75312-Texto Do Artigo-303762-1-10-20210709

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DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.

e75312

Entre o remédio e o corpo inquieto: de


qual infantil falamos?
Cristiana Carneiro1

Resumo
Tendo como temática a medicalização na educação, embasado na psicanálise freudiana, o pre-
sente trabalho visa a promover uma reflexão sobre as estratégias medicalizantes de educadores
quanto a um aluno dito inquieto, ocorridas ao longo de um estudo de caso. Parte da hipótese
que tanto o ideário de infantil do adulto educador quanto o de corpo podem estar articulados a
um discurso que compreende a inquietude sobretudo por um viés que reduz a compreensão de
comportamentos ao uso/não uso do medicamento. Apresenta, como possível resultado, os efeitos
na relação adulto-criança que as concepções medicalizantes ensejam: individualização, redução
da compreensão ampliada e relacional da questão, patologização do comportamento e desrespon-
sabilização da escola.
Palavras-chave: Medicalização. Educação. Infância. Corpo. Psicanálise.

1 Introdução
Apesar de haver no Brasil, no campo das políticas públicas, iniciativas
que vão num sentido contrário às práticas medicalizantes, sendo uma delas
a resolução sobre práticas não medicalizantes do Conselho Nacional de
Saúde de 2015, ainda vemos poucas ressonâncias dessas diretrizes no co-
tidiano das escolas (CONNAS, 2015). A Resolução nº 177 do Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)2, do
mesmo ano diz:

1 Psicanalista. Pós-doutora Sorbonne Paris VII. Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenadora do Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência contemporâneas (NIPIAC), disponível
em: www.nipiac.ufrj.br Coordenadora do GT da ANPEPP – Psicanálise e Educação.
2 Cf. Fórum de Medicalização da Educação e da Sociedade, disponível em: http://medicalizacao.org.br/resolucao-
-do-conselho-nacional-da-saude-csn-para-a-promocao-de-praticas-nao-medicalizantes/

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Art. 1º Esta Resolução dispõe sobre o direito da criança e do adolescente de não serem
submetidos à excessiva medicalização, em especial no que concerne às questões de apren-
dizagem, comportamento e disciplina.

Parágrafo único. Para os fins desta Resolução, define-se excessiva medicalização como a re-
dução inadequada de questões de aprendizagem, comportamento e disciplina a patologias,
em desconformidade com o direito da criança e do adolescente à saúde, ou que configure
negligência, discriminação ou opressão. (grifos nossos). (RESOLUÇÃO, 2005, [s. p.]).

Seguimos apontando a palavra supracitada redução, acreditando que é


justamente por uma redução de questões mais complexas a uma causalida-
de única, geralmente ligada a um discurso biologizante que práticas medi-
calizantes acabam sendo gestadas ou reafirmadas na escola. Mas como esse
discurso está sendo criado e/ou reafirmado pelos educadores? Que aspectos
poderiam contribuir/endossar essa lógica? Tais questões nos parecem fun-
damentais para se refletir, em nível micropolítico, nas razões possíveis da
dificuldade de implantação de práticas não medicalizantes.
Hipotetizamos que tanto o ideário de infantil do adulto educador
quanto o de corpo podem estar articulados a um discurso que compreende
a inquietude, sobretudo pelo viés da patologia. Nesse sentido, embasado
na psicanálise, o presente texto visa a promover uma reflexão sobre diferen-
ças na acepção de infantil e corpo e sua possível influência na percepção e
compreensão da criança pelo adulto que a educa. Parte de um caso onde o
discurso dos educadores sugeria a redução do comportamento do aluno a
questões quanto ao uso/não uso do medicamento.
Os extratos de falas escolhidos para o presente trabalho se inserem
em uma pesquisa maior, ligada ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e
Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC)
que mapeou outras estratégias de professores diante dos alunos ditos in-
quietos e desatentos3. No entanto, aqui elegemos aquelas mais afeitas ao
que se chama de um discurso medicalizante, justamente porque, nesse re-
ferido caso, ele foi preponderante. A pesquisa maior, um estudo de casos
múltiplos, teve como foco cinco crianças/adolescentes encaminhadas da
escola a um serviço de saúde mental, mais especificamente ao Serviço de

3 A pesquisa contou com parceria da Universidade Federal Fluminense (UFF) por intermédio da professora Luciana
Gageiro Coutinho.

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Psiquiatria da Infância e Adolescência da Universidade Federal do Rio de


Janeiro (SPIA-IPUB), que foram acompanhadas durante dois anos pelo
projeto por duas coordenadoras psicanalistas e professoras de pós-gradua-
ção e oito alunos da graduação de psicologia e de pedagogia, além de uma
técnica em assuntos educacionais da UFRJ. Cabe dizer que, entre esses
alunos, havia bolsistas de iniciação científica e também bolsistas de exten-
são. O discurso referente ao mal-estar na escolarização foi analisado a partir
de quatro grandes eixos: criança/adolescente, família, escola, especialistas
(CARNEIRO, 2018). Ouvimos e intervimos com pais, médicos, professo-
res e as próprias crianças e adolescentes ao longo de 2013 e 2014 a partir
de visitas às escolas com observação participante, reuniões com especia-
listas e famílias, entrevistas clínicas. Dentro de cada grande eixo analítico
(família, escola, sujeito, especialista), o material que se produziu durante
os dois anos de campo foi extenso. Todos os participantes assinaram termo
de consentimento esclarecido e a pesquisa teve o aval do comitê de ética
da Universidade Federal Fluminense com CAAE 28671414.1.0000.5243
e número de parecer 789.946. Em 2015 e 2016, a análise das pesquisa-
doras se deu no a posteriori e gerou diferentes produtos (CARNEIRO,
2015, CARNEIRO et al. 2018; COUTINHO; MAGALHÂES, 2018). É
importante ressaltar que, nesse artigo, pelo recorte da temática, foi priori-
zado o discurso de educadores, já que se pretende pensar as concepções de
infantil no discurso dos adultos; no entanto, é possível ouvir mais sobre as
vozes das crianças em outros trabalhos (CARNEIRO et al. 2018; COUTI-
NHO; MAGALHÃES, 2018).

