Miguel, Luís Flipe. Modelos Utópicos de Comunicação de Massa para A Democracia
Miguel, Luís Flipe. Modelos Utópicos de Comunicação de Massa para A Democracia
Miguel, Luís Flipe. Modelos Utópicos de Comunicação de Massa para A Democracia
Resumo
O controle dos meios de comunicação de massa é um dos principais pontos de
estrangulamento das democracias. Embora as principais correntes da teoria democrática
concedam pouquíssima atenção à questão, alguns autores esboçam projetos de reorganização
da mídia que permitiriam o aprofundamento da autonomia popular, ampliando a pluralidade
de vozes presente no debate público. Tais projetos ganhariam maior nitidez caso fossem
embasados pelas correntes da teoria democrática que se preocupam com a ampliação da
capacidade de intervenção política dos grupos subalternos.
1
Jean-Jacques Rousseau, Du contract social, em Œuvres complètes, t. III. Paris: Gallimard, 1964, p. 406.
1
2
2
Anthony Giddens, The consequences of modernity. Stanford: Stanford University Press, 1990; para a aplicação
à mídia, ver Luis Felipe Miguel, “O jornalismo como sistema perito”. Tempo Social, nº 11. São Paulo, 1999, pp.
3
eficácia.
A perícia ou especialização que a atividade jornalística exige já é, por si só, um fator
negativo para a democracia, pois favorece a monopolização da capacidade de emissão destes
discursos por parte de uma categoria de profissionais. Mais grave ainda é a concentração da
mídia nas mãos de um pequeno grupo de empresas, o que significa que a difusão da
informação é, em grande medida, controlada por um grupo de pessoas com significativos
interesses em comum. De maneira algo caricata, mas nem por isso inverídica, pode-se afirmar
que os séculos XVIII e XIX perceberam os riscos do controle estatal ou político da
informação, travando a luta pela abolição da censura, enquanto o século XX aprendeu sobre
os riscos do controle mercantil ou econômico – mas não encaminhou nenhuma solução efetiva
para o problema3.
Neste paper, discuto modelos para democratização efetiva da mídia, que chamo aqui de
“democratas radicais”. A principal elaboração é o “pluralismo regulado” de John B.
Thompson, mas trato também de propostas próximas. Após uma breve contraposição entre
estes autores e outras correntes que postulam um ideal de mídia para a democracia (entendida
de forma ampla o suficiente para abranger a democracia proletária leninista), exploro a visão
democrata radical, buscando indicar suas potencialidades e seus limites. Por fim, indico como
uma corrente específica da teoria contemporânea da democracia – a dos chamados “teóricos
da diferença”, representada sobretudo pela obra de Iris Marion Young – pode contribuir para a
construção de um modelo aprimorado, democrata radical, de mídia para uma democracia
aprofundada.
Quatro modelos de mídia para uma política justa
Não é isento de polêmica, muito pelo contrário, o sentido de “democracia” para as
sociedades contemporâneas. Como diz David Beetham, o conceito de democracia é
incontestável – é uma forma de tomada de decisões públicas que concede ao povo o controle
sobre elas – mas não as teorias da democracia, que discutem “quanto de democracia é
desejável ou praticável, e como ela pode ser realizada numa forma institucional sustentável”4.
Apenas para introduzir a discussão, é possível fazer um paralelo entre quatro modelos
de democracia, observando como cada um deles apresenta o ordenamento ideal dos meios de
197-208.
3
Há uma vasta literatura que discute os problemas da concentração da mídia e, portanto, não preciso me alongar
sobre o tema aqui. Ver, entre muitos outros, Ben H. Bagdikian, The media monopoly. Boston: Beacon Press,
1997.
