionalmente, nos demais
elementos constitutivos da rede, provocando reações e emergências não
previstas.
Nesse sentido, concordamos com Vera Candau (1993), sobre a
importância de se criar espaços educacionais como ecossistemas educacionais
diversificados, como cenários vivos promotores de condições para que se
materialize uma verdadeira rede de aprendizagem integrada de natureza
transdisciplinar.

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Uma educação que trabalhe a multidimensionalidade da condição


humana certamente deverá também reconhecer e privilegiar a
multirreferencialidade, já que todo processo educativo está sujeito às diferentes
interpretações, à pluralidade de enfoques e olhares, pelo simples fato de ser um
campo de confluência de várias ciências.
A ação educacional afeta e é afetada por relações que acontecem
envolvendo diversas compreensões pertinentes aos diferentes níveis de
realidade, ou seja, relações que integram o meio físico, cultural, social, político e
econômico, dentre outros. Assim, o ato didático e o currículo precisam ser
trabalhados com base em uma epistemologia pluralista que privilegie múltiplos
olhares e compreensões, atenta, portanto, à multirreferencialidade, já que tais
processos não são alimentados apenas por conteúdos disciplinares, mas
também por processos inter e transdisciplinares, por conteúdos, saberes e
informações provenientes de nossas relações com tudo aquilo que nos rodeia e
que reflete as condições e os mecanismos culturais e sócio-históricos
envolvidos. Isso requer, no ato didático, atenção especial às pluralidades de
miradas e interpretações, acrescidas da necessidade de expressá-las mediante
o uso de linguagens plurais. Consequentemente, uma didática transdisciplinar,
nutrida pela lógica da complexidade, implica o uso de métodos que trabalhem a
inteireza humana a partir da pluralidade de linguagens que permitam escutas e
olhares mais sensíveis, assentados em conhecimentos transversais e
multirreferenciais que se revelam ao compartilhar objetos, temas e projetos que
favoreçam a compreensão da complexidade do real.
Por outro lado, o operar na sensibilidade e na racionalidade aberta
também nos adverte sobre a importância de a didática trabalhar a partir do
conceito de aprendizagem integrada (MORAES; TORRE, 2004), compreendida
como fenômeno biológico que envolve todas as dimensões do ser, em total
integração com o fazer, o viver e o conviver. Tal compreensão requer maior
atenção à qualidade das emoções e dos sentimentos presentes nos ambientes
educativos, sabendo que eles interferem no clima da sala de aula e,

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consequentemente, na construção das estruturas do pensamento a partir de


ações corporificadas e enraizadas no ambiente.
Outro aspecto fundamental é que a didática transdisciplinar não nega o
conhecimento disciplinar, pluridisciplinar ou interdisciplinar. Pelo contrário, ela
se alimenta de todos eles para que, no ato didático, possa ser trabalhado aquilo
que está entre, através e além das disciplinas, como observado por Nicolescu
(2002). Para tanto, é preciso conhecer profundamente o objeto do
conhecimento, explorar o conhecimento disciplinar, para que o objeto
transdisciplinar se manifeste além das fronteiras disciplinares e se materialize
mediante a ampliação dos níveis de percepção e de consciência do sujeito.
É preciso trabalhar a partir de uma racionalidade aberta, como deseja
Edgar Morin, uma racionalidade que acolha as intuições, as emergências, os
imprevistos e o inesperado, mediante uso de novas ferramentas intelectuais
que facilitem o pensar complexo sobre o ato didático. Daí a importância dos
operadores cognitivos, propostos por Edgar Morin (1995), pautados na
dialógica, na auto-organização, na recursividade processual, na
reintegração do sujeito e na ecologia da ação, entre outros aspectos
importantes. São esses operadores que nos ajudam a perceber relações e
vínculos, a estabelecer ligações intersubjetivas, facilitando a compreensão
da dinâmica operacional que se manifesta nas estratégias propostas.
Uma didática transdisciplinar favorece o pensamento da religação, aquele
que religa os acontecimentos, processos e fenômenos, que reconhece as
contradições e dialoga com elas, que valoriza o conhecimento científico em
diálogo com a sabedoria humana e com as histórias de vida de cada ser
aprendente, que reconhece e respeita as diferentes tradições culturais, bem
como a indissociabilidade da unidade/diversidade e do indivíduo/contexto.
Uma didática transdisciplinar valoriza os processos de formação
integral, ou seja, processos em suas múltiplas dimensões – autoformadora,
heteroformadora e ecoformadora. São processos de natureza tripolar e
multicausal, como observado por Gaston Pineau (2003), em que cada uma
dessas dimensões pode prevalecer em determinados momentos existenciais

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da vida do aprendiz, das condições e oportunidades recebidas, mas todas