2 Sobre Paulo
Paulo, pseudônimo que ora lhe conferimos, era um gracioso menino
de oito anos, muito inteligente e perspicaz, que fez parte de nossa pesquisa
nos anos de 2013 e 2014. Seu principal passatempo, nas horas vagas da
escola, era a leitura de gibis. Embora indo bem no aprendizado escolar e
terminando muito antes da turma os trabalhos solicitados, fazia uso de
remédio (Cloridrato de Metilfenidato) havia tempo. A criança já tinha um
longo histórico de idas a especialistas. Segundo informações contidas nos
relatórios de visita e nos prontuários anexados ao caso, Paulo nasceu
em 2004. Ele deu entrada no Instituto de Psiquiatria em 2012, quando
somava oito anos de idade. O menino já havia feito um tratamento no

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Hospital da Lagoa, e estava sendo medicado com Ritalina® desde 2011


(tinha entre 6 e 7 anos). Esse remédio é um dos nomes comerciais do
Cloridrato de Metilfenidato, estimulante do sistema nervoso central,
usado nos casos do chamado Transtorno do Déficit de Atenção e Hipe-
ratividade (TDAH), Transtorno Hipercinético e Narcolepsia. No pron-
tuário, datado de 24 de maio de 2012, consta que a primeira queixa
sobre ele aconteceu quando tinha 13 meses, proveniente da creche onde
frequentava, porque “escalava as coisas e era inquieto”. Paulo tinha
três anos quando
“[...] começaram as reclamações de que agredia os colegas e acordava as demais crianças.
[...] Aos seis anos foi ao neurologista, que lhe prescreveu Ritalina® com grande melhora
inicial no rendimento escolar e no comportamento”. (Prontuário do IPUB, 24/05/2012).

No ano de 2013, quando a pesquisa-intervenção teve início, Paulo cur-


sava o 4º ano do Ensino Fundamental numa creche – escola da Zona Sul do
Rio de Janeiro. O aluno frequentava a escola em período integral: pela ma-
nhã fazia reforço escolar, e à tarde escolarização regular, esportes e aulas ex-
tras. Tratava-se de um grupo comunitário fundado em 1985, que começou
suas atividades apenas atendendo crianças de zero a cinco anos, e passou a
oferecer escolarização até o 5º ano do Ensino Fundamental. Paulo ingressou
naquela instituição no 1º ano do Ensino Fundamental, em 2010.
O fato é que, na pesquisa, durante os dois anos de acompanhamento
de Paulo na escola, na família e com especialistas, foi possível notar uma
forte adesão dos educadores a um discurso medicalizante sobre ele. Medi-
calizar um fenômeno escolar significa reduzir sua discussão sociopolítica,
que envolveria uma ampla gama de saberes, ao discurso médico. Sabemos
das condições muito adversas do professorado na atualidade e de sua fun-
ção ímpar nas ações educativas, o que nos leva a também delinear a im-
portância de uma reflexão crítica do lugar do educador na manutenção, no
incentivo ou na resistência à lógica medicalizante.
A ampla difusão dessa lógica no cotidiano não só acarreta uma série de
práticas, por exemplo, a amplificação do diagnóstico feito por não médi-
cos – como demostra sua centralidade. O saber-poder médico, como bem
nos mostrou Foucault (1984), ganhou um palco privilegiado nos discursos

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sobre o humano a partir do século XIX. Gori e Del Volgo (2005), reto-
mando Foucault, vão mostrar como, para além de uma privatização do
sociopolítico, há toda uma visão de mundo que passa a gerir as significa-
ções de corpo, de saúde e doença. A saúde passa a ser entendida como um
bem, um direito, e acarreta todo um discurso de deveres. O importante a
ressaltar é que, na leitura medicalizante da existência contemporânea, dois
aspectos do humano desaparecem ou ficam absolutamente esmaecidos: seu
valor subjetivo, seu cuidado de si e sua função política (GORI; DEL VOL-
GO, 2005, tradução livre).
Numa compreensão da existência onde o aspecto biológico é tido como
soberano, a experiência perde em densidade e historicidade visto que a cau-
sa de determinado estado ou comportamento passa a ser localizada num
mau funcionamento orgânico, por exemplo. O corpo/organismo, nesta
forma discursiva objetivante de compreensão da experiência humana, iria
num sentido contrário de o compreender como histórico e relacional. Indo
nessa direção, no caso de Paulo por exemplo, encontramos um discurso
que associava seu comportamento de forma quase direta ao uso/não uso
do medicamento, como se o comportamento fosse predominantemente
ligado a um funcionamento/disfuncionamento orgânico. Podemos ler:
As orientadoras trouxeram a questão da melhoria significativa de Paulo quando medicado.
A psicopedagoga Nilda informou que ele era “agitado”, “não se acalmava”, “passava por
mim e não me via”; entretanto, após algum tempo, ela percebeu que Paulo a cumprimenta-
va e ela o questionou se ele estava tomando algum medicamento, e ele afirmou que “sim”.
(Relatório de observação – Paulo, 10 anos, 31/07/2014).

No decorrer dessa conversa, fica clara uma associação entre não cum-
primentar (não tomou remédio) e cumprimentar (tomou remédio). “Pas-
sou por mim e não me viu” como se isso fosse resultado da não ingestão
do medicamento.
Nessa mesma ida da aluna de iniciação científica à escola, a partir de
seu diário de campo, podemos ler sobre o discurso da diretora algo que pare-
ceu apontar para a mesma acoplagem entre medicamento-comportamento:
A diretora achou que ele estava sem remédio, porque achou o comportamento dele muito
retraído; disse que, se ele estivesse no estado normal, iria nos fazer muitas perguntas.

