Octavia Butler
Octavia Butler
Octavia Butler
Kindred – laços de sangue de Octavia Butler: Uma ode à memória sob o manto
da ficção
Recife
2021
CAMILE FERNANDES BORBA
Kindred – laços de sangue de Octavia Butler: Uma ode à memória sob o manto
da ficção
Recife
2021
Catalogação na fonte
Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira – CRB-4/2223
Inclui referências.
Kindred – laços de sangue de Octavia Butler: Uma ode à memória sob o manto
da ficção
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Cesar Maia Ferreira Filho (Orientador)
Universidade Federal de Pernambuco
____________________________________________
Prof. Dr. Fábio Cavalcante de Andrade (Examinador Interno)
Universidade Federal de Pernambuco
____________________________________________
Prof. Dr. Cristhiano Motta Aguiar (Examinador Externo)
Universidade Presbiteriana Mackenzie
A Rafael, meu irmão, pela semente plantada
A Eduardo, meu amor, pela companhia na colheita
A Octavia: por me fazer sonhar e acreditar no impossível
AGRADECIMENTOS
Este trabalho é mais íntimo e talvez diga mais sobre mim do que seria
recomendado dentro da Academia. Foi escrito em sob lágrimas e ansiedade, sob amor
e arroubos de inspiração. Sobretudo, sob a minha admiração e paixão pelo trabalho
de Octavia Butler. Talvez, tenha sido essa paixão a maior motivação do meu trabalho.
Entretanto, não se faz uma pesquisa acadêmica só com paixão, e para todos
os outros departamentos - que não meus arroubos apaixonados – tive mais ajuda do
que poderei agradecer. Aos meus, não pouparei palavras:
Ao meu companheiro – a quem eu devo o mínimo de sanidade que mantive
durante a escrita desse trabalho – agradeço todo o suporte à minha jornada. Seja pelo
colo, pelas leituras – e revisões – dos meus textos, seja pela paciência infinita em me
ouvir falar sobre Octavia ou Kindred mesmo sem fazer ideia do que eu estava falando,
às vezes. Obrigada por segurar a barra quando eu precisei me fazer ausente.
Obrigada pelas vezes que me obrigasse a parar e respirar – e descansar. Obrigada
por seres, por vezes, a contenção das minhas águas abundantes
À minha família – a quem devo tudo – obrigada por me ensinarem a amar e ser
amada e que a vida, embora nem sempre seja fácil, é boa de ser/ vale a pena ser
vivida:
Aos meus pais e padrasto, pelo tanto de apoio, acolhimento e incentivo durante
meu caminho.
Ao meu irmão, agradeço o empurrão nessa jornada doida: obrigada, Rafa, por
me dizer as palavras que eu precisava ouvir.
Às minhas avós – obrigada por me mostrarem a força do matriarcado.
Ao meu tio Dudu (in memorian): obrigada por tudo que você me deu no nosso
breve encontro nessa vida.
À minha sogra, Lilia, agradeço o acolhimento em seu coração tão generoso.
Obrigada por ter sido tantas vezes a minha base e força nesse último ano.
Aos meus muitos amigos: obrigada. Por torcerem, celebrarem, incentivarem
minha pesquisa e minha pessoa. Na impossibilidade de agradecer a todos, preciso
destacar àquelas que foram indispensáveis nessa caminhada:
- Julianna, obrigada por me indicar o livro que mudou minha vida.
- Rahissa, obrigada por embarcar na minha loucura e me guiar nos caminhos
insólitos da vida acadêmica.
- Thê e Lucas, obrigada por tanto e por me lembrarem que a vida é boa.
- Vivi, obrigada por ser a raiz nas minhas emoções e o senso prático nas minhas
loucuras.
Aos amigos que fiz no mestrado: sem vocês, muito da graça disso tudo se
perderia. Obrigada pelas trocas, pelo carinho, pelo apoio. Foi uma honra dividir um
pouco da vida com vocês! Larissa (o Terraço e o Aquarela sempre me lembrarão
você), Sam (obrigada por tanto), Jake, Wilck, Isabella, Pedro, Márcia, Liv, Deividy,
Andrezza, Nom, Nilson obrigada por tantos momentos especiais, vocês são incríveis.
Agradeço ao PPGL – em especial aos professores – por todo o conhecimento
e suporte nessa caminhada.
Ao meu orientador – Eduardo Cesar Maia – os meus mais sinceros
agradecimentos. Obrigada pela escuta sempre disponível e pela orientação sempre
precisa (e por acalmar o coração da orientanda ansiosa). Obrigada por encarar de
cabeça aberta um projeto tão distante da tua área e, ainda assim, me trazer leituras
essenciais. Obrigada por Rorty (e pelo primeiro B do mestrado, me ensinou muito).
Obrigada pela liberdade e pelas portas abertas. Foi massa!
A Lourival por ser, para mim, Mestre – que me mostrou ser possível existir na
Academia saber e afeto – obrigada por todas as vezes que viu no meu trabalho algo
digno de ser notado.
Agradeço à CAPES pelo fomento que possibilitou essa jornada.
RESUMO
In Kindred, Octavia Butler, the first female black author to write science fiction
in the American literary tradition, shifts the narrative away from reality, through the use
of time travel, to write a novel that goes against the American post-abolition imaginary,
filled with racist stereotypes. As the protagonist – a black woman from the 1970s – is
transported through time to the pre-abolitionist South of the United States in the 19th
century, the author invites the reader to, through Dana, experience the horrors of
slavery. Moreover, in this novel, the author questions what spaces of memory are
reserved for those who cannot remember. Therefore, this research aims to investigate
the author's use of the novel – especially regarding new forms of representation of
black women, and recovery and preservation of memory – in addition to refuting the
novel’s usual classification under science fiction. It is also intended to analyse how,
through literature and literary work, Octavia Butler was able to build and rebuild
identities, question power relations, racism, and explore the potentialities of existence,
starting with her own.
1 INTRODUÇÃO................................................................................................10
2 OCTAVIA BUTLER: UMA BREVE APRESENTAÇÃO DA
“GRANDE DAMA DA FICÇÃO CIENTÍFICA” E DO ROMANCE
KINDRED – LAÇOS DE SANGUE...................................................................13
2.1 Octavia Estelle Butler: uma ilustre desconhecida para o público
brasileiro..........................................................................................................13
2.2 A obra singular de Octavia Butler: recepção crítica e inovações
literárias......................................................................................................... ..19
2.3 "Questões de gênero" – Kindred – laços de sangue: o romance
no limbo dos gêneros.......................................................................................27
3 ESPAÇOS DE MEMÓRIA E AS RELAÇÕES DE PODER EM
KINDRED – LAÇOS DE SANGUE...................................................................38
3.1 Breves considerações sobre o estudo da memória..........................................38
3.2 Memória e poder: quem pode recordar? O resgate da memória
no seio do romance..........................................................................................52
4 OCTAVIA BUTLER: EXPLORADORA DAS POSSIBILIDADES
DA EXISTÊNCIA.............................................................................................67
4.1 Novas formas de representação da mulher negra e do imaginário
cultural pós-abolição .......................................................................................67
4.2 Dana e a jornada da violência na construção da personagem
sobrevivente.....................................................................................................82
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................95
REFERÊNCIAS...............................................................................................98
10
1 INTRODUÇÃO
Escrevi sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco. Esta é a
epígrafe de Kindred – laços de sangue (2017), romance da autora norte-americana
Octavia Butler e objeto da presente pesquisa. Na epígrafe, encerra-se a síntese da
literatura de Butler, cujo pioneirismo literário é somente uma de suas qualidades.
Construiu-se autora e exaltou o fazer literário como a sua “obsessão positiva”: “A
obsessão positiva tem a ver com não ser capaz de parar apenas porque você está
com medo e cheia de dúvidas. A obsessão positiva é perigosa. Tem a ver com não
ser capaz de parar de jeito nenhum” (BUTLER, 2020, p. 148).
Em meio ao mar de dúvidas por aventurar-se a escrever fantasia e ficção
científica – seara dominada por homens brancos – Octavia persistiu e frutificou. Culpa
da obsessão positiva que estimulou a jovem Octavia a lançar-se na jornada incerta de
construir-se autora quando parecia impossível que uma jovem negra, crescendo em
meio a um regime de segregação racial, pudesse escrever – e ser lida – ficção
científica e fantasia. Foi a obsessão positiva que a fez continuar a construir mundos
fantásticos e narrativas sensíveis ainda que recebesse pilhas de cartas de rejeição. A
obsessão positiva fez de Butler uma escritora do momento em que decidiu sê-lo, ainda
muito jovem, até o momento em que faleceu precocemente, aos 59 anos. Enquanto
literatura, com toda a sua potência, foi a obsessão positiva de Octavia Butler, ela é a
minha obsessão positiva.
Escolher como objeto de pesquisa uma autora não só pouco conhecida, como
também inserida em uma tradição literária não tão comumente estudada na
Academia, foi desafiador e, na mesma medida, satisfatório. Sobre Butler, são
escassos os estudos e pesquisas acadêmicas, embora não falte o que dizer de sua
obra. Pioneira ao se consagrar a primeira autora Norte – americana negra de ficção
científica, Octavia lançou um olhar sobretudo afetivo, além de questionador, sobre as
condições de existência de corpos distantes do padrão hegemônico de poder –
masculino e branco – trazendo-os para o centro de suas narrativas, para, então, entre
cenários fantásticos, tecer histórias sobre a complexidade e pluralidade da existência
humana.
À mulher negra, na obra de Butler, é dada a possibilidade de existir nos mais
diversos papéis, sempre no centro da narrativa e sempre perpassada pelas questões
de gênero e raça. Butler escreve sobre relações hierárquicas de poder enquanto suas
11
Ela não esconde os sentimentos que a acometiam e escreve para tentar olhar
para o passado com compaixão, resgatando, por meio da ficção, uma memória
possível de pessoas cujos relatos e memórias não foram preservados pela história. A
vergonha da escravidão não deveria recair sobre os que descenderam dos
escravizados. Escrever sobre uma autora singular me pareceu exigir uma estrutura
de texto menos engessada, sem a separação e distinção de teorias e análises
literárias, me pareceu preferível, no lugar disso, organizar os capítulos da pesquisa
em eixos temáticos sobre os principais pontos da obra que me moveram a empreender
essa jornada de estudo.
Sendo este o primeiro capítulo, devo anunciar que o segundo servirá como uma
apresentação da autora e do romance; destacando os aspectos singulares de seu
fazer literário, a recepção crítica de sua obra e a polêmica que cerca o romance desde
que foi publicado: a classificação do livro como ficção científica, embora, não haja
ciência. Na terceira parte desta pesquisa, o eixo temático será a memória e, em um
primeiro momento, lançarei um breve olhar sobre diversos tratamentos dados ao
estudo da memória e sua relação com a história e a ficção. Em seguida, pretendo
refletir sobre a relação da memória e do poder, e sobre o local – social e até espacial
– destinado à memória das mulheres, além de pensar sobre o papel da literatura e da
ficção como meios de recuperação e reescrita da memória e da história através da
análise do romance. Para a quarta e última parte deste trabalho, escolhi como eixo
temático as reformulações do imaginário que ela propõe com sua literatura. Neste
capítulo, me debruçarei sobre a redescrição e questionamento dos estereótipos
representacionais reservados às mulheres negras na ficção e a construção de Dana
como uma personagem sobrevivente.
1
Todas as traduções dos materias indisponíveis em português são nossas.
No original: I spent a lot of my childhood being ashamed of what she did, and I think one of the reasons
I wrote Kindred was to resolve my feelings, because after all, I ate because of what she did ... Kindred
was a kind of reaction to some of the things going on during the sixties when people were feeling
ashamed of, or more strongly, angry with their parents for not having improved things faster, and I
wanted to take a person from today and send that person back to slavery. My mother was born in 1914
and spent her early childhood on a sugar plantation in Louisiana. From what she's told me of it, it wasn't
that far removed from slavery, the only difference was they could leave, which eventually they did.
13
2.1 Octavia Estelle Butler: uma ilustre desconhecida para o público brasileiro
2
As leis Jim Crow, que estabeleciam regras rígidas e segregacionistas para convivências entre pessoas
negras e brancas nos Estados Unidos da América.
14
escrever à sua mãe. Foi quando ouviu de uma tia que garotas negras como ela nunca
seriam escritoras, como relata em um ensaio:
3
No original: When I was watching a bad science fiction movie and decided that I could write a better
story than that. And I turned off the TV and proceeded to try and I’ve been writing Science fiction ever
since.
15
4
No original: Butler attended Pasadena City College and California State University at Los Angeles and
took writing classes at the University of California at Los Angeles at night. For several years, she worked
a variety of temp jobs in order to have time to write fiction. (Her depiction in Kindred of Dana’s struggles
to make ends meet while she writes and sends off manuscripts draws on her own experiences.).
Eventually Butler began to meet supportive mentors, first at the Writers Guild of America and then at
the Clarion Science Fiction Writers Workshop, which she attended in 1970. She especially credited Sid
Stebel, Harlan Ellison, and Theodore Sturgeon (she took classes from the latter two) with teaching her
the nuts and bolts of preparing a manuscript for publication and for encouraging her to keep writing. (p.