4
David Beetham, “Liberal democracy and the limits of democratization”, em David Held (ed.), Prospects of
4
à vigilância dos outros”6. Ou seja, se um jornal apresenta uma notícia falsa ou deixa de relatar
algo que tenha relevância para seus leitores, os concorrentes irão denunciar a fraude ou a
omissão, em busca de benefício próprio, mas atuando em proveito do público. O outro é a
crença na objetividade da informação. Àqueles que reclamam do reduzido pluralismo dos
meios de comunicação nas democracias eleitorais contemporâneas, Sartori responde que a
multiplicação dos canais aumentaria a quantidade de informações, mas talvez não “sua
correção ou objetividade”7. Depreende-se que este último valor (correção ou objetividade) é o
importante e sua garantia repousa não no acesso generalizado de todos à produção de
informações, que representaria um gigantesco desperdício de recursos, mas numa “ética
profissional” específica, de “respeito pela verdade”8.
As duas vertentes da argumentação são complementares porque a idéia do mercado que
se autocontrola só faz sentido na medida em que se julga que o papel da mídia é prover
“informação verdadeira”. Uma vez que o produto a ser difundido é, na essência, o mesmo, o
pluralismo possui valor apenas instrumental – é necessário para evitar desvios por parte dos
produtores. A crítica feita ao “mercado de idéias” envolve a compreensão de que está em jogo
mais do que a correção factual; estão em jogo valores, perspectivas sociais, visões de mundo.
Quando a comunicação se processa de acordo com mecanismos de mercado, seus provedores,
na condição de empresas, tendem a esposar posições similares, algo já apontado pelos
insuspeitos Merton e Lazarsfeld9.
Já o modelo leninista entende a comunicação de massa como instrumento de elevação
da consciência de classe. No último capítulo de Que fazer?, no qual se encontra sua mais
completa reflexão sobre a questão, Lênin delineia a percepção do jornal como instrumento de
organização política; na verdade, a imprensa revolucionária parece preceder o próprio
partido, que se organiza a partir dela, e não o contrário10. O texto – fortemente polêmico,
como os outros escritos de Lênin – se refere às condições da Rússia do início do século XX,
isto é, de estrita clandestinidade, sob a forte repressão do regime czarista. Mas, na medida em
que a luta de classes não se esgota com a revolução, a tarefa conscientizadora, mobilizadora e
organizadora da mídia permanece; e essa foi, ao menos ostensivamente, sua função nos países
6
Giovanni Sartori, A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994, vol. 1, p. 140.
7
Id., p. 143.
8
Id., p. 144.
9
Robert K. Merton e Paul F. Lazarsfeld, “Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social”,
em Luiz Costa Lima (org.), Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
10
V. I. Lênin, Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1978, pp. 119-38.
7
do socialismo real.
O terceiro modelo, da esfera pública, destaca a necessidade de ampla e livre discussão
dos assuntos de interesse coletivo, como forma de efetivar a democracia. Os meios de
comunicação de massa deveriam, assim, ser os instrumentos desta discussão, tal como
pretensamente a imprensa na época áurea da esfera pública burguesa descrita por Habermas11.
A corrente floresceu e floresce em dezenas de compreensões sobre o significado da
“democracia deliberativa”, e também tem merecido inúmeras críticas12.
Duas delas são especialmente importantes. O plano de abstração em que a teoria se
move faz com que o modelo comunicacional adotado seja em geral o da interação face a face,
inadequado para as sociedades contemporâneas, com os problemas relacionados à mídia de
massa sendo elididos. E a comunicação ideal é o diálogo racional, desinteressado e voltado
para o consenso, isto é, não há espaço para a política como conflito de interesses sociais,
muitas vezes irreconciliáveis – aquela que se manifesta nas sociedades de classes em que os
grupos subalternos foram formalmente incorporados à arena política.
Para o entendimento do papel da mídia numa democracia efetiva, parece mais
auspicioso o quarto modelo, aqui batizado de democrata radical. Ele é crítico em relação às
limitações da ordem liberal; mas, ao contrário do leninismo, se mantém fiel às linhas gerais da
compreensão intuitiva do sentido da democracia e, ao contrário dos teóricos da esfera pública,
compreende o caráter conflituoso da política. É deste quarto modelo que se ocupa a próxima
seção.
