Miguel, Luís Flipe. Modelos Utópicos de Comunicação de Massa para A Democracia

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Modelos utópicos de comunicação de massa para a democracia

Luis Felipe Miguel


Professor do CEPPAC/UnB e pesquisador do CNPq.

Resumo
O controle dos meios de comunicação de massa é um dos principais pontos de
estrangulamento das democracias. Embora as principais correntes da teoria democrática
concedam pouquíssima atenção à questão, alguns autores esboçam projetos de reorganização
da mídia que permitiriam o aprofundamento da autonomia popular, ampliando a pluralidade
de vozes presente no debate público. Tais projetos ganhariam maior nitidez caso fossem
embasados pelas correntes da teoria democrática que se preocupam com a ampliação da
capacidade de intervenção política dos grupos subalternos.

A realização efetiva da democracia, entendida como verdadeiro governo do povo, em


que se concretiza o projeto de autonomia coletiva – a produção das normas que regem a
sociedade por seus próprios integrantes, em conjunto –, é o desafio insuperado e
possivelmente insuperável das organizações políticas. Mesmo Rousseau, o patrono dos
democratas radicais, daqueles que acreditam que é possível estender a soberania popular para
além de sua manifestação ritual nas eleições, dizia que “um governo tão perfeito não convém
aos homens”, mas apenas a um “povo de deuses”1.
Os obstáculos para a plena realização da democracia nas sociedades contemporâneas
são muitos e, em linhas gerais, bem conhecidos. Os mais banais dizem respeito à necessidade
da representação política, motivada pelo tamanho e população dos Estados modernos e pela
forte especialização funcional de suas sociedades, e aos fenômenos associados de
autonomização dos representantes em relação a seus constituintes. Outras desigualdades (além
da desigualdade de poder político gerada pela própria representação), porém, também são
muito importantes. A incorporação formal de mais e mais grupos sociais à cidadania política –
não-proprietários, minorias étnicas, mulheres – não significou sua efetiva inclusão no
processo decisório. Tais grupos costumam permanecer à margem, uma vez que possuem
menos capital econômico e cultural, menos tempo livre, menor legitimidade e uma rede de
relações sociais menos eficaz para a ação política. Por outro lado, o pensamento conservador
julga que essa exclusão é uma condição necessária para a estabilidade política, na medida em
que reduz o nível de conflito de interesses na arena política.
Um ponto de estrangulamento importante, quando se pensa no aprofundamento das

1
Jean-Jacques Rousseau, Du contract social, em Œuvres complètes, t. III. Paris: Gallimard, 1964, p. 406.

1
2

democracias contemporâneas, é a difusão da informação. De forma um tanto esquemática, é


possível dizer que, para que o cidadão seja capaz de fazer uma opção política consciente, ele
precisa estar provido de informações adequadas sobre: (a) quais são os projetos em disputa,
quem os apóia, quais interesses eles promovem e quais prejudicam; e (b) o mundo social, isto
é, quais são os desafios a serem enfrentados, as alternativas possíveis e suas conseqüências. O
adjetivo “adequadas”, na frase anterior, costuma ser lido como “verdadeiras”. No entanto,
para a grande maioria dos casos relevantes, o valor de verdade é discutível. O que está em
jogo são os princípios de percepção do mundo político e social, envolvendo crenças, valores e
convicções. Os fatos não precisam apenas ser apresentados, eles precisam ser selecionados,
interpretados, encaixados em narrativas dotadas de poder explicativo, ter seu peso relativo
avaliado. Embora falsificações factuais possam e devam ser coibidas, o que caracteriza a
informação adequada para uma sociedade democrática é, acima de tudo, seu caráter plural. As
diferentes perspectivas e visões-de-mundo devem estar disponíveis para o conjunto de cidadãs
e cidadãos.
Nas sociedades complexas contemporâneas, o provimento de informações sobre o
mundo é tarefa de sistemas específicos, que formam o jornalismo, entendido aqui em sentido
amplo (a imprensa escrita, mas também a divulgação de notícias por outros meios, como
rádio, televisão ou internet). Em pequenas comunidades autárquicas, é possível imaginar que
cada pessoa obtenha todas as informações significativas de que necessita para tocar sua vida
através de sua vivência cotidiana ou do contato pessoal com testemunhas. No entanto, à
medida em que esta sociedade cresce e que amplia suas trocas com comunidades próximas (e
remotas), as informações significativas deixam de estar diretamente disponíveis. E a partir do
momento em que aumenta o dinamismo desta sociedade, com o abandono de práticas
tradicionais, cada indivíduo passa a precisar de um volume maior de informação.
O jornalismo supre esta necessidade; dito de forma sintética, o trabalho jornalístico
consiste em recolher informações dispersas (através de uma rede de repórteres), “empacotá-
las” através de determinados processos técnicos (jornal, rádio, televisão) e, enfim, distribuir o
produto final a uma audiência diversificada. Para entender a relação entre este produto e seu
público, é útil introduzir uma categoria de Giddens, o “sistema perito” (expert system)2. Trata-
se de um sistema de competência técnica especializada, do qual as pessoas em geral se
servem, mas sem serem capazes de compreender seu funcionamento ou avaliar a priori sua