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Mas ele estava tímido, não falou nada, apenas nos olhou e nos cumprimentou cordialmen-
te. (Relatório de observação – Paulo, 10 anos, 31/07/2014).

Nessa escola, mais especificamente, certa de leitura dos comportamen-


tos de Paulo, associando-os ao uso/não uso do medicamento, parecia ser
uma tônica. Talvez porque não pudesse falar do seu mal-estar diante da si-
tuação difícil, ou talvez nem percebesse seu próprio mal-estar, a educadora
“soubesse” prontamente que o remédio melhorava. Nesta fala, o remédio
parece estar no controle. Hipotetizamos, de início, que o fato de sermos
pesquisadoras ligadas ao instituto de psiquiatria poderia ter, transferencial-
mente, impactado na forma discursiva, num sentido de “nos ajudarem” a
acompanhar o uso do remédio. No entanto, ao longo dos dois anos, a par-
tir de intervenções diversas e em diferentes contextos, podemos considerar
que, nessa escola, comparativamente às outras que também estavam sujei-
tas a esse fato, um discurso medicalizante circulava nos diferentes espaços
da instituição de uma forma mais generalizada.
Foi também nessa escola, que a entrada das pesquisadoras teve um
matiz particular, visto que foi a única, dentre as outras quatro da pesquisa,
que exigiu manter segredo quanto ao papel da integrante da pesquisa em
sala de aula.
Logo na primeira visita da aluna de iniciação científica que foi à escola
para acompanhar esse caso, lemos no diário de campo:
A professora Giovana me disse que ele é um menino extremamente inteligente e não teve ne-
nhum problema de comportamento; lê gibis em todo momento livre e seus trabalhos estão
sempre além do que é pedido. A professora teve que sair e continuei na sala com Maíra,
que falou novamente sobre o remédio. Ela disse que a psicopedagoga da escola tinha ficado
preocupada em ter alguém dentro da sala de aula e achava melhor Paulo não saber o motivo
da minha visita na sala de aula. (Relatório de observação – Paulo, 9 anos, 25/03/2013).

Essa postura de não saber e enganos acabou tendo suas consequências


e o grupo de pesquisa precisou intervir, já que o menino, de forma muito
inteligente, nos disse saber muito bem que a pesquisadora era “uma espio-
na” [sic]. O que levaria uma especialista a querer sustentar uma mentira ou
o não dizer diante de uma criança? O que poderia corroborar para que as
educadoras aparentemente acreditassem na supremacia do remédio como
determinante de comportamentos?

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A diretora relatou que o aluno entrou na escola alfabetizado e já apresentava uma inquie-
tude. Com o decorrer do tempo, começaram a aparecer atitudes como: correr pela sala,
subir nos armários e não conseguir sentar para fazer as atividades dadas pelo professor.
Maíra (diretora) também enfatizou a melhora de Paulo depois da medicação, dizendo que
ele melhorou 100% e que não consegue imaginá-lo sem o remédio. (Relatório de observação
– Paulo, 9 anos, 25/03/2013).

Se o desempenho de Paulo na escola era excelente, e a professora de re-


ferência não se queixava dele, causava-nos muita surpresa as constantes rea-
firmações feitas pela psicopedagoga e pela diretora sobre os benefícios do
remédio. Uma criança que corre, que sobe, que se mexe muito, é portadora
de patologia? Se a inquietude de Paulo não interferia em seu desempenho
ante o estudo, os conteúdos, as tarefas a realizar, a quem incomodava e por
que era compreendida como doença?
Para além do trabalho árduo e do cansaço dos educadores, acreditamos
ser fundamental questionarmos qual concepção de infantil poderia estar
subsidiando essas ações e entendimentos. Hipotetizamos que as diferentes
concepções de infância e do que é infantil não são neutras e, inequivo-
camente, influenciam as práticas. É, então, o lugar do adulto diante da
criança, enquanto potencializador de discursos patologizantes – ou fazen-
do resistência a eles – que nos interessa questionar.
2.1 Adulto, aquele que superou o infantil?
Se crianças existiram desde os primórdios do hommo sapiens, foi ape-
nas a partir do século XVII que algo mais próximo à infância como a con-
cebemos hoje começou a tomar forma (ARIÈS, 1981). Os subsequentes
dois séculos aprofundaram e deram subsídios para o século XX assistir à
proeminente consolidação da infância, sendo referido como o século de
ouro da infância (CAMBI, 1999). Neste referido século, afirmou-se defini-
tivamente a ideia da infância como momento específico e diferenciado do
adulto, onde a particularidade do ser criança deveria ser trabalhada e res-
guardada como direito. Mais ao final do século XX e início do XXI, num
movimento de sentido contrário, surgiram preocupações sobre o possível
desaparecimento da infância calcadas, sobretudo, na diminuição das dife-
renças entre criança e adulto promovidas pelas mudanças tecnológicas e da
cultura de consumo (CASTRO, 1997; POSTMAN, 2005).

