COF Aula 74
COF Aula 74
Aula Nº 74
11 de setembro de 2010
[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.
Vocês devem ter encontrado um documento no site intitulado “Influências intelectuais que eu recebi
até a década de 90”. Eu o disponibilizei com o propósito de tentar ilustrar uma certa técnica da
absorção de influências culturais. É uma técnica que foi se desenvolvendo naturalmente e que eu
considero extremamente importante para poder reconstruir a história dos pensamentos, a história da
origem da formação das várias ideias a partir desse complexo de influências recebidas, fundindo-se por
sua vez com a experiência existencial, servindo também depois de modelo para a compreensão da
própria história das ideias, por assim dizer, e da história cultural do meio em que nós estamos. Toda a
história que nós escrevemos, toda a nossa apreensão do movimento histórico baseia-se em última
análise nos modelos que nós temos dentro de nós com relação ao nosso próprio desenvolvimento, ao
nosso próprio senso de temporalidade, nosso próprio senso da formação da nossa consciência.
É evidente que esta lista não abrange tudo. E eu também não posso garantir a exatidão da ordem
cronológica de tudo o que eu coloquei. Mas o primeiro elemento cultural recebido na minha vida foi a
Liturgia da Igreja Católica, que eu decorei por volta dos 9 anos de idade (na época a missa era em
latim) para ser coroinha, um ajudante de missa. Aquilo ficou para mim como uma espécie de modelo
de tudo o que veio depois, e eram mais ou menos ali que as coisas encaixavam-se, de modo que a
primeira visão que eu tive era de estar na missa, ou seja a visão da criação, do pecado original, do
nascimento, vida, paixão, morte e ressureição de Nosso Senhor Jesus Cristo e do juízo final.
Na igreja onde eu fui educado, havia vários painéis pintados por um grande pintor brasileiro, Fúlvio
Pennacchi, com imagens do céu, do inferno, do juízo final e de várias vidas de santos. E aquelas
imagens impregnaram-se profundamente na minha imaginação. Eu posso dizer que tudo o que veio
depois veio como se estivesse completando e dando uma concreção àquelas primeiras imagens
absorvidas, tanto do texto da missa quanto das imagens que eu via ali pintadas e do ensino que eu
recebi dos padres entre os 8 e 10 ou 11 anos. A minha experiência na escola católica foi muito boa, não
teve nada desses episódios escabrosos que as pessoas sempre costumam narrar. O Bruno Tolentino
particularmente narrava que tinha sido abusado por um padre católico. Eu nunca vi nada disso, os
padres sempre trataram-me muito bem. E havia também espetáculos de teatro periódicos com cenas
bíblicas, e eu me recordo delas até hoje. Eu posso dizer que a primeira influência cultural recebida foi
esta.
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A segunda ocorreu quando eu fiz um grupo de amigos de uma família muito ligada à música, e que
fazia audições semanais na casa deles. E eles tinham um tio que tinha muita paciência conosco e
explicava-nos tudo. Eram longas audições comentadas. E ali eu recebi um mar de influências. Nessa
época caiu-me nas mãos uma descrição da 5ª Sinfonia de Beethoven, explicando tema por tema, os
encadeamentos entre eles, a montagem da peça. Dava, em suma, a ideia da estrutura matemática da 5ª
Sinfonia de Beethoven. A partir dali foi fácil captar os mesmos elementos em inumeráveis outras
músicas, de maneira que, sem ter nenhum talento musical especial — eu me lembro que as pessoas
tentaram me ensinar piano durante sete anos, com resultados os mais decepcionantes possíveis —, eu,
no entanto, era um bom ouvinte de música e compreendia razoavelmente bem a estrutura das músicas.
Muito tempo depois, conversando com um maestro, eu descrevi a estrutura – não me lembro bem de
que composição era, acho que era alguma coisa de Bach – e ele olhou para mim perguntando se eu
tinha estudado teoria musical. Eu respondi que nunca, mas que eu simplesmente tinha aprendido a
ouvir. Ensinaram-me a ouvir os encadeamentos e como a peça estava montada. Então esta ideia da
estrutura matemática oculta ficou bastante clara já naquele tempo por meio desta prática.
Eu não vou recompor a história inteira, depois vocês podem verificar. Mas a ideia era o seguinte: à
medida que eu ia absorvendo essas influências, naturalmente podia ver com muita facilidade o
contraste entre diferentes perspectivas, mesmo porque logo depois, eu me envolvi com o marxismo e
durante anos convivi com o pessoal ligado à militância. E logo em seguida eu me envolvi no ambiente
teatral, estudando teatro com Eugênio Kusnet; depois estudei cinema. Durante um tempo andei muito
na órbita da psicanálise, não somente lendo os autores, mas submetendo-me a várias psicanálises (eu
creio que fiz oito). Em cada uma dessas ocasiões em que eu absorvi influências, eu não me limitei
simplesmente à leitura, eu procurei, na máxima medida do possível, conviver com as pessoas que
tivessem ligadas àquilo e respirar, por assim dizer, a atmosfera daquela área cultural. Evidentemente as
áreas das mais heterogêneas e conflitantes.
À medida que eu fazia isso, eu notava que eu jamais poderia receber profundamente e compreender
qualquer uma dessas influências se eu me limitasse a apreensão puramente mental daquilo. Era preciso
que a coisa se aprofundasse e atingisse, por assim dizer, a minha imaginação e os meus sentimentos.
Então eu tentava absorver de tal modo que eu visse o mundo como aquelas pessoas viam. E como essas
influências eram bastante contraditórias e heterogêneas, então o único modo que eu consegui inventar
para me adaptar a isso foi justamente a técnica teatral do Stanislavski. Já contei a vocês que eu estudei
um tempo com o Eugênio Kusnet, sem a menor pretensão de me tornar um ator, mas simplesmente pela
importância psicológica do estudo.
A técnica do Stanislavski era a de uma identificação profunda do ator com o personagem, de modo que
quaisquer que fossem os fatos relatados, as situações apresentadas na peça, devia-se procurar na sua
memória afetiva situações análogas — não idênticas evidentemente, mas análogas. É a ideia de que
uma emoção vivenciada por mim pessoalmente pudesse ter uma analogia com outra emoção
completamente diferente vivenciada por um outro sujeito, mas que tivesse a mesma estrutura, a mesma
ordem interna, e que isso podia ter, no momento da representação, o mesmo efeito cênico, por assim
dizer. Quer dizer, ia-se produzir as mesmas expressões, os mesmos gestos, as mesmas entonações de
voz que o personagem tinha expressado usando os meios próprios do ator, mas com o nome do
personagem. Quer dizer, tinha-se do personagem somente o nome, o material verdadeiro era buscado
no próprio ator. Então isso permitia uma identificação profunda com as pessoas que, ou fossem muito
diferentes do ator, ou que tivessem vivido experiências que em si mesmas eram absolutamente
inacessíveis ao ator. [00:10]
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O Eugênio Kusnet era um ator que me impressionou muito, porque eu o conheci bem e, por felicidade,
eu o conheci na época em que ele estava representando um dos maiores papéis da vida dele, que era o
papel do pai de família na peça do Maxime Gorki “Os Pequenos Burgueses”. Ele representava um pai
de família, um homem honesto, muito severo e rígido, mas que não entendia o que estava acontecendo
com os filhos. Era a época da pré-Revolução Russa e os filhos, a sociedade, os costumes e os valores
estavam mudando do dia para a noite, mas o pai não entendia e ficava absolutamente chocado. O
Eugênio Kusnet era exatamente o contrário desse personagem: era um homem que entendia tudo e que
não se espantava com absolutamente nada. Mas, no momento da representação, podia-se sentir a dor
profunda daquele pai que via as coisas mudarem e ficava chocado, e que só podia traduzir a sua
incompreensão em sofrimento. Eu não sei quais elementos da sua memória afetiva pessoal o Kusnet
usou para representar o pai, mas eu sei que funcionou barbaramente. Quer dizer, todos já vivenciaram
alguma situação em que vemos as coisas acontecendo, mas que não podemos compreender, e o
máximo que se pode fazer é ficar chocado. O Kuznet deve ter buscado algo do tipo na infância dele e
funcionou barbaramente na representação.
Aquilo me mostrou como era possível identificar-me com pessoas completamente diferentes, sentindo
e vivenciando tudo como elas, sem que isso realmente me modificasse. Quer dizer, o ator permanecia o
mesmo porque, para além dos elementos que o personagem apresentava, ele tinha um fundo que
permanecia neutralizado durante a encenação, por assim dizer. Mas o ator está ao mesmo tempo
vivenciando aquele personagem e está, por assim dizer, observando o personagem desde uma outra
profundidade que o personagem mesmo não alcança, sem que ator o julgue ou sem que consolide
alguma conclusão a respeito do personagem. Realmente isso me mostrou o que é assistir a uma peça, o
que é ver um filme, o que é ler um romance. Realmente é como se fosse um sonho acordado dirigido,
quer dizer, eu sei que estou sonhando, mas nem por isso eu deixo de sofrer o que está se passando, de
vivenciar aquilo profundamente.
Eu fiz o mesmo com todas essas influências culturais: eu as absorvi como se fossem personagens de
teatro, sem julgá-las, sem exercer nenhuma atividade crítica, mas, ao contrário, tentando me identificar
profundamente com elas, mas ao mesmo tempo sabendo que era um sonho. Isso permitia também ter
uma vivência constante da distinção entre o que é o mundo das ideias, o mundo das teorias, o mundo
das hipóteses e o que é a realidade vivida. Porque tudo isso se passava dentro da realidade vivida e
nenhuma dessas teorias, ideias podia abarcar a realidade como um todo. Elas todas faziam parte da
realidade, estavam dentro da realidade, e aquilo tudo era como vivenciar a mesma realidade desde
muitos pontos de vista diferentes, sem se identificar com nenhum desses pontos de vista. Então tratava-
se não apenas de absorver ideias, teorias ou doutrinas, mas fazer um esforço de aprofundar a
experiência que estava por trás delas, ou seja, os atos de imaginação, de sentimento, de julgamento
moral que estavam por baixo do que, por exemplo, um filósofo escrevia com uma linguagem mais
abstrata e técnica possível.
Na máxima medida das minhas forças, eu tentava tratar os autores desses livros e filósofos como se
fossem realmente personagens que eu estivesse incumbido de representar. Por exemplo, se eu estava
lendo Martin Heidegger — eu acho que não há um filósofo com o qual hoje eu me identifique menos
do que Martin Heidegger —, eu fazia de conta que eu era Martin Heidegger e que estava tentando
explicar aquelas intuições para outras pessoas. Fazer isso com Platão é relativamente fácil, porque ele
mesmo monta os seus escritos como peças de teatro — na verdade, os Diálogos são peças de teatro —,
e os personagens têm uma presença muito viva, não se vê somente as idéias. Em muitos escritos que se
fizeram depois em forma de diálogo, os personagens são como se fossem abstrações, eles são alegorias
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de uma ideia. Mas no caso de Platão, vê-se personagens vivos. Tanto que penso que aquilo poderia
facilmente ser encenado num teatro mesmo. Ninguém vai esquecer o personagem de Sócrates, de
Alcebíades, do estrangeiro no livro das Leis, porque são personagens reais de certo modo, são teatro.
Mas eu tentava fazer isso com todos os autores — aliás eu faço isso até hoje — e sem nenhum medo de
me contaminar. Do mesmo modo que o ator não se contamina com o personagem por mais que ele se
identifique com ele, mesmo porque a identificação com um personagem não é possível se não há ao
mesmo tempo uma espécie de subidentificação com os outros personagens, inclusive com personagens
antagônicos. Se um personagem não entende os outros, acabou a peça. Quer dizer, todos os
personagens têm de saber do que outros estão falando. No teatro, o ator vai fazer um trabalho de
identificação aprofundada com um personagem em particular, mas ele também vai fazer com os outros
personagens — não durante muito tempo, é claro —, e compreender os outros personagens numa
medida mais profunda do que o personagem mesmo compreendia. Por exemplo, quando lemos o Otelo,
temos informações que o personagem Otelo não tem. Então enquanto ator que está preparando o
personagem de Otelo, há de se ignorar certas coisas que, como pessoa real, o ator sabe. Então
evidentemente isso não será possível de se fazer se o ator não tiver nenhuma identificação nem remota
com os outros personagens também.
Então era assim que aos poucos eu ia articulando um conflito de ideias, de doutrinas, de correntes
culturais, como se fosse uma imensa peça de teatro na qual eu representava todos os personagens uns
após os outros ou até simultaneamente. O estado de relativa confusão em que isso me colocava não me
assustava de maneira alguma, porque eu tinha dois pólos de referência: um, era a própria liturgia da
missa, que era uma espécie de visão completa do universo desde o começo até o fim e uma visão
simbólica não doutrinal; e, por outro lado, a experiência da realidade mesma que nenhuma daquelas
perspectivas esgotavam.
Foi por essa época que me ocorreu uma ideia que eu entrevi obscuramente e que depois eu li com todas
as letras nas obras do grande filósofo americano Josiah Royce — certamente o maior filósofo
americano —, em que ele diz que o caráter mais notável, tanto da percepção humana quanto do
pensamento, é a sua incompletude. Nada do que se percebe, percebe-se inteiro. Tudo só se percebe por
um lado ou por outro, por um aspecto ou por outro e, no entanto, sabe-se que a coisa está inteira e que
ela vai para além do que está se enxergando. Do mesmo modo como os conceitos que são formados. Os
conceitos são apenas entidades potenciais que têm a capacidade de serem representadas em entidades
reais, mas que não são as entidades reais. Quer dizer, o conceito de uma espécie é um mero esquema, é
uma forma; esta forma abrange todos os membros de uma espécie só naquilo que eles têm em comum,
mas não naquilo que eles têm de individual. E, no entanto, se não existisse nenhum ente individual para
representar a espécie, a espécie simplesmente não existiria. [00:20] Então todo e qualquer conceito tem o
seu coeficiente de realidade garantido por algo que não está nele, que é justamente a encarnação em
individualidades concretas.
Mais ainda: Royce dizia que nenhuma individualidade concreta é percebida na sua totalidade e, no
entanto, se somente se percebesse delas o que está ou na sua percepção ou no seu conceito, não
perceberia se absolutamente nada. Ou seja, todos nós estamos o tempo todo captando entidades
individuais e nós sabemos que tudo o que existe existe sob a forma de entidades individuais. Não existe
presença real de generalidades, pois as generalidades estão, por assim dizer, na nossa cabeça. Mas, por
outro lado, essas individualidades são justamente o que nós não podemos apreender no todo. Para
piorar um pouco mais, nós não percebemos a nossa própria individualidade no todo. Veja, a cada
momento sabemos somente um certo conjunto de coisas a noss respeito, somente sabemos, percebemos
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e pensamos determinadas coisas, nunca pensamos a totalidade. E, no entanto, se recuarmos umas aulas
atrás, veremos que esse sentimento de individualidade está presente em nós o tempo todo.
