Octavia Butler

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO


DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

CAMILE FERNANDES BORBA

Kindred – laços de sangue de Octavia Butler: Uma ode à memória sob o manto
da ficção

Recife
2021
CAMILE FERNANDES BORBA

Kindred – laços de sangue de Octavia Butler: Uma ode à memória sob o manto
da ficção

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal de Pernambuco,
como requisito parcial à obtenção do Título
de Mestra em Letras.

Área de concentração: Teoria da


Literatura

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Cesar Maia


Ferreira Filho

Recife
2021
Catalogação na fonte
Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira – CRB-4/2223

B726k Borba, Camile Fernandes


Kindred – laços de sangue de Octavia Butler: uma ode à memória sob
o manto da ficção / Camile Fernandes Borba. – Recife, 2021.
99p.

Orientador: Eduardo Cesar Maia Ferreira Filho.


Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro
de Artes e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.

Inclui referências.

1. Memória. 2. Octavia Butler. 3. Poder. 4. Representação.


5. Identidade. I. Ferreira Filho, Eduardo Cesar Maia (Orientador). II. Título.

809 CDD (22. ed.) UFPE (CAC 2021-99)


CAMILE FERNANDES BORBA

Kindred – laços de sangue de Octavia Butler: Uma ode à memória sob o manto
da ficção

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal de Pernambuco,
como requisito parcial à obtenção do Título
de Mestra em Letras.

Aprovada em: 11/03/2021.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Cesar Maia Ferreira Filho (Orientador)
Universidade Federal de Pernambuco

____________________________________________
Prof. Dr. Fábio Cavalcante de Andrade (Examinador Interno)
Universidade Federal de Pernambuco

____________________________________________
Prof. Dr. Cristhiano Motta Aguiar (Examinador Externo)
Universidade Presbiteriana Mackenzie
A Rafael, meu irmão, pela semente plantada
A Eduardo, meu amor, pela companhia na colheita
A Octavia: por me fazer sonhar e acreditar no impossível
AGRADECIMENTOS

Este trabalho é mais íntimo e talvez diga mais sobre mim do que seria
recomendado dentro da Academia. Foi escrito em sob lágrimas e ansiedade, sob amor
e arroubos de inspiração. Sobretudo, sob a minha admiração e paixão pelo trabalho
de Octavia Butler. Talvez, tenha sido essa paixão a maior motivação do meu trabalho.
Entretanto, não se faz uma pesquisa acadêmica só com paixão, e para todos
os outros departamentos - que não meus arroubos apaixonados – tive mais ajuda do
que poderei agradecer. Aos meus, não pouparei palavras:
Ao meu companheiro – a quem eu devo o mínimo de sanidade que mantive
durante a escrita desse trabalho – agradeço todo o suporte à minha jornada. Seja pelo
colo, pelas leituras – e revisões – dos meus textos, seja pela paciência infinita em me
ouvir falar sobre Octavia ou Kindred mesmo sem fazer ideia do que eu estava falando,
às vezes. Obrigada por segurar a barra quando eu precisei me fazer ausente.
Obrigada pelas vezes que me obrigasse a parar e respirar – e descansar. Obrigada
por seres, por vezes, a contenção das minhas águas abundantes
À minha família – a quem devo tudo – obrigada por me ensinarem a amar e ser
amada e que a vida, embora nem sempre seja fácil, é boa de ser/ vale a pena ser
vivida:
Aos meus pais e padrasto, pelo tanto de apoio, acolhimento e incentivo durante
meu caminho.
Ao meu irmão, agradeço o empurrão nessa jornada doida: obrigada, Rafa, por
me dizer as palavras que eu precisava ouvir.
Às minhas avós – obrigada por me mostrarem a força do matriarcado.
Ao meu tio Dudu (in memorian): obrigada por tudo que você me deu no nosso
breve encontro nessa vida.
À minha sogra, Lilia, agradeço o acolhimento em seu coração tão generoso.
Obrigada por ter sido tantas vezes a minha base e força nesse último ano.
Aos meus muitos amigos: obrigada. Por torcerem, celebrarem, incentivarem
minha pesquisa e minha pessoa. Na impossibilidade de agradecer a todos, preciso
destacar àquelas que foram indispensáveis nessa caminhada:
- Julianna, obrigada por me indicar o livro que mudou minha vida.
- Rahissa, obrigada por embarcar na minha loucura e me guiar nos caminhos
insólitos da vida acadêmica.
- Thê e Lucas, obrigada por tanto e por me lembrarem que a vida é boa.
- Vivi, obrigada por ser a raiz nas minhas emoções e o senso prático nas minhas
loucuras.
Aos amigos que fiz no mestrado: sem vocês, muito da graça disso tudo se
perderia. Obrigada pelas trocas, pelo carinho, pelo apoio. Foi uma honra dividir um
pouco da vida com vocês! Larissa (o Terraço e o Aquarela sempre me lembrarão
você), Sam (obrigada por tanto), Jake, Wilck, Isabella, Pedro, Márcia, Liv, Deividy,
Andrezza, Nom, Nilson obrigada por tantos momentos especiais, vocês são incríveis.
Agradeço ao PPGL – em especial aos professores – por todo o conhecimento
e suporte nessa caminhada.
Ao meu orientador – Eduardo Cesar Maia – os meus mais sinceros
agradecimentos. Obrigada pela escuta sempre disponível e pela orientação sempre
precisa (e por acalmar o coração da orientanda ansiosa). Obrigada por encarar de
cabeça aberta um projeto tão distante da tua área e, ainda assim, me trazer leituras
essenciais. Obrigada por Rorty (e pelo primeiro B do mestrado, me ensinou muito).
Obrigada pela liberdade e pelas portas abertas. Foi massa!
A Lourival por ser, para mim, Mestre – que me mostrou ser possível existir na
Academia saber e afeto – obrigada por todas as vezes que viu no meu trabalho algo
digno de ser notado.
Agradeço à CAPES pelo fomento que possibilitou essa jornada.
RESUMO

Primeira autora negra a escrever ficção científica na tradição literária norte-


americana, Octavia Butler, grande “dama da ficção científica”, em Kindred – laços de
sangue, usa a viagem no tempo como recurso narrativo para deslocar temporalmente
a protagonista, Dana – uma mulher negra dos anos de 1970 – para o sul escravista
dos estados unidos, no século XIX, assim, escreve um romance-resposta ao
imaginário norte-americano pós-abolição, repleto de estereótipos racistas. Quando
desloca a narrativa do plano do “real”, a autora convida o leitor a, através de Dana,
observar os horrores da escravidão e questioná-los. Além disso, foi no seio do
romance que a norte-americana questionou os espaços de memória reservados
àqueles que não podem recordar. Portanto, esta pesquisa pretende investigar o uso
que a autora faz do romance – em especial para novas formas de representação da
mulher negra e recuperação e preservação da memória –, além de refutar a
classificação da obra como ficção científica. Pretende-se, também, observar como foi
através da literatura e do fazer literário que Octavia Butler pôde construir e reconstruir
as identidades, questionar as relações de poder, o racismo e explorar as
potencialidades da existência, a começar pela dela mesma.

Palavras-chave: Memória. Octavia Butler. Poder. Representação. Identidade.


ABSTRACT

In Kindred, Octavia Butler, the first female black author to write science fiction
in the American literary tradition, shifts the narrative away from reality, through the use
of time travel, to write a novel that goes against the American post-abolition imaginary,
filled with racist stereotypes. As the protagonist – a black woman from the 1970s – is
transported through time to the pre-abolitionist South of the United States in the 19th
century, the author invites the reader to, through Dana, experience the horrors of
slavery. Moreover, in this novel, the author questions what spaces of memory are
reserved for those who cannot remember. Therefore, this research aims to investigate
the author's use of the novel – especially regarding new forms of representation of
black women, and recovery and preservation of memory – in addition to refuting the
novel’s usual classification under science fiction. It is also intended to analyse how,
through literature and literary work, Octavia Butler was able to build and rebuild
identities, question power relations, racism, and explore the potentialities of existence,
starting with her own.

Keywords: Memory. Octavia Butler. Power. Representation. Identity.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................10
2 OCTAVIA BUTLER: UMA BREVE APRESENTAÇÃO DA
“GRANDE DAMA DA FICÇÃO CIENTÍFICA” E DO ROMANCE
KINDRED – LAÇOS DE SANGUE...................................................................13
2.1 Octavia Estelle Butler: uma ilustre desconhecida para o público
brasileiro..........................................................................................................13
2.2 A obra singular de Octavia Butler: recepção crítica e inovações
literárias......................................................................................................... ..19
2.3 "Questões de gênero" – Kindred – laços de sangue: o romance
no limbo dos gêneros.......................................................................................27
3 ESPAÇOS DE MEMÓRIA E AS RELAÇÕES DE PODER EM
KINDRED – LAÇOS DE SANGUE...................................................................38
3.1 Breves considerações sobre o estudo da memória..........................................38
3.2 Memória e poder: quem pode recordar? O resgate da memória
no seio do romance..........................................................................................52
4 OCTAVIA BUTLER: EXPLORADORA DAS POSSIBILIDADES
DA EXISTÊNCIA.............................................................................................67
4.1 Novas formas de representação da mulher negra e do imaginário
cultural pós-abolição .......................................................................................67
4.2 Dana e a jornada da violência na construção da personagem
sobrevivente.....................................................................................................82
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................95
REFERÊNCIAS...............................................................................................98
10

1 INTRODUÇÃO

Escrevi sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco. Esta é a
epígrafe de Kindred – laços de sangue (2017), romance da autora norte-americana
Octavia Butler e objeto da presente pesquisa. Na epígrafe, encerra-se a síntese da
literatura de Butler, cujo pioneirismo literário é somente uma de suas qualidades.
Construiu-se autora e exaltou o fazer literário como a sua “obsessão positiva”: “A
obsessão positiva tem a ver com não ser capaz de parar apenas porque você está
com medo e cheia de dúvidas. A obsessão positiva é perigosa. Tem a ver com não
ser capaz de parar de jeito nenhum” (BUTLER, 2020, p. 148).
Em meio ao mar de dúvidas por aventurar-se a escrever fantasia e ficção
científica – seara dominada por homens brancos – Octavia persistiu e frutificou. Culpa
da obsessão positiva que estimulou a jovem Octavia a lançar-se na jornada incerta de
construir-se autora quando parecia impossível que uma jovem negra, crescendo em
meio a um regime de segregação racial, pudesse escrever – e ser lida – ficção
científica e fantasia. Foi a obsessão positiva que a fez continuar a construir mundos
fantásticos e narrativas sensíveis ainda que recebesse pilhas de cartas de rejeição. A
obsessão positiva fez de Butler uma escritora do momento em que decidiu sê-lo, ainda
muito jovem, até o momento em que faleceu precocemente, aos 59 anos. Enquanto
literatura, com toda a sua potência, foi a obsessão positiva de Octavia Butler, ela é a
minha obsessão positiva.
Escolher como objeto de pesquisa uma autora não só pouco conhecida, como
também inserida em uma tradição literária não tão comumente estudada na
Academia, foi desafiador e, na mesma medida, satisfatório. Sobre Butler, são
escassos os estudos e pesquisas acadêmicas, embora não falte o que dizer de sua
obra. Pioneira ao se consagrar a primeira autora Norte – americana negra de ficção
científica, Octavia lançou um olhar sobretudo afetivo, além de questionador, sobre as
condições de existência de corpos distantes do padrão hegemônico de poder –
masculino e branco – trazendo-os para o centro de suas narrativas, para, então, entre
cenários fantásticos, tecer histórias sobre a complexidade e pluralidade da existência
humana.
À mulher negra, na obra de Butler, é dada a possibilidade de existir nos mais
diversos papéis, sempre no centro da narrativa e sempre perpassada pelas questões
de gênero e raça. Butler escreve sobre relações hierárquicas de poder enquanto suas
11

protagonistas encarnam, em geral, os corpos mais destituídos desse poder – seja o


homem grávido do conto Filhos de Sangue, seja a mulher negra contemporânea
vivendo a escravidão de Kindred – laços de sangue.
Sua prosa sensível se debruça, também, sobre as complicadas relações
humanas, os laços que as unem e os conflitos que estabelecem. Em Kindred, Butler
trabalha um dos temas recorrentes de sua literatura: a escravidão, e o faz,
simultaneamente, da maneira mais tradicional e inusitada. Explico: ela vai tratar da
escravidão no contexto das fazendas escravocratas do sul dos Estados Unidos, mas,
para isso, usará a viagem no tempo como recurso narrativo para ensejar a ação no
romance. No centro da ação, está Dana, uma mulher negra, e é nessa figura que a
obra singular de Butler se fixará.
bell hooks, teórica feminista, ao dissertar sobre a experiência da mulher
escravizada, destaca que o racismo das mulheres brancas e o sexismo dos homens
negros excluíam a mulher negra, duplamente oprimida, das lutas sociais, desde o fim
da escravidão, quase como se a elas coubesse apenas uma luta à parte, um sujeito
secundário na dicotomia homem negro – mulher negra e também na dupla mulher
branca – mulher negra. Sempre aliada, nunca protagonista:
Nenhum outro grupo nos estados unidos teve sua identidade socializada tão
à parte da existência quanto o das mulheres negras. É raro sermos
reconhecidas como um grupo distinto dos homens negros, ou como parte
integrante do grupo maior ‘mulheres’, nesta cultura. Quando falam sobre
pessoas negras, o sexismo milita contra o reconhecimento dos interesses das
mulheres negras; quando falam sobre mulheres, o racismo milita contra o
reconhecimento dos interesses de mulheres negras. Quando falam de
pessoas negras, o foco tende a ser homens negros; e quando falam sobre
mulheres, o foco tende a ser mulheres brancas.” (HOOKS, 2019, p. 26-27)

Engenhosamente, e gozando da liberdade da fantasia, é em torno das


mulheres negras do romance que Butler forja exemplos literários com os quais
explorará os mais diversos modelos de coragem. Como objeto de pesquisa, o
romance evoca a ficção como um espaço de recuperação e de redescrição: no campo
imaginativo, através dos olhos de uma mulher negra encarnando a experiência
escrava, Octavia nos propõe olhar para trás e para si. O romance-resposta ao
imaginário racista das décadas de 1960 é, também, um expurgo pessoal:
Passei grande parte da minha infância com vergonha do que ela fazia, e acho
que uma das razões pelas quais escrevi Kindred foi para resolver meus
sentimentos, porque afinal de contas, eu comia por causa do que ela fazia ...
12

Kindred é uma espécie de reação a algumas das coisas que aconteceram


durante os anos 60, quando as pessoas tinham vergonha, ou até mesmo
raiva, de seus pais por não terem melhorado as coisas mais rápido, e eu
queria pegar uma pessoa de hoje e mandá-la de volta à escravidão. Minha
mãe nasceu em 1914 e passou a primeira infância em uma plantação de
açúcar na Louisiana. Pelo que ela me contou, não era muito distante da
escravidão, a única diferença era que eles podiam ir embora, o que
eventualmente acabaram fazendo. (BUTLER, 1986, p. 496)1

Ela não esconde os sentimentos que a acometiam e escreve para tentar olhar
para o passado com compaixão, resgatando, por meio da ficção, uma memória
possível de pessoas cujos relatos e memórias não foram preservados pela história. A
vergonha da escravidão não deveria recair sobre os que descenderam dos
escravizados. Escrever sobre uma autora singular me pareceu exigir uma estrutura
de texto menos engessada, sem a separação e distinção de teorias e análises
literárias, me pareceu preferível, no lugar disso, organizar os capítulos da pesquisa
em eixos temáticos sobre os principais pontos da obra que me moveram a empreender
essa jornada de estudo.
Sendo este o primeiro capítulo, devo anunciar que o segundo servirá como uma
apresentação da autora e do romance; destacando os aspectos singulares de seu
fazer literário, a recepção crítica de sua obra e a polêmica que cerca o romance desde
que foi publicado: a classificação do livro como ficção científica, embora, não haja
ciência. Na terceira parte desta pesquisa, o eixo temático será a memória e, em um
primeiro momento, lançarei um breve olhar sobre diversos tratamentos dados ao
estudo da memória e sua relação com a história e a ficção. Em seguida, pretendo
refletir sobre a relação da memória e do poder, e sobre o local – social e até espacial
– destinado à memória das mulheres, além de pensar sobre o papel da literatura e da
ficção como meios de recuperação e reescrita da memória e da história através da
análise do romance. Para a quarta e última parte deste trabalho, escolhi como eixo
temático as reformulações do imaginário que ela propõe com sua literatura. Neste
capítulo, me debruçarei sobre a redescrição e questionamento dos estereótipos
representacionais reservados às mulheres negras na ficção e a construção de Dana
como uma personagem sobrevivente.

1
Todas as traduções dos materias indisponíveis em português são nossas.
No original: I spent a lot of my childhood being ashamed of what she did, and I think one of the reasons
I wrote Kindred was to resolve my feelings, because after all, I ate because of what she did ... Kindred
was a kind of reaction to some of the things going on during the sixties when people were feeling
ashamed of, or more strongly, angry with their parents for not having improved things faster, and I
wanted to take a person from today and send that person back to slavery. My mother was born in 1914
and spent her early childhood on a sugar plantation in Louisiana. From what she's told me of it, it wasn't
that far removed from slavery, the only difference was they could leave, which eventually they did.
13

2 OCTAVIA BUTLER: UMA BREVE APRESENTAÇÃO DA “GRANDE DAMA


DA FICÇÃO CIENTÍFICA” E DO ROMANCE KINDRED – LAÇOS DE SANGUE

2.1 Octavia Estelle Butler: uma ilustre desconhecida para o público brasileiro

Autora de 12 romances e duas coletâneas de contos, Octavia Estelle Butler,


nascida em 1947, em Pasadena, Califórnia, até recentemente era uma ilustre
desconhecida para o público brasileiro. Ainda que publique desde a década de 1970,
apenas recentemente ganhou sua primeira tradução para o português. Kindred - laços
de sangue, seu quarto romance, publicado em 1979 e considerado sua obra-prima,
teve uma tradução tardia, apenas em 2017, pela editora Morro Branco, que desde
então se dedica à tradução e publicação de outros trabalhos da autora. Abordando
temas como gênero, raça, e relações de poder, a norte-americana passou os olhos
pelo passado, abordando a escravidão sob um olhar contemporâneo, e especulou
sobre futuros possíveis, através das suas distopias e narrativas de ficção científica.
Embora a ausência de tradução para o português tenha se mostrado uma barreira
considerável para o público brasileiro, a boa recepção da tradução de suas obras
demonstra que, ainda que escrito há algumas décadas, seus romances permanecem
atuais e pertinentes.
Filha de um engraxate e uma empregada doméstica, Octavia cresceu ouvindo
que uma mulher negra em suas condições jamais seria escritora. Sua mãe, Octavia
Margaret Guy, levava para casa as revistas e livros descartados nas casas em que
trabalhava; assim, a jovem Octavia teve acesso aos livros e revistas que os patrões
de sua mãe liam. Embora tenha sido criada em uma comunidade etnicamente diversa,
menos tolerante às práticas de discriminação racial, Butler não cresceu imune às
dificuldades de ser uma menina negra e pobre em meio às políticas de segregação
racial2.
Disléxica, com mais de 1,80, e tímida, Octavia acabava por se refugiar em meio
aos livros. Ávida leitora de ficção científica, ainda criança pediu uma máquina de

2
As leis Jim Crow, que estabeleciam regras rígidas e segregacionistas para convivências entre pessoas
negras e brancas nos Estados Unidos da América.
14

escrever à sua mãe. Foi quando ouviu de uma tia que garotas negras como ela nunca
seriam escritoras, como relata em um ensaio:

– Quero ser escritora quando eu crescer – falei.


– Quer? – perguntou minha tia – Ah, que legal, mas você também vai precisar
arrumar um emprego.
– Escrever vai ser meu emprego – respondi.
– Você pode escrever quando quiser. É um passatempo ótimo. Mas vai ter
que ganhar a vida.
– Como escritora.
– Não seja boba.
– Estou falando sério.
– Querida... pessoas negras não podem ser escritoras.
– Por que não?
– Apenas não podem.
– Elas também podem, sim!
Eu tinha mais convicção quando não sabia do que estava falando. Durante
meus treze anos, eu nunca havia lido uma palavra impressa que eu soubesse
ter sido escrita por uma pessoa negra. Minha tia era adulta. E se ela estivesse
certa? (BUTLER, 2020, p. 141)

Entretanto, contrariando a previsão da tia, Octavia não só conseguiu ser


publicada como, em vida, recebeu diversos prêmios. Interrogada sobre quando e
como começou a escrever ficção científica, ela declarou que: “Quando eu estava
assistindo um filme ruim de ficção científica e decidi que podia escrever uma história
melhor que aquela. E eu desliguei a TV a comecei a escrever, e tenho escrito ficção
científica desde então.” (1986, p. 14)3. Essa primeira história acabou servindo como
base para sua série de estreia: Patternist, ainda sem tradução para o português.
Beaulieu (2006), em Writting African American women: An Encyclopedia of
literature by and about women of color, vol. 1 and 2, mostra que Butler preparou-se
academicamente para uma vida de escrita, não somente fazendo aulas na
Universidade da Califórnia e aceitando mentores, como também realizando trabalhos
menos qualificados e remunerados, mas, que lhe permitiam dedicar-se à escrita:
Butler estudou na Pasadena City College e na California State University em
Los Angeles, e teve aulas noturnas de redação na University of California em
Los Angeles. Durante vários anos, ela trabalhou em vários empregos
temporários para ter tempo de escrever ficção. (Sua descrição, em Kindred,

3
No original: When I was watching a bad science fiction movie and decided that I could write a better
story than that. And I turned off the TV and proceeded to try and I’ve been writing Science fiction ever
since.
15

das lutas de Dana para garantir a sobrevivência enquanto escreve e envia


manuscritos, é baseada em suas próprias experiências.) Eventualmente,
Butler encontrou mentores que lhe deram apoio, primeiro no Writers Guild of
America e depois no Clarion Science Fiction Writers Workshop, do qual ela
participou em 1970. Ela agradeceu especialmente a Sid Stebel, Harlan Ellison
e Theodore Sturgeon (ela teve aulas com os dois últimos) por ensinarem-lhe
os detalhes de como preparar um manuscrito para publicação e encorajando-
a a continuar escrevendo. (p. 139-140)4

Assim como os tios da protagonista de Kindred, a mãe de Octavia também gostaria


que a filha fosse secretária e possuísse uma carreira estável; desse modo, ela teria
mais do que as mulheres de sua família até então. Na infância, a mãe da autora
trabalhara em uma plantação de açúcar e passou a vida como empregada doméstica,
tais vivências maternas influenciaram a escolha dos temas abordados por Bulter. Em
entrevista concedida a Randall Kenan, em 1991, a autora declara que:

Kindred, surge como uma resposta de Octavia ao imaginário pós-abolição que


envergonhava os descendentes dos escravizados, como uma resposta aos que
culpavam os cativos do passado pelo racismo sofrido no presente. No romance, ela
leva o leitor ao passado escravista dos Estados Unidos através dos olhos de Dana
Franklin, mulher negra e escritora, contemporânea dos anos de 1976, que,
involuntariamente, viaja no tempo para uma Maryland escravista pré-Guerra Civil. No
dia de seu aniversário de vinte e seis anos, Dana sente-se tonta e desperta dentro de
um rio, onde um menino branco e ruivo se afogava. Instintivamente, salva o menino:
Rufus. Ameaçada pelo pai do garoto, ela volta ao seu tempo. Nessa primeira viagem,
as duas leis que regerão as viagens de Dana são delineadas: ela vai para o século
XIX quando Rufus corre perigo e volta ao presente quando a sua própria vida está em
risco.
O motivo pelo qual ela precisa, repetidas vezes, salvar o garoto é porque ele é
seu antepassado, e salvar a vida dele garantirá sua existência e a da sua família no

4
No original: Butler attended Pasadena City College and California State University at Los Angeles and
took writing classes at the University of California at Los Angeles at night. For several years, she worked
a variety of temp jobs in order to have time to write fiction. (Her depiction in Kindred of Dana’s struggles
to make ends meet while she writes and sends off manuscripts draws on her own experiences.).
Eventually Butler began to meet supportive mentors, first at the Writers Guild of America and then at
the Clarion Science Fiction Writers Workshop, which she attended in 1970. She especially credited Sid
Stebel, Harlan Ellison, and Theodore Sturgeon (she took classes from the latter two) with teaching her
the nuts and bolts of preparing a manuscript for publication and for encouraging her to keep writing. (p.
139- 140)
16

presente. Dana precisa assegurar que Rufus e Alice gerem Hagar, tataravó dela;
entretanto, nem sempre será fácil para Dana escolher salvar Rufus no lugar dos que
mais se parecem com ela. Embora suas existências estejam entrelaçadas, o tempo
passa de maneira distinta entre passado e presente. Ao mesmo tempo em que Dana
perde apenas um ano de sua vida nessa jornada, esteve presente em praticamente
toda a vida de Rufus, acompanhando-o pela infância, juventude e idade adulta.
Enquanto no presente se passam algumas horas ou até poucos dias, no passado
podem se passar meses e anos, por isso, entre idas e vindas, Dana pode observar o
crescimento de Rufus e as escolhas que ele fez da vida, além de poder acompanhar
o destino dos demais personagens. Enquanto se faz presente na vida das pessoas da
Fazenda Weylin de modo inconstante e imprevisível, ela permanece na memória
daqueles que vivem e trabalham
Durante as seis viagens que faz para o século XIX, uma delas acompanhada
de seu marido, não são poucas as vezes em a protagonista precisa salvar seu
antepassado, quando, não necessariamente gostaria de fazê-lo, pois, os constantes
salvamentos acabam eximindo Rufus das consequências de seus atos e Dana tem
consciência disso. Ainda assim, o laço entre eles – daí o nome do romance – é
formado de maneira tão intensa, que, em determinado momento, Dana ama e odeia
Rufus ao mesmo tempo. Deseja livrar-se dele e ao mesmo tempo salvá-lo de tornar-
se, por completo, um homem de seu tempo.
Trataremos das peculiaridades e das situações específicas geradas pelas
viagens no tempo com detalhes nos capítulos seguintes, porém, é importante destacar
que Kindred mantém e continua a tradição da autora de tratar tematicamente questões
de raça, gênero e relações de poder. Além da protagonista, Butler coloca nesse
romance outras mulheres negras, partindo de estereótipos veiculados e alimentados
pelo imaginário racista pós-abolição, e os subvertendo. Ainda que Octavia não seja a
primeira a tratar das questões da mulher negra ou da mulher negra durante a
escravidão, é a primeira a fazê-lo no campo da ficção especulativa e científica.
Protagonistas não-brancas, mulheres como protagonistas, discussões sobre
poder e ausência dele, questões raciais e ambientais, sociedades em crise, diversas
modalidades de escravidão, o personagem sobrevivente, são todos tópicos e temas
repetidamente tratados por Butler em sua ficção. A Editora Morro branco tem traduzido
os romances de Butler desde 2017, começando com Kindred – laços de sangue, tendo
em seguida lançado os romances A parábola do semeador, A parábola dos talentos,
17

Despertar, Ritos de passagem e a coletânea de contos Filhos de sangue e outras


histórias nos anos seguintes.
A duologia A parábola do semeador (1995 [2018]) e A parábola dos talentos
(1998 [2019]), este vencedor dos prêmios Nebula Award for best novel e o Arthur C.
Clarke Award, traz a história de Lauren Olamina no futuro distópico de 2020, quando
os Estados Unidos, e o mundo, entraram em um colapso social, ambiental e
econômico. Sociedades muradas e cidades industriais – que pagam seus moradores
com segurança, casa e comida – são a solução para se fugir da violência, dos
sequestros que terminam em trabalhos forçados – e estupros – e dos que vivem fora
dos muros:

Eu li que o período de revolta aos quais os jornalistas começaram a se referir


como “o Apocalipse” ou, mais comumente, mais amargamente, “a Praga”,
durou de 2015 até 2030 - uma década e meia de caos. Isso é inexato. A Praga
tem sido um tormento muito mais comprido. Começou bem antes de 2015,
talvez até antes até da virada do milênio. Não terminou. Eu também li que a
Praga foi causada pela coincidência acidental de crises climáticas,
econômicas e sociológicas. Seria mais honesto dizer que a Praga foi causada
por nossa própria recusa em lidar com problemas óbvios nessas áreas.
Causamos os problemas; em seguida, nos sentamos e observamos se
tornarem crises. Ouvi pessoas negando isso, mas, nasci em 1970. Pude ver
o suficiente para saber que é verdade. Vi a educação tornar-se mais um
privilégio dos ricos do que a necessidade básica que precisa ser se quisermos
que a sociedade civilizada sobreviva. Observei a conveniência, o lucro e a
inércia serem desculpas para uma degradação ambiental maior e mais
perigosa. Vi a pobreza, a fome e a doença se tornarem inevitáveis para cada
vez mais pessoas. (BUTLER, 2019, p. 19)

Lauren sofre de uma condição que torna a sua sobrevivência ainda mais difícil:
tem hiperempatia. Quando vê o sofrimento de outro ser vivo, sente em seu corpo a
mesma dor, o que é um pesadelo quando se está cercada de violência. O caminho
para a sobrevivência, para Olamina, é a Semente da Terra, algo entre religião, filosofia
e poesia. Tendo por base a Semente da Terra, Lauren funda Bolota, uma comunidade
etnicamente diversa que tenta sobreviver em um contexto social e político que elegeu
um presidente ultra religioso e conservador, cujo lema de campanha é: “Tornar a
América grande novamente”.
Já a trilogia Xenogênse composta por Despertar (1987 [2018]), Ritos de
passagem (1988 [2020]), e Imago (1989) (inédito em português), começa com o
despertar de Lilith, protagonista da história, que foi mantida em animação suspensa
por 250 anos e é despertada para cumprir um papel específico: liderar o repovoamento
da Terra, agora em condições selvagens, e atuar como a mãe de uma nova geração
18

de seres humanos. A humanidade e a Terra foram salvas da completa destruição por


uma raça alienígena, os Oankali, que possuem habilidades e tecnologias
impressionantes na mesma medida em que sua aparência é repulsiva. Nos romances
seguintes, Butler aprofunda os desdobramentos dessa hibridização e intensifica a
discussão sobre o que nos faz humanos.
Em comum, os romances aqui citados trabalham de maneiras diversas a
escravidão, seja no passado ou no futuro, física ou psicológica, entre humanos ou
entre espécies. Sobre os tipos de mundos que escrevia, Octavia declarou em uma
entrevista que: “Na verdade, nunca projetei uma sociedade ideal. Não escrevo ficção
científica utópica porque não acredito que humanos imperfeitos possam formar uma
sociedade perfeita.” (Butler, 1986, p.14, tradução nossa.)5
A descrença da autora no que diz respeito à natureza humana reflete em suas
obras, ela tende a retratar a humanidade no que ela tem de mais sombrio, embora,
em contraponto, crie personagens cujas trajetórias são marcadas pela esperança e
baseadas na sobrevivência.
Dona de uma obra múltipla, que inovou ao abordar temas que não faziam parte
do escopo da ficção especulativa até então, recebeu diversos prêmios, como o Nebula
Award e o Hugo Award6, ambos mais de uma vez, que a fizeram ser a primeira autora
negra a ser reconhecida no campo da ficção especulativa nos Estados Unidos. Em
1995, também recebeu o prêmio MacArthur Fellowship, concedido apenas aqueles
que se destacaram em seus ofícios, como mencionado no obituário escrito no Times
Colunist, jornal canadense: “em 1995, Butler foi a primeira autora de ficção científica
que recebeu o prêmio de “genialidade” da John D. and Catherine T. MacArthur
Foundation, que pagava US$ 295.000 dólares durante um período de tempo de cinco
anos” (2006)7. Além disso, a Pasadena City College criou uma bolsa de estudos com
seu nome. Octavia Butler faleceu em 2006, aos 58 anos, deixando uma obra que ainda
se mantém influente e vem sendo bem recebida entre o público brasileiro. Kindred –

5
No original: “I've actually never projected an ideal society. I don't write Utopian science fiction because
I don't believe that imperfect humans can form a perfect society.”
6
Premiações importantes no campo da ficção especulativa. O Nebula Award é oferecido aos melhores
trabalhos de ficção científica/fantasia por dois anos seguidos e o Hugo Award à melhor obra de ficção
científica/ fantasia do ano anterior.
7
No original: In 1995, Butler was the first science fiction writer granted a ‘genius’ award from the John
D. and Catherine T. MacArthur Foundation, wich paid $295.000 US over five years.
19

laços de sangue, por exemplo, vendeu mais de meio milhão de cópias no mundo
inteiro. Em seu obituário, no jornal canadense The Gazette, temos:

A primeira criação de Octavia Butler no mundo da ficção científica foi ela


própria. Antes que alguém lhe dissesse que meninas negras não crescem
para escrever sobre mundos futuristas, Butler, filha de um engraxate com
uma empregada doméstica, já estava construindo um lugar para si mesma
em um universo dominado pelos brancos. (STEWART, 2006, p. 34)8

Foi através da literatura e do fazer literário que Octavia Butler pôde construir e
reconstruir identidades, questionar relações de poder, o racismo e explorar as
potencialidades da existência, a começar por sua própria.