139- 140)
16
presente. Dana precisa assegurar que Rufus e Alice gerem Hagar, tataravó dela;
entretanto, nem sempre será fácil para Dana escolher salvar Rufus no lugar dos que
mais se parecem com ela. Embora suas existências estejam entrelaçadas, o tempo
passa de maneira distinta entre passado e presente. Ao mesmo tempo em que Dana
perde apenas um ano de sua vida nessa jornada, esteve presente em praticamente
toda a vida de Rufus, acompanhando-o pela infância, juventude e idade adulta.
Enquanto no presente se passam algumas horas ou até poucos dias, no passado
podem se passar meses e anos, por isso, entre idas e vindas, Dana pode observar o
crescimento de Rufus e as escolhas que ele fez da vida, além de poder acompanhar
o destino dos demais personagens. Enquanto se faz presente na vida das pessoas da
Fazenda Weylin de modo inconstante e imprevisível, ela permanece na memória
daqueles que vivem e trabalham
Durante as seis viagens que faz para o século XIX, uma delas acompanhada
de seu marido, não são poucas as vezes em a protagonista precisa salvar seu
antepassado, quando, não necessariamente gostaria de fazê-lo, pois, os constantes
salvamentos acabam eximindo Rufus das consequências de seus atos e Dana tem
consciência disso. Ainda assim, o laço entre eles – daí o nome do romance – é
formado de maneira tão intensa, que, em determinado momento, Dana ama e odeia
Rufus ao mesmo tempo. Deseja livrar-se dele e ao mesmo tempo salvá-lo de tornar-
se, por completo, um homem de seu tempo.
Trataremos das peculiaridades e das situações específicas geradas pelas
viagens no tempo com detalhes nos capítulos seguintes, porém, é importante destacar
que Kindred mantém e continua a tradição da autora de tratar tematicamente questões
de raça, gênero e relações de poder. Além da protagonista, Butler coloca nesse
romance outras mulheres negras, partindo de estereótipos veiculados e alimentados
pelo imaginário racista pós-abolição, e os subvertendo. Ainda que Octavia não seja a
primeira a tratar das questões da mulher negra ou da mulher negra durante a
escravidão, é a primeira a fazê-lo no campo da ficção especulativa e científica.
Protagonistas não-brancas, mulheres como protagonistas, discussões sobre
poder e ausência dele, questões raciais e ambientais, sociedades em crise, diversas
modalidades de escravidão, o personagem sobrevivente, são todos tópicos e temas
repetidamente tratados por Butler em sua ficção. A Editora Morro branco tem traduzido
os romances de Butler desde 2017, começando com Kindred – laços de sangue, tendo
em seguida lançado os romances A parábola do semeador, A parábola dos talentos,
17
Lauren sofre de uma condição que torna a sua sobrevivência ainda mais difícil:
tem hiperempatia. Quando vê o sofrimento de outro ser vivo, sente em seu corpo a
mesma dor, o que é um pesadelo quando se está cercada de violência. O caminho
para a sobrevivência, para Olamina, é a Semente da Terra, algo entre religião, filosofia
e poesia. Tendo por base a Semente da Terra, Lauren funda Bolota, uma comunidade
etnicamente diversa que tenta sobreviver em um contexto social e político que elegeu
um presidente ultra religioso e conservador, cujo lema de campanha é: “Tornar a
América grande novamente”.
Já a trilogia Xenogênse composta por Despertar (1987 [2018]), Ritos de
passagem (1988 [2020]), e Imago (1989) (inédito em português), começa com o
despertar de Lilith, protagonista da história, que foi mantida em animação suspensa
por 250 anos e é despertada para cumprir um papel específico: liderar o repovoamento
da Terra, agora em condições selvagens, e atuar como a mãe de uma nova geração
18
5
No original: “I've actually never projected an ideal society. I don't write Utopian science fiction because
I don't believe that imperfect humans can form a perfect society.”
6
Premiações importantes no campo da ficção especulativa. O Nebula Award é oferecido aos melhores
trabalhos de ficção científica/fantasia por dois anos seguidos e o Hugo Award à melhor obra de ficção
científica/ fantasia do ano anterior.
7
No original: In 1995, Butler was the first science fiction writer granted a ‘genius’ award from the John
D. and Catherine T. MacArthur Foundation, wich paid $295.000 US over five years.
19
laços de sangue, por exemplo, vendeu mais de meio milhão de cópias no mundo
inteiro. Em seu obituário, no jornal canadense The Gazette, temos:
Foi através da literatura e do fazer literário que Octavia Butler pôde construir e
reconstruir identidades, questionar relações de poder, o racismo e explorar as
potencialidades da existência, a começar por sua própria.
8
No original: Octavia Butler's first creation in the world of sicence fiction was herself. Before anybody
ever told her that black girls do not grow up to write about futuristic worlds, Butler, the daughter of a
shoeshine man and a maid, was already fashioning a place for herself in a white-dominated universe.
9
No original: Octavia Butler, who started writing science fiction after she attended a workshop with
Delany in the 1960s, was the first African American woman to publish in the field of science fiction. Her
20
many novels, though set in multiple universes, realities, and time periods, squarely fit into the African
American (and also the feminist) literary tradition.
10
No original: Woman writers have discovered this middle ground and in the last decade have mined it
mercilessly. Surprisingly, blacks have not. Woman writers such as Ursula K LeGuin, Joanna Russ, and
Mary Staton have written their way to prominence featuring female characters and feminine themes. But
of the 400 or so members of the Science Fiction Writers of America – a close-knit community said to
include nearly anyone who has ever done anything connected with the field – only four writers are black.
Of the four, only two – Samuel R. Delaney, of Harlem, NY and Octavia Butler, of Los Angeles – have
gained stature in the field.
11
No original: And of the thousands of fans attending Science fiction conferences all over the country
each year, a very small percentage is black.
21
Um tema comum nos primeiros dias da ficção científica era o que Sam
Delaney chamava de “navios das Nações Unidas", com uma tripulação de um
negro, um oriental, um branco americano e um russo. O negro e o oriental
morrem cedo, o americano e o russo começam atacando um ao outro, mas
aprendem a coexistir no final. (Hall, 1980, tradução nossa)13
12
No original: Over the years Butler, author of the seminal work Kindred, had earned the distinction of
being the "first lady" of a small tight-knit circle of black writers of speculative fiction - science fiction,
horror and fantasy.
13
No original: A common Science in the early days of science fiction was what Sam Delaney calls the
‘United Nations’ ships with a crew of one black, one oriental, one white American and one russian. The
black and the oriental were killed off early, the american and the russian start off at each others throats
but learn to coexist in the end. (Hall, 1980)
22
pelas quais a natureza humana e a sociedade podem ser vistas. É através de suas
histórias e força narrativa que Octavia explora as possibilidades da existência
humana. Como disserta Milan Kundera (2009) em A arte do romance:
A cada página Lilith percebe mais coisas sobre a aparência de Jdahya e leva o
leitor com ela, como se pudéssemos observar com seus olhos a estranheza do
alienígena. É nesse momento que Butler nos mostra os limites da linguagem, afinal,
como descrever o que a as palavras não alcançam? Como construir para o leitor uma
imagem tão estranha ao ser humano e tão diferente de tudo que conhecemos? Como
interpretar uma realidade tão estranha à linguagem humana? Butler o faz usando
metáforas e aproximações e a crescente familiaridade de Lilith em relação à nova
realidade que a cerca. No decorrer do romance, quando vai tomando o lugar que lhe
fora designado pelos Oankali, constrói um vocabulário que apreende melhor o novo
mundo em que vive.
O romance Kindred – laços de sangue, considerada sua obra prima, parece,
em retrospecto, deslocada do que a autora escreveu majoritariamente: distopias e
ficção científica. A classificação do romance entre a crítica variou: algumas resenhas
o descreveram como ficção científica; outras, como as do Los Angeles Times, que
publicou sobre Kindred nos anos de 1979 e 1981, respectivamente: “Kindred (...) é
tanto ficção científica quanto crônica histórica” 14 e “Kindred é sobre identidade e
história, e o fato de que aquele velho elemento da ficção científica, a viagem no tempo,
ser usado, é meramente incidental”15. Já a resenha do Statesman Journal (1979), de
Salem, diz que “a autora, normalmente uma escritora de ficção científica, fez de
‘Kindred’ um romance histórico com elementos de ficção científica”16.
Classificar o livro como ficção científica parece refletir a dificuldade da crítica e
do público de receber uma obra que não corresponde de maneira direta às
expectativas mais usuais dos gêneros a que poderia ser afiliado. Apegaram-se a um
elemento isolado – a viagem no tempo – e a partir dele encaixaram o romance na
classificação mais diretamente correspondente. Butler também declarou na entrevista
para Black Scholar que foi bastante difícil publicar Kindred porque, embora tenha
enviado o manuscrito para diversos editores, não houve consenso sobre em que
segmento publicar o livro. A expectativa acerca de uma obra de fantasia ou de ficção
científica é limitada a uma ideia bastante específica à qual o romance não faz jus.
14
No original: Kindred (...) is both science fiction and historical chronicale.
15
No original: Kindred is about identity and history, and the fact that old science fiction (...) device of
time travel is used is merely incidental.
16
No original: The author, normally a Science fiction writer, has made ‘Kindred’ an historical novel with
elements of science fiction.
24
17
No original: “What slavery in History denied to black Americans, slavery in literary history grants to
them: the power to have a bit of control over their destinies.” (p. 475).
25
18
No original: Characters such as Harriet Jacobs’ Linda Brent, Frances Harper’s Iola LeRoy, and
Pauline Hopkins’ Sappho serve as the best examples for the point I am making here. These three
characters are so pious and chaste that they seem unreal and unbelievable in that they are absent of
the flaws that would make them seem like flesh and bone women. (...) in other words, the narratives’
attempt to avoid racial and gender stereotypes constructed during antebellum America often times got
in the way of realistic portrayals of black women. (...) It contrasts the image of slave women as mere
victims in narratives written by men to images of women as fully developed heroines, which are found
26
Assim, Dana pode ter falhas e fraquejar, temer a escravidão, submeter-se a ela
para sobreviver sem que isso ofusque suas qualidades, ela não é perfeita. Dana é de
carne, osso e sangue. Ele destaca que, embora reconhecida como um elemento
relevante na historiografia da literatura norte-americana, Butler tem menos
reconhecimento acadêmico. Sua hipótese é que isso se deve ao fato de Butler ser
reconhecidamente uma autora de ficção especulativa e:
O romance Kindred (1979) é facilmente um dos livros mais populares de
Octavia Butler. Sua popularidade é, sem dúvida, baseada no fato de que se
presta a um público muito amplo, pois transpõe as fronteiras de vários
gêneros (autobiografia, narrativa de escravos, ficção científica / fantasia,
ficção afro-americana contemporânea etc.) já em seus dois primeiros
capítulos. Apesar da capacidade do romance de confundir as barreiras de
gênero, no que diz respeito à academia, Butler é uma escritora de ficção
científica (FC). E por causa deste fato duvidoso, a ficção de Butler, até muito
recentemente, não vinha sido explorada de forma tão crítica quanto as obras
de outras escritoras negras de mesmo calibre. Kindred é um texto tão
importante e acessível porque se baseia em fatos históricos bem pesquisados
e em uma boa narrativa. (2010, p. 1)19
in narratives written by women. Carby discusses the literary history of the emergence of Black women
as novelists and suggests the forms in which Black women intellectuals made political as well as literary
interventions in the social systems in which they lived. The feminine slave narrative from the nineteenth
century to the present continues to vary with regards to its formula and structure. This variation is largely
due to nineteenth century moral ethics, which often prevented black women writers from creating “whole”
heroines in character and experience. Such strict and constraining techniques were used by women of
the era that Carby has described as “The Black Women’s Renaissance” (1890–1930s) to create the
model black woman character.
19
No original: The novel Kindred (1979) is easily one of Octavia Butler’s most popular books. Its
popularity is undoubtedly based on the fact that it lends itself to a very broad audience, as it blurs the
boundaries of several genres (autobiography, slave narrative, science fiction/fantasy, contemporary
African American fiction, etc.) within its first two chapters. Despite the novel’s ability to blur genre
borders, as far as the academy has been concerned, Butler is a Science Fiction (SF) writer. And because
of this dubious fact, Butler’s fiction has not been explored as critically as the works of other Black women
writers of equal caliber until very recently. Kindred is both an important and accessible text because it
is based on well researched historical fact and good story telling. (2010, p. 1)
27
que antes não eram discutidos nessas formas. Há uma vasta tradição de narrativas
escravas e neo-escravas, romances sobre temas raciais, obras engajadas...mas, até
ela, não havia uma autora de ficção científica que fosse de fato lida, vendesse e
fizesse circular esse imaginário.
20
[…] Sci-fi scholarship on Butler often severs her work from the context of African-American neo-slave
literature, positioning her instead in relation to sf conventions and precursors; in this way, Kindred’s
minimization of such readily recognizable sf elements as are foregrounded in Butler’s other fiction –
aliens, telepathy, post-apocalyptic worlds, genetic mutation – render it the most generically problematic
of her novels. Both moves of genre policing unduly limit how we read Kindred. (VINT, 2007, p. 241)
28
21
No original: I sent it off a number of different publishers because it obviously was not science fiction.