elas integram o movimento transdisciplinar ato pedagógico. Em outras
palavras, esse enfoque tripolar se manifesta por meio das relações do
indivíduo consigo mesmo, com o outro e com os instrumentos técnicos,
pedagógicos e socioculturais presentes no processo. De um modo geral,
sabemos que o ato didático valoriza, prioritariamente, as dimensões hétero e
ecoformadoras, em detrimento da dimensão autoformadora e dos processos
de autoconhecimento que elas também favorecem.
A complexidade e a transdisciplinaridade solicitam que prestemos maior
atenção aos processos de autoformação, ao autoconhecimento, às
transformações interiores do sujeito aprendente, àquilo que está além das
disciplinas, nas palavras de Nicolescu (2002). O cuidado e a atenção com essa
dimensão formadora ajudam a revelar a sensibilidade, o imaginário, a
experiência mais íntima, a melhorar a autoestima e a confiança em si, o que é
fundamental para o desenvolvimento humano e a evolução da consciência.
A didática transdisciplinar também valoriza a formação experiencial,
definida por Gastón Pineau ( apud PAUL, 2009) como uma formação por
contato direto, refletido sobre as experiências vividas. Ela permite a
apropriação pelo sujeito de suas vivências, de suas histórias de vida, bem
como a gestação de diversas outras aprendizagens resultantes das
experiências percebidas (PAUL, 2009).
Uma didática transdisciplinar trabalha o ensino e a aprendizagem a
partir de uma dinâmica sincrônica e diacrônica, autoeco-organizadora,
articulando os diferentes estruturantes da mediação pedagógica. Isso ocorre
porque todo sistema autoeco-organizador, assim como tudo que envolve o ser
humano, implica conjunção, divergências, como também convergências de
dinâmicas sincrônicas e diacrônicas, mediante articulação competente das
dimensões presentes no ato didático.
Apoiados em Varela. Thompson e Rosch (1997), entendemos que a
mediação didática deveria ser trabalhada como “ação perceptivamente guiada”,
isto é, como ação que se desenvolve, a cada instante, a partir do que acontece

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nas estruturas sensório-motores dos sujeitos implicados, mediante percepções


e capacidades que vão sendo construídas, desconstruídas e reconstruídas a
cada instante, de acordo com o que flui no ambiente de aprendizagem. No ato
didático, os saberes docentes e discentes, embora dependentes das estruturas
internas dos sujeitos implicados, não estão separados do que acontece no
ambiente e do sabor de cada experiência vivida, pois os elementos
estruturantes estão acoplados em termos de energia, matéria e informação e
interagem em todo momento.
Maturana e Varela (1995) nos auxiliam a perceber que existiria, entre
docente e discente, um processo de coderiva estrutural e natural, não sendo,
portanto, um processo de natureza fechada e predeterminada. Muitas vezes,
em nosso planejamento didático, estabelecemos um roteiro de ações, ou
atividades de aprendizagem, mediante o estabelecimento de uma série de pré-
requisitos a serem observados e que, na prática, acabam se revelando inúteis.
A mediação didática estaria, assim, muito mais próxima de um fluir em uma
rede de configurações autoeco-organizadoras do que de um processo de
ajustes a uma realidade educacional previamente determinada ou fixa.

CONCLUINDO PROVISORIAMENTE

Sabemos que existe muito a ser explorado sobre essa temática.


Apenas iniciamos o diálogo com aqueles que desejam continuá-lo. Entretanto,
um dos aspectos que mais dificultam a renovação de nossas atividades
didáticas é a insuficiência de bases teóricas científicas presentes na formação
dos profissionais de educação, associada à dificuldade de repensar o nosso
próprio pensar.
Em cada ano que passa, percebe-se que a formação docente vai ficando
mais empobrecida, criando, assim, uma série de impedimentos e dificuldades
para se trabalhar as questões de natureza filosófica e epistemológica nas
práticas pedagógicas, no sentido de garantir que a complexidade e a
transdisciplinaridade se convertam em propostas concretas de ação e de
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intervenção no sistema educativo. Tal fato dificulta qualquer pretensão de


Reforma do Pensamento Educacional, como propugnado por Edgar Morin, e se
transforma em uma grande barreira para se repensar a mudança de paradigma
educacional (MORAES, 1997).
Acreditamos que é preciso rever os marcos científicos da produção do
conhecimento escolar e do conhecimento acadêmico, bem como os
fundamentos pedagógicos das práticas docentes, no sentido de incorporar a
complexidade, a multicausalidade, a multirreferencialidade, as emergências, a
interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade. Para tanto, será necessário
enfrentar diferentes tipos de resistências que permeiam o pensamento
hegemônico de nossas instâncias universitárias – resistências a algumas das
ideias-guia que fundamentam uma possível reforma do pensamento
educacional. Entre essas ideias e possíveis resistências a serem superadas,
destacamos:
• A dificuldade em distinguir a lógica que comanda o modo de
organizar o currículo e os processos de ensino e aprendizagem, no sentido de
superar a lógica clássica que favorece a dualidade estrutural do ensino e a
justaposição de disciplinas curriculares;
• A invisibilidade do paradigma da fragmentação no indivíduo inconsciente
de sua presença;
• A superação da dualidade estrutural que exige o repensar do próprio
pensar, a construção coletiva, a ressignificação de conceitos e a ecologia crítica
dos saberes;
• A dificuldade em perceber a correspondência entre os erros
ontológicos, epistemológicos e metodológicos e o fio condutor que os une;
• O não reconhecimento da importância do conflito nos processos de
mediação pedagógica e do diálogo crítico, frutos de uma lógica ternária que
busca uma terceira possibilidade ainda não materializada;
• A dificuldade em perceber a importância dos conhecimentos
interdisciplinar e transdisciplinar nos processos de mediação pedagógica e
suas implicações para o desenvolvimento humano;

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• O não reconhecimento da complementaridade presente na dialogia


entre dois polos aparentemente antagônicos e a dificuldade para compreender
que é na complexidade da organização aparentemente desorganizada que
também se materializam processos cognitivo-emocionais significativos.

REFERÊNCIAS

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Maria Cândida Moraes

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Maria Cândida Moraes

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Artigo recebido em: 04/05/2015.

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