2.2 A obra singular de Octavia Butler: recepção crítica e inovações literárias

Octavia Butler, embora vencedora de prêmios importantes dentro do escopo da


ficção científica e habitualmente lembrada e celebrada como “grande dama da ficção
científica”, não se definia por esse título. Apesar do grande sucesso e prestígio no
campo da ficção científica, a visão que tinha de si mesma era mais abrangente: dizia
que era escritora apenas, não limitada por um gênero específico. Para Octavia, seu
público em potencial seria formado somente por mulheres, feministas e pessoas
negras, exatamente os perfis dos que não faziam parte do escopo representacional
da ficção científica na época em que ela começou a publicar. Havia, até então, uma
carência de um público leitor menos homogêneo – que não fosse branco ou masculino
– e de escritores nos moldes de Octavia. Butler foi inegavelmente pioneira. É
considerada pela crítica acadêmica a primeira autora negra norte-americana no
campo da ficção científica. O The Cambridge Companion to the African American
novel trata de Octavia nos seguintes termos:
Octavia Butler, que começou a escrever ficção científica depois de participar
de um workshop com Delany nos anos 1960, foi a primeira mulher afro-
americana a publicar no campo da ficção científica. Seus muitos romances,
embora ambientados em múltiplos universos, realidades e períodos de
tempo, se encaixam perfeitamente na tradição literária afro-americana (e
também na feminista). (2004, p. 164, tradução nossa.)9

8
No original: Octavia Butler's first creation in the world of sicence fiction was herself. Before anybody
ever told her that black girls do not grow up to write about futuristic worlds, Butler, the daughter of a
shoeshine man and a maid, was already fashioning a place for herself in a white-dominated universe.

9
No original: Octavia Butler, who started writing science fiction after she attended a workshop with
Delany in the 1960s, was the first African American woman to publish in the field of science fiction. Her
20

Em uma reportagem do jornal The Evening Sun, de Baltimore, de maio de 1980,


o autor destaca a participação de Butler na associação de escritores de ficção
científica e ressalta que ela faz parte dos “quatro autores negros” que escrevem ficção
científica:
As escritoras descobriram esse meio-termo e, na última década, o minaram
sem piedade. Surpreendentemente, os escritores negros não. Mulheres
autoras como Ursula K LeGuin, Joanna Russ e Mary Staton alcançaram a
proeminência escrevendo personagens femininas e temas femininos. Porém,
dos cerca de 400 membros da comunidade dos Escritores de Ficção
Científica da América - uma comunidade unida que diz incluir quase qualquer
pessoa que já fez algo relacionado com a área - apenas quatro são negros.
Dos quatro, apenas dois - Samuel R. Delaney, do Harlem, NY, e Octavia
Butler, de Los Angeles - ganharam estatura na área. (HALL, 1980, p. 13,
tradução nossa).10

A escassez de pessoa negras no campo da ficção científica se fazia perceber


também entre o público leitor. Hall destaca o parco número de leitores negros: “E dos
milhares de fãs que participam de convenções de ficção científica todo ano, uma
porcentagem muito pequena é de pessoas negras” (Hall, 1980, tradução nossa)11.
Consolidar-se como uma autora importante e comerciável num campo dominado por
autores brancos é, na realidade, um feito notável, principalmente tendo em vista que
a autora constrói seus enredos em torno de mulheres negras que transcendem de
algum modo a escravidão – seja ela física ou mental –, personagens até então pouco
presentes ou até mesmo inexistentes na ficção especulativa. Tal feito foi plenamente
reconhecido em um de seus obituários: “Ao longo dos anos, Butler, autora da obra
seminal Kindred, ganhou a distinção de ser a ‘primeira-dama’ de um pequeno círculo

many novels, though set in multiple universes, realities, and time periods, squarely fit into the African
American (and also the feminist) literary tradition.

10
No original: Woman writers have discovered this middle ground and in the last decade have mined it
mercilessly. Surprisingly, blacks have not. Woman writers such as Ursula K LeGuin, Joanna Russ, and
Mary Staton have written their way to prominence featuring female characters and feminine themes. But
of the 400 or so members of the Science Fiction Writers of America – a close-knit community said to
include nearly anyone who has ever done anything connected with the field – only four writers are black.
Of the four, only two – Samuel R. Delaney, of Harlem, NY and Octavia Butler, of Los Angeles – have
gained stature in the field.

11
No original: And of the thousands of fans attending Science fiction conferences all over the country
each year, a very small percentage is black.
21

de escritores negros de ficção especulativa - ficção científica, horror e fantasia.”


12(STEWART, 2006, p. 34, tradução nossa).
No que concerne às questões de representação, Butler trouxe o corpo até então
desprezado para o centro da narrativa. Contrariando os modelos de representação de
meados dos anos 1970 e 1980, Butler constrói histórias com os mais diversos corpos,
tanto como protagonistas, quanto como antagonistas; as etnias e os gêneros não
delimitam os papéis em sua ficção. Hall (1980) aborda um aspecto interessante sobre
o lugar estereotipado reservado às pessoas não-brancas na ficção científica daquele
momento:

Um tema comum nos primeiros dias da ficção científica era o que Sam
Delaney chamava de “navios das Nações Unidas", com uma tripulação de um
negro, um oriental, um branco americano e um russo. O negro e o oriental
morrem cedo, o americano e o russo começam atacando um ao outro, mas
aprendem a coexistir no final. (Hall, 1980, tradução nossa)13

Na trilogia Xenogênese, por exemplo, a protagonista é uma mulher negra, mas


a sociedade que os humanos formam – ou são forçados a formar – para repovoar a
terra é completamente multicultural e multirracial. No entanto, é inegável que a
ausência de poder de certos corpos ainda se faz presente em sua literatura, pois,
ainda que em cenários distópicos ou maravilhosos, ela reproduz as relações sociais
de poder a que está acostumada, embora o faça com uma postura questionadora. Ela
usa a ficção para interrogar e propor novos olhares sobre certas questões já ditas,
mas sem esquecer do caráter artístico e de engenho da literatura.
Dona de uma prosa fluida, Octavia consegue abordar temas difíceis – de serem
escritos e lidos – com a sensibilidade própria de quem respeita os elementos que
compõem sua narrativa. Embora suas histórias sejam marcadas por violência – traço
constante em sua literatura – ela não o faz pelo mero prazer de descrevê-la, ela tem
um propósito. Butler é uma contadora de histórias e por isso constrói cenários vívidos,
ainda que por vezes improváveis, usando descrições metafóricas dos espaços e dos
corpos. É como se o fazer literário fosse um grande mar de possibilidades e vivências

12
No original: Over the years Butler, author of the seminal work Kindred, had earned the distinction of
being the "first lady" of a small tight-knit circle of black writers of speculative fiction - science fiction,
horror and fantasy.

13
No original: A common Science in the early days of science fiction was what Sam Delaney calls the
‘United Nations’ ships with a crew of one black, one oriental, one white American and one russian. The
black and the oriental were killed off early, the american and the russian start off at each others throats
but learn to coexist in the end. (Hall, 1980)
22

pelas quais a natureza humana e a sociedade podem ser vistas. É através de suas
histórias e força narrativa que Octavia explora as possibilidades da existência
humana. Como disserta Milan Kundera (2009) em A arte do romance:

Na verdade é preciso compreender o que é o romance. Um historiador conta


acontecimentos que se passaram. Por outro lado, o crime de Raskolnikov
nunca existiu. O romance não examina a realidade mas sim a existência. A
existência não é o que aconteceu, a existência é o campo das possibilidades
humanas, tudo aquilo de que é capaz. Os romancistas desenham o mapa da
existência descobrindo esta ou aquela possibilidade humana. Mas uma vez
mais: existir, isso quer dizer: “ser – no – mundo”. É preciso portanto
compreender o personagem e seu mundo como possibilidades. Em Kafka,
tudo isso é claro: o mundo kafkiano não se parece com nenhuma realidade
conhecida, ele é uma possibilidade extrema e não realizada do mundo
humano. É verdade que essa possibilidade transparece por trás de nosso
mundo real e parece representar de antemão nosso futuro. É por isso que se
fala da dimensão profética de Kafka. Mas mesmo que seus romances não
tivessem nada de profético, eles não perderiam seu valor, pois eles
apreendem uma possibilidade da existência (possibilidade do homem e de
seu mundo) e assim nos fazem ver quem somos, de que somos capazes. (p.
46, tradução nossa)

Embora se baseie em relatos históricos para a construção de sua narrativa,


Butler explora através de seus personagens, possibilidades de vivência. Por mais que
tenham existido milhares de Alices, Sarahs, Rufus e até Danas históricas, os
personagens são, no romance, experimentações do possível, levados até mesmo ao
limite do factualmente impossível, no caso da viagem no tempo. Butler poderia,
inclusive, deixar o enredo menos dentro do escopo da fantasia e mais no campo do
fantástico se as viagens de Dana não fossem comprovadas pelos outros personagens,
se elas ficassem no limite do real e do sonho. Por outro lado, ao materializar Dana no
espaço e no tempo em que ela volta, a autora lembra ao leitor que, ainda que se trate
de ficção, toda aquela dor não é mera ficção.
Um exemplo da força narrativa de Butler pode ser tirado do primeiro encontro
de Lilith com um Oankali, Jdahya, no primeiro romance da trilogia Xenogênese. O
alienígena possui uma aparência tão grotesca e improvável para Lilith que ela demora
várias páginas para conceber sua aparência tal como ela é. De início acredita ver um
homem muito alto, coberto de cabelos cinzas, depois percebe que o que ela achava
que era cabelo, na verdade, eram órgãos sensoriais. Em seguida, percebe que o que
interpretou como olhos e ouvidos eram esses órgãos sensoriais de um cinza mais
escuro e organizados nos lugares em que olhos e ouvidos normalmente existem nos
seres humanos.
23

A cada página Lilith percebe mais coisas sobre a aparência de Jdahya e leva o
leitor com ela, como se pudéssemos observar com seus olhos a estranheza do
alienígena. É nesse momento que Butler nos mostra os limites da linguagem, afinal,
como descrever o que a as palavras não alcançam? Como construir para o leitor uma
imagem tão estranha ao ser humano e tão diferente de tudo que conhecemos? Como
interpretar uma realidade tão estranha à linguagem humana? Butler o faz usando
metáforas e aproximações e a crescente familiaridade de Lilith em relação à nova
realidade que a cerca. No decorrer do romance, quando vai tomando o lugar que lhe
fora designado pelos Oankali, constrói um vocabulário que apreende melhor o novo
mundo em que vive.
O romance Kindred – laços de sangue, considerada sua obra prima, parece,
em retrospecto, deslocada do que a autora escreveu majoritariamente: distopias e
ficção científica. A classificação do romance entre a crítica variou: algumas resenhas
o descreveram como ficção científica; outras, como as do Los Angeles Times, que
publicou sobre Kindred nos anos de 1979 e 1981, respectivamente: “Kindred (...) é
tanto ficção científica quanto crônica histórica” 14 e “Kindred é sobre identidade e
história, e o fato de que aquele velho elemento da ficção científica, a viagem no tempo,
ser usado, é meramente incidental”15. Já a resenha do Statesman Journal (1979), de
Salem, diz que “a autora, normalmente uma escritora de ficção científica, fez de
‘Kindred’ um romance histórico com elementos de ficção científica”16.
Classificar o livro como ficção científica parece refletir a dificuldade da crítica e
do público de receber uma obra que não corresponde de maneira direta às
expectativas mais usuais dos gêneros a que poderia ser afiliado. Apegaram-se a um
elemento isolado – a viagem no tempo – e a partir dele encaixaram o romance na
classificação mais diretamente correspondente. Butler também declarou na entrevista
para Black Scholar que foi bastante difícil publicar Kindred porque, embora tenha
enviado o manuscrito para diversos editores, não houve consenso sobre em que
segmento publicar o livro. A expectativa acerca de uma obra de fantasia ou de ficção
científica é limitada a uma ideia bastante específica à qual o romance não faz jus.

14
No original: Kindred (...) is both science fiction and historical chronicale.

15
No original: Kindred is about identity and history, and the fact that old science fiction (...) device of
time travel is used is merely incidental.
16
No original: The author, normally a Science fiction writer, has made ‘Kindred’ an historical novel with
elements of science fiction.
24

Uma das poucas explicações dadas sobre o funcionamento da viagem no


tempo, que liga Dana e Rufus, apenas dá ao leitor uma noção básica do
funcionamento do deslocamento temporal e essa explicação não pretende mimetizar
a ciência:

- Mas como você chegou lá? Como chegou aqui?


- Assim. – Estalei os dedos.
- Isso não é resposta.
- É a única que tenho. Eu estava em casa, e então, do nada, estava
aqui ajudando você. Não sei como acontece, como me locomovo dessa
maneira, nem quando vai acontecer. Não consigo controlar.
- Quem consegue?
- Não sei. Ninguém – Não queria que ele pensasse que dava para
controlar. Muito menos se por acaso eu conseguisse mesmo.
- Mas... como é? O que a mamãe viu que não quer me contar?
- Provavelmente a mesma coisa que meu marido viu. Ele disse que
quando vim a seu encontro, desapareci. Simplesmente sumi. E depois,
reapareci. (BUTLER, 2017, p. 39)

No que diz respeito ao lugar de Octavia Butler na tradição literária norte-


americana, o Cambridge History African American Literature, traz o romance no
capítulo History as fact and fiction, que trata das narrativas neo-escravas, e usa
Kindred – laços de sangue como exemplo de um dos quatro modelos de narrativa neo-
escrava. Seriam elas: 1- autoras que usam a escravidão como o cerne da narrativa e
trazem personagens femininas que vivem no período da escravidão ou logo após a
abolição; 2- personagens do século XX assombrados pela condição de escravidão,
ou que a experenciam; 3- como objeto de sátira; e 4- aquelas em que o autor, homem
negro, retrata o modo que brancos e negros tratam aqueles a quem escravizam. Para
a autora do capítulo, Trudier Harris, o livro de Butler poderia ser usado como exemplo
da segunda categoria, já que Dana é, de fato, uma personagem do século XX que
vive na pele a escravidão. Harris (2011) destaca também que: “O que a escravidão na
História negou aos negros americanos, a escravidão na história literária lhes concede:
o poder de ter um pouco de controle sobre seus destinos.” 17 (p. 475, tradução nossa).
Ou seja, a tomada, ainda que ficcional, da capacidade de poder ter uma
memória, acessá-la e contar o próprio escravizado, ou seu descendente, sua história.
Este é um ponto relevante da narrativa neo-escrava: poder contar o outro lado de uma
história já conhecida. Espera-se, no geral, que tais narrativas sejam ou relatos
históricos ou ficção histórica, comprometida, ainda que implicitamente, com a

17
No original: “What slavery in History denied to black Americans, slavery in literary history grants to
them: the power to have a bit of control over their destinies.” (p. 475).
25

autenticidade, o realismo e a objetividade. A expectativa é que se trate de um texto


baseado em fatos e que, por isso, tenha um compromisso firme com a realidade tal
como ela se apresentou. Kindred, entretanto, não faz jus a essa expectativa. Ainda
que tenha sido baseado em pesquisas históricas – fato declarado pela própria autora
–, a narrativa, formada por um entrelaçamento entre história, memória e ficção, ousa
e não atende a diversas expectativas ao utilizar a ferramenta da viagem no tempo
como elemento de construção da narrativa. O uso de tal elemento, no entanto, não
apaga as outras similaridades de Kindred - laços de sangue com as narrativas neo-
escravas, embora subverta certos elementos constitutivos do gênero. O fato de Dana
ser escritora e de ser ela quem escreve sua própria história, é também uma ruptura
com o gênero das narrativas escravas e neo-escravas, pois, tradicionalmente, a ela
não seriam permitidos nem a leitura nem a escrita; sua história, portanto, seria contada
por outro agente, muito provavelmente branco. Ao deslocar Dana temporalmente e tê-
la como o centro da narrativa – uma protagonista contemporânea que volta ao
passado e não uma mulher do passado que vai para o futuro – Butler pode explorá-la
e desenvolvê-la sem os limites impostos à construção dos personagens que
precisavam seguir os códigos de ética e moral do século XIX. Para Hampton (2010):
Personagens como Linda Brent de Harriet Jacobs, Iola LeRoy de Frances
Harper e Sappho de Pauline Hopkins são os melhores exemplos para o que
estou argumentando aqui. Essas três personagens são tão piedosas e castas
que parecem irreais e inacreditáveis, por não apresentarem as falhas que as
fariam parecer mulheres de carne e osso. (...) em outras palavras, a tentativa
das narrativas de evitar os estereótipos raciais e de gênero construídos
durante a América pré-guerra muitas vezes atrapalhava os retratos realistas
das mulheres negras. (...) Contrastam a imagem das escravas como meras
vítimas em narrativas escritas por homens com imagens de mulheres como
heroínas plenamente desenvolvidas, que são encontradas em narrativas
escritas por mulheres. Carby discute a história literária da emergência das
mulheres negras como romancistas, e sugere as maneiras como as mulheres
intelectuais negras fizeram intervenções políticas e literárias nos sistemas
sociais em que viveram. A narrativa feminina escrava, desde o século XIX até
o presente, continua a variar no que diz respeito às suas fórmulas e
estruturas. Essa variação se deve, em grande parte, à ética moral do século
XIX, que frequentemente impedia as escritoras negras de criar heroínas
"inteiras" em caráter e experiência. Essas técnicas rígidas e restritivas foram
usadas por mulheres da época que Carby descreveu como "A Renascença
das Mulheres Negras" (1890-1930) para criar a personagem-modelo da
mulher negra (2010, p. 5, tradução nossa.)18

18
No original: Characters such as Harriet Jacobs’ Linda Brent, Frances Harper’s Iola LeRoy, and
Pauline Hopkins’ Sappho serve as the best examples for the point I am making here. These three
characters are so pious and chaste that they seem unreal and unbelievable in that they are absent of
the flaws that would make them seem like flesh and bone women. (...) in other words, the narratives’
attempt to avoid racial and gender stereotypes constructed during antebellum America often times got
in the way of realistic portrayals of black women. (...) It contrasts the image of slave women as mere
victims in narratives written by men to images of women as fully developed heroines, which are found
26

Assim, Dana pode ter falhas e fraquejar, temer a escravidão, submeter-se a ela
para sobreviver sem que isso ofusque suas qualidades, ela não é perfeita. Dana é de
carne, osso e sangue. Ele destaca que, embora reconhecida como um elemento
relevante na historiografia da literatura norte-americana, Butler tem menos
reconhecimento acadêmico. Sua hipótese é que isso se deve ao fato de Butler ser
reconhecidamente uma autora de ficção especulativa e:
O romance Kindred (1979) é facilmente um dos livros mais populares de
Octavia Butler. Sua popularidade é, sem dúvida, baseada no fato de que se
presta a um público muito amplo, pois transpõe as fronteiras de vários
gêneros (autobiografia, narrativa de escravos, ficção científica / fantasia,
ficção afro-americana contemporânea etc.) já em seus dois primeiros
capítulos. Apesar da capacidade do romance de confundir as barreiras de
gênero, no que diz respeito à academia, Butler é uma escritora de ficção
científica (FC). E por causa deste fato duvidoso, a ficção de Butler, até muito
recentemente, não vinha sido explorada de forma tão crítica quanto as obras
de outras escritoras negras de mesmo calibre. Kindred é um texto tão
importante e acessível porque se baseia em fatos históricos bem pesquisados
e em uma boa narrativa. (2010, p. 1)19

A profusão de gêneros dentro do romance também parece ter afastado a


academia da literatura de Butler, ao menos até o momento. Ainda que invista em uma
narrativa mais acessível, sem tantas experimentações estéticas, não se pode negar a
contribuição da autora na difusão e redescrição dos estereótipos sobre pessoas
negras, principalmente da mulher negra, na literatura e no imaginário norte-americano,
além de questionar os diversos pontos já ditos anteriormente. Embora não inove nos
temas nem nas formas, Octavia inova em tratar estes temas nestas formas. A
inovação de Butler foi usar o meio da ficção especulativa/científica para discutir temas

in narratives written by women. Carby discusses the literary history of the emergence of Black women
as novelists and suggests the forms in which Black women intellectuals made political as well as literary
interventions in the social systems in which they lived. The feminine slave narrative from the nineteenth
century to the present continues to vary with regards to its formula and structure. This variation is largely
due to nineteenth century moral ethics, which often prevented black women writers from creating “whole”
heroines in character and experience. Such strict and constraining techniques were used by women of
the era that Carby has described as “The Black Women’s Renaissance” (1890–1930s) to create the
model black woman character.

19
No original: The novel Kindred (1979) is easily one of Octavia Butler’s most popular books. Its
popularity is undoubtedly based on the fact that it lends itself to a very broad audience, as it blurs the
boundaries of several genres (autobiography, slave narrative, science fiction/fantasy, contemporary
African American fiction, etc.) within its first two chapters. Despite the novel’s ability to blur genre
borders, as far as the academy has been concerned, Butler is a Science Fiction (SF) writer. And because
of this dubious fact, Butler’s fiction has not been explored as critically as the works of other Black women
writers of equal caliber until very recently. Kindred is both an important and accessible text because it
is based on well researched historical fact and good story telling. (2010, p. 1)
27

que antes não eram discutidos nessas formas. Há uma vasta tradição de narrativas
escravas e neo-escravas, romances sobre temas raciais, obras engajadas...mas, até
ela, não havia uma autora de ficção científica que fosse de fato lida, vendesse e
fizesse circular esse imaginário.

2.3 "Questões de gênero" – Kindred – laços de sangue: o romance no limbo dos


gêneros

Como já dito acima, Kindred se mostra um romance difícil de classificar no que


diz respeito ao gênero literário. Serryl Vint (2007), em seu artigo “Only by Experience:
Embodiment and the limitations of realism in neo-slave narratives” declara que por
causa da classificação automática feita pela academia da obra de Butler como ficção
científica, este romance acaba sendo minimizado:

[...] Os teóricos de ficção científica frequentemente divorciam o trabalho de


Butler do contexto da literatura neo-escrava afro-americana, aproximando-a,
ao invés, das convenções e precursores do gênero sci-fi; desta forma, a
minimização, em Kindred, de diversos elementos reconhecíveis do gênero,
que costumam tomar a frente nas outras obras de ficção da autora -
alienígenas, telepatia, mundos pós-apocalípticos, mutação genética - faz com
que este seja, dentre os romances da autora, o mais problemático para se
definir um gênero. Ambas as tentativas de policiamento de gênero limitam
injustamente a forma como lemos Kindred. (p. 241, tradução nossa) 20

Ou seja, ele seria – dentro da produção de Butler – o mais difícil de classificar


estritamente dentro de um único gênero. Passeando pela fantasia e desaguando na
ficção histórica, a narrativa – que leva o leitor a expectar a escravidão com lentes
contemporâneas – não se fixa em um só gênero: explora as possibilidades de vários.
Da ficção científica usa a ferramenta narrativa da viagem no tempo, explorada à
exaustão pelo gênero; da ficção histórica, busca uma reconstrução de um passado
histórico, usando a ficção para preencher as lacunas deixada na memória e usando
da liberdade da narrativa ficcional para dar vida aos personagens; das narrativas neo-
escravas, toma emprestado uma espécie de relato do que teria sido a escravidão; da
fantasia, a liberdade de apenas precisar seguir as regras criadas por ela mesma.