2
Anthony Giddens, The consequences of modernity. Stanford: Stanford University Press, 1990; para a aplicação
à mídia, ver Luis Felipe Miguel, “O jornalismo como sistema perito”. Tempo Social, nº 11. São Paulo, 1999, pp.
3

eficácia.
A perícia ou especialização que a atividade jornalística exige já é, por si só, um fator
negativo para a democracia, pois favorece a monopolização da capacidade de emissão destes
discursos por parte de uma categoria de profissionais. Mais grave ainda é a concentração da
mídia nas mãos de um pequeno grupo de empresas, o que significa que a difusão da
informação é, em grande medida, controlada por um grupo de pessoas com significativos
interesses em comum. De maneira algo caricata, mas nem por isso inverídica, pode-se afirmar
que os séculos XVIII e XIX perceberam os riscos do controle estatal ou político da
informação, travando a luta pela abolição da censura, enquanto o século XX aprendeu sobre
os riscos do controle mercantil ou econômico – mas não encaminhou nenhuma solução efetiva
para o problema3.
Neste paper, discuto modelos para democratização efetiva da mídia, que chamo aqui de
“democratas radicais”. A principal elaboração é o “pluralismo regulado” de John B.
Thompson, mas trato também de propostas próximas. Após uma breve contraposição entre
estes autores e outras correntes que postulam um ideal de mídia para a democracia (entendida
de forma ampla o suficiente para abranger a democracia proletária leninista), exploro a visão
democrata radical, buscando indicar suas potencialidades e seus limites. Por fim, indico como
uma corrente específica da teoria contemporânea da democracia – a dos chamados “teóricos
da diferença”, representada sobretudo pela obra de Iris Marion Young – pode contribuir para a
construção de um modelo aprimorado, democrata radical, de mídia para uma democracia
aprofundada.
Quatro modelos de mídia para uma política justa
Não é isento de polêmica, muito pelo contrário, o sentido de “democracia” para as
sociedades contemporâneas. Como diz David Beetham, o conceito de democracia é
incontestável – é uma forma de tomada de decisões públicas que concede ao povo o controle
sobre elas – mas não as teorias da democracia, que discutem “quanto de democracia é
desejável ou praticável, e como ela pode ser realizada numa forma institucional sustentável”4.
Apenas para introduzir a discussão, é possível fazer um paralelo entre quatro modelos
de democracia, observando como cada um deles apresenta o ordenamento ideal dos meios de

