Sobre A Lembrança - Uma Abordagem Psicanalítica Dos Limites Estruturais Da Memória

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03/04/2020 Sobre a lembrança: uma abordagem psicanalítica dos limites estruturais da memória

Psicologia: Reflexão e Crítica Serviços Personalizados


versão impressa ISSN 0102-7972versão On-line ISSN 1678-7153
Journal
Psicol. Reflex. Crit. v.12 n.3 Porto Alegre 1999
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https://doi.org/10.1590/S0102-79721999000300006
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Sobre a lembrança: Uma abordagem Artigo

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da memória Como citar este artigo

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Angélica Bastos 1
Universidade Federal do Rio de Janeiro Curriculum ScienTI

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Resumo
Mais
O presente artigo pretende interrogar o advento da lembrança e
situá-lo frente à operação psicanalítica. São estabelecidas Mais
articulações entre os limites em que desemboca a análise da
lembrança encobridora e a natureza estruturalmente incompleta Permalink
da memória. Para tal, procura-se demonstrar na metapsicologia
freudiana da memória a existência de um elemento extra-
mnêmico sob a forma de das Ding, cuja impossibilidade de assimilação as imagens mnêmicas
viriam encobrir.

Palavras-chave: Memória; lembrança; psicanálise

On recollections: a psychoanalytical approach to the structural


limits of memory

Abstract
The purpose of this article is to raise questions on the emergence of memories and to situate
them vis-à-vis the psychoanalytical operation. Links are established among the limits to which
the analysis of the concealing event leads and the structurally incomplete nature of memory.
The article therefore attempts to demonstrate that in the Freudian metapsychology of memory
there is an extra-mnemic functional element beyond recollections found in the form of das Ding,
which cannot be assimilated as a memory and must therefore be buried by the formation of
remembered images.

Keywords: Memory; recollection; psychoanalysis.

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"Vocês não podem nunca estar certos de que uma lembrança não é uma
lembrança encobridora. Quer dizer, uma lembrança que bloqueia o caminho
do que posso situar no inconsciente, isto é, a presença - a ferida - da
linguagem. Nós não sabemos nunca; uma lembrança, tal como ela é
imaginariamente revivida - o que é uma lembrança encobridora - é sempre
suspeita. Uma imagem bloqueia sempre a verdade. (...) O conceito mesmo
de lembrança encobridora mostra a desconfiança do analista no que diz
respeito a tudo que a memória pensa que reproduz."( Lacan, 1976, p.22)

A operação psicanaliticamente eficaz é da ordem da memória? O surgimento de uma lembrança


corresponderia a um evento analiticamente significativo?

Preencher as lacunas da memória: assim Freud definiu em termos descritivos, de modo


permanente e apesar de remanejamentos subsequentes, o objetivo do tratamento analítico. O
advento de uma lembrança poderia ser encarado como um passo nessa direção? Houve, sem
dúvida, um tempo em que essa interrogação seria seguida de uma resposta afirmativa.
Remontando à teoria da sedução traumática, nela veríamos o elemento que rompe o fio das
recordações, fazendo lacuna na memória. Em vista do passado transformado em reminiscências,
Freud faz uso de uma regra de inferência lógica segundo a qual, dada a negação do
conseqüente, põe-se a negação do antecedente. A fórmula "cessando a causa, cessa o efeito"
(Breuer & Freud, 1895/1969, p.48) é, então, invertida. Da persistência do efeito, ele conclui pela
subsistência da causa, interpolando, entre a experiência traumática e o sintoma, a lembrança do
trauma.

De acordo com essa primeira teoria, o trauma - causa suprema da neurose - deveria ser objeto
de trabalho terapêutico. A dita lembrança traumática constituiria o elemento com o qual as
lacunas da memória deveriam ser preenchidas. No entanto, o trauma não é redutível a traços de
memória. Aquém da lembrança do trauma, sua incidência envolve um excesso quantitativo
aflitivo para o psiquismo. Logo, sob a forma de sua integração à cadeia discursiva, a causa da
neurose passaria à fala, deixando-se absorver - ainda que parcialmente - pela memória. A
anamnese viria ao centro do tratamento: ela deveria perseguir os eventos singulares que
causaram a neurose. Esperava-se deflagrar a rememoração, remontar ao trauma, devolvendo o
sujeito à memória que já o habitava sob a forma do sintoma. A reminiscência é uma expressão
da memória que recusa o saber inconsciente. O tratamento poderia se resumir no percurso que
vai da memória sintomática à memória com saber inconsciente.

Essa concepção liga indissoluvelmente sintoma, memória e trauma. Uma parte considerável do
que estabelece fica preservada, em especial, o efeito a posteriori que remodela as lembranças,
conferindo-lhes uma significação que não possuíam. Com a valorização da fantasia em
detrimento da realidade factual, o trauma se subordina à primeira, que continua a engendrar os
mesmos efeitos retroativos.