20
[…] Sci-fi scholarship on Butler often severs her work from the context of African-American neo-slave
literature, positioning her instead in relation to sf conventions and precursors; in this way, Kindred’s
minimization of such readily recognizable sf elements as are foregrounded in Butler’s other fiction –
aliens, telepathy, post-apocalyptic worlds, genetic mutation – render it the most generically problematic
of her novels. Both moves of genre policing unduly limit how we read Kindred. (VINT, 2007, p. 241)
28

Quando, em uma entrevista à Black Scholar, em 1986, fala sobre as dificuldades de


publicação do romance, afirma que mandou para vários editores diferentes porque
“Eu o enviei para várias editoras diferentes porque obviamente não era ficção
científica. Não há absolutamente nenhuma ficção científica nisso.” (BUTLER, 1986,
tradução nossa).21
Obviamente não é ficção científica, e também não é uma fantasia como se
espera, tendo em vista que, embora tenha sido lançado há mais de 4 décadas, a Morro
Branco – responsável pela tradução no Brasil – lançou o romance dentro da sua seção
de ficção científica, mantendo a tendência do mercado desde a primeira edição.
Faz-se necessário, portanto, que nos debrucemos, ainda que brevemente,
sobre a presença de elementos dos mais diversos gêneros literários em um único
romance e como isso faz com que o livro continue, ainda, quase inclassificável. Por
isso, pretendemos apresentar alternativas à classificação já feita por alguns
pesquisadores sobre a obra, mas, sem a pretensão de encerrar a discussão acerca
do tema.
Carmén Barreiros (2014) e Waldson Souza (2019) escolheram Kindred – laços
de sangue como objeto de pesquisa e o fizeram partindo de teorias e objetivos
diversos. Souza (2019), na tentativa de marcar as diferenças entre fantasia e ficção
científica, cujas similaridades tornam tênues os limites entre os gêneros, quando
precisa distingui-los, o faz partindo da ideia de Sterling que diz que: “na ficção
científica o improvável se torna possível, e na fantasia o impossível se torna provável”
(p. 13). Ou seja, se pensarmos nessa distinção – analisando sempre o que o leitor
considera realidade – Dana viajar no tempo é impossível e não improvável, o que,
isoladamente, não deveria ser o suficiente para que uma obra seja permanentemente
classificada ou não como ficção científica já que os elementos relacionados ao gênero
não precisam se fazer presentes ao mesmo tempo. O pesquisador destaca justamente
que é a ausência de uma explicação científica ou mágica que faz do romance uma
obra de difícil classificação, o que faz pensar que, talvez, para esse romance o gênero
é elemento secundário:

A fantasia e a ficção científica estariam então sempre correndo o risco de se


tornar outra coisa com apenas uma explicação ou reviravolta no enredo?
Temas e elementos sobrenaturais por si só nem sempre são suficientes para
definir o gênero de uma obra especulativa. Uma personagem pode viajar no

21
No original: I sent it off a number of different publishers because it obviously was not science fiction.
There’s absolutely no science fiction in it.
29

tempo com uma máquina construída cientificamente ou por uma força mágica
inexplicável. O exemplo da viagem no tempo é pertinente, pois, como
veremos mais adiante, Kindred: laços de sangue (2017 [1979]), de Octavia E.
Butler, é um romance de difícil definição uma vez que não há explicação,
científica ou mágica, para o motivo das viagens que a protagonista faz ao
passado. (SOUZA, 2019, p. 13)

Barreiros (2014), por sua vez, defende que o romance, embora possua
elementos das narrativas neo-escravas, é também ficção científica por causa da
presença da viagem no tempo. Quando precisa trazer uma definição do que seria a
viagem no tempo:

Viagem no tempo: geralmente é baseada em teorias científicas pouco


conhecidas que tornariam esse tipo de viagem possível. A narrativa de
viagem no tempo é usada para dois propósitos: a) vislumbrar o futuro e saber
o que aguarda a raça humana ou b) para, por meio da experiência pessoal,
conhecer e compreender melhor a história. As viagens ao passado podem
ser usadas para alterar a história. No entanto, esse uso é amplamente evitado
pela ficção científica pura, pois criaria certos paradoxos. Kindred, embora não
apresente o elemento científico, é um exemplo de romance de viagem no
tempo. A viagem no tempo é um elemento crucial no trabalho de Butler.
(BARREIRO, 2014, p. 6, tradução nossa.)22

A autora pensa em Kindred como um exemplo de romance sobre viagem no


tempo (além de pensar neste elemento como centro da narrativa), mas, isso nos
parece reducionista. O livro é mais do que um romance construído em torno de um
deslocamento temporal, é, sobretudo, sobre as reflexões que esse deslocamento
enseja. É uma ode à memória e a contribuição de Butler ao movimento cultural de
retomada e redescrição do inconsciente da cultura. Sobre tais aspectos, nos
deteremos adiante, no terceiro capítulo deste trabalho. Entretanto, embora
reconheçamos a relevância do estudo, como a autora parte de um conceito de ficção
científica que obriga a existência da ciência como explicação para o elemento
fantástico, mas, na conclusão de sua pesquisa mantém a análise do romance sob
esse viés, nos faz considerar esta classificação um exemplo dos casos em que o
julgamento da obra pode ter sido influenciado pela tradição em que constantemente
insere-se Butler:

22
No original: Time travel: It is usually based on little known scientific theories that would make this type
of travel possible. Time travel narrative is used for two purposes: a) to get a glimpse of the future and
know what awaits the human race or b) in order to, through personal experience, know about and better
understand history. Travels to the past can be used in order to change history. However, this usage is
widely avoided by pure science fiction since it would create certain paradoxes1. Kindred¸ although
lacking the scientific element, is an example of a time travel novel. Time travel is a crucial element in
Butler’s work. (BARREIRO, 2014,p. 6)
30

Neste artigo, tentei analisar o romance de Octavia Butler, Kindred, de vários


pontos de vista. Por se tratar de uma obra de ficção científica que trata da
escravidão, a princípio forneci as principais características do gênero de
ficção científica e incluí uma breve descrição dos elementos mais comuns
que encontramos nesse gênero. Enquanto em outras obras de Butler
podemos encontrar alienígenas, distopia e cenários futuristas, em Kindred,
em particular, encontramos viagens no tempo e espaço e história alternativa.
Como dito antes, Kindred também é uma narrativa neo-escrava e é por isso
que me referi às principais características desse novo gênero. Butler, uma
autora afro-americana, escreve um romance de ficção científica que viaja
entre o passado e o presente, que permite ao leitor vivenciar as agruras da
escravidão. (BARREIRO, 2014, p. 35-36, tradução nossa.)23

Tanto Souza (2019), quanto Barreiro (2014), mesmo após cuidadosa análise
do romance e das teorias sobre as tradições literárias as que filiam Butler, continuam
presos à ficção científica em maior ou menor grau e o fazem, provavelmente, porque
consideram o deslocamento temporal essencial à narrativa, e sentem a necessidade
de classificar o romance. A própria autora rejeita a classificação baseada apenas no
elemento de viagem no tempo porque ele é apenas ferramenta/recurso narrativo. Não
há nada de ciência no romance. Dana precisa viajar no tempo, porque, caso não o
faça, o eixo do romance deixa de existir. A autora faz uso do expediente de um
elemento fantástico para, assim, iniciar sua história.
Em entrevista, Butler manifesta-se sobre o gênero do romance:

Não. Acho que as pessoas decidiram que não gostam de ficção científica
porque decidiram que sabem o que é ficção científica. E elas têm uma noção
muito limitada do que é. Eu costumava dizer que a ficção científica e os
negros são julgados pelos seus piores elementos. E, infelizmente, ainda é
verdade. As pessoas pensam: "Oh, ficção científica, Star Wars. Eu não gosto
disso." E elas não querem ler o que escrevi porque não gostam de Star Wars.
Por outro lado, você tem o outro tipo, os que querem ler o que eu escrevi
porque gostam de Star Wars, e eles acham que deve ser o que estou fazendo.
Em ambos os casos, eles ficarão desapontados. Essa é a pior coisa sobre a
classificação em gêneros. Muitas vezes, são uma desculpa para não fazer
algo, mais frequentemente do que uma razão para fazer algo.
Não há nenhum assunto que você não possa abordar por meio da ficção
científica. E provavelmente não há nenhum assunto que alguém não tenha
abordado uma vez ou outra. Você não fica restrito pelas fórmulas como em
um mistério, ou mesmo em uma história romântica. Está completamente livre.
Se você vai escrever ficção científica, isso significa que está usando a ciência
e precisará usá-la com precisão. Ou, sabe, pelo menos especular sobre

23
No original: In this paper, I have tried to analyze Octavia Butler’s novel Kindred from several points of
view. Since it is a work of science fiction that deals with slavery, I have first provided the main
characteristics of the science fiction genre and included a brief description of the most common elements
we find in this genre. While in other works by Butler we can find aliens, dystopia and futuristic settings,
in Kindred, in particular, we find time and space travel and alternate history. As stated before, Kindred
is also a neo-slave narrative and this is the reason why I have referred to the main characteristics of this
new genre. Butler, an African American author writes a science fiction novel that travels between the
past and the present, which allows the reader to experience hardships of slavery.
31

maneiras em que aquilo poderia fazer sentido. Se você não está usando
ciência, o que está escrevendo provavelmente é fantasia, quer dizer, se ainda
for algo estranho. Algumas espécies de fantasia... quando falamos de
fantasia, as pessoas tendem a pensar em Tolkien, mas Kindred é fantasia,
porque não há ciência. Na fantasia, tudo que você precisa fazer é seguir as
regras que você mesmo criou. (BUTLER, 1991, p 496, tradução nossa.) 24

Ela é enfática no que diz respeito ao gênero porque a recepção da crítica e do


público a esse romance foi orientada, sobretudo, por causa das suas publicações
anteriores, todos obras de ficção científica. Além disso, o uso da viagem no tempo,
acaba sendo quase determinante na categorização de Kindred – laços de sangue
como um romance de ficção científica. Esta parece exigir uma explicação que apele
às ciências ou explicações racionais para os elementos sobrenaturais ou fantásticos
que acontecem na narrativa. À explicação do impossível, espera-se que se relacione
à ciência, ainda que essa não encontre um referente existente no campo do real.
Quando não se debruça nem esmiúça os mecanismos desse elemento, Butler
deixa claro que ele não é o foco do seu romance, apenas um facilitador de situações.
O conflito moral, ético e existencial no qual Dana se encontra ao longo do romance
não seria possível se ela não voltasse no tempo e acabasse sendo responsável por
garantir a sua própria existência. Em Kindred, no entanto, é a violência o tema –
recurso que Butler explora usando a viagem no tempo. Não é a viagem em si o centro
ou a finalidade da sua história, e sim a jornada-mudança de Dana, esse corpo tão
desviante, construída e reconstruída pelo encontro com o passado. O corpo, na
narrativa de Butler, é essencial. É nele que Dana vive a escravidão. É seu corpo que
encarna o sujeito/ente que é o completo oposto ao corpo que ela precisa salvar todas

24
No original: Octavia Butler: No. I think people have made up their minds that they don't like science
fiction because they've made up their minds that they know what science fiction is. And they have a very
limited notion of what it is. I used to say science fiction and black people are judged by their worst
elements. And it's sadly enough still true. People think, "Oh, science fiction, Star Wars. I don't like that."
And they don't want to read what I've written because they don't like Star Wars. Then again, you get the
other kind who do want to read what I've written because they like Star Wars and they think that must
be what I'm doing. In both cases they're going to be disappointed. That's the worst thing about verbal
shorthand. All too often, it's an excuse not to do something, more often than it's a reason for doing
something.
There isn't any subject you can't tackle by way of science fiction. And probably there isn't any subject
that somebody hasn't tackled at one time or another. You don't have the formulas that you might have
for a mystery, or even a romance. It's completely wide open. If you're going to write science fiction, that
means you're using science and you'll need to use it accurately. At least speculate in ways that make
sense, you know. If you're not using science, what you're probably writing is fantasy, I mean if it's still
odd. Some species of fantasy... people tend to think fantasy, oh Tolkien, but Kindred is fantasy because
there's no science. With fantasy, all you have to do is follow the rules that you've created24.
32

as vezes. O que garante sua sobrevivência é o conhecimento de sua ancestralidade


e a memória de sua vida em 1976: que é passado e futuro ao mesmo tempo.
Para Vint (2007): “O corpo de Dana é o mecanismo de sua viagem no tempo”
(p. 249, tradução nossa)25. A máquina de viagem no tempo, seria então o corpo de
Dana. O leitor e Dana sabem quando ela está prestes a ir para o passado ou voltar
para seu tempo: ela sente náuseas. Os enjoos que ela sente são, talvez, os únicos
indícios de algo semelhante a um mecanismo ou um modo de como Dana faz essa
viagem. A visão que Butler proporciona ao leitor é de uma viagem no tempo em
primeira pessoa. Seu corpo é usado por Butler não somente para levar o leitor entre
tempos, mas também, como marcador das idas e vindas temporais: no século XIX
Dana sofre incontáveis violências, – algumas servirão, inclusive, de gatilhos para que
ela volte ao seu tempo – afinal, o corpo-máquina de Dana não restaria incólume.
À máquina de viagem de Butler falta ciência e sobra humanidade. Dana, essa
que é em si a própria máquina do tempo, que acessa a memória da sua família e que
está presa a esse passado por laços de sangue, personifica um sujeito tão destoante
no contexto do século XIX, que, talvez, se víssemos esse mesmo episódio, essa
mesma Dana através dos olhos dos personagens da fazenda Weylin, talvez
percebêssemos a estranheza que a existência de Dana causa no passado. Quiçá
possamos dizer que uma mulher negra da década de 1970 parece tão alienígena no
séc. XIX quanto alienígenas seriam percebidos por uma mulher dos anos de 1970. A
viagem no tempo transforma a protagonista em um ser tão estranho como seres de
outro mundo. Daí, poderíamos apontar mais um tema comumente utilizado dentro do
expediente da ficção científica – seres de outros planetas ou dimensões – mas, que,
isoladamente, não faz do livro uma narrativa científica.
O leitor que, desavisadamente, espera do romance uma narrativa cujo esforço
em desvendar ou resolver o elemento da viagem temporal toma parte considerável da
trama, se frustrará. Isso porque Butler pouco se debruça sobre isso, ela explica o
mínimo e o faz a partir das percepções e deduções dos personagens, que também
pouco se empenham para desvendar o mistério. Tal “desatenção”, quiçá, se deva à
tentativa de Butler de não fazer da viagem no tempo o centro da trama, afinal, os
temas discutidos em Kindred – laços de sangue acabam distantes de uma
investigação científica ou mágica. As leis que regem os deslocamentos temporais

25
No original: Dana’s body is the mechanism of her time travel.
33

além de escassas, se revelam bem aos poucos para os personagens, ou melhor, para
a protagonista, afinal, é Dana quem viaja entre as épocas e é nela e em sua jornada
que Butler faz o leitor fixar o olhar. É somente durante a quinta visita – e penúltima –
que faz à Fazenda Weylin que Dana discute brevemente a natureza de seus
deslocamentos – e indiretamente sobre sua natureza – com outro personagem que
não fosse Kevin e Rufus:

Apreensiva, entrei pela porta da biblioteca.


– Você está jovem como sempre – Weylin reclamou com amargura quando
me viu.
– Sim, senhor. – Eu concordaria com tudo o que ele dissesse se isso me
afastasse dele o quanto antes.
– O que aconteceu com você? Seu rosto.
Toquei as cascas.
– Foi onde o senhor me chutou, Senhor Weylin.
Ele estava sentado em uma velha poltrona puída, mas de repente se levantou
como um jovem, com o cajado como uma espada de madeira à frente dele.
– Do que está falando? Faz seis anos que não a vejo.
– Sim, senhor.
– Pois!
– Para mim, são apenas algumas horas. – Pensei que Rufus e Kevin tivessem
contado a ele o suficiente para que ele conseguisse entender, acreditando ou
não. E talvez ele entendesse. Ele pareceu ficar mais bravo.
– Quem foi que disse que você era uma preta educada? Não consegue nem
contar uma mentira que preste. Seis anos para mim são seis anos para você!
– Sim, senhor. – Por que ele se dava o trabalho de me fazer perguntas? Por
que eu me dava ao trabalho de respondê-las? (BUTLER, 2017, p. 319)

Interessante perceber que para Dana é mais importante que Tom Weylin
entenda a natureza de suas viagens ainda que não acredite. Ora, a verdade mesmo
que revelada aos olhos de Weylin, é mais incompreensível e figura dentro do campo
do impossível do que improvável, principalmente porque carece a Dana uma máquina
ou um elemento material que encerrasse em si a explicação sobre as viagens no
tempo.
Um outro aspecto que precisa ser observado é que as viagens de Dana são –
em sua maioria – involuntárias, ela não tem controle sobre suas idas ao passado,
estas parecem obedecer à lei de sobrevivência de Rufus, e, indiretamente, da própria
Dana. O máximo de controle que consegue exercer nas suas viagens é forçar sua ida
para o seu tempo, e descobre isso ao cortar os pulsos e garantir que a lei que rege
34

sua própria sobrevivência funcione, não obstante, não possui nenhuma garantia de
sucesso, pois tudo o que sabe sobre os deslocamentos é fruto de suas experiências.
Importante lembrar que quando tem essa conversa com Weylin, Dana já possui
o máximo de informações que pode sobre seus deslocamentos e, embora não
compreenda completamente – nem tente ou tenha tempo de desvendar as causas –,
consegue tecer algumas teorias e encontra alguns caminhos. Ela vai acumulando
esses conhecimentos durante suas idas e vindas temporais, uma das primeiras
“regras”, se assim podemos chamá-las, que Dana – e o leitor – desvendam é
justamente a “função” de Dana que a “liga” de maneira intrínseca ao passado: garantir
que seu antepassado sobreviva o suficiente para gerar a ancestral de sua família:

Pensando bem, o que teria acontecido se o menino tivesse se afogado? Teria


morrido sem minha ajuda? Ou sua mãe o salvaria de alguma maneira? Seu
pai chegaria a tempo de salvá-lo? Era possível que um deles o tivesse
salvado, de algum modo. A vida dele não podia depender das atitudes de
uma descendente nem sequer concebida. Independentemente do que eu
fizesse, ele teria que sobreviver para ser pai de Hagar, ou eu não poderia
existir. Isso fazia sentido.
Mas, de algum modo, não era o suficiente pra me tranquilizar. Não fazia
sentido para mim testar essa ideia ignorando-o se o encontrasse em apuros
de novo; não que eu fosse capaz de ignorar uma criança em apuros, qualquer
que fosse. Mas essa criança precisava de um cuidado especial. Para que eu
vivesse, para que outros vivessem, ele tinha que viver. Eu não ousava testar
o paradoxo. (p. 47-48)

Dana busca alguma explicação racional para a situação impossível em que se


encontra, e é através de um elemento clássico da ficção científica – a viagem no tempo
– que ela consegue apreender sua situação. À Bulter não faltavam recursos para que
escrevesse uma grande obra de ficção científica se assim desejasse, tendo em vista
que, além de já escrever obras do gênero antes de Kindred, ela era sobretudo fã e
leitora de ficção científica desde a mais tenra idade. Algumas de suas obras mais
premiadas são justamente aquelas inscritas nessa tradição, como a trilogia
Xenogênese ou os contos Filhos de Sangue e Sons de Fala, produções que deixam
mais claras as características da ficção científica. À essas obras não faltam
explicações e cenários científicos – Butler se demora na construção e elaboração das
regras de seus mundos imaginativos riqueza de detalhes – porque nelas o elemento
“ciência” é ou motivador da ação ou a explicação que torna o improvável no possível.

Ao mesclar elementos de diversos gêneros, Butler mostra que é possível


pensar e fazer ficção científica, longe dos moldes clássicos, o que, certamente, renova
35

o gênero. Quando traz a viagem no tempo como recurso narrativo, a autora expande
a utilização de um recurso outrora explorado quase que exclusivamente na ficção
científica. Tal ousadia é possível porque essa é a vocação do romance: a ampliação
das possibilidades. Nas palavras de Kundera (2009):

O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao


leitor: “as coisas são mais complicadas do que você pensa.” Essa é a eterna
verdade do romance que, entretanto, é ouvida cada vez menos no alarido das
respostas simples e rápidas que precedem a questão e a incluem. Para o
espírito do nosso tempo, é Anna ou então Karenin que tem razão, e a velha
sabedoria de Cervantes que nos fala da dificuldade de saber e da intangível
verdade que parece embaraçosa e inútil. O espírito do romance é o espírito
de continuidade: cada obra é resposta às obras precedentes; cada obra
contém toda a experiência anterior do romance. (p. 24)

Quando desloca uma mulher contemporânea que encarna as identidades mais


progressistas de seu tempo para observar e viver um tempo histórico tão distante do
seu próprio, Butler usa o romance para questionar seu próprio tempo e usa o horror
vívido da escravidão para questionar o racismo – herdeiro do sistema escravista – de
sua própria época. Caso houvesse usado outro personagem como protagonista, as
experiências vividas por ele seriam diametralmente diferentes, ainda que a premissa
básica do romance se mantivesse. Se fosse Kevin, homem e branco, responsável por
garantir a existência dos seus e a sua própria ao voltar para o passado escravista,
diversas questões levantadas e sofridas por Dana, questões que a movem, não
seriam possíveis. Kevin não sofrerias as humilhações e castigos reservados para o
corpo negro de Dana. Para ele seria mais fácil identificar-se com Rufus, mais fácil e
seguro circular nos espaços e o mais importante: ele não correria o risco de ter sua
liberdade tomada.
“Se contássemos a alguém sobre isso, a qualquer pessoa que fosse, ela não
nos consideraria muito sãos - Estamos sãos – disse ele – E agora que o garoto
morreu, temos uma chance de continuarmos assim (BUTLER, 2017, p. 424)”. O
diálogo que encerra o romance traz uma pista de como seria uma explicação dentro
do plano do real para as viagens no tempo. Ao imaginar a loucura como uma
explicação plausível – no campo de uma mímese realista – para a viagem no tempo
que Dana e Kevin empreendem, ela torna mais vivos os traços realistas do romance.
Embora no passado as pessoas que sabiam da natureza de Dana e de suas viagens
questionassem muito pouco – talvez porque as aparições de Dana estivessem sempre
envoltas em uma mística salvadora –seus contemporâneos, no entanto,
provavelmente duvidariam da sanidade do casal. Quando Kevin diz que eles podem
36

ficar enfim sãos, ele se refere à possibilidade de eles poderem esquecer o trauma,
deixar a trama da memória se desvanecer. O esquecimento, afinal, nem sempre se
constitui algo ruim, ainda que para eles seja completamente impossível voltar a ser o
que eram no começo da jornada.
Embora considere Kindred como uma obra de fantasia e não de ficção
científica, Octavia Butler é, solidamente, expoente e tenaz defensora do último. No
ensaio Obsessão positiva, presente em Filhos de Sangue e outras histórias (2020) ela
não somente declara que sim, é uma autora de ficção científica como reconhece seu
pioneirismo: “Eu, portanto, ganho a vida escrevendo ficção científica. Até onde sei,
sou a única mulher negra que faz isso” (p. 149). Vale observar que, longe de ser uma
auto exaltação, tal percepção pode ser lida como uma constatação de um fato que
deve ser questionado, afinal onde estavam os autores negros de ficção científica em
meados dos anos 70? Alguns anos mais tarde, Mark Dery daria um nome a essa
tradição de ficção especulativa negra: o Afrofuturismo. Movimento esse que fez de
Octavia Butler sua madrinha. Segundo Souza (2019):

No livro Afrofuturism: the world of black sci-fi and fantasy culture


[Afrofuturismo: o mundo da cultura negra de ficção científica e fantasia]
(2013), Ytasha L. Womack demonstra como os parâmetros de raça podem
influenciar na escrita criativa ao citar uma aluna sua que queria escrever
ficção histórica com personagens negras, mas não conseguia escapar da
sombra da escravidão e do colonialismo em qualquer época do passado na
qual considerava ambientar sua história. Essa aluna não conseguia imaginar
final feliz para pessoas negras antes da década de 1960. Por esse motivo, a
viagem no tempo, um dos temas mais trabalhados da ficção científica, pode
parecer impossível para personagens negras. Não havia possibilidade de
circulação nos espaços, ou melhor dizendo, não havia possibilidade de ser e
de existir enquanto humano durante a escravidão. Octavia E. Butler trabalhou
essa tensão em Kindred: laços de sangue (2017 [1979]), romance no qual a
protagonista Dana vive nos Estados Unidos, em 1976, e é transportada para
o século XIX, período pré-Guerra Civil. (p. 38)

O futuro parece ser o único espaço em que corpos negros podem existir sem
encarnar uma sina de tragédia reservada aos personagens negros nas narrativas.
Com um passado marcado pela violência, e um presente ainda marcado pelo racismo,
não é surpreendente que a ficção científica e os gêneros da ficção especulativa no
geral interesse às pessoas negras. A indagação sobre a escassez de autores negros
escrevendo ficção científica, resvala no já discutido tópico do gênero ser, até então,
domínio de autores brancos e, principalmente, homens. Quando desfia uma defesa
acerca da importância da ficção científica para pessoas negras, Butler destaca
37

justamente o caráter mais imaginativo e livre do gênero: as possibilidades de imaginar


outras realidades:
As dúvidas se apresentam de várias maneiras, Mas ainda me perguntam De
que adianta a ficção científica para o povo negro? De que adianta qualquer
gênero da literatura para o povo negro? De que adianta o pensamento da
ficção científica sobre o presente, o futuro e o passado? De que adianta a
tendência da ficção científica em advertir ou levar em consideração formas
alternativas de pensamento e ação? De que adianta a análise dos possíveis
efeitos da ciência e da tecnologia, ou da organização social e da orientação
política, pela ficção científica? Em seu melhor sentido, a ficção científica
estimula a imaginação e a criatividade. Coloca quem lê e quem escreve fora
dos caminhos conhecidos, fora das trilhas muito estreitas do que “todo
mundo” está dizendo, fazendo, pensando, seja lá quem for “todo mundo”
naquele momento.

E de que adianta tudo isso para o povo negro? (BUTLER, 2020, p. 150)

Ora, o fazer literário de Butler se concentra justamente em testar e misturar os


limites dos gêneros, como ela diz, escrevendo fora dos caminhos conhecidos, amplia
a imaginação acerca das infinitas possibilidades outras de se pensar a existência das
pessoas negras. Butler acaba por construir narrativas em que há, afinal, um discurso
imbuído de esperança para pessoas negras. No fim, mais do que o gênero a qual
pertence, Kindred incita discussões sobretudo, sobre o humano.
38

3 ESPAÇOS DE MEMÓRIA E AS RELAÇÕES DE PODER EM KINDRED –


LAÇOS DE SANGUE

3.1 Breves considerações sobre o estudo da memória

Muito se falou e se estudou sobre a memória e sua relação com a história e


com a ficção. Dos gregos aos estudiosos contemporâneos, as fronteiras dos estudos
da memória com outras ciências humanas intrigam os especialistas e se mostram,
algumas vezes, difusas, e outras mais bem delineadas. Além da relação com a história
e a ficção, questões como a dicotomia entre oralidade e escrita e seus impactos na
memória, técnicas e tecnologias de memorização, e a ligação entre memória e poder
são alguns exemplos da profusão das possibilidades dos estudos. Desde um legado
dos poderosos à forte imagem de memória como ausência recuperada, a memória é
um campo fértil de estudo. Seria prudente, talvez, começar o estudo refletindo sobre
a relação entre a memória e a história e de ambas com a ficção. Para Maurice
Halbwachs (1990) em A Memória Coletiva:

A história, sem dúvida, é a compilação dos fatos que ocuparam o maior


espaço na memória dos homens. Mas lidos em livros, ensinados e aprendidos
nas escolas, os acontecimentos passados são escolhidos, aproximados e
classificados conforme as necessidades ou regras que; não se impunham aos
círculos de homens que deles guardaram por muito tempo a lembrança viva.
É porque geralmente a história começa somente no ponto onde acaba a
tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social. (...)
Assim, a necessidade de escrever a história de um período, de uma
sociedade, e mesmo de uma pessoa desperta somente quando eles já estão
muito distantes no passado, para que se tivesse a oportunidade de encontrar
por muito tempo ainda em torno de si muitas testemunhas que dela
conservem alguma lembrança. (p. 55)

A história goza de um status de ciência, tem seu conteúdo ensinado nas


escolas, permanece porque não depende exclusivamente da memória dos homens.
O tempo da história tem algo de imutável que o tempo da memória não tem, pois é
fixado. Sobre a memória, o autor traz a seguinte reflexão:

A memória coletiva se distingue da história pelo menos sob dois aspectos. É


na corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de
artificial, já que retém do passado somente, aquilo que ainda está vivo ou
capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Por definição ela não
ultrapassa os limites deste grupo. Quando um período deixa de interessar ao
período seguínte, não é um mesmo tipo que esquece uma parte de seu
passado há, na realidade, dois grupos que se sucedem. A história divide a
39

sequência dos séculos em períodos, como se distribui o conteúdo de uma


tragédia em vários atos. (p. 56)

Jacques le Goff (1990), historiador francês, em História e memória propõe a


seguinte distinção entre as matérias, semelhantes, porém diversas: “Tal como o
passado não é a história, mas o seu objeto, também a memória não é a história, mas
um dos seus objetos e simultaneamente um nível elementar de elaboração histórica”
(p. 40). Ou seja, embora matérias diversas, ambas se entrelaçam e se alimentam.
Aleida Assmann (2011), em Espaço de recordação, distingue a memória, ao
menos nos estudos literários, em memória ars e memória vis. A primeira seria a
memória enquanto arte, técnica, a memória como uma repetição exata das palavras,
um exercício e adestramento da memória. A mnemotécnica – arte da memória –
“eliminava a dimensão do tempo, ou seja, o tempo em si não era um agente
estruturador no processo” (p. 32) e, além disso, o conteúdo ou objeto do que é
memorizado não é relevante; a memória, neste caso, torna-se mecânica e “prática”.
Já a memória vis é, nas palavras da autora, “potência”; neste caso, a dimensão do
tempo é relevante e é esta a que seria formadora de identidade. Para ela, “a palavra
‘potência’ indica, nesse caso, que a memória não deve ser compreendida como um
recipiente protetor, mas como uma força imanente, como uma energia com leis
próprias” (p. 34). Segundo a autora foi Vico quem transplantou a memória do campo
da retórica para o da antropologia, e o fez considerando a dimensão psicológica da
memória, que passa a considerá-la “ao lado da fantasia e do engenho, como um dos
três poderes mentais do homem” (p. 35). É a memória como potência, como engenho,
e, por que não, sua relação com a ficção, que vão ser estudados ao longo deste
capítulo.
Assmann (2011) acabou se debruçando, também, sobre a memória cultural: “A
memória cultural tem como seu núcleo antropológico a memoração dos mortos. Isso
significa que as pessoas de uma família devem guardar na memória os nomes de
seus mortos e eventualmente passá-los às gerações futuras.” (p. 37). No romance de
Butler, a temática da memória e relações familiares já se anuncia no título: Kindred 26
significa “semelhante”, “aparentado”. A tradução para o português optou por explicitar
o sentido do título através do subtítulo: laços de sangue, o que pode facilitar ao leitor
o acesso à ideia do título original.

26
De acordo com o Cambridge Dictionary, https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-
portugues/kindred, acesso em: 05 de outubro de 2020.
40

É durante a segunda viagem temporal que Dana – atraída por Rufus para salvá-
lo de um incêndio provocado pelo garoto – começa a desvendar os mecanismos e a
motivação do que acontece com ela, e o porquê de encontrar-se presa ao menino.
Dessa vez, ela passa mais do que alguns minutos no passado e pode conversar com
o garoto, começando a compreender, assim, o que acontece entre eles. Nesse
episódio, não só a protagonista percebe que se encontra mais longe de casa do que
supunha, mais precisamente alguns séculos e muitos quilômetros a separam de sua
realidade, sua casa e seu marido em 1976, como também começa a compreender as
motivações que a levam ao passado – passado este potencialmente letal para um
sujeito como ela. Tentando compreender o que acontece e o local em que se encontra,
questiona Rufus acerca desses elementos e descobre o nome completo do garoto e
a existência de sua vizinha, uma menina negra e livre, Alice. Indagando se está em
uma fazenda, ela descobre:

- A fazenda Weylin. Meu pai se chama Tom Weylin.


- Weylin... – O nome acionou uma lembrança, algo em que não se pensava
há anos. – Rufus, como se escreve seu sobrenome? W-E-Y-L-I-N?
- Sim, acho que é isso.
(...)
- E... tem uma garota negra, talvez escrava, chamada Alice, que mora por
aqui, em algum lugar? – Eu não sabia o sobrenome da garota, ao certo. A
lembrança estava voltando em fragmentos.
- Claro. Alice é minha amiga.
- É mesmo? – Eu estava olhando para as minhas mãos, tentando pensar.
Quando me acostumava com uma impossibilidade, mais uma aparecia.
- Além disso, ela não é escrava – disse Rufus. – Ela é livre, nasceu livre como
a mãe dela.
- Ah, é? Então talvez... – Parei de falar enquanto meus pensamentos se
apressavam em unir os fatos. O Estado era o mesmo, a época, o nome
incomum, a garota Alice...
- Talvez o quê? – Rufus.
Sim, talvez o quê? Bem, talvez, se eu não estivesse totalmente louca, se não
estivesse no meio da alucinação mais perfeita da qual já tinha ouvido falar,
se a criança à minha frente fosse de verdade e estivesse dizendo a verdade,
talvez ele fosse um de meus antepassados.
Talvez fosse meu tataravô, que permanecia vagamente vivo na lembrança de
minha família, porque sua filha tinha comprado uma Bíblia grande numa caixa
de madeira entalhada e começado a guardar registros da família dentro dela.
Meu tio ainda a tinha.
Avó Hagar. Hagar Weylin, nascida em 1831. O nome dela era o primeiro
relacionado. E ela escrevera os nomes dos pais dela como sendo Rufus
Weylin e Alice Green-Alguma coisa Weylin.
41

- Rufus, qual o sobrenome de Alice?