197-208.
3
Há uma vasta literatura que discute os problemas da concentração da mídia e, portanto, não preciso me alongar
sobre o tema aqui. Ver, entre muitos outros, Ben H. Bagdikian, The media monopoly. Boston: Beacon Press,
1997.
4
David Beetham, “Liberal democracy and the limits of democratization”, em David Held (ed.), Prospects of
4

comunicação de massa. Na verdade, os três primeiros modelos concedem pouquíssima


atenção à mídia; o quarto, em geral, também, mas a ele estão vinculados (ainda que de forma
lateral) os autores que ocuparão o restante deste paper.
O primeiro modelo é o liberal-pluralista, que corresponde à ideologia oficial dos
regimes de tipo ocidental. Nele, o conteúdo democrático consiste basicamente na
concorrência eleitoral e na vigência de um conjunto de liberdade e direitos formais, que, entre
outros objetivos, buscam gerar um ambiente propício à competição entre as elites políticas.
Incluo, em seguida, o modelo leninista, aceitando caracterizá-lo como “democrático” – com
uma generosidade apenas um pouco maior que a daqueles que consideram plenamente
democrático, sem necessidade de qualquer adjetivação, o modelo concorrencial que vigora
hoje no mundo ocidental. O conteúdo democrático estaria na pretensão de promover os
interesses da parcela majoritária da população, as classes trabalhadoras.
O terceiro modelo, da esfera pública, está ligado sobretudo a Habermas e às visões de
democracia deliberativa dele derivadas. Nele, a realização efetiva da democracia depende da
existência de um ambiente comunicacional livre de constrangimentos e voltado à promoção
do entendimento racional. No entanto, a mídia encontra pouco espaço na teoria, que costuma
se mover no universo dos princípios abstratos.
Por fim, agrupo sob o nome de “democratas radicais” diferentes visões críticas da
democracia liberal existente no mundo ocidental, que julgam necessária a ampliação da
capacidade de intervenção política de grupos hoje marginalizados. De forma geral, são
tentativas de resposta à necessidade de um novo projeto para a esquerda, depois da falência da
utopia socialista – ainda que, como observa uma autora da própria corrente, tais tentativas
possuam fraca capacidade de convencimento porque não enfrentam a questão da economia
política5. A mídia tende a ser deixada em segundo plano também pela maior parte dos teóricos
da democracia radical, mas a lacuna é em grande parte suprida pelo fato de que importantes
pensadores críticos da comunicação, a começar por Thompson e McChesney, apresentam
significativos pontos de contato com a corrente, mesmo quando não se identificam
expressamente com ela.
O quadro I abaixo apresenta, de forma bastante esquemática e simplificada, uma
comparação entre os quatro modelos de democracia, no que diz respeito à mídia. É possível
traçar três grandes linhas divisórias. A primeira coloca, de um lado, modelos que admitem a

democracy. Stanford: Stanford University Press, 1993, p. 55.


5
Nancy Fraser, Justice interruptus. New York: Routledge, 1997, p. 2.
5

possibilidade de transmissão imparcial de informação, ao menos como horizonte normativo (a


vertente liberal e a deliberativa, vinculada à idéia de esfera pública), e do outro aqueles que
reconhecem que a informação sempre reflete os interesses dos emissores (leninistas e
democratas radicais). A segunda clivagem contrapõe os modelos que apresentam o pluralismo
como valor central (liberais e democratas radicais) àqueles que descartam ou minimizam sua
importância (leninistas e deliberacionistas). Por fim, democratas radicais e deliberativos
dedicam grande atenção ao processo de formação de preferências na arena política (e portanto
se abrem para a compreensão da centralidade da comunicação), muito mais do que liberais ou
leninistas.
Quadro I – A mídia “ideal” para diferentes visões da democracia
liberal-pluralista leninista esfera pública democrata radical
conteúdo da mídia pluralidade gerada “linha justa” discussão imparcial pluralidade
pelo mercado garantida pelo promovida por
partido mecanismos extra-
mercantis
provedores de profissionais profissionais o próprio público múltiplos grupos;
informação imparciais engajados redução do peso
dos profissionais
papel da apresentação ampliação da apresentação objetiva “empoderamento”
mídia/objetivos objetiva do mundo consciência de do mundo real; dos diferentes
real; orientação da classe esclarecimento sobre grupos sociais
opinião pública as questões de
interesse público
mecanismos controle mútuo controle depuração inerente à incentivo estatal a
inerente à estatal/partidário discussão racional formas alternativas
competição estrito; centralismo de mídia
mercantil democrático
financiamento da privado estatal privado múltiplas formas de
mídia financiamento