Então conclui dessas observações o Josiah Royce, dizendo que, se tudo o que existe existe sob a forma
de individualidades — as individualidades são precisamente aquilo que nem o intelecto e nem as
sensações percebem — é porque essa individualidade é de natureza teleológica, quer dizer, ela está
indo para algum lugar, ela tem uma finalidade, ela está se cumprindo, ela está indo para a consecução
de uma meta. E é justamente isto que faz dela uma individualidade real. Você veja que esse caráter
teleológico não está presente nem nos conceitos e nem nas percepções. A percepção sensível só
percebe o que está presente naquele momento, não se pode perceber o que vai acontecer amanhã. O
conceito também só contém a definição abstrata, por assim dizer, estática das propriedades comuns às
várias entidades do mesmo gênero. Aquilo que precisamente faz com que os entes sejam reais, que é a
sua individualidade, e aquilo que faz com que nós mesmos sejamos reais, que é a nossa
individualidade, isto só é apreendido porque nós temos o dom da vontade e estamos nos encaminhando
a alguma meta. Então essa percepção de incompletude vem junto com a percepção da meta que realiza
a completude. Esta meta não precisa se realizar na vida, mas sabemos que tudo o que existe está indo
para alguma finalidade. É só nesta finalidade que ela se completa.
Por exemplo, vamos pegar um objeto mais simples. Eu estou vendo aqui uma mala. Esta mala no
momento contém algumas coisas, mas ela já conteve outras no passado e pode conter um número
indefinido de outras no futuro. Ou seja, ela foi feita, ela existe para carregar, para conter tudo o que ela
pode ao longo de um certo percurso de tempo até ela estragar e ter de ser jogada fora. Quando ela
estraga, ela não pode mais cumprir a sua finalidade, então significa que a finalidade está cumprida. Nós
não podemos conceber nem o mais simples dos objetos, nem uma mala, sem esta idéia de finalidade
que está, por assim dizer, embutida nela. E a finalidade é o que dá também o senso de continuidade
histórica.
É neste nível de finalidade e de continuidade histórica que os indivíduos existem, e é neste nível que
nós os apreendemos. Nós não os apreendemos nem com as sensações e nem com a razão. Nós
apreendemos porque nós somos seres viventes que têm um passado e que se dirige a um futuro, e que
visa a um estado de perfeição, de completação, por assim dizer, quando se realiza o famoso verso de
Mallarmé: “tel qu’em lui-même enfin l’eternité le change”. Quando percebemos qualquer indivíduo
humano, é isto o que nós percebemos nele: um trajeto em direção a um estado de completação. E
sabemos que só nesse nível do ser completo ele é real. Tudo o que se está percebendo do indivíduo
agora é só um aspecto, por assim dizer, abstrativo. Por exemplo, o indivíduo no momento tem uma
certa idade, mas ele já teve outras e terá outras ainda. Se ele não for dotado da capacidade de ter idades
antes e depois, ele não existe, é só pensamento abstrato. E, no entanto, quando vemos um ser humano,
nós sabemos disso, mas não pelos sentidos e ou pela razão, pois existe uma outra modalidade mais
profunda de apreensão que é ligada ao fato de que nós mesmos somos criaturas teleológicas, nos
dirigimos a algo, e buscamos um estado de completação.
A partir dessa época, eu já percebi que o fato de eu não conseguir dizer certas coisas, de eu não
conseguir descrever ou conceituar uma certa realidade, não impedia que eu a compreendesse
perfeitamente bem. Isto para mim foi uma descoberta definitiva. Por exemplo, quando nós conhecemos
um ser humano ou conhecemos profundamente alguém que nós amamos, alguém com quem nós
convivemos todos os dias, temos uma visão muito real desta pessoa tal como se ela tivesse de si
mesma. Compreendemos a pessoa tal como ela se compreende a si mesma, ao ponto de que nós, em
certos momentos, sermos ela no sentido stanislavskiano. Quer dizer, somos capazes de sentir o que ela
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está sentindo, de se colocar nas situações decisórias nas quais ela vive e saber como ela vai decidir, até
tomar decisões por ela com as quais posteriormente ela concordará perfeitamente bem. E, no entanto,
se eu tivesse de expor o conteúdo de todo esse conhecimento, eu jamais conseguiria. Qualquer pessoa
que nós conhecemos é indizível, mas no entanto, é perfeitamente cognoscível.
Então a partir daí eu comecei a não ligar muito para o conteúdo expresso das filosofias e das obras,
porque eu sabia que sempre por trás deles havia muito mais, e que sem isso aqueles escritos e aquelas
palavras não faziam sentido nenhum. E sabia também que se eu quisesse compreender uma filosofia, eu
tinha de preenchê-la justamente deste conteúdo indizível. Resultado: toda a história da filosofia, toda a
história do pensamento, toda a história da cultura começou a me parecer como uma troca de
informações superficiais sobre um fundo de percepções comuns que todos tinham, e ninguém
conseguia dizer. Ou seja, não apenas estamos todos no mesmo mundo, mas nós conhecemos o mesmo
mundo, embora ele ultrapasse a nossa capacidade de dizê-lo, de representá-lo ou de simbolizá-lo de
qualquer maneira. Aquilo que foi simbolizado nas artes, todas as obras de arte que o ser humano fez
desde que existe, sejam obras de pintura, de teatro, de literatura, de música, são evidentemente um
fragmento infinitesimal do conjunto das experiências. E, no entanto, se for separado desse conjunto das
experiências, começa a não fazer sentido nenhum. Então é evidente que nós sabemos muito mais do
que podemos dizer. E nós nos entendemos perfeitamente sob este fundo indizível.
Isto já me apareceu no tempo do curso de teatro. Por exemplo, se eu fizesse alguns exercícios para eu
me imbuir de um personagem, aquele personagem continha em si muito mais do que estava escrito. Ele
continha inclusive elementos meus, porque se eu não tivesse os pontos de analogia no qual eu pudesse
compô-lo, eu simplesmente não conseguiria montar o personagem. Então todas s minhas emoções que
pudessem ser usadas como pontos de analogia, que pudessem ser retiradas da minha memória afetiva
para compor o personagem, estavam virtualmente nele também, embora o próprio autor da peça não
soubesse disso. De certo modo o autor sabe, pois o dramaturgo que monta o personagem sabe das
repercussões ilimitadas que a apresentação desse personagem terá na cabeça e no coração de cada
espectador. [00:30] Então o personagem é como se fosse um núcleo de emoções possíveis que serão
vivenciadas por milhões e milhões de pessoas. O autor não conhece isso explicitamente um por um,
mas ele sabe disso, ele antevê isso.
Ou seja, quando o autor compõe o personagem, existe no personagem duas coisas: existe a fórmula do
personagem que está escrito na peça, e existe o potencial de efeitos que isso terá sobre os espectadores
ao longo do tempo. Quer dizer, tem uma coisa limitada, mas esta coisa limitada, fechada, contém
dentro de si a fórmula de ilimitadas reações possíveis. E se o dramaturgo não fosse capaz de antever
isso, ele não conseguiria conceber o personagem, evidentemente. Se não se sabe como o personagem
será visto no palco, não há como descrevê-lo. Quer dizer, a antecipação da reação do público está
embutida na construção do personagem. Claro que esta antecipação pode falhar às vezes, mas em geral,
quando a peça é boa, não falha.
Ficou claro para mim, já no tempo que eu estava estudando Stanislavski, que havia uma intensa
comunicação entre experiências indizíveis — indizíveis, mas co-participáveis —, e esse círculo de
experiências atravessava séculos ou milênios, na medida em que nós somos capazes de entender uma
peça de teatro grego, por exemplo, ou até do teatro japonês, chinês ou indiano. Então esta constatação:
nós sabemos muito mais do que nós podemos falar. Isto quer dizer que todo diálogo filosófico ou
cultural que não leve isso em conta está apenas trocando palavras e não está falando sobre a realidade
da experiência subentendida, então não tem valor nenhum. A partir daí eu deixei de me preocupar se as
pessoas iam me compreender ou não. No fundo, elas todas vão me compreender, sabendo ou não elas
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vão me compreender, porque nós todos somos seres humanos, todos estamos dentro do mesmo mundo,
todos temos uma estrutura de existência mais ou menos similar e, mais dia menos dia, este fundo
indizível aparece e as pessoas se entendem.
Vocês imaginem então qual foi, muito mais tarde, a minha reação quando eu comecei a estudar
Wittgenstein, Saussure, Derrida, Todorov. Esse pessoal tentava reduzir a experiência humana à esfera
do discurso, ao ponto de dizer que não existe experiência que não seja mediada pelo discurso. Ou seja,
a estrutura da linguagem determina e limita toda a esfera do pensar. Não, a estrutura da linguagem
limita a esfera do dizível, mas a esfera do dizível não significa nada se não existe uma
intercomunicação do indizível. Querer que a esfera do conhecimento humano se limite ao mundo do
discurso é, em primeiro lugar, mentir. Como o discurso chega até nós? Ele chega por meio de ondas
sonoras que afetam o tímpano. Isto não é um discurso, isto é um fenômeno físico. Ou seja, eu nem
chegaria a ter a noção de discurso, se eu não tivesse acesso direto às coisas e se eu não as reconhecesse
como tais.
Por exemplo, se eu não fosse capaz de distinguir um som de uma visão, eu não poderia ter um discurso,
porque quando uma pessoa me dez a palavra “elefante”, a reação é diferente daquela que eu tenho
quando eu vejo um elefante. Esta simples diferença mostra que eu conheço a essência do som e da
imagem antes de poder absorver qualquer noção discursiva, ou antes de aprender a primeira palavra. E
esta diferença é uma das inumeráveis percepções que ficam embaixo do nosso pensamento discursivo.
Daqui a pouco eu vou mostrar os efeitos a longo prazo que toda essa escola está desencadeando no
mundo hoje. Essa escola contribuiu para a criação de correntes de ação educacional, cultural, e política
que hoje praticamente dominam o cenário mundial.
A minha primeira reação a estas ideias foi exatamente de tentar vivenciá-las como eu fazia com as
outras. E aí eu descobri que existia um fenômeno muito esquisito que são as ideias com as quais não se
pode identificar existencialmente, e que podem existir somente na esfera da pura linguagem. Elas não
são vivenciáveis porque elas não correspondem à experiência nenhuma, mas precisamente a uma
negação da experiência. E foi neste momento que, pela primeira vez, sem esse nome, apareceu-me a
ideia da paralaxe cognitiva. Ou seja, esses indivíduos não estavam falando de nada que eles tivessem
vivenciado, experimentado, visto, ou sentido. Eles estavam combinando ideias e palavras de tal modo a
tornar inacessíveis para outras pessoas certas experiências básicas. Eles criavam um esquema de
palavras de tal modo que, uma vez dentro daquilo, ficava-se separado da própria experiência
existencial.
É claro que eu fiquei muito assustado com isso na época. Eu vi que se podia pensar como Wittgenstein
ou Jacques Derrida, mas nãopoderia ter as experiências internas deles, porque nada dessas experiências
estava colocada ali. Eu vi que o discurso então tinha essa possibilidade de se tornar autônomo em
relação a toda e qualquer experiência. E mais tarde eu associei isso com Hegel e citei num artigo. Hegel
diz que a maior das propriedades do intelecto humano é a capacidade de dizer não a toda experiência:
negar a totalidade e afirmar-se a si mesmo como única realidade existente. O ego que nega tudo, isola-
se, e começa a tentar construir um outro mundo a partir de si próprio. Mas este si próprio é somente o
intelecto verbal, o intelecto que está raciocinante, já não é mais a pessoa viva. Então é como se fosse
um programa de computador em que coloca uma regra inicial, e ele começa a montar uma estrutura a
partir daquilo. Eu vi que isso era extremamente perigoso, porque significava cortar o fio da
comunicação entre pensamento e experiência.
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Esses autores não apenas se separavam da própria experiência. Eles tinham o cuidado de se isolar
completamente daquilo que eles sabiam, daquele fundo de conhecimento que eles já tinham, mas eles
conseguiam isolar também o leitor do seu próprio fundo indizível. Ao ponto de alguns desses autores,
que perceberam que existe por baixo do discurso uma série de conhecimentos prévios, explicarem tais
conhecimentos como resultado da transmissão cultural. Ou seja, não há mais a experiência, só há o
discurso. Ou se tem o discurso agora ou o discurso anterior acumulado que está embutido no senso-
comum; nunca há a experiência originária. Mas se não há a experiência originária, como se pode ouvir
o primeiro discurso? Quer dizer, como é que eu vou distinguir o que uma pessoa está falando daquilo
que eu estou vendo? Se eu não fizer esta distinção, eu não posso aprender a falar. Se eu não consigo
distinguir entre o cachorro que eu estou vendo e o nome do cachorro que a minha mãe disse, eu não
posso aprender a falar.
Essa negação da experiência originária permitia que esses indivíduos construíssem pseudomundos de
acordo com regras que eles mesmos tinham inventado. [00:40] Pseudomundos tão bem construídos que,
entrando lá dentro e começando a raciocinar pela linha deles, só se consegue sair dali em duas
condições: primeiro, com um treino lógico extremamente aprimorado para se poder desmontar o
pseudomundo; e, segundo, com uma consciência muito clara do que é o fundo indizível de experiência,
algo que a maior parte das pessoas não tem, justamente por conta do tipo de influência cultural hoje
predominante. Eu vejo isso como uma tragédia nas nossas mãos.
Eu vou lhes dar uma ideia de até onde os efeitos disso podem chegar. Eu tenho observado várias vezes
que o liberal, o conservador, ou o anticomunista tem uma solene desprezo pelos autores marxistas e
jamais os lê. Mas o fato é que a produção de livros marxistas é enorme e o debate interno dentro da
esquerda marxista também é de uma intensidade que quem está fora não pode nem imaginar. Eles estão
todo dia discutindo algo e estão a toda hora escrevendo livros, dando entrevista, fazendo conferência,
ensinando. Eu sei que ler autores marxistas é um sofrimento horroroso, mas acontece que, não os lendo,
não há como saber o que eles estão tramando e qual será a próxima empulhação sangrenta que eles vão
impor ao mundo. E quando nos damos conta, já estamos dentro da empulhação, eles já nos pegaram,
estamos raciocinando dentro da linha que eles querem e já estamos presos, por assim dizer, dentro da
armadura verbal na qual eles quiseram nos colocar. Às vezes não é só a armadura verbal, é todo um
esquema de poder político que é imposto e nem sabemos como aquilo se originou.
Mas eu, ao contrário, sempre acompanho essas produções e procuro ver o que esse pessoal está
escrevendo, discutindo, ou tramando. Mesmo assim, eu estou sempre atrasado com relação a eles
porque a produção deles é enorme. Quando eu digo que estou me atualizando, quero dizer que eu estou
lendo materiais que foram escritos na década de 90, embora também sirvam porque o que foi escrito na
década de 90 está virando prática agora. Todas as pessoas que falam e discursam no Fórum da
Liberdade ignoram tudo isso, e toda hora são pegos de surpresa. Eles são pegos em situações sociais
que eles não compreendem e procuram alívio proclamando a superioridade econômica do capitalismo,
algo que até os comunistas já sabem. O fato de o capitalismo ser superior economicamente não impede
que a estratégia comunista de apropriação do poder político seja não só superior a todos, mas de fato a
única que existe.
Eu vou ler aqui alguns trechos de um livro que foi publicado em 1985 e que teve uma influência
enorme nos meios esquerdistas. No meio conservador e liberal, nunca encontrei uma pessoa que tivesse
ouvido falar deste livro. O conselho de Sun Tzu de que é necessário conhecer o inimigo é a primeira
regra que todos os liberais e conservadores estão infringindo. Peço um pouco de paciência porque o
livro é enormemente tedioso. Eu primeiro vou ler tudo, pelo menos as partes que eu marquei, e depois
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eu volto e comento parte por parte. O livro chama-se “Hegemonia e Estratégia Socialista”, escrito por
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Eu creio que o livro foi escrito em inglês porque não há menção de
tradutor. Os dois são professores de teoria política na Inglaterra. As universidades no meio anglo-
americano colocam nas cátedras de teoria política pessoas que não são propriamente teóricos políticos,
são estrategistas da esquerda. São figuras completamente diferentes, ao meu ver.