- Greenwood. Do que você estava falando? Talvez o quê?
- Nada. Eu...só pensei que pudesse conhecer alguém da família dela.
- Conhece?
- Não sei. Faz muito tempo que não vejo a pessoa em quem estou pensando.
– Mentira. Mas era melhor do que dizer a verdade. Por mais jovem que o
garoto fosse, achava que ele questionaria minha sanidade se eu contasse a
verdade. (BUTLER, 2017, p. 45-46)

O que essa descoberta evoca é uma lembrança afetiva e restrita ao seio e


memória familiar. Os nomes descobertos lhes são reconhecíveis porque já os viu
diversas vezes no alto da genealogia de sua família; ambos gerarão em algum
momento Hagar – quem originará o ramo familiar da protagonista. A Bíblia com o
nome dos antepassados da família é um tipo de monumento de rememoração e
preservação da memória dos que vieram antes. É por causa do conhecimento de sua
história, da memória preservada, que Dana consegue se localizar temporal e
socialmente. Assim, ao situar-se e reconhecer Rufus e Alice, ela se adapta mais
rapidamente à situação em que está inserida, o que ajuda a sua sobrevivência. Ao
invés de rebelar-se contra a situação das viagens involuntárias, ela aceita sua
condição, posto que a existência de seus antepassados, comprovada pelo registro na
Bíblia da família, dá o tom de veracidade à experiência tão irreal.
Notemos que Dana não buscou ativamente essa memória, ela não procurou
recordar-se de sua genealogia, foram os nomes de seus familiares que provocaram
nela essa lembrança. Invocaram um quadro de imagem de uma situação já vivida,
uma lembrança experenciada. Para a protagonista, a recuperação da imagem da
Bíblia de sua família se dá de maneira involuntária e impregnada de afeto, visto que o
vestígio deixado por Hagar no artefato talvez não marcasse tanto Dana se estivesse
em um outro local que não fosse o familiar.
A pesquisadora Jacy Alves Seixas (2001) em Percursos da memória em
tempos de história: problemáticas distingue – evocando as definições de Proust e
Bergson – a memória voluntária da involuntária, partindo da ideia de que haveria
memórias e não somente memória. A primeira seria aquela do hábito, das coisas
práticas, aquela que “ao invés de repensar o passado simplesmente o ‘executa’,
repete-o, sendo por definição, sensorial e morta” (p. 44). Já a segunda, aquela mais
elevada, que prescinde do esforço da rememoração: “Espontânea, ela é feita de
imagens que aparecem e desaparecem independentemente de nossa vontade,
42

revela-se por ‘lampejos’ bruscos, mas se afasta ao mínimo movimento da memória


involuntária.” (p. 46). Importante destacar que o afeto é elemento diferenciador dessas
memórias, posto que:

A memória é portanto algo que “atravessa”, que “vence obstáculos”, que


“emerge”, que irrompe: os sentimentos associados a este percurso são
ambíguos, mas estão sempre presentes. Não há memória involuntária que
não venha carregada de afetividade e, ainda que a integralidade do passado
esteja irremediavelmente perdida, aquilo que retorna vem inteiro, íntegro
porque com suas tonalidades emocionais e “charme” afetivo. (SEIXAS, 2001,
p. 45-46)

A lembrança de Dana da Bíblia de sua família é permeada de afeto, sendo o


romance uma imersão na memória da família ficcional da protagonista, em sua
genealogia. São os laços de sangue entre Dana e Rufus que fazem com que eles
estejam imbricados nessa dança entre presente e passado. É razoável propor o
questionamento: qual memória Dana acessa neste momento de descoberta dos
ancestrais? Aquela resguardada por Hagar na Bíblia da família. Uma memória
referente a um grupo social e que vai se esvaindo à medida que os entes desse grupo
desaparecem – inclusive, essa é uma das distinções que Halbwachs (1990) faz entre
história e memória – o fragmento de uma genealogia que chegou até Dana o fez
através do vestígio, do registro fixado de Alice Greenwood e Rufus Weylin como pais
de Hagar, cuja descendência chegaria em Dana Franklin. Se a memória coletiva tem
uma data de validade, a história tende a fixar-se no tempo.
Para Assmann (2011), Maurice Halbawchs “Derivou daí a noção da existência
de uma ‘memória do grupo’. Mas as lembranças não se estabilizam somente no grupo.
O grupo torna estáveis as lembranças. A investigação de Halbwachs em torno dessa
‘memória coletiva’ resultou no seguinte: a estabilidade da memória coletiva está
vinculada de maneira direta à composição e subsistência do grupo” (p.144). Diante
deste apagamento da memória vinculado à existência do grupo, é natural que
cheguem a Dana apenas fragmentos genéricos e pouco precisos sobre pessoas e
situações acontecidas em um tempo anterior ao dela; daí as informações detalhadas
passam a se esvair como um retrato que perde a cor. Surpresa por desconhecer o
fato de o pai de Hagar ser branco, ela reflete:

E por que ninguém da minha família havia dito que Rufus Weylin era branco?
Se sabiam. Provavelmente não sabiam. Hagar Weylin Blake havia morrido
em 1880, muito antes da época de qualquer membro da minha família que
conheci. Sem dúvida, a maior parte das informações a respeito da ida dela
43

morreu com ela. Pelo menos, tinha morrido antes de chegar a mim. Só
restava a Bíblia. (BUTLER, 2017, p. 46-47)

Tudo que Hagar – e seus descendentes imediatos – pôde deixar de legado, ou


melhor, de vestígio de sua existência a seus familiares imediatos e descendentes foi
a sua existência e a Bíblia atestando-a. Tal como fotos em um álbum antigo de família,
a memória de quem fora Hagar, seus traços, seus hábitos, foram se perdendo, a
imagem se desgastando. Não podendo legar aos seus, de fato, fotografias, ela deixou
um objeto que muito provavelmente seria passado adiante. Não é surpreendente,
portanto, o fato de só ser possível chegar à Dana meros fragmentos do que sua
ancestral fora.
Quando vai tratar da relação entre memória e identidade, Assmann (2011) o
faz a partir da dramaturgia de Shakespeare:

Esse olhar sobre as histórias de Shakespeare como mito nacional abre a


perspectiva para os serviços que a literatura presta à vida social. A história
das encenações das histórias shakespearianas confirma que elas se prestam
à instrumentalização política. Se o impulso nacional de Shakespeare já havia
perdido a atualidade para a geração seguinte à sua, dividida pela guerra civil
confessional, seus dramas puderam ser usados também no século XIX,
segundo os objetivos da propaganda política do império. Nada disso explica,
porém, por que eles sobreviveram a tais usos e por que ainda hoje são lidos
e encenados no mundo inteiro. Eles não são apenas literatura nacional, mas
também literatura universal – e com isso chego ao terceiro ponto, a dimensão
textual. Shakespeare encenou a matéria histórica não como historiador, mas
como dramaturgo, e com isso importava-lhe, antes de mais nada, a eficácia
do texto no palco. Por isso, preocupou-se primeiro em criar contrastes
gigantes, tensão e mudanças de ritmo, cenas escandalosas, situações
patéticas e, não menos importante, entretenimento. A esse tratamento
envolvente, verbal e visual do conteúdo histórico adiciona-se ainda outro
aspecto: o nível reflexivo, que ganha lugar nas peças em meio a reflexões
antropológicas e uma atitude fundamental criticamente cética. Além disso, se
a obra já não contém mais seu efeito memorial-político e se não é
considerada reativável nesse sentido, permanecem ainda virulentas na
dimensão textual da peça sua força dramática e sua reflexão antropológica.
(ASSMANN, 2011, p. 92)

Embora as diferenças entre Butler e Shakespeare sejam notáveis, tanto nos


objetivos como nas formas do texto – e na sua dimensão, impacto cultural, e formação
–, é possível aplicar e estender a análise que a autora faz sobre os textos do Bardo
ao romance da norte-americana, visto que, embora não tenha sido alçado à símbolo
da literatura nacional ou mundial, tampouco como mito nacional, Kindred – laços de
sangue não é de todo destituído de uma instrumentalização política por parte de
Butler. Empregando à literatura essa possibilidade de impacto e serviço à vida social
citada por Assmann (2011), o texto de Butler serve à potência de impacto no
44

imaginário social norte-americano. No momento em que escreve e publica suas obras,


a autora está inserindo no imaginário literário de sua tradição novas possibilidades de
narrativas, personificadas em possibilidades outras de personagens. Ainda que seu
impacto dimensional seja consideravelmente menor do que o do inglês, Butler revisita
politicamente um momento histórico que, ainda que muito particular ao contexto dos
Estados Unidos escravista, ressoa universal – desconsiderando detalhes muito
específicos da organização da escravidão nos Estados Unidos – àquelas culturas
impactadas pela colonização e pela escravidão colonial – seja colonizador ou
colonizado, escravizador e escravizado – e que, não obstante não seja absolutamente
atual, permanece pertinente tendo em vista as inúmeras discussões atuais sobre
questões de gênero e raça.
Em um período em que movimentos feministas estão em voga – assim como
os movimentos contrários – e no qual se viu o impacto do movimento Black Lives
Matter27, revisitar a obra de Butler, escritora negra que coloca mulheres negras no
centro das narrativas e que, especificamente neste romance estudado, propõe a
redescrição e reorientação do ponto de vista de um episódio histórico, não só é
possível, como pode promover um impacto social no leitor e em como se encaram
certos discursos políticos.
Assim como Shakespeare, Butler se apropria da história – e, por que não, da
memória – como uma escritora, cuja prioridade é a estrutura da narrativa, a construção
das personagens, a elaboração das situações, o trabalho com a linguagem, e não o
compromisso com a verdade – entendida aqui como uma imitação da realidade
documentada, embora uma pesquisa histórica tenha sido realizada – como entendida
pela história. Ela se baseia em uma experiência que, embora ficcional, foi verídica
enquanto experiência comum durante a escravidão. Ainda que Dana e os demais não
tenham existido fora da ficção, as intrigas, situações, relações de poder, encontram
referente no real.
Mesmo que perca sua “atualidade”, mesmo que perca relevância política e
social, o texto literário se mantém “útil” – apesar da “utilidade” da literatura ser
elemento secundário em sua valorização –, seja como componente da historicidade
de um período ou de um povo, como um frame de um momento social específico,
como experimentação de uma possibilidade de vivência do real, como redescrição de

27
Movimento ativista, de abrangência internacional, que objetiva combater os inúmeros episódios de
violência cometidos contra pessoas negras.
45

algum imaginário... A não ser que o único fundamento do texto seja panfletário ou
político, ele se mantém relevante. Mesmo que um dia Kindred perca seu apelo político
e social, a construção de sua narrativa e a elaboração das situações ainda poderão
ter valor reflexivo, de questionamento, de redescrição do imaginário. E pode,
potencialmente, ter seu valor político reativado nas gerações seguintes; é, na verdade,
o contexto histórico e social atual que chama atenção para os questionamentos
levantados na obra. Mas, mesmo sem esse apelo, o romance se sustenta porque
Butler fez um trabalho literário partindo de um elemento histórico e propondo a
construção de uma memória e redescrição de estereótipos.
Ao colocar uma mulher negra como protagonista, como sujeito que vai guiar o
leitor – localizado em um tempo entre presente e futuro –, Butler questiona o papel
social da mulher negra no século XIX, no século XX e, por que não, no tempo em que
o leitor está consumindo. Ao focalizar sua narrativa nas relações de poder, Butler tanto
fixa uma discussão de como elas se constituíam no tempo de escritura do romance,
nos tempos passados no interior da obra, e também propõe uma observação de como
elas se constituem no tempo e contexto em que o leitor está inserido. Por fim, constitui-
se também como entretenimento, tendo em vista que Octavia Butler se consagrou
com um expoente da literatura popular norte americana
Para Halbwachs (1990), a memória social ou histórica (termo usado por ele,
que admite não ser a melhor escolha lexical) e a história constituem-se como
processos e elementos diferentes. Enquanto a história se apresenta como uma
sequência geral e cronológica, ultrapassando a vida dos que fizeram parte de seus
fatos, e se mantém eterna, desde que em um suporte que não expire; a memória
coletiva se refere a um grupo específico e permanece enquanto permanecerem vivos
os indivíduos que partilham dessa memória. Uma família, por exemplo, se constitui
como um grupo que partilha de uma memória coletiva, social. Ele não despreza ou
desconsidera a história, pelo contrário, ele destaca a relação entre a memória social
e a história, quando destaca que esta fornece um quadro útil para a memória, quando
situa cronológica e socialmente uma lembrança. O mesmo vale para a relação entre
a memória autobiográfica e a memória histórica: “a primeira se apoiaria na segunda,
pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral. (HALBWACHS, 1990,
p. 37)”. Quando diz que a história oferece um quadro de contexto e auxílio de fixação
da memória, ele se refere ao movimento de fixação da memória em um contexto
histórico, como um pano de fundo para a recuperação e localização da memória. Não
46

necessariamente aquela história ensinada nas escolas, mas principalmente aquela


história vivida, experienciada. Sendo a memória um movimento de retorno a algo
vivido, faz sentido ser esta a história que auxilia a memória.

Não é na história aprendida, é na história vivida que se apoia a nossa


memória. Por história é preciso entender então não uma sucessão
cronológica de acontecimentos e de datas, mas, tudo aquilo que faz com que
um período se distinga dos outros, e cujos livros e narrativas não nos
apresentam em geral senão um quadro bem esquemático e incompleto.
(HALBWACHS, 1990, p. 41)

Retomando os estudos de Le Goff (1990), temos a figura dos homens –


memória, responsáveis pela perpetuação e preservação da história de um povo em
tempos de uma história oral, pré-escrita. Tais figuras guardavam em si as genealogias,
a história dos reis, a memória da sociedade:

Mas é necessário sublinhar que, contrariamente ao que em geral se crê, a


memória transmitida pela aprendizagem nas sociedades sem escrita não é
uma memória "palavra por palavra". Goody provou-o estudando o mito do
Bagre recolhido entre os Lo Dagaa do norte do Gana. Observou as
numerosas variantes nas diversas versões do mito, mesmo nos fragmentos
mais estereotipados. Os homens-memória, na ocorrência narradores, não
desempenham o mesmo papel que os mestres-escolas (e a escola não
aparece senão com a escrita). Não se desenvolve em torno deles uma
aprendizagem mecânica automática. (...) A memória coletiva parece,
portanto, funcionar nestas sociedades segundo uma ‘reconstrução
generativa’ e não segundo uma memorização mecânica (p. 371)

Ora, ao destacar o fato dessa memória oral não ser “palavra por palavra”, Le
Goff (1990) demonstra que o essencial na transmissão dessa memória seria o
conteúdo base, a matéria essencial, o que se mantém imutável mesmo com
pluralidade das versões. Há nesse modelo de transmissão e preservação da memória
espaço para o engenho; cada homem – memória tem a liberdade de, preservando o
que é essencial, criar em torno do que não é basilar. A narração, aqui, é fundamental
na construção e propagação da memória, demonstrando que é possível recorrer à
ficção no momento de recuperação e perpetuação da memória. Diferentemente dessa
abordagem, podemos trazer exemplos de quando o exercício da memória é técnico,
apoiado em artifícios mnemônicos, o que Assmann (2011) chama de memória vis. Le
Goff traz como exemplo os druidas gauleses, cujos acólitos aprendem de cor um
grande número de versos, passando diversos anos nessa aprendizagem e cuja
repetição deve ser “palavra por palavra”. Eles o fazem “porque não querem nem
divulgar a sua doutrina, nem ver os seus alunos negligenciar a memória confiando na
escrita” (p. 372).
47

O surgimento da escrita nas sociedades até então ágrafas parece ter dado
outra dimensão à memória técnica, visto que a possibilidade de fixar o conteúdo em
matéria menos volátil que a memória pode acabar demandando menos da técnica em
si. Há, portanto, ganhos com o advento da escrita, ganhos sentidos principalmente no
campo da história, visto que ela tende a ser preservada em documentos, enquanto
perde-se no campo da mnemotécnica, que é despida de seu caráter essencial na
transmissão da memória e da história. A escrita parece funcionar, também, como
mecanismo de preservação da história dos monarcas, dos impérios: além de legitimar
sua genealogia e pretensão ao poder, também objetiva preservar o que os poderosos
consideram digno, "a grande história": “pois os reis fazem compor e, por vezes, gravar
na pedra anais (ou pelo menos extratos deles) onde estão sobretudo narrados os seus
feitos – e que nos levam à fronteira onde a memória se torna ‘história’” (LE GOFF,
1990, p. 375)
A recordação ou lembrança é absolutamente particular e própria. Ainda que de
um mesmo acontecimento participem duas ou mais pessoas, as impressões que elas
guardam e perpetuam são diferentes. Halbwachs (1990) cita o caso de Stendhal, que
na infância presenciou ao lado de seus companheiros, uma rebelião popular que
originou uma revolução. O evento o marcou a ponto de sempre relatá-lo, com todos
os detalhes que guardara em sua memória. Entretanto, quando escreve um ensaio e
relata o fato, um de seus companheiros, R Colomb, contesta diversas informações.
Estaria Stendhal invocando memórias falsas, romanceando seu relato, ou somente
fora marcado de uma forma diferente de seu companheiro? Haveria, então, uma
maneira única e correta de recordar? Seria a ficção um caminho para a organização
das lembranças?
Ao recordarmos e relatarmos essa recordação, recorremos à narração para
ordená-la e elaborá-la e, por vezes, o mero movimento de colocar em ordem – ou
cronológica, ou factual – faz com que notemos ou cremos notar elementos que, sem
esse esforço de elaboração, talvez nos passassem despercebidos. Quiçá, o mero
movimento de organizar o relato o deixe menos “factual” ou verídico, visto que nesse
ato de organização da memória, alguns elementos ou quadros podem, ou não, se
tornarem mais relevantes do que no momento da ação que se quer rememorar e
relatar. A reelaboração da memória para a narrativa não necessariamente é tal qual
aconteceu, mas reflete quem é o sujeito no momento da rememoração. A memória e
a imaginação podem se fundir neste momento.
48

Nesta perspectiva, a preservação dessa “memória realista” e factual é de fato


relevante? Qual o espaço que a ficção, então, ocupa na recuperação e preservação
da memória? Caitlín R. Kiernan (2014), em seu romance A menina submersa, reflete
exatamente sobre a impossibilidade de se reter uma memória ou lembrança de
maneira completa e absolutamente verídica:

“Acho que andei contando mentiras”, datilografa Imp. Não que eu não tivesse
conhecido minha ex-namorada em um dia não tão chuvoso de junho, quando
as árvores estavam muito verdes. Toda essa parte é verdade, assim como a
parte sobre as coisas dela amontoadas no meio-fio. E eu roubando quase
sem querer os livros. Mas não tenho ideia do que dissemos uma à outra. Não
acho que alguém pudesse escrever essa cena e não mentir, recordações de
uma conversa que aconteceu há dois anos e meio. Ainda assim, eu não
pretendia mentir, tentando descrever como Abalyn e eu nos conhecemos. E
também não pretendia não mentir. A linha sobre a qual caminho é um tipo de
linha tênue, não é? Talvez eu devesse tomar alguma liberdade. O modo como
escrevi sobre Abalyn é verdadeiro, só que não particularmente factual, como
um filme “baseado em” ou “inspirado por” eventos reais. Tenho de preencher
as lacunas, por isso esta é uma história e não um monte de fotografias
apresentadas com palavras em vez de imagens. (p. 31)

Quando Imp reflete sobre a impossibilidade de recordar-se de todas as


minúcias do primeiro encontro com a namorada, ela coloca em perspectiva a “validade
da memória”, ou melhor, à medida em que o tempo entre o fato ocorrido e sua
rememoração aumenta, a capacidade de recordar-se dos detalhes diminui. Ainda
assim, não haveria garantia de que, mesmo que se tentasse relatar o encontro no dia
seguinte, seria possível fazê-lo de maneira completamente realística, pois, como dito
anteriormente, apreende-se o fato e recorda-se de maneira particular. Na
impossibilidade de recordar-se factualmente de um episódio, pode-se preencher
essas lacunas através da ficção sem, necessariamente, destituir esta recordação da
sua pretensa veracidade.
Ainda sobre a veracidade das recordações, Halbwachs (1990) reflete sobre as
lembranças reconstruídas e usa a lembrança de quando foi pela primeira vez ao
ginásio. Sendo impossível recordar-se com exatidão, ele reflete sobre como
elementos externos à sua própria lembrança servem como informações que
impregnam e constroem a recordação:

À medida em que os acontecimentos se distanciam, temos o hábito de


lembra-los sob a forma de conjuntos, sobre os quais se destacam às vezes
alguns dentre eles, mas, que abrangem muitos outros elementos, sem, que
possamos distinguir um do outro, nem jamais fazer deles uma enumeração
completa, e assim que tendo frequentado sucessivamente várias escolas,
pensionatos e colégios, e tendo encontrado a cada ano uma nova classe,
tenho uma lembrança geral de todas essas entradas, que abrange o dia
49

especial em que entrei pela primeira vez no colégio. (...) De início, eu li, desde
então um certo número de relatos, reais ou fictícios, nos quais se descreve
as impressões de uma criança que pisa pela primeira vez numa sala de aula.
É bem possível que, quando as li, a lembrança pessoal que eu guardava de
semelhantes impressões tenha se fundido com a descrição do livro. Eu me
recordo dessas descrições, e é talvez nelas em que se encontra conservada
e que rememoro sem o saber tudo aquilo que subsiste de minha impressão
assim transposta. (p. 49)

Ora, para o autor, há uma mistura natural entre a memória “real”, a história
vivida, a história aprendida, e a ficção, sem que esse entrelaçamento de informações
prejudique de fato a reconstrução da memória, sendo inclusive necessário para tal
feito. Octavia Butler escreve Kindred – laços de sangue como uma obra de ficção. É
um romance – uma fantasia, para ser específica –, entretanto, parte de relatos e
pesquisas históricas, e propõe a escrita da genealogia de uma família que, apesar de
ser fictícia, funciona como analogia para tantas outras que foram formadas de maneira
semelhante: através da miscigenação forçada entre o senhor de escravos branco e
uma mulher escravizada. Embora não pretenda acessar ou recontar uma memória
coletiva específica, de um grupo factualmente “real”, há na narrativa de Butler uma
tentativa de preservar a memória de um grupo social mais amplo. Através da ficção e
do expediente imaginativo, a autora explora uma memória específica num âmbito
particular.
Toni Morrison (2019), em A Fonte da Autoestima, propõe uma reflexão, sobre
a relação entre ficção e memória. Tomando por base seu fazer literário, a autora –
uma mulher negra – sublinha:

Se escrever é pensamento, descoberta, seleção, ordem e significado, é


também admiração e reverência e mistério e mágica. Suponho que eu
poderia dispensar os últimos quatro ingredientes se não levasse mortalmente
a sério a fidelidade ao ambiente a partir do qual escrevo e no qual meus
ancestrais de fato viveram. Infidelidade àquele ambiente — a ausência da
vida interior, sua extirpação deliberada dos registros que os próprios
escravizados redigiram — é precisamente o problema nos discursos que se
desenrolavam sem nós O modo como entro em contato com aquela vida
interior é o que me move e é parte dessa conversa que tanto estabelece
distinções entre minha ficção e as estratégias autobiográficas como também
se apropria dessas estratégias. É um tipo de arqueologia literária: com base
em certas informações e um pouco de indução, você viaja para um sítio para
ver que vestígios nos alcançaram e para reconstruir o mundo que esses
vestígios nos sugerem. O que faz disso ficção é a natureza do meu ato
imaginativo: minha confiança na imagem — nos vestígios — aliada à
lembrança, para alcançar uma espécie de verdade. Por “imagem”, claro, não
quero dizer “símbolo”; quero dizer simplesmente “impressão” e o sentimento
que acompanha essa impressão. A ficção, por natureza, difere do fato.
Presume-se que seja produto da imaginação — invenção —, e reivindica a
liberdade de dispensar o que “realmente aconteceu”, ou onde de fato
aconteceu, ou quando, e nada nela precisa ser publicamente verificável,
50

embora muito possa ser verificado. Por contraste, a pesquisa do biógrafo ou


do crítico literário só nos parece confiável quando os eventos da ficção podem
ser rastreados para algum fato publicamente verificável. É a busca própria à
escola do “Ah, sim, foi daqui que ele ou ela tirou aquela informação”, que
conquista sua própria credibilidade investigando a credibilidade das fontes da
imaginação, não a natureza da imaginação. (p. 234 - 235)

O modo como ela se relaciona com a memória ancestral e com o local a que
pertenceram seus antepassados é o que, segundo a autora, diferencia sua ficção de
um trabalho biográfico, que possui uma correspondência obrigatória com o real. A
ficção exige engenho. Ela destaca justamente a forma como realiza, no literário, o
entrelaçamento entre os vestígios e a lembrança, deixando claro que o primeiro tem
compromisso com uma pretensa verdade enquanto a segunda repousa na criação. É
justamente essa criação, ainda que embasada em fatos, que a diferencia
literariamente. Seria possível destacar engenho semelhante no que diz respeito à
ficção de Butler, que, em Kindred, relaciona o histórico com a memória no campo do
ficcional. Ela partiu de relatos, vestígios e documentos históricos, mas criou e
desenvolveu personagens e dilemas próprios, cuja existência – ou sua possibilidade
– existem somente por causa do engenho da autora. Morrison (2019) critica a
exigência da crítica literária e acadêmica que, dentro do campo imaginativo, exige uma
comprovação de veracidade.
A verdade na literatura não tem, ou não deveria ter, a pretensão de ser factual,
mesmo naquelas narrativas que partem de fatos ou pessoas “reais”. Sempre há
espaço para a criação; a ficção não deixa de ser verdade ou de ter a sua verdade por
não ser factual.

O real precisa ser ficcionado para ser pensado. Essa proposição deve ser
distinguida de todo discurso – positivo ou negativo – segundo o qual tudo
seria “narrativa”, com alternâncias entre “grandes” e “pequenas” narrativas. A
noção de “narrativa” nos aprisiona nas oposições do real e do artifício em que
se perdem igualmente positivistas e desconstrucionistas. Não se trata de
dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da era da estética
definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de
inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão
da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos
historiadores e analistas da realidade social. Escrever a história e escrever
histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a
ver com nenhuma tese de realidade ou realidade das coisas. Em
compensação, é claro que um modelo de fabricação de histórias está ligado
a uma determinada ideia da história como destino comum, com uma ideia
daqueles que “fazem história”, e que essa interpenetração entre razão dos
fatos e razão das histórias é própria de uma época em que qualquer um é
considerado como cooperando com a tarefa de “fazer” a história. Não se trata
pois de dizer que a “História” é feita apenas de histórias que nós contamos,
51

mas, simplesmente que a “razão das histórias” e as capacidades de agir


como agentes históricos andam juntos. (RANCIÈRE, 2009, p. 58-59)

Em Kindred – laços de sangue, Butler se propõe a reconstruir, a resgatar na


ficção alguns elementos e fatos verídicos, factuais, mas sem se deter em personagens
e eventos verdadeiramente históricos; ela aplica seus conhecimentos históricos para
reconstruir a memória de uma família fictícia, mas cuja estrutura ressoa em várias
famílias reais. A ficção entra, então, como uma ferramenta de resgate e homenagem,
e, por que não, de imaginação, para a reconstrução de um passado desconhecido ou
pouco conhecido, cujos registros costumam ser tendenciosos dentro da historiografia
e memória tradicional.
A ficção aqui tem a função de preencher os espaços deixados pela
impossibilidade da memória de alcançar e recordar tudo. O que se discute é a relação
entre verdades e fatos. Um acontecimento narrado não precisa ser necessariamente
um fato para ser real; a verdade da ficção é também uma verdade, e por vezes
funciona como uma analogia da vida tal como ela é. Para Linda Hutcheon (1991) em
Poéticas do Pós-Modernismo:

O pós-modernismo confunde deliberadamente a noção de que o problema da


história é a verificação enquanto o problema da ficção é a veracidade
(Berthoff 1970, 272). As duas formas de narrativa são sistemas de
significação em nossa cultura; as duas são aquilo que, certa vez, Doctorow
considerou como formas de "mediar o mundo com o objetivo de introduzir o
sentido" (...) Tanto a ficção como a história são sistemas culturais de signos,
construções ideológicas cuja ideologia inclui sua aparência de autônomas e
autossuficientes. (p. 149)

Para explicitar a relação entre o romance e a história, Butler insere referências


históricas, se tratando de uma narrativa que trata também da escravidão, a autora
escolhe como referência do real, como vestígio histórico, como símbolo das lutas
abolicionistas, pessoas negras escravizadas que lutaram pela liberdade, dignidade e
direitos dos seus. Assim, talvez pretenda dar corpo e veracidade aos elementos
históricos do romance, como que para inseri-los numa versão corrompida das
narrativas neo-escravas nas quais Bulter também se insere.

