Artigo 1

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 15

ARTIGO 10.4025/psicolestud.v25i0.

46319

APRIMORAMENTO COGNITIVO FARMACOLÓGICO: MOTIVAÇÕES


CONTEMPORÂNEAS1

Solange Franci Raimundo Yaegashi 2 3, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7666-7253


Robson Borges Maia 4, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1863-4581
Rute Grossi Milani 4, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-2918-1266
Nilza Sanches Tessaro Leonardo 2, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1692-9581

RESUMO. O objetivo deste artigo, de caráter teórico descritivo, foi analisar as


principais motivações para o aprimoramento cognitivo farmacológico na
contemporaneidade, mediante o diálogo com autores que investigaram alguns
fenômenos da denominada pós-modernidade, tais como Deleuze (1992), Foucault
(2000), Bauman (2001) e Han (2015), além de autores do campo psicanalítico (Bezerra
Júnior, 2010; Ferraz, 2014; Birman, 2014) que tecem críticas à questão da
medicalização da educação e seus desdobramentos. Constatou-se que, na atualidade,
a busca pelo aprimoramento cognitivo farmacológico está intimamente ligada ao estilo
de vida e ao de sociedade construídos nas últimas décadas. Independentemente da
palavra utilizada para nomear o momento histórico vivido, está cada vez mais difícil
lidar com a realidade e, nesse contexto, o aprimoramento cognitivo farmacológico
revela-se como uma das facetas do fenômeno recente conhecido como psiquiatrização
da normalidade. Como resultado, nota-se também que o uso não médico e
indiscriminado de medicamentos para ‘turbinar’ o cérebro tem tornado uma prática
comum entre os estudantes universitários; por esse motivo, não se trata meramente
de uma questão educacional relacionada à interferência nos processos de ensino e de
aprendizagem, mas de um problema de saúde pública. Conclui-se que esse fenômeno
suscita, na sociedade atual, desafios de diferentes ordens, razão pela qual merece
atenção especial da comunidade científica.
Palavras-chave: Aprimoramento cognitivo farmacológico; medicalização da educação;
contemporaneidade.

PHARMACOLOGICAL COGNITIVE ENHANCEMENT: CONTEMPORARY


MOTIVATIONS

ABSTRACT. The aim of this theoretical descriptive study was to analyze the main motivations
for pharmacological cognitive enhancement in contemporary times through the dialogue with
authors who investigated some phenomena of the so-called post-modernity, such as Deleuze
(1992), Foucault (2000), Bauman (2001) and Han (2015), in addition to authors of the
psychoanalytic field (Bezerra Júnior, 2010; Ferraz, 2014; Birman, 2014) that criticize the issue
of medicalization of education and its consequences. It was found that, currently, the search for

1 Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).


2 Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá-PR, Brasil.
3 Email: [email protected]
4 Centro Universitário de Maringá (CESUMAR), Maringá-PR, Brasil.
2 Aprimoramento cognitivo farmacológico

pharmacological cognitive enhancement is closely linked to the lifestyle and society built in the
last decades. Regardless of the name given to the historical moment the society is, it is
increasingly difficult to deal with reality and, in this context, the pharmacological cognitive
enhancement is revealed as one of the facets of the recent phenomenon known as
‘psychiatrization of normality’. As a result, it is also noted that the non-medical and indiscriminate
use of drugs to boost brainpower has become a common practice among college students; for
this reason, it is not merely an educational issue that may interfere with the teaching-learning
process, but also a public health problem. It is concluded that this phenomenon raises, in today’s
society, challenges of different orders, which is why it deserves special attention from the
scientific community.
Keywords: Pharmacological cognitive enhancement; medicalization of education;
contemporaneity.

PERFECCIONAMIENTO COGNITIVO FARMACOLÓGICO:


MOTIVACIONES CONTEMPORÁNEAS

RESUMEN. El objetivo de este artículo, de carácter teórico descriptivo, ha sido el de


analizar las principales motivaciones para el perfeccionamiento cognitivo
farmacológico en la contemporaneidad, el diálogo con autores que investigaron
algunos fenómenos de la llamada posmodernidad, tales como Deleuze (1991),
Foucault (2000), Bauman (2001) y Han (2015), además de autores del campo
psicoanalítico (Bezerra Júnior, 2010; Ferraz, 2014; Birman, 2014) que lanzan críticas
a la cuestión de la medicalización de la educación y sus desdoblamientos. Se constató
que actualmente, la búsqueda por el perfeccionamiento cognitivo farmacológico está
íntimamente conectada al estilo de vida y de la sociedad construido em las últimas
décadas. Independientemente de la palabra utilizada para nombrar el momento
histórico vivido, está cada día más difícil lidiar con la realidad y, en ese contexto, el
perfeccionamiento cognitivo farmacológico se revela cómo a una de las facetas del
fenómeno reciente conocido como psiquiatrización de la normalidad. Como resultado,
se nota también que el uso no medico e indiscriminado de medicinas para potencializar
el cerebro se ha tornado una práctica común entre los estudiantes universitarios; por
ese motivo, no se trata meramente de una cuestión educacional relacionada a la
interferencia en los procesos de enseñanza y aprendizaje, pero de un problema da
salud pública, se concluye que ese fenómeno suscita, en la sociedad actual, desafíos
de diferentes órdenes, razón por la cual merece atención especial de la comunidad
científica.
Palabras clave: Perfeccionamiento cognitivo farmacológico; medicalización de la
educación; contemporaneidad.

Introdução

O consumo de medicamentos para o aprimoramento das funções cognitivas é uma


prática que vem crescendo consideravelmente na contemporaneidade. Caracteriza-se pelo
uso de psicotrópicos por indivíduos saudáveis, que visam a aperfeiçoar seu funcionamento
cognitivo, emocional e motivacional, especificamente pelo aumento de níveis de

Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020


Yaegashi et al. 3

concentração, de organização e de vigília, a fim de melhorar o rendimento escolar ou o


desempenho no trabalho (Barros & Ortega, 2011; Araújo, 2017).
Esse fenômeno ganhou contornos farmacológicos mais intensos na passagem do
século XX para o século XXI. Sujeitos ‘normais’, na esperança de potencializar suas
funções cognitivas, passaram a consumir substâncias psicotrópicas de venda controlada
que, em sua maioria, podem causar dependências física e psíquica. Mesmo com o uso
crescente dessas substâncias, a comunidade científica ainda não reconheceu a segurança
e a eficácia das mesmas para o aprimoramento das funções cognitivas.
Os medicamentos utilizados para essa finalidade são os psicotrópicos ou
psicoestimulantes, também denominados, na literatura especializada, nootrópicos – do
grego nous, ‘mente’, mais tropos, ‘curvar ou mudar’ –, termo usado para nomear uma classe
de substâncias (sintéticas ou naturais) que, supostamente, teria a capacidade de promover
a melhoria das funções cognitivas, como o pensamento, a linguagem, a percepção, a
memória, a aprendizagem e a atenção, desde que não apresentem toxicidade ou potencial
para a adição.
Entre os nootrópicos disponíveis no mercado estão o Nootropil® (Piracetam), o
Stavigile® (Modafinila), o Venvanse® (Dimesilato de lisdexanfetamina), a Donepezila®
(Cloridrato de donepezila) e a Ritalina® (Metilfenidato), este, indiscutivelmente, o mais
popular e o mais consumido no Brasil e no mundo (Gonçalves & Pedro, 2018).
Esses nootrópicos funcionam como estimulantes do sistema nervoso central, com
mecanismo de ação ainda não elucidado e estruturalmente relacionado às anfetaminas –
substâncias prescritas, em regra, para narcolepsia, para Alzheimer e para Transtorno do
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). No entanto, segundo o Boletim de
Farmacoepidemiologia do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados
[SNGPC] da Agência Nacional de Vigilância Sanitária [ANVISA] (2012), o aumento
exponencial do consumo desses medicamentos se deve ao uso não médico para o
‛aprimoramento cognitivo’, como instrumento para a melhoria do desempenho escolar de
crianças, de adolescentes, bem como de adultos.
Vários nomes são atribuídos a essa prática, tais como ‘neurologia cosmética’
(Chatterjee, 2004), ‘psiquiatria cosmética’ (Giannini, 2004), ‘doping intelectual’, ‘doping
mental’ (Han, 2015) e ‘aprimoramento cognitivo farmacológico’ 5, designação criada por
Barros e Ortega (2011) a qual adotamos nesse artigo por considerá-la mais precisa.
Apesar de não ser uma novidade, no Brasil, o fenômeno do ACF passou a ser
debatido com mais intensidade pela comunidade científica a partir de dezembro de 2008,
por ocasião da publicação do artigo manifesto intitulado Towards responsible use of
cognitive-enhancing drugs by the healthy (Greely et al., 2008) na revista Nature. Desde
então, elevou-se o número de publicações sobre esse tema, sendo que alguns autores se
posicionam favoravelmente ao uso de medicamentos para o aprimoramento cognitivo,
enquanto outros são contrários.
Com o objetivo de analisar as principais motivações para o ACF na
contemporaneidade, postulamos o seguinte problema de pesquisa: em que medida a
realidade socioeconômica vem transformando o mundo psíquico dos indivíduos e
motivando a prática do ACF?
Organizamos o artigo de maneira a explorar as transformações no modo de produção
capitalista na virada do século XIX para o século XX e na passagem do século XX para o
XXI, cujo momento é compreendido por Bauman (2001) como a passagem da modernidade

5 Passaremos a utilizar a sigla ACF para nos referirmos à nomenclatura ‘aprimoramento cognitivo farmacológico’.
Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020
4 Aprimoramento cognitivo farmacológico

sólida para a modernidade líquida. Em uma perspectiva dialética, pressupomos que as


motivações para o ACF devem ser compreendidas no contexto onde estão inseridas, ou
seja, elas se transformam de acordo com as mudanças que ocorrem no meio social, em
razão das demandas de cada época, portanto são historicamente determinadas.
Nos limites de um artigo, iniciamos nossa reflexão destacando algumas
características da modernidade sólida e do tipo de homem que ela engendra. Em seguida,
analisamos traços da modernidade líquida dividida em dois momentos distintos, com ênfase
nas transformações sociais responsáveis pela constituição de novas subjetividades. Na
sequência, refletimos sobre o ACF como expressão de um fenômeno recente conhecido
como ‘psiquiatrização da normalidade’. Concluímos o texto destacando desafios de
diferentes ordens que são suscitados por esse tema.

O sujeito confinado da sociedade disciplinar

Temos consciência de que a nossa sociedade vem tornando-se cada vez mais
competitiva e o nível de exigência a que estamos sujeitos na atualidade tem afetado tanto
a nossa saúde física quanto a nossa saúde mental. Sabemos, também, que, no seu
processo evolutivo, os homens superaram uma infinidade de condições adversas com
sérias consequências para o nosso organismo. Todavia, os agentes estressores dos dias
atuais são difusos e silenciosos, bem distintos, por exemplo, dos felinos que, há milhares
de anos, ameaçam os homens nas savanas africanas e das guerras que, nos últimos
séculos, marcaram a nossa luta por territórios (Bezerra Júnior, 2002).
Essas mudanças se intensificaram nas décadas recentes e, segundo Bezerra Júnior
(2002, p. 232), atualmente, elas ocorrem por meio de formas e de meios distintos, como
[...] por meio da criação de certos ideais, da valorização de modelos de pensamento, da propagação
de certos repertórios de conduta, da difusão de metáforas que se incorporam ao senso comum, enfim
pela criação de novos jogos de linguagem, repertório de sentidos ou jogos de verdade que dão
consistência ao imaginário de uma época, imaginário através do qual o mundo, a existência e a
experiência pessoal ganham consistência e significação.

Começamos, portanto, a nossa reflexão pela Segunda Revolução Industrial, com o


seu início em meados do século XIX. A lógica da produtividade determinava que se
fabricasse o maior número de produtos no menor período de tempo possível. Naquele
momento histórico, mudanças na matriz energética e na eficiência das máquinas, que se
tornaram mais complexas e aperfeiçoadas, possibilitaram a produção em larga escala.
Faltava, portanto, equacionar a questão do consumo de toda essa produção em
série, pois a cultura predominante ainda era a de se poupar para o futuro. Pelos princípios
básicos da economia, em uma sociedade em que a renda adquirida é poupada, os ciclos
econômicos são inevitavelmente mais lentos.
Bauman (2001) designa esse modelo societário de ‘modernidade sólida’, que tinha,
na fábrica, o paradigma mediante o qual todas as instituições iam moldando-se e ocupando
definitivamente os poucos espaços que ainda pertenciam ao mundo agrário. Vale lembrar
que essa experiência de tempo-espaço, denominada modernidade sólida, veio a ser
estudada/conhecida quando ela própria deu sinais de que seria substituída por outro
modelo. Sobre essa questão, o autor diz que “[...] o que pensamos que o passado tinha é
o que sabemos que não temos” (Bauman, 1998, p. 111).
A maioria das pessoas seguia uma trajetória padrão de vida: elas eram formadas em
uma família nuclear e instruídas em uma escola-fábrica que as preparava para o trabalho
a ser desenvolvido em grandes companhias, públicas ou privadas. Cada fase da vida ficava
Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020
Yaegashi et al. 5