Como tem de ser a relação entre entidades para que uma relação hegemônica torne-se possível? Esta
condição tem de ser aquela em que uma força social particular assume a representação de uma totalidade
que é radicalmente incomensurável com ela (...). Este é o ponto em que a noção do social concebida
como um espaço discursivo torna-se de importância primordial. (...) As três maiores correntes
intelectuais do século XX — a filosofia analítica, a fenomenologia e o estruturalismo —, começaram
com uma ilusão da imediatez, de um acesso não-discursivamente mediado às coisas em si mesmas (...)
Nas três, no entanto, essa ilusão da imediatez dissolveu-se e teve de ser substituída por uma forma ou
outra de mediação discursiva. Isto foi o que aconteceu na filosofia analítica com o trabalho de
Wittgenstein, na fenomenologia com a analítica existencial de Heidegger, e o estruturalismo com a
crítica pós-estruturalista do signo. É também, na nossa opinião, o que aconteceu na epistemologia com o
verificacionismo transicional — Popper, Kuhn e Feyerabend — e no marxismo com o trabalho de
Gramsci. (...)
(...) Mas o pós- estruturalismo é o terreno no qual encontramos a fonte principal da reflexão teorética e,
dentro do pós-estruturalismo, especialmente o desconstrucionismo e a teoria lacaniana. Para o
desconstrucionismo, a noção da indecibilidade foi crucial (...), reencontrando um ato de instituição
política que encontra a sua fonte e motivação em nenhuma outra parte, exceto nela mesma (...) A
categoria de significante-mestre (a categoria de Lacan) envolve a noção de que um elemento particular
assume uma função estruturante universal dentro de um certo campo discursivo (...) sem que a
particularidade daquele elemento per se predetermine tal função. (...) Isso permite pensar transições
hegemônicas que são inteiramente dependentes das articulações políticas, e não de entidades constituídas
fora do campo político — como é o interesse de classe. De fato, as articulações política-hegemônicas
criam retroativamente os interesses que elas afirmam representar.
A linguagem desse livro tem uma presunção abstrativa formidável. Os autores falam em um alto nível
de abstração que não é necessário para o que se quer dizer. O que eles estão dizendo é perfeitamente
traduzível em linguagem de coisas concretas, reconhecíveis à primeira vista por qualquer pessoa que
jamais tenha estudado esses assuntos e que não tenha a menor ideia desse vocabulário. Porém, se em
vez de usarem essa linguagem, os autores usassem a linguagem comum corrente, eles teriam de
confessar que o que estão propondo é uma empulhação monstruosa. Para dar a ideia de que essa
empulhação monstruosa é elevada e digna, eles têm de usar esta linguagem não só para enganar os
outros, evidentemente, mas para enganar a si mesmos.
Vamos ver agora o que eles estão dizendo realmente. Vamos traduzir isto para o português claro. [00:50]
Eles começam, em primeiro lugar, por dizer que a hegemonia é o controle mental que uma facção
exerce sobre o conjunto da sociedade. Uma facção hegemônica é aquela que não precisa
necessariamente ter o poder político, mas que determina a maneira como todo mundo pensa, inclusive
os seus adversários. Quer dizer, ela pré-molda todas as reações e os debates e encaminha o conjunto na
direção dela. Mas elem confessam o seguinte:
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Para existir uma hegemonia tem de haver uma condição tal que uma força política particular assuma-se
como representante de uma totalidade que é absolutamente incomensurável com ela.
Ou seja, um grupo de duas mil pessoas, por exemplo, representam uma determinada totalidade,
digamos, a nação brasileira. Evidentemente o grupo é totalmente incomensurável com a totalidade.
Existem milhões de habitantes e de correntes políticas, mas uma delas fala como se já representasse
essa totalidade, embora essa corrente política não tem uma medida comum com a totalidade. Há um
evidente elemento teatral nisso, pois se um determinado grupo fala como se fosse a totalidade, embora
sabendo que não o é e que não há medida comum entre ambos, então é evidente que é necessário um
certo treino teatral para fazer isso, é necessário fingir. Fingir que representa a totalidade, a vontade da
totalidade ou os interesses da totalidade.
E eles afirmam em seguida que para que isso fosse possível, foi necessário conceber todo o espaço
social como um espaço discursivo, um espaço de linguagem. Ou seja, não como um espaço concebido,
segundo Marx, como um conjunto de esforços físicos realizados para a apropriação da natureza, como
um conjunto de bens que está sendo conquistado e distribuído, ou como um conjunto de esforços
humanos reais. A sociedade passa a ser um espaço discursivo. Não interessa o que as pessoas estejam
fazendo, a relação física entre o homem e a natureza, ou o processo de produção. Nada interessa. O que
interessa tão somente é o espaço discursivo.
Como se chegou a isso? Eles afirmam que as três principais correntes de ideias do século XX — a
filosofia analítica, a fenomenologia e o estruturalismo (depois eles citam também o marxismo e a
epistemologia) — começaram, no início do século XX, a buscar uma via de acesso a um conhecimento
original não mediado pelo discurso, ou, segundo a regra do Husserl, zun den Sachen selbst (“as coisas
mesmas”.). Nós não temos de prestar atenção às ideias ou palavras, às coisas mesmas, à realidade tal e
como ela se apresenta. Portanto estas três correntes — a filosofia analítica, a fenomenologia e o
estruturalismo — tinham o mesmo objetivo no início: buscar uma via de acesso às coisas mesmas, à
experiência originária por baixo de toda elaboração discursiva que se fez em cima da experiência
originária. Mas essas correntes fracassaram neste sentido e acabaram descobrindo que não existe acesso
às coisas mesmas, que só existe o discurso, que tudo o que nós pensamos e que podemos conhecer está
dentro de um campo lingüístico pré-determinado.
Desde logo, eu digo que isto é impossível. Não que esteja errado, é impossível. Impossível porque sem
o acesso às coisas mesmas, não se teria acesso ao discurso. O discurso chega a nós não como um
discurso, mas como uma coisa, um som. E chega não somente como um som — isto é importantíssimo
—, chega com uma distinção entre som e coisa. A própria distinção entre o signo e o referente seria
impossível se nós não tivéssemos acesso às coisas mesmas, porque signo, significado e referente em si
mesmos não são elementos do discurso, são elementos pré-discursivos, sem os quais não há discurso.
Ou seja, se a minha mãe diz o nome do cachorro, eu ouço o som (o nome do cachorro), percebo que ela
está chamando o cachorro e que o cachorro não está ali porque eu vejo que nao está. Eu saber dessas
três coisas não é uma operação discursiva, mas pré-discursiva. Se eu não consigo fazer essa distinção,
não há linguagem. Esta distinção, a própria linguagem não pode fazer. Eu tenho de ser capaz de
distinguir entre um som, uma intenção humana e o objeto ao qual a linguagem se refere. No mínimo, eu
tenho de apreender o som e distinguir entre o som e a intenção.
Muitas aulas atrás eu contei para vocês que li no livro do André Marc “A Psicologia Reflexiva” a
história de uma senhora que sofria do mesmo problema da Hellen Keller, e era cega, surda e muda. Até
por volta dos dezoito anos, ela vivia como um bichinho, não conseguindo se comunicar, tendo de ser
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alimentada e de dar-lhe banhos, vivendo em suma como uma coisa. Um dia, a freira que tomava conta
dela deixou por distração uma faca em cima da mesa, e a menina agarrou a faca. A menina não sabia o
que era, mas pegou a faca e começou a fazer gestos anárquicos. A freira então tomou a faca, e a menina
ficou muito brava. A freira fez um gesto em cima da mão da menina e a menina fez o mesmo gesto na
mão da freira, e daí a freira deu a faca de novo à menina. A freira tomou a faca de novo e fez o mesmo
gesto. Fez isso duas vezes, e o gesto virou signo da faca. A partir desse primeiro signo “faca”
desenvolveram-se outros signos possíveis. Mas se ao apreender este gesto, a menina não tivesse acesso
ao gesto propriamente dito, fora de toda referência lingüística, como seria possível apreender o
primeiro, segundo signo, o terceiro e o quarto?
A ideia de que todo o conhecimento só tem mediação discursiva, de que não existe o referente, e que
em última análise, não existe o objeto do qual se refere é absurda. Se alguma utilidade houver nesta
ideia, é somente para descobrir certos mecanismos do pensamento humano; na prática não serve para
nada.
Isto significa que a sociedade humana já não pode ser vista como a via Karl Marx: como um processo
material de apropriação da natureza e da sua transformação em bens para a utilidade humana e a
distribuição dos bens. [01:00] Marx via esse processo material. Eu acho que Marx tinha razão porque para
ter mediação discursiva, é necessário ter comido alguma coisa. Não se pode viver de mediação
discursiva. Ou seja, a sociedade já não pode ser vista como um processo material em cima do qual se
cria estruturas linguísticas, culturais, etc.. Esta base material de certo modo já não existe mais, só existe
a mediação discursiva. Então o próprio processo de produção passa a ser visto como uma mediação
discursiva, e assim por diante.
Os autores apontam que isso que acontece nessas três correntes também aconteceu no domínio dos
estudos epistemológicos graças a Popper, Kuhn e Paul Feyerabend, e no marxismo com Gramsci.
Gramsci também vai ver a sociedade primordialmente como uma rede de discursos. A estrutura de
classes, dos modos de produção etc. recua para uma distância enorme. Eu nem sei por que esses caras
continuam se chamando marxistas. Se pergunto qual é a unidade, qual é o traço de unidade entre uma
coisa e outra — e um autor afirma “A” de um lado, e outro autor afirma “não A” de outro —, como
eles podem então estar fazendo ainda a mesma coisa? Já vamos explicar como é que se dá essa mágica.
Foi à luz desta verificação que os autores criaram o seu conceito de hegemonia. Este conceito foi
exposto em 1985, e praticamente teve recepção universal — com umas poucas objeções —, e todos
acabaram concordando com Ernesto Laclau e pondo o conceito em prática. A seguir os autores dizem
que, graças à dissolução da imediatez e à instauração da superioridade absoluta do discurso e da
mediação discursiva, “foi possível criar uma nova noção hegemonia baseada no fato de que um
elemento particular (quer dizer um grupo particular) adquire uma significação estruturante universal,
sem que nada nesse grupo ou nesse elemento pré-determine essa função”. Ou seja, a afirmação do
grupo como hegemônico é arbitrária.
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Em Marx, não era assim. Em Marx, o proletariado podia ter a hegemonia porque o proletariado tem nas
mãos a força de produção. Então é uma relação material que o proletariado tem com a natureza
circundante que pode lhe dar a hegemonia, porque a relação do burguês como o mundo material é
apenas simbólica, jurídica, administrativa, etc.. Mas o proletariado tem as forças de produção na mão,
tendo portanto a condição objetiva para se tornarem hegemônicos. Segundo Laclau, não. Não é
necessário que nada neste elemento ou neste grupo o pré-determine como hegemônico, porque é uma
operação que se dá agora não na esfera material da sociedade, mas no puro elemento discursivo.
Isto torna possível pensar em transições hegemônicas que são inteiramente dependentes das articulações
políticas, e não de entidades constituídas fora do campo político.
Vejam, em Marx, o partido era uma articulação política construída com base numa articulação
extrapolítica, uma articulação socioeconômica, ou seja, a posição real do proletariado no processo de
produção. Agora os autores dizem que não é mais necessária a tal articulação, porque se o campo social
todo é compreendido como um campo discursivo, e apenas discursivo, e se a mediação discursiva
encobre ou elimina completamente o referente, só há um problema: dominar o discurso. Então um
grupo pode se oferecer, apresentar-se como hegemônico, ou seja, como representante da
universalidade, sem que nada objetivamente o determine como tal. Então o grupo torna-se hegemônico
simplesmente porque ele decreta a sua própria hegemonia. E mais ainda:
Este grupo não precisa ter nenhuma característica que dependa de elementos fora da política.
Por exemplo, o interesse de classe como, por exemplo, o Partido Comunista da URSS, no tempo de
Lenin, dizia que representava os interesses do proletariado. E havia de fato interesses do proletariado,
embora não fossem tão reais como Lenin o imaginava.
Ou seja, não há nenhum interesse econômico ou social objetivo representado por um grupo, mas cria-se
um grupo hegemônico, domina-se o campo discursivo e em seguida cria-se interesses objetivos em
nome dos quais diz-se estar agindo no começo.
O que é o Fome Zero? Notem que, quando se formou uma entidade chamada PT, tratava-se de um
partido de estudantes e da classe alta, continuando como tal até bem pouco tempo atrás. O PT até
gabava-se de que as pessoas mais cultas votavam no partido e a massa ignara votava em outros partidos
porque era manipulados. Eles não eram o partido da classe pobre, mas da classe alta, e ao mesmo
tempo proclamavam ser os defensores dos pobres. Tão logo assume o poder, o PT cria através de
verbas estatais um campo social imenso de pessoas que agora tem um interesse objetivo na preservação
delas mesmas no poder. Estes interesses não haviam antes. Ou seja, as pessoas tornam-se eleitoras
crônicas do PT não porque pertencessem a uma classe, cujos interesses o PT objetivamente
representasse antes, mas porque agora criou-se uma rede de interesses que os induz a sustentar no
poder aquele grupo que os articulou como interesse social a partir da articulação política. Isso está em
prática no mundo inteiro.
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O movimento gay, por exemplo. Havia por acaso, na sociedade, gays que tinham interesse em chegar
ao poder? Algum sujeito vai para cama com outro com algum interesse de chegar ao poder? Não. Quer
dizer, não existe nada mais egoísta do que a pura busca do prazer sexual. Ir para a cama com um sujeito
— com uma mulher ou com um homem —, é por interesse da pessoa, ninguém vai ganhar nada com
isso. Até existe uma expressão brasileira que é muito significativa: “o sujeito que goza com o peru do
outro”. Isto evidentemente é uma expressão da impossibilidade pura e simples, isso jamais acontece.
Até um certo momento as práticas homossexuais eram apenas do interesse individual de dois ou de
três. Mesmo supondo sexo grupal, não passaria de vinte, pois com mais de vinte não dá para fazer sexo
grupal. Isto quer dizer que não existe um interesse objetivo numa política gay.
Mais ainda: muitas pessoas que têm práticas homossexuais não as têm de maneira constante, mas de
maneira ocasional e não têm nenhum interesse que alguém saiba disso. O gay enrustido por exemplo, é
90% dos gays ainda hoje. Se há um grupo em que não há um interesse objetivo em formar um
movimento político e criar um barulhão, é o gay. [01:10] No entanto, aparece um grupo que começa a
agir como se representasse todos os gays. Os outros gays fugiam, porque não queriam que ninguém
soubesse que são gays.
Como age o movimento gay? Começa por procurar os gays enrustidos e por denunciá-los, ou seja, por
oprimir os seus próprios membros virtuais. Se uma pessoa é gay, considera-se que ele é um militante
gay em potencial, mas que ele não quer ser militante porque ele quer permanecer enrustido. O que se
faz então? Denunciam-no, e ou ele cede para o movimento ou o movimento acaba com a vida dele. Aos
poucos, vai se criando uma rede de interesses objetivos, porque há verbas, cotas, toda a proteção dada
pelos movimentos culturais, lugares privilegiados nas escolas, etc.. Ficam criada assim uma rede de
interesses que não existia antes.