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O que podemos ver, tanto na consolidação da infância quanto na eta-


pa da vida, ou mesmo nos questionamentos sobre seu possível desapare-
cimento, é que o adulto foi sempre um certo ponto de diferenciação e
comparação naquilo que estabelecemos chamar de infância.
Afirmamos, com Castro (1997), que os sentidos da infância são pro-
duzidos a partir das construções discursivas e relacionais nos diferentes
momentos e contextos. Nessa construção, vemos que a infância se escreve
a partir de diferenciações, na maior parte das vezes em relação aos adultos.
A posição que ela ocupa neste campo de diferenciações não é neutra, mas
marcada sempre por um jogo de forças. Em geral, o que pode ser observa-
do nesse jogo de forças, é que muitas vezes a infância ocupa um lugar de
invisibilidade (QVORTRUP, 2014).
No marco da construção da infância, as ciências psicológicas nasceram
com o intuito de incentivar a tendência para o desenvolvimento final,
tendo no homem adulto racional, maduro e branco seu modelo central.
O que se intentava nas concepções de desenvolvimento promovidas pe-
las ciências psicológicas era aperfeiçoar o indivíduo ao longo do contínuo
temporal. O que significava dizer que, olhando para a história coletiva, a
compreensão era de que o homem primitivo tinha, ao longo do tempo,
sido suplantado por um homem melhor, na história individual; então, a
criança, mais primitiva também, deveria ser suplantada por um ser mais
evoluído: o adulto (CARNEIRO, 2002). Portanto, caminhava-se nessa
continuidade temporal do menos para o mais, o que correspondia a uma
representação paralela do pior para o melhor. Primitivo, primeiro, era des-
sa forma “menos”, e quanto mais distante temporalmente desse marco de
origem, mais evoluído, melhor. Se a criança se situava no início dessa linha
temporal, o púbere deveria ser “um pouco melhor” que a criança, mas ain-
da não era o adulto. Como diz Castro (1997, p. 27) “[…] os saberes cien-
tíficos emergentes trataram, assim, de descrever e explicar e sistematizar os
desdobramentos filo e ontogenéticos como uma evolução”.
A passagem do tempo, numa visão evolutiva, garantiria um distancia-
mento do “primitivismo infantil”, porque “a natureza humana” tenderia
para a evolução. Esse primitivismo atribuído à infância estava ligado à ideia
de estado de natureza, de algo incontrolável, bestial, animalesco. Nesse

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sentido, o controle a ser exercido se fazia na direção de dominar essa na-


tureza primitiva. Nesta ótica, a infância vista sob a perspectiva do adulto
representava um lugar a ser ultrapassado (CASTRO, 2013).
Numa lógica mais evolutiva e desenvolvimentista, de superação do
infantil, muitas vezes se definem os momentos certos, os tempos previstos,
as aquisições desejadas como não só produtos esperados mas pré-requisitos
para as etapas subsequentes. Muitas vezes, essa lógica universalizante exclui
o contexto e o próprio sujeito da produção de determinadas ações. Numa
espécie de ilusão psicopedagógica (LAJONQUIÈRE, 1999), acredita-se
na possibilidade e necessidade de ajustar e adequar a intervenção adulta às
capacidades e habilidades da criança, de tal forma que um bom método per
se redundaria em boas aprendizagens.
No afã de saber sobre a infância, os saberes especialistas também
cunham um lugar de invisibilidade que se coaduna a um silenciamento
da voz da criança, que passa a ser explicada, compreendida, definida e
falada através do adulto. A infância passa a ser pensada como um tempo
de desenvolvimento, um objeto de interesse científico. Algo de paradoxal
se estabelece, já que, ao mesmo tempo em que o objeto infância ganha
visibilidade e as crianças enquanto suas signatárias passam a ser alvo de
interesse, é sempre um adulto que diz saber sobre elas. O adulto é tanto seu
porta-voz quanto o modelo a se atingir.
No caso de Paulo, por exemplo, retomamos nosso questionamento
quanto à inquietação compreendida como patológica. Estariam as edu-
cadoras norteadas por um certo ideário de infância onde com tal idade
(oito anos) a criança já deveria passar boa parte do tempo sentada? Tal
questionamento apontaria para uma espécie de defasagem do menino, que
talvez por motivos orgânicos, estivesse menos quieto que os demais. Se
essa hipótese procede e a lógica era essa, temos o medicamento como a
melhor saída e o comportamento inquieto como resposta a um problema
individual do aluno.
Por que hipotetizamos que essa visão de infância mais universalizada
e primitiva poderia subjazer ao discurso das educadoras? Justamente por-
que, em nenhuma das intervenções ocorridas durante dois anos, houve
algum questionamento sobre o possível papel da escola na produção da

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inquietude. Como acompanhávamos o aluno em seu cotidiano, era pos-


sível notar, por exemplo, que várias atividades eram consideradas fáceis
por ele, o que o fazia ter que ficar esperando o restante da turma acabar as
tarefas. Poderia o tédio interferir na inquietude? Fato é que, em nenhum
momento, o discurso da psicopedagoga e da diretora incluíram a escola, a
família e o desejo da criança como partícipes da quietude/inquietação. Se,
por um lado, sempre haverá um certo não querer saber do adulto em sua
relação com a criança, por outro a “insistência” nesse não querer saber não
será sem consequências para a criança (LAJONQUIÈRE, 2019). As falas
que associam o comportamento de Paulo diretamente ao uso do Clori-
drato de Metilfenidato excluem a pensabilidade da relação adulto-criança
e contribuem para um discurso de apagamento subjetivo em prol de re-
gulações neurobiológicas. A centralidade do discurso era conferida àquilo
que externalizava seu corpo. Geralmente, o comportamento percebido era
explicado por uma relação ao uso/não uso do medicamento. Podemos ler,
dessa vez incidindo também sobre o discurso da professora:
Semana passada ele estava agitado, não conseguindo se concentrar nos trabalhos, com
rendimento baixo. Nessa semana, ele estava sem medicação. Cheguei a enviar um recado
para mãe, que não respondeu. (Relatório de observação Paulo, 9 anos – 27/05/2013).

A associação tão rápida entre rendimento baixo (apenas naquela se-


mana? No geral não havia problemas de rendimento) e não uso do medi-
camento poderia apontar para uma espécie de compreensão unicausal do
comportamento, esmorecendo tantas outras possibilidades intervenientes.
Em uma pesquisa sobre estratégias de educadores para identificação e
intervenção sobre o chamado TDAH realizada numa escola pública do sul
do Brasil, Martinhago e Caponi (2019) relatam que, quando perguntaram
aos professores se haveria algum plano ou política na escola para trabalhar
com essas crianças, foi quase unânime a resposta de que seriam enviados
aos dispositivos de saúde. Indo num sentido já apontado por Collares e
Moisés (2015), as autoras relatam que, muitas vezes, a escola não se posi-
ciona no sentido de atender esse tipo de alunado, mas se coloca como víti-
ma do aluno inadequado, justamente minimizando o papel da instituição
escolar também na sua produção.