There’s absolutely no science fiction in it.
29
tempo com uma máquina construída cientificamente ou por uma força mágica
inexplicável. O exemplo da viagem no tempo é pertinente, pois, como
veremos mais adiante, Kindred: laços de sangue (2017 [1979]), de Octavia E.
Butler, é um romance de difícil definição uma vez que não há explicação,
científica ou mágica, para o motivo das viagens que a protagonista faz ao
passado. (SOUZA, 2019, p. 13)
Barreiros (2014), por sua vez, defende que o romance, embora possua
elementos das narrativas neo-escravas, é também ficção científica por causa da
presença da viagem no tempo. Quando precisa trazer uma definição do que seria a
viagem no tempo:
22
No original: Time travel: It is usually based on little known scientific theories that would make this type
of travel possible. Time travel narrative is used for two purposes: a) to get a glimpse of the future and
know what awaits the human race or b) in order to, through personal experience, know about and better
understand history. Travels to the past can be used in order to change history. However, this usage is
widely avoided by pure science fiction since it would create certain paradoxes1. Kindred¸ although
lacking the scientific element, is an example of a time travel novel. Time travel is a crucial element in
Butler’s work. (BARREIRO, 2014,p. 6)
30
Tanto Souza (2019), quanto Barreiro (2014), mesmo após cuidadosa análise
do romance e das teorias sobre as tradições literárias as que filiam Butler, continuam
presos à ficção científica em maior ou menor grau e o fazem, provavelmente, porque
consideram o deslocamento temporal essencial à narrativa, e sentem a necessidade
de classificar o romance. A própria autora rejeita a classificação baseada apenas no
elemento de viagem no tempo porque ele é apenas ferramenta/recurso narrativo. Não
há nada de ciência no romance. Dana precisa viajar no tempo, porque, caso não o
faça, o eixo do romance deixa de existir. A autora faz uso do expediente de um
elemento fantástico para, assim, iniciar sua história.
Em entrevista, Butler manifesta-se sobre o gênero do romance:
Não. Acho que as pessoas decidiram que não gostam de ficção científica
porque decidiram que sabem o que é ficção científica. E elas têm uma noção
muito limitada do que é. Eu costumava dizer que a ficção científica e os
negros são julgados pelos seus piores elementos. E, infelizmente, ainda é
verdade. As pessoas pensam: "Oh, ficção científica, Star Wars. Eu não gosto
disso." E elas não querem ler o que escrevi porque não gostam de Star Wars.
Por outro lado, você tem o outro tipo, os que querem ler o que eu escrevi
porque gostam de Star Wars, e eles acham que deve ser o que estou fazendo.
Em ambos os casos, eles ficarão desapontados. Essa é a pior coisa sobre a
classificação em gêneros. Muitas vezes, são uma desculpa para não fazer
algo, mais frequentemente do que uma razão para fazer algo.
Não há nenhum assunto que você não possa abordar por meio da ficção
científica. E provavelmente não há nenhum assunto que alguém não tenha
abordado uma vez ou outra. Você não fica restrito pelas fórmulas como em
um mistério, ou mesmo em uma história romântica. Está completamente livre.
Se você vai escrever ficção científica, isso significa que está usando a ciência
e precisará usá-la com precisão. Ou, sabe, pelo menos especular sobre
23
No original: In this paper, I have tried to analyze Octavia Butler’s novel Kindred from several points of
view. Since it is a work of science fiction that deals with slavery, I have first provided the main
characteristics of the science fiction genre and included a brief description of the most common elements
we find in this genre. While in other works by Butler we can find aliens, dystopia and futuristic settings,
in Kindred, in particular, we find time and space travel and alternate history. As stated before, Kindred
is also a neo-slave narrative and this is the reason why I have referred to the main characteristics of this
new genre. Butler, an African American author writes a science fiction novel that travels between the
past and the present, which allows the reader to experience hardships of slavery.
31
maneiras em que aquilo poderia fazer sentido. Se você não está usando
ciência, o que está escrevendo provavelmente é fantasia, quer dizer, se ainda
for algo estranho. Algumas espécies de fantasia... quando falamos de
fantasia, as pessoas tendem a pensar em Tolkien, mas Kindred é fantasia,
porque não há ciência. Na fantasia, tudo que você precisa fazer é seguir as
regras que você mesmo criou. (BUTLER, 1991, p 496, tradução nossa.) 24
24
No original: Octavia Butler: No. I think people have made up their minds that they don't like science
fiction because they've made up their minds that they know what science fiction is. And they have a very
limited notion of what it is. I used to say science fiction and black people are judged by their worst
elements. And it's sadly enough still true. People think, "Oh, science fiction, Star Wars. I don't like that."
And they don't want to read what I've written because they don't like Star Wars. Then again, you get the
other kind who do want to read what I've written because they like Star Wars and they think that must
be what I'm doing. In both cases they're going to be disappointed. That's the worst thing about verbal
shorthand. All too often, it's an excuse not to do something, more often than it's a reason for doing
something.
There isn't any subject you can't tackle by way of science fiction. And probably there isn't any subject
that somebody hasn't tackled at one time or another. You don't have the formulas that you might have
for a mystery, or even a romance. It's completely wide open. If you're going to write science fiction, that
means you're using science and you'll need to use it accurately. At least speculate in ways that make
sense, you know. If you're not using science, what you're probably writing is fantasy, I mean if it's still
odd. Some species of fantasy... people tend to think fantasy, oh Tolkien, but Kindred is fantasy because
there's no science. With fantasy, all you have to do is follow the rules that you've created24.
32
25
No original: Dana’s body is the mechanism of her time travel.
33
além de escassas, se revelam bem aos poucos para os personagens, ou melhor, para
a protagonista, afinal, é Dana quem viaja entre as épocas e é nela e em sua jornada
que Butler faz o leitor fixar o olhar. É somente durante a quinta visita – e penúltima –
que faz à Fazenda Weylin que Dana discute brevemente a natureza de seus
deslocamentos – e indiretamente sobre sua natureza – com outro personagem que
não fosse Kevin e Rufus:
Interessante perceber que para Dana é mais importante que Tom Weylin
entenda a natureza de suas viagens ainda que não acredite. Ora, a verdade mesmo
que revelada aos olhos de Weylin, é mais incompreensível e figura dentro do campo
do impossível do que improvável, principalmente porque carece a Dana uma máquina
ou um elemento material que encerrasse em si a explicação sobre as viagens no
tempo.
Um outro aspecto que precisa ser observado é que as viagens de Dana são –
em sua maioria – involuntárias, ela não tem controle sobre suas idas ao passado,
estas parecem obedecer à lei de sobrevivência de Rufus, e, indiretamente, da própria
Dana. O máximo de controle que consegue exercer nas suas viagens é forçar sua ida
para o seu tempo, e descobre isso ao cortar os pulsos e garantir que a lei que rege
34
sua própria sobrevivência funcione, não obstante, não possui nenhuma garantia de
sucesso, pois tudo o que sabe sobre os deslocamentos é fruto de suas experiências.
Importante lembrar que quando tem essa conversa com Weylin, Dana já possui
o máximo de informações que pode sobre seus deslocamentos e, embora não
compreenda completamente – nem tente ou tenha tempo de desvendar as causas –,
consegue tecer algumas teorias e encontra alguns caminhos. Ela vai acumulando
esses conhecimentos durante suas idas e vindas temporais, uma das primeiras
“regras”, se assim podemos chamá-las, que Dana – e o leitor – desvendam é
justamente a “função” de Dana que a “liga” de maneira intrínseca ao passado: garantir
que seu antepassado sobreviva o suficiente para gerar a ancestral de sua família:
o gênero. Quando traz a viagem no tempo como recurso narrativo, a autora expande
a utilização de um recurso outrora explorado quase que exclusivamente na ficção
científica. Tal ousadia é possível porque essa é a vocação do romance: a ampliação
das possibilidades. Nas palavras de Kundera (2009):
ficar enfim sãos, ele se refere à possibilidade de eles poderem esquecer o trauma,
deixar a trama da memória se desvanecer. O esquecimento, afinal, nem sempre se
constitui algo ruim, ainda que para eles seja completamente impossível voltar a ser o
que eram no começo da jornada.
Embora considere Kindred como uma obra de fantasia e não de ficção
científica, Octavia Butler é, solidamente, expoente e tenaz defensora do último. No
ensaio Obsessão positiva, presente em Filhos de Sangue e outras histórias (2020) ela
não somente declara que sim, é uma autora de ficção científica como reconhece seu
pioneirismo: “Eu, portanto, ganho a vida escrevendo ficção científica. Até onde sei,
sou a única mulher negra que faz isso” (p. 149). Vale observar que, longe de ser uma
auto exaltação, tal percepção pode ser lida como uma constatação de um fato que
deve ser questionado, afinal onde estavam os autores negros de ficção científica em
meados dos anos 70? Alguns anos mais tarde, Mark Dery daria um nome a essa
tradição de ficção especulativa negra: o Afrofuturismo. Movimento esse que fez de
Octavia Butler sua madrinha. Segundo Souza (2019):
O futuro parece ser o único espaço em que corpos negros podem existir sem
encarnar uma sina de tragédia reservada aos personagens negros nas narrativas.
Com um passado marcado pela violência, e um presente ainda marcado pelo racismo,
não é surpreendente que a ficção científica e os gêneros da ficção especulativa no
geral interesse às pessoas negras. A indagação sobre a escassez de autores negros
escrevendo ficção científica, resvala no já discutido tópico do gênero ser, até então,
domínio de autores brancos e, principalmente, homens. Quando desfia uma defesa
acerca da importância da ficção científica para pessoas negras, Butler destaca
37
E de que adianta tudo isso para o povo negro? (BUTLER, 2020, p. 150)
26
De acordo com o Cambridge Dictionary, https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-
portugues/kindred, acesso em: 05 de outubro de 2020.
40
É durante a segunda viagem temporal que Dana – atraída por Rufus para salvá-
lo de um incêndio provocado pelo garoto – começa a desvendar os mecanismos e a
motivação do que acontece com ela, e o porquê de encontrar-se presa ao menino.
Dessa vez, ela passa mais do que alguns minutos no passado e pode conversar com
o garoto, começando a compreender, assim, o que acontece entre eles. Nesse
episódio, não só a protagonista percebe que se encontra mais longe de casa do que
supunha, mais precisamente alguns séculos e muitos quilômetros a separam de sua
realidade, sua casa e seu marido em 1976, como também começa a compreender as
motivações que a levam ao passado – passado este potencialmente letal para um
sujeito como ela. Tentando compreender o que acontece e o local em que se encontra,
questiona Rufus acerca desses elementos e descobre o nome completo do garoto e
a existência de sua vizinha, uma menina negra e livre, Alice. Indagando se está em
uma fazenda, ela descobre:
E por que ninguém da minha família havia dito que Rufus Weylin era branco?
Se sabiam. Provavelmente não sabiam. Hagar Weylin Blake havia morrido
em 1880, muito antes da época de qualquer membro da minha família que
conheci. Sem dúvida, a maior parte das informações a respeito da ida dela
43
morreu com ela. Pelo menos, tinha morrido antes de chegar a mim. Só
restava a Bíblia. (BUTLER, 2017, p. 46-47)
27
Movimento ativista, de abrangência internacional, que objetiva combater os inúmeros episódios de
violência cometidos contra pessoas negras.
45
algum imaginário... A não ser que o único fundamento do texto seja panfletário ou
político, ele se mantém relevante. Mesmo que um dia Kindred perca seu apelo político
e social, a construção de sua narrativa e a elaboração das situações ainda poderão
ter valor reflexivo, de questionamento, de redescrição do imaginário. E pode,
potencialmente, ter seu valor político reativado nas gerações seguintes; é, na verdade,
o contexto histórico e social atual que chama atenção para os questionamentos
levantados na obra. Mas, mesmo sem esse apelo, o romance se sustenta porque
Butler fez um trabalho literário partindo de um elemento histórico e propondo a
construção de uma memória e redescrição de estereótipos.
