A Democracia No Divã
A Democracia No Divã
A Democracia No Divã
Uma dessas obras, Psicologia das Massas e Análise do Eu, encontra uma
apropriação bastante singular que remonta aos primórdios do século passado a
partir de um personagem desconhecido e que não era psicanalista: Edward
Bernays, sobrinho de Freud, imigrado aos EUA no final do século XIX. Bernays,
que viveu até os 104 anos, foi um raro protagonista atento aos principais fatos
políticos e sociais e teve um papel fundamental na consolidação da Democracia
nos EUA. Em 1917, quando os Estados Unidos declararam guerra à Áustria e aos
outros países da Tríplice Aliança, Bernays foi convidado a participar do Comitê de
Informação Pública, órgão criado pelo governo norte-americano com o objetivo
de divulgar à população o esforço de guerra em promover a democracia em todo
o mundo. Com apenas 27 anos, ele integrou a comitiva que acompanhou o
presidente Woodrow Wilson na conferência de paz em Paris. Esta brilhante
atuação em sua biografia o fez inventor e precursor da atividade de relações
públicas e a participar ativamente na divulgação e manipulação ideológica de
vários produtos das grande corporações e sua intensa atuação junto à política
encontra registros até no recente governo Bill Clinton.
O que mantém uma determinada massa coesa foi a pergunta que guiou
Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1920) e questão articulada por
Edward Bernays em Propaganda (1928) na aplicação pragmática das descobertas
da psicanálise na manipulação do público alvo, deflagrando a sociedade de
consumo, configurando uma engenharia do consentimento aliciadora de desejos
e vontades de imagens de si e dos estilos de vida que adotados e interiorizados
pelos indivíduos transformam-nos nessa nova espécie de consumidores que não
necessitam daquilo que desejam, e não desejam aquilo que necessitam. Passo
inaugural ao chamado "Século do Eu", título do documentário de Adam Curtis em
que a engenharia do consentimento de Bernays com vistas à construção do
indivíduo democrático é uma chave fundamental para entender como a
democracia se tornou um produto em nossa época e como a cidadania
fragmentada sob várias demandas, e multifacetado em vários níveis, se tornou
também uma mercadoria de consumo.
A principal indagação de Bernays era a seguinte: Se os seres humanos eram
verdadeiramente conduzidos por forças irracionais, agressivas e inconscientes,
como esperar que as massas pudessem ser "conscientizadas" e decidir o futuro de
uma nação? Isso ia de encontro com uma série de dúvidas que Bernays
compartilhava a respeito das possibilidades da democracia em produzir efeitos
socialmente positivos, e sua proposta de uma "engenharia do consentimento" se
apresentava como a solução necessária ao problema. Tal mutação justificava o
uso da engenharia do consentimento por políticos que, por meio de técnicas
psicológicas e de comunicação para a manipulação da opinião pública, deveriam
produzir entre as massas um genuíno sentimento de sociedade. Assim como
havia feito com questões relativas ao consumo de produtos, Bernays acreditava
poder convencer as massas a abandonarem sua agressividade primária e
perseguirem um fim socialmente desejável, em um governo sintonizado com suas
necessidades de consumo e de felicidade. Livrando as pessoas das frustrações
diárias e controlando desejo irracional por meio da engenharia do
consentimento, os políticos e empresários eliminariam ao máximo as
perturbações sociais, soterrando-as sob um constante bem-estar e prazer. Ele
definiu esse modelo da sociedade como Democracity, a cidade verdadeiramente
democrática, uma utopia da liberdade e do capitalismo. Como escreveu Bernays
mais tarde, em 1928, na sua obra Propaganda:
Os Auto Guiados, que se sentem mais pelas escolham que fazem do que
propriamente pelo seu lugar na sociedade, poderiam comportar os ativismos
particularizantes que definem pequenos grupos, tais como os cicloativistas, o
engajamento dos multifacetados segmentos dos direitos sexuais e da diversidade
sexual, militantes da causa étnica racial, et. A atuação política é circunscrita a um
tema específico e com possibilidade de agregar pessoas com os mesmos ideais.
O grupo dos Experimentadores, que busca o crescimento interior através
de experiências diretas poderia caracterizar os consumidores responsáveis em
que o compromisso social está atrelado ao produto ideologicamente produzido e
revertido em um compromisso social palpável, Slavoj Zizek toma os
consumidores do café Starbucks como exemplo paradigmático de um hedonismo
que calcula as vicissitudes do consumo. Um parcela expressiva deste grupo é
representada pelos defensores dos direitos dos animais em protestos e
performances contra o uso de animais em laboratórios, industria alimentícia e de
cosméticos, além das causas contra o desmatamento e alimentos transgênicos.
Uma nova terminologia da arte do insulto político está em cena nas ruas e
nas mídias sociais: reaças, coxinhas, fascistóides, ofensas lançadas de um lado;
esquerda caviar, esquerdopatas, idiotas úteis do outro. Ícones revolucionários, até
então intocados em sua beatitude são relegados a figuras execráveis, cruéis e
sanguinários como o Che Guevara, o homem mais completo do Século XX,
segundo o filósofo existencialista Jean Paul Sartre. No recente ENEM Simone de
Beauvoir e a relação essência e existência do feminino, num trecho do livro o
Segundo Sexo, foi elevado a um rebuliço interpretativo com várias apropriações
indébitas. Até o educador Paulo Freire não ficou impune. Palavras como
patrulhamento ideológico e doutrinação ideológica são temas recorrentes que
poderiam disparar debates sérios se a razoabilidade das consciências históricas e
o obscurantismo permitissem. A impressão generalizada é que entramos no
século XXI sem revisar e aprender muito com o Século XX.
Por fim, cabe três lições fundamentais para nossa época: É ilusório
acreditar na racionalidade profunda da História, esta é tributária do acaso, se
move e depara-se com bifurcações inesperadas no decurso do tempo, tampouco
possui uma substância de uma versão objetiva dos fatos. A segunda lição é
tributária e correlata dessa primeira; processos podem ser desencadeados com o
resultado contrário às intenções que os haviam produzidos, por melhores que
possam parecer. Isto se aplica a democracia, que após revolvê-la, questioná-la,
apostá-la, pode-se facilmente tomá-la pelo avesso e configurar-se num
totalitarismo, ou como melhor disse José Saramago, em uma certa entrevista
concedida a um jornal de Sevilha, o grande problema do nosso sistema
democrático é que ele permite fazer coisas nada democráticas democraticamente.
Por fim, que nosso mal estar democrático possa, tal como na clínica, nos tornar
mais responsáveis pelo nosso próprio sintoma implicando nosso real potencial
democrático emancipatório.
Referências Bibliográficas
Rey Lennon, F. (2006). Edward Bernays : el inventor de las relaciones públicas [en
línea]. Buenos Aires : Educa
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