Artigo 1
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ABSTRACT. The aim of this theoretical descriptive study was to analyze the main motivations
for pharmacological cognitive enhancement in contemporary times through the dialogue with
authors who investigated some phenomena of the so-called post-modernity, such as Deleuze
(1992), Foucault (2000), Bauman (2001) and Han (2015), in addition to authors of the
psychoanalytic field (Bezerra Júnior, 2010; Ferraz, 2014; Birman, 2014) that criticize the issue
of medicalization of education and its consequences. It was found that, currently, the search for
pharmacological cognitive enhancement is closely linked to the lifestyle and society built in the
last decades. Regardless of the name given to the historical moment the society is, it is
increasingly difficult to deal with reality and, in this context, the pharmacological cognitive
enhancement is revealed as one of the facets of the recent phenomenon known as
‘psychiatrization of normality’. As a result, it is also noted that the non-medical and indiscriminate
use of drugs to boost brainpower has become a common practice among college students; for
this reason, it is not merely an educational issue that may interfere with the teaching-learning
process, but also a public health problem. It is concluded that this phenomenon raises, in today’s
society, challenges of different orders, which is why it deserves special attention from the
scientific community.
Keywords: Pharmacological cognitive enhancement; medicalization of education;
contemporaneity.
Introdução
5 Passaremos a utilizar a sigla ACF para nos referirmos à nomenclatura ‘aprimoramento cognitivo farmacológico’.
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4 Aprimoramento cognitivo farmacológico
Temos consciência de que a nossa sociedade vem tornando-se cada vez mais
competitiva e o nível de exigência a que estamos sujeitos na atualidade tem afetado tanto
a nossa saúde física quanto a nossa saúde mental. Sabemos, também, que, no seu
processo evolutivo, os homens superaram uma infinidade de condições adversas com
sérias consequências para o nosso organismo. Todavia, os agentes estressores dos dias
atuais são difusos e silenciosos, bem distintos, por exemplo, dos felinos que, há milhares
de anos, ameaçam os homens nas savanas africanas e das guerras que, nos últimos
séculos, marcaram a nossa luta por territórios (Bezerra Júnior, 2002).
Essas mudanças se intensificaram nas décadas recentes e, segundo Bezerra Júnior
(2002, p. 232), atualmente, elas ocorrem por meio de formas e de meios distintos, como
[...] por meio da criação de certos ideais, da valorização de modelos de pensamento, da propagação
de certos repertórios de conduta, da difusão de metáforas que se incorporam ao senso comum, enfim
pela criação de novos jogos de linguagem, repertório de sentidos ou jogos de verdade que dão
consistência ao imaginário de uma época, imaginário através do qual o mundo, a existência e a
experiência pessoal ganham consistência e significação.
Como vimos, a queda do Muro de Berlim é o fato histórico que simboliza o triunfo do
capitalismo e a consolidação do ideário neoliberal como modelo político e econômico dos
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8 Aprimoramento cognitivo farmacológico
países centrais. Por isso, retomamos essa questão política, caracterizada pelo
desmantelamento da rede de segurança do Estado de Bem-Estar Social, para analisar
como esse fato histórico está implicado na construção de subjetividades afeitas ao ACF, de
acordo com estudiosos da psicanálise (Bezerra Júnior, 2010; Birman, 2014).
Entre as várias consequências da influência neoliberal nas políticas públicas, temos
o progressivo abandono da concepção de saúde pública e a transferência dessa
responsabilidade para o próprio indivíduo. “Propaga-se a crença de que o indivíduo pode e
deve ser capaz não só de evitar doenças, mas sobretudo gerenciar os riscos à sua saúde,
minimizando de forma consciente a possibilidade de patologias e otimizando seus próprios
recursos” (Bezerra Júnior, 2002, p. 232). Nesse contexto, a saúde deixou de ser a vida no
silêncio dos órgãos para se tornar um espetáculo a ser exibido na superfície da imagem
corporal. Temos, por conseguinte, um estilo de vida que combina hedonismo com uma
obsessiva preocupação com a aparência de saúde e de beleza.