a cargo de uma das instituições fundamentais da organização societária; a vida pessoal


não se misturava à vida profissional, ou seja, lar e trabalho ocupavam espaços distintos no
cotidiano das pessoas.
Foucault (2000) se refere a essa forma de organização social como a ‘sociedade
disciplinar’, pautada pelo modelo mecânico, analógico e submetida a técnicas de controle
e de vigilância; um mundo feito de hospitais, de asilos, de conventos, de seminários, de
presídios, de quartéis, de escolas, de fábricas e de outras instituições disciplinares criadas
para o confinamento, ocupadas por sujeitos obedientes e com seus limites bem definidos
por paredes e por muros que separavam o ‘normal’ do patológico.
Era uma sociedade fundada na negatividade, no dever realizado sob coerção, no
compromisso com a regulamentação e com as obrigações impostas aos cidadãos por meio
de leis (Han, 2015). O protagonista dessa sociedade disciplinar era o ‘sujeito confinado’,
que vivia em um tempo-espaço estruturado, rijo, sólido e durável. Um sujeito, segundo
Bauman (1998, 2016), capaz de sacrificar a própria liberdade em nome da segurança, que
era o seu valor preponderante.
O ideário político que ajudou a moldar a modernidade sólida também surgiu na
primeira metade do século XX, mais precisamente após a quebra da Bolsa de Valores de
Nova York, ocorrida em 1929. Para amenizar o prejuízo causado por esse episódio, o
presidente Delano Roosevelt inaugurou, no início da década de 1930, o New Deal, um novo
acordo caracterizado por políticas econômicas intervencionistas, adotadas com o objetivo
de reverter a depressão socioeconômica provocada por aquele acontecimento o qual se
refletiu em toda a economia mundial. Nascia, assim, o Welfare State, conhecido, em nosso
idioma, como o Estado de Bem-Estar Social, “[...] concebido como um instrumento
manejado a fim de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptos
a se empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptidão no meio do processo”
(Bauman, 1998, p. 121).
Para possibilitar o consumo em larga escala, foi preciso movimentar corações e
mentes. Nesse sentido, o grande desafio do sistema capitalista passou a ser a
transformação do ‘sujeito confinado’ da sociedade disciplinar ‒ poupador e conservador por
excelência ‒ em um sujeito voltado para o consumo. Valores como honra, honestidade,
solidariedade, estabilidade e lealdade tornaram-se incompatíveis com uma sociedade que
precisava dar vazão à produção em larga escala. A subjetividade, obediente a um conjunto
de normas e a dispositivos burocráticos que delimitavam a sua relação com o tempo e com
o espaço, precisava dar lugar a outra constituição subjetiva, muito mais flexível, maleável,
enfim, líquida.

Da modernidade sólida à modernidade líquida

Ao término da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos assumem a liderança do


mundo capitalista, tendo como oponente a União Soviética, principal referência do mundo
socialista. Inicia-se, então, na segunda metade do século XX, uma intensa batalha para
provar ao mundo qual dos dois modos de produção é o mais eficiente. Para enfrentar esse
embate, ambos os lados passaram por uma profunda reestruturação econômica e um
reajustamento social e político.
Segundo Leonard (2011), as mudanças no lado capitalista ocorreram pelas várias
estratégias adotadas para fazer com que a renda, até então poupada, entrasse em
circulação por meio da aquisição de produtos e de serviços, em um mercado cada vez mais
expandido. Isso garantiria maior velocidade no ciclo econômico e, consequentemente,
Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020
6 Aprimoramento cognitivo farmacológico

aumento na produção de riquezas. A produção em larga escala já era realidade; faltava a


criação de um novo ambiente e de uma nova cultura baseados no consumo, e isso dependia
de fatores tanto de ordem subjetiva quanto de ordem objetiva.
Os fatores objetivos estavam relacionados à renda das pessoas e à durabilidade dos
bens de consumo. Quanto ao primeiro, em vez de aumentar o salário dos trabalhadores,
optou-se por lhes dar crédito, iniciativa possível somente pela ‘financeirização’ da economia
e pelo consequente aumento do endividamento das famílias. Já o segundo fator foi
resolvido com a adoção da lógica da obsolescência perceptível, a cargo da indústria da
moda, e da obsolescência programada, que transformou produtos duráveis em
descartáveis. Não é sem razão que a indústria da moda e o capital financeiro estão entre
os mais poderosos no capitalismo tardio, tendo superado o poder do capital industrial na
sociedade disciplinar (Leonard, 2011).
Já o fator de ordem subjetiva, de acordo com Bauman (2001), dependia de alterações
no modus vivendi das pessoas, até porque o aumento de renda, por si, não implica elevação
de consumo. Era preciso levar o consumidor a assumir a ideia de que ele não precisava
poupar, porque a sua segurança não viria dessa prática, mas do fato de ele ser uma ‛pessoa
especial’. Assim, foi sendo despertado nas pessoas de todos os estratos sociais o desejo
de comprar. Isso não foi uma tarefa tão complicada, já que elas demonstravam
descontentamento com a vida fundada na segurança da modernidade sólida e almejavam
mais liberdade.
Nesse sentido, o marketing e um de seus instrumentos, a publicidade, foram
decisivos para convencer as pessoas de que elas eram únicas e especiais, pois só abre
mão da segurança de poupar quem admite a liberdade como um valor fundamental. Foi
assim, isto é, pela transformação dos valores que predominavam e davam sustentação à
‘modernidade sólida’ que se gestou a ‘modernidade líquida’, fruto do desenvolvimento, sem
precedentes, de um novo modelo organizacional e tecnológico (Bauman, 2001).
Fundada no avanço da informática, nas novas tecnologias da comunicação e na
nanotecnologia, a modernidade líquida rompeu barreiras geográficas e temporais,
transformando a Terra em um imenso mercado consumidor, globalizado e dominado por
grandes grupos multinacionais. Tivemos, assim, o nascimento de um novo sujeito,
fascinado por tudo o que a sociedade do consumo lhe apresenta, deslumbrado com todas
as possibilidades de gozar a vida, mas ainda sem consciência do preço que pagaria por
esse ‘admirável mundo novo’.