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Na compreensão que rapidamente associa comportamento à remédio,


ou não aprendizagem à transtorno, pode-se refletir no consequente lugar
do educador. Como apontam Guarido e Voltolini (2009, p. 257) a entrada
do remédio e da atribuição da não aprendizagem ao orgânico “[...] se dá
exatamente ali no lugar antes reservado ao professor, ou seja, não é o pro-
fessor ‘mais’ o remédio, senão que o remédio ‘menos’ o professor”.
Lima (2005, p. 14) também aponta para uma mudança contempo-
rânea: “[...] onde o critério de normal ou normativo se remete quase ex-
clusivamente aos padrões biológicos e aos predicados corporais”. A sub-
jetividade passa a ser vinculada à superfície corporal, “externalizada” ou
“somatizada” como no caso do TDA/H (LIMA, 2005).
Para os psicanalistas, os diferentes imaginários pedagógicos podem
nos dizer sobre os sonhos e as experimentações do mundo adulto em sua
relação com a criança (LAJONQUIÈRE, 1999). Relação jamais neutra e
isenta de conflitos, portanto que põe em xeque um certo ideário de aluno
ideal, ou de professor “bem formado”, no sentido ilusório de uma supres-
são do infantil e do desejo que o habita.
A criança que Freud inaugura, antes de tudo, é um corpo; mas, é um
corpo que não consegue fazer a aprendizagem definitiva da satisfação, que
não consegue regrar seu prazer segundo as vias previstas pelo “Outro”
(sempre é muito pouco, ou demais, ou não é assim); em suma, é um corpo
ineducável, que faz fracassar todas as ideias recebidas sobre uma progressão
harmoniosa (CALASTRE, 1991).
2.2 Um infantil não suplantado
A psicanálise inaugura, então, uma nova infância, que seria aquela
para além do vivido de uma criança, já que nessa teoria entende-se o infan-
til como cerne também do adulto. Assim, não se trata da suposta infância
cabalmente ultrapassada pelo adulto, mas de uma infância que resta, per-
manecendo no adulto através do desejo infantil (CARNEIRO 2015). Seria
a infância que não sabemos, mas que está em nós e que, através de seus
efeitos, deixaria marcas. Uma infância não lembrada, mas não eficazmente
esquecida também. Fazer esta infância falar seria, então, um dos motes da
psicanálise. “Esse outro que não (se) foi é objeto de recalque e de retorno e,

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assim, torna-se nosso estranho familiar. É o infantil que nos habita, depois
da infância, para todo o sempre” (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 207 É a
partir desse contexto que Freud pensa a sexualidade como sempre referida
ao infantil.
Ao postular a existência da sexualidade infantil e sua importância,
Freud ([1905] 1980) rompeu com uma visão que associava sexualidade
à puberdade. Nesse sentido, a sexualidade não seria uma prerrogativa do
púbere e posteriormente do adulto, mas já estaria posta desde a infância e,
ainda mais, a sexualidade infantil seria uma matriz fundamental do sujeito
ao longo de toda a sua vida, o que significa dizer que ela perduraria por
toda a vida. Isso nos dá a magnitude da importância do infantil em psica-
nálise. Tal importância está atrelada também à concepção freudiana relati-
va ao desamparo primordial do bebê humano, que depende dos cuidados
de um outro não só para sua sobrevivência física, mas também para que a
vida psíquica se constitua. É na esfera da sexualidade que essa dependên-
cia se evidencia, já que os caminhos a serem trilhados pela pulsão sexual,
seus objetos de investimento e as fantasias a eles atreladas, não tem sua
determinação definida por bases da espécie, nem servem exclusivamente
à reprodução, como se dá com outros animais. Ao nomear o sexual como
pulsional, Freud marca que a sexualidade humana, diferente do instinto
animal não se satisfaz como uma necessidade fisiológica, mas está sempre
atrelada a uma dimensão de representação, de palavra, que dá forma à fan-
tasia e ao desejo. Assim, a sexualidade humana só se configura a partir dos
traços deixados pela infância, que também estão na base da constituição
do próprio psiquismo. Ainda que a sexualidade infantil perdure por toda a
vida, ela sofrerá modificações, e a puberdade não deixará de ser considera-
da um marco para essas modificações. A sexualidade ancora-se em fatores
constitucionais (evolução da libido) e acidentais, como acontecimentos vi-
venciados na infância (séries complementares), de modo que a elaboração
que se dará a partir da puberdade se efetuará a partir do infantil. Isso é
importante porque, ainda que haja transformação da configuração da se-
xualidade infantil, jamais haverá supressão da mesma. Nesse sentido, não
haveria a substituição de uma velha fase que desapareceria, por outra nova,
que fundaria, então, uma etapa de maturidade adulta, mas a transformação
em algo novo que conservaria em si o antigo (CARNEIRO, 2002). Nes-