"Nossas lembranças infantis mostram-nos nossos primeiros anos não como


eles foram, mas como nos apareceram nos períodos posteriores em que as
lembranças foram despertadas. Nesses períodos do despertar, as
lembranças infantis, como nos acostumamos a dizer, não emergiram; elas
foram formadas nessa época." (Freud, 1898/1969, p.354)

As palavras com que Freud (1899/1969) conclui sobre a lembrança encobridora


(Deckerinnerung) revelam a dimensão de realidade psíquica das recordações. Ele não a
considera como representação heterogênea em relação às demais lembranças derivadas da
infância e, nivelando-as todas, mergulha o conjunto das recordações na dimensão da fantasia.
Tendo em vista essa guinada, cabe indagar sobre as relações entre o advento de uma lembrança
e o preenchimento das lacunas da memória. Penso que o mero surgimento da lembrança não
constitui um avanço no processo analítico; ao contrário, em si, ela detém a cadeia associativa,
deixando o sujeito capturado, congelado pela imagem. Complementarmente, suponho que o
preenchimento das lacunas da memória não faz desta algo de completo, pois há nesta uma
lacuna inexpugnável, que só pode ser contornada. Assim, assumo a hipótese de que a análise da
lembrança revela essa natureza lacunar, que lhe é decalcada pela própria estrutura da memória

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inconsciente. Para que isso seja evidenciado, faz-se necessário um exame da lembrança
conjugado a uma incursão na metapsicologia freudiana da memória.

Superada a crença no acontecimento traumático entendido como fato empiricamente vivido, a


lembrança encobridora surge como um reflexo da fantasia. Esse gênero de lembrança intriga
pelo fato paradoxal de se apresentar de forma ultra-clara, vívida, nítida e, simultaneamente,
parecer desprovida de importância que justifique sua sobrevivência enquanto imagem mnêmica.
A estrutura de tela encobridora se manifesta na seleção de uma cena anódina em lugar de
pensamentos arrastados pelo recalque. A característica distintiva atribuída à lembrança
encobridora reside no contraste entre a clareza excessiva da recordação e seu teor trivial,
contrariando a expectativa de uma proporção direta entre a importância psíquica da experiência
e sua retenção na memória consciente, isto é, no acervo de lembranças.

Freud (1899/1969) dispensa à lembrança a mesma abordagem dada ao sintoma, vale dizer,
trata-a como formação de compromisso. O ponto de vista dinâmico está presente na imagem
empregada: a resultante de um paralelogramo de forças serve de metáfora ao conflito psíquico.
Num vetor, a relevância da fantasia é o critério que impõe sua fixação; no outro, a resistência
impele a memória a distorcê-la. Na resultante, forja-se uma imagem que não coincide com a
representação original: o pensamento é reproduzido sob a forma de uma conciliação, ou melhor,
não é reproduzido, mas deslocado para uma outra cena.

O relato de Freud (1899/1969) gira em torno do episódio autobiográfico em que um menino


retira o buquê de flores das mãos de uma menina e, em seguida, se desfaz das mesmas para
saborear um pedaço de pão. O sabor delicioso desse pão, excessivamente bem lembrado pela
sua força sensorial exacerbada, contribui para revestir essa lembrança do qualificativo de
encobridora. A ênfase dada a esse aspecto sensorial da imagem é a contrapartida do recalque.
Do mesmo modo, o amarelo das flores apresenta-se dotado de especial pregnância e pela
mesma razão credencia a lembrança como encobridora.

Na condução da análise, a linguagem 2 desempenha papel central: "o passo intermediário entre
uma lembrança encobridora e aquilo que ela esconde é provavelmente uma expressão verbal"
(Freud, 1899/1969, p.350); donde a fantasia de defloramento ser encoberta pela lembrança da
tomada das flores que a menina segurava. De forma análoga, o pão que consta da lembrança
encobridora é interpretado em termos da preocupação com a sobrevivência. Ele está
sobredeterminado. De um lado, representa a necessidade de "ganhar o pão", que na fantasia do
sujeito o afastara da moça por quem ele viria a se apaixonar. De outro, representa as
"ocupações pão com manteiga", isto é, o conforto material que poderia obter caso, seguindo os
planos do pai e do tio, trocasse seus estudos abstratos por uma ocupação prática e viesse a se
casar com a prima mais abastada.

Quanto ao material que participa da formação da lembrança, sabe-se que ela se erige a partir
de traços mnésicos, cuja registro é permanente, indelével. No entanto, a imagem mnêmica
capaz de se reproduzir não corresponde à fantasia relevante: as cenas que constituem o acervo
de lembranças infantis não repetem com exatidão as impressões originalmente recebidas.

Qual é a natureza da lembrança encobridora? Ela é forjada para substituir fantasias que
sobrevieram na juventude e que foram recalcadas; nesse sentido, ela não retrata a infância.
Dizer que ela a distorce e negar-lhe fidedignidade é pouco: de fato, a lembrança encobridora
não é dotada de "precisão histórica" (Freud, 1899/1969, p.354) em sua referência à infância.
Sem constituir um documento da infância ou da juventude, ela, entretanto, é um monumento de
algo que cumpre à análise circunscrever.

A passagem da fantasia sexual para a lembrança encobridora é objeto de uma discussão


centrada na autenticidade da lembrança. A fantasia de defloramento requer um substituto para
que possa figurar no acervo mnêmico do sujeito. Mas daí não advém a necessidade de que o
elemento psíquico que toma seu lugar seja uma lembrança autêntica. Afinal, por que uma
fantasia não seria substituída por outra? Que o sujeito que rememora se veja dentro da cena,
como um objeto dentre outros, é apontado como uma prova de que a representação é
construída, o que é automaticamente estendido a todas as recordações portadoras dessa
característica. Mas o caráter construído da lembrança não implica uma produção livre de
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constrangimentos; ele apenas significa que a impressão primitiva foi superelaborada. "Mas
nenhuma reprodução da impressão original introduz-se na consciência do sujeito" (Freud,
1899/1969, p.353).