No modelo liberal-pluralista, a competição pelo mercado é o mecanismo necessário e


suficiente para garantir que os meios de comunicação se ajustem àquilo que é exigido pela
democracia. A mídia no mundo capitalista, portanto, é basicamente um não-problema. A
posição aparece com clareza na obra de Giovanni Sartori – antes da publicação de
“Videopotere” e “Videopolitica”, artigos nos quais ele dá uma virada em sua avaliação do
papel dos meios de comunicação. Nas poucas páginas que dedica ao tema em seu A teoria da
democracia revisitada, são desenvolvidos dois argumentos complementares. Um é que a
concorrência pelo mercado leva ao aumento da qualidade da informação apresentada ao
público; afinal, “um sistema de informação semelhante ao sistema de mercado é um sistema
de autocontrole, um sistema de controle recíproco, pois todo canal de informação está exposto
6

à vigilância dos outros”6. Ou seja, se um jornal apresenta uma notícia falsa ou deixa de relatar
algo que tenha relevância para seus leitores, os concorrentes irão denunciar a fraude ou a
omissão, em busca de benefício próprio, mas atuando em proveito do público. O outro é a
crença na objetividade da informação. Àqueles que reclamam do reduzido pluralismo dos
meios de comunicação nas democracias eleitorais contemporâneas, Sartori responde que a
multiplicação dos canais aumentaria a quantidade de informações, mas talvez não “sua
correção ou objetividade”7. Depreende-se que este último valor (correção ou objetividade) é o
importante e sua garantia repousa não no acesso generalizado de todos à produção de
informações, que representaria um gigantesco desperdício de recursos, mas numa “ética
profissional” específica, de “respeito pela verdade”8.
As duas vertentes da argumentação são complementares porque a idéia do mercado que
se autocontrola só faz sentido na medida em que se julga que o papel da mídia é prover
“informação verdadeira”. Uma vez que o produto a ser difundido é, na essência, o mesmo, o
pluralismo possui valor apenas instrumental – é necessário para evitar desvios por parte dos
produtores. A crítica feita ao “mercado de idéias” envolve a compreensão de que está em jogo
mais do que a correção factual; estão em jogo valores, perspectivas sociais, visões de mundo.
Quando a comunicação se processa de acordo com mecanismos de mercado, seus provedores,
na condição de empresas, tendem a esposar posições similares, algo já apontado pelos
insuspeitos Merton e Lazarsfeld9.
Já o modelo leninista entende a comunicação de massa como instrumento de elevação
da consciência de classe. No último capítulo de Que fazer?, no qual se encontra sua mais
completa reflexão sobre a questão, Lênin delineia a percepção do jornal como instrumento de
organização política; na verdade, a imprensa revolucionária parece preceder o próprio
partido, que se organiza a partir dela, e não o contrário10. O texto – fortemente polêmico,
como os outros escritos de Lênin – se refere às condições da Rússia do início do século XX,
isto é, de estrita clandestinidade, sob a forte repressão do regime czarista. Mas, na medida em
que a luta de classes não se esgota com a revolução, a tarefa conscientizadora, mobilizadora e
organizadora da mídia permanece; e essa foi, ao menos ostensivamente, sua função nos países

6
Giovanni Sartori, A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994, vol. 1, p. 140.
7
Id., p. 143.
8
Id., p. 144.
9
Robert K. Merton e Paul F. Lazarsfeld, “Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social”,
em Luiz Costa Lima (org.), Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
10
V. I. Lênin, Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1978, pp. 119-38.
7