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sa ótica, a infância “[...] não desaparece nunca, assim como nunca se al-
cança uma maturidade sexual absoluta, contraposta à sexualidade infantil.
As organizações sexuais infantis estão contidas na adulta: seus elementos
persistem, ainda que revalorizados ou ressignificados” (TUBERT, 1999,
p. 13) numa configuração nova, diferente. Lapassade ([1971], 1975), em
seu trabalho sobre adolescência, critica a visão de que infância e adolescên-
cia seriam estágios provisórios, marcados por uma imaturidade que deveria
ser suplantada por uma maturidade definitiva. Essa forma de compreensão
provisória contribuiria para uma rejeição no adulto de sua própria infância
e adolescência, já que estas seriam consideradas apenas como etapas prepa-
ratórias que supostamente deixou para atrás.
A pulsão sexual (o desejo), por definição, é impossível de se satisfazer,
até mesmo pela indeterminação a priori de seus objetos e meios de satis-
fação. A realidade dos objetos do mundo será sempre intermediada pela
realidade psíquica na qual estão inscritos os registros das experiências de
satisfação anteriores. Assim, a sexualidade é marcada pela busca incessante
pelo retorno a um estado fantasiado de plenitude que, no entanto, se fosse
alcançado, significaria o fim da vida psíquica. O princípio do prazer é um
princípio de regulação, tendendo à redução da tensão e do esforço ineren-
tes à vida e às ligações psíquicas que põem em funcionamento o aparelho
psíquico. No entanto, o princípio do prazer não é totalmente soberano,
Freud supõe um montante pulsional que escapa à possibilidade de se ligar
às representações psíquicas mas que, nem por isso, deixa de atuar de forma
disruptiva e insistente, desafiando o psiquismo por uma exigência de tra-
balho incessante.
É nesse sentido que, ao postular um Para além do princípio de prazer,
Freud ([1920] 1980) deixa claro que nem tudo será abarcado pelo sexual.
A pulsão de morte diz respeito a uma força paralisante e repetitiva que
atua sobre o psiquismo. Em uma nota de rodapé acrescentada em 1920 aos
três ensaios sobre a sexualidade, Freud nos diz que o Édipo “é o complexo
nuclear das neuroses” (FREUD, [1905] 1980, p. 213) e que irá influenciar
decisivamente a sexualidade do adulto. Afirma, ainda, que “[...] cada novo
ser humano confronta-se com a tarefa de dominar o Complexo de Édipo”
(FREUD, [1905] 1980, p. 213). Para Laplanche e Pontalis (1992, p. 7),

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o complexo de Édipo pode ser entendido como o “conjunto de desejos


amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais”.
É, então, no terreno da sexualidade que Freud situa o cerne da
constituição do sujeito e, para ele, menosprezar esta importância quando
se pensa em educação é da ordem do engano (FREUD, [1913] 1980).
O espanto incrédulo com as descobertas psicanalíticas sobre a infância,
como “[...] o complexo de Édipo, o amor a si próprio (ou narcisismo),
a disposição para as perversões, o erotismo anal, a curiosidade sexual”
(FREUD, [1913] 1980, p. 225), denotaria o abismo que separa nossos
juízos de valor e nossos processos de pensamento daqueles encontrados nas
crianças. Ou seja, o que Freud denuncia é o abismo do adulto ante o in-
fantil que o habita. Justamente é esta distância obstaculizadora que Freud
inicialmente acreditou poder sanar através de uma educação psicanaliti-
camente esclarecida (FREUD, [1913] 1980, p. 226). Seguindo as refle-
xões de Pfister, Freud acreditava, naquele momento de sua obra, que uma
educação eminentemente repressora criaria “uma predisposição a doenças
nervosas no futuro” (FREUD, [1913] 1980, p. 225) e que uma educação
psicanaliticamente esclarecida consistiria numa profilaxia das neuroses.
Posteriormente, Freud ([1937], 1980) abandona a ideia de profilaxia por
compreender que a educação, assim como o governo e a psicanálise, seriam
fazeres marcados pela incompletude e incerteza.
Retomando a sexualidade como ponto nodal da constituição do sujei-
to e, portanto, ponto não menos importante à educação, temos a indicação
freudiana da centralidade dos “impulsos instintivos socialmente imprestá-
veis ou perversos que surgem nas crianças” (Freud, [1913] 1980, p. 225).
O que ele adverte aos educadores é que não empenhem todos os esforços
em sua supressão, pelo contrário, o trabalho deve consistir num desvio
dos objetivos originais, para outros mais valiosos, pelo processo de subli-
mação. A insistência na supressão forçada do pulsional tem como “[...]
preço, perda de eficiência e capacidade de prazer, que tem de ser pago pela
normalidade na qual o educador insiste” (FREUD, [1913] 1980, p. 225).
Lembra-nos, ainda, que “[...] nossas mais elevadas virtudes se desenvolve-
ram como formações reativas e sublimações, de nossas piores disposições”
(FREUD, [1913] 1980, p. 225). Para ele a educação deve “abster-se de

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soterrar essas preciosas fontes de ação” (FREUD, [1913] 1980, p. 225), o


que significa dizer que é a partir delas que outra educação pode se efetivar.
A sexualidade, então, com suas “melhores e piores disposições” se constitui
não apenas como possibilidade de existência do sujeito mas também como
fonte da construção de conhecimento.
A questão é que a sexualidade incomoda, justamente naquilo que reen-
via para um infantil indomado, que está em nós e nos suplanta mais do que
gostaríamos. Numa releitura do mal-estar a partir da sexualidade infantil,
Suchet (2018) situa o caráter desorganizativo e disruptivo do pulsional
como principal fonte de repúdio ante a sexualidade infantil. A violência
pulsional seria justamente o ponto de mal-estar privilegiado naquilo que
nos remete ao incontrolável. A partir disso, poderíamos perguntar, mais
especificamente, se a impossibilidade de domínio e controle definitivo do
pulsional em nós não seria, de certa forma, relançada quando diante de
uma criança que desafia o ideário de “criança perfeita”?
Entre o ideário de um infantil ultrapassado e apaziguado pelo adul-
to maduro, e aquele que o compreende como permanente reatualização
de força e destinos pulsionais, nos parece compreensível uma espécie de
aceitação mais tácita das teorias que reafirmam a visão de uma superação
do infantil pelo adulto. A ideia de controle nesse cenário parece mais se-
dutora que a de mal-estar. De forma bastante distinta, ao apontar para a
incompletude e parcialidade da satisfação como fonte contínua de mal-
-estar, Freud ([1913] 1980) o situa como estrutural; e o corpo, enquanto
pulsional, também é remetido a este paradigma.
2.3 Corpo orgânico x corpo pulsional
Se o saber científico propõe um suficiente controle do corpo/orga-
nismo, a psicanálise aponta que o controle e domínio do corpo pulsional
jamais será suficiente. Em Mal-estar na civilização, Freud ([1930] 1976)
aponta o corpo como uma das principais fontes de infelicidade. Se o corpo
biológico morre e adoece apesar de nossos esforços, o corpo pulsional terá
que se haver com as representações da morte e do morrer, da doença, das
separações e insatisfações e da constante pressão das excitações internas e
exigências externas. Neste sentido, a busca da felicidade para o autor será