Freud toma o partido da autenticidade das lembranças. Ora, que haja nela algo de autêntico não
significa que ela corresponda à impressão original. Esse é o ponto de vista freudiano, que
estabelece um meio termo entre a natureza puramente ficcional da lembrança e sua reprodução
fiel. Por um lado, estipula-se a exigência de que um traço mnêmico "ofereça um ponto de
contato à fantasia", de que se disponha de um "material bruto utilizável". Enquanto material
bruto, os traços mnésicos, embora possam engendrá-la, não são da ordem da imagem. O traço
detém o primado sobre a expressão plástica de que se reveste a lembrança em seu aspecto
cênico. Elos simbólicos governam o trajeto da fantasia inconsciente à lembrança que, pelo fato
de ser sobredeterminada, presta-se às distorções impostas pelo recalque e assume a forma
visual que ele requer.

Duas dimensões do traço se destacam 3. De um lado, ele é utilizável, entra em associações,


articula-se à fantasia através de elos simbólicos intermediários, além de se traduzir em
imagens e cenas. De outro, o traço permanece inacessível enquanto elemento primitivo,
enquanto dado original. Aquém ou além do traço associável, há alguma coisa perdida que
Freud define assim: "o material cru dos traços de memória, a partir do qual a lembrança foi
forjada, permanece desconhecido para nós em sua forma original" (Freud, 1899/1969,
p.353). Enfim, é a essa matéria-prima peculiar, definitivamente inacessível enquanto
impressão original, entre impressão e inscrição, que Freud recorre para não destituir as
recordações de toda autenticidade. Quanto à impressão original que não se introduz na
consciência, ela tampouco pode ser recuperada pela análise, que aí se choca com algo de
incognoscível.
Esse limite com que se depara a análise da lembrança encobridora não lhe é exclusivo. A interpretação de um sonho
também desemboca no desconhecido: o umbigo do sonho, a partir do qual a decifração se estanca. Mas é no terreno da
fantasia que esse limite é particularmente apreensível. Em "Uma criança é espancada", Freud constata que a versão
impessoal dessa fantasia corresponde à primeira e à terceira fases, precisamente às fases conscientes da fantasia. Na
fase intermediária, inconsciente, uma segunda frase se enuncia: "Estou sendo espancada pelo meu pai" (Freud,
1919/1969, p.232). Ela não se constitui como lembrança e não pode ser integrada à rememoração. Ela é uma
construção em sentido clínico, estruturando as transformações por que passa um certo grupo de fantasias
inconscientes. Esses pontos-limite vão se multiplicando ao longo da obra de Freud, o que nos faz inquirir não só a
rememoração, como também a própria memória que a sustém. O fracasso com que se choca a visada rememorativa na
análise se impõe com a constatação da impossibilidade de o analisante vir a confirmar as construções de Freud com
sua própria memória, "e o que não lhe é possível recordar, pode ser exatamente a parte essencial" (Freud, 1920/1969,
p.31). Daí, surge a hipótese de que tais pontos correspondem a um limite estrutural da própria memória inconsciente.

Voltando às recordações, se por um lado a confecção da lembrança encobridora baseia-se em


alguma inscrição psíquica prévia, por outro, ela não é fidedigna. Essa relação é particularmente
bem formulada mais tarde, quando Freud se ocupa de algo que Leonardo da Vinci (Freud,
1910/1969) relata como sendo uma recordação: um pássaro viera visitá-lo no berço e, com a
cauda, fustigara-lhe a boca. O episódio é interpretado em termos de uma fantasia criada
posteriormente e projetada, de maneira retroativa, sobre a infância 4. Mais uma vez, Freud
argumenta em favor da tese de acordo com a qual as lembranças infantis não reproduzem as
experiências tais como foram vividas. A memória consciente proporciona uma história do
passado cuja natureza é comparada a um acervo lendário; donde a aproximação entre a trivial
lembrança encobridora de Freud e a recordação de Leonardo da Vinci. É que, para além de suas
características específicas, a primeira compartilha com as demais lembranças infantis a
propriedade de não emergir de um arquivo mnêmico onde o passado estaria estocado. Por
conseguinte, essa recordação é englobada na categoria geral que Freud formula, qual seja, a de
lembranças remetidas à infância.

Caberia a objeção de que a recordação de Leonardo da Vinci não é classificada por Freud como
uma lembrança encobridora. De fato, ela não se adequa à característica distintiva da ênfase
sensorial conjugada ao conteúdo trivial. Ao contrário, a ave de rapina que vem ao berço do bebê
confere à representação uma feição inusitada, extraordinária, homérica, no sentido que Lacan
atribui às recordações quando diz: "Mesmo se as lembranças da repressão familiar não fossem
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verdadeiras, seria preciso inventá-las, o que não deixamos de fazer. O mito é isso, a tentativa de
dar forma épica ao que opera pela estrutura" (Lacan, 1974, p.51).

A lembrança opera como anteparo a um encontro que é traumático para o sujeito e que se
remete ao impossível ligado ao sexo. Assim, compreende-se o empenho de Freud em encontrar
o elemento sexual. Ele não se contenta em detectar a preocupação com a sobrevivência que,
efetivamente, movia o sujeito. A fantasia de defloramento é essencial, pois é ela que encerra o
caráter problemático da sexualidade. O comentário de Lacan a propósito das lembranças parece
visar esse ponto crucial; diz ele: "O impasse sexual secreta as ficções que racionalizam o
impossível do qual ele provém. Eu não as digo imaginadas, eu aí leio como Freud o convite ao
real que a elas corresponde" (Lacan, 1974, p.51). Certamente, as lembranças não se reduzem a
um exercício imaginativo. Esse convite ao real insistente assume a forma de uma lembrança
numa formação de tipo neurótico, mas essa resposta bem poderia comparecer sob a forma de
uma alucinação.