– Você está lendo a história, Rufe. Vire algumas páginas e encontrará um


homem branco chamado J.D.B. DeBow dizendo que a escravidão é boa
porque, entre outras coisas, ela dá aos brancos pobres alguém a quem
menosprezar. Isso é história. Aconteceu, não importa se te ofende ou não.
Uma boa parte dela me ofende, mas não tem nada que eu possa fazer em
relação a isso. – E havia outra história que ele não deveria ler. Grande parte
dela ainda não tinha acontecido. Sojourner Truth, por exemplo, ainda era
52

escrava. Se alguém a comprasse de seus senhores em Nova York e a


levasse ao Sul antes de as leis do Norte a libertarem, talvez ela passasse o
resto da vida colhendo algodão. E havia duas crianças escravas importantes
bem ali em Maryland. A mais velha, que vivia aqui no Condado de Talbot,
chamaria-se Frederick Douglass, depois de uma ou duas mudanças de nome.
A segunda, que morava a alguns quilômetros no Norte, no Condado de
Dorchester, era Harriet Ross, que acabou se tornando Harriet Tubman. Um
dia, ela custaria muito dinheiro aos donos de fazendas da Costa Leste ao
guiar trezentos de seus escravos fugidios à liberdade. E mais ao Sul, em
Southampton, Virginia, um homem chamado Nat Turner esperava
pacientemente. Havia mais. Eu havia dito que não podia fazer nada para
mudar a história. Mas se a história pudesse ser mudada, aquele livro nas
mãos de um branco, ainda que fosse um branco solidário, poderia ser o que
a mudaria. (p. 235)

Tal escolha de elementos demarca a que versão da história Butler dará corpo
e voz, qual a história ela tentará preservar, qual memória ela acessará. Quando
escreve uma narrativa pós-moderna que pretende a revisitação e redescrição
histórica, mas com um olhar que parte de uma nova consciência e identitária, Butler
vai além: ela rompe com as barreiras do “real” e, usando a fantasia, revisita esse
passado contestando algumas certezas contemporâneas, e o faz baseando-se em
uma intensa pesquisa histórica. O que se preservou, em sua maioria, sobre a
escravidão foi produzida e preservada por pessoas brancas; pode-se notar uma
diferença entre os relatos “oficiais” e aqueles recuperados de diários, ensaios,
documentos jurídicos. Os documentos produzidos para uso e consumo pessoal e
familiar revelam mais elementos sobre esse período do que se pode esperar.

3.2 Memória e poder: quem pode recordar? O resgate da memória no seio do


romance

A historiadora Michelle Perrot (2005), em As Mulheres ou os silêncios da


história, declara que: “No teatro da memória, as mulheres são uma leve sombra. A
narrativa histórica tradicional lhes dá pouco espaço, justamente na medida em que
privilegia a cena pública - a política, a guerra - onde elas aparecem pouco.” (p. 33).
Ou seja, os espaços reservados para a preservação da história e da memória são
espaços predominantemente dominado por homens; tais locais são o âmbito
masculino de propagação e manutenção do poder. Às mulheres, foram relegados os
espaços domésticos, quando nobres, e do trabalho, quando não-nobres. Às mulheres
negras escravizadas foi relegado o lugar do absoluto silêncio.
53

Ora, se às mulheres foi negado um espaço na história, na memória coletiva e


nacional, o que não foi negado às mulheres negras, que acabam inseridas em grupos
simultaneamente oprimidos? No que concerne à historiografia ocidental, impregnada
de uma ótica colonial, qual o lugar de memória reservado àquelas pessoas
escravizadas, colocadas num local de subalternidade e silêncio? E dentre essas
pessoas, qual o lugar ocupado pelas mulheres? A literatura acaba funcionando como
um espaço de recuperação dessas memórias, das histórias ignoradas ou esquecidas.
Afinal, o movimento de lembrança e esquecimento não é meramente ocasional; é nas
estruturas de poder que se decide o que pode ser lembrado, quem ou o que pode ser
esquecido. Butler com Kindred – laços de sangue, Toni Morrison com Amada, Maria
Firmino dos Reis com Úrsula, entre tantas outras, tentam dar voz aos silenciados,
resgatar e preservar histórias e memórias ignoradas, usando o romance como meio
para isso. Nas figuras de personagens específicos, o leitor acessa experiências
comuns àqueles corpos negros escravizados, violados, explorados. A ficção acaba
entrando como meio de preenchimento das lacunas da memória e do silenciamento
da história. Butler ainda ousa ao impor um olhar contemporâneo, ao propor uma
experiência atual de um fato passado. Perrot (2019) defende, então, que é necessário
uma revisão e investigação sobre a memória das mulheres e o espaço relegado ou
negado a essas memórias:

Escrever a história das mulheres é sair do silêncio em que elas estavam


confinadas. Mas por que esse silêncio? Ou antes: será que as mulheres têm
uma história? A questão parece estranha. "Tudo é história", dizia George
Sand, como mais tarde Marguerite Yourcenar: "Tudo é história". Por que as
mulheres não pertenceriam à história? Tudo depende do sentido que se dê à
palavra "história". A história é o que acontece, a sequência dos fatos, das
mudanças, das revoluções, das acumulações que tecem o devir das
sociedades. Mas é também o relato que se faz de tudo isso. Os ingleses
distinguem story e history. As mulheres ficaram muito tempo fora desse
relato, como se, destinadas à obscuridade de uma inenarrável reprodução,
estivessem fora do tempo, ou pelo menos, fora do acontecimento. Confinadas
no silêncio de um mar abissal. Nesse silêncio profundo, é claro que as
mulheres não estão sozinhas. Ele envolve o continente perdido das vidas
submersas no esquecimento no qual se anula a massa da humanidade. Mas
é sobre elas que o silêncio pesa mais. E isso por várias razões (p.16)

A historiadora deixa claro que não são somente as mulheres que foram
colocadas em um lugar de silêncio e esquecimento; e isso porque os corpos que se
desviam daqueles que ocupam os espaços de poder não possuem exatamente
espaço na história, exceto, talvez, os lugares de segunda ou terceira categoria. Mas,
se para a pesquisa da história das mulheres são necessários vestígios, quais seriam,
54

então, os vestígios das memórias das mulheres? Le Goff (1990), ao tratar o álbum de
família como um verdadeiro elemento da recordação social, destaca: “o pai nem
sempre é o retratista da família, a mãe o é muitas vezes. Devemos ver aí um vestígio
da função feminina da conservação da lembrança ou, pelo contrário, uma conquista
da memória pelo grupo feminino?” (p. 402). A memória das mulheres foi
historicamente inserida nos ambientes domésticos, nos relatos familiares, nas notas
práticas, nos diários, nas cartas e, como traz Butler em Kindred, nas Bíblias da família:

Hagar havia preenchido suas páginas com sua letra cuidadosa. Havia um
registro de seu casamento com Oliver Blake, e uma lista de seus sete filhos,
seus casamentos, alguns netos... E então, outra pessoa tinha assumido a
lista. Muitos parentes que eu não tinha conhecido, que nunca conheceria. Ou
conheceria? (2017, p. 47)

Foi a escrita designada feminina de Hagar, sem pretensão de fama, de fixar-se na


história que preservou uma parte dela para seus ancestrais e descendentes, para os
que viriam a seguir, mas apenas no seio familiar. Tal prática tem, sobretudo, intenção
de registro, de perpetuação do nome. Essa prática da escrita feminina está justamente
inserida no levantamento de Perrot (2019) sobre os espaços de memória e escrita das
mulheres:
Porque são pouco vistas, pouco se fala delas. E esta é uma segunda razão
de silêncio: o silêncio das fontes. As mulheres deixam poucos vestígios
diretos, escritos ou materiais. Seu acesso à escrita foi tardio. Suas produções
domésticas são rapidamente consumidas, ou mais facilmente dispersas. São
elas mesmas que destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem
interesse. Afinal, elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito. Existe
até um pudor feminino que se estende à memória. Uma desvalorização das
mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstancial à noção de honra. (p.
17)

Embora seja uma personagem fictícia, é interessante observar que Butler


constrói Hagar como uma mulher negra livre e letrada, algo incomum para o sul dos
Estados Unidos no século XIX. O acesso das mulheres à educação era restrito e, no
geral, pouco estimulado, especialmente no que se refere às mulheres negras. Na
narrativa, Dana é vista e tomada com incredulidade e estranheza justamente porque
“fala como branco”, porque domina a escrita. Ela se destaca porque possui
conhecimento e técnica próprios do que se esperava de um homem branco, não de
uma mulher negra. Não é possível discernir, no entanto, qual o nível de instrução de
Hagar: se apenas aprendeu as primeiras letras ou se – dada a sua condição de filha
legitimada de Rufus – pôde avançar além disso. Hagar, na realidade, constitui-se
como exceção à condição habitual das mulheres negras no sul escravista dos Estados
55

Unidos no século XIX: conhece sua genealogia; embora fruto do abuso sexual, teve
sua paternidade reconhecida; é livre e foi educada.
Angela Davis (2016), expõe que a educação das pessoas negras –
escravizadas ou livres – era uma questão a ser combatida antes e depois da abolição
da escravatura. Com a abolição, inclusive, começou-se um movimento de busca por
escolas. Ainda durante a escravidão, não foram poucos os escravos autodidatas,
como Frederick Douglas, por exemplo, e que buscaram passar o conhecimento
adiante. Além dos discursos difundidos sobre a inferioridade intelectual das pessoas
negras, o acesso à educação era severamente proibido, dificultado, precário ou até
mesmo criminoso. Contrariando tais determinações, houve casos de pessoas que se
empenharam na educação das pessoas negras, mulheres negras e mulheres brancas,
como Davis (2016) destaca: “Os exemplos mais marcantes de sororidade que as
mulheres brancas tinham em relação às mulheres negras estão associados à histórica
luta do povo negro por educação” (p. 110). Parte indissociável da identidade de Dana,
presente ou passado, ela é escritora. E ser uma mulher negra educada no século XIX,
se não impossível, era um evento raro. Tal distinção, marca com mais ênfase o corpo
de Dana, constantemente questionado. Uma das maneiras de resistência foi,
principalmente, através da educação. Tanto que, nas suas diversas estadias no
passado, ela começa a ensinar alguns escravizados a ler – à priori clandestinamente,
o que lhe custará uma cota de violência – e depois, Rufus aceita que ela ensine,
entretanto, tal ação feria o controle e a distribuição de poder:

Tal sede insaciável por conhecimento era tão poderosa entre escravas e
escravos do Sul como entre suas irmãs e irmãos “livres” do Norte.
Desnecessário dizer que os limites impostos à alfabetização da população
escrava nos estados escravagistas eram muito mais rígidos do que no Norte.
Depois da rebelião de Nat Turner, em 1831, a legislação que proibia o acesso
da população escrava à educação recrudesceu em todo o Sul. Nas palavras
de um dos códigos que normatizavam a escravidão no país, “ensinar
escravos a ler e a escrever tende a incutir a insatisfação em suas mentes e a
produzir insurreição e rebelião”. Com exceção de Maryland e Kentucky, todos
os estados do Sul vetavam completamente a educação para a população
escrava. (DAVIS, 2016, p. 113)

É clara a diferença entre as abordagens de Rufus e seu pai no que se refere à


educação e ao letramento dos escravizados, e nessa dissonância, podemos apontar
a influência de Dana. Para Weylin a educação daria às pessoas escravizadas a
possibilidade de sonhar com a liberdade, e isso seria um risco, pois, punha em xeque
todo o trabalho de domesticação e desumanidade objetivados pelo sistema escravista.
56

De maneira prática, dotar corpos comerciáveis de linguagem seria arriscar que eles
pudessem forjar passes, por exemplo, ou ler mapas, organizar rebeliões e fugas.
Conhecimento significaria, então, liberdade. Rufus, no entanto, permite que Dana
ensine seu filho e outras crianças da fazenda, a influência que ela tem sobre ele –
embora embotada pela diferença de poder entre eles durante a vida adulta de Rufus
– se faz perceber nos breves momentos em que Rufus destoa do estereótipo do seu
tempo:
Alguns de seus vizinhos descobriram o que eu estava fazendo e deram a ele
conselhos paternais. Era perigoso educar escravos, eles alertaram. Os
estudos deixavam os pretos insatisfeitos com a escravidão. E os estragava
para o trabalho no campo. O ministro metodista dizia que os estudos os
deixavam desobedientes, fazia com que desejassem ter mais do que o
Senhor pretendia que tivessem. Outro homem disse que dar aulas aos
escravos era ilegal. Quando Rufus respondeu ter checado que não era ilegal
em Maryland, o homem disse que deveria. Conversa fiada. Rufus
desconsiderou sem dizer o quanto acreditava naquilo. Bastava o fato de ele
estar do meu lado, e minhas aulas continuaram. (BUTLER, 2017, p. 378-379)

Retomando os ensaios de Morrison (2019), a autora destaca a relação entre a


publicação das narrativas escravas, o boom de interesse por esses relatos – o apelo
que elas incitavam e a função política que tinham na causa abolicionista – e a intenção
de descriminalizar o acesso ao saber pelas pessoas negras:
Além de usarem a própria vida para expor os horrores da escravidão, esses
escritores tinham outro motivo para os seus esforços. A lei que proibia tanto
que se ensinasse um escravizado a ler e a escrever (que em muitos estados
do Sul implicava penas severas) quanto que um escravizado aprendesse a
ler e a escrever tinha de ser deitada por terra a qualquer custo. Esses
escritores sabiam que alfabetização significava poder. Votar, afinal de contas,
conectava-se inapelavelmente à capacidade de ler; a alfabetização era uma
forma de pressupor e comprovar a “humanidade” que a Constituição lhes
negava. É por isso que as narrativas ostentam o subtítulo “escrita por ele
mesmo” ou “por ela mesma” e incluem introduções e prefácios redigidos por
simpatizantes brancos, servindo como uma forma de autenticação. (p. 232-
233)

A necessidade de atestar-se a veracidade de uma narrativa escrava estaria


ligada a resistência em dotar as pessoas negras de direitos sociais básicos, como o
voto. Mantê-las analfabetas, ainda que pós-abolição, garantiria uma quantidade
considerável de pessoas sem poder nem ferramentas para questionar a ordem social
vigente.
A surpresa que Dana causa por ser uma mulher negra culta é, sobretudo,
porque ela encarna um sujeito que teoricamente não teria sequer voz. A figura da
escritora é sempre seguida pela incredulidade, por ela possuir as ferramentas que
possui. O que ela representa é quase uma aberração e um perigo. Ser letrada dá a
57

Dana uma voz, embora nem sempre ela possa ser ouvida, e é uma prova da sua
subversão ao poder vigente. Na relação entre Dana e Rufus há alguns momentos de
inversão de poder justamente por causa da linguagem. Nas primeiras vezes em que
ela vai para o passado, ela é adulta e ele, uma criança; nesses momentos ela
consegue, através do discurso, persuadir e ter algum poder sobre Rufus. Quando eles
se encontram com idades próximas, a balança do poder volta a pender a favor dele;
mesmo que ela seja obviamente mais inteligente e sensata, com maior poder de
persuasão, as vantagens próprias do contexto são todas dele.
Quem escreve a história e perpetua suas memórias são os vencedores,
aqueles que “oficialmente” fizeram a história, os grandes homens. Claro que o recorte
de tais afirmações se limita à história ocidental e eurocêntrica, cuja ótica imperialista
ignora a existência da história e memória dos grupos antes da chegada de seus
agentes colonizadores. No âmbito da literatura norte-americana, um movimento
revisitação do passado começou a nascer desde a década de 1960, e a escravidão,
como elemento constituinte deste passado, figura como tema e pano de fundo para
toda uma geração de escritores – em especial, escritoras e escritores negros:

Desde a década de 60 a ficção americana tem sido caracterizada por Malcolm


Bradbury (1983, 186) como sendo especificamente obcecada por seu próprio
passado – literário, social e histórico. Talvez essa preocupação esteja (ou
estivesse) ligada, em parte, à necessidade de encontrar uma voz
especificamente americana dentro de uma tradição eurocêntrica
culturalmente dominante (D’Haen 1986, 216). (HUTCHEON, 1991, p. 165).

Para aqueles que buscavam fugir de uma tradição eurocêntrica, principalmente


porque a ela nunca pertenceram, a década de 1970, com toda a sequência de
movimentos em prol da liberdade de grupos sociais, serviu como motivador e contexto
para novos autores. Octavia Butler também fez parte deste movimento de buscar, no
passado, os temas para sua literatura, mas Kindred vai além: com o romance, ela abre
uma discussão sobre a possibilidade de um resgate da memória. Mas, de qual
memória estamos falando? Os espaços de memória são espaços de poder, estão de
tal modo entrelaçados, que, como aponta Le Goff (1990):

A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é
uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os
silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da
memória coletiva. O estudo da memória social é um dos meios fundamentais
de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a
memória está ora em retraimento, ora em transbordamento. (p. 368)
58

Determinados grupos que sentiram ou vivenciaram uma situação de


perseguição e silenciamento na história, acabam vivenciando ora essa escassez, ora
o excesso da memória. Esse movimento de lembrança e esquecimento acaba
evidenciando a possibilidade de manipular-se a memória. Tais grupos silenciados
começaram a viver nas últimas décadas de uma necessidade do passado, que não
só precisa ser explicado em termos científicos, como também precisa ser superado.
Há uma memória impedida, aquela do impossível de dizer, em que o sofrimento é tão
grande que não há possibilidade de ser dito. Há algo indizível na memória da dor. A
rememoração da tortura acaba sendo uma nova tortura, e, portanto, quando há certa
cobrança sobre uma memória obrigada, que precisa manter-se viva, esquece-se, por
vezes, que quem lembra é o sujeito colocado na sociedade. O passado não está
pronto, não está acabado, e pode ser manipulado, seja na experiencia vivida, seja no
que fica gravado. A obrigatoriedade ou o dever da memória se pauta no compromisso
com o passado, com o antepassado e com a história. O direito a memória é outra
coisa: se configura como uma busca do sujeito que precisa estar colocada no passado
como o sujeito que era e no presente como sujeito que é. É uma luta pelo direito de
determinados sujeitos – aqueles impedidos de conservar a memória – de terem
existência memorial.

Esperei dentro de casa com minha bolsa sempre por perto. Os dias passaram
lentamente, e às vezes eu pensava que estava esperando por algo que não
aconteceria. Mas continuei esperando. Li livros sobre escravidão, ficção e não
ficção. Li tudo o que tinha na casa, por menos relacionado ao assunto que
fosse, até mesmo E o Vento Levou, ou parte dele. Mas sua versão de
negrinhos felizes envolvidos em amor foi demais para mim. Então, acabei me
distraindo com um dos livros da Segunda Guerra Mundial de Kevin: um livro
de memórias de sobreviventes de campos de concentração. Histórias de
agressão, inanição, imundície, doença, tortura, todo tipo de humilhação.
Como se os alemães tivessem tentando fazer, em apenas alguns anos, o que
os americanos praticaram por quase dois séculos. (...) Como os nazistas, os
brancos pré-guerra entendiam um bom tanto de tortura, um bom tanto a mais
do que eu queria entender (BUTLER, 2017, p. 232-233).

Nesse trecho, Dana volta mais uma vez para casa. Habitualmente, no romance,
seus retornos para o século XX estão envoltos em violência: dessa vez, ao ser
flagrada por Tom Weylin ensinando Nigel – menino escravizado da fazenda – a ler, foi
entre chibatadas e dor que voltou para a sua casa, embora não lhe parecesse sua no
momento. Kevin, que a acompanhara em sua última viagem no tempo, ficara preso
no século XIX e, por isso, ela volta sozinha. Ansiosa para voltar para 1819 e resgatar
59

seu marido, Dana espera e se prepara. Mas, como preparar-se para experenciar algo
que, embora não seja absolutamente novidade, sempre revela uma faceta nova a
cada experiência? Usando as vantagens do século XX – poder acessar vestígios
históricos do século XIX –, Dana busca nos livros e nas outras representações
artísticas ou documentais ferramentas que lhe ajudem a manter-se viva e retornar
para seu tempo. O sortimento de materiais aos quais tem acesso é vasto: quando
destaca que visitou os livros de ficção e não-ficção, e mesmo produções de outras
mídias, nota-se que o fato histórico permeia e se mantém vivo nos mais diversos
meios, não importando necessariamente a veracidade dos fatos. Somente o elemento
pouco factual sobre os escravizados felizes em E o Vento Levou incomodou a
protagonista, porque a realidade que encontrou na fazenda dos Weylin era o exato
oposto. Caminhando entre a ficção e a realidade, Dana buscou no acervo que possuía
– uma vasta biblioteca, haja vista ser uma casa de escritores – e aparentemente não
encontrou nada que a preparasse para o que passaria no século XIX.
Quando desloca sua atenção para outra fato histórico marcante e alarmante –
a Segunda Guerra Mundial –, Dana se depara com um livro de memória dos
sobreviventes do Holocausto. Os relatos – cuja veracidade não é jamais posta à prova
– remetem ao tratamento que ela viu e experenciou sendo dado aos negros.
Repetiram-se em outro momento, a outros corpos destituídos de poder, práticas
semelhantes de tortura e desumanização. Entretanto, diferentemente da maioria dos
negros escravizados (salvo aqueles que conseguiram reconstituir suas histórias e
escreveram narrativas escravas, como Frederick Douglas, por exemplo), por motivos
como analfabetismo e racismo, os sobreviventes do Holocausto puderam conservar
sua memória: a seus sofrimentos indesculpáveis foram erguidos e preservados
monumentos de memória. Dito isto, e longe de provocar uma concorrência de
sofrimento e abjeção, pode-se questionar: ao longo da história, a quem é/foi permitido
lembrar? Não às mulheres, sobretudo às mulheres negras escravizadas. E é sobre
essa ausência de memória que Octavia Butler escreve Kindred – laços de sangue.
Retomando aos estudos de Assmann (2011), sobre o uso da escrita para a
fixação na memória: “Alguns escreveram a história do Holocausto para dar
testemunho do maior crime da história da humanidade e com isso fixá-lo como tal na
memória; outros quiseram tratar esse acontecimento de maneira comparativa e
explicá-lo por via causal” (p. 157). Ora, se a escrita – seja um relato histórico, um
testemunho, um livro de memórias –pode funcionar como um meio de fixação de um
60

fato na memória, a literatura também não poderia fazê-lo de maneira semelhante,


ainda que o faça por meio da ficção? Os personagens criados não partem de figuras
reais, ou seja, são pretensamente imaginativos ou irreais, mas ainda assim dialogam
com experiências, vivências e fatos; é através das situações vividas por eles que a
autora propõe uma forma diversa de se encarar os sujeitos e a situação da escravidão.
A ausência de monumentos ou locais de memória destinados à preservação e
perpetuação da memória e história dos escravizados, permite que este movimento de
preservação possa acontecer no seio do romance. Morrison (2019), respondendo ao
questionamento de por que pleitear locais de memória, destaca:

“Não há lugar”, eu disse, “aonde eu ou você possamos ir para refletir ou não


refletir, para evocar a presença, ou relembrar a ausência, dos escravizados;
nada que nos recorde daqueles que completaram a travessia e dos que
ficaram no meio do caminho. Não há um memorial apropriado, não há uma
placa, grinalda ou parede, parque ou lobby de arranha-céu. Não há torre de
noventa metros de altura, nem banquinho de beira de estrada. Não há sequer
uma árvore marcada, uma inicial que eu ou você possamos visitar em
Charleston ou em Savannah ou em Nova York ou em Providence ou, melhor
ainda, nas margens do Mississipi.” (MORRISON, 2019, p. 77-78)

Butler faz de Kindred um receptáculo da memória. Uma memória que não é


tangível, uma memória que não repousa em monumentos, em locais de acesso, em
locais de memória. Quando há tais lugares, o enfoque dado é à memória de dor e
sofrimento somente. A escravidão nas colônias parece ser um fato histórico que é
constantemente apagado da história. O esquecimento da escravidão é o oposto da
rememoração do Holocausto: no tocante à escravidão, não se quer envergonhar o
corpo branco que escravizou, prefere-se culpar e envergonhar o corpo negro
escravizado, utilizando falácias como o estereótipo racista da docilidade do
escravizado. Neste apagamento, parece haver um pacto esquecimento do que foi
feito. Há muitas diferenças no tratamento dado à história negra e aos massacres de
povos não-brancos, como comparados àqueles que se referem a pessoas brancas,
como o Holocausto.
Ter acesso à memória garante a Dana sua sobrevivência, porém, nem todo o
conhecimento teórico e técnico substitui, nesse caso, a vivência. Ela sobrevive, mas
não escapa. Em determinado momento, Kevin a lembra de que ela pode sim
sobreviver no passado porque ela sabe o que vai acontecer; ela retruca dizendo que
seus antepassados têm conhecimentos empíricos que os tornam de uma matéria mais
forte do que ela. Nem sempre conhecimento é poder, e este é um desses casos.
Quando consegue voltar para casa pela penúltima vez, dessa vez com Kevin, eles
61

estranham a casa: ele, por ter passado cinco anos no século XIX, perde a referência
do seu próprio lar; ela, presa às ligações emocionais e familiares, sente como “lar” a
fazenda Weylin. O que ela sentira durante o período que passou na época de Rufus
se tornou algo mais real que a vivência do casal nesta casa em 1976. Em suas
palavras:

A época de Rufus era uma realidade mais pungente, mais forte. O trabalho
era mais pesado, os cheiros e os gostos eram mais fortes, o perigo era maior,
a dor era pior... a época de Rufus exigia coisas de mim que nunca tinham
sido exigida antes, e com facilidade poderia ter me matado se eu não
satisfizesse suas exigências. Era uma realidade intensa e poderosa que as
leves conveniências e os luxos dessa casa, do agora, não alcançavam.
(BUTLER, 2017, p. 305)

Para ambos, a relação mais forte com o passado está personificada na


Fazenda Weylin, como se fosse um porto seguro. Sendo o destino da viagem temporal
– e por destino assumimos aqui a polissemia da palavra: tanto o lugar de chegada
quanto o que deveria ser, o destino mágico –, a fazenda representa o conhecido no
meio do desconhecido. As dificuldades que ambos enfrentam lá são mais conhecidas
e esperadas do que o que os aguarda do outro lado. É onde eles assumem suas
identidades do século XIX, onde eles vestem suas personas: ela, escravizada, ele,
homem branco que ajudava os escravizados.
As viagens impactam os que habitam o século XIX, mas nem Dana nem Kevin
voltam intactos: a readaptação ao século XX não é instantânea. O passado tão
presente os assombra tal como um fantasma: os Weylin e o século XIX os espreitam
nos meros detalhes de suas existências no século XX. O passado quase tirou de
ambos a capacidade de escrever, de exercer sua profissão. Como seria possível
escrever uma ficção imaginativa se o que se viveu é o fato mais estranho que se tem
conhecimento? Se, por outro lado, se quiser fazer um relato do que se passou, como
fazê-lo soar realidade? Como se buscar na literatura o inimaginável, se já se viveu
isso na pele? Dana percebe a súbita e compreensível incapacidade de relatar a sua
experiência:

Joguei a faca dentro da bolsa e substituí sabonete, pasta de dente, algumas


roupas, algumas outras coisas. Voltei a pensar em Kevin. Fiquei tentando
imaginar se ele me culpava pelos cinco anos que tinha perdido. Ou, se não
me culpava agora, se me culparia quando tentasse escrever de novo? Ele
tentaria. Escrever era sua profissão. Fiquei me perguntando se tinha
conseguido escrever durante os cinco anos ou se tinha conseguido publicar
alguma coisa. Tinha certeza de que tinha escrito. Não conseguia imaginar um
de nós passando cinco anos sem escrever. Talvez ele tivesse mantido um
diário ou coisa assim. Ele havia mudado; em cinco anos, não tinha como
62

evitar as mudanças. Mas os mercados para os quais ele escrevia não tinham
mudado. Talvez passasse por uma fase frustrante. E talvez me culpasse.
(Butler, 2017, p. 313)

Kevin perdeu a referência histórica, a contingência de seu tempo que lhe


permitia identificar-se em 1976. Agora, depois de 5 anos no século XIX, ele perdeu a
habilidade de ser um homem dos anos 1970. Sua identidade passou por uma
modificação tamanha que, embora ele esteja em seu tempo, este já não lhe diz mais
nada. Com Dana, o mesmo não ocorre com tanta intensidade: seja porque ela passa
intervalos menores de tempo no passado, seja porque ela precisou lembrar-se
constantemente de onde vinha para sobreviver e não enlouquecer, embora demore
um pouco para reconhecer-se no seu tempo. Ao contrário de Kevin, Dana no século
XIX, não conseguia passar incólume: sua pele a marcava e a destacava. Ela, portanto,
agarrou-se a sua identidade, não deixou ela esvanecer-se da memória; muito pelo
contrário, preservou-a. O que os confunde é que suas lembranças ou memórias
pertencem, ao mesmo tempo, a um passado recente e a um passado distante; são,
para Kevin, suas vivências dos últimos cinco anos e uma realidade de duzentos anos
atrás. Embora, diferentemente de Dana, Kevin não tenha vivido os castigos e a
escravidão em si, a mera observação do fato deixa nele marcas que, sendo um
homem contemporâneo e não fruto do século XIX, não somem pelo mero retorno ao
seu tempo.
A “memória do futuro” de Dana, em que era uma mulher livre, ajudou-a
sobreviver. O tempo presente é, simultaneamente, seu passado e seu futuro. Ela
guarda em si uma lembrança do que foi e que ainda será, já que:

Dana oferece uma perspectiva dupla sobre o passado: simultaneamente


como uma mulher do século XX, que se distancia intelectualmente dessa
época, e como uma mulher do século XIX cujo corpo sofre as tecnologias
disciplinares da escravidão. (VINT, 2007, p. 248-249, tradução nossa)28

A memória de Dana sofre do mesmo paradoxo da protagonista: deslocada de


seu tempo, o passado e futuro se confundem, as lembranças que possui foram vividas
ao mesmo tempo que ainda serão vividas, a questão acaba configurando-se como um