Como corolário desse novo estilo de vida, “[...] as exigências de competitividade
acirrada, o culto à flexibilidade, a celebração da performance, a ideologia da prosperidade,
a exaltação da competência pessoal etc.” são aspectos aos quais nos sujeitamos (Bezerra
Júnior, 2002, p. 232). Somos diuturnamente convocados a enfrentar os riscos desse novo
mundo, a sermos empreendedores e a desenvolvermos uma notória capacidade de
empoderamento, fincando no horizonte metas inalcançáveis, infinitas. A palavra de ordem
na atualidade é ‘superação’ e o céu deixou de ser o limite.
Afirmamos anteriormente que as mudanças ocorrem, dentre outros meios, pela
propagação de certos repertórios de conduta que dão consistência ao imaginário de uma
época. Nesse sentido, a mídia vem fazendo a sua parte na consolidação dos valores
prezados por aquilo que apresentamos como a segunda fase da modernidade líquida.
Juventude, beleza, sucesso, proatividade, resiliência, competitividade, força e flexibilidade
são alguns desses valores, os quais podem ser resumidos em uma palavra: performance.
Para confirmar isso, Jorge (2014) analisou as 27 primeiras edições da revista Veja ‒
semanário de maior tiragem no Brasil ‒ publicadas no ano de 2012. Das 27 edições, 11
(40%) tiveram, em suas capas, reportagens com narrativas sobre trajetórias de sucesso,
de vitória e de enriquecimento ou que debatiam temas ligados às performances corporal e
mental.
Competitividade, produtividade e eficiência são, portanto, os valores que vão
delineando o ser humano do século XXI, definido precisamente por Gil (2013) como o
‘sujeito avaliado’. Proativo e, ao mesmo tempo, submisso ao imperativo do desempenho, é
um sujeito premido por metas a serem atingidas – constantemente reformuladas e
atualizadas. Em perene avaliação, esse ser é mensurado e categorizado em todas as áreas
da vida durante a sua existência. Aqueles que ignoram esse imperativo correm o risco da
exclusão social e da reprovação moral. Aqueles que, mesmo se esforçando, não
conseguem se integrar, inevitavelmente são excluídos e passam a formar legiões de
inaptos (Ferraz, 2014).
O culto à performance, no entanto, cobra o seu preço dessa figura símbolo da
sociedade do desempenho, pago pela busca por todo tipo de ajuda especializada. Sentimo-
nos na obrigação de exibir ao mundo uma imagem saudável, independente, responsável,
confiável, dotada de vontade e de autoestima; precisamos romper com o anonimato,
tornando-nos visíveis. Para isso, temos à disposição uma série de instituições
especializadas na oferta de aprimoramento das funções cognitivas, afetivas, apreciativas e
motoras do corpo humano, como é o caso das academias de ginástica, dos shopping
centers, dos estúdios de beleza e de estética, das clínicas de cirurgia plástica, dos
laboratórios de genética e de medicamentos etc.
Han (2015), em um texto escrito duas décadas depois da análise de Deleuze (1992)
sobre a sociedade de controle, dá, ao momento em que vivemos, o nome de ‘sociedade do
desempenho’, caracterizada pela positividade do poder e pela busca incansável da
excelência por meio da superação do normal.
Não havendo uma meta fixa e estável, sempre se estará aquém. Restam ‘graus’ de perfectibilidade,
de otimização, aperfeiçoamento, em uma escalada sinuosamente comparatista e mutante,
estendendo a exclusão no mesmo passo em que se dissolve a fixação de horizontes finais e de pontos
de chegada definitivos. A ‘dívida’ se torna assim impagável; não há mais ‛vencimentos’: eis de fato
implantado um sistema de moratória ilimitada (Ferraz, 2014, p. 7, grifo do autor).
O autor prossegue sua crítica advertindo que é preciso encarar o fato de que o mau
uso de drogas lícitas é um problema de saúde pública maior do que o dos entorpecentes
vendidos nas ruas. “É inaceitável 7% da população ser viciada em drogas prescritas, e
overdoses fatais destas excederem as causadas pelas ilegais” (Frances, 2016, p. 247). Em
suma, as substâncias comercializadas pelos grandes laboratórios farmacêuticos, utilizadas
em exagero ou de modo não prescrito, tornaram-se mais perigosas do que as drogas
vendidas pelos cartéis do narcotráfico.