Não é que a política represente interesses sociais pré-existentes; ao contrário, o grupo só representa o
seu próprio interesse de chegar no poder, de ter o poder. E através da hegemonia, exercendo a
hegemonia discursiva, ou seja, simplesmente falando em nome de uma totalidade que ela de fato não
representa. Ela cria a hegemonia e em seguida cria os interesse sociais que a sustentam. Devemos isso
ao Wittgenstein, Derrida, Jacques Lacan, etc.. Hoje a política mundial é constituída disto.
Existe alguma nação no mundo que tenha interesse em se dissolver e ser administrada de fora por
pessoas que não a conhecem, falam outra língua, cujos interesses objetivos vão contra ela? Nenhuma
nação do mundo tem. Mas o globalismo está sendo imposto nesta base. E acontece que nessa altura o
número de entidades, de organizações, de empresas etc. que estão vinculadas ao interesse global já é
monstruoso, já criaram-se os interesses que retroativamente passam a ser representados pelo detentor
da hegemonia discursiva.
Vejam o que acontece na questão do aquecimento global. O problema objetivo não existe, mas
começou-se a falar disso e a convencer instituições, organismos, escolas, institutos de pesquisa,
cientistas a abordar esta questão. Daí cria-se uma rede de interesses, e agora esta rede não pode mais
voltar atrás e dizer que não há aquecimento global nenhum, ou que existe um aquecimento global, mas
que não resulta de fabricação humana. Eles não podem mais voltar, e dispõem-se inclusive a arriscar as
suas carreiras científicas para defender esses interesses que antes não existiam de maneira alguma.
Ora, é evidente que quando nós começamos a viver numa atmosfera dessas, estamos num hospício em
que tudo vira profecia auto-realizável. Não existem mais interesses sociais objetivos que possam ser
representados na política. A política torna-se uma fabricação retroativa de interesses inexistentes. E tão
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logo tornam-se existentes, consolidam esta hegemonia. Esta foi a teoria inventada por estes dois autores
em 1985.
Simultaneamente Cloward e Piven inventam a estratégia que veio a tomar o nome deles — Estratégia
Cloward e Piven —, sobre a qual eu escrevi um artigo há alguns meses no Diário do Comércio. Essa
estratégia consiste em criar uma crise, uma situação revolucionária. Este é o objetivo. Cloward e Piven
viram que a previdência social tinha uma lista de direitos e uma lista das pessoas que poderiam
reivindicá-los. Das pessoas que teoricamente podiam reivindicar os direitos, apenas dois ou três por
cento estavam ali na lista da previdência. Por que os outros não estavam? Porque não precisavam,
evidentemente. Há teoricamente certos direitos dos quais não precisamos.
Por exemplo, eu tenho direito à aposentadoria de jornalista há mais de dez anos, mas eu não preciso
desse direito, e eu não vou buscá-la porque vai me dar muito trabalho e é muita papelada. Além do
mais, há velhoss doente para quem o dinheiro poderiam ser destinado, pois eu não quero. Este
fenômeno sobressai ainda mais nos EUA onde as pessoas têm toda a tradição de autonomia individual,
de fazer por si mesmo, deixando portanto a maioria de reivindicar certos direitos.
Cloward e Piven descobriram o seguinte: se nós conseguirmos obter o apoio de pelo menos 50% dessas
pessoas que têm o direito mas que não estão na previdência social, e nós as inscrevermos no sistema, a
previdência social vai cair porque ela não tem dinheiro para sustentar e daí nós criamos uma crise
social. Eles inventaram e fizeram. Agora essas pessoas já estão inscritas e querem os benefícios que
vão muito além da mera sobrevivência e assistência médica. Um sujeito pé-rapado e sem emprego tem
o direito de comprar uma casa de US$ 240.000, financiada pela previdência, de trocar de carro todo
ano, etc.. As pessoas não queriam esses direitos, mas agora elas querem. Então criou-se retroativamente
uma rede de interesses que no começo um determinado grupo afirmava representar, mas que na
realidade não representava ninguém, e tratava-se apenas de um grupo de agitadores.
Praticamente todas as políticas que estão em curso no mundo são deste tipo. Vejam, na Inglaterra, a
previdência social votou uma lei — na realidade não foi votado, foi uma decisão administrativa — que
mulçumano com quatro mulheres tem direito à pensão para as quatro mulheres. Pior: a pensão não é
entregue para as mulheres, é entregue na mão dele. Quer dizer, se ele quiser torrar todo o dinheiro, ele
torra. Vocês imaginem o número de pessoas que, a partir daí, declaram-se mulçumanos para ter direito
a quatro pensões. E quando este número de pessoas alcança um certo volume, temos aí o interesse
montado. Agora não dá mais para voltar atrás. É assim que se fazem as coisas hoje em dia. Ou seja, o
número de pessoas que estão se oferecendo para resolver problemas inexistentes, para representar
categorias sociais inexistentes e que retroativamente criam então os interesses que as mantêm no poder
é imenso.
Vocês vejam então o efeito letal que filosofias falsas e fraudulentas têm a longo prazo. Vejam que nem
Wittgenstein nem Heidegger jamais podem ser cobrados mediante o confronto entre o que eles estão
escrevendo e as suas experiências reais. Ninguém lhes perguntou, por exemplo, esta pergunta que eu fiz
aqui: como se tomou conhecimento da existência do discurso, sem ter acesso a uma coisa em si mesmo,
uma coisa pré-discursiva chamada som? Nunca perguntaram isso quando trata-se de uma pergunta
elementar que poderia ser respondida examinando-se a si mesmo, a sua própria história como eu estou
fazendo aqui, vendo como as minhas ideias foram chegando na minha cabeça.
Claro que isso aqui eu começo só na idade adolescente. E não estou narrando, estou só colocando o
nome dos capítulos. Se eu fosse escrever uma autobiografia intelectual, eu teria de passar por tudo isso
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aqui, mas teria de recuar antes, mencionar o negócio da liturgia. E antes da liturgia, outras coisas que
eu fui percebendo antes como, por exemplo, aqueles depoimentos que eu coloquei no blog: “Filósofos
Mirins”. Eu teria de saber de onde eu tirei as minhas próprias ideias desde o substrato existencial. Essas
pessoas nunca fizeram isto. Elas consagraram a paralaxe cognitiva como se fosse uma obrigação e
estão impondo-a como norma. [01:20]
Então constatei a presença desse elemento profundamente desonesto e fraudulento nessa filosofia,
embora no tempo em que eu estudava o marxismo nada me parecia fraudulento, mesmo quando me
parecia errado. Porém, foi neste momento que eu perdi todo e qualquer respeito pelo establishment
filosófico acadêmico. Percebi que o establishment filosófico acadêmico não tinha nada a dizer e,
provavelmente, tudo o que se produziu nessa esfera nos últimos séculos está contaminado e serve para
manter as pessoas num estado de alienação em relação a sua experiência real.
Neste caso, nós temos de buscar outra coisa, de ver aonde nós perdemos o fio da meada e o que foi
sendo deixado para trás. Foi aí que me caiu nas mãos um livro precioso chamado Les Conditions de
l’Esprit Scientifique (As Condições do Espírito Científico) do Jean Fourastié, onde o autor vai
observando que o progresso do conhecimento é acompanhado pari passu por um progresso do
esquecimento, ou o progresso da ignorância. Em certos momentos existe uma mutação do cenário
cultural inteiro e do debate público, de modo que, embora aquilo que se dizia antes não tenha sido
refutado ou impugnado, perdeu-se o interesse por aquilo e começou-se a falar de outras coisas.
Deixe-me ver se eu trouxe um outro livro que eu queria mencionar para vocês. É o livro de Philippe
Revière e Laurent Danchin, “Linguistique et Culture Nouvelle” (Lingüística e Nova Cultura),
publicado em 1971. Vejam o que autores dizem em 1971 :
Duas culturas enfrentam-se hoje em dia. De um lado, a cultura tradicional, aquela que se afirma ser
fornecida pelo sistema escolar. Dizemos “se afirma” pela razão de que o sistema escolar já está
profundamente alterado em relação àquele que era há algum tempo atrás. Essa cultura repousa de grosso
modo sobre a distinção clássica entre uma ordem científica e uma ordem literária, mas em princípio com
a preponderância desta última [isto se refere à cultura literária da França]. Este espírito literário, que
subjaz toda linguagem desta cultura, toma emprestado os seus modelos da filosofia tradicional, da
literatura e do sistema clássico das artes, pintura, teatro, música clássica, etc..
De outro lado, temos a cultura nova, extra-escolar, cuja a infra-estrutura está diretamente ligada à
revolução tecnológica e científica. Esta cultura em pleno desenvolvimento cria os seus modelos num
novo sistema das artes: cinema, história em quadrinhos, design industrial, música pop, arquitetura,
urbanismo, etc. Ela toma emprestado as suas técnicas de pensamento da linguagem das ciências, das
matemáticas modernas, da física, biologia e ciências humanas.
Este enfrentamento de duas culturas, de duas linguagens, abre uma verdadeira crise que só a geração,
moldada desde a infância pela mass media, vive existencialmente em seu nível mais significativo.
Ou seja, há uma crise, mas só o pessoal que já está dentro da nova cultura percebe o conjunto na sua
maneira mais significativa. Ora, mas se se entra dentro de um novo campo cultural, perde-se de vista o
anterior. Não há acréscimo, mas uma troca. De repente as pessoas são formadas de outra maneira, com
outra linguagem, com outros critérios, criados desde produtos muito recentes que não foram testados ao
longo das gerações. Por exemplo, a cultura anterior constituía-se na base de modelos que o tempo havia
testado, e de repente temos a lógica matemática e uma história em quadrinho. Eu encontrei no mundo
acadêmico tantas pessoas que tinham alta formação científica, mas cuja leitura literária era realmente
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constituída de histórias em quadrinhos e que acreditavam realmente estar vivendo dentro de uma
atmosfera de alta cultura. A cultura anterior havia se tornado incompreensível para eles.
São desses processos dos quais Jean Fourastié faz referência. De repente há uma substituição e um total
esquecimento de modo que não a pessoa sequer é capaz de relacionar o que está vivenciando com a
situação anterior de onde aquilo proveio. Ou seja, a sensação da nova cultura e de progresso cultural é
obtido à custa do esquecimento sistemático das origens da própria situação na qual a pessoa está
vivendo.Notem aqui:
Para os jovens que notam uma defasagem completa entre a sobrevivência oficial de uma linguagem de
uma cultura peremptas e daquilo que tende a se transformar no novo ambiente, trata-se de trabalhar para
substituir uma problemática morta, igual, e inadequada à nova realidade por uma problemática cujo
critério de validade torna-se a sua adequação ao real.
Adequação ao real quer dizer adequação à nova situação. Então por que a problemática anterior está
morta? Porque nós estamos vivendo dentro de uma outra, e só vale aquilo que seja adequado a nova
situação que nós mesmos criamos. É a hegemonia da mediação discursiva. Ou seja, nós criamos um
novo campo discursivo que passa a se tornar a atmosfera na qual nós vivemos realmente, e daí nós
dizemos que só vale os produtos culturais que são adequados à nova situação, que nos permitem
expressar o que nós estamos vivendo dentro desta nova situação. Isto é um progresso do conhecimento?
Não, isto é um esquecimento, uma neurose, uma doença, evidentemente.
E no entanto, Thomas Kuhn, no livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”, mostra que todas elas
se passam exatamente assim. Diz ele que isso é maravilhoso. Por que criar repentinamente uma nova
situação discursiva, torná-la uma pressão real sobre a pessoa e criar novos produtos discursivos para
expressá-la, tendo de esquecer rapidamente a velha, é um ganho? Por que isso é um progresso? Não
temos como saber, porque só é possível o progresso se pudermos comparar com o que havia antes.
Comparar desde o ponto de vista da nova situação não faz sentido.
Anos atrás eu proferi aquela conferência na Unesco (veja em que lugar eu fui proferir essa conferência.
É como se estivesse a pregar o Evangelho num bordel. Na conferência, quem era o mais excluído dos
excluídos era eu), em que eu dizia que é muito fácil enxergar o passado desde o ponto de vista do
presente. Mas será que o passado não tem nada a dizer sobre nós? Quando nós fazemos este
experimento movimental com Platão, por exemplo. Eu sei tudo o que se diz de Platão hoje, mas Platão
diria o que daquilo que estamos fazendo agora? Com frequência, descobrimos que os intérpretes atuais
de Platão estão entendendo Platão menos do que Platão entenderia os intérpretes atuais. Platão cria
conceitos e esquemas que permitem explicar o que os intérpretes atuais estão fazendo, mas eles não
conseguem explicá-lo. Essa experiência eu tive inúmeras vezes na vida.
Por exemplo, toda essa questão da arbitrariedade do signo, que é o dogma número um da lingüística
moderna inaugurada pelo Ferdinand de Saussure. Não há ligação intrínseca entre o signo e o
significado, muito menos com o referente. [01:30] Essa questão já era discutida no Crátilo de Platão, e era
discutida de tal modo que se chegava à conclusão de que alguns signos são arbitrários, outros não. Esta
conclusão é uma solução muito mais adequada do que se proclamar dogmaticamente a arbitrariedade
do signo e continuar raciocinando a partir daí.
A questão, por exemplo, do simbolismo natural ocorreu-me aí. Se todo o signo é arbitrário, então todos
os símbolos que aparecem nos ritos e nos mitos das várias religiões e culturas têm de ser arbitrários.
Mas será que todos os signos são arbitrários? E eu descobri que tinha um símbolo que não podia ser
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arbitrário de maneira alguma, que era o símbolo do sol tomado como significador da inteligência e do
conhecimento ou da consciência de um modo geral. Por quê? Quando não havia luz elétrica e não havia
ainda o domínio amplo do fogo, o sol permitia que as pessoas vissem e a ausência do sol significava
que as pessoas não podiam ver. Tomar consciência de que a pessoa vê é, neste caso, um ato que ocorre
instantaneamente à tomada de consciência da presença da luz solar. Não se trata de a pessoa tomar
consciência de uma coisa e da outra em separado, as duas coisas são a mesma. Isso é um exemplo de
signo natural. Ora, se existe um signo natural universal, claro que existem outros, e portanto os signos
não são arbitrários. Em nenhuma parte o sol significa a ignorância ou as trevas.
Justamente esta questão do simbolismo natural foi o que mais me chamou atenção nos estudos de
astrologia e alquimia, pois trata-se de um imenso sistema de símbolos que está mais ou menos
uniformemente presente em todas as culturas. Aquilo certamente é uma chave preciosa para o
entendimento de todo simbolismo cultural do mundo, porque nós estamos todos dentro do mesmo
sistema solar, vendo os mesmos planetas, vivendo os mesmos ciclos dentro da mesma temporalidade
astronômica. E esses estudos então abriram-me para a ideia — que depois eu ia encontrar em Schelling
— de que de fato nós vivemos dentro de um imenso campo discursivo, mas este campo discursivo não
é o universo da cultura, é o universo propriamente dito. Quer dizer, não existe um elemento na natureza
que se esgote em si mesmo.