28
No original: Dana provides a doubled perspective on the past: as simultaneously a twentieth-century
woman who intellectually distances herself from this era and a nineteenth-century woman whose body
suffers the disciplinary technologies of slavery.
63

paradoxo de bootstrap29: se Dana não voltasse no tempo, ainda assim os eventos que
ocasionaram o nascimento de Hagar existiriam da mesma forma? Teria sido a viagem
no tempo que provocou a própria existência de Dana?
Com o tempo, Dana vai se tornado menos humana e mais uma entidade
(espiritual/familiar – daí outra significação para o título do romance) para as pessoas
da fazenda. Se de início questionavam sua existência – principalmente Tom Weylin –
, com o passar dos anos, as “temporadas” de Dana no século XIX ganham uma aura
de mistério e magia, principalmente porque ela sempre traz consigo conhecimentos e
ferramentas do século XX – sabonetes, analgésicos, remédios em geral, canetas
esferográficas – que permitem que ela possa cuidar de Rufus e dos outros de uma
maneira mais eficiente que um médico daquela época.
Interessante observar que Butler escolhe para Dana uma profissão que seria
pouco “útil” para ela no passado; afinal, para que serviria uma mulher negra escritora
numa fazenda escravocrata do século XIX? Os conhecimentos de medicina de Dana
não são excepcionais, suas ferramentas tampouco. Seus conhecimentos históricos
existem, mas não são específicos. Ela é uma mulher comum que, por causa dos
avanços científicos e tecnológicos do século XX, consegue sobreviver a coisas das
quais ela só tinha uma pálida ideia. Assim, Butler também faz uma exaltação da
ciência e do poder do conhecimento, afinal, são eles que garantem a sobrevivência
de uma protagonista que não tem nenhum superpoder – ao contrário dos habituais
heróis dos romances de ficção científica e de fantasia, Dana é uma mulher comum,
com mais desvantagens sociais que vantagens, mas consegue sobreviver a um
período nefasto.
Em A Partilha do Sensível, Jacques Rancière (2009) quando discute as
relações entre literatura e história, diz:

Os enunciados políticos ou literários fazem efeito no real. Definem modelos


de palavra ou de ação, mas também regimes de intensidade sensível. Traçam
mapas do visível, trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos
dos ser, modos do fazer e modos do dizer. Definem variações das
intensidades sensíveis, das percepções e capacidades dos corpos. (p. 59)

A literatura teria, então, um papel essencial nesse movimento de redescrição e


criação, tal como veremos no capítulo seguinte deste trabalho. Nela, o autor pode

29
Construto filosófico que trata da existência paradoxal de um objeto, pessoa, ou conceito, que, ao
viajar para o passado, dá origem a si mesmo.
64

explorar a potência da linguagem e do imaginário cultural, pode propor novas formas


de ver o mundo e os costumes, pode questionar o status quo social. Não podemos,
portanto, desconsiderar os efeitos do literário no real. A literatura é possibilidade, é
potência que não diz e sim sugere e revela; é, também, base para a criação,
responsável por expandir horizontes morais; permite que os leitores acessem outras
maneiras de encarar o mundo e a vida. Podemos dizer que é através da ficção e do
ato narrativo que há a compreensão do mundo, como uma ferramenta de construção
e assimilação de sentido. Através da narração o saber se torna mais compreensível.
Seixas (2001) destaca:
A memória, portanto, constrói o real, muito mais do que o resgata. Há em
Proust a noção de uma otimista memória construtivista. Esta instigante
sugestão parece-me abrir à historiografia novas possibilidades de
interpretação das encruzilhadas que aproximam história e memória. A
memória age “tecendo” fios entre os seres, os lugares, os acontecimentos
(tornando alguns mais densos em relação a outros), mais do que
recuperando-os, resgatando-os ou descrevendo-os como “realmente”
aconteceram. Atualizando os passados – reencontrando o vivido “ao mesmo
tempo no passado e no presente” –, a memória recria o real; nesse sentido,
é a própria realidade que se forma na (e pela) memória. O tempo perdido e
reencontrado (no sentido de retomado, de um tempo que começa de novo; e
não do eterno retorno do mesmo) não se refere apenas ao passado, mas
também ao futuro, ou melhor, como observou G. Poulet, à capacidade há
tanto tempo esquecida de “ter fé em um futuro”. (p. 51)

Kindred – laços de sangue se constitui como uma possibilidade de


reorientação histórica, um modo de contar a história – ou, no caso, recontar. É outra
versão de um fato histórico sob um novo olhar. À medida que realiza essa atualização
de um passado conhecido, embora não experimentado pela autora, constrói um
universo de possibilidades, do que poderia ter sido através do engenho literário. A
Fazenda Weylin e seus personagens não existiram de fato, mas poderiam. Butler
constrói uma memória ficcional, e esta, imbuída de rastros históricos, resgata uma
memória silenciada e apagada. Quase como o que Assman (2011) chamará de
contrarrecordação, Kindred aparece como um local de questionamento da ordem
vigente. Embora se mantenha fiel às estruturas sociais presentes tanto no século XIX
como no tempo presente da obra, há um questionamento acerca da validação do
poder. Se a condição a que foram submetidos os escravizados é justificada através
de argumentos de inferioridade racial e limitações intelectuais, a presença de Dana,
uma mulher negra, culta e altiva, põe em xeque a validade desses argumentos. Para
Assman (2011):
65

O motivo de uma contrarrecordação cujos portadores sejam os vencidos e


oprimidos é a deslegitimação de relações de poder consideradas opressivas.
Essa deslegitimação é tão política quanto a recordação oficial, já que nos dois
casos se trata de legitimação e poder. A recordação que se seleciona e
conserva nesse caso presta-se a dar fundamentação não ao presente, mas
ao futuro, ou seja, ao presente que deve suceder à derrubada das relações
de poder ora vigentes. (p. 152)

Ainda que essa redescrição da memória seja um ato político, Butler não
pretende transformar a experiência de seus personagens escravizados na única
válida, alçá-la ao status da única Verdade possível; ela apenas apresenta uma das
possibilidades, justamente a que foi esquecida e calada pela historiografia tradicional
e pelos meios de difusão das imagens culturais.
Quando disserta sobre as condições de escrita e publicação das narrativas
escravas, Toni Morrison (2019) destaca e critica o pudor que os autores tinham em
escancarar os horrores da escravidão, ao mesmo tempo que explica que tais
melindres eram exigidos dos autores e esperado pelos leitores. Temas como estupro
e a brutalidade dos castigos particularmente escatológicos deveriam ser evitados em
tais narrativas, as quais, quando encurraladas pela impossibilidade de omiti-los,
desviavam do tópico. Em Kindred – laços de sangue, Butler, ainda que amainando o
tom dos eventos, não se priva nem de narrar com franqueza a experiência possível
de um escravizado no sul dos Estados Unidos, nem de submeter sua protagonista
contemporânea às vivências e violências a que ela seria submetida se, de fato,
voltasse no tempo para uma Maryland do século XIX. Claro que deve se levar em
conta o gênero das narrativas; sendo o romance de Butler uma narrativa pós-
contemporânea e de fantasia, não precisa seguir as regras severas das narrativas
escravas, que tinham, também, um tom político e anseio pela legitimação histórica de
veracidade. Morrison declara sobre o exercício de exposição das facetas mais
degradantes do que foi o sistema escravista:

Para mim — uma escritora no último quarto do século XX, não mais do que
cem anos depois da Emancipação, uma escritora que é negra e mulher —, o
exercício é muito diferente. Meu trabalho consiste em rasgar o véu que
recobre aqueles “procedimentos terríveis demais para relatar”. Esse exercício
é também crítico para qualquer pessoa negra, ou que pertence a qualquer
categoria marginalizada, pois, historicamente, só de raro em raro fomos
convidados a participar da discussão, mesmo quando éramos o tema. Retirar
esse véu requer, portanto, certas coisas. Primeiro de tudo, preciso confiar nas
minhas próprias lembranças. Devo também depender das lembranças dos
outros. Desse modo, a memória tem grande peso no que escrevo, em como
começo e no que penso que seja significativo (2019, p. 234)
66

Esse “rasgar de véus” exercido por Morrison em sua literatura é semelhante ao


que Butler realiza em seu fazer literário. Ambas partem de lugares de produção
semelhantes e, embora tracem caminhos narrativos mais ou menos distintos, estão
marcadas por uma mesma memória social sumariamente silenciada. Mas, ainda que
compartilhem certas experiências e vivências como autoras negras norte-americanas,
é necessário ressaltar que ambas partem de suas particularidades, inexistindo uma
maneira única de vivência da mulheridade negra. Em Kindred, Octavia delineia
diversas possibilidades de vivência de mulheres negras no século XIX, embora todas
tenham em comum a marca da violência.
Retomando os dizeres de Assman (2011), a memória feminina e a literatura
escrita por mulheres foram relegadas a lugares de esquecimento:

A pesquisa feminista insiste em que o senso comum compreenda que a


“grandeza” é um predicado, uma característica feita por homens para
homens. Chamou a atenção do poeta Gray, nos idos do século XVIII, que a
luz da fama nunca brilha sobre os pobres e marginais; hoje chama nossa
atenção o fato de que a luz da fama nunca brilha sobre as mulheres. Não
importa como se chamem: Cato, Cícero e César ou Hampden, Milton e
Cromwell – nos anais da história a fama nunca rima com mulher. Em todas
as camadas sociais a mulher constitui o pano de fundo sobre o qual a fama
masculina se ergue, luzente. Enquanto as condições para a inclusão na
memória cultural forem a grandeza heroica e a canonização clássica, as
mulheres serão sistematicamente vítimas do esquecimento cultural: trata-se
de um caso clássico de amnésia cultural. (p. 66-67)

Portanto, a relevância de Octavia vai além de sua literatura. Além dos mundos
fantásticos e das narrativas engajadas, ela conseguiu criar-se e consolidar-se em uma
área pouco amigável para pessoas como ela: uma mulher negra. E ao colocar corpos
pouco habituais no centro de suas histórias, ela pretende subverter um imaginário já
tão estabelecido.
67

4 OCTAVIA BUTLER: EXPLORADORA DAS POSSIBILIDADES DA


EXISTÊNCIA

4.1 Novas formas de representação da mulher negra e do imaginário cultural pós-


abolição

O imaginário pós-abolição, no que se refere aos estereótipos sobre pessoas


negras, foi historicamente construído e fundado, em sua maior parte, em mitos
desumanizadores e que perpetuavam inverdades, com o objetivo de impedir as
relações afetivas ou amigáveis entres pessoas brancas e pessoas negras. Em um
breve período entre o fim da escravidão e a implantação das leis Jim Crown, antes da
proibição do casamento inter-racial, diversos casais constituídos por pessoas brancas
e negras buscaram legalizar seus afetos.
Entretanto, enquanto a união entre uma mulher branca e um homem negro era
menos reprimida – embora não fosse, absolutamente, nem estimulada e nem aceita
– o casamento entre mulheres negras e homens brancos era severamente
desaconselhado. Se quando casada a mulher assumia o status do marido, legitimar
os filhos dessas relações era uma ameaça à estrutura de poder vigente, pois:

Uma vez que mulheres brancas representam um grupo sem poder, quando
não aliados a homens brancos poderosos, o casamento delas com homens
negros não é uma ameaça forte à regra patriarcal branca existente. Em nossa
sociedade patriarcal, se uma mulher branca rica se casa com um homem
negro, ela adota o status dele. Por conseguinte, uma mulher negra que se
casa com um homem branco adota o status dele; ela assina o nome dele e
as crianças são herdeiras dele. Consequentemente, se a maioria desse
pequeno grupo de homens brancos, que dominam corpos formadores de
opinião na sociedade estadunidense, fosse casar com mulheres negras, as
bases do poder branco estariam ameaçadas. (HOOKS, 20019, p. 112)

O mito do homem negro estuprador e o mito da mulher negra insaciável


sexualmente serviam a esse propósito de afastar e desestimular tais relacionamentos.
O medo afastaria as mulheres brancas; e a crença do livre acesso ao corpo da mulher
negra, combinados à crença difundida de que elas não seriam parceiras respeitáveis,
afastavam os homens brancos; e assim, o pacto de solidariedade entre pessoas
brancas manteria os seus entre os seus. Ainda que as mulheres brancas não
representassem um grupo que de fato possuísse poder social, o casamento com
homens negros representava uma diminuição das candidatas “viáveis” para o
68

casamento com homens brancos e era uma ameaça à masculinidade branca. Por
mais que, segundo bell hooks (2019), o número de homens brancos que buscaram
legitimar seus relacionamentos com mulheres negras não fosse maior que o contrário,
eram essas as relações mais combatidas de ambos os lados. Era difundida entre as
mulheres negras a ideia de que homens brancos tinham desejo de estupra-las, ainda
que dessa vez o mito fosse fundado na verdade escravocrata:
Homens negros têm forte interesse em manter barreiras existentes que
desencorajam casamentos entre mulheres negras e homens brancos, porque
isso elimina a competição sexual. Assim como pessoas brancas sexistas
usaram a ideia de que todos os homens negros eram estupradores, para
limitar a liberdade sexual de mulheres brancas, pessoas negras usaram a
mesma estratégia para controlar o comportamento sexual de mulheres
negras. Por muitos anos, pessoas negras advertiram mulheres negras para
que tomassem cuidado no envolvimento com homens brancos, por medo de
que um relacionamento desses pudesse levar à exploração e degradação da
mulheridade negra. Ainda que não haja necessidade de negar o fato histórico
de que homens brancos exploraram mulheres negras, esse conhecimento é
usado por pessoas brancas e negras como arma psicológica para limitar e
impedir a liberdade de mulheres negras. (HOOKS, 2019, p. 116)

O casamento de Dana e Kevin em Kindred é rejeitado pelos parentes de ambos.


Para os tios de Dana, o casamento da sobrinha com um homem branco foi motivo de
rompimento familiar. A tia deixa claro o desejo de que Dana tenha filhos mais claros,
acreditando que seria melhor para a família, mas não gostaria que esse “clareamento”
se desse por causa do casamento com um homem branco – ignorando que talvez a
sobrinha sequer quisesse filhos –, enquanto que o tio vê o casamento como uma
negação da sobrinha em relação ao ideal de homem que ele representa, já que à
protagonista falta uma figura paterna, e é na figura do irmão de sua mãe que ela
constrói sua ideia de masculinidade negra. Ao relacionar-se afetivamente com um
homem que representa quase seu oposto, ele sente como se fosse um ataque direto
ao que ele é.
A estranheza causada por Kevin e Dana como um casal não se deteve na
reação drástica de suas famílias. No trabalho – onde se conheceram, ambos
escritores e fazendo trabalhos braçais para se sustentarem – as reações iam de
presumirem que ambos eram meros parceiros sexuais “– Baixaria com chocolate e
baunilha!” (BUTLER, 2017, p. 91) a “Uma das mulheres da agência me disse, com
uma delicadeza típica do mercado escravagista, que ele e eu éramos o ‘casal mais
esquisito’ que ela já tinha visto” (BUTLER, 2017, p. 93). Ora, o casal era “esquisito”
por ser inter-racial, principalmente por se tratar de um homem branco e uma mulher
69

negra, algo que – ainda que não fosse mais crime – era estimulado a ser socialmente
rejeitado. Não faltam no romance casais nesse modelo, embora apenas Dana e Kevin
representem uma união consensual.
A ausência de representação de casais inter-raciais nas mídias norte-
americanas nos anos pós abolição, e até durante um período histórico recente,
contribuiu para que tal “estranheza” fosse a reação mais aceitável. Acostumar o olhar
para tais fenômenos colabora com a ressignificação do que é tido como “normal” e
“aceitável” dentro do imaginário social. Para Vint (2007) a literatura pode, justamente,
figurar como um local de reformulação e, por que não, de questionamento de certos
tipos narrativos, o que favorece a redescrição do imaginário de uma época, pois,
segundo ela: “as narrativas fantásticas neo-escravas revisam e resistem aos tropos
das narrativas escravas do século XIX” (p. 242, tradução nossa)30. Butler, dentro do
seu fazer literário, revisa tais estereótipos quando apresenta para o leitor as diversas
possibilidades de subjetividades negras.
A reorientação do imaginário relativo à mulher branca fruto do século XIX –
agora, lhe cabiam os lugares de madona e de virgem, ambos símbolos de pureza e
castidade – , fez com que recaísse sobre a mulher negra o imaginário de lascívia e
sedução demoníaca. Tais imagens reverberam ainda na atualidade, sob o véu do
estereótipo da Jezebel, aquela que é insaciável sexualmente. Essa transferência de
imaginário também acaba servindo para justificar os abusos das mulheres negras,
afinal, como seria possível estuprar uma mulher sedenta e sempre disposta para o
sexo:

As mulheres brancas do século XIX já não eram retratadas como sedutoras


sexuais; eram exaltadas como ‘a metade mais nobre da humanidade’, cujo
dever era elevar os sentimentos dos homens e inspirar os mais altos impulsos
deles. A nova imagem da mulheridade branca era diretamente oposta à velha
imagem. Ela era representada como deusa, em vez de pecadora; era
virtuosa, pura, inocente e não era sexual nem mundana. Ao elevar a mulher
branca ao status de quase deusa, homens brancos foram eficazes e, remover
o estigma que o cristianismo colocou sobre elas. (p. 61-62)

À mulher negra escravizada, e até depois da abolição, eram negados, por


exemplo, o exercício da castidade e do pudor, tão severamente exigidos das mulheres
brancas. Além de estar absolutamente desprotegida no âmbito legal, pois era posse
de seu senhor, ainda era proibida de ter escrúpulo ou vergonha. hooks (2019) em E

30
No original:
70

eu não sou uma mulher? cita o historiador Eugene Genovese, que afirma que, não
havendo lei que tipificasse o estupro da mulher negra, este não existia legalmente.
Quando se fala de estupro nesse período, refere-se ao estupro da mulher branca, a
única protegida pela lei. Não só os homens brancos cometiam esses abusos, homens
negros também o faziam.
Ainda que alguns se referissem à exploração do corpo negro escravizado como
prostituição, tal designação é inadequada, pois não havia troca cambial, não havia
pagamento. E, ainda que houvesse remuneração de qualquer natureza, não se pode
falar em uma negociação, tendo em vista que às pessoas escravizadas era negada a
posse de seus corpos. Por mais que, algumas vezes, houvesse certas vantagens e
presentes, como um vestido novo, alguma hora de folga, chamá-las de prostitutas era
uma forma de diminuir o peso do abusador e colocar na vítima um rótulo de culpa e
de degradação moral, como considerado na época:

Desde que o proprietário branco “pagasse” pelos serviços sexuais de sua


escravizada negra, ele se sentia livre da responsabilidade de seus atos.
Devido às duras condições da vida como escrava, qualquer argumento
sugerindo que a mulher negra podia escolher seu parceiro sexual é ridícula.
Uma vez que o homem branco podia estuprar a mulher negra que não
atendia, por vontade própria, às demandas dele, submissão passiva por parte
das mulheres negras escravizadas não pode ser vista como cumplicidade. As
mulheres que não atendiam por livre vontade às propostas sexuais do senhor
e de capatazes eram violentadas e punidas (HOOKS, 2019, p. 53)

Temos em Kindred – laços de sangue a personagem Alice (que, juntamente


com Rufus, engendrará a família de Dana), que, em determinado momento, será
coagida sexualmente por ele. Mesmo que nem sempre ele use violência, e que ao
menos uma vez ela tenha ido para a cama dele por vontade própria, não se pode dizer
que ela pôde escolher esse “relacionamento”. Rufus tornou-se seu dono, e o uso de
seu corpo era considerado um direito, ainda que pudesse ser moralmente condenável.
Perder a escolha sobre sua sexualidade e seu corpo foi umas das faces mais cruéis
da escravidão para Alice:

- Dana?
Olhei para ela.
- O que vô fazê?
Hesitei, balancei a cabeça, em reprovação.
- Não posso dar conselhos. O corpo é seu.
- Não é meu. – Ela passou a sussurrar – Não é meu, é dele. Ele pagô por ele,
não?
- Pagou a quem? A você?
71

- Cê sabe que ele não me pagô! Ah, qual é a diferença? Certo ou errado, a
lei diz que ele é meu dono agora. Não sei por que ele ainda não arrancô meu
coro. As coisa que eu disse pra ele... (BUTLER, 2017, p. 267)

No diálogo é possível perceber que Dana, mesmo no século XIX, carrega em


si o imaginário de seu tempo. A ideia de que Alice ainda conserva a agência de seu
corpo é fruto de seus ideais dos anos de 1970. Alice, por outro lado, encarna todo o
imaginário de seu tempo: sabe que, ainda que não queira, quando Rufus pagou por
ela e tornou-se seu dono, suas vontades não importam absolutamente.
Alice é elemento essencial na tentativa de Dana de garantir a gênese de sua
família, já que gerará Hagar junto com Rufus. Alice também é uma das personagens
de trajetória mais trágica da trama: tem sua liberdade e agência de seu corpo tirados
de si por Rufus, que, desejando-a a todo custo, por meio da violência, do poder, do
dinheiro e do seu lugar social, consegue tê-la para si. Alice converte-se de amiga de
infância e companheira de brincadeiras em objeto de desejo. Ao ser rejeitado, Rufus
decide tomá-la a força e só não é assassinado pelo marido de Alice, porque Dana
impede que isso aconteça, tanto pelo bem de Rufus quanto pelo bem do casal; afinal,
qual seria o destino de um casal negro assassino no sul escravista?
Ainda que Dana o convença a não perseguir o casal, nos dias que seguem,
Rufus aparece com Alice bastante machucada na Fazenda Weylin: seu corpo fora
inteiramente mordido por cachorros depois de ter sido espancado. Ela e Jacob foram
encontrados poucos dias depois da fuga; ele como era escravo, fora mutilado e
vendido, enquanto Alice, ainda que mulher livre, fora punida e comprada por Rufus.
Em um só golpe ela perde a liberdade, o marido a quem amava e a agência de seu
corpo. Seu suicídio é, antes de tudo, a retomada do poder sobre seu corpo: se Rufus
lhe tirou os filhos, ela lhe tira a mulher que ele desejava.
Rufus anseia em ter Alice por completo; entretanto, não percebe que, por mais
que ele possua seu corpo e por lei possa fazer o que quiser, jamais terá a
reciprocidade do desejo. Ainda que cativa, o espírito de Alice permaneceu livre e até
mais inquebrantável que o de Dana, por mais que os castigos físicos a tenham deixado
temerosa. Quando chega o momento em que Rufus a quer em sua cama, quer ela
queira ou não, e manda Dana para convencê-la a ir sem resistência, o leitor pode
notar que a violência que sofrera tivera efeito:
- Cê qué que eu vá até ele?
- Não posso dizer isso. Você tem que decidir
- Ocê iria?
72

Olhei para o chão.


-Estamos em situações diferentes. O que eu faria não importa.
- Ocê iria pra ele?
- Não.
- Mesmo ele sendo como seu marido?
- Ele não é.
- Mas... tá, mesmo ocê não... não odiando ele como eu odeio?
- Mesmo assim.
- Então também não vô.
- O que você vai fazer?
- Não sei. Fugir?
Eu me levantei para sair.
- Pra onde vai? – perguntou ela baixinho.
- Convencer o Rufus. Seu eu me esforçar, acho que posso fazer com que ele
deixe você em paz hoje. Assim você ganha uma vantagem.
Ela soltou o vestido no chão e saiu da cadeira para me pegar.
- Não, Dana! Não vai. – Respirou fundo, e então pareceu desanimar. – Tô
mentindo, não posso fugí de novo. Não posso. A gente sente fome, frio e fica
doente fugindo, e tão cansada a ponto de não conseguí andá. Aí, eles
encontra a gente e solta os cachorro... meu Deus, os cachorro... – Ela ficou
em silêncio por um momento, - Vô até ele. Ele sabia que eu ia mais cedo ou
mais tarde. Mas ele não sabe como eu queria tê coragem de mata ele!
(BUTLER, 2017, p. 269)

Ela escolhe não fugir, mesmo sabendo como o sistema escravista sobrepujava
a vontade dos rebeldes. Alice escolhe resistir e sobreviver, como Dana também o faz.
Assim, decide sobreviver a um sistema que objetivava destruir o corpo negro. Tal
decisão não é pautada na covardia, mas na sobrevivência; ainda se recuperando do
estado deplorável em que chegara na fazenda, a vontade de permanecer viva, mesmo
que submetida, nesse momento é maior que a vontade de ser livre. A narrativa não é
gentil com Alice, no entanto. Ela tem filhos do homem que não ama, e perde alguns
deles com poucos dias de vida; Dana, uma das poucas que se assemelha a uma
amiga, vai e volta durante os anos de cativeiro; e, por fim, quando tenta ter sua
liberdade de volta e foge, Rufus a pune simulando a venda de Hagar e Joe, filhos
deles. Desolada, Alice se mata.
A situação dos filhos de Alice e Rufus merece uma atenção especial: o modo
como o pai os trata dá indícios de seu caráter, e mostra como ele se alinha aos valores
de seu tempo. É quando descobre que ele simulou a venda dos filhos apenas para
punir Alice, mulher que supostamente ama, que Dana percebe que fracassou em um
de seus objetivos: impedir Rufus de ser um homem de seu tempo. Sendo os filhos
dessas mulheres escravizadas também escravos, as relações com elas – forçadas ou
não – além de servirem como ferramentas de dominação e para o prazer do homem
branco, também produzia novas forças de trabalho e novos meios de controle dessas
mulheres, como nos casos de Alice e Sarah.
73

Dana, quando viaja no tempo para a plantação escravista do século XIX, perde
a autonomia e agência que a Dana do século XX possuía. Além das viagens no tempo
não serem “divertidas” ou “aventureiras” como são as que permeiam o imaginário da
literatura especulativa protagonizada por personagens brancos, ela também é
forçada. Dana não deixa de ser dona de seu próprio corpo como consequência de
suas escolhas ou desdobramento de uma aventura na qual entrou de espontânea
vontade. Ela perde sua agência, seu braço e um ano de sua vida porque Rufus a
chama e, na falta de escolha, ela faz o que precisa para garantir a sua sobrevivência
e a dos seus. Ao assumir e ocupar o espaço esperado de uma mulher negra, ela abre
mão – ainda que de maneira involuntária – de sua identidade como mulher negra no
século XX.
Nos dois tempos e espaços que percorre e ocupa, Dana sempre encarna o
corpo que não tem poder, o corpo que foge da norma branca e masculina; porém, a
Dana do século XX encarna as conquistas pelas quais a Dana do século XIX teria que
lutar: é livre, letrada, dona de si. Racismo e machismo são reações a esse corpo
desviante independente do tempo em que ele esteja; porém, as opressões do século
XX são filhas legítimas dos discursos que alimentaram o sistema escravista que ela
encontra no século XIX. Quando Dana conta para Kevin o episódio em que sua mãe
– uma mulher negra, pequena e magra – foi parada e mantida escoltada por policiais
brancos que a consideraram um “indivíduo suspeito” apenas porque seu carro
quebrou em La Canada, ela encara o fato de situações como essa serem fruto dos
discursos que desumanizaram e animalizaram o corpo negro por séculos.
Quando a autora pontua e destaca as diferenças entre escravidão e racismo,
ela propõe uma reflexão sobre os motivos pelos quais o corpo negro na atualidade
ainda carrega os discursos que legitimaram a escravidão tanto tempo antes. Por mais
que a abolição não tenha sido um projeto unânime social e politicamente, não há nada
que justifique a perpetuação do tratamento ultrajante a que o corpo negro, agora livre,
é submetido, que não seja o racismo.
O passado escravista define o valor do corpo negro no presente. Ainda que
séculos depois, é o fato histórico que circunscreve no corpo negro sua importância ou
falta dela. Morrison (2020) trata do corpo escravizado e do corpo negro de maneiras
distintas: o corpo escravizado resta morto e esquecido, visto que a abolição encerrou
com a categoria do escravizado, o corpo negro, porém, resta vivo e vulnerável
marcado como uma subcategoria de sujeito. Para ela:
74

Quando uso o termo “corpo escravizado”, distinguindo-o de “corpo negro”,


pretendo sublinhar o fato de que a escravidão e o racismo são dois
fenômenos separados. As origens da escravidão não sã necessariamente (ou
mesmo em geral) racistas. Comprar e vender pessoas é comércio antigo. É
provável que não haja ninguém neste auditório cujos ancestrais ou dentro de
cuja tribo não tenha existido escravizados. Se você é cristão, contaram-se
escravizados entre os seus; se é judeu, contaram-se escravizados entre os
seus; se é muçulmano, os escravizados lhe dizem respeito. Do mesmo modo,
se seus ancestrais são europeus, eles também viveram sob a servidão da
Europa Oriental, o arrendamento feudal na Inglaterra, na Europa viking, na
Espanha visigoda, ou em Gênova, ou na Veneza e na Florença dos séculos
XV e XVI. A maior parte da população da Roma Antiga e da Grécia — todas
sociedades escravagistas deliberadamente construídas. A Gana medieval; o
Mali; os reinos de Daomé e de Axanti. A escravidão foi essencial para o
mundo do islã; foi sistemática no Oriente, incluindo mil anos apenas na
Coreia. Estamos todos implicados nessa instituição. (p. 79)

O que faz do corpo negro o herdeiro do racismo construído, alimentado e


fundado no passado escravista é justamente sua impossibilidade de mesclar-se entre
aqueles que os escravizaram. Com a ajuda de um projeto de manutenção das pessoas
negras nesse lugar de ausência de poder através do imaginário negativo perpetuado
culturalmente, até hoje submete o negro a condição de um ser humano sub-humano,
ainda que de forma implícita.
No romance, apenas os que vivem a realidade das pessoas negras no século
XIX podem compreender a decisão de Alice de submeter-se. Para Dana, o
entendimento se dá quando Rufus traz Alice quase morta. Até então, a ela faltava uma
real compreensão do que significava ser uma pessoa negra no sul escravista, ainda
presa aos estereótipos contemporâneos do que foi a escravidão. Em uma conversa
com Sarah sobre a possibilidade de fugir para o norte e sobre aqueles que
conseguiram escapar e escrever sobre isso, Dana crê, diante da incredulidade da
cozinheira sobre essa realidade, que Sarah apenas se conformara com a sua
condição:

Ela havia feito a coisa mais segura, aceitado uma vida de escravidão por
sentir medo. Era o tipo de mulher que podia ser chamada de “aia preta” em
outras casas. Era o tipo de mulher que seria desdenhada durante a militante
década de 1960. A aia preta, o lenço na cabeça, a versão feminina do Pai
Tomás; a mulher assustada e sem poder que já tinha perdido tudo que podia
perder, e que sabia tão pouco sobre a liberdade do Norte quanto sabia a
respeito do que viria a partir de agora. Eu mesma a julguei por um momento.
Superioridade moral. Ali estava alguém ainda menos corajosa do que eu. Isso
me confortou, de certo modo. Ou pelo menos até Rufus e Nigel irem para a
cidade e voltarem com o que sobrou de Alice. (BUTLER, 2017, p. 234)