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Yaegashi et al. 11
Ser ‘normal’, hoje em dia, tornou-se uma tarefa praticamente impossível. É cada vez
mais fácil se encaixar em uma ou mais doenças listadas no DSM-5. A patologização do
‘normal’ se apresenta, na visão de Birman (2014), como um fenômeno a serviço da
promoção da performance do sujeito avaliado, para torná-lo capaz de enfrentar os desafios
colocados pela sociedade da atualidade – a sociedade de risco. Psiquiatrizar os ‘normais’
é, portanto, produzir novas subjetividades, dispostas a superar os limites do corpo, sujeito
ao sono, à fome e ao cansaço, para escapar do fantasma do fracasso e da invisibilidade.
Considerações finais
Nosso objetivo, com o presente estudo, foi refletir sobre como a realidade
socioeconômica vem transformando o mundo psíquico dos indivíduos, motivando a prática
do ACF. O caminho percorrido neste artigo, de caráter teórico-descritivo, revelou a
complexidade do tema e os desafios educacionais, profissionais, éticos e políticos que ele
suscita.
Vimos que a busca pelo ACF, na contemporaneidade, está intimamente ligada ao
estilo de vida e de sociedade construídos nas últimas décadas. Para tanto, discorremos
sobre distintas formas de organização societária, começando pela sociedade disciplinar,
passando pela sociedade do controle até chegar à sociedade do desempenho, conhecida
como sociedade pós-industrial, narcisista, individualista, hedonista, dos excessos, do
consumo, do espetáculo, da informação, do risco, dentre outras designações.
Independentemente do nome dado ao presente momento histórico – que não são poucos
–, o fato é que está cada vez mais difícil atender às suas exigências.
Essa profusão de sinônimos que encontramos para a atual sociedade inspira um
sem-número de qualificativos às subjetividades por ela forjada, tais como sujeito avaliado,
sujeito motivado, sujeito performático, sujeito camaleônico, sujeito reticularis, sujeito
economicus etc.
Ao dissecar essas subjetividades contemporâneas, encontramos, como seu signo
mais eloquente, a busca por um padrão de normalidade definido não mais pelo caráter
comum de um atributo, mas por grandes laboratórios farmacêuticos e por manuais de
psiquiatria. Deparamo-nos, assim, com o paradoxo do sujeito competente, eficiente,
produtivo, enfim, do sujeito performático, porém incapaz de lidar com o sofrimento, com os
limites, com os conflitos e com as contradições próprias da condição humana. Um sujeito
cada vez mais dependente de dispositivos ofertados pelo mercado, como são as
substâncias psicotrópicas, capazes de proporcionar o tão cobiçado plus no desempenho
cotidiano.
Não se trata de condenar ou de estimular o uso de qualquer tipo de biotecnologia
para aprimorar nosso aparelho cognitivo; trata-se de refletir sobre os destinos da natureza
humana, pois, até o presente momento, o limite para o aprimoramento cognitivo é o corpo
e, como adverte Bezerra Júnior (2010), o desenvolvimento de drogas utilizadas com essa
finalidade ainda se encontra em um estágio bem rudimentar.
De todo modo, a ciência já vislumbra a possibilidade de um sujeito pós-orgânico,
moldado por moléculas criadas para a produção de humanos mais inteligentes, porém sem
efeitos colaterais, sem reações adversas e sem os limites impostos pelo corpo, ou seja,
bem diferente do ACF, que tem se valido de medicamentos tarja preta, ou seja,
medicamentos que devem ser vendidos sob prescrição médica, justamente porque podem
trazer riscos à saúde. Quando esse futuro pós-humano chegar, uma série de questões
éticas e políticas, cuja discussão não cabe neste trabalho, deverão ser exaustivamente
debatidas.