O pluralismo regulado
A rigor, a corrente que estou chamando de “democrata radical” não se distingue
completamente da vertente deliberativa. Ambas possuem uma ampla zona em comum, que é a
crítica aos limites da democracia liberal “realmente existente”13; e muitos dos autores que
classifico como democratas radicais não estão imunes aos encantos do ideal da discussão
racional e tendem a se auto-rotular como deliberacionistas, como é o caso de John B.
Thompson e, de maneira mais matizada, da própria Iris Marion Young. Mas eles são mais
sensíveis às desigualdades concretas existentes nas sociedades contemporâneas e, por
conseqüência, à necessidade de equalizar as condições de acesso à disputa política; são mais
11
Jürgen Habermas, Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
12
Uma síntese das críticas aparece em Luis Felipe Miguel, “As duas lógicas da ação comunicativa”. Teoria &
Sociedade, nº 10. Belo Horizonte, 2002, pp. 104-43.
13
Se bem que, capitaneadas pelo próprio Habermas, correntes dentro do deliberacionismo têm apresentado uma
crescente acomodação com a ordem liberal. Ver Jürgen Habermas, Direito e democracia. Rio de Janeiro: Tempo
8
implica em aderir à ficção do livre mercado. Além das medidas destinadas a impedir a
concentração da propriedade – um ponto importante, na medida em que há uma forte
tendência à monopolização do setor, mas que permanece dentro da lógica da concorrência –
há a regulação da mídia, fixando seu caráter de serviço público e impedindo as empresas de
tratarem informação e entretenimento como meros produtos.
Isso inclui, com freqüência, as obrigações de lidar com as questões controversas de
interesse público e de oferecer espaço às posições divergentes. Um exemplo conhecido de
regra legal com este objetivo é a Fairness Doctrine estadunidense. Adotada em 1949, em
resposta a escândalos de manipulação de notícias, foi derrogada pouco menos de 40 anos
depois, como parte do esforço desregulador do governo Reagan18. Na época, argumentava-se
que a legislação engessava a imprensa, levando-a a evitar a cobertura política; sem a Fairness
Doctrine, haveria mais material jornalístico, com maior qualidade. No entanto, segundo
analistas da mídia nos Estados Unidos, a revogação da doutrina acelerou a degradação da
cobertura jornalística, sobretudo na televisão19.
É claro que, mesmo com a existência de legislação, permanece em aberto o ponto
crucial da formação da agenda – quais controvérsias mereceriam cobertura. E, nos Estados
Unidos da Fairness Doctrine, as emissoras continuavam se movendo no campo daquilo que
Daniel Hallin chamou de “controvérsia legítima”, que respeitava os limites da ideologia
hegemônica20. Questões cruciais, como o papel do complexo industrial-militar, estão
permanentemente fora da agenda e, portanto, também do noticiário; vozes muito desviantes,
fora do establishment político, não eram contempladas pelo preceito de dar espaço às posições
divergentes. Enfim, a lei se adequava ao jogo político estadunidense, buscando uma disputa
mais equilibrada entre os dois grandes partidos.
De certa maneira, a proposta de James Curran representa um passo atrás na defesa da
necessidade de regulação pública da mídia. Ele propõe, como medida fundamental de
aprofundamento da democracia, a formação de um complexo de diferentes setores de mídia
com financiamento público, mas que conviveria com um setor puramente mercantil – que,
depreende-se, seria fracamente regulado21. É valiosa, no entanto, a indicação que o setor
18
Para uma breve história da Fairness Doctrine, ver Dean E. Alger, The media and politics. Belmont:
Wardsworth, 1996, pp. 107-8.
19
Robert M. Entman, Democracy without citizens. Oxford: Oxford University Press, 1989; Bagdikian, The
media monopoly, cit., p. xxxiii.