Esse ponto cego apontado na memória não está necessariamente presente em todos os textos
de Freud. Aliás, ele está ausente na referência ao bloco mágico, com o qual nos são ilustrados
os aparelhos mnêmico e perceptivo. Esse artefato consiste em uma prancha de escrever feita de
cera ou resina e uma dupla cobertura transparente, configurando dois sistemas ou partes do
bloco, interligadas pelas bordas. O interesse de Freud incide principalmente sobre a dupla folha
de cobertura: a primeira constitui uma camada protetora em contato com um estilete, enquanto
a segunda recebe a impressão dos sulcos que se formam na prancha à medida que se escreve.
Ao se separar a prancha e cobertura, aquilo que foi escrito desaparece, pois os sulcos não são
mais visíveis. O bloco ficou livre para novas anotações. Segundo a comparação estabelecida por
Freud, a cobertura de celulóide com seu papel encerado subjacente estaria para o sistema
percepção-consciência dotado de seu escudo protetor, assim como a prancha de cera estaria
para o inconsciente. Os obstáculos ao prosseguimento da analogia não tardam: os traços não
são tão permanentes assim e, sobretudo, uma vez destruída a escrita, isto é, rompido o contato
entre cobertura e prancha, os traços não são capazes de reprodução - ou manifestação - a partir
da prancha, isto é, do inconsciente. Mas trata-se apenas de uma analogia e o texto é claro
quanto a isso. De fato, Freud parece mais entusiasmado com as semelhanças entre o bloco e o
aparelho perceptual. Nesse sentido, são usadas expressões tais como: "concordância notável
com nosso aparelho perceptual" (Freud, 1925/1969, p.287), ou "maneira pela qual, segundo a
hipótese que acabo de mencionar, nosso aparelho mental desempenha sua função perceptual"
(Freud, 1925/1969, p.289). Do ponto de vista do inconsciente, a importância dessa ilustração
não é indevidamente minimizada ao se privilegiar o aparelho sensorial, ou, a separação
estrutural entre o sistema percepção-consciência e o que é da ordem da memória.

Com base nessas observações, antecipo o seguinte: se a lembrança oculta um ponto


incognoscível, se a rememoração se choca com algo não assimilável, esse ponto pode ser
assinalado no nível da memória. A expressão ‘ponto cego’ não deve nos induzir a equívocos: não
é por déficit perceptual que algo se perde para a memória; em outros termos, não é por falta de
recepção que a impressão original não se reproduz. Há um ‘ponto cego’ a ser situado no nível da
memória, mas como extra-mnêmico. Cumpriria, antes, remeter possíveis hiatos a nível da
imagem a este aspecto vazado da memória. E é isso que será visado a seguir sob a forma de
das Ding, a partir do neurônio a, tal como o concebe Freud no contexto de seu sistema de
memória.

A solução para o problema das lembranças é bastante representativa da concepção freudiana


acerca da memória. Apreendendo a magnitude da novidade que aí se introduz, o psicólogo se
surpreende diante de uma memória que não se adapta à realidade. Piaget considera que Freud
tenha elaborado uma teoria da "ultra-conservação,(...) até a suposição de que nada se perde
nem se altera nunca" (Piaget & Inhelder, 1979, p.383). Uma teoria da ultra-conservação. O
epíteto não é de todo inadequado, posto que os traços mnésicos são inerradicáveis. Mas o resto
do enunciado precisaria ser parafraseado: há algo que se perde - tentemos determinar como - ,
e algumas coisas podem se alterar sim, em especial, o posicionamento do sujeito quanto à
memória que o habita e quanto ao que lhe escapa.

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Passo agora a expor face metapsicológica desses limites demarcados na análise da lembrança,
pretendendo apontar em das Ding, ou no neurônio a, senão a contrapartida conceitual, ao
menos uma aproximação teórica a esses pontos que se furtam à articulação. Esse vetor pode
ser depreendido do ensino de Lacan em sua releitura da obra de Freud, mas a intervenção do
primeiro no texto do segundo será adotada com parcimônia.

"Toda teoria psicológica digna de consideração terá que fornecer uma explicação para a
‘memória’" (Freud, 1895/1969, p.399). Freud responde a essa exigência com sua teoria das
barreiras de contato. Há dois tipos de neurônios. Os f, completamente permeáveis e
imutáveis, não erguem resistência à passagem das quantidades (Qn)5 que os percorrem. São
receptivos ao que se passa no interior do corpo, têm a percepção a seu cargo, nada retêm e
estão sempre prontos a sofrer e transmitir novas excitações. Em uma palavra: neles, as
barreiras de contato não constituem obstáculo à circulação de Qn. Os neurônios y,
impermeáveis, caracterizam-se pela resistência à passagem das excitações e pela capacidade
de reter quantidades. Ele são modificáveis, prestando-se à representação da memória. As
"facilitações" nas barreiras de contato dão a chave dessas propriedades: à medida que
sofrem excitações, os neurônios y tornam-se menos impermeáveis, mais condutíveis, o que
se traduz no grau de "facilitação" das ditas barreiras. Daí, deduz-se uma definição de
memória: ela consiste nas diferenças de "facilitação" entre os neurônios y. Numa formulação
mais completa:

"As facilitações entre os neurônios y constituem, como sabemos, a


memória, ou seja, a representação de todas as influências que y
experimentou a partir do mundo externo. Agora percebemos que o
próprio ego também catexiza os neurônios y e suscita passagens [de
quantidade] que também devem deixar traços na forma de facilitações"
(Freud, 1895/1969, p.480).