Vamos voltar um pouco ao Josiah Royce. Eu não posso captar uma única individualidade, nem a
individualidade de um mosquito ou de uma folha, nem pelos meus sentidos e nem pela razão. Como
então sei que se trata desta folha não de outra? Como eu apreendo da folha a sua individualidade? A
presença física da folha e o conceito que eu tenho de folha simbolizam a existência real dela no tempo
e no espaço. Existência real que não é acessível a mim, que eu não posso conhecer como uma
totalidade, mas que eu de certo modo conheço porque conhecer qualquer coisa significa conhecê-la
desta maneira. Se eu não apreendo a individualidade, nada apreendi. E, no entanto, eu não consigo
explicar para mim mesmo como eu apreendo a individualidade.
Para mim estava claro que não existe, em todo o campo do universo que está acessível a nós, nenhum
ente que não seja por si mesmo um símbolo da sua história inteira, da qual fazem parte muitos outros
objetos. E daí a famosa ideia do Leibniz da mônada: cada singularidade é uma mônada que contém na
sua estrutura tudo aquilo que a aproxima e separa de todas as outras individualidades. Ou seja, uma
folha tem em si todas as diferenças que a separam de todas as outras folhas e que a tornam idêntica a
elas no que diz respeito à espécie a que pertence. Este sistema de semelhanças e diferenças está inteiro
dentro de cada ente. Assim cada ente simboliza ao seu modo o universo inteiro.
Nós estamos realmente dentro de um imenso campo discursivo, mas não é o discurso humano, pois o
discurso humano não tem esse poder que certas pessoas creêm ter. O discurso humano só é possível
porque existe em volta o discurso da própria natureza, que não é um invento literário. Eu me lembro de
um trecho famoso do Georges Bernanos, no livro “L’Imposture”, no qual ele vê que foi preciso o ser
humano decair muito, degradar-se muito até o ponto em que os poetas, em vez de captarem esse
discurso da natureza, usam os entes da natureza como símbolos postiços dos seus próprios sentimentos
ocasionais. A natureza torna-se um instrumento da expressão da subjetividade de um homem que foi
abandonado pela mulher ou que perdeu o emprego. Bernanos diz: “Chegou no último grau da
babaquice universal”. Não, ainda há esse outro grau que é fazer do discurso humano, do falatório
humano, da tagarelice humana, a única realidade. Quer dizer, o império da mediação discursiva.
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Vocês vejam que eu coloquei essas coisas aqui em linha para vocês verem como toda a minha biografia
mental, por assim dizer, conduziu-me a entender essa coisa e entender a sua total malignidade. Foi
preciso uma vida inteira para isso. E é evidente que de tudo o que eu consegui explicar até hoje, eu só
disse um milésimo do que eu percebi. Mas eu não preciso explicar tudo porque vocês podem perceber
as mesmas coisas. Mas o modo de chegar a percebê-las é exatamente este que eu disse: absorver essas
influências uma por uma como um ator que absorve as características dos seus vários personagens e as
representa com total sinceridade, sem se deixar modelar por ela. O ator desenvolve, para cada
personagem que está representando, uma nova área da sua personalidade. Mas esta área não o esgota
todo, ele tem outras áreas que são outros personagens. Foi justamente aí que eu achei que estava
realmente preparado para absorver em profundidade as obras de alguns grandes filósofos que eu tinha
antes lido superficialmente. Foi aí que eu fui estudar seriamente Kant, Descartes, Fichte, Schelling,
Hegel, Leibniz, Husserl, etc..
Agora vejam o mar de influências culturais que eu tive de receber antes para daí eu poder montar na
minha cabeça um personagem chamado Kant, outro personagem chamado Descartes, etc.. Não é só
entender os textos. Porque, na outra aula, eu expliquei que entender textos é um milionésimo. Se não se
consegue apreender a percepção que o sujeito teve realmente, não se entendeu o que ele está falando,
entendeu-se somente o texto. E daí, na hora que se apreende o texto, pode-se até dizer: “Só tem texto
no mundo, tudo é texto, então se eu sei o texto, eu sei tudo”, principalmente se se imbuiu de
Wittgenstein, Saussure, Lyotard, Derrida, etc.. [01:40]
[Intervalo]
Antes de começar as perguntas, tem um item que eu prometi explicar na aula e não expliquei. Quando
estudamos a história da evolução do pensamento marxista, partimos da afirmação de uma objetividade
científica absoluta — ou seja, Marx acreditava estar descrevendo a sociedade como ela realmente é,
partindo de uma base material que é a apropriação da natureza e a sua transformação em bens pelo ser
humano. Após um século e meio de evolução, chegamos ao ponto em que não há mais objetividade
nenhuma na sociedade, não há base material alguma, que há apenas a sociedade concebida como um
universo de discurso. E perguntamos o que pode haver de comum entre uma coisa e outra.
Ora, é muito simples: o que há de comum, primeiro, é a inversão revolucionária e, segundo, o fato de
que, como eu já afirmei inúmeras vezes, ao longo do movimento revolucionário não se pode encontrar
nenhuma unidade no nível dos discursos ideológicos, e nem mesmo das propostas concretas. O que se
encontra é a unidade da lógica interna da coisa baseada nas três inversões e, evidentemente, o fato de
que a própria história do partido comunista e outras organizações revolucionárias confirma o que está
dizendo Ernesto Laclau: ser uma criação retroativa de um interesse que os sustenta.
Vocês imaginem, por exemplo, o número de pessoas no mundo cuja sobrevivência, subsistência,
função profissional, posição na sociedade, etc. dependa da organização revolucionária. É uma multidão
inesgotável. Se caísse o movimento revolucionário, todas elas perderiam o emprego e a sua posição
social. Elas não podem viver sem isso e por isso mesmo a necessidade de autojustificação leva-os a
extremos como se verificam no Laclau, ou às vezes piores ainda.
Esses dias eu estive lendo um livro que é uma longa entrevista com Antonio Negri, que é
provavelmente o maior cérebro do movimento revolucionário atualmente, intitulado Goodbye Mr
Socialism (Nem o Fidel Castro não é mais socialista), e eu vi que existem duas maneiras de mentir,
ambas igualmente eficientes, mas em planos diferentes. Uma maneira é falar quinhentas verdades e
injetar uma mentira no meio, que será ignorada por conta da credibilidade do resto e porque ninguém a
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não examina. Esta mentira funciona como um vírus: é pequena, mas quando bem colocada acaba
gerando efeitos grandes a longo prazo. E existe outra maneira — vamos dizer que a primeira maneira é
a contaminação, um processo chamado contaminação —, e o outro processo chama-se intoxicação. A
intoxicação ocorre quando se fala tantas mentiras ao mesmo tempo que o cérebro do ouvinte não
consegue acompanhar e acaba aceitando aquilo por uma espécie de efeito avassalador.
E eu vi, na entrevista do Antonio Negri, que ele mantém a média de pelo menos três mentiras por
página. Mentiras gravíssimas que, para se desmentir cada uma elas, haveria de escrever dez, quinze
páginas para se provar que ele está mentindo. Ele conta com a dificuldade de contestação. São mentiras
difíceis de desmontar, e ele coloca uma série delas. Este é o efeito da intoxicação. Fica-se intoxicado
com aquela coisa e não se consegue reagir àquele conjunto. Esse pessoal usa abundantemente as duas
formas, mas evidentemente a curto prazo a intoxicação funciona mais.
O movimento revolucionário é uma exemplificação disto. Em parte eu posso dizer que essa análise do
Ernesto Laclau projeta a estrutura do próprio movimento revolucionário no restante do mundo social. O
movimento revolucionário de fato funciona assim e sempre foi, desde o tempo de Karl Marx, como
afirma Laclau, a efetivação de uma hegemonia discursiva e a criação retroativa do interesse que a
sustenta. Sempre foi isso, mas não se dizia que era isso, dizia-se que era outra coisa. Agora o que
Laclau fez foi esclarecer o movimento revolucionário para si mesmo, de modo a incrementar a sua
eficiência no instante em que, em 1985, ele parecia estar se desmantelando. Graças à inoculação desta
nova estratégia, o movimento revolucionário pôde-se levantar.
Os escrúpulos marxistas que o movimento revolucionário ainda podia ter, no sentido de acreditar que
ele se baseia em interesses sociais pré-existentes, foram jogados no lixo: não precisa ter interesse social
nenhum ou ter classe social nenhuma. O movimento revolucionário funciona independentemente da
estrutura de classes, ele não tem nada a ver com a estrutura de classes. No começo foi um pretexto que
ele usou, mas agora não precisa nem mesmo usar esse pretexto. Quer dizer, pode usar da boca para
fora, para os outros, mas internamente eles sabem que não representam interesse social nenhum, mas
que, ao contrário, eles têm de criar este interesse social.
Aqui um aluno manda várias perguntas, eu vou responder a primeira e a quarta porque elas são muito
pertinentes e uma tem muito que ver com a outra.
Aluno: Asseverar-se que há um momento em que a alma imoral constata que ela vale mais do que toda
a história universal em seu conjunto capaz de abrangê-la e transfigurá-la. (...) Pertence a essa mesma
espécie de certeza aquela regra revelada pelo seguinte trecho do Upanishad, evocado por
Schopenhauer: “Sou todas essas criaturas em conjunto e fora de mim não há nenhum outro ser”?
Olavo: A resposta é não. A alma imortal não é tudo. Ela é muito, mas não é tudo. Em primeiro lugar,
ela não é as outras almas imortais. As almas imortais distinguem-se pelo que umas sabem e outras
ignoram. E segundo, elas não são Deus. Deus continua sabendo muito mais do que elas. Há uma
diferença entre a mera imortalidade e a eternidade, há uma diferença efetivamente imensurável. As
almas imortais conservam a sua individualidade, isso é muitíssimo importante, elas não se dissolvem
num todo, não se transformam em Brahma. Nesse ponto a metafísica hindu está definitivamente errada,
essa dissolução final no Brahma não existe. A criação das almas imortais é uma decisão irrevogável de
Deus. É um ato de vontade pelo qual Ele institui e não desfaz mais, pode mandar para o inferno, mas
não vai desfazer, mesmo no inferno a alma imortal vai continuar existindo. A alma imortal transcende a
história inteira pela sua duração. Isso significa que do ponto de vista da alma imortal a história inteira
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pode ser vista como se fosse um capítulo. Ademais, não só esses depoimentos de pessoas clinicamente
mortas, mas também os depoimentos obtidos pelo outro lado pela outra técnica da parapsicologia, todas
elas mostram a consciência de individualidade, mostram a consciência das outras individualidades, as
pessoas que os indivíduos conheceram e continuam conhecendo, e reconhecendo tanto aquelas que
estão mortas, como as que estão viva. Em suma, a alma imortal não se desfaz, não se dissolve. Agora, a
diferença fundamental, fundamental...antes de eu explicar isso, eu vou ler a segunda pergunta que tem
relação exatamente com isto.
Aluno: Anexo uma pergunta do (...) quatrocento italiano (...) que mostra o triunfo de Santo Tomás de
Aquino na disputa com Averrois.
A disputa com Averrois foi justamente em torno disso, porque Averrois dizia que o intelecto agente é
um só para todos os seres humanos. Quer dizer que existe o intelecto em potencial, que está em cada
um, mas o agente é o mesmo. Então, é como se fosse uma visão “hinduísta” e Santo Tomás demonstrou
que não é assim. Isto é fundamental para compreender esta diferença que eu estou falando entre a alma
imortal e a absorção no Brahma. [1:50]
Aluno: Quando o sujeito tem a consciência de sua alma imortal e por algum motivo revolta-se contra
isso, revolta-se contra o seu jugo e contra Deus. Isso não seria o próprio princípio revolucionário e o
início de toda mentalidade revolucionária?
Olavo: Mas sem a menor sombra de dúvida. O problema não é a revolta ocasional, a desobediência
ocasional que todos nós temos durante a vida terrestre, não é a desobediência da sua alma empírica, é a
revolta fundamental, estrutural e irrevogável da alma imortal contra Deus. É isto que coloca o sujeito
no inferno. Por disso é que se diz que só vai para o inferno quem quer. Quer dizer, quando a sua própria
situação de alma imortal não é aceita. O indivíduo quer ser alguma outra coisa a mais. Provavelmente
ele quer ser isto aqui, quer ser o Brahma.
Aluno: Não é bem uma pergunta, mas um alerta para aqueles que, como eu, tenham passado pela
mesma situação. Eu assisti à aula 65, a história dos maus exemplos, e por ser um tema pertinente parei
para ler o estudo “Consciência e Estranhamento, Descartes e a Psicologia da Dúvida, parte 2”.
Certas passagens exemplificam o que acontece conosco quando temos contato com a aula do professor
e maravilhados saímos reproduzindo suas conclusões como se nossas fossem sem ter a capacidade
para justificá-las. O curso entrou em outra fase, sendo necessário primeiro atentar para outros
assuntos contidos naquele estudo sem as quais será difícil avançar.
Aluno: “Já no esforço do conhecimento teorético, ao contrário, não adianta termos a conclusão, o que
precisamos é a completa justificação da conclusão”(...)
Olavo: Note que quando ele completa a justificação, não quer dizer o argumento inteiro. Quer dizer
uma compreensão do trajeto interior inteiro que leva àquilo. A simples argumentação não basta, mesmo
porque a argumentação pode ser inventada na hora. Eu já tive essa experiência várias vezes. Quando se
pergunta para uma pessoa de onde ela tirou certa ideia ou crença que ela tem, qual é a origem delas. A
resposta normal seria contar uma história: leu isso, passou por aquilo, disseram-lhe aquilo, sentiu
aquilo outro e daí, chegou à mesma conclusão. Em vez de contar uma historia, a pessoa responde com
uma argumentação ou uma justificação. Conhecer a justificação não é tudo. Tem de conhecer o trajeto
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inteiro. Por isso mesmo é que evidentemente a investigação filosófica progride muito mais lentamente
do que qualquer outro esforço cognitivo humano. Meu falecido mestre, o professor Stalisnau Ladusãns
chamava isso a reflexão completa. O que ele chama a reflexão completa é rastrear o conhecimento
desde a sua primeira origem. E esse é o fundamento da credibilidade do conhecimento, ou seja, a
reflexão completa refaz tudo, e eu acrescento que enquanto fazemos isto, não estamos nos
desindentificando do conhecimento, mas, ao contrário, estamos assumindo-o cada vez mais. Daí o
aluno continua a citação:
Aluno: (...) Num curso de filosofia que pretenda ser efetivamente um curso de filosofia e não somente
um curso sobre filosofia, não é importante só o conteúdo que o professor está transmitindo, mas o
exercício do caminho que ele está trilhando, o seu modus operandi.
Olavo: Precisamente isto. É coincidência o aluno apresentar esta pergunta justamente no momento em
que eu estou refazendo parte da minha autobiografia intelectual como uma espécie de esquema, quer
dizer, uma macroreflexão completa. É claro que esse conjunto não é reprodutivo, já que eu não vou
conseguir escrever ou contar tudo isso, mas eu posso dar uma ideia aproximada do que foi e é o
processo de absorção profunda. Para isso usei como modelo o Stanislavski. É claro que eu já fazia isso
antes de aprender a técnica do Stanislavski, mas ela me deu a expressão formal do que eu já estava
fazendo. Ler e estudar uma filosofia é exatamente como diz Stanislavski: a criação de um personagem.
E esse personagem evidentemente incorpora-se no leitor não só como uma ideia que o leitor tem, mas
como um novo aspecto da sua personalidade. Inclusive os piores, inclusive os filósofos com os quais
não concordarmos de maneira alguma são aspectos nossos, porque nós temos aspectos antagônicos,
sempre temos. E não adianta odiá-lo, porque quanto mais se odeia mais eles estão lá. Há de se absorvê-
los num conjunto maior, mas aquilo tudo continua ali, no sentido que disse Santo Agostinho, que as
virtudes são feitas das mesmas matérias dos vícios. Se não quiser saber do vício, olhá-lo, tiver horror
dele, não há como poder pensar sobre ele e não se vai poder absorvê-lo e nem compreendê-lo, muito
menos resgatá-lo como um fornecedor de energia.