do socialismo real.
O terceiro modelo, da esfera pública, destaca a necessidade de ampla e livre discussão
dos assuntos de interesse coletivo, como forma de efetivar a democracia. Os meios de
comunicação de massa deveriam, assim, ser os instrumentos desta discussão, tal como
pretensamente a imprensa na época áurea da esfera pública burguesa descrita por Habermas11.
A corrente floresceu e floresce em dezenas de compreensões sobre o significado da
“democracia deliberativa”, e também tem merecido inúmeras críticas12.
Duas delas são especialmente importantes. O plano de abstração em que a teoria se
move faz com que o modelo comunicacional adotado seja em geral o da interação face a face,
inadequado para as sociedades contemporâneas, com os problemas relacionados à mídia de
massa sendo elididos. E a comunicação ideal é o diálogo racional, desinteressado e voltado
para o consenso, isto é, não há espaço para a política como conflito de interesses sociais,
muitas vezes irreconciliáveis – aquela que se manifesta nas sociedades de classes em que os
grupos subalternos foram formalmente incorporados à arena política.
Para o entendimento do papel da mídia numa democracia efetiva, parece mais
auspicioso o quarto modelo, aqui batizado de democrata radical. Ele é crítico em relação às
limitações da ordem liberal; mas, ao contrário do leninismo, se mantém fiel às linhas gerais da
compreensão intuitiva do sentido da democracia e, ao contrário dos teóricos da esfera pública,
compreende o caráter conflituoso da política. É deste quarto modelo que se ocupa a próxima
seção.
O pluralismo regulado
A rigor, a corrente que estou chamando de “democrata radical” não se distingue
completamente da vertente deliberativa. Ambas possuem uma ampla zona em comum, que é a
crítica aos limites da democracia liberal “realmente existente”13; e muitos dos autores que
classifico como democratas radicais não estão imunes aos encantos do ideal da discussão
racional e tendem a se auto-rotular como deliberacionistas, como é o caso de John B.
Thompson e, de maneira mais matizada, da própria Iris Marion Young. Mas eles são mais
sensíveis às desigualdades concretas existentes nas sociedades contemporâneas e, por
conseqüência, à necessidade de equalizar as condições de acesso à disputa política; são mais

11
Jürgen Habermas, Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
12
Uma síntese das críticas aparece em Luis Felipe Miguel, “As duas lógicas da ação comunicativa”. Teoria &
Sociedade, nº 10. Belo Horizonte, 2002, pp. 104-43.
13
Se bem que, capitaneadas pelo próprio Habermas, correntes dentro do deliberacionismo têm apresentado uma
crescente acomodação com a ordem liberal. Ver Jürgen Habermas, Direito e democracia. Rio de Janeiro: Tempo
8

sensíveis, também, ao caráter irrecorrível dos mecanismos de representação política. Isto é,


em seu projeto ganha destaque o “empoderamento” de grupos hoje marginalizados, categoria
ampla que inclui trabalhadores, mulheres, minorias étnicas etc.
A vertente que interessa aqui – e que é, em verdade, secundária em relação ao corpo
principal da teoria – entende a centralidade da comunicação nos processos políticos
contemporâneos e enfatiza a ampliação da pluralidade efetiva das fontes de informação como
medida necessária, ainda que não suficiente, para o empoderamento dos grupos subalternos. O
que está em foco, então, é a questão do controle da mídia.
O ponto de partida para as discussões mais auspiciosas sobre o tema é o reconhecimento
de que não há uma solução única para o problema; que é preciso combinar diferentes
mecanismos de controle da mídia, a fim de se alcançar uma maior diversidade de conteúdos e
de vozes presentes nela. Na fórmula de Thompson, trata-se de um “pluralismo regulado”,
significando que “um referencial institucional deveria ser criado e satisfazer – e, ao mesmo
tempo, garantir – a existência de uma pluralidade de instituições da mídia independentes nas
diferentes esferas da comunicação de massa”14. Uma diversidade de instrumentos de controle
da comunicação, reguladas pelo princípio político de prover a sociedade com diferentes tipos
de mídia.
A contribuição de Thompson praticamente se esgota na enunciação da fórmula, que ele
não desenvolve, apenas reitera em renovadas elaborações retóricas15. Ele avança apenas a
defesa da manutenção de uma esfera de mídia comercial, em oposição a John Keane, para
quem uma mídia pluralista precisa necessariamente se basear em princípios pós-capitalistas,
que excluam a competição mercantil16. Contra isso, Thompson afirma que a mídia comercial
“não leva necessariamente ao embotamento da capacidade crítica, à degradação da qualidade
e à submissão do discurso público às finalidades comerciais”17 – mas seus exemplos recaem
sobre pequenas e médias companhias independentes, que produzem por vezes conteúdos
críticos e inovadores, excluindo os grandes conglomerados.
O reconhecimento das potencialidades positivas de um setor de mídia privada não

Brasileiro, 1997, passim.