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Entre o remédio e o corpo inquieto: de qual infantil falamos? | Cristiana Carneiro

sempre uma busca e jamais uma felicidade encontrada. O corpo pulsional


enquanto representante desta busca é justamente aquele que se encontra
entre o fora e o dentro, equilibrando satisfação e insatisfação, na tentativa
de inscrição da força. Por esta ótica, o corpo passa a ser entendido como
um lugar que, ao se constituir, integra interior e exterior ao mesmo tempo.
Compreendido não apenas como um limite, distinto da mente por exem-
plo, mas um lugar que permite a ligação e, também, o desligamento do
aparato pulsional (LINDENMEYER, 2010).
Em sua concepção do corpo, Freud se afasta do domínio da biolo-
gia e coloca as manifestações somáticas na esfera intrapsíquica (ASSOUN,
1997). Isto marca que, para a psicanálise, o corpo é compreendido como
construído sempre na relação com um outro, relacional e, por isso, sexua-
lizado. No entanto, no contemporâneo, a crescente tendência à medicali-
zação dos fenômenos educativos parece estar endossando a compreensão
do domínio biológico como aquele responsável pelo mal-estar. No con-
temporâneo, onde o discurso da medicina é prevalente, o corpo é priorita-
riamente pensado como dessexualizado (LINDENMEYER, 2010). Nesta
concepção, sua história e seus sentidos perderiam espaço para uma com-
preensão mais biologizante, onde os funcionamentos e disfuncionamentos
seriam maciçamente compreendidos através da dimensão orgânica.
A promessa de felicidade e erradicação do mal-estar ganha espaço
num cenário onde o mercado oferece as inúmeras possibilidades. Sendo
as modificações biológicas mais ágeis e controláveis, elas se inserem com
facilidade num discurso de supressão definitiva do mal-estar onde o corpo/
organismo teria protagonismo e o remédio seria um operador privilegiado.
O crescimento do lugar objetivado do organismo vai numa espécie de con-
tramão da palavra subjetivante.
Para a psicanálise um corpo/organismo “puro” não existe no mundo
humano. Justamente o que a psicanálise veio nos mostrar é que para nos
tornarmos humanos tivemos que, justamente, romper com um suposto
estado de natureza. Se podemos acreditar na existência de um organismo
no princípio de toda vida, o corpo para Freud apenas será constituído na
relação com o outro, a partir do outro.
A pulsão sendo uma energia, desprovida de qualidade, não possui di-
mensão alguma, ela apenas é, é uma força constante. Contudo, pela meta

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que visa e pelos objetos aos quais se liga, a pulsão conhece um “destino” es-
sencialmente psíquico (LAPLANCHE; PONTALIS, 1992). Isto significa
dizer que, sem a mediação do objeto, não seria possível nos constituirmos
como humanos; portanto, somente a relação com um outro criaria uma
possibilidade representativa para o pulsional. O espaço da representação,
enquanto uma fixação da força, a nomeia, ou seja, dá corpo, dá forma, à
dispersão pulsional pela mediação do objeto. Assim, ao construir o objeto,
a linguagem ordena a dispersão; transforma a dispersão pulsional em or-
dem, mas essa ordem é insistentemente perturbada. O Além do princípio
do prazer que perturba (FREUD, [1920] 1980), ou seja, essa dispersão
que não é ordenada por princípios, que fica “fora” da ordem, denota uma
limitação da esfera de atuação da realidade psíquica, que terá que lidar com
algo que está fora do seu domínio.
A força perturbadora, que Freud, a partir de 1920, chama de pulsão de
morte, jamais será suprimida, indicando que a força pulsional não pode ser
inteiramente transformada em símbolo pelo trabalho da linguagem.
2.4 O educador ante o corpo “inquieto”
Apresentamos, no início desse texto, duas formas bastante diferentes
para se compreender a infância e o infantil, acreditando que elas redun-
darão em diferentes práticas e maneiras de lidar com as crianças. Em uma
delas, o infantil é compreendido como um tempo preparatório; a criança
“ainda não é” o adulto, marca do primitivo a ser suplantado. Nessa lógica,
há uma espécie de supremacia do adulto que sabe mais e melhor, enquanto
a criança e o infantil são compreendidos como marcas de imaturidade.
Essa visão pode favorecer uma lógica mais preditiva e universal, calcada
numa visão ideal de adulto e consequentemente da criança que prepara seu
caminho. Esse ideário excluiria a criança de seu próprio dizer, esmorecendo
a dimensão subjetiva e enaltecendo a expectativa do “ideal de uma ‘criança
perfeita”, mesmo que indiretamente como, por exemplo, consertando-a
via medicamento (LIMA, 2005).
De outra forma, compreender o infantil como não suplantado, requi-
sitaria do adulto a assunção da sua própria estranheza constituinte e do
corpo pulsional como nunca passível de domesticação absoluta. O “não
querer saber”, marca de todo adulto, poderia assim abrir algumas brechas