As noções e conceitos que constam do texto freudiano fazem parte de uma intrincada e extensa
trama teórica, a qual dificilmente comporta o recorte de alguns itens em detrimento dos demais.
Como objetivo aqui não é o de expor a totalidade dessa rede conceitual em seus detalhes, mas
nele localizar detalhadamente alguns aspectos relativos à memória, certas noções, a começar
pela "facilitação", serão enfatizadas. O termo empregado por Freud é Bahnung (1950/1969). Ele
se liga à noção de barreira de contato e , por conseguinte, à diferença de permeabilidade entre
os neurônios.

A propósito deste último ponto, Lacan (1986) critica a tradução inglesa (facilitation), da qual
várias outras se originaram. Procurando ressaltar o aspecto de articulação implicado no
sistema de neurônios y, ele afirma: "Bahnung evoca a constituição de uma via de
continuidade, uma cadeia, e penso mesmo que isso pode ser aproximado da cadeia
significante..." (Lacan, pp. 49-50). O aspecto de articulação diz respeito à memória, e não à
percepção ou à consciência. Por isso, o trilhamento concerne às barreiras de contato do
sistema em que estas se fazem sentir (em f, ao contrário, é "como se" não existissem
barreiras de contato). Onde as barreiras se fazem sentir, os trilhamentos 6 ligam, conectam,
ou estabelecem uma via de continuidade. Esta última expressão aponta para a natureza de
elemento discreto que possui o neurônio e nos adverte contra qualquer ilusão sugerida por
uma anatomia fantasista. Contigüidade não é continuidade: embora possa haver proximidade
e mesmo contato espacial entre os neurônios concebidos, os elementos dessa memória
devem ser entendidos como termos individualizados, descontínuos uns em relação aos que
lhes são contíguos; donde a introdução de uma via de continuidade entre termos discretos.

A necessidade de uma explicação para a memória é a contrapartida da função secundária do


sistema neurônico. À sua função primária de descarga (princípio de inércia) vem somar-se a
tarefa de desempenhar ações específicas cuja execução requer um acúmulo mínimo de energia
(donde a transformação do princípio de inércia em princípio da constância). As barreiras de
contato respondem por tal acúmulo. Daí, depreende-se o duplo aspecto da memória neurônica:
primeiro, reserva da energia indispensável; segundo, circuitos que facilitam a descarga dessa
mesma energia. Esses postulados submetem a memória freudiana a um princípio não mecânico,

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uma vez que acúmulo e descarga de quantidade vão se traduzir em desprazer e prazer.
Examinemos a conjunção entre funcionamento e estrutura da memória.

A referência freudiana é a experiência de satisfação, que tem o peso de uma coordenada no


estudo da memória, tanto no contexto do "Projeto para uma psicologia científica", quanto no
da "Interpretação dos Sonhos". Dada uma tensão devida a uma necessidade, a tendência
natural do aparelho seria a de privilegiar os trilhamentos que anteriormente conduziram à
descarga. Por conseguinte, fala-se de memória a partir de uma experiência de satisfação.
Os trilhamentos prioritários podem ser descritos como um circuito de, no mínimo, três elementos, que são
estabelecidos pela experiência de satisfação. O circuito mnêmico inclui o neurônio nuclear investido, o neurônio que
representa a lembrança do objeto do qual proveio a satisfação, e a imagem motora correspondendo à ação específica
que pôs fim ao estado de desejo. Quanto ao primeiro neurônio, utiliza-se o singular a título de simplificação: do ponto
de vista funcional, trata-se de uma unidade, embora Freud fale em "neurônios nucleares" (Freud, 1895/1969, pp.422-
424). O primeiro, sendo ativado a partir do interior do corpo, deve ser situado no núcleo do sistema. Os dois últimos,
associados em última instância a partir de uma experiência, devem ser localizados na parte periférica do sistema, isto
é, no pallium. Tanto a imagem motora quanto a lembrança do objeto podem ser entendidos como traço mnêmico, não
encerrando em si um conteúdo cênico.

Essa articulação, saldo da experiência de satisfação, traça um programa de atividades para um


novo estado de desejo, cujo neurônio nuclear, uma vez reinvestido, engaja os demais segundo
os trilhamentos estabelecidos. Dado o estado de desejo, o sistema tende a reinvestir a
lembrança do objeto e a mobilizar a mesma imagem motora. Na ausência do objeto, o resultado
só pode ser: alucinação, descarga malograda e decepção. Solução: recurso às indicações de
realidade, com o intuito de comparar percepção e lembrança, cotejar o que se apresenta no
"mundo exterior" com a imagem investida da experiência de satisfação. Essa comparação é
descrita como um ato de julgamento, um juízo que decide quanto à conveniência de deflagração
da ação específica, segundo a coincidência entre a imagem investida e o novo complexo
perceptivo.