Alice chega na fazenda Weylin em estado deplorável: açoitada, com o corpo


coberto de mordidas de cachorro, quebrada, quase morta. Sua condição é um
75

lembrete vivo do que acontece àqueles que buscam a liberdade ao fugirem de seus
donos. O que deixa Dana chocada, que nunca havia visto nada parecido, apenas
lembra Sarah das consequências de escapar da sua condição, que, não sendo boa,
ao menos é mais suportável que a punição. Dana, que a priori julga a cozinheira como
alguém menos corajosa, percebe que na verdade Sarah é forte, sobrevive como pode,
ajuda os seus. Ninguém deveria poder culpá-la por não buscar o mesmo destino de
Alice.
Dana entende que, no contexto da escravidão, os que permaneceram e
sobreviveram, como Sarah, também precisaram de coragem. Fugir não era simples e
os castigos mais dolorosos e cruéis do que se pode imaginar no século XX. De todas
as violências que Dana sofre, a tentativa de estupro foi a primeira e a última. Ao longo
de sua jornada, ela é espancada, xingada, humilhada e punida de diversas formas,
mas o estupro, de fato, é a última ferramenta usada contra ela. Violência e brutalidade
são a base da experiência de Dana no passado.
Em Kindred – laços de sangue, Butler mostra a potência do romance de
funcionar como meio de difusão e compartilhamento da crueldade humana, trazendo
a escravidão e outras opressões como temas centrais do romance. Para o leitor que
conhece superficialmente o que foi historicamente a escravidão nas colônias, a noção
de quão cruel e desumana ela foi pode ter sido suprimida pelo imaginário das mídias,
que trazem figuras como a Mammy e o Pai Thomas, escravizados leais e gratos às
suas famílias brancas e que não se incomodam com a escravidão, ou que consome e
crê no complexo conjunto de ideias racistas associadas à pessoa negra: violenta,
pobre, necessitada, vagabunda. O romance de Butler pode desvelar mais verdades
históricas do que ele supunha. Um dos exemplos de como esse “esquecimento” e
atenuação dos horrores da escravidão funciona é o fenômeno dos passeios às
fazendas de algodão nos Estados Unidos. Na reportagem da BBC31 ‘Escravidão não
foi tão ruim assim’: os controversos comentários de turistas no sul dos EUA, o
jornalista Ritu Prasad, de Charleston, traz os casos dos turistas que, ao fazerem o tour
das fazendas de algodão, não desejam ser confrontados com a crueldade com a qual
os escravizados eram tratados. Da reportagem:

“A escravidão não era tão ruim” é provavelmente o que mais ouvimos. As


pessoas dizem que os escravos tinham um lugar para dormir, faziam
refeições", diz a guia de turismo Olivia Williams, de 26 anos. Ela trabalha na
Fazenda McLeod, recentemente no epicentro de uma polêmica nas redes

31
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49914833 acesso em <13/07/2020>
76

sociais, depois que alguns visitantes se queixaram que os guias da fazenda


- um antigo polo de escravidão - eram muito "realistas" em suas explicações
sobre o tratamento a que os escravos eram submetidos por seus donos
brancos.(2019)

A queixa dos visitantes se deve ao modelo de visita que os guias da Fazenda


McLeod utilizam: ao invés de focarem nas belezas bucólicas de uma típica fazenda
do sul, focam na brutalidade com a qual os escravizados eram tratados, como suas
forças de trabalho foram exploradas e como seus corpos foram usados e violentados.
A rejeição dos turistas a esse tipo de turismo se deve, em parte, à internalização de
certos imaginários acerca da escravidão e também ao modo como ela foi e é retratada
nas escolas:

Essa dissonância é em parte atribuída a uma falha no sistema educacional


do país, porque uma versão ligeiramente diferente da história americana é
ensinada nas escolas. Mesmo no Sul, os estudantes podem nunca ouvir as
histórias de escravos, mesmo que sua própria cidade tenha sido construída
com base no trabalho daquelas pessoas, diz Shannon Eaves, historiadora da
Faculdade de Charleston. Isso, diz ela, é "um problema fundamental" que
lança uma luz sobre o racismo nos Estados Unidos. "A escravidão continuou
a produzir efeitos mesmo após ser abolida, até os dias de hoje", afirma Eaves.
Ela explica que os ecos da escravidão estavam presentes nas leis que
legalizavam a segregação, identificavam negros como inferiores aos brancos
e suprimiam seu direito ao voto e vigoraram desde o final da guerra civil
americana (1861-1865) até o movimento pelos direitos civis da década de
1950. "Isso talvez ajude a explicar por que estamos em 2019 e ainda ouço
que alunos nunca escutaram essa história antes. E a minha resposta é: “Isso
não é por acaso”, diz Eaves. (2019)

A preservação da memória e da história tem, também, um viés de poder. Ao


retratar a rotina da escravidão partindo dos olhos de uma mulher contemporânea
inserida em um contexto de luta por direitos sociais, Butler mostra como esse passado
escravista ainda ressoa num presente em que a população negra ainda sente as
desvantagens da escravidão. Os “tipos” popularizados e eternizados na cultura têm
raiz nessa dominação. Precisava-se fundamentar a escravidão com um discurso,
disseminando o imaginário de que o negro de nada valia, que não era gente ou sequer
possuía alma. Tirava-se, assim, a humanidade do escravizado e ao fazê-lo, diminuía-
se a chance de causar compaixão naquele que usava aquele corpo negro. Um
imaginário tão solidamente criado e perpetuado não é facilmente destruído e
substituído. Um dos grandes trunfos desse romance é mostrar que ao contrário do
que se dissemina, as pessoas não eram escravizadas com facilidade, os escravizados
não eram dóceis e fracos e por isso foram submetidos. A estrutura escravista
desumaniza e retira do ente a própria noção de identidade e de liberdade; e é na
77

persona de Dana que o leitor pode observar esses processos e discutir a ideia
perigosa da passividade dos escravizados.
Em A arte do romance Kundera (2009) reflete sobre o impacto e poder da mídia
no receptáculo cultural desses dias. Como meio e veículo de circulação e fixação de
certos imaginários:

O romance (como toda cultura) se encontra cada vez mais nas mãos da
mídia; essa, sendo agente de unificação da história mundial, amplifica e
canaliza o processo de redução; distribui no mundo inteiro as mesmas
simplificações e clichês suscetíveis de serem aceitos pelo maior número, por
todos, pela humanidade inteira (p. 23-24)

Como um receptáculo do imaginário cultural, a ausência de representação e o


modo como isso acontece nas mídias – televisão, cinema e literatura, por exemplo -
tem impacto no modo como tal imaginário é construído e como ele circula. No que diz
respeito à mulher negra tal representação tende a ser nula ou negativa. Conceição
Evaristo (2009) no artigo Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade diz:

A ficção ainda se ancora nas imagens de um passado escravo, em que a


mulher negra era considerada só como um corpo que cumpria as funções de
força de trabalho, de um corpo-procriação de novos corpos para serem
escravizados e/ou de um corpo-objeto de prazer do macho senhor (p. 23)

Mesmo que a teórica faça um recorte e fale sobre as representações na


literatura e mídias brasileiras, é possível estender a percepção para as questões de
representação na literatura norte-americana. As personagens negras em Kindred são
construídas tendo por base alguns estereótipos, que, embora subvertidos na obra,
ainda são perpetuados na literatura e mídias em geral. Os corpos negros,
escravizados ou não, representados na ficção de Butler fogem da limitação de serem
somente corpos para o trabalho e para o prazer.
No capítulo intitulado Vendendo uma boceta quente: representações da
sexualidade da mulher negra no mercado cultural, hooks (2019) levanta discussões e
destaca exemplos acerca da representação da mulher negra na mídia: como a
selvagem sexual e insaciável, ou trazendo a mulher birracial como “sexualmente
trágica”; ela aponta, assim, a repetição e o reforço de certos discursos racistas e
machistas. Entretanto, segundo ela: “filmes de diretoras negras também apresentam
as imagens que mais se opõem a visões tradicionais da sexualidade das mulheres
negras” (p. 153), ou seja, quando há um olhar e autoria feminino e negro, tende-se a
haver uma mudança representacional desses discursos. Poderíamos transpor a
78

afirmação de hooks (2019) para a literatura e observar que, sendo mulher e negra,
Butler consegue mostrar um outro lado que transpõe certos lugares-comuns
representativos. Ela mostra em sua literatura mais que a repetição desses
estereótipos.
Ao explorar as diversas potencialidades de existência da mulher negra, a autora
se propõe a quebrar com a ideia da “mulheridade negra” como uma experiência
universal. As mulheres em Kindred – laços de sangue, encarnam, na verdade, o corpo
que é total ou quase totalmente destituído de poder e por isso, sentem o peso da
opressão. Ela dá mais dimensões a Sarah e Alice: essas mulheres têm histórias,
dores, ocupam papéis que não escolheram na logística da fazenda. Alice é mais que
um corpo sexual; Sarah, mais que seios para alimentar os filhos dos brancos. E o leitor
sabe disso porque a autora não se prende a esses estereótipos, ela os traz na
superfície, como base, mas os redescreve e aprofunda, dando tridimensionalidade a
essas mulheres. Um dos pontos que podemos apontar acerca do deslocamento
aparente de Dana é que Butler não a enquadra em nenhum desses tipos de
representação. O mais próximo que se poderia apontar é a visão que os negros
escravizados têm dela: negra com alma branca, aquela que “fala como branco”. Ela
também não o é; se domina a linguagem do branco, é porque em seu tempo ela
ocupava um espaço em que mulheres negras podem ser educadas.
Além de deixar claro para o leitor o quanto a escravidão foi de fato cruel e
desumana, ela também põe em xeque certas visões que ainda ressoavam na
contemporaneidade, como a figura da “Mãe Preta32”. No romance, essa figura seria
encarnada em Sarah, cozinheira da fazenda, que mima Rufus e de fato parece
apegada ao menino; entretanto, Sarah não é dócil, não ama sua “família branca”, teve
seus filhos vendidos para que a nova esposa do senhor da fazenda pudesse redecorar
a casa. A única coisa que a impede de colocar veneno na comida dos Weylin é a
existência de uma filha muda, que o sr. Weylin permite que ela mantenha junto de si
como forma de controlar suas ações. Mas, mesmo que para Sarah não pareça haver
outro caminho a não ser o da completa submissão, para Tom Weylin também não há
outra escolha que não seja manter-se dentro do limite tolerado por ela, limite este
personificado na existência e no razoável bem-estar de Carrie:

32
Mammy, no original, seria a figura maternal, “quase da família”, dócil, que amamentou e amava seus
“filhos” brancos, pouco se importando com a situação de escrava a que estava submetida.
79

O marido morto, três filhos vendidos, a quarta deficiente, e ela tendo que dar
graças a Deus pela deficiência. Tinha motivos para sentir mais do que raiva.
Era incrível que Weylin tivesse vendido seus filhos e ainda a mantivesse
como sua cozinheira. Era incrível que ele ainda estivesse vivo. Mas eu
achava que ele não viveria muito mais se encontrasse um comprador para
Carrie. (BUTLER, 2017, p. 123)

Se ele se exceder, não haverá nada que a impeça de se vingar dele, ainda que
lhe custe a vida. Tal fato faz de Sarah uma personagem que, embora de início se
pareça com a mammy, não o é. Para hooks (2019), a figura da mammy ou aunt
Jemima é, sobretudo, uma criação da imaginação branca: a escrava maternal,
assexuada que, claro, amava sua “família branca”. Há, ainda, ecos desse estereótipo
nas mais diversas mídias, como a figura da babá negra, por exemplo, e não se limita
ao imaginário norte-americano:

A imagem da mãe preta era representada cm afeição por pessoas brancas,


porque resumia a definitiva visão sexista e racista do ideal de mulheridade
negra – submissão total ao desejo dos brancos. Em certo sentido, os brancos
criaram na figura da mãe preta uma mulher negra que personificava somente
aquelas características que eles, como colonizadores, desejavam explorar.
Enxergavam nela a encarnação da mulher como uma cuidadora passiva, uma
figura de mãe que dava tudo sem esperar nada em troca, que não somente
reconhecia sua inferioridade em relação aos brancos, mas que os amava. A
mãe preta, como representada pelos brancos, não é uma ameaça à ordem
social patriarcal branca, porque ela se submete por completo ao regime
racista branco. (HOOKS, 2019, p. 142)

Embora Sarah pareça partir desse imaginário, Butler dá à personagem a


oportunidade de ir além do tipo. Através dela, a autora explora a potencialidade da
figura da mulher negra que sobrevive pelos seus meios, não lhe falta ódio ou vontade
de ser livre, mas, por outro lado, os laços com a família – a sua, não aquela que a
escraviza – fazem com que ela, mesmo diante das mais diversas intempéries,
sobreviva. Além disso, o questionamento do estereótipo da mammy é necessário para
que se quebre a ideia de que para os escravizados, a escravidão não era tão ruim
assim. A existência de uma personagem como Sarah, também pode ser um caminho
para a redenção da ideia do escravizado dócil, pois, ainda que submetida, Sarah não
é dócil ou resignada.
Outro estereótipo racista que circula amplamente no imaginário norte-
americano, e não somente nele, é o da Jezebel: a mulher negra como sexualmente
insaciável. A figura da Jezebel objetiva condicionar o olhar puramente sexual para o
corpo negro, de modo a animalizá-lo e desumanizá-lo. Se à mulher negra é negada a
humanidade e tudo o que se pode tirar dela é uma sexualidade desenfreada, como
80

poderia o homem branco estuprá-la se ela estaria sempre disposta sexualmente?


Para hooks (2019):

A designação de todas as mulheres negras como depravadas, imorais e


sexualmente desinibidas surgiu no sistema da escravidão. Mulheres e
homens brancos justificaram a exploração sexual de mulheres negras
escravizadas, argumentando que elas iniciavam o envolvimento sexual com
homens. Desse pensamento, emergiu o estereótipo de mulheres negras
como selvagens sexuais e, em termos sexistas, uma selvagem sexual, não
humana, animal não é estuprada. (p. 93)

Esse estereótipo apenas fundamentava o argumento de que seria impossível


estuprar mulheres tão promíscuas, que estariam sempre gratas pelos avanços do
homem branco. Tom Weylin, Rufus, o capataz da fazenda, todos em algum momento
da obra estupraram ou tentaram estuprar alguma mulher negra. Não é apenas Alice
que é violentada no romance; outras personagens sofrem estupros, tentativas ou
outras violências semelhantes. A ausência de poder dessas personagens é reforçada
pelo gênero: a escravidão não era boa para os homens negros, mas era ainda pior
para as mulheres negras. A filósofa norte-americana Angela Davis (2016) em seu
Mulheres, Raça e classe discute exatamente a fragilidade extra do gênero no contexto
escravocrata e do estupro principalmente como uma questão de poder e não
necessariamente desejo:

Como mulheres, as escravas eram inerentemente vulneráveis a todas as


formas de coerção sexual enquanto as punições mais violentas impostas aos
homens consistiam em açoitamentos e mutilações, as mulheres eram
açoitadas, mutiladas e estupradas. O estupro, na verdade, era uma
expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do controle do
feitor sobre as mulheres negras na condição de trabalhadoras. (DAVIS, 2016,
p.20)

Alice e Sarah vivem ou viveram relações em que encarnam o corpo que não
possui poder. Sob o argumento do afeto, sofrem diversas violências e seus pares
exploram a condição de escravizadas para suplantarem suas vontades. Para Alice
Rufus converteu-se de um amigo de infância para seu “dono”, que viola seu corpo e
finge vender os filhos que teve com ele. Sarah teve a liberdade prometida pelo seu
antigo dono, mas, tudo que ganhou dele foram surras e ciúmes. No romance, para as
mulheres negras, o amor do homem branco vem sempre acompanhado de violência.
Inclusive Dana. Ela está com um homem branco por escolha e porque o ama, mas,
encontra seu quinhão de violência no afeto que Rufus tem por ela. Começando com
violências menos óbvias, como chantagens, e chegando a de fato castigos físicos, ele
81

ocasionalmente veste suas roupas de senhor de escravos para submeter Dana ao


local que ele acha que ela pertence. Quando, pela primeira vez, ele bate nela com
suas próprias mãos e a trata, de fato, como escravizada, ela corta os pulsos para
forçar sua volta para casa. A possibilidade de morte era menos apavorante para ela
do que permanecer presa naquela realidade.
Dana encarna no romance o corpo desviante e insubmisso, o corpo que
contraria o status quo esperado do período. Quando vai para o passado, destaca-se
principalmente por “falar como branco”. Escritora e leitora voraz em seu tempo, a
posse da linguagem (associada aos detentores do poder) faz com que tanto negros
quanto brancos a olhem com desconfiança. Mesmo soando como um homem branco
educado, sua pele é de uma mulher negra e isso basta para o seu silenciamento. Mais
instruída que os homens brancos com que convive no passado, a protagonista usa
isso a seu favor. Dominar a linguagem permite que, em um primeiro momento, ela não
precise se submeter aos trabalhos mais pesados da fazenda, como na plantação, por
exemplo. Por outro lado, possuir a linguagem do opressor, faz com que ela ocupe um
entrelugar: os negros escravizados da fazenda custam a confiar nela porque a acusam
de tentar falar como branco, enquanto os brancos suspeitam de uma negra que lê,
escreve e fala melhor que eles:

- Por que cê tenta falá igual os branco?- -perguntou Nigel.


- Não tento – respondi, surpresa. - É assim mesmo que eu falo
- Mais igual os branco que alguns branco.
[…]
- Vai ter problema – disse ele – O Senhô Tom já não gosta d’ocê. Fala certo
demais e veio de um estado livre.
- Por que essas coisas seriam importantes para ele? Não pertenço a ele.
O menino sorriu
- Ele não qué preto nenhum aqui falando mais direito do que ele, enfiando
ideia de liberdade na nossa cabeça.
- Como se a gente fosse burro pra precisá de um desconhecido para fazê a
gente pensá em liberdade - murmurou Luke. (BUTLER, 2017; p. 119)

Nota-se que a capacidade de falar “como um branco” pressupõe inteligência e


capacidade de persuasão. Dana acaba ocupando um lugar inexato, mais bem tratada
que a maioria dos escravizados na maior parte do tempo, mas castigada como
qualquer um deles ao menor deslize. Quando Kevin, seu marido, vai para o passado
com ela, é clara a diferença das vivências e tratamentos a que eles são submetidos.
Mesmo que volte no tempo diversas vezes, Dana sempre causa espanto e precisa,
sempre, lutar para se encaixar no tempo e espaço. Kevin, por outro lado, adapta-se
82

com mais facilidade, não causa estranhamento; sua pele branca funciona quase como
um escudo que o protege de situações as quais Dana se encontra sempre vulnerável.
Ele acaba ficando preso no passado por alguns anos e, ainda que não tenha sido uma
experiência fácil ou agradável, seu gênero e sua etnia são elementos essenciais para
a sua sobrevivência.
Ao contrapor as vivências de Alice, Rufus, Dana e Kevin, Butler propõe um
olhar crítico aos corpos que possuem ou não poder. Espelhando as relações de Alice
e Rufus e de Dana e Kevin, ela mostra potencialidades de existência, mostrando que,
na literatura, por mais que haja diferenças históricas, temporais e sociais, alguns
mecanismos do relacionamento, baseados nas relações de poder, se mantêm. Porém,
o casal contemporâneo de Butler subverte a representação comum no que se refere
a casais inter-raciais: a dinâmica de senhor e escrava. Dana não permite em absoluto
que Kevin interfira em sua independência. É mais livre que a maioria das mulheres de
sua época, e mesmo que entre em uma instituição tão tradicional como o casamento,
o faz por sua vontade, não por imposição social ou familiar. Por outro lado, é a
recepção social de seu relacionamento que designa os papéis dos quais ela e Kevin
fogem.
Em Kindred – laços de sangue, Butler traz mulheres, e principalmente mulheres
negras, para o centro da narrativa; e, ao fazê-lo, questiona como mulheres negras
podem negociar sua agência em um mundo que questiona tudo, inclusive sua
humanidade.

4.2 Dana e a jornada da violência na construção da personagem sobrevivente

Indubitavelmente, a narrativa é construída ao redor de Dana. Ela não é somente


a protagonista: é, sobretudo, a engrenagem que movimenta as ações do romance.
Sua presença em um passado ao qual não pertence, as idas e vindas no tempo que
fazem com que ela funcione quase como uma mensageira através dos tempos: é
através dela que o século XX invade o século XIX, seja pelos objetos prosaicos que
carrega em suas viagens (analgésicos, canetas, sabonete), seja por causa dos
conhecimentos, ainda que não especializados, que a ajudam a sobreviver. Ela muda
o passado ao mesmo tempo que é mudada por ele. Além do membro que perde no
passado, suas referências de identidade e a memória familiar são modificadas. Após
83

tantas viagens e experiências, ela retorna ao seu tempo uma última vez
absolutamente modificada física e psicologicamente: o que ela era há um ano já não
fazia sentido depois de tudo o que vivera.
É durante as 6 viagens no tempo de Dana que Butler desvela ao leitor – e
também aos personagens - os mecanismos dessa narrativa tão própria. Cada capítulo
do romance retrata um episódio de viagem no tempo que começará com Rufus em
perigo e terminará com Dana temendo por sua vida. Os capítulos – O Rio, O Incêndio,
A Queda, A Luta, A Tempestade, A Corda – antecipam os eventos que sucederão;
anunciam o perigo e o risco da vez à vida de Rufus. O intervalo de tempo entre as
viagens varia – embora seja sempre inferior ao que Dana precisaria para se recuperar
– e a duração de sua estadia no passado também – sempre mais do que a
protagonista gostaria. O que se mantém constante, no entanto, são os gatilhos de ida
e vinda: salvar Rufus; salvar-se. Entretanto, esses gatilhos – ou dispositivos – que
iniciam a ida de Dana ao passado ou sua volta ao presente, progressivamente, para
que funcionem, precisam se tornam mais extremos. Explicamos: se o que a faz voltar
para o seu tempo é sentir-se tão ameaçada, a ponto de temer por sua vida, quanto
mais períodos passa no passado – ainda que entrecortados por alguns momentos no
presente – mais resistente Dana e seu corpo se tornam: afinal, é preciso sobreviver.
Por isso, observamos ao longo do romance, o uso que Butler faz da violência para
mostrar quão resiliente é um personagem que sobrevive e como eficiente e cruel era
o sistema escravista, desenhado para aquebrantar os espíritos mais fortes.
O exercício de tornar o impossível no campo do provável só é orquestrado no
romance como um possibilitador de situações e funciona como um meio de construir
o enredo de uma mulher negra do século XX obrigada a encarnar as condições de
uma mulher negra no século XIX, estas consideravelmente mais duras. Dana não só
tem consciência disso, como, em uma conversa com Kevin, deixa claro que ela tem
menos condições de sobreviver no século XIX que seus antepassados, mesmo que
possua conhecimentos do passado e do presente, porque:

- Então, quanto mais penso nisso, mais difícil fica de acreditar que eu possa
sobreviver, mesmo que sejam poucas as viagens a um lugar como aquele.
Coisas demais poderia dar errado.
- Quer parar com isso? Olha, seus antepassados sobreviveram àquela época,
sobreviveram com menos vantagens do que você tem. Você não é inferior a
eles.
- De certo modo, eu sou.
- De que modo?
84

- Na força. Na resistência. Para sobreviver, meus antepassados tinham que


enfrentar mais do que conseguiria. Muito mais. Você sabe do que eu tô
falando
- Não, não sei – disse ele irritado – Você está tendo ideias que podem ser
suicidas, se não tomar cuidado.
- Ah, mas eu estou falando sobre suicídio, Kevin, suicídio ou coisa pior. Por
exemplo, eu teria usado sua faca contra aquele capataz ontem se estivesse
com ela (...). Então, ou eu teria morrido ou teria feito outra pessoa inocente
morrer (BUTLER, 2017, p. 81-82)

Kevin, embora acredite apoiar Dana ao dizer que ela sobreviveria, ignora, quiçá
inconscientemente, todas as mazelas reservadas ao corpo que Dana encarna.
Quando fala que os antepassados dela sobreviveram à escravidão, e por isso, Dana
também conseguiria, ele ainda parece preso ao ideário de que a escravidão não fora
assim tão ruim, que o conhecimento do passado e as tecnologias que possui nos anos
de 1970 seriam suficientes para garantir uma passagem mais ou menos tranquila para
Dana no passado. Desconsidera, no entanto, que a violência a que os escravizados
estavam sujeitos não era, necessariamente, desenhada para matar, não no primeiro
castigo. Ela sobrevive, em parte por causa das coisas que leva ao passado em uma
bolsa amarrada à cintura – medicamentos, sabonete, uma faca – mas, também,
porque sujeita-se aos papeis que lhe designam, plenamente consciente de sua falta
de poder. Para resistir a um sistema tão desumanizador e construído de modo a usar
a violência como mecanismos de manutenção do sistema escravista, seria necessário
mais que um corpo moldado no século XX:

– Olha, se você for levada para lá de novo, o que pode fazer além de tentar
sobreviver? Não pode simplesmente deixar que matem você.

– Ah, eles não vão me matar. Só se eu for tonta a ponto de resistir às outras
coisas que eles prefeririam fazer, como me estuprar, me jogar na prisão por
ter fugido e então me vender para quem der o maior lance quando
perceberem que meu dono não vai me buscar. – Cocei a testa. – Quase me
arrependo por ter lido sobre o assunto. (BUTLER, 2017, p. 77)

Dana não pretende morrer no século XIX, ela quer, antes de tudo, sobreviver e
é essa verve de sobrevivência que a mantém consciente sobre a falta de agência que
terá sobre si quando se submeter ao papel que esperam dela no passado. Sabe que
as torturas de que pode ser vítima são várias e inevitáveis dado o corpo que encarna,
e que elas podem ser fatais, embora, no início da narrativa, não saiba o quanto se
tornará resistente ao longo da jornada, a ponto de saber o quanto um corpo pode
tolerar a dor sem necessariamente morrer. E por isso, durante sua jornada para salvar
sua existência no presente, ela quase perde seu corpo no passado.
85

Se o que a leva de volta a 1976 da primeira vez que vai ao passado foi a figura
de Tom Weylin apontando-lhe uma arma, na última, ela quase sofre a única violência
que não experenciara no passado: o estupro. Entre a primeira e a última volta, há um
universo de violências a que Dana é submetida; a cada novo episódio que lhe
aterroriza a ponto de temer por sua vida, ela cria uma resistência e o gatilho seguinte
precisa ser mais mortal que o anterior. Quando é castigada pela primeira vez na trama:

E então, fui levada para a cozinha. Weylin me arrastou por alguns metros e
me empurrou com força. Caí, fiquei sem ar. Não sei de onde o chicote saiu,
não vi que seria açoitada. Mas fui. Senti como se houvesse um ferro quente
em minhas costas, ardendo em mim através da camisa fina, rasgando minha
pele…
Gritei, convulsionei. Weylin bateu mais vezes até que eu não conseguisse me
levantar nem mesmo sob a mira de uma arma.
Fiquei tentando me afastar das chicotadas, mas não tive força nem
coordenação para isso. Não sabia se ainda estava gritando ou só gemendo.
Só tinha consciência da dor. Pensei que Weylin quisesse me matar. Pensei
que morreria no chão ali com a boca cheia de terra e sangue, com um homem
branco xingando e me repreendendo enquanto me batia. Naquele momento,
quase quis morrer. Qualquer coisa que me tirasse a dor. (BUTLER, 2017; p.
172-173)

As descrições dos castigos que Dana sofre, retomando o que disse Morrison
(2020), são explícitas, carecem do pudor esperado e até mesmo exigido das
narrativas escravas. Embora fortes, as cenas de violência no romance não são
deslocadas de contextos, elas funcionam para escancarar a brutalidade de um
sistema que usou as punições físicas como ferramenta de controle dos corpos
escravizados:

O castigo físico, tanto como ameaça quanto o efetivado, é uma tecnologia


disciplinar que produz subserviência. A plantação, embora não tenha a
arquitetura elegantemente simbólica do panóptico, não deixa de ser um
espaço de vigilância e poder normalizador. Como Foucault observa, o poder
disciplinar não simplesmente controla ou restringe, mas na verdade produz o
sujeito. Assim, as experiências do corpo de Dana são capazes de moldar e
mudar sua "essência" interior, desmentindo a realidade de qualquer entidade.
Assim como Sethe estava preocupada com os efeitos maculadores que a
escravidão teria sobre a subjetividade de seus filhos, Dana descobre que é
muito mais difícil enfrentar as maneiras como a escravidão a transforma do
que enfrentar seu sofrimento físico. Enquanto as narrativas de escravos
insistiam em fazer o leitor ver os afro-americanos como sujeitos totalmente
humanos, a reescrita de Butler enfatiza o quanto a instituição da escravidão
trabalhou para negar essa realidade. Dana toma como certo seu status de
sujeito, até ser tomada como objeto por outros e assim começar a
compreender verdadeiramente o dano que a escravidão causou às
subjetividades, bem como aos corpos físicos de seus ancestrais. (VINT, 2007,
p. 250, tradução nossa)33

33
No original: “Corporal punishment, threatened and actual, is a disciplinary technology that produces
subservience. Although the plantation does not have the elegantly symbolic architecture of the
86