14
John B. Thompson, Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 338 (ênfase suprimida).
15
O pluralismo regulado “é o estabelecimento de uma estrutura institucional que abriga e garante a existência de
uma pluralidade de independentes organizações da mídia” (John B. Thompson, A mídia e a modernidade.
Petrópolis: Vozes, 1998, p. 209). Para um rastreamento competente das sugestões de Thompson e de outros, ver
Luiz Henrique Vogel, “Mídia e democracia”. Estudos Históricos, nº 31. Rio de Janeiro, 2003, pp. 106-26.
16
John Keane, The media and democracy. Cambridge: Polity, 1991, p. 152.
17
Thompson, A mídia e a modernidade, cit., p. 210.
9

implica em aderir à ficção do livre mercado. Além das medidas destinadas a impedir a
concentração da propriedade – um ponto importante, na medida em que há uma forte
tendência à monopolização do setor, mas que permanece dentro da lógica da concorrência –
há a regulação da mídia, fixando seu caráter de serviço público e impedindo as empresas de
tratarem informação e entretenimento como meros produtos.
Isso inclui, com freqüência, as obrigações de lidar com as questões controversas de
interesse público e de oferecer espaço às posições divergentes. Um exemplo conhecido de
regra legal com este objetivo é a Fairness Doctrine estadunidense. Adotada em 1949, em
resposta a escândalos de manipulação de notícias, foi derrogada pouco menos de 40 anos
depois, como parte do esforço desregulador do governo Reagan18. Na época, argumentava-se
que a legislação engessava a imprensa, levando-a a evitar a cobertura política; sem a Fairness
Doctrine, haveria mais material jornalístico, com maior qualidade. No entanto, segundo
analistas da mídia nos Estados Unidos, a revogação da doutrina acelerou a degradação da
cobertura jornalística, sobretudo na televisão19.
É claro que, mesmo com a existência de legislação, permanece em aberto o ponto
crucial da formação da agenda – quais controvérsias mereceriam cobertura. E, nos Estados
Unidos da Fairness Doctrine, as emissoras continuavam se movendo no campo daquilo que
Daniel Hallin chamou de “controvérsia legítima”, que respeitava os limites da ideologia
hegemônica20. Questões cruciais, como o papel do complexo industrial-militar, estão
permanentemente fora da agenda e, portanto, também do noticiário; vozes muito desviantes,
fora do establishment político, não eram contempladas pelo preceito de dar espaço às posições
divergentes. Enfim, a lei se adequava ao jogo político estadunidense, buscando uma disputa
mais equilibrada entre os dois grandes partidos.
De certa maneira, a proposta de James Curran representa um passo atrás na defesa da
necessidade de regulação pública da mídia. Ele propõe, como medida fundamental de
aprofundamento da democracia, a formação de um complexo de diferentes setores de mídia
com financiamento público, mas que conviveria com um setor puramente mercantil – que,
depreende-se, seria fracamente regulado21. É valiosa, no entanto, a indicação que o setor