O importante é que a experiência de satisfação, tendo ativado um ou mais neurônios que


correspondem à percepção de um objeto, além do investimento de uma imagem motora, deixa
trilhamentos em seu rastro. Dado um novo estado de urgência ou de desejo, o investimento
também passa para as duas lembranças, reativando-as. A lembrança do objeto tem um papel
dominante. Completa Freud: "É provável que a imagem mnêmica do objeto seja a primeira a ser
afetada pela ativação do desejo" (Freud, 1895/1969, p.424). Mas o que significa essa
preponderância do objeto? Certamente, ela não quer dizer apenas que a atividade no vazio
esteja descartada: essa razão recobriria a adaptação ao mundo externo. Que a descarga deva
seguir no sentido da motilidade, tampouco parece uma razão suficiente.

A experiência primária de satisfação remete-nos à segunda coordenada: a precedência em


questão não é a da satisfação em si, mas a das condições de sua realização, vale dizer, o Outro
7. Essa leitura se justifica pelo que se desenrola a partir do que Freud chama a via da alteração
interna: grito, choro e outras expressões emocionais. Frente a uma estimulação endógena e ao
investimento do neurônio nuclear, esse tipo de descarga, ao alcance do organismo, é ineficaz,
não podendo dispensar a ocorrência da ação específica, única a fazer cessar a estimulação
endógena. A alteração interna não é, contudo, inócua: embora não produza as modificações
concretas no meio, ela mobiliza alguém que, por sua vez, entra em contato com a criança,
convertendo esse grito em demanda. A essa via de descarga, Freud atribui a função secundária
da comunicação (a primária continua sendo a própria descarga). Nessa linha, ele faz a ação
específica girar em torno do Outro, configurando a subordinação da necessidade à demanda. A
partir daí, a demanda ao Outro pode ser lida como demanda de amor, que visa antes ao Outro,
que a um objeto em particular.

"Essa via adquire uma função secundária ao atrair a atenção da pessoa


auxiliar (geralmente o próprio objeto do desejo) para o estado de
necessidade e aflição da criança; e desde então servirá ao propósito da
comunicação, ficando assim incluída na ação específica" (Freud, 1895/1969,
p.480).

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03/04/2020 Sobre a lembrança: uma abordagem psicanalítica dos limites estruturais da memória

Encontram-se aí indicações de que os processos de julgamento e de reconhecimento do objeto


estão subordinados à esfera do Outro, enquanto ele que intervém na experiência de satisfação.
Se a pessoa prestativa é o Outro encarnado, e não apenas uma imagem do semelhante, a
instância da linguagem já está em ação e, por isso, pode-se afirmar que é desse lugar que o
grito vem receber significação.

Conjugando experiência de satisfação e a intervenção do Outro, não se reúnem categorias


díspares. Essa configuração põe em evidência o caráter não intelectual da memória, ao mesmo
tempo que a afasta de um funcionamento mecânico. A interposição do próximo não é da ordem
do exemplo, não visa simplesmente ilustrar o funcionamento do aparelho neurônico. Ela mostra
que a construção da memória não se confunde com a de um instrumento a serviço de trocas
inter-humanas subseqüentes. A memória já se constitui dentro de um universo que a precede, a
saber: a ordem simbólica. Isso se demonstra na descrição da experiência de satisfação, onde
deparamo-nos com uma criança incapaz de executar a ação específica necessária ao alívio das
tensões. Essa criança é descrita como o desamparado, apenso à intervenção de terceiros, no
dizer de Freud, à "atenção de uma pessoa experiente", na dependência da "assistência alheia"
que lhe vem sanar a impotência motora.

A propósito de das Ding no texto freudiano, que fique claro o que a particulariza nos limites do
presente trabalho. O interesse em expor algumas idéias contidas no "Projeto..." reside no
estatuto do neurônio a, enquanto um elemento heterogêneo em relação aos elementos da
memória. A definição preliminar de coisa aparece sob a notação a, mais precisamente, como
neurônio a.

A comparação entre o investimento de desejo e o investimento perceptivo comporta três casos


possíveis: a coincidência absoluta (um tanto improvável), a coincidência parcial e a discrepância.
Freud se detém no caso da coincidência parcial, o mais freqüente. Ele, então, faz corresponder o
investimento de desejo ao neurônios a + b, e o complexo perceptivo aos neurônios a + c. O ato
de julgar incide sobre esses dois complexos e os compara. Na decomposição de um complexo
em um elemento a, que permanece idêntico a si mesmo, e em um elemento b, que varia, o
elemento a é a coisa (das Ding) e b é seu atributo ou predicado. Na correspondência parcial
entre imagem de desejo e percepção, a concordância é representada por a, e a discordância
pela dissemelhança entre b e c. A identidade de percepção visada dependerá da possibilidade de
b e c virem a se associar, fazendo a semelhança parcial evoluir no sentido da identidade
propriamente dita. No procedimento descrito por Freud, a percepção de c, ao invés de b,
desencadeia uma espécie de busca na direção de b, segundo os trilhamentos existentes. A ponte
será feita por uma imagem motora.

Além de responder pela "semelhança parcial" ou pelo denominador comum entre a imagem de
desejo investida - da ordem da experiência de satisfação - e a imagem atual, isto é, a
percepção, o neurônio a desempenha um papel crucial no estabelecimento da identidade de
percepção: ele não a garante, mas é a partir dele que o ego se lança num trabalho de
rastreamento da memória no sentido de conciliar b e c. No exemplo freudiano, a dissemelhança
redutível a uma semelhança é representada pela imagem mnêmica do seio; a imagem desejada
é a do seio visto de frente, com o mamilo, enquanto que a percepção oferece uma imagem de
perfil, desprovida do mamilo. Admitindo-se a hipótese de que a primeira imagem perceptiva do
seio tenha sido a lateral e que ao longo da experiência um movimento de rotação da cabeça
tenha conduzido à imagem frontal - pronto! - temos o elemento intermediário: a imagem
motora da rotação da cabeça. Mas temos também um problema, pois o texto é preciso e
estabelece a equivalência entre, de um lado, b e a imagem frontal e, de outro, c e a imagem
lateral 8. Afinal, a que corresponde a?