Enquanto isso, devemos ocupar-nos com as questões que o ACF já suscita em
nossas vidas, cientes de que, até agora, não temos evidências científicas sobre a eficácia
e a segurança do uso de quaisquer tipos de fármacos para o aprimoramento cognitivo
(Freese, Signor, Machado, Ferigolo, & Barros, 2012; Finger, Silva, & Falavigna, 2013;
Anvisa, 2014; Batistela, Bueno, Vaz, & Galduroz, 2016; Machado & Toma, 2016;
Gonçalves, & Pedro, 2018).
Vários trabalhos científicos (Ehrenberg, 2010; Barros & Ortega, 2011; Ferraz, 2014;
Pasquini, 2015; Affonso et al., 2016) corroboram as discussões apresentadas neste texto,
ou seja, as motivações para o ACF se devem, fundamentalmente, à preocupação dos
indivíduos em atender às expectativas sociais em relação ao desempenho acadêmico e ao
profissional.
Levantamentos realizados no Brasil e em demais países, desenvolvidos nos últimos
anos (Dal Pizzol et al., 2006; Pasquini, 2013, 2015), revelam que o uso não médico e
indiscriminado de medicamentos para ‘turbinar’ o cérebro é cada vez mais comum entre
estudantes universitários. Essa prática tornou-se um problema de saúde pública, que pode
agravar-se ainda mais, caso não levemos em conta a produção de subjetividades afeitas
ao ACF.
No ambiente de trabalho, o cenário é bem parecido. “O trabalhador, na luta para
aumentar a sua capacidade laboral, minimizar a percepção da fadiga e estender sua
permanência em situação de trabalho, tem buscado substâncias químicas como estratégia
para alcançar esses objetivos” (Carvalho, Brant, & Melo, 2014, p. 598).
Cientes da seriedade do tema e independentemente das adversidades impostas pela
competitividade da sociedade do desempenho, a comunidade científica deve investigar
mais a fundo esse fenômeno para produzir conhecimento que contribua para um debate
mais consistente e convincente, de modo que a população compreenda os riscos que o
ACF, tal como realizado nos dias de hoje, representa àqueles que se valem desse meio
para o alcance da performance que lhes é demandada em diferentes situações da sua vida.
Todo esse esforço deve resultar na reinvenção da sociedade, tarefa aparentemente
pretensiosa, mas não impossível. Na perspectiva do materialismo histórico-dialético, tudo
ao nosso redor que não é natural foi concebido pelo ser humano; desse modo, pode
também, por mãos humanas, ser transformado. Ao intervirmos na construção de novas
subjetividades, automaticamente transformamos a estrutura social onde elas estão
inseridas (Elias, 1990).
Como todo trabalho científico, nossa reflexão não pretende oferecer respostas
definitivas para os problemas levantados neste artigo. Reconhecemos o longo caminho que
ainda temos a trilhar, permeados mais por questões que permanecem sem respostas do
que pelas luzes que lançamos sobre o tema proposto. De todo modo, esperamos, com
confiança, que este estudo possa inspirar tantos outros que se façam necessários para que
o ser humano reaprenda a viver e a sofrer sem se ver como doente.
Referências
Affonso, R. S., Lima, K. S., Oyama, Y. M. O., Deuner, M. C., Garcia, D. R.; Barboza, L. L.,
& França, T. C. C. (2016).O uso indiscriminado do cloridrato de metilfenidato como
estimulante por estudantes da área da saúde da Faculdade Anhanguera de Brasília
(FAB). Infarma-Ciências Farmacêuticas, 28(3), 166-172. DOI: 10.14450/2318-9312.
Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020
Yaegashi et al. 13
Recebido em 22/01/2019
Aceito em 25/03/2020
Robson Borges Maia: Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Docente do Curso de Psicologia no Centro Universitário de Maringá (UniCesumar).
Rute Grossi Milani: Doutora em Saúde Mental pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do
Curso de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde e do Programa de
Pós-Graduação em Tecnologias Limpas do Centro Universitário de Maringá (UniCesumar).
Nilza Sanches Tessaro Leonardo: Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (PUC-CAMP). Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-
Graduação em Psicologiada Universidade Estadual de Maringá (UEM).