18
Para uma breve história da Fairness Doctrine, ver Dean E. Alger, The media and politics. Belmont:
Wardsworth, 1996, pp. 107-8.
19
Robert M. Entman, Democracy without citizens. Oxford: Oxford University Press, 1989; Bagdikian, The
media monopoly, cit., p. xxxiii.
20
Daniel C. Hallin, The “uncensored” war. Berkeley: University of California Press, 1986, pp. 116-7.
21
James Curran, “Media and democracy”, em Michael Bruun Andersen (ed.), Media and democracy. Oslo:
University of Oslo Press, 1996. Para uma síntese e defesa da proposta de Curran, ver Colin Leys, “The public
10

público de mídia teria que contar com diferentes tipos de empresas. Curran lista quatro
setores: o serviço público de radiodifusão, propriamente dito, controlado por um conselho
socialmente representativo; um “mercado social”, que admitiria publicidade, mas sob
regulação pública, destinado a proporcionar a representação de diferentes forças sociais; um
setor controlado pelos próprios jornalistas, para garantir os padrões de profissionalismo e
cumprir a tarefa tradicional de vigilância sobre o poder; e um setor cívico, entregue a
diferentes grupos da sociedade civil, que propiciaria sobretudo a comunicação interna de cada
um deles.
O objetivo é, enfim, gerar um forte setor de radiodifusão e imprensa pública,
independente das pressões governamentais, para prover um espaço de mídia que não esteja
submetido (ou, ao menos, submetido de forma tão direta) aos imperativos do mercado. Mas
para isso – convém assinalar – ele deve contar com fontes claras e seguras de financiamento.
Não pode depender nem da boa vontade dos governantes de plantão para liberarem verbas no
orçamento, nem da publicidade comercial. Num caso, ficaria refém do poder político; no
outro, do poder econômico.
O fortalecimento do setor público de mídia se opõe tanto ao modelo de monopólio
estatal, que imperou na Europa durante bom tempo, quanto ao modelo liberal, que delega toda
a responsabilidade às “forças do mercado”, hoje hegemônico. O controle pelo Estado leva, no
extremo, à instrumentalização da comunicação pelo grupo dominante; ou, ao menos, ao
consórcio entre os grupos que integram o establishment político. O mercado reduz informação
e cultura a elementos da disputa pela audiência (ou, melhor, pelas verbas publicitárias), o que
leva à padronização dos conteúdos e à tendência a tratar o público como consumidor, e não
cidadão. Em ambos os casos, fica comprometida a pluralidade de vozes, isto é, determinados
grupos da sociedade e determinadas posições no espectro políticos têm negada ou restringida
a possibilidade de difusão de seu discurso.
São muitas as alternativas para o financiamento das emissoras públicas. A proposta de
cobrança de taxas dos proprietários de aparelhos de rádio e TV (como ocorre, por exemplo, na
Inglaterra, para sustentar a BBC) parece antipática, já que se imagina que a mídia comercial é
“grátis” – na verdade, não é, já que todos nós pagamos pelos anúncios, que encarecem os
produtos que consumimos em 10% ou até mais. Mas é possível fixar a receita das emissoras
públicas como o percentual da arrecadação de algum imposto ou, então, cobrar uma taxa da

sphere and the media”, em Leo Panitch e Colin Leys (eds.), Global capitalism versus democracy. Suffolk:
Merlin, 1999.
11

verba publicitária da mídia comercial. O importante é gerar independência para a radiodifusão


pública, permitindo que ela se torne a guardiã dos valores da objetividade jornalística e da
qualidade cultural.
O risco, por outro lado, é que a radiodifusão pública, ancorada em sua independência
política e financeira, torne-se presa de sua própria administração – uma burocracia
autonomizada, que não presta contas nem ao público, pois não depende da audiência, nem aos
representantes eleitos. O ponto é destacado, sobretudo, por Robert W. McChesney22. Sem
apresentar um projeto tão detalhado quanto o de Curran, ele aponta a necessidade de,
simultaneamente, ampliar a concorrência, regular o setor privado e gerar um setor público
descentralizado.
Pluralismo e empoderamento
As visões vinculadas ao “pluralismo regulado” representam as contribuições mais
importantes à discussão sobre a necessária reformulação da mídia para o aprofundamento da
democracia. Elas enfocam um objetivo principal, altamente relevante: dissociar a capacidade
de produzir informação do controle do poder econômico e do poder político. No entanto, o
projeto que apresentam carece de uma âncora, pois não fica claro quais são os grupos a serem
beneficiados com a democratização da comunicação. No limite, parece que o beneficiário é
uma entidade tão vaga quanto “a sociedade civil”, ou que o ideal seria a pulverização absoluta
da produção de informação, o que é contraditório com as sociedades populosas e complexas
em que vivemos, e também com o caráter de sistema perito da produção da informação.
Para resolver esse problema, é preciso entender que a mídia cumpre funções
representativas nas sociedades contemporâneas. A representação política não se esgota na
tomada de decisões; ela envolve também o debate público e a formação da agenda, e nestas
duas dimensões a intermediação dos meios de comunicação de massa é crucial23. Assim, o
problema do acesso à mídia pode ser considerado análogo ao problema do acesso aos fóruns
decisórios. Aqui, ganha relevância a discussão apresentada pelos chamados “teóricos da
diferença”, entre os quais se destaca Iris Marion Young.
Em seu livro Justice and the politics of difference, de 1990, Young defende a idéia de
que é necessário incluir os grupos sociais numa reflexão política que, marcada pelo
individualismo liberal, tende a exilá-los. Um grupo social não é simplesmente uma coleção de