Ao colocar uma mulher negra como protagonista, como sujeito que vai guiar o
leitor – localizado em um tempo entre presente e futuro –, Butler questiona o papel
social da mulher negra no século XIX, no século XX e, por que não, no tempo em que
o leitor está consumindo. Ao focalizar sua narrativa nas relações de poder, Butler tanto
fixa uma discussão de como elas se constituíam no tempo de escritura do romance,
nos tempos passados no interior da obra, e também propõe uma observação de como
elas se constituem no tempo e contexto em que o leitor está inserido. Por fim, constitui-
se também como entretenimento, tendo em vista que Octavia Butler se consagrou
com um expoente da literatura popular norte americana
Para Halbwachs (1990), a memória social ou histórica (termo usado por ele,
que admite não ser a melhor escolha lexical) e a história constituem-se como
processos e elementos diferentes. Enquanto a história se apresenta como uma
sequência geral e cronológica, ultrapassando a vida dos que fizeram parte de seus
fatos, e se mantém eterna, desde que em um suporte que não expire; a memória
coletiva se refere a um grupo específico e permanece enquanto permanecerem vivos
os indivíduos que partilham dessa memória. Uma família, por exemplo, se constitui
como um grupo que partilha de uma memória coletiva, social. Ele não despreza ou
desconsidera a história, pelo contrário, ele destaca a relação entre a memória social
e a história, quando destaca que esta fornece um quadro útil para a memória, quando
situa cronológica e socialmente uma lembrança. O mesmo vale para a relação entre
a memória autobiográfica e a memória histórica: “a primeira se apoiaria na segunda,
pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral. (HALBWACHS, 1990,
p. 37)”. Quando diz que a história oferece um quadro de contexto e auxílio de fixação
da memória, ele se refere ao movimento de fixação da memória em um contexto
histórico, como um pano de fundo para a recuperação e localização da memória. Não
46
Ora, ao destacar o fato dessa memória oral não ser “palavra por palavra”, Le
Goff (1990) demonstra que o essencial na transmissão dessa memória seria o
conteúdo base, a matéria essencial, o que se mantém imutável mesmo com
pluralidade das versões. Há nesse modelo de transmissão e preservação da memória
espaço para o engenho; cada homem – memória tem a liberdade de, preservando o
que é essencial, criar em torno do que não é basilar. A narração, aqui, é fundamental
na construção e propagação da memória, demonstrando que é possível recorrer à
ficção no momento de recuperação e perpetuação da memória. Diferentemente dessa
abordagem, podemos trazer exemplos de quando o exercício da memória é técnico,
apoiado em artifícios mnemônicos, o que Assmann (2011) chama de memória vis. Le
Goff traz como exemplo os druidas gauleses, cujos acólitos aprendem de cor um
grande número de versos, passando diversos anos nessa aprendizagem e cuja
repetição deve ser “palavra por palavra”. Eles o fazem “porque não querem nem
divulgar a sua doutrina, nem ver os seus alunos negligenciar a memória confiando na
escrita” (p. 372).
47
O surgimento da escrita nas sociedades até então ágrafas parece ter dado
outra dimensão à memória técnica, visto que a possibilidade de fixar o conteúdo em
matéria menos volátil que a memória pode acabar demandando menos da técnica em
si. Há, portanto, ganhos com o advento da escrita, ganhos sentidos principalmente no
campo da história, visto que ela tende a ser preservada em documentos, enquanto
perde-se no campo da mnemotécnica, que é despida de seu caráter essencial na
transmissão da memória e da história. A escrita parece funcionar, também, como
mecanismo de preservação da história dos monarcas, dos impérios: além de legitimar
sua genealogia e pretensão ao poder, também objetiva preservar o que os poderosos
consideram digno, "a grande história": “pois os reis fazem compor e, por vezes, gravar
na pedra anais (ou pelo menos extratos deles) onde estão sobretudo narrados os seus
feitos – e que nos levam à fronteira onde a memória se torna ‘história’” (LE GOFF,
1990, p. 375)
A recordação ou lembrança é absolutamente particular e própria. Ainda que de
um mesmo acontecimento participem duas ou mais pessoas, as impressões que elas
guardam e perpetuam são diferentes. Halbwachs (1990) cita o caso de Stendhal, que
na infância presenciou ao lado de seus companheiros, uma rebelião popular que
originou uma revolução. O evento o marcou a ponto de sempre relatá-lo, com todos
os detalhes que guardara em sua memória. Entretanto, quando escreve um ensaio e
relata o fato, um de seus companheiros, R Colomb, contesta diversas informações.
Estaria Stendhal invocando memórias falsas, romanceando seu relato, ou somente
fora marcado de uma forma diferente de seu companheiro? Haveria, então, uma
maneira única e correta de recordar? Seria a ficção um caminho para a organização
das lembranças?
Ao recordarmos e relatarmos essa recordação, recorremos à narração para
ordená-la e elaborá-la e, por vezes, o mero movimento de colocar em ordem – ou
cronológica, ou factual – faz com que notemos ou cremos notar elementos que, sem
esse esforço de elaboração, talvez nos passassem despercebidos. Quiçá, o mero
movimento de organizar o relato o deixe menos “factual” ou verídico, visto que nesse
ato de organização da memória, alguns elementos ou quadros podem, ou não, se
tornarem mais relevantes do que no momento da ação que se quer rememorar e
relatar. A reelaboração da memória para a narrativa não necessariamente é tal qual
aconteceu, mas reflete quem é o sujeito no momento da rememoração. A memória e
a imaginação podem se fundir neste momento.
48
“Acho que andei contando mentiras”, datilografa Imp. Não que eu não tivesse
conhecido minha ex-namorada em um dia não tão chuvoso de junho, quando
as árvores estavam muito verdes. Toda essa parte é verdade, assim como a
parte sobre as coisas dela amontoadas no meio-fio. E eu roubando quase
sem querer os livros. Mas não tenho ideia do que dissemos uma à outra. Não
acho que alguém pudesse escrever essa cena e não mentir, recordações de
uma conversa que aconteceu há dois anos e meio. Ainda assim, eu não
pretendia mentir, tentando descrever como Abalyn e eu nos conhecemos. E
também não pretendia não mentir. A linha sobre a qual caminho é um tipo de
linha tênue, não é? Talvez eu devesse tomar alguma liberdade. O modo como
escrevi sobre Abalyn é verdadeiro, só que não particularmente factual, como
um filme “baseado em” ou “inspirado por” eventos reais. Tenho de preencher
as lacunas, por isso esta é uma história e não um monte de fotografias
apresentadas com palavras em vez de imagens. (p. 31)
especial em que entrei pela primeira vez no colégio. (...) De início, eu li, desde
então um certo número de relatos, reais ou fictícios, nos quais se descreve
as impressões de uma criança que pisa pela primeira vez numa sala de aula.
É bem possível que, quando as li, a lembrança pessoal que eu guardava de
semelhantes impressões tenha se fundido com a descrição do livro. Eu me
recordo dessas descrições, e é talvez nelas em que se encontra conservada
e que rememoro sem o saber tudo aquilo que subsiste de minha impressão
assim transposta. (p. 49)
Ora, para o autor, há uma mistura natural entre a memória “real”, a história
vivida, a história aprendida, e a ficção, sem que esse entrelaçamento de informações
prejudique de fato a reconstrução da memória, sendo inclusive necessário para tal
feito. Octavia Butler escreve Kindred – laços de sangue como uma obra de ficção. É
um romance – uma fantasia, para ser específica –, entretanto, parte de relatos e
pesquisas históricas, e propõe a escrita da genealogia de uma família que, apesar de
ser fictícia, funciona como analogia para tantas outras que foram formadas de maneira
semelhante: através da miscigenação forçada entre o senhor de escravos branco e
uma mulher escravizada. Embora não pretenda acessar ou recontar uma memória
coletiva específica, de um grupo factualmente “real”, há na narrativa de Butler uma
tentativa de preservar a memória de um grupo social mais amplo. Através da ficção e
do expediente imaginativo, a autora explora uma memória específica num âmbito
particular.
Toni Morrison (2019), em A Fonte da Autoestima, propõe uma reflexão, sobre
a relação entre ficção e memória. Tomando por base seu fazer literário, a autora –
uma mulher negra – sublinha:
O modo como ela se relaciona com a memória ancestral e com o local a que
pertenceram seus antepassados é o que, segundo a autora, diferencia sua ficção de
um trabalho biográfico, que possui uma correspondência obrigatória com o real. A
ficção exige engenho. Ela destaca justamente a forma como realiza, no literário, o
entrelaçamento entre os vestígios e a lembrança, deixando claro que o primeiro tem
compromisso com uma pretensa verdade enquanto a segunda repousa na criação. É
justamente essa criação, ainda que embasada em fatos, que a diferencia
literariamente. Seria possível destacar engenho semelhante no que diz respeito à
ficção de Butler, que, em Kindred, relaciona o histórico com a memória no campo do
ficcional. Ela partiu de relatos, vestígios e documentos históricos, mas criou e
desenvolveu personagens e dilemas próprios, cuja existência – ou sua possibilidade
– existem somente por causa do engenho da autora. Morrison (2019) critica a
exigência da crítica literária e acadêmica que, dentro do campo imaginativo, exige uma
comprovação de veracidade.
A verdade na literatura não tem, ou não deveria ter, a pretensão de ser factual,
mesmo naquelas narrativas que partem de fatos ou pessoas “reais”. Sempre há
espaço para a criação; a ficção não deixa de ser verdade ou de ter a sua verdade por
não ser factual.
O real precisa ser ficcionado para ser pensado. Essa proposição deve ser
distinguida de todo discurso – positivo ou negativo – segundo o qual tudo
seria “narrativa”, com alternâncias entre “grandes” e “pequenas” narrativas. A
noção de “narrativa” nos aprisiona nas oposições do real e do artifício em que
se perdem igualmente positivistas e desconstrucionistas. Não se trata de
dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da era da estética
definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de
inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão
da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos
historiadores e analistas da realidade social. Escrever a história e escrever
histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a
ver com nenhuma tese de realidade ou realidade das coisas. Em
compensação, é claro que um modelo de fabricação de histórias está ligado
a uma determinada ideia da história como destino comum, com uma ideia
daqueles que “fazem história”, e que essa interpenetração entre razão dos
fatos e razão das histórias é própria de uma época em que qualquer um é
considerado como cooperando com a tarefa de “fazer” a história. Não se trata
pois de dizer que a “História” é feita apenas de histórias que nós contamos,
51
Tal escolha de elementos demarca a que versão da história Butler dará corpo
e voz, qual a história ela tentará preservar, qual memória ela acessará. Quando
escreve uma narrativa pós-moderna que pretende a revisitação e redescrição
histórica, mas com um olhar que parte de uma nova consciência e identitária, Butler
vai além: ela rompe com as barreiras do “real” e, usando a fantasia, revisita esse
passado contestando algumas certezas contemporâneas, e o faz baseando-se em
uma intensa pesquisa histórica. O que se preservou, em sua maioria, sobre a
escravidão foi produzida e preservada por pessoas brancas; pode-se notar uma
diferença entre os relatos “oficiais” e aqueles recuperados de diários, ensaios,
documentos jurídicos. Os documentos produzidos para uso e consumo pessoal e
familiar revelam mais elementos sobre esse período do que se pode esperar.
A historiadora deixa claro que não são somente as mulheres que foram
colocadas em um lugar de silêncio e esquecimento; e isso porque os corpos que se
desviam daqueles que ocupam os espaços de poder não possuem exatamente
espaço na história, exceto, talvez, os lugares de segunda ou terceira categoria. Mas,
se para a pesquisa da história das mulheres são necessários vestígios, quais seriam,
54
então, os vestígios das memórias das mulheres? Le Goff (1990), ao tratar o álbum de
família como um verdadeiro elemento da recordação social, destaca: “o pai nem
sempre é o retratista da família, a mãe o é muitas vezes. Devemos ver aí um vestígio
da função feminina da conservação da lembrança ou, pelo contrário, uma conquista
da memória pelo grupo feminino?” (p. 402). A memória das mulheres foi
historicamente inserida nos ambientes domésticos, nos relatos familiares, nas notas
práticas, nos diários, nas cartas e, como traz Butler em Kindred, nas Bíblias da família:
Hagar havia preenchido suas páginas com sua letra cuidadosa. Havia um
registro de seu casamento com Oliver Blake, e uma lista de seus sete filhos,
seus casamentos, alguns netos... E então, outra pessoa tinha assumido a
lista. Muitos parentes que eu não tinha conhecido, que nunca conheceria. Ou
conheceria? (2017, p. 47)
Unidos no século XIX: conhece sua genealogia; embora fruto do abuso sexual, teve
sua paternidade reconhecida; é livre e foi educada.
Angela Davis (2016), expõe que a educação das pessoas negras –
escravizadas ou livres – era uma questão a ser combatida antes e depois da abolição
da escravatura. Com a abolição, inclusive, começou-se um movimento de busca por
escolas. Ainda durante a escravidão, não foram poucos os escravos autodidatas,
como Frederick Douglas, por exemplo, e que buscaram passar o conhecimento
adiante. Além dos discursos difundidos sobre a inferioridade intelectual das pessoas
negras, o acesso à educação era severamente proibido, dificultado, precário ou até
mesmo criminoso. Contrariando tais determinações, houve casos de pessoas que se
empenharam na educação das pessoas negras, mulheres negras e mulheres brancas,
como Davis (2016) destaca: “Os exemplos mais marcantes de sororidade que as
mulheres brancas tinham em relação às mulheres negras estão associados à histórica
luta do povo negro por educação” (p. 110). Parte indissociável da identidade de Dana,
presente ou passado, ela é escritora. E ser uma mulher negra educada no século XIX,
se não impossível, era um evento raro. Tal distinção, marca com mais ênfase o corpo
de Dana, constantemente questionado. Uma das maneiras de resistência foi,
principalmente, através da educação. Tanto que, nas suas diversas estadias no
passado, ela começa a ensinar alguns escravizados a ler – à priori clandestinamente,
o que lhe custará uma cota de violência – e depois, Rufus aceita que ela ensine,
entretanto, tal ação feria o controle e a distribuição de poder:
Tal sede insaciável por conhecimento era tão poderosa entre escravas e
escravos do Sul como entre suas irmãs e irmãos “livres” do Norte.
Desnecessário dizer que os limites impostos à alfabetização da população
escrava nos estados escravagistas eram muito mais rígidos do que no Norte.