O sujeito endividado da sociedade do controle

Dando continuidade ao pensamento de Foucault (2000) sobre a ‘sociedade


disciplinar’ e teorizando sobre as mudanças radicais nos modos de viver e de produzir ao
longo do século XX, Deleuze (1992) nominou de ‘sociedade do controle’ esse nascente
modelo societário que Bauman (2001) denominou de ‘modernidade líquida’.
Na esfera política, o socialismo começava a dar sinais de esgotamento e, com a
queda do Muro de Berlim, em 1989, entramos na última década do século XX com o triunfo
do capitalismo como o modo de produção e de organização social considerado mais eficaz.
A partir de então, intensificou-se o desmanche do Estado de Bem-Estar Social, tendo os
Estados Unidos como o carro-chefe dessa nova geopolítica planetária. Bauman (1998)
sustenta que o Estado, sob forte influência neoliberal, foi deixando para as forças
desregulamentadas do mercado a tarefa de organizar a reprodução da ordem sistêmica,
tornando-se cada vez menos intervencionista.
Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020
Yaegashi et al. 7

“Quando controlava a conduta disciplinada de seus membros por meio de seus


‘papéis produtivos’, a sociedade incitava forças combinadas e a busca de avanço mediante
esforços coletivos” (Bauman, 1998, p. 54, grifo do autor); porém, em uma sociedade em
que o produtor passa a ser definido primordialmente como consumidor, as ações coletivas
perdem o sentido e novos valores precisam ser cultivados. O consumo, ao contrário da
produção, é uma atividade inteiramente individual e coloca os sujeitos em campos opostos.
Eis a razão da crise dos valores e das instituições de confinamento que moldaram a vida
na modernidade sólida. O curioso é que a rejeição a essas instituições e a repulsa a esses
valores, em vez de garantir mais liberdade, acabaram produzindo novas estruturas de poder
e de controle.
A fábrica deu lugar à empresa, uma instituição mais dinâmica, horizontal e flexível,
mas com um ambiente de trabalho pautado na rivalidade e na desconfiança recíprocas. No
discurso, o trabalhador deixa de ser considerado funcionário para se tornar um
‘colaborador’; desse modo, passa a se sentir com mais liberdade e autonomia. No entanto,
a empresa foi apropriando-se do espaço e do tempo dos trabalhadores – os ‘colaboradores’
– em sua totalidade. “O espaço tornou-se irrelevante, perdeu seu valor estratégico, pois
pode ser atravessado num click e assim não impõe mais limites à ação e seus efeitos. O
tempo, por seu turno, não mais confere valor ao espaço” (Bauman, 2001, p. 136).
Assim, o tempo de trabalho passou a fazer parte de todas as esferas da vida do
sujeito, eliminando a separação entre vida pessoal e vida profissional que havia na
modernidade sólida. O chefe foi substituído pelo líder, encarregado por motivar e integrar
os colaboradores para maximizar o desempenho do seu time.
Novos valores foram moldando a cultura do consumo, tendo a flexibilidade como o
paradigma para a construção de subjetividades inteiramente diferentes das existentes na
modernidade sólida. O sujeito confinado, poupador e seguro de outrora cede espaço a um
novo protagonista social, a quem Deleuze (1992) denomina de ‘sujeito endividado’. Jorge
(2014, p. 35), ao se referir ao sujeito desse novo modelo societário, assim o descreve:
Despido do sentimento de satisfação e do conformismo com o rumo de sua vida, o protagonista da
contemporaneidade parece estar sempre um passo atrás em relação às novidades do consumo, bem
como às novas competências e exigências do mercado, à formação contínua e ilimitada, ao fluxo de
informações irrestrito que circula pelas redes, e aos diversos papéis sociais que cada um desempenha
sempre em busca da alta performance que lhe é exigida (e quase nunca alcançada) em todos os
âmbitos da vida.

Na sociedade do controle, a formação é permanente, interminável. Como diz Ferraz


(2014, p. 4), “[...] já não se trata de seguir moldes, mas de se modular continuamente, tal
qual uma ondulante serpente”. Deleuze (1992) concebe o mundo em que se encontra o
sujeito endividado por meio da metáfora da moratória ilimitada, em variação contínua e
infinita, bem distinto da lógica operante na sociedade disciplinar em que havia a
possibilidade, mesmo que aparente, de quitação das dívidas.
Para efeito didático, neste artigo, entendemos por bem dividir a modernidade líquida
em duas fases distintas: a sociedade do controle, descrita neste tópico, que tinha no ‘sujeito
endividado’ a sua quintessência, e a sociedade do desempenho, a qual esmiuçamos no
tópico seguinte.

O sujeito avaliado da sociedade do desempenho

Como vimos, a queda do Muro de Berlim é o fato histórico que simboliza o triunfo do
capitalismo e a consolidação do ideário neoliberal como modelo político e econômico dos
Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020
8 Aprimoramento cognitivo farmacológico