22
Robert W. McChesney, Rich media, poor democracy. Urbana: University of Illinois Press, 1999, p. 306.
23
Ver Luis Felipe Miguel, “Representação política em 3-D”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 51. São
Paulo, 2003, pp. 123-40.
12

indivíduos, determinada de forma arbitrária; ele se define por um sentido de identidade


compartilhada. Em suma, as pessoas podem formar associações, mas os “grupos, por outro
lado, constituem os indivíduos”24.
Dentre os diversos grupos identitários presentes na sociedade, alguns estão em posição
de desvantagem estrutural, sendo sistematicamente oprimidos e dominados – para Young,
opressão se refere aos processos institucionais que impedem as pessoas de desenvolver suas
capacidades, ao passo que a dominação designa as condições institucionais que impedem as
pessoas de participar na determinação de suas ações25. São esses grupos, oprimidos e
dominados, que precisam de mecanismos que lhes garantam acesso efetivo aos espaços de
representação política.
Vale, aqui, introduzir a contribuição de Melissa Williams, que define os “grupos
marginalizados imputados” como sendo aqueles que sofrem com padrões de desigualdade
estruturados de acordo com o pertencimento de grupo, o qual não é experimentado como
voluntário, nem como mutável; e quando a cultura dominante atribui um sentido negativo à
identidade do grupo26. São esses os grupos que podem reivindicar representação mais efetiva.
Além disso, acrescenta Williams, a força moral da reivindicação está vinculada aos processos
históricos que levaram à exclusão: “Os grupos em mais profunda desvantagem na sociedade
contemporânea também foram sujeitos à exclusão legal da cidadania e à discriminação
patrocinada pelo Estado”27. É um critério que inclui trabalhadores, mulheres, minorias étnicas
e homossexuais, pelo menos.
As propostas de mecanismos reparadores, que incluam tais grupos na arena política,
passam por formas específicas de financiamento e apoio à auto-organização, cotas eleitorais,
partidárias ou parlamentares e mesmo, como propôs Young, à fixação de poder de veto sobre
políticas que os afetem28. É aqui que entra o acesso à mídia.
A adequada compreensão do papel dos meios de comunicação de massa nas disputas
políticas contemporâneas pode levar a um melhor dimensionamento das propostas de
“empoderamento” dos grupos marginalizados, que não se restringe ao acesso aos espaços
formais de tomada de decisão. E, por outro lado, os modelos de democratização da mídia

24
Iris Marion Young, Justice and the politics of difference. Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 45.
25
Id., p. 38.
26
Melissa S. Williams, Voice, trust, and memory. Princeton: Princeton University Press, 1998, pp. 15-6.
27
Id., p. 17.
28
Young, Justice and the politics of difference, cit., p. 184. Ela recuou da proposta em sua reflexão mais recente;
ver Young, Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.
13

ganham nitidez se estão determinados quais os setores sociais que precisam ser contemplados
– isto é, quais os grupos cuja voz, ao ser ouvida, acrescenta efetivo pluralismo ao debate
público.

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