20
Daniel C. Hallin, The “uncensored” war. Berkeley: University of California Press, 1986, pp. 116-7.
21
James Curran, “Media and democracy”, em Michael Bruun Andersen (ed.), Media and democracy. Oslo:
University of Oslo Press, 1996. Para uma síntese e defesa da proposta de Curran, ver Colin Leys, “The public
10
público de mídia teria que contar com diferentes tipos de empresas. Curran lista quatro
setores: o serviço público de radiodifusão, propriamente dito, controlado por um conselho
socialmente representativo; um “mercado social”, que admitiria publicidade, mas sob
regulação pública, destinado a proporcionar a representação de diferentes forças sociais; um
setor controlado pelos próprios jornalistas, para garantir os padrões de profissionalismo e
cumprir a tarefa tradicional de vigilância sobre o poder; e um setor cívico, entregue a
diferentes grupos da sociedade civil, que propiciaria sobretudo a comunicação interna de cada
um deles.
O objetivo é, enfim, gerar um forte setor de radiodifusão e imprensa pública,
independente das pressões governamentais, para prover um espaço de mídia que não esteja
submetido (ou, ao menos, submetido de forma tão direta) aos imperativos do mercado. Mas
para isso – convém assinalar – ele deve contar com fontes claras e seguras de financiamento.
Não pode depender nem da boa vontade dos governantes de plantão para liberarem verbas no
orçamento, nem da publicidade comercial. Num caso, ficaria refém do poder político; no
outro, do poder econômico.
O fortalecimento do setor público de mídia se opõe tanto ao modelo de monopólio
estatal, que imperou na Europa durante bom tempo, quanto ao modelo liberal, que delega toda
a responsabilidade às “forças do mercado”, hoje hegemônico. O controle pelo Estado leva, no
extremo, à instrumentalização da comunicação pelo grupo dominante; ou, ao menos, ao
consórcio entre os grupos que integram o establishment político. O mercado reduz informação
e cultura a elementos da disputa pela audiência (ou, melhor, pelas verbas publicitárias), o que
leva à padronização dos conteúdos e à tendência a tratar o público como consumidor, e não
cidadão. Em ambos os casos, fica comprometida a pluralidade de vozes, isto é, determinados
grupos da sociedade e determinadas posições no espectro políticos têm negada ou restringida
a possibilidade de difusão de seu discurso.
São muitas as alternativas para o financiamento das emissoras públicas. A proposta de
cobrança de taxas dos proprietários de aparelhos de rádio e TV (como ocorre, por exemplo, na
Inglaterra, para sustentar a BBC) parece antipática, já que se imagina que a mídia comercial é
“grátis” – na verdade, não é, já que todos nós pagamos pelos anúncios, que encarecem os
produtos que consumimos em 10% ou até mais. Mas é possível fixar a receita das emissoras
públicas como o percentual da arrecadação de algum imposto ou, então, cobrar uma taxa da
sphere and the media”, em Leo Panitch e Colin Leys (eds.), Global capitalism versus democracy. Suffolk:
Merlin, 1999.
11
22
Robert W. McChesney, Rich media, poor democracy. Urbana: University of Illinois Press, 1999, p. 306.
23
Ver Luis Felipe Miguel, “Representação política em 3-D”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 51. São
Paulo, 2003, pp. 123-40.
12
24
Iris Marion Young, Justice and the politics of difference. Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 45.
25
Id., p. 38.
26
Melissa S. Williams, Voice, trust, and memory. Princeton: Princeton University Press, 1998, pp. 15-6.
27
Id., p. 17.
28
Young, Justice and the politics of difference, cit., p. 184. Ela recuou da proposta em sua reflexão mais recente;
ver Young, Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.
13
ganham nitidez se estão determinados quais os setores sociais que precisam ser contemplados
– isto é, quais os grupos cuja voz, ao ser ouvida, acrescenta efetivo pluralismo ao debate
público.