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Entre o remédio e o corpo inquieto: de qual infantil falamos? | Cristiana Carneiro

de querer saber sobre a inquietação e o mal-estar que nossa estranheza


reatualizada pela criança não modelar suscita. Isto sugere que, em algum
nível, o excessivo de si mesmo também possa ser visto como legítimo. Por-
tanto, que o adulto possa, de algum modo, acolher em si e no outro a
angústia, a raiva, o medo, o sem sentido. O acolhimento diria respeito,
então, a uma espécie de reconhecimento da legitimidade daquilo que se
articula ao mal-estar.
Justamente acolher pressupõe uma relação, algo que se produz no “en-
tre dois” atravessado por um terceiro elemento: a linguagem. Se, como
já dito, o corpo pulsional evidencia a luta entre o indivíduo e a cultura e
suas implicações para a economia da libido (FREUD, [1930] 1976), como
criar espaços que reconheçam a legitimidade desta luta? A inquietude pode
também ser compreendida como forma de expressão deste difícil equilí-
brio entre a renúncia e a satisfação?
Num dos encontros com Paulo, ao ser perguntado o que achava da
escola, ele responde:
Dever demais. Meu braço fica com câimbra. Assim, tem dever demais. O meu braço fica
com câimbra. Tenho que parar um pouco para o meu braço voltar ao normal. Eu perco
tempo. (Paulo, entrevista, 12/04/2014).

Para além da quantidade de atividades a fazer, que aqui não nos cabe
julgar e que faz parte das exigências escolares, Paulo nos fala do difícil equi-
líbrio entre prazer e dever. Frequentar uma escola e ter que se haver com
a convivência com pares, com regras diferentes da família, com tempos
diversos e até com exigências físicas – como a motricidade fina requerida
pela escrita.
Nesse cenário complexo, trazemos à tona a posição do adulto ante a
criança dita inquieta, que incomoda. Se, de fato, um aluno que levanta,
que não para quieto, que se movimenta muito, causa mal-estar no adulto
educador, as estratégias que esse educador pode usar ante o mal-estar são di-
versas. Também o ideário de infantil que o adulto se ancora irá influenciar na
própria produção do mal-estar e nas formas como ele irá se dirigir à criança.
Em um exercício de finalização, podemos sublinhar que a articulação
entre mal-estar e corpo sugere duas formas diferenciadas do fazer com ele,

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que são: a) tentativa de erradicação do mal-estar numa redução do corpo ao


organismo (ilusão de uma civilização sem mal-estar e da existência real de
uma criança onde nada faltaria – não acolhimento do corpo pulsional e da
sexualidade infantil que o constitui). Aqui o remédio apareceria não como
coadjuvante, mas seria concebido como a causa dos comportamentos. Ao
articular a inquietação prioritariamente a uma dimensão psicopatológica
de disfuncionamento, compreenderiam o corpo com acento na dimensão
orgânica e objetiva e endossariam o discurso medicalizante na escola. b)
constatação do mal-estar para fazer dele um motor, certo acolhimento do
corpo pulsional e do infantil que habita o adulto (mal-estar como pres-
suposto civilizatório, a criança como ideal – fantasmada –, a falta como
motor). Nessa forma de compreensão, facilita-se a localização do mal-estar
dentro da escola, mais relacional, envolvendo também o professor. A crian-
ça perfeita é ideal; a falta não é negada, mas subsidia um questionamento.
O mal-estar apareceria incluído na cena educativa; portanto, referido a
uma relação.

3 À guisa de conclusão
Estar diante daquilo que incomoda e frustra não é fácil e exige uma
boa dose de invenção, negociações internas e energia para conduzir a si-
tuação. Como Freud ([1930] 1976) advertiu, construir e estar na cultura
sempre envolverá boa dose de mal-estar e as relações são uma das principais
causas de sofrimento. Na relação educativa, da qual participam adultos,
crianças e adolescentes, refletir sobre o lugar do adulto diante da criança
nos parece uma estratégia política importante para fazer frente à expansão
das práticas medicalizantes. Justamente por que questionar os possíveis
ideários de infantil que atravessam o educador é também perguntar sobre
as incidências desses ideários nas práticas. No caso de Paulo, por exemplo,
a acoplagem comportamento/medicamento no discurso dos educadores
sugere uma redução da compreensão ampliada e relacional do motivo pelo
qual o menino cumprimentava ou não a educadora. Também indica uma
circunscrição da questão; afinal, ao lado da criança, de forma individual,
o adulto educador não participa da cena ativamente, apenas observa os
supostos efeitos do medicamento. Essa leitura, mais orgânica do corpo e
de assepsia da sexualidade infantil desresponsabiliza a escola, que pouco ou

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Entre o remédio e o corpo inquieto: de qual infantil falamos? | Cristiana Carneiro

nada pode fazer diante de alterações neuroquímicas, ao mesmo tempo em


que sela sua impotência. Se o vivido no dia a dia da escola e as inúmeras
demandas e exigências às quais o educador está submetido são muito mais
imediatos que nossa reflexão, recuar ante a problematização da medicali-
zação da educação é fazer desaparecer Paulo entre suas doses diárias e seus
educadores que, em vez de potencializarem seu saber educativo, passam a
ser escoltas vigilantes da correta administração da droga.

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Recebido em 30/06/2020
Aprovado em 02/12/2020

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Between the medecine and restless body: which childish do


we speak of?

Abstract
This paper discusses medicalization in education. Based on Freudian psychoanalysis, it aims to
promote a reflection on the medicalizing strategies of educators regarding a restless student,
which occurred during a case study. It starts from the hypothesis that educator’s infantile and
body ideas can be linked to a discourse that understands the concern mainly due to a pathology
bias and that reduces the understanding of behaviors when using/not using the medication. It
presents, as a possible result, the effects on the adult-child relationship that these conceptions
have: individualization, reduction of the extended and relational understanding of the issue,
pathologization of behavior and non-accountability of the school
Keywords: Medicalization. Education. Childhood. Body. Psychoanalysis.

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