Aluno: É exatamente isso que eu procuro fazer, nisso estou concentrado apoiando-me em todos os
exercícios que o professor tem indicado, tentando alcançar a justificação da conclusão do que já foi
por ele investigado.
Olavo: Note bem: não se trata de argumentação, trata-se em primeiro lugar de uma meditação, quer
dizer, contar para si mesmo a sua própria história, lembrar; é muito mais uma operação de memória do
que de raciocínio, e vamos dizer de memória que envolve imaginação e afetividade também. Sem isso
não vai se conseguir absolutamente nada.
Aluno: Fica o alerta: não podemos pretender estabelecer um modus operandi quando ainda não somos
capazes de investigação filosófica e antes mesmo de apreender e assimilar o modus operandi do
mestre, o que inclui acima de tudo e conforme as suas palavras, o espetáculo da verdade.
Olavo: Você tem toda razão, quer dizer, eu não estou contando essa história aqui para eu me gabar.
“Olha, quantos livros eu já li, olha como eu sou bacana”. Não é isso. Se bem que se quiser ser um
filósofo, tem de ler isso aí, e tem de ler muito mais do que isso. Não é só ler. Note bem. Quando eu
estava lendo livros sobre o comunismo eu estava lá no partido comunista, quando eu estava com os
caras do teatro, eu estava lá estudando teatro, quando eu estava vendo os filmes do cinema, eu estava lá
trabalhando nisso. Quando eu comecei a ler os negócios da psicanálise eu fui lá, deitei no divã, falei um
bocado e ouvi um bocado de besteira durante muito tempo. Em todos esses casos eu procurei na
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medida do possível...quando eu estava nesse negócio da new age, arrumei um emprego na revista
Planeta, e eu estava metido com esses camaradas o dia inteiro, eu estava lá entrevistando ectoplasmas,
e assim por diante. Para absorver a atmosfera. Não tenha medo de se contaminar. Contaminar vai
ocorrer de qualquer jeito. Relações públicas do além. Procurar complementar as leituras com alguma
experiência vivida, com alguma identificação com as pessoas, uma identificação parcial com as pessoas
que estavam envolvidas naquela coisa. Agora, o que me espantava era a capacidade que as pessoas
tinham de se fechar dentro desses universos, como se fossem um ator que tivesse representado um
personagem uma vez e nunca mais conseguisse sair dele. Como um ator que representou Otelo, virou
Otelo, matou a mulher e assim por diante. Claro que isso é uma espécie de loucura. Por causa do medo
de se contaminar que muitas pessoas têm, elas já discordam prontamente e não querem saber. Mas
assim, não há como compreender. Há pessoas que entram e deixam-se comer pela coisa, mas o
indivíduo há de ter na sua cabeça essa visão do teatro e do ator, a consciência de que se trata de um
teatro, e de que a representação tem de ser sincera. Isso é importante. A representação é sincera, mas
não é total. O que se está representando ali é um aspecto da própria personalidade que corresponde
esquematicamente ao personagem, mas não é toda a sua personalidade, essa é a diferença entre o ator e
o personagem. A personalidade tem aquilo e mais alguma coisa, ao passo que o personagem tem
somente aquilo.
Aluno: Inscrevi-me na semana passada no Curso Online de Filosofia. Ouvi a primeira e a segunda
aula além da aula ao vivo do sábado que acompanho atentamente. Não sei como proceder, já que
começo com o atraso o curso.
Aluno: Por minha conta e enquanto não sei a resposta exata, vou proceder assim: ouvir cada aula
atentamente desde a primeira, sem me importar quando chegarei a alcançar os demais alunos.
Aluno: Fazer os exercícios propostos conforme vão sendo solicitados. Ouvir ao vivo as aulas que vão
sendo agendadas ainda que eu não tenha muita ideia do que está acontecendo. Neste caso,
obviamente, vou permanecer em silêncio até que eu esteja no mesmo estágio, no sentido de haver
cumprido com o programa até o presente momento dos demais alunos. Vou tentar entrar em contato
com algum aluno que já esteja participando do curso e pedir ajuda...
Olavo: É exatamente isso que tem de fazer. Se você assiste à aula atual, você tem a ideia de várias
coisas que você não está compreendendo perfeitamente, então você vai tentar rastreá-las. Você pode
rastrear ouvindo as outras aulas, mas, como é que você vai saber em que aula precisamente eu falei
daquilo? Você não sabe, então você pergunta para alguém. A pessoa te dá a dica. “Olha, isso está na
aula tal, na aula tal”, ou ao contrário, ela mesma te explica.
Aluno: Minha preocupação fica mais por conta das eventuais dúvidas que vão surgindo no decorrer
das aulas. Não sei exatamente se envio as perguntas na medida em que essas dúvidas vão surgindo, ou
se espero efetivamente estar em dia com as aulas. [2:00]
Olavo: Não, manda já. Se for alguma coisa que já foi respondida em aulas anteriores eu indico isso e
repito a explicação. Ora, repetição não tem aqui nenhum problema, ao contrário, até ajuda. Um outro
aluno também manda-me seu exercício do necrológio. Gostei muito, está muito bem feito. No instante
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em que você faz o necrológio, você já é aquela pessoa de algum modo. Lembre-se do que eu disse no
começo dessa aula: você mesmo não se conhece a não ser pelo aspecto teleológico, você vem de um
passado no qual você conserva o seu sentimento de identidade intacto, desde o primeiro momento, mas
é só um sentimento. Você realmente a cada instante só conhece um pouquinho de você mesmo, você
não pode se lembrar de tudo e, no entanto, tudo isso de que você não se lembra é verdadeiramente você
e é este todo que você foi, continua sendo e será é o que aparece no sentimento do eu. Você só tem a
unidade de um sentimento que é na verdade e como se fosse, não provavelmente um sentimento, mas
um ato de vontade que está se dirigindo à consecução da sua meta. Este é o seu eu verdadeiro. Agora,
note bem, este eu inteiro que você não conhece que você só conhece sob a forma, por assim dizer, do
sentimento e da decisão de ser você mesmo, isto é o que Deus sabe de você. Este eu é verdadeiro, os
outros que você vai vendo ao longo do tempo, são apenas aspectos momentâneos que passam. As suas
ideias que estão passando pelo seu cérebro agora, elas vão passar. Agora, este eu profundo, verdadeiro,
que você só apreende mediante este sentimento, este é o verdadeiro, este é o efetivo. O resto é
realmente ilusão. Então, quando as pessoas dizem que o eu é uma ilusão, eles não estão se referindo à
imagem de eu. O eu verdadeiro não é de ilusão de maneira alguma. Agora, curioso que nós... por mais
que as nossas ideias e nossos estados passem, nós mantemos este sentimento de unidade, ou seja, em
profundidade nós nos conhecemos, nós sabemos quem nós somos, mas nós não conseguimos dizer isto.
Para dizermos precisaríamos transformá-lo num pensamento nosso, mas não se trata de conhecer um
pensamento, e sim de conhecer a realidade. Lembre-se de que nada no mundo se conhece também a
não ser desta maneira. Tudo o que se vê, tudo o que se pensa é sempre fragmento, mas esse fragmento
remete a uma totalidade que não se está vendo, mas que se sabe que está ali. Como é que se sabe? Este
é o maior mistério do universo. Percebemos as individualidades porque cada pessoa é uma. Então, o
nosso maior poder cognitivo é a nossa própria identidade, não é as sensações, não é o cérebro, não é o
pensamento, não é nada disso, tudo isso são apenas instrumentos que usamos. Agora, tão logo a pessoa
começa a descobrir isso, ela tem mania de grandeza e pensa que essa subjetividade é tudo e que contém
tudo. Contém muita coisa, mas não contém tudo. Logo lá existe uma outra subjetividade que sabe o que
essa pessoa não sabe. Essas bilhões de pessoas que existiram, que estão existindo, e que continuarão
existindo, todas elas são reais, e nenhuma delas é a pessoa, pois essa pessoa não abarca nenhuma delas.
Eu disse que o que a pessoa abarca como totalidade é o processo histórico, porque o processo histórico
vai acabar um dia. Ele começou num certo dia e na verdade ele vive da sua própria extinção. Os
elementos de descontinuidade na história são uma coisa fantástica, e em vez de conter os seres
humanos, só contêm os seres humanos no seu aspecto terrestre imediato, mas não os seres humanos na
sua verdadeira dimensão. A duração de uma alma humana é ilimitada, ao passo que a da história é
limitada. Aqui, um outro aluno pergunta:
Olavo: "Eléments de Logique Classique", de François Chenique. Se você não sabe francês, aprenda.
Não tem tradução disso. Se alguma alma caridosa que sabe bastante francês quiser traduzir este livro,
eu arrumarei um editor.
Aluno: Seria possível contribuir com os livros do Mário Ferreira dos Santos a mais longo prazo sem
estar no primeiro grupo?
Olavo: É claro que é! Esse negócio ainda vai continuar muito. Aliás, daqui a pouco, quando terminar a
aula, vou ter um bate-papo com o pessoal dos grupos do Mário Ferreira dos Santos e estudos
estratégicos.
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Aluno: Já percebi que os ateus e os agnósticos adoram denominar-se imparciais e objetivos, qualquer
divergência feita por uma pessoa religiosa já é desacreditado como um pensamento resultante da mera
fé.
Olavo: Isso é de uma estupidez fora do comum. Há um filosófico católico chamado Jean-Luc Marion
que diz o seguinte: “nenhum conflito entre religião e ciência seria possível se elas não estivessem
discursando no mesmo terreno que é o terreno da razão”. O que é o Cristo? Cristo é o logos divino. E
nos Evangelhos, São Paulo diz claramente que tem de estar preparado para discutir, argumentar e
provar. Então a fé como um fetiche, a fé no sentido moderno foi inventado por Kant, não veio da
doutrina católica.
Aluno: Minha questão é: existe uma correlação necessária entre ateísmo, agnosticismo e concepções
éticas, como, por exemplo, o utilitarismo? Percebi que todos os ateus e agnósticos que eu conheço são
utilitaristas.
Olavo: O utilitarismo é o princípio de que é bom aquilo que torna feliz o maior número de pessoas, mas
é claro que o utilitarismo não é uma doutrina filosófica, ele é apenas um quebra-galho. O que é a tal da
felicidade? Se eu achar que a felicidade é levar martelada na cabeça, vou querer dar martelada na
cabeça do maior número de pessoas. O utilitarismo não é um critério filosófico real, ele é um critério
empírico, critério prático que no fundo nós não podemos rejeitar. Como critério prático ele não está
errado, claro, se se puder deixar duas pessoas felizes, é melhor do que deixar uma só, se puder treze é
melhor do que deixar uma ou duas, mas a resposta é: “A que está se referindo? No que consiste essa
felicidade?” Este seria o problema da ética.
O utilitarismo é como a Ayn Rand, não é um sistema ético, é um critério prático, um sistema de
autoajuda, na verdade. É uma justificação que se oferece para se sentir melhor. “Ah, estou querendo o
maior bem para o maior número”. O que é o maior bem? O Michel Foucault achava que o maior bem
era entrar no clube de sadomasoquismo e levar chicotada. É isso que nós vamos espalhar para todo
mundo?
Qualquer discussão ética, em primeiro lugar, tem de partir do que se chama a reflexão completa. Se não
se volta para as primeiras experiências do certo e do errado, nunca se vai entender nada, porque discutir
noções éticas em abstrato é coisa de vagabundo. Isso vale principalmente no que diz respeito à conduta
moral. Nunca se está discutindo na esfera meramente teórica, mas está-se discutindo ideias que vão ter
consequências. Então aí, principalmente aí nunca temos o direito de falar em abstrato e em nome de
uma mera função social de filósofo que se exerce. Tem de se falar de coração, com toda a sua pessoa,
com toda a responsabilidade, tem de responder pelas suas ideias éticas. As suas verdades têm de ser a
tradução do que você está procurando fazer realmente na vida. É muito fácil você falar do certo e do
errado, genericamente. Mas o problema é que justamente o certo e o errado genérico jamais existem. O
certo e o errado só vão aparecer no plano das ações concretas porque o resto é tudo teoria. Em teoria
tem algum problema pensar em alguma ideia errada? Não, não tem nenhum problema. Pode pensar o
resto da sua vida, desde que não se acredite nela. [2:10] Nós pensamos em muita coisa na qual nós não
acreditamos. Quando alguém diz: “Não, você está falando em nome da sua fé religiosa, você está fora
da discussão”, você tem de responder: “Prove isto. Prove que eu o que eu estou dizendo é um elemento
de fé. E o que você quer dizer com fé?” Às vezes a pessoa não tem a menor ideia. Se ele próprio define
fé como crença cega, eu digo: “Olha, isto não é uma definição, isto é apenas um insulto, porque isso
não corresponde ao exercício efetivo da fé que vemos nas religiões”. Isso é um teste. Eu já fiz esse
teste. Perguntem para cem crentes: “Deus geralmente atende as suas preces ou Ele não atende nunca?”
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Eles vão dizer: “Ele atende quase sempre”. Agora, perguntem para cem socialistas: “O socialismo
atendeu às suas expectativas?” Cem vão dizer: “Não, não atendeu, mas atenderá”. Isso é a fé. Então
você pode dizer: “Olha, eu conheço esse negócio por experiência e você não tem experiência nenhuma,
então o que você está fazendo é acreditar que se você tivesse fé, seria assim ou assado, e isso aí é o
quê? É uma ato de fé, uma hipótese na qual você está apostando, chutando completamente”. Na aula
passada, eu mostrei aqui.
Aluno: Você sugeriu uma sequência para a leitura dos livros de Aristóteles, gostaria de saber se é
possível de fazer o mesmo com os livros de Platão.
Olavo: Com relação a Platão, a cronologia dos escritos é mais ou menos conhecida, e há certa
vantagem em seguir essa cronologia. No caso de Aristóteles a cronologia é bem mais duvidosa, mas no
caso do Platão, eu acho que as conclusões gerais seguidas em quase todas as edições de Platão são
perfeitamente válidas. Mesmo porque alguns diálogos supõem de certo modo a leitura dos anteriores. É
fácil de ver que não se vai poder entender direito a República se não se entendeu outros livros antes,
principalmente as leis, que é o mais difícil e a culminação da obra de Platão. Procure qualquer edição
boa de Platão. Por exemplo a edição da Pleiade, e agora saiu uma edição americana num volume único.
Eles seguem mais ou menos essa ordem cronológica que eu recomendo que você siga. Principalmente
no caso de Platão. No caso de Aristóteles, toda tentativa de rastrear a biografia intelectual de
Aristóteles tem falhado. É a famosa tentativa do Werner Iaeger: “Não sabemos qual foi a evolução
intelectual de Aristóteles, nós só temos pedaços: uns pedaços aqui, um pedaço ali, um pedaço acolá”.
Mas no caso de Platão, toda a obra tem um fundo autobiográfico, ele está falando de pessoas que ele
conheceu. Em parte ele conta a história, em parte ele inventa, mas esse fundo autobiográfico está lá
permanentemente. Por isso a conveniência de ler em ordem cronológica.