Depois da rebelião de Nat Turner, em 1831, a legislação que proibia o acesso
da população escrava à educação recrudesceu em todo o Sul. Nas palavras
de um dos códigos que normatizavam a escravidão no país, “ensinar
escravos a ler e a escrever tende a incutir a insatisfação em suas mentes e a
produzir insurreição e rebelião”. Com exceção de Maryland e Kentucky, todos
os estados do Sul vetavam completamente a educação para a população
escrava. (DAVIS, 2016, p. 113)
De maneira prática, dotar corpos comerciáveis de linguagem seria arriscar que eles
pudessem forjar passes, por exemplo, ou ler mapas, organizar rebeliões e fugas.
Conhecimento significaria, então, liberdade. Rufus, no entanto, permite que Dana
ensine seu filho e outras crianças da fazenda, a influência que ela tem sobre ele –
embora embotada pela diferença de poder entre eles durante a vida adulta de Rufus
– se faz perceber nos breves momentos em que Rufus destoa do estereótipo do seu
tempo:
Alguns de seus vizinhos descobriram o que eu estava fazendo e deram a ele
conselhos paternais. Era perigoso educar escravos, eles alertaram. Os
estudos deixavam os pretos insatisfeitos com a escravidão. E os estragava
para o trabalho no campo. O ministro metodista dizia que os estudos os
deixavam desobedientes, fazia com que desejassem ter mais do que o
Senhor pretendia que tivessem. Outro homem disse que dar aulas aos
escravos era ilegal. Quando Rufus respondeu ter checado que não era ilegal
em Maryland, o homem disse que deveria. Conversa fiada. Rufus
desconsiderou sem dizer o quanto acreditava naquilo. Bastava o fato de ele
estar do meu lado, e minhas aulas continuaram. (BUTLER, 2017, p. 378-379)
Dana uma voz, embora nem sempre ela possa ser ouvida, e é uma prova da sua
subversão ao poder vigente. Na relação entre Dana e Rufus há alguns momentos de
inversão de poder justamente por causa da linguagem. Nas primeiras vezes em que
ela vai para o passado, ela é adulta e ele, uma criança; nesses momentos ela
consegue, através do discurso, persuadir e ter algum poder sobre Rufus. Quando eles
se encontram com idades próximas, a balança do poder volta a pender a favor dele;
mesmo que ela seja obviamente mais inteligente e sensata, com maior poder de
persuasão, as vantagens próprias do contexto são todas dele.
Quem escreve a história e perpetua suas memórias são os vencedores,
aqueles que “oficialmente” fizeram a história, os grandes homens. Claro que o recorte
de tais afirmações se limita à história ocidental e eurocêntrica, cuja ótica imperialista
ignora a existência da história e memória dos grupos antes da chegada de seus
agentes colonizadores. No âmbito da literatura norte-americana, um movimento
revisitação do passado começou a nascer desde a década de 1960, e a escravidão,
como elemento constituinte deste passado, figura como tema e pano de fundo para
toda uma geração de escritores – em especial, escritoras e escritores negros:
A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é
uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os
silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da
memória coletiva. O estudo da memória social é um dos meios fundamentais
de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a
memória está ora em retraimento, ora em transbordamento. (p. 368)
58
Esperei dentro de casa com minha bolsa sempre por perto. Os dias passaram
lentamente, e às vezes eu pensava que estava esperando por algo que não
aconteceria. Mas continuei esperando. Li livros sobre escravidão, ficção e não
ficção. Li tudo o que tinha na casa, por menos relacionado ao assunto que
fosse, até mesmo E o Vento Levou, ou parte dele. Mas sua versão de
negrinhos felizes envolvidos em amor foi demais para mim. Então, acabei me
distraindo com um dos livros da Segunda Guerra Mundial de Kevin: um livro
de memórias de sobreviventes de campos de concentração. Histórias de
agressão, inanição, imundície, doença, tortura, todo tipo de humilhação.
Como se os alemães tivessem tentando fazer, em apenas alguns anos, o que
os americanos praticaram por quase dois séculos. (...) Como os nazistas, os
brancos pré-guerra entendiam um bom tanto de tortura, um bom tanto a mais
do que eu queria entender (BUTLER, 2017, p. 232-233).
Nesse trecho, Dana volta mais uma vez para casa. Habitualmente, no romance,
seus retornos para o século XX estão envoltos em violência: dessa vez, ao ser
flagrada por Tom Weylin ensinando Nigel – menino escravizado da fazenda – a ler, foi
entre chibatadas e dor que voltou para a sua casa, embora não lhe parecesse sua no
momento. Kevin, que a acompanhara em sua última viagem no tempo, ficara preso
no século XIX e, por isso, ela volta sozinha. Ansiosa para voltar para 1819 e resgatar
59
seu marido, Dana espera e se prepara. Mas, como preparar-se para experenciar algo
que, embora não seja absolutamente novidade, sempre revela uma faceta nova a
cada experiência? Usando as vantagens do século XX – poder acessar vestígios
históricos do século XIX –, Dana busca nos livros e nas outras representações
artísticas ou documentais ferramentas que lhe ajudem a manter-se viva e retornar
para seu tempo. O sortimento de materiais aos quais tem acesso é vasto: quando
destaca que visitou os livros de ficção e não-ficção, e mesmo produções de outras
mídias, nota-se que o fato histórico permeia e se mantém vivo nos mais diversos
meios, não importando necessariamente a veracidade dos fatos. Somente o elemento
pouco factual sobre os escravizados felizes em E o Vento Levou incomodou a
protagonista, porque a realidade que encontrou na fazenda dos Weylin era o exato
oposto. Caminhando entre a ficção e a realidade, Dana buscou no acervo que possuía
– uma vasta biblioteca, haja vista ser uma casa de escritores – e aparentemente não
encontrou nada que a preparasse para o que passaria no século XIX.
Quando desloca sua atenção para outra fato histórico marcante e alarmante –
a Segunda Guerra Mundial –, Dana se depara com um livro de memória dos
sobreviventes do Holocausto. Os relatos – cuja veracidade não é jamais posta à prova
– remetem ao tratamento que ela viu e experenciou sendo dado aos negros.
Repetiram-se em outro momento, a outros corpos destituídos de poder, práticas
semelhantes de tortura e desumanização. Entretanto, diferentemente da maioria dos
negros escravizados (salvo aqueles que conseguiram reconstituir suas histórias e
escreveram narrativas escravas, como Frederick Douglas, por exemplo), por motivos
como analfabetismo e racismo, os sobreviventes do Holocausto puderam conservar
sua memória: a seus sofrimentos indesculpáveis foram erguidos e preservados
monumentos de memória. Dito isto, e longe de provocar uma concorrência de
sofrimento e abjeção, pode-se questionar: ao longo da história, a quem é/foi permitido
lembrar? Não às mulheres, sobretudo às mulheres negras escravizadas. E é sobre
essa ausência de memória que Octavia Butler escreve Kindred – laços de sangue.
Retomando aos estudos de Assmann (2011), sobre o uso da escrita para a
fixação na memória: “Alguns escreveram a história do Holocausto para dar
testemunho do maior crime da história da humanidade e com isso fixá-lo como tal na
memória; outros quiseram tratar esse acontecimento de maneira comparativa e
explicá-lo por via causal” (p. 157). Ora, se a escrita – seja um relato histórico, um
testemunho, um livro de memórias –pode funcionar como um meio de fixação de um
60
estranham a casa: ele, por ter passado cinco anos no século XIX, perde a referência
do seu próprio lar; ela, presa às ligações emocionais e familiares, sente como “lar” a
fazenda Weylin. O que ela sentira durante o período que passou na época de Rufus
se tornou algo mais real que a vivência do casal nesta casa em 1976. Em suas
palavras:
A época de Rufus era uma realidade mais pungente, mais forte. O trabalho
era mais pesado, os cheiros e os gostos eram mais fortes, o perigo era maior,
a dor era pior... a época de Rufus exigia coisas de mim que nunca tinham
sido exigida antes, e com facilidade poderia ter me matado se eu não
satisfizesse suas exigências. Era uma realidade intensa e poderosa que as
leves conveniências e os luxos dessa casa, do agora, não alcançavam.
(BUTLER, 2017, p. 305)
evitar as mudanças. Mas os mercados para os quais ele escrevia não tinham
mudado. Talvez passasse por uma fase frustrante. E talvez me culpasse.
(Butler, 2017, p. 313)
28
No original: Dana provides a doubled perspective on the past: as simultaneously a twentieth-century
woman who intellectually distances herself from this era and a nineteenth-century woman whose body
suffers the disciplinary technologies of slavery.
63
paradoxo de bootstrap29: se Dana não voltasse no tempo, ainda assim os eventos que
ocasionaram o nascimento de Hagar existiriam da mesma forma? Teria sido a viagem
no tempo que provocou a própria existência de Dana?
Com o tempo, Dana vai se tornado menos humana e mais uma entidade
(espiritual/familiar – daí outra significação para o título do romance) para as pessoas
da fazenda. Se de início questionavam sua existência – principalmente Tom Weylin –
, com o passar dos anos, as “temporadas” de Dana no século XIX ganham uma aura
de mistério e magia, principalmente porque ela sempre traz consigo conhecimentos e
ferramentas do século XX – sabonetes, analgésicos, remédios em geral, canetas
esferográficas – que permitem que ela possa cuidar de Rufus e dos outros de uma
maneira mais eficiente que um médico daquela época.
Interessante observar que Butler escolhe para Dana uma profissão que seria
pouco “útil” para ela no passado; afinal, para que serviria uma mulher negra escritora
numa fazenda escravocrata do século XIX? Os conhecimentos de medicina de Dana
não são excepcionais, suas ferramentas tampouco. Seus conhecimentos históricos
existem, mas não são específicos. Ela é uma mulher comum que, por causa dos
avanços científicos e tecnológicos do século XX, consegue sobreviver a coisas das
quais ela só tinha uma pálida ideia. Assim, Butler também faz uma exaltação da
ciência e do poder do conhecimento, afinal, são eles que garantem a sobrevivência
de uma protagonista que não tem nenhum superpoder – ao contrário dos habituais
heróis dos romances de ficção científica e de fantasia, Dana é uma mulher comum,
com mais desvantagens sociais que vantagens, mas consegue sobreviver a um
período nefasto.
Em A Partilha do Sensível, Jacques Rancière (2009) quando discute as
relações entre literatura e história, diz:
29
Construto filosófico que trata da existência paradoxal de um objeto, pessoa, ou conceito, que, ao
viajar para o passado, dá origem a si mesmo.
64
Ainda que essa redescrição da memória seja um ato político, Butler não
pretende transformar a experiência de seus personagens escravizados na única
válida, alçá-la ao status da única Verdade possível; ela apenas apresenta uma das
possibilidades, justamente a que foi esquecida e calada pela historiografia tradicional
e pelos meios de difusão das imagens culturais.
Quando disserta sobre as condições de escrita e publicação das narrativas
escravas, Toni Morrison (2019) destaca e critica o pudor que os autores tinham em
escancarar os horrores da escravidão, ao mesmo tempo que explica que tais
melindres eram exigidos dos autores e esperado pelos leitores. Temas como estupro
e a brutalidade dos castigos particularmente escatológicos deveriam ser evitados em
tais narrativas, as quais, quando encurraladas pela impossibilidade de omiti-los,
desviavam do tópico. Em Kindred – laços de sangue, Butler, ainda que amainando o
tom dos eventos, não se priva nem de narrar com franqueza a experiência possível
de um escravizado no sul dos Estados Unidos, nem de submeter sua protagonista
contemporânea às vivências e violências a que ela seria submetida se, de fato,
voltasse no tempo para uma Maryland do século XIX. Claro que deve se levar em
conta o gênero das narrativas; sendo o romance de Butler uma narrativa pós-
contemporânea e de fantasia, não precisa seguir as regras severas das narrativas
escravas, que tinham, também, um tom político e anseio pela legitimação histórica de
veracidade. Morrison declara sobre o exercício de exposição das facetas mais
degradantes do que foi o sistema escravista:
Para mim — uma escritora no último quarto do século XX, não mais do que
cem anos depois da Emancipação, uma escritora que é negra e mulher —, o
exercício é muito diferente. Meu trabalho consiste em rasgar o véu que
recobre aqueles “procedimentos terríveis demais para relatar”. Esse exercício
é também crítico para qualquer pessoa negra, ou que pertence a qualquer
categoria marginalizada, pois, historicamente, só de raro em raro fomos
convidados a participar da discussão, mesmo quando éramos o tema. Retirar
esse véu requer, portanto, certas coisas. Primeiro de tudo, preciso confiar nas
minhas próprias lembranças. Devo também depender das lembranças dos
outros. Desse modo, a memória tem grande peso no que escrevo, em como
começo e no que penso que seja significativo (2019, p. 234)
66
Portanto, a relevância de Octavia vai além de sua literatura. Além dos mundos
fantásticos e das narrativas engajadas, ela conseguiu criar-se e consolidar-se em uma
área pouco amigável para pessoas como ela: uma mulher negra. E ao colocar corpos
pouco habituais no centro de suas histórias, ela pretende subverter um imaginário já
tão estabelecido.