países centrais. Por isso, retomamos essa questão política, caracterizada pelo
desmantelamento da rede de segurança do Estado de Bem-Estar Social, para analisar
como esse fato histórico está implicado na construção de subjetividades afeitas ao ACF, de
acordo com estudiosos da psicanálise (Bezerra Júnior, 2010; Birman, 2014).
Entre as várias consequências da influência neoliberal nas políticas públicas, temos
o progressivo abandono da concepção de saúde pública e a transferência dessa
responsabilidade para o próprio indivíduo. “Propaga-se a crença de que o indivíduo pode e
deve ser capaz não só de evitar doenças, mas sobretudo gerenciar os riscos à sua saúde,
minimizando de forma consciente a possibilidade de patologias e otimizando seus próprios
recursos” (Bezerra Júnior, 2002, p. 232). Nesse contexto, a saúde deixou de ser a vida no
silêncio dos órgãos para se tornar um espetáculo a ser exibido na superfície da imagem
corporal. Temos, por conseguinte, um estilo de vida que combina hedonismo com uma
obsessiva preocupação com a aparência de saúde e de beleza.
Como corolário desse novo estilo de vida, “[...] as exigências de competitividade
acirrada, o culto à flexibilidade, a celebração da performance, a ideologia da prosperidade,
a exaltação da competência pessoal etc.” são aspectos aos quais nos sujeitamos (Bezerra
Júnior, 2002, p. 232). Somos diuturnamente convocados a enfrentar os riscos desse novo
mundo, a sermos empreendedores e a desenvolvermos uma notória capacidade de
empoderamento, fincando no horizonte metas inalcançáveis, infinitas. A palavra de ordem
na atualidade é ‘superação’ e o céu deixou de ser o limite.
Afirmamos anteriormente que as mudanças ocorrem, dentre outros meios, pela
propagação de certos repertórios de conduta que dão consistência ao imaginário de uma
época. Nesse sentido, a mídia vem fazendo a sua parte na consolidação dos valores
prezados por aquilo que apresentamos como a segunda fase da modernidade líquida.
Juventude, beleza, sucesso, proatividade, resiliência, competitividade, força e flexibilidade
são alguns desses valores, os quais podem ser resumidos em uma palavra: performance.
Para confirmar isso, Jorge (2014) analisou as 27 primeiras edições da revista Veja ‒
semanário de maior tiragem no Brasil ‒ publicadas no ano de 2012. Das 27 edições, 11
(40%) tiveram, em suas capas, reportagens com narrativas sobre trajetórias de sucesso,
de vitória e de enriquecimento ou que debatiam temas ligados às performances corporal e
mental.
Competitividade, produtividade e eficiência são, portanto, os valores que vão
delineando o ser humano do século XXI, definido precisamente por Gil (2013) como o
‘sujeito avaliado’. Proativo e, ao mesmo tempo, submisso ao imperativo do desempenho, é
um sujeito premido por metas a serem atingidas – constantemente reformuladas e
atualizadas. Em perene avaliação, esse ser é mensurado e categorizado em todas as áreas
da vida durante a sua existência. Aqueles que ignoram esse imperativo correm o risco da
exclusão social e da reprovação moral. Aqueles que, mesmo se esforçando, não
conseguem se integrar, inevitavelmente são excluídos e passam a formar legiões de
inaptos (Ferraz, 2014).
O culto à performance, no entanto, cobra o seu preço dessa figura símbolo da
sociedade do desempenho, pago pela busca por todo tipo de ajuda especializada. Sentimo-
nos na obrigação de exibir ao mundo uma imagem saudável, independente, responsável,
confiável, dotada de vontade e de autoestima; precisamos romper com o anonimato,
tornando-nos visíveis. Para isso, temos à disposição uma série de instituições
especializadas na oferta de aprimoramento das funções cognitivas, afetivas, apreciativas e
motoras do corpo humano, como é o caso das academias de ginástica, dos shopping

Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020


Yaegashi et al. 9

centers, dos estúdios de beleza e de estética, das clínicas de cirurgia plástica, dos
laboratórios de genética e de medicamentos etc.
Han (2015), em um texto escrito duas décadas depois da análise de Deleuze (1992)
sobre a sociedade de controle, dá, ao momento em que vivemos, o nome de ‘sociedade do
desempenho’, caracterizada pela positividade do poder e pela busca incansável da
excelência por meio da superação do normal.
Não havendo uma meta fixa e estável, sempre se estará aquém. Restam ‘graus’ de perfectibilidade,
de otimização, aperfeiçoamento, em uma escalada sinuosamente comparatista e mutante,
estendendo a exclusão no mesmo passo em que se dissolve a fixação de horizontes finais e de pontos
de chegada definitivos. A ‘dívida’ se torna assim impagável; não há mais ‛vencimentos’: eis de fato
implantado um sistema de moratória ilimitada (Ferraz, 2014, p. 7, grifo do autor).

Enquanto a sociedade disciplinar, por diferenciar o normal do patológico, gerava


loucos e delinquentes, nossa sociedade, pela ânsia por performance, tem registrado um
aumento exponencial de indivíduos acometidos por ansiedade, por sensação de fracasso
e por depressão; esta, não por acaso, a doença mais incapacitante do mundo. De acordo
com o relatório global, publicado em fevereiro de 2017 pela Organização Mundial da Saúde
[OMS] (2017), o número de pessoas que vivem com depressão aumentou 18% entre 2005
e 2015. No mundo, a doença afeta 4,4% da população, enquanto, no Brasil, a depressão
atinge 11,5 milhões de pessoas (5,8% da população). Ademais, somos o país com a maior
incidência de ansiedade, ou seja, 9,3% dos brasileiros apresentam este estado psíquico.
O sujeito avaliado da sociedade do desempenho é altamente eficiente, rápido e
produtivo; paradoxalmente, essa eficiência se conquista por meio de rígida disciplina e
controle. Esse sujeito é, ao mesmo tempo, vítima e agressor, cansado de fazer e de poder.
Aliás, não lhe é dada sequer a possibilidade de não querer, em um mundo que vende a
ideia de que nada é impossível. Tendo escapado da sociedade disciplinar e do controle, o
sujeito contemporâneo vê seu sonho de liberdade transformado no pesadelo da coerção
social (Han, 2015).
O sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o
desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se na autoexploração, que é mais
eficiente que a exploração pelo outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade.
[...] Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações
patológicas dessa liberdade paradoxal (Han, 2015, p. 29-30).

Na sociedade de desempenho, o cansaço e o esgotamento, tanto físico quanto


mental, são inevitáveis, apresentando-se como “[...] característicos de um mundo que se
tornou pobre em negatividade e que é dominado por um excesso de positividade” (Han,
2015, p. 70). Por essa razão, recorremos às substâncias que, hipoteticamente, teriam a
capacidade de maximizar o desempenho e de fazer o organismo funcionar além do que era
considerado normal na sociedade disciplinar, dando origem ao ACF.

O aprimoramento cognitivo farmacológico como expressão da ‘psiquiatrização do


normal’

A psiquiatria, na sociedade do desempenho, vem promovendo o apagamento da


fronteira entre o tratamento de supostas patologias e o aperfeiçoamento físico e mental do
ser humano. Esse fenômeno, segundo vários autores, caracteriza-se pela prescrição de
medicamentos aos indivíduos normais para torná-los mais que normais (Bezerra Júnior,
2010; Camargo Júnior, 2013; Birman, 2014; Frances, 2016).

Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020


10 Aprimoramento cognitivo farmacológico

Já não discutimos se devemos usar medicamentos para ampliar nossas


potencialidades e melhorar o rendimento escolar e/ou o desempenho no trabalho, mas
como devemos fazê-lo. Como diz Bezerra Júnior (2010, p. 127-128),
Com o aparecimento de drogas e outras biotecnologias cada vez mais eficazes no controle e
normalização de funções e comportamentos alterados pela patologia, a ideia de fazer com que as
pessoas saudáveis possam fazer uso delas, tornando-se indivíduos mais do que saudáveis, ganhou
o imaginário social. Se pessoas que estão bem podem ficar mais do que bem, por que não utilizar o
que estiver ao nosso alcance para atingir esse objetivo? A psiquiatria cosmética já entrou em cena,
suscitando reações que vão da desconfiança ao entusiasmo.

Vivemos a era da ‘supernormalidade’, cuja obsessão por eficiência, por produtividade


e por reconhecimento caminha de mãos dadas com o consumo, em massa, de
medicamentos psicotrópicos. Ehrenberg (2010, p. 156), um dos primeiros estudiosos a
alertar sobre as consequências dessa cultura da conquista, assim se manifesta:
As condições da vida moderna, a concorrência e a competição desenfreadas dos candidatos para
obter um diploma, um posto, um sucesso, um reconhecimento profissional ou gratificações afetivas
tornam frequentemente indispensável o recurso a produtos tonificantes e estimulantes. [...] Não é mais
o bastante participar, como o proclamava Pierre de Coubertain, mas sim triunfar, dominar, esmagar o
adversário, enfim, subir ao pódio.
De fato, falta de concentração e de foco, desorganização, baixa produtividade e
fadiga são ‘defeitos’ cada vez menos tolerados socialmente e considerados respostas
abaixo do esperado para o indivíduo contemporâneo que, ao não vislumbrar outra saída
para alcançar a performance que lhe é exigida, apela para a via medicamentosa.
Está claro que esse fenômeno é fortemente motivado por interesses mercadológicos
e segregadores da lógica capitalista. A indústria farmacêutica, uma das mais poderosas do
planeta, vem aprimorando, competentemente, as suas estratégias de venda para expandir
ainda mais o seu poder. Se vender remédio para ‘doentes’ sempre foi uma atividade
altamente lucrativa, imagine vender remédio também para pessoas ‘normais’ (Frances,
2016). Esse fenômeno ampliou sobremaneira o mercado consumidor de medicamentos
apresentados em caríssimas e sofisticadas campanhas publicitárias como indispensáveis
para a conquista do sucesso.
Como se não bastasse, a ‘psiquiatrização do normal’ ganhou um forte aliado com a
publicação do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5, da
Associação Psiquiátrica Americana (2014) –, que elevou consideravelmente a quantidade
de transtornos mentais. Frances (2016, p. 2), um psiquiatra americano que ajudou a
escrever o DSM-4, tornou-se um dos mais contundentes críticos do DSM-5.
O DSM-5 sofre a infeliz combinação de ambições excessivamente elevadas e de uma metodologia
frouxa. Sua esperança otimista era criar um avanço revolucionário na psiquiatria; em vez disso, o triste
resultado é um manual que não é nem seguro nem cientificamente correto. [...] A menos que esses
diagnósticos sejam usados com moderação, milhões de pessoas essencialmente normais serão mal
diagnosticadas e sujeitas a tratamentos potencialmente danosos e estigma desnecessário.

O autor prossegue sua crítica advertindo que é preciso encarar o fato de que o mau
uso de drogas lícitas é um problema de saúde pública maior do que o dos entorpecentes
vendidos nas ruas. “É inaceitável 7% da população ser viciada em drogas prescritas, e
overdoses fatais destas excederem as causadas pelas ilegais” (Frances, 2016, p. 247). Em
suma, as substâncias comercializadas pelos grandes laboratórios farmacêuticos, utilizadas
em exagero ou de modo não prescrito, tornaram-se mais perigosas do que as drogas
vendidas pelos cartéis do narcotráfico.
Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020
Yaegashi et al. 11

Ser ‘normal’, hoje em dia, tornou-se uma tarefa praticamente impossível. É cada vez
mais fácil se encaixar em uma ou mais doenças listadas no DSM-5. A patologização do
‘normal’ se apresenta, na visão de Birman (2014), como um fenômeno a serviço da
promoção da performance do sujeito avaliado, para torná-lo capaz de enfrentar os desafios
colocados pela sociedade da atualidade – a sociedade de risco. Psiquiatrizar os ‘normais’
é, portanto, produzir novas subjetividades, dispostas a superar os limites do corpo, sujeito
ao sono, à fome e ao cansaço, para escapar do fantasma do fracasso e da invisibilidade.

Considerações finais

Nosso objetivo, com o presente estudo, foi refletir sobre como a realidade
socioeconômica vem transformando o mundo psíquico dos indivíduos, motivando a prática
do ACF. O caminho percorrido neste artigo, de caráter teórico-descritivo, revelou a
complexidade do tema e os desafios educacionais, profissionais, éticos e políticos que ele
suscita.
Vimos que a busca pelo ACF, na contemporaneidade, está intimamente ligada ao
estilo de vida e de sociedade construídos nas últimas décadas. Para tanto, discorremos
sobre distintas formas de organização societária, começando pela sociedade disciplinar,
passando pela sociedade do controle até chegar à sociedade do desempenho, conhecida
como sociedade pós-industrial, narcisista, individualista, hedonista, dos excessos, do
consumo, do espetáculo, da informação, do risco, dentre outras designações.
Independentemente do nome dado ao presente momento histórico – que não são poucos
–, o fato é que está cada vez mais difícil atender às suas exigências.
Essa profusão de sinônimos que encontramos para a atual sociedade inspira um
sem-número de qualificativos às subjetividades por ela forjada, tais como sujeito avaliado,
sujeito motivado, sujeito performático, sujeito camaleônico, sujeito reticularis, sujeito
economicus etc.
Ao dissecar essas subjetividades contemporâneas, encontramos, como seu signo
mais eloquente, a busca por um padrão de normalidade definido não mais pelo caráter
comum de um atributo, mas por grandes laboratórios farmacêuticos e por manuais de
psiquiatria. Deparamo-nos, assim, com o paradoxo do sujeito competente, eficiente,
produtivo, enfim, do sujeito performático, porém incapaz de lidar com o sofrimento, com os
limites, com os conflitos e com as contradições próprias da condição humana. Um sujeito
cada vez mais dependente de dispositivos ofertados pelo mercado, como são as
substâncias psicotrópicas, capazes de proporcionar o tão cobiçado plus no desempenho
cotidiano.
Não se trata de condenar ou de estimular o uso de qualquer tipo de biotecnologia
para aprimorar nosso aparelho cognitivo; trata-se de refletir sobre os destinos da natureza
humana, pois, até o presente momento, o limite para o aprimoramento cognitivo é o corpo
e, como adverte Bezerra Júnior (2010), o desenvolvimento de drogas utilizadas com essa
finalidade ainda se encontra em um estágio bem rudimentar.
De todo modo, a ciência já vislumbra a possibilidade de um sujeito pós-orgânico,
moldado por moléculas criadas para a produção de humanos mais inteligentes, porém sem
efeitos colaterais, sem reações adversas e sem os limites impostos pelo corpo, ou seja,
bem diferente do ACF, que tem se valido de medicamentos tarja preta, ou seja,
medicamentos que devem ser vendidos sob prescrição médica, justamente porque podem
trazer riscos à saúde. Quando esse futuro pós-humano chegar, uma série de questões

Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020


12 Aprimoramento cognitivo farmacológico

éticas e políticas, cuja discussão não cabe neste trabalho, deverão ser exaustivamente
debatidas.
Enquanto isso, devemos ocupar-nos com as questões que o ACF já suscita em
nossas vidas, cientes de que, até agora, não temos evidências científicas sobre a eficácia
e a segurança do uso de quaisquer tipos de fármacos para o aprimoramento cognitivo
(Freese, Signor, Machado, Ferigolo, & Barros, 2012; Finger, Silva, & Falavigna, 2013;
Anvisa, 2014; Batistela, Bueno, Vaz, & Galduroz, 2016; Machado & Toma, 2016;
Gonçalves, & Pedro, 2018).
Vários trabalhos científicos (Ehrenberg, 2010; Barros & Ortega, 2011; Ferraz, 2014;
Pasquini, 2015; Affonso et al., 2016) corroboram as discussões apresentadas neste texto,
ou seja, as motivações para o ACF se devem, fundamentalmente, à preocupação dos
indivíduos em atender às expectativas sociais em relação ao desempenho acadêmico e ao
profissional.
Levantamentos realizados no Brasil e em demais países, desenvolvidos nos últimos
anos (Dal Pizzol et al., 2006; Pasquini, 2013, 2015), revelam que o uso não médico e
indiscriminado de medicamentos para ‘turbinar’ o cérebro é cada vez mais comum entre
estudantes universitários. Essa prática tornou-se um problema de saúde pública, que pode
agravar-se ainda mais, caso não levemos em conta a produção de subjetividades afeitas
ao ACF.
No ambiente de trabalho, o cenário é bem parecido. “O trabalhador, na luta para
aumentar a sua capacidade laboral, minimizar a percepção da fadiga e estender sua
permanência em situação de trabalho, tem buscado substâncias químicas como estratégia
para alcançar esses objetivos” (Carvalho, Brant, & Melo, 2014, p. 598).
Cientes da seriedade do tema e independentemente das adversidades impostas pela
competitividade da sociedade do desempenho, a comunidade científica deve investigar
mais a fundo esse fenômeno para produzir conhecimento que contribua para um debate
mais consistente e convincente, de modo que a população compreenda os riscos que o
ACF, tal como realizado nos dias de hoje, representa àqueles que se valem desse meio
para o alcance da performance que lhes é demandada em diferentes situações da sua vida.
Todo esse esforço deve resultar na reinvenção da sociedade, tarefa aparentemente
pretensiosa, mas não impossível. Na perspectiva do materialismo histórico-dialético, tudo
ao nosso redor que não é natural foi concebido pelo ser humano; desse modo, pode
também, por mãos humanas, ser transformado. Ao intervirmos na construção de novas
subjetividades, automaticamente transformamos a estrutura social onde elas estão
inseridas (Elias, 1990).
Como todo trabalho científico, nossa reflexão não pretende oferecer respostas
definitivas para os problemas levantados neste artigo. Reconhecemos o longo caminho que
ainda temos a trilhar, permeados mais por questões que permanecem sem respostas do
que pelas luzes que lançamos sobre o tema proposto. De todo modo, esperamos, com
confiança, que este estudo possa inspirar tantos outros que se façam necessários para que
o ser humano reaprenda a viver e a sofrer sem se ver como doente.

Referências

Affonso, R. S., Lima, K. S., Oyama, Y. M. O., Deuner, M. C., Garcia, D. R.; Barboza, L. L.,
& França, T. C. C. (2016).O uso indiscriminado do cloridrato de metilfenidato como
estimulante por estudantes da área da saúde da Faculdade Anhanguera de Brasília
(FAB). Infarma-Ciências Farmacêuticas, 28(3), 166-172. DOI: 10.14450/2318-9312.
Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020
Yaegashi et al. 13

Agência Nacional de Vigilância Sanitária [ANVISA]. (2012). Prescrição e consumo de


metilfenidato no Brasil: identificando riscos para o monitoramento e controle sanitário.
Boletim de Farmacoepidemiologia do SNGPC, 2(2), 1-14. Recuperado de:
https://docplayer.com.br/3953312-Prescricao-e-consumo-de-metilfenidato-no-brasil-
identificando-riscos-para-o-monitoramento-e-controle-sanitario.html
Agência Nacional de Vigilância Sanitária [ANVISA]. (2014). Metilfenidato no tratamento de
crianças com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Boletim Brasileiro de
Avaliação de Tecnologias em Saúde (BRATS 23). Recuperado de:
http://portal.anvisa.gov.br/documents/33884/412285/Boletim+Brasileiro+de+Avalia%C
3%A7%C3%A3o+de+Tecnologias+em+Sa%C3%BAde+%28BRATS%29+n%C2%BA+
23/fd71b822-8c86-477a-9f9d-ac0c1d8b0187?version=1.1
Araújo, M. (2017). Próteses na cultura do período entreguerras: uma investigação sobre as
origens do debate filosófico sobre “aprimoramento humano”. Prometeus Filosofia em
Revista, 10(23), 267-298. Recuperado de:
https://seer.ufs.br/index.php/prometeus/article/view/6518/5396
Associação Psiquiátrica Americana. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos
mentais - DSM-5 (5a ed.). Porto Alegre, RS: Artmed.
Barros, D., & Ortega, F. (2011). Metilfenidato e aprimoramento cognitivo farmacológico.
Saúde e Sociedade, 20(2), 350-362. DOI:10.1590/S0104-12902011000200008
Batistela, S., Bueno, O. F. A., Vaz, L. J., & Galduroz, J. C. F. (2016). Methylphenidate as a
cognitive enhancer in healthy young people. Dementia &Neuropsychologia, 10(2), 134-
142. DOI: 10.1590/S1980-5764-2016DN1002009
Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
Bauman, Z. (2016). Babel: entre a incerteza e a esperança. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
Bezerra Júnior, B. (2002). O ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica. In
C. A. Plastino (Org.), Transgressões (p. 229-239). Rio de Janeiro, RJ: Contracapa.
Bezerra Júnior, B. (2010). A psiquiatria e a gestão tecnológica do bem-estar. In J. Freire
Filho (Org.), Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade (p.117-134). Rio
de Janeiro, RJ: FGV.
Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora,
17, 23-37. DOI: 10.1590/S1516-14982014000300003
Camargo Júnior, K. R. (2013). Medicalização, farmacologização e imperialismo
sanitário. Cadernos de Saúde Pública, 29(5),844-846. DOI: 10.1590/S0102-
311X2013000500002
Carvalho, T. R. F., Brant, L. C., & Melo, M. B. (2014). Exigências de produtividade na escola
e no trabalho e o consumo de metilfenidato. Educação & Sociedade, 35(127), 587-604.
DOI: 10.1590/S0101-73302014000200014

Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020


14 Aprimoramento cognitivo farmacológico

Chatterjee, A. (2004). Cosmetic neurology: the controversy over enhancing movement,


mentation, and mood. Neurology, 63(6), 968-974. DOI:
10.1212/01.WNL.0000138438.88589.7C
Dal Pizzol, T. S., Branco, M. M. N., Carvalho, R. M. A., Pasqualotti, A., Maciel, E. N., &
Migott, A. M. B. (2006). Uso não-médico de medicamentos psicoativos entre escolares
do ensino fundamental e médio no Sul do Brasil. Cadernos de Saúde
Pública, 22(1), 109-115. DOI: 10.1590/S0102-311X2006000100012
Deleuze, G. (1992). Conversações. São Paulo, SP: Editora 34.
Ehrenberg, A. (2010). O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão
nervosa. Aparecida, SP: Ideias & Letras.
Elias, N. (1990). O processo civilizador: uma história dos costumes (Vol. 1). Rio de Janeiro,
RJ: Jorge Zahar.
Ferraz, M. C. F. (2014). Avaliação e performance: a era do homem avaliado. Anais do 23°
Encontro Anual da Compós. Belém, PA. Recuperado de:
http://compos.org.br/encontro2014/anais/Docs/GT06_COMUNICACAO_E_SOCIABILI
DADE/compos2014formatado_2182.pdf
Finger, G., Silva, E. R., & Falavigna, A. (2013). Uso de metilfenidato entre estudantes de
medicina: revisão sistemática. Revista da Associação Médica Brasileira, 59(3), 285-289.
DOI: 10.1016/j.ramb.2012.10.007
Foucault, M. (2000). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.
Frances, A. (2016). Voltando ao normal: como o excesso de diagnóstico e a medicalização
da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomarmos
o controle. Rio de Janeiro, RJ: Versal.
Freese, L., Signor, L., Machado, C., Ferigolo, M., & Barros, H. M. T. (2012). Non-medical
use of methylphenidate: a review. Trends Psychiatry Psychother, 34(2), 110-115.DOI:
10.1590/S2237-60892012000200010
Giannini, J. (2004). The case for cosmetic psychiatry: treatment without diagnosis.
Psychiatric Times, 21(7), 1-2.
Gil, J. (2013). Em busca da identidade: o desnorte. Lisboa, PT: Relógio d’Água.
Gonçalves, C. S., & Pedro, R. M. L. R. (2018). “Drogas da Inteligência?”: cartografando as
controvérsias do consumo da Ritalina® para o aprimoramento cognitivo. Psicología,
Conocimiento y Sociedad, 8(2), 71-94. DOI: 10.26864/pcs.v8.n2.5
Greely, H., Sahakian, B., Harris, J., Kessler, R. C.,Gazzaniga, M., Campbell, P., & Farah,
M. J. (2008). Towards responsible use of cognitive-enhancing drugs by the healthy.
Nature, 456, 702-705. DOI: 10.1038/456702a
Han, B. (2015). Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes.

Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020


Yaegashi et al. 15

Jorge, M. F. (2014). Desempenho tarja preta: medicalização da vida e espírito empresarial


na sociedade contemporânea (Dissertação de mestrado). Universidade Federal
Fluminense, Niterói.
Leonard, A. (2011). A história das coisas: da natureza ao lixo, o que acontece com tudo que
consumimos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
Machado, L. C., & Toma, M. (2016). Qual a verdadeira função do metilfenidato na memória
de indivíduos saudáveis? Revista UNILUS Ensino e Pesquisa, 13(30), 126-130.
Organização Mundial da Saúde [OMS]. (2017). OMS registra aumento de casos de
depressão em todo o mundo; no Brasil são 11,5 milhões de pessoas. Recuperado de:
https://nacoesunidas.org/oms-registra-aumento-de-casos-de-depressao-em-todo-o-
mundo-no-brasil-sao-115-milhoes-de-pessoas/
Pasquini, N. C. (2013). Uso de metilfenidato por estudantes universitários com intuito de
“turbinar” o cérebro. Revista Brasileira de Biologia e Farmácia, 9(2), 107-113.
Pasquini, N. C. (2015). Fármacos para turbinar o cérebro, uso por quem pretende entrar na
Universidade. Revista Eletrônica de Farmácia, 12(3), 36-42.

Recebido em 22/01/2019
Aceito em 25/03/2020

Solange Franci Raimundo Yaegashi: Doutora em Educação pela Universidade Estadual de


Campinas (UNICAMP). Docente do Departamento de Teoria e Prática da Educação e do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Robson Borges Maia: Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Docente do Curso de Psicologia no Centro Universitário de Maringá (UniCesumar).

Rute Grossi Milani: Doutora em Saúde Mental pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do
Curso de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde e do Programa de
Pós-Graduação em Tecnologias Limpas do Centro Universitário de Maringá (UniCesumar).

Nilza Sanches Tessaro Leonardo: Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (PUC-CAMP). Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-
Graduação em Psicologiada Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Psicol. estud., v. 25, e46319, 2020

Você também pode gostar