Aluno: Eu estava lendo e relendo o manifesto do Mário Ferreira dos Santos, “A invasão vertical dos
bárbaros“ e me surgiu a pergunta: como foi essa passagem daquele Mário da dialética trágica dos
primeiros escritos para o Mário escolástico?
Olavo: Isto é um mistério. Eu já me fiz essa pergunta mil vezes e não encontro resposta, porque o
Mário teve aquele estalo da filosofia concreta e de repente começa a escrever coisas num nível que é
incomensurável com o anterior. E de repente ele aparece conhecendo autores que na primeira fase não
dá sinal de conhecer, como por exemplo, a escolástica portuguesa, os escolásticos inteiros.Dá a
impressão de que ele leu tudo nisso num ano, porque ele não cita nada anteriormente. E é curioso que
tudo isso aconteceu tão rápido que o próprio Mário nunca teve tempo de fazer o que eu estou fazendo
aqui, quer dizer, de rastrear o caminho de volta. Tanto não teve que ele às vezes tenta nos livros da fase
final reenxertar e reaproveitar os textos dos livros da juventude, mas modificando-os ao ponto de botar
“sim” onde estava “não”. Ele estava aproveitando como se fosse apenas a carcaça do texto e colocando
outro conteúdo quando o melhor seria esquecer tudo aquilo e escrever tudo de novo. Mas de qualquer
modo, a produção intelectual do Mário é de uma tamanha mixórdia que não deu tempo de parar pensar
no que ele estava fazendo, não deu tempo mesmo. Eu estou com 63 anos agora, o Mário morreu com
62. Só agora que eu estou começando a pensar essas coisas, a refazer o passado. Ele entretanto não teve
tempo de fazer isso.
Aluno: Não estou na força tarefa para a edição do Mário Ferreira dos Santos, mas gostaria de saber
se os livros avulsos como Curso de Oratória, Convite à Filosofia serão publicados.
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Olavo: Em princípio não, porque eles não fazem parte da Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Tem
vários livros que ele escreveu antes e outros que ele escreveu já na segunda fase, mas que não fazem
parte da Enciclopédia, sobretudo esses livros de ordem prática, que seriam quase de autoajuda como o
Curso de Oratória e Retórica. Em princípio nós não vamos mexer com isso, mas terminada esta
primeira batalha, não custa voltar atrás.
Aluno: Para eu que tento emergir de uma cultura que só concebe o conhecimento como algo na
consciência e gerada a partir de uma relação sujeito-objeto, é difícil conceber a teoria do
conhecimento que em suas apostilas leio com a máxima atenção possível. O conhecimento como algo
que está em tudo, como uma troca de informações acessíveis se bem entendi até uma pedra, em união
indissolúvel com o ser, tudo isso é novidade para a minha ignorância. Você poderia discorrer um
pouco sobre o tema?
Olavo: Bom, esse é o tema, por assim dizer, schellingueano. Entre o mundo e o espírito humano existe
uma espécie de complementaridade, não se pode dizer que existe conhecimento somente na mente
humana. Se o conhecimento tivesse somente na mente humana, então cairia no negócio do império da
mediação discursiva. Aliás, até a expressão “mediação discursiva” já é um pouco vigarice, porque se
for uma mediação tem algo do lado de lá, mas se a mediação for onipotente e desapareceu o referente,
não há mediação alguma, só há o discurso, na verdade. Qual é efetivamente a relação que existe com o
objeto? A relação é a seguinte: cada objeto que existe contém um conhecimento em si mesmo. Os
objetos de qualquer ciência são depósitos de conhecimento. Ou seja, todas as leis da mineralogia estão
nos minerais, todas as leis da botânica estão nos vegetais, e assim por diante. O que nós fazemos é
extrai-las dos objetos com maior ou menor acerto. Notem que, quando as próprias ciências da natureza
caíram nessa nova epistemologia de Thomas Kuhn, Feyerabend, Popper, acabou-se a noção de ciência.
O que há é apenas um consenso acadêmico. “Hoje nós concordamos em pensar assim, amanhã
podemos pensar outra coisa completamente diferente”. Isso quer dizer que não se pode mais falar
sequer de progresso, porque a qualquer momento tudo pode ser derrubado de novo, e não há mais
diferença entre as ciências e qualquer outra discussão. Mas ao mesmo tempo em que os acadêmicos
mesmos reconhecem isso, arrogam-se a autoridade de ser quem detém a capacidade de dizer o que a
realidade é ou não é. Como se dissessem: “Ah, as leis científicas não existem, mas tal e tal coisa vale
porque há uma lei científica”. É isso o que estão fazendo agora, e tudo virou uma palhaçada. [2:20]
Aluno: O senhor aconselhou-nos a só nos deixar levar pelas obras literárias como num sonho dirigido
sem que a nossa análise crítica interfira nessa experiência, mas sabemos que todas as artes de modo
geral e a literatura em particular apelam para os nossos sentimentos e emoções de modo que muitas
vezes podemos ser levados a nos identificar erroneamente com personagens que no contexto da
história assumem uma posição existencialmente falsa, ou seja, uma visão do mudo completamente fora
da realidade. Essa sedução sentimental, digamos assim, não seria justamente um elemento que nos faz
cautelosos diante da experiência literária despertando nossas defesas críticas? Assim não seria
necessária também uma espécie de educação sentimental à maneira de Flaubert, que nos deixe imunes
aos apelos emocionais de nossos sentidos mais baixos?
Olavo: Não, porque tanto os personagens quanto as obras desenvolvem-se como aspectos da sua
personalidade, mas não são os únicos aspectos. Você vai combater um com o outro. De certo modo
neutralizam-se uns aos outros, neutralizam-se e equilibram-se. Uma defesa crítica realmente não seria
conveniente e nem necessária, a não ser que você se deixe hipnotizar pelo personagem ao ponto de se
transformar nele. Mas não precisa ler nenhuma obra com tal profundidade, com tal devoção. Leia
exatamente como um ator que vai representar aqueles papéis. Terminado o espetáculo você volta a ser
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você mesmo. Não tem nenhum perigo. O perigo ocorre quando as pessoas lêem pouco. Criam-se
verdadeiras obsessões. Eu me dediquei profundamente a algum autor em particular somente com 30 e
tantos anos. Um ano de Kant. Fiquei um ano girando em torno de Kant. Mas eu já tinha muita bagagem
anterior, então por mais difícil que fosse eu me livrar de Kant, eu não tinha de ter medo de me
identificar com ele, pensar como ele. Porque eu sabia que pensava como ele em certas horas e depois
voltava ao normal.
Aluno: Não sei se entendi bem, mas você nos sugere que nos coloquemos no lugar dos autores quando
os lemos sem medo de sofrer uma contaminação. Li certa vez em algum texto de João Pereira
Coutinho que o autor Jeremy Brett, que interpretava o Sherlock Holmes maravilhosamente,
literalmente enlouqueceu com a sua entrega ao personagem. Parece que ele não conseguiu se
desvencilhar do papel do detetive e voltar a ser ele mesmo.
Olavo: Quem mandou? Ele ficou dez anos fazendo só Sherlock Holmes, o que ele quer? Por que ele
não fez outras coisas também? O Jeremy Brett era um ator esplêndido, o que ele fez com o Sherlock
Holmes é inacreditável. Eu acho que ele realmente chegou a acreditar que ele era o Sherlock Holmes,
mas eu não recomendo que ninguém faça isso. Vejam o Sean Connery. O maior sonho da vida dele era
se livrar do James Bond, pois ele não aguentava mais aquela porcaria! De fato não é bom insistir muito
num só personagem.
Aluno: Como fazem os filósofos inteligentes mas mal intencionados para não cair no seu próprio
veneno?
Olavo: Eles caem, eles acreditam em tudo. Exatamente como o caso do Jeremy Brett, identificam-se
com o personagem. Wittgenstein, Lacan, Michel Foucault são todos um pouco loucos. Às vezes muito
loucos. São almas anormais, ruins, más, perversas. Precisamente por causa disso, eles entraram
realmente naquele universo e desconectaram-se do fundo indizível. Por quê? Porque dentro daquele
universo linguístico, eles têm mais segurança. Uma vez eu estava discutindo com pós-estruturalistas, e
apelei dizendo: “Mas você sabe certas coisas porque você viveu isso ou aquilo?”. Ele respondeu: “Eu
não desço do meu universo linguístico”. Eu é que não vou subir aí, eu não sou idiota, então é melhor
que ele fique aí, pairando no mundo sem pé onde o que ele está falando não tem realmente nada a ver
com aquilo que ele é, com o que ele sabe. Ou nós entramos nesse universo linguístico ou nós ficamos
de fora. Eu recomendo que todos fiquem fora, ou então, que entrem e saiam, pois a entrada é livre.
Agora, o problema com eles é que não se pode refazer a experiência interior deles. Às vezes chega-se à
impossibilidade absoluta. Isto o que ele está falando dá para pensar, mas não dá para ver, sentir, ou
acreditar. E ele também não acredita, ou pelo menos ele só acredita no momento em que ele está
falando. Não é sério, ele não está assumindo qualquer responsabilidade pelo que está dizendo. Então,
torna-se uma brincadeira, um conto ou uma história que ele escreveu. Ele acredita enquanto está
escrevendo, enquanto está envolvido naquilo, terminando, volta a ser ele mesmo. Mas o filósofo não
pode ser assim, o filósofo tem de falar com toda a seriedade, ser o personagem de sua própria história,
senão não haveria diferença entre filosofia e ficção. Essas pessoas são todos ficcionistas. Por exemplo,
quando Wittgenstein diz: “Quando você morre acaba o mundo”. Eu digo: “Ah, é? Vivencie isto se você
puder”. Ou quando ele diz que “Ninguém observa a sua própria morte”, quando todas as pessoas
observam. Por exemplo, se eu quero saber se alguém observa a sua própria morte, o que eu tenho de
fazer? Ou eu passo pela experiência ou eu tenho de perguntar a quem passou. Como é que eu posso por
mim mesmo, por uma canetada, afirmar uma coisa dessas? Ele não tinha interesse em saber do que ele
estava falando. Por que ele não foi procurar? Será que ele não sabe que existem milhares de relatos de
ressurreições? Será que não ouviu a história de Lázaro, por exemplo, na Bíblia? Ele tem de ter a
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referência, tem de saber se é assim ou não, mas ele não quer saber. Ele quer que seja assim porque é a
onipotência do discurso, “falei, está falado”. Quando as pessoas começam a agir assim, a sua sentença
torna-se uma fundação de um novo universo que começa a existir a partir daquela frase. É evidente que
o indivíduo não está bom da cabeça!
Aluno: Daquela frase a respeito da hegemonia apareceram-me duas coisas que vejo acontecer nos
dias atuais. O tal grupo hegemônico que diz representar a vontade popular ou de uma determinada
categoria não seria uma representação explícita da mentalidade revolucionária, que se acha
proprietária da verdade?
Olavo: Não, a categoria da verdade não existe, só existe o discurso. Eles não se acham proprietários da
verdade. A verdade não interessa para eles. É um jogo entre diferentes discursos, e o discurso torna-se
hegemônico. Para que eles se acreditassem detentores da verdade, seria necessário que acreditassem
que existe algo fora do discurso ao qual este se refere, por exemplo. É precisamente nisso em que eles
não acreditam. A contestação máxima disso é dizer o seguinte: “Você diz que vai conquistar a
hegemonia, mas você vai conquistá-la realmente, ou seja, fora do discurso ou só no discurso?” Se ele
disser: “Não, eu quero alcançar a hegemonia no plano do discurso, mas não do meu discurso, em sim
do discurso da sociedade”. “Ah, então há uma relação entre o seu discurso e algo que não é ele, os
discursos dos outros. Então você quer que o discurso dos outros fiquem realmente submetidos ao seu,
ou quer apenas proclamar no seu próprio discurso que você domina o dos outros? Você quer dominar
realmente, ou só no seu próprio discurso?”. Veja, o referente é inevitável, não tem como se escapar
dele. Abolir o referente é somente da boca para fora, não é uma experiência interior que se possa fazer.
Tentem fazer um discurso sem referente algum. Eu digo: “Não é possível, eu já tentei, não dá para
fazer”.
Olavo: Certamente! Tudo isto é criação de um interesse retroativo. Imaginem a situação depois de se
ter espalhado milhões de vacinas por aí contra uma doença inexistente. O que os vacinados vão dizer?
Eles vão admitir que foram feitos de trouxas? Jamais, eles vão defender a vacina. Tudo isso é muito
esquizofrênico. É esquizofrênico, é vigarista, é maligno, é estúpido, não merece respeito. Eu repito para
vocês: a mentalidade revolucionária é o maior flagelo que já aconteceu na historia humana, ela tem de
ser extinta, ela tem de sair do rol das ideias humanas aceitáveis. Enquanto não fizermos isso, não tem
jeito. Se de um lado um pessoa ou uma corrente pública pode partir da afirmação de que ela detém o
conhecimento certo e científico da realidade social objetiva, e dali a poucos anos ela mesma está
dizendo que não existe realidade social objetiva nenhuma, que há apenas discurso, e que vão criar os
interesses que vão nos justificar, e de outro esta corrente continua sendo a mesma, tendo unidade e
senso de solidariedade uns com os outros, então é claro que são um bando de vigaristas. Eles podem ser
qualquer coisa, mas só tem um ponto que eles não desistem: a hegemonia tem de ser eles. O
pressuposto é sempre esse: “o hegemônico sou eu”. O negócio é feito em benefício próprio e em
malefício de todos os demais. Agora, alguma vantagem secundária sempre pode oferecer. Não se pode
fazer o mal absoluto, algum benefício pelos menos tem de resultar daquilo. Os conservadores e liberais
não entendem nada, são os maiores burros de todos ao se indagarem: “mas o sujeito é comunista
mesmo ou está nisso só por interesse?” Isso não existe, eles estão pensando que um comunista é um
crente! Não é um crente. A crença dele já é internamente, em si mesmo, uma vigarice. Sempre foi
assim e sempre assim será.
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Aluno: Qual a relação entre a perda do lastro experiencial e a perda da capacidade de rexperienciar a
catarse de Aristóteles?
Olavo: Isso é fundamental. Por exemplo, a catarse é uma experiência interior curativa, uma experiência
que demole as suas defesas e mostra o erro e o pecado de tal modo que, a partir dali, já não será mais a
mesma pessoa. Se a pessoa não tem contato nenhum com este depósito do indizível, a catarse não é
possível, e não se pode curar uma pessoa dessas. Só tem uma coisa que os cura: a total humilhação. Eu
estudei isso. Às vezes eu humilho umas pessoas em público. E a pessoa pensa que eu estou fazendo
isso de maldade, não é, isto é terapêutico, eu faço isso por terapia, a única cura da mentalidade
revolucionária é a humilhação repetida. Repetida, repetida. Fazer uma vez só não adianta. Outro dia
contaram-me que um sujeito bateu no Requião. Eu digo, o único problema é que fazem isso uma vez
por ano. Se fizesse todo dia, ele curaria. Agora uma vez por ano ele esquece, ele inventa uma
historinha, saiu dizendo que ali: “Não, o que importa é a força moral”. Então ele refaz a fantasia, agora,
humilhando repetidamente, o sujeito cai. Vejam que o Fidel Castro, agora que ele está às portas da
morte, encontrou uma coisa que era mais forte do que ele, ele viu a luz, e descobriu que o socialismo
não funciona, que não era para sair matando homossexuais e que o Ahmadinejad é uma besta quadrada.