67
Uma vez que mulheres brancas representam um grupo sem poder, quando
não aliados a homens brancos poderosos, o casamento delas com homens
negros não é uma ameaça forte à regra patriarcal branca existente. Em nossa
sociedade patriarcal, se uma mulher branca rica se casa com um homem
negro, ela adota o status dele. Por conseguinte, uma mulher negra que se
casa com um homem branco adota o status dele; ela assina o nome dele e
as crianças são herdeiras dele. Consequentemente, se a maioria desse
pequeno grupo de homens brancos, que dominam corpos formadores de
opinião na sociedade estadunidense, fosse casar com mulheres negras, as
bases do poder branco estariam ameaçadas. (HOOKS, 20019, p. 112)
casamento com homens brancos e era uma ameaça à masculinidade branca. Por
mais que, segundo bell hooks (2019), o número de homens brancos que buscaram
legitimar seus relacionamentos com mulheres negras não fosse maior que o contrário,
eram essas as relações mais combatidas de ambos os lados. Era difundida entre as
mulheres negras a ideia de que homens brancos tinham desejo de estupra-las, ainda
que dessa vez o mito fosse fundado na verdade escravocrata:
Homens negros têm forte interesse em manter barreiras existentes que
desencorajam casamentos entre mulheres negras e homens brancos, porque
isso elimina a competição sexual. Assim como pessoas brancas sexistas
usaram a ideia de que todos os homens negros eram estupradores, para
limitar a liberdade sexual de mulheres brancas, pessoas negras usaram a
mesma estratégia para controlar o comportamento sexual de mulheres
negras. Por muitos anos, pessoas negras advertiram mulheres negras para
que tomassem cuidado no envolvimento com homens brancos, por medo de
que um relacionamento desses pudesse levar à exploração e degradação da
mulheridade negra. Ainda que não haja necessidade de negar o fato histórico
de que homens brancos exploraram mulheres negras, esse conhecimento é
usado por pessoas brancas e negras como arma psicológica para limitar e
impedir a liberdade de mulheres negras. (HOOKS, 2019, p. 116)
negra, algo que – ainda que não fosse mais crime – era estimulado a ser socialmente
rejeitado. Não faltam no romance casais nesse modelo, embora apenas Dana e Kevin
representem uma união consensual.
A ausência de representação de casais inter-raciais nas mídias norte-
americanas nos anos pós abolição, e até durante um período histórico recente,
contribuiu para que tal “estranheza” fosse a reação mais aceitável. Acostumar o olhar
para tais fenômenos colabora com a ressignificação do que é tido como “normal” e
“aceitável” dentro do imaginário social. Para Vint (2007) a literatura pode, justamente,
figurar como um local de reformulação e, por que não, de questionamento de certos
tipos narrativos, o que favorece a redescrição do imaginário de uma época, pois,
segundo ela: “as narrativas fantásticas neo-escravas revisam e resistem aos tropos
das narrativas escravas do século XIX” (p. 242, tradução nossa)30. Butler, dentro do
seu fazer literário, revisa tais estereótipos quando apresenta para o leitor as diversas
possibilidades de subjetividades negras.
A reorientação do imaginário relativo à mulher branca fruto do século XIX –
agora, lhe cabiam os lugares de madona e de virgem, ambos símbolos de pureza e
castidade – , fez com que recaísse sobre a mulher negra o imaginário de lascívia e
sedução demoníaca. Tais imagens reverberam ainda na atualidade, sob o véu do
estereótipo da Jezebel, aquela que é insaciável sexualmente. Essa transferência de
imaginário também acaba servindo para justificar os abusos das mulheres negras,
afinal, como seria possível estuprar uma mulher sedenta e sempre disposta para o
sexo:
30
No original:
70
eu não sou uma mulher? cita o historiador Eugene Genovese, que afirma que, não
havendo lei que tipificasse o estupro da mulher negra, este não existia legalmente.
Quando se fala de estupro nesse período, refere-se ao estupro da mulher branca, a
única protegida pela lei. Não só os homens brancos cometiam esses abusos, homens
negros também o faziam.
Ainda que alguns se referissem à exploração do corpo negro escravizado como
prostituição, tal designação é inadequada, pois não havia troca cambial, não havia
pagamento. E, ainda que houvesse remuneração de qualquer natureza, não se pode
falar em uma negociação, tendo em vista que às pessoas escravizadas era negada a
posse de seus corpos. Por mais que, algumas vezes, houvesse certas vantagens e
presentes, como um vestido novo, alguma hora de folga, chamá-las de prostitutas era
uma forma de diminuir o peso do abusador e colocar na vítima um rótulo de culpa e
de degradação moral, como considerado na época:
- Dana?
Olhei para ela.
- O que vô fazê?
Hesitei, balancei a cabeça, em reprovação.
- Não posso dar conselhos. O corpo é seu.
- Não é meu. – Ela passou a sussurrar – Não é meu, é dele. Ele pagô por ele,
não?
- Pagou a quem? A você?
71
- Cê sabe que ele não me pagô! Ah, qual é a diferença? Certo ou errado, a
lei diz que ele é meu dono agora. Não sei por que ele ainda não arrancô meu
coro. As coisa que eu disse pra ele... (BUTLER, 2017, p. 267)
Ela escolhe não fugir, mesmo sabendo como o sistema escravista sobrepujava
a vontade dos rebeldes. Alice escolhe resistir e sobreviver, como Dana também o faz.
Assim, decide sobreviver a um sistema que objetivava destruir o corpo negro. Tal
decisão não é pautada na covardia, mas na sobrevivência; ainda se recuperando do
estado deplorável em que chegara na fazenda, a vontade de permanecer viva, mesmo
que submetida, nesse momento é maior que a vontade de ser livre. A narrativa não é
gentil com Alice, no entanto. Ela tem filhos do homem que não ama, e perde alguns
deles com poucos dias de vida; Dana, uma das poucas que se assemelha a uma
amiga, vai e volta durante os anos de cativeiro; e, por fim, quando tenta ter sua
liberdade de volta e foge, Rufus a pune simulando a venda de Hagar e Joe, filhos
deles. Desolada, Alice se mata.
A situação dos filhos de Alice e Rufus merece uma atenção especial: o modo
como o pai os trata dá indícios de seu caráter, e mostra como ele se alinha aos valores
de seu tempo. É quando descobre que ele simulou a venda dos filhos apenas para
punir Alice, mulher que supostamente ama, que Dana percebe que fracassou em um
de seus objetivos: impedir Rufus de ser um homem de seu tempo. Sendo os filhos
dessas mulheres escravizadas também escravos, as relações com elas – forçadas ou
não – além de servirem como ferramentas de dominação e para o prazer do homem
branco, também produzia novas forças de trabalho e novos meios de controle dessas
mulheres, como nos casos de Alice e Sarah.
73
Dana, quando viaja no tempo para a plantação escravista do século XIX, perde
a autonomia e agência que a Dana do século XX possuía. Além das viagens no tempo
não serem “divertidas” ou “aventureiras” como são as que permeiam o imaginário da
literatura especulativa protagonizada por personagens brancos, ela também é
forçada. Dana não deixa de ser dona de seu próprio corpo como consequência de
suas escolhas ou desdobramento de uma aventura na qual entrou de espontânea
vontade. Ela perde sua agência, seu braço e um ano de sua vida porque Rufus a
chama e, na falta de escolha, ela faz o que precisa para garantir a sua sobrevivência
e a dos seus. Ao assumir e ocupar o espaço esperado de uma mulher negra, ela abre
mão – ainda que de maneira involuntária – de sua identidade como mulher negra no
século XX.
Nos dois tempos e espaços que percorre e ocupa, Dana sempre encarna o
corpo que não tem poder, o corpo que foge da norma branca e masculina; porém, a
Dana do século XX encarna as conquistas pelas quais a Dana do século XIX teria que
lutar: é livre, letrada, dona de si. Racismo e machismo são reações a esse corpo
desviante independente do tempo em que ele esteja; porém, as opressões do século
XX são filhas legítimas dos discursos que alimentaram o sistema escravista que ela
encontra no século XIX. Quando Dana conta para Kevin o episódio em que sua mãe
– uma mulher negra, pequena e magra – foi parada e mantida escoltada por policiais
brancos que a consideraram um “indivíduo suspeito” apenas porque seu carro
quebrou em La Canada, ela encara o fato de situações como essa serem fruto dos
discursos que desumanizaram e animalizaram o corpo negro por séculos.
Quando a autora pontua e destaca as diferenças entre escravidão e racismo,
ela propõe uma reflexão sobre os motivos pelos quais o corpo negro na atualidade
ainda carrega os discursos que legitimaram a escravidão tanto tempo antes. Por mais
que a abolição não tenha sido um projeto unânime social e politicamente, não há nada
que justifique a perpetuação do tratamento ultrajante a que o corpo negro, agora livre,
é submetido, que não seja o racismo.
O passado escravista define o valor do corpo negro no presente. Ainda que
séculos depois, é o fato histórico que circunscreve no corpo negro sua importância ou
falta dela. Morrison (2020) trata do corpo escravizado e do corpo negro de maneiras
distintas: o corpo escravizado resta morto e esquecido, visto que a abolição encerrou
com a categoria do escravizado, o corpo negro, porém, resta vivo e vulnerável
marcado como uma subcategoria de sujeito. Para ela:
74
Ela havia feito a coisa mais segura, aceitado uma vida de escravidão por
sentir medo. Era o tipo de mulher que podia ser chamada de “aia preta” em
outras casas. Era o tipo de mulher que seria desdenhada durante a militante
década de 1960. A aia preta, o lenço na cabeça, a versão feminina do Pai
Tomás; a mulher assustada e sem poder que já tinha perdido tudo que podia
perder, e que sabia tão pouco sobre a liberdade do Norte quanto sabia a
respeito do que viria a partir de agora. Eu mesma a julguei por um momento.
Superioridade moral. Ali estava alguém ainda menos corajosa do que eu. Isso
me confortou, de certo modo. Ou pelo menos até Rufus e Nigel irem para a
cidade e voltarem com o que sobrou de Alice. (BUTLER, 2017, p. 234)
lembrete vivo do que acontece àqueles que buscam a liberdade ao fugirem de seus
donos. O que deixa Dana chocada, que nunca havia visto nada parecido, apenas
lembra Sarah das consequências de escapar da sua condição, que, não sendo boa,
ao menos é mais suportável que a punição. Dana, que a priori julga a cozinheira como
alguém menos corajosa, percebe que na verdade Sarah é forte, sobrevive como pode,
ajuda os seus. Ninguém deveria poder culpá-la por não buscar o mesmo destino de
Alice.
Dana entende que, no contexto da escravidão, os que permaneceram e
sobreviveram, como Sarah, também precisaram de coragem. Fugir não era simples e
os castigos mais dolorosos e cruéis do que se pode imaginar no século XX. De todas
as violências que Dana sofre, a tentativa de estupro foi a primeira e a última. Ao longo
de sua jornada, ela é espancada, xingada, humilhada e punida de diversas formas,
mas o estupro, de fato, é a última ferramenta usada contra ela. Violência e brutalidade
são a base da experiência de Dana no passado.
Em Kindred – laços de sangue, Butler mostra a potência do romance de
funcionar como meio de difusão e compartilhamento da crueldade humana, trazendo
a escravidão e outras opressões como temas centrais do romance. Para o leitor que
conhece superficialmente o que foi historicamente a escravidão nas colônias, a noção
de quão cruel e desumana ela foi pode ter sido suprimida pelo imaginário das mídias,
que trazem figuras como a Mammy e o Pai Thomas, escravizados leais e gratos às
suas famílias brancas e que não se incomodam com a escravidão, ou que consome e
crê no complexo conjunto de ideias racistas associadas à pessoa negra: violenta,
pobre, necessitada, vagabunda. O romance de Butler pode desvelar mais verdades
históricas do que ele supunha. Um dos exemplos de como esse “esquecimento” e
atenuação dos horrores da escravidão funciona é o fenômeno dos passeios às
fazendas de algodão nos Estados Unidos. Na reportagem da BBC31 ‘Escravidão não
foi tão ruim assim’: os controversos comentários de turistas no sul dos EUA, o
jornalista Ritu Prasad, de Charleston, traz os casos dos turistas que, ao fazerem o tour
das fazendas de algodão, não desejam ser confrontados com a crueldade com a qual
os escravizados eram tratados. Da reportagem:
31
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49914833 acesso em <13/07/2020>
76
persona de Dana que o leitor pode observar esses processos e discutir a ideia
perigosa da passividade dos escravizados.
Em A arte do romance Kundera (2009) reflete sobre o impacto e poder da mídia
no receptáculo cultural desses dias. Como meio e veículo de circulação e fixação de
certos imaginários:
O romance (como toda cultura) se encontra cada vez mais nas mãos da
mídia; essa, sendo agente de unificação da história mundial, amplifica e
canaliza o processo de redução; distribui no mundo inteiro as mesmas
simplificações e clichês suscetíveis de serem aceitos pelo maior número, por
todos, pela humanidade inteira (p. 23-24)
afirmação de hooks (2019) para a literatura e observar que, sendo mulher e negra,
Butler consegue mostrar um outro lado que transpõe certos lugares-comuns
representativos. Ela mostra em sua literatura mais que a repetição desses
estereótipos.