Do ponto de vista das localizações, Freud (1895/1969) postula duas correlações que são assim
enunciadas:

"A linguagem estabelecerá mais tarde o termo juízo para classificar esse
processo de análise, descobrindo simultaneamente a semelhança que de
fato existe [por um lado] entre o núcleo do ego e a parte constante do
complexo perceptivo e [por outro] entre as catexias cambiantes do pallium

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e a parte inconstante [do complexo perceptivo]" (Freud, 1895/1969, p.


434).

O primeiro termo de ambas as semelhanças, ou correlações, diz respeito ao estado de desejo e


aos investimentos nele implicados: núcleo do ego e catexias cambiantes do pallium. Ele inclui,
portanto, tudo o que é decorrência da experiência de satisfação. O segundo termo, em cada
uma das semelhanças, recobre os investimentos perceptivos atuais: parte constante e parte
inconstante do complexo perceptivo.

Comecemos pela segunda correlação: ela só parece se referir aos aspectos incongruentes entre
as imagens mnêmica e a perceptiva, ficando, por conseguinte, representada pelos neurônios b e
c, respectivamente, ambos situados no pallium. Mediante a, essa relação tende a caminhar no
sentido da identidade de percepção.

A primeira semelhança, entretanto, levanta problemas de localização. Recobrindo, de um


lado, a parte constante do complexo perceptivo - que, sendo da ordem da percepção, só pode
estar na parte periférica -, ela envolve, de outro, o núcleo. No entanto, conforme a descrição
freudiana do estado de desejo, não se encontra no núcleo a imagem mnêmica do objeto da
satisfação, e sim os neurônios reativados em função do ressurgimento do estado de urgência
ou de desejo. O fato de a primeira semelhança envolver tanto o núcleo quanto a periferia do
sistema y, a nosso ver, não constitui em si o maior dos problemas: os trilhamentos se
encarregariam de conectar as duas regiões do sistema. O problema é: onde está a? Se a é o
que há de constante, o denominador comum, ou bem ele está nos dois lugares, ou bem não
está no sistema y. Quando Freud designa o investimento de desejo pela fórmula a + b, e o
investimento perceptivo por a + c, ele não deixa margem a interpretações que invoquem
dupla localização ou dupla inscrição. Por isso, tendemos a não inscrever a em y, donde
advém como conseqüência que ele não pode ser equiparado aos demais elementos deste
sistema. Esta observação é reforçada pela semelhança mencionada acima entre a parte
constante do complexo perceptivo e o núcleo do ego, semelhança a ser notada como a. Ora,
se as imagens mnêmicas da experiência de satisfação estão no pallium, e não no núcleo, o
que há de comum entre os investimentos do estado de desejo e as imagens perceptivas não
é da ordem da imagem 9 .

Duas idéias se depreendem do estatuto singular de a. Em primeiro lugar, ele é uma condição de
possibilidade para o reconhecimento do objeto da satisfação, ele conecta memória e percepção,
pondo em andamento a recognição. Em segundo lugar, ele não encerra, nem se torna imagem
mnêmica de nada, não podendo ser considerado um precursor da representação (Vorstellung),
nem sob a forma da representação-coisa (Sachvosrtellung), nem sob a forma da representação-
palavra (Wortvorstellung).

Ora, a que corresponde a? Qual seu estatuto? Sua natureza de imagem revela-se problemática,
pois se ele contivesse o que há de comum a todas as imagens do seio, ele não seria mais uma
imagem como as outras, envolveria uma abstração, seria quase um conceito. Bem, o próprio
Freud nos impede de tratar esse impasse nos termos de uma psicologia da memória de cunho
intelectualista, quando ele postula algo de inassimilável à memória. Isso ocorre a propósito da
experiência do próximo (Nebenmensch), na qual a aplicação de um raciocínio semelhante ao
desenvolvido em torno da percepção e imagem mnêmica do seio, acrescenta-nos uma nova
perspectiva sobre a. Prossegue Freud em sua exposição:

"Desse modo, o complexo do ser humano semelhante se divide em duas


partes, das quais uma dá impressão de ser uma estrutura que persiste
coerente como uma coisa, enquanto a outra pode ser compreendida por
meio da atividade da memória - isto é, pode ser reduzida a uma informação
sobre o próprio corpo [do sujeito]." (Freud, 1895/1969, p. 438)

O que pode ser compreendido pela atividade de memória são os traços do próximo equiparáveis
a uma atividade do sujeito, algo em que ele pode se reconhecer. Freud ilustra esse aspecto com
a percepção visual do movimento das mãos, que "coincidirão no sujeito com a lembrança de
impressões visuais muito semelhantes, emanadas de seu próprio corpo, que estão associadas a

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lembranças de movimentos experimentados por ele mesmo" (Freud, 1895/1969, p. 438). Esses
traços podem ser notados como c, como uma dissemelhança suscetível de evoluir no sentido de
uma congruência 10, isto é, capaz de vir a se associar a b, mediante a dita atividade de
rastreamento da memória. De resto, reencontra-se aí a imagem mnêmica motora que se
intercala entre c e b, ao longo das associações possíveis, vale dizer, trilhadas. O exemplo não se
restringe à esfera visual, sendo endossado com a menção a um grito ouvido, que o sujeito, à
semelhança de outros movimentos, identificará a seu próprio grito.