Olha, três verdades, assim, em poucas semanas, é um negócio fantástico! Foi porque o sujeito caiu.
Então quando se cai do pedestal descobre-se muita coisa, mas às vezes tem de ser forçado a isso.
Normalmente essa experiência catártica, um cristão procura-o o tempo todo. Se ele está se enganando,
está envolto no seu pecado, na sua vaidade, ele percebe toda aquela coisa e cai. Nós temos essa
experiência várias vezes. Eles cristalizaram, e você tem de quebrar a casca. Não adianta discutir
política com o indivíduo, não se trata de política. Tem de chegar para o sujeito e falar: “Eu não sou
contra a sua política, eu sou contra você”. “Ah, mas o socialismo...”. “Não interessa o socialismo, o
socialismo pode ser até uma beleza, mas você é que não presta”. E é um por um. Tem que pegar um por
um.
Aluno: Há relação entre o conteúdo existente por trás de um texto e o conhecimento individual
indizível?
Olavo: Sem sombra de dúvida. Você tem de chegar naquele indizível. Claro que tem sempre de levar
em conta o Martial Guéroult, pois não se pode falsificar o texto para adivinhar o indizível. Tem de se
fazer toda a análise do texto e penetrar um pouco além dele, tentar conhecer o autor pessoalmente,
como um ser humano real. Ele também pode se esconder atrás da sua identidade de professor e
camuflar tudo. Muitos fazem isso. Mas muitos não fazem, muitos escrevem de coração na mão. Lendo
Leibniz vemos um homem de uma sinceridade total. Não se vê Platão camuflando nada, nem
Aristóteles ou Santo Tomás de Aquino. Tem outros que camuflam como Descartes, que está cheio de
véus. Então eu sei que ele está mentindo, tem coisa por atrás. O que está atrás dele deve ser uma coisa
verdadeira. Eu investiguei e constatei que na realidade esse homem está tremendo de medo do
demônio. É esse o problema dele, e todo este universo dele é uma imensa camuflagem, ele está
achando que está enganando o demônio, mas está enganando a si mesmo.
Aluno: Gostaria muito e acho que é de interesse geral que o senhor falasse mais dos seus modos de
estudo: onde e quanto tempo, e alguma dica de método para ter uma comparação. Iniciar o estudo
com um problema, se o problema é algo específico, se é estudo de uma escola, coisas assim.
Olavo: Você vê pela própria narração que eu segui os estudos pela absorção de sucessivas atmosferas
culturais. É claro que os livros que eu li eram somente uma parte da atmosfera cultural hegemônica.
Quanto ao método específico para ler um livro...durante algum tempo eu segui o método do Mortimer
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Adler: requer-se muito tempo para praticar esse método, mas fazendo uma, duas, três vezes, o negócio
começa a acelerar dentro de você. O método aumenta a sua capacidade de percepção. Por exemplo,
quando Adler diz para marcar todas as palavras fundamentais, pois são palavras que se repetem ao
longo do livro e, portanto, são os eixos em torno dos quais está correndo a discussão. Às vezes é assim,
mas outras vezes, não. Mas esta capacidade de reter as palavras fundamentais é o que importa. Na
primeira vez você anota, na segunda, já não anota mais, e na terceira você já percebe imediatamente.
Esse método de algum modo automatiza-se e intensifica-se, e então você pode continuar seguindo com
o método do Adler. Depois você vai complementá-lo com outras coisas que vão aparecendo
espontaneamente para você. Leia cinco livros pelo método do Adler e depois sem método nenhum.
Você vai ver como o método já se incorporou e ele mesmo se enriquece. Enrique a si mesmo. Também
você não pode se esquecer do seguint: todo método visa a algum objetivo e ele é explicado pelo
objetivo. O método do Adler visa a criar um cidadão culto capaz de participar da vida democrática
americana, com consciência do que está sendo discutido. Este é o seu objetivo? Não. Se não for
exatamente esse o seu objetivo, então esse método não serve inteiramente para você. Você terá de
adaptá-lo. O aprofundamento existencial não faz parte do método do Adler, mas o método é um degrau
da escada, ajudando-o a chegar a isso. Se você quiser, por exemplo, contemplar a forma mentis do
filósofo que você está estudando, ou o estilo mental dele, [2:40] você deve imaginá-lo como se ele fosse
seu professor, como se tivesse vendo-o e, através da simpatia, da identificação profunda feita com
caridade, com amor ao próximo, chegar a entender o que o sujeito vivenciou. Mas em outros casos, isso
não é possível. O problema não é de o filósofo estar certo ou errado, o problema é que em alguns casos
a camuflagem é tal que não tem nada mais embaixo dela, é só camuflagem. Então não se consegue
chegar à experiência porque não há experiência, não há vivência interior. Ou seja, os autores não
acreditam realmente em nenhuma palavra que escreveram. Eles acreditam no momento em que
escrevem, porque a experiência deles naquele momento é a construção do esquema teorético. Mas
existencialmente eles não acreditam numa palavra daquilo. Eles não podem praticar aquilo. Não se trata
de hipocrisia, o que ele está escrevendo não é praticável por nenhum ser humano. A tal da
autobiografia do Descartes, por exemplo. Descartes não fez isso que ele está dizendo e ninguém pode
fazê-lo. Por que eu sei disso? Porque eu tentei fazer e vi que não dá. Do mesmo modo o Wittgenstein,
que diz: “Quando você morre acaba o mundo”. Três linhas depois ele diz que a contemplação do
mundo como totalidade finita é um sentimento místico. Eu digo, “Mas você não tinha morrido?” Nessa
totalidade finita você está vivo ou morto? Se está finito você já morreu. Então do que está falando? Não
é possível fazer isto, isso não corresponde a nenhuma experiência interior real. Isto pode ser pensando
no sentido de que pode ser dito, mas não pode ser feito. Então do que está falando? O que tem de se
responder para uma pessoa dessas? “Cala a boca, burro, você não sabe do que está falando”. Note bem,
não se trata de modos de estudo, nem de métodos de estudo. Estudo também é uma atividade quase
profissional, não é isso? Não é disso que estamos falando, nós estamos falando da formação de uma
personalidade, e, portanto, quando você vai ler essas coisas, você está tendo contato com outras
personalidades, com outras pessoas. Lembre-se de que são pessoas vivas. Você está conhecendo o
indivíduo e ele está deixando que você conheça o que vem dentro dele. De certo modo é uma honra.
Então, quando se absorve aquilo você não está apenas adquirindo estudo, você está criando uma nova
dimensão da sua personalidade graças à generosidade ou à intromissão deste sujeito que lhe permitiu
conhecer os seus pensamentos interiores. Especialmente aqueles que expressam esses sentimentos com
muita sinceridade, com muita translucidez e sem medo de que você descubra o que vai dentro dele.
Você lê um Santo Agostinho, um Platão, um Leibniz, está tudo aberto ali, não tem sacanagem, por
assim dizer, e quando tem sacanagem, você também tem de agradecer a sacanagem. “Mais um que me
enganou nesse truque, mas nunca mais”. Não tenha medo de se deixar enganar, se ele vai te enganar
uma vez daqui a pouco você vai perceber o truque e cair fora. Pensar besteira você vai de qualquer
modo. Acreditar em coisa errada você vai de qualquer modo. Mas se a pessoa tem medo da experiência
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cognitiva, ela não vai entrar nisso. “Não, eu tenho aqui a minha alminha pura, eu não quero me
contaminar”. Uma pessoa dessas é como aqueles meninos que inventavam um monte de mentiras
contra mim e terminavam assim: In Jesu et Maria. É lindo, o sujeito xinga-me em nome de Deus!
Mente em nome de Deus. Se você é uma alminha pura como aquelas, então eu recomendo o seguinte:
“Nunca saia da sua casa. Não olhe para ninguém, você pode ver uma mulher, uma perna de mulher, ter
a tentação, então é melhor ficar dentro de casa”. Agora eu acho que não é o caso, certamente não é o
caso de ninguém que veio aqui. Se vieram aqui é porque já estão na chuva para se molhar. Todos nós
vamos nos contaminar com todas essas coisas, porém será o método de quem se contamina
homeopaticamente; isso equivale a uma vacinação. Agora, se você ler um autor e desde a primeira
linha ficar bravo com ele, você não quer se deixar contaminar. Neste caso, você escapou daquela
contaminação naquele momento, mas as coisas que você leu e odiou ficam no seu subconsciente. Não é
possível que um dia você acorde às três horas da manhã dando razão para o autor? Isso me aconteceu
quando eu estava lendo Nietzsche. Eu não consegui evitar a antipatia à primeira vista, porque ele dizia
que era o anti-Cristo. “Não, isso é brincadeira, que anti-Cristo coisa nenhuma, ele é um coitado
sifilítico”, pensei. No início deu aquela antipatia. Porém, ele às vezes dizia umas coisas que eu meses
depois, mas constatava que ele tinha razão. Eu tinha de voltar a ler com toda a simpatia para poder
absorver. Nietzsche também tem esse problema, você consegue vivenciar muita coisa que ele diz, mas
você só consegue vivenciar coisas separadas. Quando você tenta montar um sistema filosófico do
Nietzsche e saber o que tem por trás, tem uma confusão dos diabos, mas na confusão ele tinha uma
sacação aqui outra ali às vezes geniais.
Olavo: Sim, especialmente a minha imaginação erótica, porque tinha várias modelos peladas, lindas,
maravilhosas, que a gente ficava lá olhando aquilo e povoou a minha cabeça de imagens maravilhosas.
Mas, seriamente a ideia de composição de estrutura, por exemplo, de perceber que, quando se faz um
desenho, não se desenha exatamente o que se está vendo, porque o que se está vendo não são traços de
lápis. O que vai se fazer é uma estrutura montada com traço de lápis, não com a impressão sensível, e
portanto é necessária uma dupla tradução. Tem-se o modelo, tem-se o esquema que se concebeu
baseado naquele modelo e daí tem-se o desenho. Na hora de desenhar fica-se pensando no quê? É no
modelo mental e não no modelo visto. O modelo real é para montar o modelo mental, e portanto a
impressão não é direta. E quando fica-se observando e tomando medidas, é só para fazer com que o
modelo mental seja mais meticuloso. Esse é o ponto onde muitos estudantes de desenho falham no
começo, eles prestam atenção demais no objeto, no modelo, se bem que algumas eram tão bonitas que a
gente tinha vontade de só ficar olhando e não desenhava coisa nenhuma. Mas eles prestam atenção
demais no modelo vivo e não conseguem conceber o seu modelo mental que é o que vai se desenhar
efetivamente.
Aluno: Outra questão que tenho é a seguinte: Noto que o senhor possui conhecimento de livros que são
publicados atualmente de diversas áreas de interesse. De que modo o senhor obteve essa informação?
Olavo: Conhecer a ciência da bibliografia é fundamental. Saber, por exemplo, a história de todos os
livros que foram publicados sobre determinado assunto e quais são aqueles que influenciaram mais o
outros, os que geraram outros livros. E se souber dessa lista inteira que sem ter lido um único daqueles
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livros, já se sabe muita coisa. Às vezes é mais importante fazer isto do que ler os livros. Por quê? É daí
que vai se saber o que tem de se ler para não perder seu tempo. Os livros citados em outros livros ou
que aparecem com muita frequência são livros que terão de ser lidos de algum modo. Às vezes não é
porque aparecem com muita frequência, mas porque aparecem em contextos decisivos, como por
exemplo, certos livros que têm a prova de alguma coisa fundamental. E se for preciso ter a certeza
sobre aquilo, vai ter de ir atrás desses livros. Tem de se deixar guiar pelo desejo de conhecer pela
pergunta que se está levando, e não pelos livros propriamente ditos. [2:50] Tem gente que até gosta de
ler. Eu odeio ler. Se tivesse um sujeito que me lesse toda essa coisa para mim, contasse-me, eu ficaria
gratíssimo. Muitas vezes aconteceu-me isso. Eu sei muita coisa do Szondi, mas eu só li dois livros dele.
O resto foi o Dr. Müller que me contou. Muito melhor, foi muito mais rápido. Não é gostar de ler, tem
de se gostar do conhecimento, do saber. E não de qualquer saber, somente daquele que vai se
incorporar na pessoa e vai constituir um aspecto da sua alma. É o que você vai ser como pessoa e por
isso o exercício do necrológio. Quem você quer ser? Em termos terrestres, evidentemente, não em
termos da alma imortal. Em outras palavras, o que você quer deixar para os outros? Você vai fazer com
que o seu trajeto nesta terra seja uma fonte do bem, da felicidade, do conhecimento, do equilíbrio para
muitas pessoas. Se é isso que você quer ser, então você está querendo fazer um negócio bom. E é isso o
que interessa. Essas especulações que começam na área da linguística e da lógica que vimos hoje e que
terminam nesta da hegemonia têm de ser explicadas para as pessoas, porque elas estão vivendo isso e
não sabem o que é isto. Isso está determinando a vida de milhões de pessoas, que caíram na arapuca
sem ter ideia de onde estão. Você tem de avisar: “Sai daí, meu filho”. Quer dizer, o interesse é esse,
não é o estudo, e nem mesmo o conhecimento em si.
Aluno: Gostaria de saber qual a abrangência do simbolismo expresso nas cartas do tarot. Poderia
explicar qual a interpretação narrativa na vida mesmo ou não tem?
Olavo: Não, não, aquilo tem um alcance simbólico imenso. Tem um livro publicado no Brasil chamado
“Os 22 Arcanos Maiores do Tarot”. O autor é anônimo, mas depois descobrimos que o livro é de um
padre alemão. O livro é uma verdadeira maravilha, e excetuando a defesa descabida que ele faz de Kant
no capítulo 2, eu acho o livro de uma utilidade extraordinária. O simbolismo do tarot é baseado na
alquimia e na astrologia, e é o mesmo simbolismo no fim das contas. Sem o simbolismo astrológico,
não dá para entender é nada, porque aquilo é uma espécie de gramática do simbolismo religioso e
universal.
Aluno: Onde vai dar o mundo em que professores explicam a impropriedade do uso da expressão “A
coisa está preta” como politicamente incorreta, ofensiva aos negros, e prova de racismo?
Olavo: Aí só falando como o Edson Camargo, “Professor, a situação está afrodescendente”. Uma vez
eu expliquei para essas pessoas: “no simbolismo das cores na tradição ioruba, o preto simbolizava tudo
o que não presta. E o branco, tudo o que era bom”. Será que os iorubas são racistas, antipretos? Quer
dizer somente que o simbolismo das cores é universal. O preto ou pode significar o que é tenebroso, ou
ele pode, quando aplicado no sentido cosmológico ou no sentido de que tudo é trevas, ser o mal ou
representar qualquer perigo; no sentido psicológico, pode simbolizar a abstinência e a humildade.
Quando se refugia, vira-se as costas ao mundo, imediatamente fica tudo preto, simbolizando a
austeridade e o ascetismo. É por isso que as batinas dos padres são pretas. Como todo símbolo, o preto
tem dois lados. Mas ele não vai escapar de um desses dois. Então, não diga mais que a situação está
preta, diga que a situação está afrodescendente e fica tudo certo.
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Por enquanto é só. Eu vou prosseguir aqui para ter uma conversa com o pessoal do grupo do Mário
Ferreira. Eu creio que já estão todos online. Depois com o pessoal do grupo de estudos estratégicos. É
dez minutos para cada um. Se os outros quiserem continuar ouvindo, podem continuar. Nós vamos
parar esse vídeo, e começar outro, mas quem quiser ficar online, pode ficar.