Ao explorar as diversas potencialidades de existência da mulher negra, a autora
se propõe a quebrar com a ideia da “mulheridade negra” como uma experiência
universal. As mulheres em Kindred – laços de sangue, encarnam, na verdade, o corpo
que é total ou quase totalmente destituído de poder e por isso, sentem o peso da
opressão. Ela dá mais dimensões a Sarah e Alice: essas mulheres têm histórias,
dores, ocupam papéis que não escolheram na logística da fazenda. Alice é mais que
um corpo sexual; Sarah, mais que seios para alimentar os filhos dos brancos. E o leitor
sabe disso porque a autora não se prende a esses estereótipos, ela os traz na
superfície, como base, mas os redescreve e aprofunda, dando tridimensionalidade a
essas mulheres. Um dos pontos que podemos apontar acerca do deslocamento
aparente de Dana é que Butler não a enquadra em nenhum desses tipos de
representação. O mais próximo que se poderia apontar é a visão que os negros
escravizados têm dela: negra com alma branca, aquela que “fala como branco”. Ela
também não o é; se domina a linguagem do branco, é porque em seu tempo ela
ocupava um espaço em que mulheres negras podem ser educadas.
Além de deixar claro para o leitor o quanto a escravidão foi de fato cruel e
desumana, ela também põe em xeque certas visões que ainda ressoavam na
contemporaneidade, como a figura da “Mãe Preta32”. No romance, essa figura seria
encarnada em Sarah, cozinheira da fazenda, que mima Rufus e de fato parece
apegada ao menino; entretanto, Sarah não é dócil, não ama sua “família branca”, teve
seus filhos vendidos para que a nova esposa do senhor da fazenda pudesse redecorar
a casa. A única coisa que a impede de colocar veneno na comida dos Weylin é a
existência de uma filha muda, que o sr. Weylin permite que ela mantenha junto de si
como forma de controlar suas ações. Mas, mesmo que para Sarah não pareça haver
outro caminho a não ser o da completa submissão, para Tom Weylin também não há
outra escolha que não seja manter-se dentro do limite tolerado por ela, limite este
personificado na existência e no razoável bem-estar de Carrie:
32
Mammy, no original, seria a figura maternal, “quase da família”, dócil, que amamentou e amava seus
“filhos” brancos, pouco se importando com a situação de escrava a que estava submetida.
79
O marido morto, três filhos vendidos, a quarta deficiente, e ela tendo que dar
graças a Deus pela deficiência. Tinha motivos para sentir mais do que raiva.
Era incrível que Weylin tivesse vendido seus filhos e ainda a mantivesse
como sua cozinheira. Era incrível que ele ainda estivesse vivo. Mas eu
achava que ele não viveria muito mais se encontrasse um comprador para
Carrie. (BUTLER, 2017, p. 123)
Se ele se exceder, não haverá nada que a impeça de se vingar dele, ainda que
lhe custe a vida. Tal fato faz de Sarah uma personagem que, embora de início se
pareça com a mammy, não o é. Para hooks (2019), a figura da mammy ou aunt
Jemima é, sobretudo, uma criação da imaginação branca: a escrava maternal,
assexuada que, claro, amava sua “família branca”. Há, ainda, ecos desse estereótipo
nas mais diversas mídias, como a figura da babá negra, por exemplo, e não se limita
ao imaginário norte-americano:
Alice e Sarah vivem ou viveram relações em que encarnam o corpo que não
possui poder. Sob o argumento do afeto, sofrem diversas violências e seus pares
exploram a condição de escravizadas para suplantarem suas vontades. Para Alice
Rufus converteu-se de um amigo de infância para seu “dono”, que viola seu corpo e
finge vender os filhos que teve com ele. Sarah teve a liberdade prometida pelo seu
antigo dono, mas, tudo que ganhou dele foram surras e ciúmes. No romance, para as
mulheres negras, o amor do homem branco vem sempre acompanhado de violência.
Inclusive Dana. Ela está com um homem branco por escolha e porque o ama, mas,
encontra seu quinhão de violência no afeto que Rufus tem por ela. Começando com
violências menos óbvias, como chantagens, e chegando a de fato castigos físicos, ele
81
com mais facilidade, não causa estranhamento; sua pele branca funciona quase como
um escudo que o protege de situações as quais Dana se encontra sempre vulnerável.
Ele acaba ficando preso no passado por alguns anos e, ainda que não tenha sido uma
experiência fácil ou agradável, seu gênero e sua etnia são elementos essenciais para
a sua sobrevivência.
Ao contrapor as vivências de Alice, Rufus, Dana e Kevin, Butler propõe um
olhar crítico aos corpos que possuem ou não poder. Espelhando as relações de Alice
e Rufus e de Dana e Kevin, ela mostra potencialidades de existência, mostrando que,
na literatura, por mais que haja diferenças históricas, temporais e sociais, alguns
mecanismos do relacionamento, baseados nas relações de poder, se mantêm. Porém,
o casal contemporâneo de Butler subverte a representação comum no que se refere
a casais inter-raciais: a dinâmica de senhor e escrava. Dana não permite em absoluto
que Kevin interfira em sua independência. É mais livre que a maioria das mulheres de
sua época, e mesmo que entre em uma instituição tão tradicional como o casamento,
o faz por sua vontade, não por imposição social ou familiar. Por outro lado, é a
recepção social de seu relacionamento que designa os papéis dos quais ela e Kevin
fogem.
Em Kindred – laços de sangue, Butler traz mulheres, e principalmente mulheres
negras, para o centro da narrativa; e, ao fazê-lo, questiona como mulheres negras
podem negociar sua agência em um mundo que questiona tudo, inclusive sua
humanidade.
tantas viagens e experiências, ela retorna ao seu tempo uma última vez
absolutamente modificada física e psicologicamente: o que ela era há um ano já não
fazia sentido depois de tudo o que vivera.
É durante as 6 viagens no tempo de Dana que Butler desvela ao leitor – e
também aos personagens - os mecanismos dessa narrativa tão própria. Cada capítulo
do romance retrata um episódio de viagem no tempo que começará com Rufus em
perigo e terminará com Dana temendo por sua vida. Os capítulos – O Rio, O Incêndio,
A Queda, A Luta, A Tempestade, A Corda – antecipam os eventos que sucederão;
anunciam o perigo e o risco da vez à vida de Rufus. O intervalo de tempo entre as
viagens varia – embora seja sempre inferior ao que Dana precisaria para se recuperar
– e a duração de sua estadia no passado também – sempre mais do que a
protagonista gostaria. O que se mantém constante, no entanto, são os gatilhos de ida
e vinda: salvar Rufus; salvar-se. Entretanto, esses gatilhos – ou dispositivos – que
iniciam a ida de Dana ao passado ou sua volta ao presente, progressivamente, para
que funcionem, precisam se tornam mais extremos. Explicamos: se o que a faz voltar
para o seu tempo é sentir-se tão ameaçada, a ponto de temer por sua vida, quanto
mais períodos passa no passado – ainda que entrecortados por alguns momentos no
presente – mais resistente Dana e seu corpo se tornam: afinal, é preciso sobreviver.
Por isso, observamos ao longo do romance, o uso que Butler faz da violência para
mostrar quão resiliente é um personagem que sobrevive e como eficiente e cruel era
o sistema escravista, desenhado para aquebrantar os espíritos mais fortes.
O exercício de tornar o impossível no campo do provável só é orquestrado no
romance como um possibilitador de situações e funciona como um meio de construir
o enredo de uma mulher negra do século XX obrigada a encarnar as condições de
uma mulher negra no século XIX, estas consideravelmente mais duras. Dana não só
tem consciência disso, como, em uma conversa com Kevin, deixa claro que ela tem
menos condições de sobreviver no século XIX que seus antepassados, mesmo que
possua conhecimentos do passado e do presente, porque:
- Então, quanto mais penso nisso, mais difícil fica de acreditar que eu possa
sobreviver, mesmo que sejam poucas as viagens a um lugar como aquele.
Coisas demais poderia dar errado.
- Quer parar com isso? Olha, seus antepassados sobreviveram àquela época,
sobreviveram com menos vantagens do que você tem. Você não é inferior a
eles.
- De certo modo, eu sou.
- De que modo?
84
Kevin, embora acredite apoiar Dana ao dizer que ela sobreviveria, ignora, quiçá
inconscientemente, todas as mazelas reservadas ao corpo que Dana encarna.
Quando fala que os antepassados dela sobreviveram à escravidão, e por isso, Dana
também conseguiria, ele ainda parece preso ao ideário de que a escravidão não fora
assim tão ruim, que o conhecimento do passado e as tecnologias que possui nos anos
de 1970 seriam suficientes para garantir uma passagem mais ou menos tranquila para
Dana no passado. Desconsidera, no entanto, que a violência a que os escravizados
estavam sujeitos não era, necessariamente, desenhada para matar, não no primeiro
castigo. Ela sobrevive, em parte por causa das coisas que leva ao passado em uma
bolsa amarrada à cintura – medicamentos, sabonete, uma faca – mas, também,
porque sujeita-se aos papeis que lhe designam, plenamente consciente de sua falta
de poder. Para resistir a um sistema tão desumanizador e construído de modo a usar
a violência como mecanismos de manutenção do sistema escravista, seria necessário
mais que um corpo moldado no século XX:
– Olha, se você for levada para lá de novo, o que pode fazer além de tentar
sobreviver? Não pode simplesmente deixar que matem você.
– Ah, eles não vão me matar. Só se eu for tonta a ponto de resistir às outras
coisas que eles prefeririam fazer, como me estuprar, me jogar na prisão por
ter fugido e então me vender para quem der o maior lance quando
perceberem que meu dono não vai me buscar. – Cocei a testa. – Quase me
arrependo por ter lido sobre o assunto. (BUTLER, 2017, p. 77)
Dana não pretende morrer no século XIX, ela quer, antes de tudo, sobreviver e
é essa verve de sobrevivência que a mantém consciente sobre a falta de agência que
terá sobre si quando se submeter ao papel que esperam dela no passado. Sabe que
as torturas de que pode ser vítima são várias e inevitáveis dado o corpo que encarna,
e que elas podem ser fatais, embora, no início da narrativa, não saiba o quanto se
tornará resistente ao longo da jornada, a ponto de saber o quanto um corpo pode
tolerar a dor sem necessariamente morrer. E por isso, durante sua jornada para salvar
sua existência no presente, ela quase perde seu corpo no passado.
85
Se o que a leva de volta a 1976 da primeira vez que vai ao passado foi a figura
de Tom Weylin apontando-lhe uma arma, na última, ela quase sofre a única violência
que não experenciara no passado: o estupro. Entre a primeira e a última volta, há um
universo de violências a que Dana é submetida; a cada novo episódio que lhe
aterroriza a ponto de temer por sua vida, ela cria uma resistência e o gatilho seguinte
precisa ser mais mortal que o anterior. Quando é castigada pela primeira vez na trama:
E então, fui levada para a cozinha. Weylin me arrastou por alguns metros e
me empurrou com força. Caí, fiquei sem ar. Não sei de onde o chicote saiu,
não vi que seria açoitada. Mas fui. Senti como se houvesse um ferro quente
em minhas costas, ardendo em mim através da camisa fina, rasgando minha
pele…
Gritei, convulsionei. Weylin bateu mais vezes até que eu não conseguisse me
levantar nem mesmo sob a mira de uma arma.
Fiquei tentando me afastar das chicotadas, mas não tive força nem
coordenação para isso. Não sabia se ainda estava gritando ou só gemendo.
Só tinha consciência da dor. Pensei que Weylin quisesse me matar. Pensei
que morreria no chão ali com a boca cheia de terra e sangue, com um homem
branco xingando e me repreendendo enquanto me batia. Naquele momento,
quase quis morrer. Qualquer coisa que me tirasse a dor. (BUTLER, 2017; p.
172-173)
As descrições dos castigos que Dana sofre, retomando o que disse Morrison
(2020), são explícitas, carecem do pudor esperado e até mesmo exigido das
narrativas escravas. Embora fortes, as cenas de violência no romance não são
deslocadas de contextos, elas funcionam para escancarar a brutalidade de um
sistema que usou as punições físicas como ferramenta de controle dos corpos
escravizados:
33
No original: “Corporal punishment, threatened and actual, is a disciplinary technology that produces
subservience. Although the plantation does not have the elegantly symbolic architecture of the
86
Se, nas primeiras vezes em que vai ao passado, Dana acredita que não
sobreviveria no século XIX como seus ancestrais, com o tempo, o medo e a tensão
constantes que sente nas primeiras viagens desaparecem e ela percebe ao longo das
punições que, infelizmente, é feita de material resistente e, por isso, se torna cada vez
mais difícil voltar para casa. Ela só consegue – em sua derradeira viagem – quando,
para se proteger, assassina Rufus e rompe os laços que os unem. Esse é um dos
momentos-chave em que Dana questiona as crenças de sua época – “Está vendo
como as pessoas são escravizadas com facilidade?” (p. 283) –, afinal, não era fácil
insurgir-se diante de tanta violência. É necessário ressaltar, também, o caráter
– Me surpreende que haja tão pouco a ser visto. Weylin parece não prestar
muita atenção ao que seus escravos fazem, mas o trabalho é feito.