O sofrimento físico de Dana é constante durante toda a narrativa, mas, inserir-


se numa fazenda escravista a transforma além do exterior. A despeito das cicatrizes
físicas, a protagonista é forçada a embarcar em uma jornada que a despe de diversos
saberes-comuns perpetuados em sua época. Assumir a pele de seus ancestrais tira
dela as certezas construídas no contexto dos anos de 1970. Além da sua humanidade.
Quando tenta fugir da fazenda para procurar Kevin – e é capturada – Dana é
severamente açoitada e é assim que entende que, embora dilacerada de dor, as
punições não deveriam matá-la porque eram aplicadas de maneira metódica o
suficiente para levar o corpo ao extremo da dor, mas, sem necessariamente lhe ceifar
a vida:
Ele me bateu até eu balançar de um lado a outro pelos punhos, meio maluca
de dor, incapaz de me apoiar, incapaz de aguentar a pressão do corpo
pendurado, incapaz de escapar dos golpes constantes...
Ele me bateu até eu tentar me fazer acreditar de que ele me mataria. Eu disse
isso em voz alta, gritei e os golpes pareciam enfatizar minhas palavras. Ele
me mataria. Com certeza, ele me mataria se eu não escapasse, se não me
salvasse, se não fosse para casa!
Não deu certo. Aquilo era só castigo, e eu sabia. Nigel havia enfrentado. Alice
enfrentara coisa pior. Os dois estavam vivos e saudáveis. Eu não ia morrer,
mesmo que, conforme a surra continuava, eu tivesse desejado morrer.
Qualquer coisa para parar a dor! Mas não houve nada. Weylin teve muito
tempo para acabar de me chicotear. (BUTLER, 2017, p. 281)

Se, nas primeiras vezes em que vai ao passado, Dana acredita que não
sobreviveria no século XIX como seus ancestrais, com o tempo, o medo e a tensão
constantes que sente nas primeiras viagens desaparecem e ela percebe ao longo das
punições que, infelizmente, é feita de material resistente e, por isso, se torna cada vez
mais difícil voltar para casa. Ela só consegue – em sua derradeira viagem – quando,
para se proteger, assassina Rufus e rompe os laços que os unem. Esse é um dos
momentos-chave em que Dana questiona as crenças de sua época – “Está vendo
como as pessoas são escravizadas com facilidade?” (p. 283) –, afinal, não era fácil
insurgir-se diante de tanta violência. É necessário ressaltar, também, o caráter

panopticon, it is nonetheless a space of surveillance and normalizing power. As Foucault observes,


disciplinary power does not simply control or constrain but actually produces the subject. Thus, the
experiences of Dana’s body are able to shape and change her interior “essence”, belying the reality of
any such entity. Just as Sethe was concerned about the dirtying effects slavery would have on her
children’s subjectivity, Dana discovers that it is much harder to face the ways that slavery changes her
than it is to face its physical suffering. While slave narratives insisted upon making the reader see African
Americans as fully human subjects, Butler’s rewriting stresses how much the institution of slavery
worked to deny this reality. Dana takes her status as a subject for granted until she is taken as an object
by others and begins truly to understand the damage that slavery did to the subjectivities, as well as the
physical bodies, of her ancestors.”
87

pedagógico dos castigos, afinal, ensinava-se a completa obediência usando os


escravizados insurgentes severamente punidos como espetáculo público e exemplo
para os demais:

– Me surpreende que haja tão pouco a ser visto. Weylin parece não prestar
muita atenção ao que seus escravos fazem, mas o trabalho é feito.
– Você pensa que ele não presta atenção. Ninguém te chama para ver as
chicotadas.
– Quantas surras?
– Só vi uma. E já foi demais!
– Uma é demais, sim, mas ainda assim, este lugar não é o que eu teria
imaginado. Não tem feitor. Não tem mais trabalho do que as pessoas
conseguem fazer.
– ... não tem moradia decente – interrompi. – Tem chão imundo no qual
dormir, comida tão inadequada que todos estariam doentes se não
cultivassem hortas no tempo que deveria ser de descanso e se não
roubassem coisas da cozinha quando Sarah deixa. E eles não têm direitos,
mas têm a possibilidade de serem maltratados ou vendidos e retirados de
suas famílias por qualquer motivo... ou sem motivo. Kevin, você não precisa
bater nas pessoas para tratá-las com brutalidade. (BUTLER, 2017, p. 162)

“Perdi um braço na minha última volta para casa. Meu braço esquerdo” (Butler,
2017, p. 17). Essa é a primeira frase do livro e evidencia a violência a que este corpo
estará, está e esteve submetido. Antes de sabermos que haverá uma viagem no
tempo, já nos preparamos para um desfecho que resultará na perda de um membro.
Dana não sairá incólume de qualquer que seja a aventura a que ela se sujeitará. Antes
de sabermos que se trata de um corpo negro e feminino, sabemos que se trata de um
corpo que será mutilado. É simbólica esta perda, quase como um sacrifício necessário
para que sua jornada tenha um final feliz; é o que ela precisa sacrificar para voltar
para casa, ainda que não saibamos ainda que casa é essa, nem de onde ela partiu.
Ao conhecermos os elementos que faltam, podemos ressignificar essa
informação. A expectativa da violência sobe o corpo negro e feminino de Dana
mantém o leitor apreensivo, e ainda é simbólica: quantas pessoas negras
escravizadas fugiram de seus captores incólumes e ilesos? O braço que ela sacrificou
não parece quase nada quando comparamos com o que a esperava, principalmente
quando lembramos que ela preferia a morte a continuar como escrava. Aos
personagens brancos, no imaginário das narrativas especulativas, é dado o privilégio
de voltar ileso de uma viagem no tempo; aos personagens negros, resta o sacrifício.
Mais simbólico pensar que ao perder o braço, seu ofício se torna um pouco mais difícil:
ainda que tenha tanto para falar, tanta memória para guardar, como fazê-lo?
88

A antecipação da violência que Dana sofrerá em seu passado gera a


expectativa, mas não é surpreendente quando nos damos conta de quem é esse corpo
mutilado, para onde ele vai e que espaço ocupará neste tempo. A última violência que
este corpo sofrerá no passado, surpreendentemente, não é ocasionado pela condição
de mercadoria dele, tampouco pela sua função: é uma mutilação causada pela busca
de liberdade deste corpo – e de uma tentativa de evitar outra violência. O corpo
sujeitado que busca a liberdade não pode voltar inteiro. O corpo de Dana não pertence
ao século XIX, não foi construído sob aquelas leis. É um corpo negro que não é um
corpo escravizado, mas que mesmo assim, é a experiência da escravidão encarnada.
Para Rufus, Dana encarna o completo diferente, o mais radicalmente Outro e
que, embora desperte seu desejo de posse, é inalcançável. Ocupando esse
entrelugar, Octavia, através de Dana, propõe uma possibilidade de acúmulo de
identidades – a do século XX e a do século XIX - e que essas identidades podem
ressoar com valores distintos a depender do referencial histórico ou contingencial. A
linguagem é histórica, assim como o vocabulário. Os símbolos que seu corpo carrega
mudam de “peso” a depender da época em que vagueia; e ela termina sua jornada
radicalmente diferente do que começou, afinal, precisou anular cada vez por mais
tempo e com mais intensidade as marcas de ser uma mulher negra em 1976, ao
mesmo tempo que, paradoxalmente, apegou-se com ainda mais afinco a essa
identidade, que lhe permitiu submeter-se às mais diversas violências com uma rapidez
considerável, com o objetivo claro de sobrevivência. Afinal, apenas se sobrevivesse a
um sistema obcecado em matá-la é que ela voltaria a encarnar as liberdades do seu
tempo.
Pode-se pensar que Dana é construída, enquanto personagem, quase sempre
em relação a Rufus e a Alice. As diferenças entre Dana e Rufus são mais facilmente
percebidas e apontadas e o entrelaçamento de personagens quase dicotômicos
enriquece e ressalta justamente a diferença. Já as diferenças entre Alice e a
protagonista são embotadas pelas semelhanças entre elas e são desveladas ao longo
da narrativa, através das percepções que Dana tem dessas similaridades e
disparidades.
Embora sejam mulheres e negras, as experiências de Dana e Alice não
poderiam ser mais diversas – fruto, talvez, das circunstâncias e tempos que lhes
moldaram a existência – e é justamente por isso que o destino de ambas é tão diverso:
uma sobrevive, a outra não. O suicídio de Alice, longe de ser tratado como fraqueza,
89

mostra como, embora fortes, a privação da liberdade, a desesperança de um futuro


ou outra possibilidade de existência, faz da morte uma fuga possível e uma alternativa
preferível àquela realidade a que estavam sujeitos. O conhecimento e o acesso que
Dana tem a uma outra realidade, em que se é, sobretudo, livre, colabora com a sua
sobrevivência, pois, a esperança de uma outra experiência lhe dá um sentido para
submeter-se ao sistema escravista.
É a esperança que fortalece e sustenta o espírito, quebrantável, da
protagonista. Sobre o discurso da esperança:

O que une as sociedades são os vocabulários comuns e as esperanças


comuns. Os vocabulários costumam ser comuns e as esperanças comuns.
Os vocabulários costumam ser parasitários das esperanças – no sentido de
que sua função principal é contar histórias sobre resultados futuros que
compensem os sacrifícios do presente (...) Para conservar a esperança
social, os integrantes de tais sociedades precisam contar para si mesmos
uma história sobre como as coisas podem melhorar, sem ver obstáculos
intransponíveis à materialização dessa história. Se a esperança social tornou-
se mais difícil ultimamente, não é porque, desde o fim da Segunda Guerra, o
curso dos acontecimentos tornou mais difícil contar histórias convincentes
desse tipo. (RORTY, 2007, p. 154)

Para o filósofo neopragmático seria a capacidade de narrar dias melhores –


ainda que para si – que conservaria a esperança, esta, por sua vez, alimenta a
necessidade de sobrevivência. Dana pode contar para si um futuro sem escravidão,
Alice não. A liberdade está em seu passado, o discurso da esperança para ela é fato
superado. Sonhar com um futuro e liberdade para pessoas negras é, em seu contexto,
utópico e, ainda assim, ela buscou ser livre do melhor jeito que pôde. Ao acreditar
perder os filhos, a esperança de liberdade para si e para os seus, morre assim como
ela. Na escolha do nome dos filhos já está imbuído seu desejo por liberdade:

Eles deram à bebê o nome de Hagar. Rufus disse que era o nome mais feio
que já tinha ouvido, mas foi escolha de Alice, e assim ele deixou que fosse.
Eu achei o nome mais lindo que já tinha ouvido. Eu me sentia quase livre,
meio livre, se é que algo assim fosse possível, com meio caminho para casa.
Eu me senti alegre, a princípio, secretamente exultante. Até brinquei com
Alice em relação aos nomes que ela escolhera aos filhos. Joseph e Hagar. E
quanto aos nomes dos outros dois, pensei e não disse nada. Miriam e Aaron.
Eu disse:
- Um dia, Rufus vai se apegar à religião e ler o suficiente da Bíblia para refletir
sobre o nome
- Se Hagar fosse menino, ia se chamá Ismael. Na Bíblia, as pessoa podia sê
escrava por um tempo, mas não tinha que sê escrava para sempre.

Meu humor estava tão bom que quase ri. Mas ela não teria entendido isso, e
eu não conseguiria explicar. Pude, de alguma maneira, guardar tudo para
mim, e me parabenizei pelo fato de a Bíblia não ser o único lugar em que os
escravos se libertavam. Seus nomes eram apenas simbólicos, mas, eu tinha
90

mais do que símbolos para me lembrar de que a liberdade era possível,


provável e, para mim, muito próxima. (BUTLER, 2017, p. 375)

A relação com Rufus é complexa por outros motivos. Enquanto duraram as


relações entres eles, a balança de poder variou de um para outro. No início, Dana,
embora negra, era adulta, educada e lhe salvara a vida, enquanto ele era uma criança
mimada pela mãe e ignorada pelo pai. Dana intrigava-lhe e a possibilidade de perdê-
la, amedrontava-lhe. A vivência de Rufus é plenamente marcada pelo medo de perder
Dana, medo tal que, ao converter-se em posse, nega a existência do outro: “A posse
é o modo pelo qual um ente, embora existindo, é parcialmente negado” (LEVINAS,
1997, p. 33). Quando torna-se adulto e encarna as vantagens sociais de seu tempo,
ele rapidamente tenta fazer de Dana alguém que ele deseja que ela seja, submissa
aos seus caprichos, que corresponda às expectativas de uma mulher negra na época
– o que nada mais é que a negação de quem Dana é. No que concerne a Dana, seus
sentimentos por Rufus são ambíguos, mostrando a complexidade da natureza
humana, intensificada pela experiência da escravidão:

Estranhamente, pareciam gostar dele, desdenhá-lo e temê-lo, tudo ao mesmo


tempo. Isso me confundia, porque eu também sentia a mesma mistura de
sentimentos por ele. Achava que meus sentimentos eram complicados,
porque ele e eu tínhamos uma relação muito esquisita. Mas, na realidade, a
escravidão de qualquer tipo criava relacionamentos estranhos. O feitor me
despertava emoções menos conflituosas e mais simples quando aparecia
brevemente. Pensando bem, era tarefa do feitor ser detestado e temido,
enquanto o senhor mantinha as mãos limpas. (BUTLER, 2017, p. 368)

Ao ser esbofeteada pela primeira vez por Rufus, Dana, que já estava no século
XIX há oito meses, arrisca-se para fugir de uma existência que considerava pior que
a própria morte: tenta forçar sua volta para casa cortando os pulsos, embora sem
garantia de que a artimanha daria resultado:

Na cozinha esquentei água e a deixei morna, não quente. Então, levei uma
bacia cheia até o sótão. O quarto estava quente e vazio, apenas com minha
esteira e a bolsa no canto. Fui até ela, lavei a faca com antisséptico e passei
a alça de minha bolsa no ombro.
E, na água morna, cortei meus pulsos. (BUTLER, 2017, p. 382)

Ao cortar os pulsos, ela retoma controle de sua vida; sua liberdade volta a estar
em suas mãos. Ainda que não controle suas idas para o passado – visto que depende
de Rufus colocar-se em perigo, ela encontra, mesmo que por meios violentos, uma
maneira de sair da situação em que se encontra no momento que quiser. A morte, ou
91

a quase morte, transforma-se em liberdade, e não apenas para Dana. O suicídio de


Alice é um último ato de liberdade, ou da busca dela. A diferença é que, ao contrário
de Alice e de outros escravizados, Dana sabe que a “morte” nesse tempo, é a sua
volta para casa. Em entrevista para à Black Scholar Butler:

SCHOLAR: Talvez eu deva reformular a pergunta. O que você estava


tentando expressar?
BUTLER: Vários tipos de coragem. Por exemplo, há uma mulher no romance
que nunca foi chamada de “mammy”, mas talvez pudesse ter sido. Em certo
momento, minha personagem fica com raiva dela porque ela está forçando
os outros escravos a trabalhar. Minha personagem diz: "Bem, eles não estão
sendo pagos; eles vão levar uma surra; por que deveriam trabalhar duro?" E
a mulher responde: "Bem, você quer fazer o serviço? Alguém será obrigado
a fazer. Você quer? Já que temos que fazer, pelo menos devemos
compartilhar." Ela absorveu muita coisa ruim, mas ainda é ela mesma e ainda
está fazendo o que pode. Ela tem suas próprias formas de resistência, mas
realmente não vê isso a princípio, e passa a ver gradualmente. Há um ponto
no livro em que ela vai e volta entre os dois períodos de tempo
involuntariamente. Sempre que seu ancestral branco está em perigo - e ele é
uma pessoa muito autodestrutiva - ela volta fisicamente no tempo e,
especialmente quando ele é uma criança, ela o salva voluntariamente.
Porque, afinal, ao ver uma criança se afogando ou prestes a morrer
queimada, você naturalmente a salvaria, não importa a cor. E mais tarde,
quando ele é um homem crescido e uma pessoa muito menos agradável, ela
o salva porque sua ancestral ainda não nasceu. Ela não tem certeza de como
essas coisas funcionam, mas está com um pouco de medo. Ela entende que
existe um paradoxo aqui. Como tudo poderia depender dela? Mas de
qualquer maneira, ela continua salvando-o. Algumas pessoas vieram me
perguntar por que ela simplesmente não o mata assim que a ancestral nasce.
(p. 15-16, tradução nossa)34

Com Kindred, Butler consegue representar diversos perfis de coragem. É


preciso coragem para fugir, ou tentar – como o fazem Nigel e Alice – mas, é também
preciso coragem para ficar e sobreviver – como o faz Sarah. É na figura da cozinheira

34
No original: SCHOLAR: Maybe I should rephrase the question. What were you trying to express?
BUTLER: Various kinds of courage. For instance, there is a woman in the novel who was never called
mammy but perhaps she could have been. At a certain point, my character becomes angry at her
because she is pushing the other slaves to work. My character says, "Well, they're not getting paid; they
are going to get knocked around; why should they work hard?" And the woman says, "Well, do you want
to do it? Someone will be made to do it. Do you want to do it? It should be shared if we have to do it."
She absorbed a lot of the garbage but she is still her own person and she's still doing what she can. She
has her own forms of resistance but my character really doesn't see this at first and gradually does come
to see this. There's a point in the book when she goes back and forth between the two time periods
involuntarily.
Whenever her white ancestor is endangered – and he is a very self-destructive person – she pulls back
physically and especially when he's a child, she willingly saves him. Because after all, a child drowning
or about to burn to death, you would naturally save the child no matter what color it was. And later when
he's a man and a much less savory person, she saves him because her ancestor has not been born
yet. She's not quite sure how these things work, but she is a little afraid. She understands that there is
a paradox here. How could everything depend on her. But anyway, she goes on saving him. I've had
people come up and ask me why doesn't she just kill him as soon as the ancestor is born. (p. 15-16)
92

que Butler encarna o tipo de coragem menos óbvio. É Sarah quem encarna a
resiliência e é através dela que Dana – e consequentemente o leitor – desconstrói a
ideia da passividade das pessoas escravizadas. Embora pareça a encarnação da
mammy, é ela quem corajosamente comanda e garante que todos, coletivamente,
sobrevivam. Encarnando corpos tão destituídos de poder que a sobrevivência só é
possível que, somente assumindo um corpo coletivo.
Para o filósofo Richard Rorty (2007): “as línguas mudam no decorrer da história,
e, portanto, os seres humanos não podem escapar à sua historicidade” (p. 100);
assim, longe de ser universal e atemporal, a linguagem é fundamentalmente
contingente, ou seja, dependente das circunstâncias e contextos em que o sujeito que
a utiliza está inserido. Dana encarna essa historicidade quando chega munida de sua
linguagem dos anos 1970 a uma Maryland escravocrata no século XIX. Ela e Rufus
interagem cada um dentro de sua visão e acepção de linguagem e dos significados,
daí o choque de mundos e visões que ocorre entre eles, demonstrando, também, o
limite da linguagem através da incapacidade de ambos se comunicarem plenamente.
Ainda que usem o mesmo signo, eles acessam uma rede de significados diferentes.
Se pensarmos que os sentidos são construídos, mutáveis e de longe encerram uma
verdade final, não há do que se falar em uma linguagem universal e neutra.

- Ela disse que eu era o quê? – perguntei


- Só uma preta desconhecida. Ela e papai sabiam que nunca tinham visto
você.
- Que coisa para ela dizer logo depois de me ver salvando o filho dela.
(...)
- O que foi? – perguntou ele – Por que ficou brava?
- Sua mãe sempre chama as pessoas de pretas, Rufe?
- Sempre, menos quando tem alguém por perto. Por que não? (BULTER,
2017, p. 41)

Ao questionar o menino sobre o uso do vocábulo “preta35”, Dana o faz com o


significado que a palavra tem em seu próprio tempo; Rufus, por outro lado, utiliza a
mesma palavra de maneira diversa, utilizando suas próprias ferramentas linguísticas.
Da mesma maneira, quando questionada por não o chamar de “senhor: “– Você tem

35
No contexto norte-americano, original da obra, a palavra nigger, aqui traduzida como preta é
extremamente pejorativa por se tratar de um insulto racial.
No original: "Just a strange nigger. She and Daddy both knew they hadn't seen you before."
93

que me chamar de senhor – ele estava muito sério – Você quer que eu lhe chame de
negra.” (p. 49) ela se depara com uma realidade de subalternidade que não só não
faz mais sentido como é duramente combatida em seu tempo. Se em 1815 esperava-
se que uma mulher negra como Dana sempre se referisse a um menino branco e filho
de um dono de escravos como “Senhor”36, ao contrariar essa norma social apoiada
no discurso do período a mulher destaca-se, fazendo com que o garoto rapidamente
perceba que ela não era escrava, ainda que negra.
O romance é ambientado em um período histórico cuja maioria das narrativas
e registros que existem partem de uma ótica branca. Quando aborda escravidão – dos
mais diversos modelos –, questiona estereótipos racistas e violentos. Ao escrever
narrativas que dão dimensões sensíveis a corpos comumente desprezados, Butler
explora uma das facetas cruéis da sociedade – que se mostra com cores fortes de
tempos em tempos – dando à literatura uma função de exposição e reconhecimento
da crueldade humana.
Ao partir de diversos estereótipos comuns construídos por essa mesma ótica,
desconstruindo-os em seguida, Butler propõe ao leitor uma desconstrução desse
imaginário comum, e, aos poucos, se tiver sucesso, pode conseguir modificar o que
Richard Rorty (2007) vai chamar de “vocabulário” de um tempo. Por “vocabulário”,
podemos entender, de maneira sucinta, um conjunto de conceitos, ideias, padrões,
linguagem, preconceitos, práticas culturais e memórias. Quando se pode e se
questiona algum desses elementos, um vocábulo, por exemplo, questiona-se primeiro
o “vocabulário” que forjou e permitiu tal uso. Tal uso da literatura faz eco às suas ideias
sobre uma das finalidades da literatura:

Esse processo de passar a ver outros seres humanos como ‘um de nós’, e
não como ‘eles’, é uma questão de descrição detalhada de como são as
pessoas desconhecidas e de redescrição de quem somos nós mesmos. Essa
não é uma tarefa para a teoria, mas para gêneros como etnografia, a
reportagem jornalística, o livro de história em quadrinhos, o documentário
dramatizado e, em especial o romance. A ficção de autores como Dickens,
Olive Schreiner ou Richard Wrigth fornece detalhes sobre tipos de sofrimento
suportados por pessoas em quem, até então, não prestávamos atenção. A
ficção de autores como Chordelos de Lacos, Henry James ou Nabokov
fornece detalhes sobre os tipos de crueldade de que nós mesmos somos
capazes e, com isso, permite que nos redescrevamos. É por isso que o
romance, o cinema e o programa de televisão, de forma paulatina mas
sistemática, vêm substituindo o sermão e o tratado como principais veículos
de mudança e progresso morais. (RORTY, 2007, p. 20)

36
Master, em inglês
94

Ora, para ele, então, ao romance caberia essa função de espaço de


redescrição e criação de novos vocabulários e imagens culturais. No seio da literatura,
o autor pode explorar a potência da linguagem ao propor novas formas de ver o mundo
e os costumes, pode, também, questionar o status quo social, tal como faz Butler com
sua literatura. Segundo Maia (2017), Rorty:

defende a ideia de que nossas concepções éticas e comportamentos morais


não são fruto de um aprendizado de tipo filosófico, baseado em
argumentações racionais e abstratas, mas da vivência de experiências
humanas concretas, que teriam, segundo ele, o poder de gerar o sentimento
humano da empatia que, por sua vez, motivaria a solidariedade e a
compaixão. Tal tipo de aprendizagem é encontrado nas narrativas literárias,
e não na filosofia tradicional.
Um exemplo prático que torna claro o pensamento de Rorty se relaciona à
questão da escravidão. Os argumentos filosóficos sobre a imoralidade das
sociedades escravocratas, segundo ele, pouco contribuíram para a
eliminação dessa forma de injustiça; os relatos sobre as crueldades
cometidas contra os escravos, por sua vez, tiveram o poder de comover e,
assim, mudar a mentalidade de muitos homens sobre o assunto7.” (MAIA,
2017, p. 115)

Porque Dana encarna a escravidão, Butler consegue, com esse romance-


imagem escrito em resposta ao imaginário racista de sua própria época, causar
piedade e, talvez, impactar no ato de redescrição do imaginário justamente porque o
discurso literário é o campo das possibilidades. É potência que não diz e sim sugere
e revela; é, também, base para a criação, responsável por expandir horizontes morais;
é espaço que permite aos leitores acessar, através da leitura, as multiplicidades das
experiências humanas.
95

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

SCHOLAR: Quais são alguns dos pontos filosóficos que Kindred acaba
levantando?

BUTLER: Oh, acho que você teria que ler você mesmo. Lembro-me de ir a
uma conferência em San Diego e de alguém apresentar um artigo sobre meu
trabalho e interpretá-lo mal. Eu me levantei e apontei isso. Agora, no entanto,
tenho a sensação de que o que as pessoas obtêm do meu trabalho vale algo,
mesmo que não seja o que eu pretendia (BUTLER, 1986, p. 15, tradução
nossa)37

O que Octavia planejou para sua obra, o que, para ela seria o mais sensível ou
o mais instigante nem sempre será aquilo que atrairá o olhar do pesquisador, ou, caso
atraia, nem sempre este poderá interpretá-lo “corretamente”. Nem sempre os projetos
e pesquisas “acertam” de maneira precisa suas análises e não pretendi, com este
trabalho, desvendar-lhe a obra de maneira definitiva, afinal, todos os caminhos são
válidos.
Ela é cirúrgica, quando, para exaltar uma afeição por pós-escritos que lhe
permitem falar livremente sobre suas histórias, no prefácio de Filhos de Sangue e
Outras Histórias, diz que: “Na verdade, sinto que o que as pessoas trazem para minha
obra é tão importante para elas quanto aquilo que coloco nela”. (BUTLER, 2020, p.
13). Meus apontamentos dizem mais sobre mim e a importância que vi nos temas que
escolhi, que sobre os planos de Butler com sua produção literária. Minha análise não
se pretende taxativa, na realidade, pretende o exato oposto: mostrar interpretações
possíveis de uma obra singular.
O que apresentei aqui é somente uma das infinitas possibilidades de apreensão
e interpretação do literário e da obra, longe de almejar ser um estudo último, anseio,
no entanto, iniciar os debates. Acredito ser necessário ampliar os olhos acadêmicos
sobre obras, que, embora não se insiram no chamado cânone literário, - justamente
devido às relações de poder que as atravessam, não deixam de narrar a complexidade
da existência humana.
“Todas as lutas são, essencialmente, lutas sobre poder”. Assim, Butler encerra
Kindred – laços de sangue e reafirma o seu pulso criativo: escrever sobre as relações

37
No original: SCHOLAR: What are some of the philosophical points that Kindred ends up making?
BUTLER: Oh, I think you would have to read it for yourself. I remember going to a conference in San
Diego and having someone read a paper about my work and misinterpreting it badly. I got up and said
so. I have the feeling now though that what people get out of my work is worth something even if it
wasn't what I intended.
96

humanas constituídas e permeadas pelas relações de poder. O pioneirismo de Butler


começou na construção de si mesma e quando desbravou mares que lhe pareciam
impedidos. O propósito desse trabalho foi, justamente, propor a análise e a reflexão
dos usos que Octavia faz do ficcional para recuperar, imaginar e redescrever a
memória, subvertendo – na construção de seus personagens – o imaginário racista e
machista de sua época, enquanto utiliza um expediente comumente da ficção
científica para propor discussões que extrapolam o gênero e podem impactar no real.
Espero ter conseguido.
Quando proponho a literatura como um espaço possível de preservação,
recuperação e, por que não, redescrição da memória - o faço porque, para certos
grupos, faltam espaços físicos de memória. Reiteramos: são as relações de poder que
definem e moldam o que deve ser lembrado. Novamente: quem pode recordar?
Encarar o romance como um espaço possível de memória é, principalmente,
interessante porque amplia os locais, ainda que ficcionais, de acesso, criação,
preservação e, por que não, redescrição da memória de grupos diversos. Butler
escolhe os corpos que vai representar e trabalha em sua ficção os temas contingentes
a esses corpos e aos cenários em que fixa suas narrativas.
A discussão acerca do gênero do romance proposta ao longo do trabalho não
se pretendeu nem taxativa, nem definitiva, pelo contrário: é uma proposta para que,
ao lermos o romance, não o limitemos ao gênero a que ele vem sendo afiliado, é um
convite para que nos questionemos de classificá-lo é assim tão urgente. Mantenho a
posição de que não se trata de uma ficção científica e embora concorde com a visão
da autora – de que se trata de uma fantasia – creio que também haja outros caminhos
para entendermos o gênero do romance, embora, os temas de Kindred superem as
discussões sobre sua forma.
A pluralidade de leituras de uma obra, é, a meu ver um dos trunfos do literário.
Creio que o legado de Butler é vasto e minha defesa de que Butler tem sido
desprezada pela academia embora apresente uma obra de engenho evidente, além
de um fazer literário pioneiro, gira em torno disso: de como sua obra tem
potencialidade de, através de situações ficcionais, conseguir abordar os temas mais
diversos. Ela construiu universos e mundos e neles tratou de temas que embora
pareçam – ao menos superficialmente – limitados a categorias de pessoas que trouxe
para o centro de suas narrativas, são, na verdade, sobre o humano.
97

Ainda que minha análise pareça parcial dada a minha “obsessão positiva”,
tentei fazer com que não o fosse e, se, como diz Maia (2017): “a crítica é uma atividade
plural e que atende a diversas demandas e objetivos.” (p. 125-126), este trabalho,
portanto, não encerra a discussão sobre sua obra, pelo contrário: espero que sirva
como um convite às pesquisas vindouras.
98

REFERÊNCIAS

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BARREIRO, Carmen López. "A Slow Process of Dulling": Slavery and Science
Fiction in Octavia Butler's Kindred. 2014. 42 p. Dissertação (Mestrado em Estudos
Linguísticos e Literários) - Universidade da Coruña, [S. l.], 2014.
BEAULIEU, Elizabeth Ann. Writing African American Women: an encyclopedia of
literature by and about women of color. Londres: Greenwood Press, 2006.
BEDNARZ, Miriam. Mini-reviews of books from Salem’s library. Statesman Journal,
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BUTLER, Octavia E. Kindred – Laços de Sangue. São Paulo: Morro Branco, 2017
BUTLER, Octavia E. Filhos de Sangue e Outras Histórias. São Paulo: Morro
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