Em a, podem-se alocar os traços novos e incomparáveis, igualmente pertencentes à esfera


visual. Uma novidade é introduzida: agora, a, definido como o que permanece constante, é o
incomparável, o incompreendido, ou mais, incompreensível pela memória. Essa parte do
complexo do próximo, cabe sublinhar, "dá impressão de ser uma estrutura que permanece
coerente como uma coisa". Essa coerência é um tanto singular, pois, sendo a coerência ou
coesão do incomparável, do que não entra em relação, só pode ser definida por essa mesma
ausência de relação, isto é, como um termo que, à diferença dos outros neurônios integrantes
dos circuitos mnêmicos - que entram em associações segundo os trilhamentos - permanece
exterior à trama de caminhos constituintes da memória. Daí, sustentarmos que a não pertence à
memória, embora, conforme se viu há pouco, ele torne possível o reconhecimento, atividade
eminentemente mnêmica.

Todo o processo de reconhecimento se faz a partir e em torno de a: ele é condição de toda


recognição possível. Em contrapartida, a revela-se irredutível, enquanto c acaba por se ligar a b,
produzindo a identidade de percepção. A essa altura do texto de Freud, o termo identidade
parece bizarro, pois todo o processo que a ela conduz se desenrola sob os auspícios do
radicalmente incomparável: a memória só pode compreender mediante a intervenção desse
elemento inassimilável. Por trás do reconhecimento, não subsiste o mesmo, mas a diferença
irredutível e uma dissemelhança compreensível. Freud assim se exprime numa passagem
bastante clara: "...os complexos perceptivos se dividem em uma parte constante e
incompreendida - a coisa - e outra variável, compreensível - os atributos ou movimentos da
coisa." (Freud, 1895/1969, p.502)

Em resumo, por um lado, não há reconhecimento sem juízo, não há decomposição do


complexo perceptivo do próximo sem o recurso a a, que funciona como um eixo do processo
de reconhecimento; por outro lado, há a afirmação de Freud: "O que chamamos coisas são
resíduos que se esquivaram ao juízo" (Freud, 1895/1969, p.502). Assim, a norteia o juízo do
qual escapa, não contém a representação mnêmica do objeto almejado, nem fixa na memória
a parcela de incomparável que cada percepção envolve. Essa coisa, das Ding, aparece, então,
como um ponto cego, inarticulável e exterior à cadeia de neurônios, configurando o aparelho
neurônico, ou o sistema y, ou ainda a memória como vazada, furada e incompleta.
Designemos das Ding como um elemento extra-mnêmico, numa analogia com o caput
mortuum (cabeça morta) do significante definido por Lacan (1966), e numa aproximação ao
caput mortuum da memória nomeado por Le Gaufey (1983). A noção de um caput mortuum
do significante, ou de significante impossível, datada e circunscrita ao ensino de Lacan,
aponta-nos um fora da memória, um limite à rememoração. Um extra-mnêmico, ou um caput
mortuum da memória, pode ser localizado na obra de Freud, especificamente no "Projeto..."
de 1895, sob o nome de das Ding, conforme se evidencia. Ao assim orientar a reflexão,
sustento a idéia de um limite estrutural da memória, bem como a de um paralelismo entre o
aparelho neurônico e a cadeia significante. Uma ressalva: não se trata aqui de atribuir a das
Ding a função causal, mas de levar esse paralelismo até o ponto de delimitar o elemento
extra-mnêmico nos circuitos mnêmicos e na dimensão simbólica da linguagem.

O elemento identificado como estruturalmente exterior à memória é indispensável a seu


funcionamento. Sem participar da memória, ou da cadeia significante, este elemento se faz
presente como ausência, como inassimilável. O real, distinto da realidade, e definido como o
impossível, ou como a impossibilidade da Coisa, não cessa de não se inscrever e, assim, insiste,
incita a produção de ficções, dentre as quais se pode apontar a lembrança como aquela que vem
se interpor no encadeamento simbólico.

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"A lembrança encobridora está ligada à história por toda uma cadeia, é uma parada nessa
cadeia, e é nisso que ela é metonímica, pois a história por sua natureza, continua" (Lacan,
1994, p.154). Se, no tratamento, a análise da lembrança se choca contra o incognoscível, é
porque a imagem pode perder sua função de escudo, fazendo a fala beirar esse ponto cego,
vazado, de direito lacunar. Ao fazê-lo, a fala não torna a memória mais completa, apenas se
reconcilia com a cadeia, ou com a história, contornando o ponto anteriormente velado. Em sua
natureza de imagem, a lembrança ao mesmo tempo estancava o desfiladeiro dos significantes e
respondia ao convite do real com um véu, um anteparo frente a ele e, em última instância,
frente à própria verdade subjetiva que aí permanecia encoberta.

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Piaget, J. & Inhelder, B. (1979). Memória e inteligência. Rio de Janeiro: Artenova. [ Links ]

Recebido em 20.03.99
Revisado em 12.06.99
Aceito em 15.06.99

Sobre a autora:

1 Angélia Bastos é Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora do
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ e Psicanalista.

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