– Você pensa que ele não presta atenção. Ninguém te chama para ver as
chicotadas.
– Quantas surras?
– Só vi uma. E já foi demais!
– Uma é demais, sim, mas ainda assim, este lugar não é o que eu teria
imaginado. Não tem feitor. Não tem mais trabalho do que as pessoas
conseguem fazer.
– ... não tem moradia decente – interrompi. – Tem chão imundo no qual
dormir, comida tão inadequada que todos estariam doentes se não
cultivassem hortas no tempo que deveria ser de descanso e se não
roubassem coisas da cozinha quando Sarah deixa. E eles não têm direitos,
mas têm a possibilidade de serem maltratados ou vendidos e retirados de
suas famílias por qualquer motivo... ou sem motivo. Kevin, você não precisa
bater nas pessoas para tratá-las com brutalidade. (BUTLER, 2017, p. 162)
“Perdi um braço na minha última volta para casa. Meu braço esquerdo” (Butler,
2017, p. 17). Essa é a primeira frase do livro e evidencia a violência a que este corpo
estará, está e esteve submetido. Antes de sabermos que haverá uma viagem no
tempo, já nos preparamos para um desfecho que resultará na perda de um membro.
Dana não sairá incólume de qualquer que seja a aventura a que ela se sujeitará. Antes
de sabermos que se trata de um corpo negro e feminino, sabemos que se trata de um
corpo que será mutilado. É simbólica esta perda, quase como um sacrifício necessário
para que sua jornada tenha um final feliz; é o que ela precisa sacrificar para voltar
para casa, ainda que não saibamos ainda que casa é essa, nem de onde ela partiu.
Ao conhecermos os elementos que faltam, podemos ressignificar essa
informação. A expectativa da violência sobe o corpo negro e feminino de Dana
mantém o leitor apreensivo, e ainda é simbólica: quantas pessoas negras
escravizadas fugiram de seus captores incólumes e ilesos? O braço que ela sacrificou
não parece quase nada quando comparamos com o que a esperava, principalmente
quando lembramos que ela preferia a morte a continuar como escrava. Aos
personagens brancos, no imaginário das narrativas especulativas, é dado o privilégio
de voltar ileso de uma viagem no tempo; aos personagens negros, resta o sacrifício.
Mais simbólico pensar que ao perder o braço, seu ofício se torna um pouco mais difícil:
ainda que tenha tanto para falar, tanta memória para guardar, como fazê-lo?
88
Eles deram à bebê o nome de Hagar. Rufus disse que era o nome mais feio
que já tinha ouvido, mas foi escolha de Alice, e assim ele deixou que fosse.
Eu achei o nome mais lindo que já tinha ouvido. Eu me sentia quase livre,
meio livre, se é que algo assim fosse possível, com meio caminho para casa.
Eu me senti alegre, a princípio, secretamente exultante. Até brinquei com
Alice em relação aos nomes que ela escolhera aos filhos. Joseph e Hagar. E
quanto aos nomes dos outros dois, pensei e não disse nada. Miriam e Aaron.
Eu disse:
- Um dia, Rufus vai se apegar à religião e ler o suficiente da Bíblia para refletir
sobre o nome
- Se Hagar fosse menino, ia se chamá Ismael. Na Bíblia, as pessoa podia sê
escrava por um tempo, mas não tinha que sê escrava para sempre.
Meu humor estava tão bom que quase ri. Mas ela não teria entendido isso, e
eu não conseguiria explicar. Pude, de alguma maneira, guardar tudo para
mim, e me parabenizei pelo fato de a Bíblia não ser o único lugar em que os
escravos se libertavam. Seus nomes eram apenas simbólicos, mas, eu tinha
90
Ao ser esbofeteada pela primeira vez por Rufus, Dana, que já estava no século
XIX há oito meses, arrisca-se para fugir de uma existência que considerava pior que
a própria morte: tenta forçar sua volta para casa cortando os pulsos, embora sem
garantia de que a artimanha daria resultado:
Na cozinha esquentei água e a deixei morna, não quente. Então, levei uma
bacia cheia até o sótão. O quarto estava quente e vazio, apenas com minha
esteira e a bolsa no canto. Fui até ela, lavei a faca com antisséptico e passei
a alça de minha bolsa no ombro.
E, na água morna, cortei meus pulsos. (BUTLER, 2017, p. 382)
Ao cortar os pulsos, ela retoma controle de sua vida; sua liberdade volta a estar
em suas mãos. Ainda que não controle suas idas para o passado – visto que depende
de Rufus colocar-se em perigo, ela encontra, mesmo que por meios violentos, uma
maneira de sair da situação em que se encontra no momento que quiser. A morte, ou
91
34
No original: SCHOLAR: Maybe I should rephrase the question. What were you trying to express?
BUTLER: Various kinds of courage. For instance, there is a woman in the novel who was never called
mammy but perhaps she could have been. At a certain point, my character becomes angry at her
because she is pushing the other slaves to work. My character says, "Well, they're not getting paid; they
are going to get knocked around; why should they work hard?" And the woman says, "Well, do you want
to do it? Someone will be made to do it. Do you want to do it? It should be shared if we have to do it."
She absorbed a lot of the garbage but she is still her own person and she's still doing what she can. She
has her own forms of resistance but my character really doesn't see this at first and gradually does come
to see this. There's a point in the book when she goes back and forth between the two time periods
involuntarily.
Whenever her white ancestor is endangered – and he is a very self-destructive person – she pulls back
physically and especially when he's a child, she willingly saves him. Because after all, a child drowning
or about to burn to death, you would naturally save the child no matter what color it was. And later when
he's a man and a much less savory person, she saves him because her ancestor has not been born
yet. She's not quite sure how these things work, but she is a little afraid. She understands that there is
a paradox here. How could everything depend on her. But anyway, she goes on saving him. I've had
people come up and ask me why doesn't she just kill him as soon as the ancestor is born. (p. 15-16)
92
que Butler encarna o tipo de coragem menos óbvio. É Sarah quem encarna a
resiliência e é através dela que Dana – e consequentemente o leitor – desconstrói a
ideia da passividade das pessoas escravizadas. Embora pareça a encarnação da
mammy, é ela quem corajosamente comanda e garante que todos, coletivamente,
sobrevivam. Encarnando corpos tão destituídos de poder que a sobrevivência só é
possível que, somente assumindo um corpo coletivo.
Para o filósofo Richard Rorty (2007): “as línguas mudam no decorrer da história,
e, portanto, os seres humanos não podem escapar à sua historicidade” (p. 100);
assim, longe de ser universal e atemporal, a linguagem é fundamentalmente
contingente, ou seja, dependente das circunstâncias e contextos em que o sujeito que
a utiliza está inserido. Dana encarna essa historicidade quando chega munida de sua
linguagem dos anos 1970 a uma Maryland escravocrata no século XIX. Ela e Rufus
interagem cada um dentro de sua visão e acepção de linguagem e dos significados,
daí o choque de mundos e visões que ocorre entre eles, demonstrando, também, o
limite da linguagem através da incapacidade de ambos se comunicarem plenamente.
Ainda que usem o mesmo signo, eles acessam uma rede de significados diferentes.
Se pensarmos que os sentidos são construídos, mutáveis e de longe encerram uma
verdade final, não há do que se falar em uma linguagem universal e neutra.
35
No contexto norte-americano, original da obra, a palavra nigger, aqui traduzida como preta é
extremamente pejorativa por se tratar de um insulto racial.
No original: "Just a strange nigger. She and Daddy both knew they hadn't seen you before."
93
que me chamar de senhor – ele estava muito sério – Você quer que eu lhe chame de
negra.” (p. 49) ela se depara com uma realidade de subalternidade que não só não
faz mais sentido como é duramente combatida em seu tempo. Se em 1815 esperava-
se que uma mulher negra como Dana sempre se referisse a um menino branco e filho
de um dono de escravos como “Senhor”36, ao contrariar essa norma social apoiada
no discurso do período a mulher destaca-se, fazendo com que o garoto rapidamente
perceba que ela não era escrava, ainda que negra.
O romance é ambientado em um período histórico cuja maioria das narrativas
e registros que existem partem de uma ótica branca. Quando aborda escravidão – dos
mais diversos modelos –, questiona estereótipos racistas e violentos. Ao escrever
narrativas que dão dimensões sensíveis a corpos comumente desprezados, Butler
explora uma das facetas cruéis da sociedade – que se mostra com cores fortes de
tempos em tempos – dando à literatura uma função de exposição e reconhecimento
da crueldade humana.
Ao partir de diversos estereótipos comuns construídos por essa mesma ótica,
desconstruindo-os em seguida, Butler propõe ao leitor uma desconstrução desse
imaginário comum, e, aos poucos, se tiver sucesso, pode conseguir modificar o que
Richard Rorty (2007) vai chamar de “vocabulário” de um tempo. Por “vocabulário”,
podemos entender, de maneira sucinta, um conjunto de conceitos, ideias, padrões,
linguagem, preconceitos, práticas culturais e memórias. Quando se pode e se
questiona algum desses elementos, um vocábulo, por exemplo, questiona-se primeiro
o “vocabulário” que forjou e permitiu tal uso. Tal uso da literatura faz eco às suas ideias
sobre uma das finalidades da literatura:
Esse processo de passar a ver outros seres humanos como ‘um de nós’, e
não como ‘eles’, é uma questão de descrição detalhada de como são as
pessoas desconhecidas e de redescrição de quem somos nós mesmos. Essa
não é uma tarefa para a teoria, mas para gêneros como etnografia, a
reportagem jornalística, o livro de história em quadrinhos, o documentário
dramatizado e, em especial o romance. A ficção de autores como Dickens,
Olive Schreiner ou Richard Wrigth fornece detalhes sobre tipos de sofrimento
suportados por pessoas em quem, até então, não prestávamos atenção. A
ficção de autores como Chordelos de Lacos, Henry James ou Nabokov
fornece detalhes sobre os tipos de crueldade de que nós mesmos somos
capazes e, com isso, permite que nos redescrevamos. É por isso que o
romance, o cinema e o programa de televisão, de forma paulatina mas
sistemática, vêm substituindo o sermão e o tratado como principais veículos
de mudança e progresso morais. (RORTY, 2007, p. 20)
36
Master, em inglês
94
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
SCHOLAR: Quais são alguns dos pontos filosóficos que Kindred acaba
levantando?
BUTLER: Oh, acho que você teria que ler você mesmo. Lembro-me de ir a
uma conferência em San Diego e de alguém apresentar um artigo sobre meu
trabalho e interpretá-lo mal. Eu me levantei e apontei isso. Agora, no entanto,
tenho a sensação de que o que as pessoas obtêm do meu trabalho vale algo,
mesmo que não seja o que eu pretendia (BUTLER, 1986, p. 15, tradução
nossa)37
O que Octavia planejou para sua obra, o que, para ela seria o mais sensível ou
o mais instigante nem sempre será aquilo que atrairá o olhar do pesquisador, ou, caso
atraia, nem sempre este poderá interpretá-lo “corretamente”. Nem sempre os projetos
e pesquisas “acertam” de maneira precisa suas análises e não pretendi, com este
trabalho, desvendar-lhe a obra de maneira definitiva, afinal, todos os caminhos são
válidos.
Ela é cirúrgica, quando, para exaltar uma afeição por pós-escritos que lhe
permitem falar livremente sobre suas histórias, no prefácio de Filhos de Sangue e
Outras Histórias, diz que: “Na verdade, sinto que o que as pessoas trazem para minha
obra é tão importante para elas quanto aquilo que coloco nela”. (BUTLER, 2020, p.
13). Meus apontamentos dizem mais sobre mim e a importância que vi nos temas que
escolhi, que sobre os planos de Butler com sua produção literária. Minha análise não
se pretende taxativa, na realidade, pretende o exato oposto: mostrar interpretações
possíveis de uma obra singular.
O que apresentei aqui é somente uma das infinitas possibilidades de apreensão
e interpretação do literário e da obra, longe de almejar ser um estudo último, anseio,
no entanto, iniciar os debates. Acredito ser necessário ampliar os olhos acadêmicos
sobre obras, que, embora não se insiram no chamado cânone literário, - justamente
devido às relações de poder que as atravessam, não deixam de narrar a complexidade
da existência humana.
“Todas as lutas são, essencialmente, lutas sobre poder”. Assim, Butler encerra
Kindred – laços de sangue e reafirma o seu pulso criativo: escrever sobre as relações
37
No original: SCHOLAR: What are some of the philosophical points that Kindred ends up making?
BUTLER: Oh, I think you would have to read it for yourself. I remember going to a conference in San
Diego and having someone read a paper about my work and misinterpreting it badly. I got up and said
so. I have the feeling now though that what people get out of my work is worth something even if it
wasn't what I intended.
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Ainda que minha análise pareça parcial dada a minha “obsessão positiva”,
tentei fazer com que não o fosse e, se, como diz Maia (2017): “a crítica é uma atividade
plural e que atende a diversas demandas e objetivos.” (p. 125-126), este trabalho,
portanto, não encerra a discussão sobre sua obra, pelo contrário: espero que sirva
como um convite às pesquisas vindouras.
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REFERÊNCIAS