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Artigo

Dossiê Infância(s), gênero e sexualidades: Original


sobre resistências e (re)existências

VIOLÊNCIA SEXUAL NA INFÂNCIA: GÊNERO, RAÇA E


CLASSE EM PERSPECTIVA INTERSECCIONAL
Sexual violence in childhood: gender, race and class in intersectional
perspective

Cristina TEODORO
Curso de Pedagogia do Instituto Hum anidades e Letras
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (UNILAB)
Salvador, Brasil
[email protected]
https://orcid.org/0000-0002-0850-4014

Mais inform ações da obra no final do artigo

RESUMO
O artigo objetiva analisar ocorrências de violência sexual contra crianças e adolescentes, considerando a
intersecção de gênero, classe, raça e idade. Para tanto, em um prim eiro m omento, buscou-se compreender
o conceito de violência sexual e seus im pactos, posteriormente, foram utilizados com o base os dados
produzidos sobre violência e abuso sexual, com o recorde de gênero, raça e idade, divulgados pela
Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, para o período entre 2011 e 2017. Para a análise foram
utilizadas, com o referência teórica, a literatura sobre gênero, raça, classe e infância e, ainda, o conceito
de interseccionalidade, cunhado, além de outras autoras, por Kim berlé William s Crenshaw. Com o resultado,
ficou evidente que as m eninas negras, na faixa etária entre um e nove anos, sofrem violência sexual mais
prevalentemente e que, o índice entre aquelas que têm até cinco anos vem aum entando significativamente
no período entre 2011 e 2017. Do ponto de vista deste artigo, além da necessidade de divulgação dos
dados com o recorte dos m arcadores sociais m encionados – gênero, raça, classe e idade – é prem ente o
desenvolvimento de estratégias e a form ulação de po líticas que assegurem os direitos das m eninas negras,
com o crianças e sujeitos de direito.
PALAVRAS-CHAVE: Infância. Idade. Violência Sexual. Interseccionalidade.

ABSTRACT
This paper aim s to analyze occurrences of sexual violence against children and adolescents, considering
the intersection between gender, class, race, and age. Therefore, initially, we sought to understand the
concept of sexual violence and its im pacts, later, the data produced on violence and sexual abuse, with the
record of gender and race, released by the Health Surveillance of the Ministry of Health, for the period
between 2011 and 2017. For the analysis, we have used the literature on gender, race, class, and childhood
as a theoretical basis, as well as the concept of intersectio nality, coined by Kim berlé William s Crenshaw.
As a result, it has become evident that black girls in the age group between one and nine years old suffer
sexual violence and that the rates am ong those under 5 years old are significantly higher. From the point
of view of this paper, in addition to the need to disseminate data with the cut of the social m arkers
m entioned - gender, race, class, and age - it is urgent to develop strategies and form ulate policies that
guarantee the rights of black girls, as children and legal subjects.
KEYWORDS: Childhood. Age. Sexual Violence. Intersectionality.

Zero-a-Seis, Florianópolis, v. 24, n. Especial, p. 1582-1598, dez., 2022. Universidade Federal


de Santa Catarina. ISSN 1980-4512. DOI: https://doi.org/10.5007/1980-4512.2022.e87381
INTRODUÇÃO

Para Minayo (2006), a violência não é uma, é múltipla. De origem latina, o


vocábulo vem da palavra vis, que quer dizer força e se refere às noções de
constrangimento e de uso da superioridade física sobre o outro. No seu sentido material,
o termo parece neutro, mas quem analisa os eventos violentos descobre que eles se
referem a conflitos de autoridade, a lutas pelo poder e à vontade de domínio, de posse
e de aniquilamento do outro ou de seus bens. Para Chauí (1985), a violência não é uma
violação ou transgressão de normas, regras e leis, mas sim a conversão de uma
diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade, com fins de
dominação, exploração e opressão, que se efetiva na passividade e no silêncio por parte
da vítima. A violência tem relação com o poder, pois se um domina de um lado, do
outro está o sujeito dominado, violentado, ou seja, estabelece-se uma relação de forças
em que um polo se caracteriza pela dominação e o outro, pela coisificação. Porém, nem
a violência nem o poder são fatores naturais, intrínsecos ao ser humano. Assim, é
possível compreender que a violência é histórica e sempre o reflexo da sociedade que
a reproduz, podendo aumentar ou diminuir, conforme sua construção social nos níveis
coletivos e individuais.
A violência expressa-se nas relações sociais, nas formas de sociabilidade entre
os sujeitos e implica, sobretudo, relações desiguais e assimétricas e de abuso de poder.
O fenômeno da violência abrange diversas manifestações, que entre o abuso físico e o
psíquico, encontramos coação, constrangimentos, torturas, violações. Segundo Faleiros
(1998), a violência não pode ser entendida como um ato isolado, psicologizado pelo
descontrole, pela patologia, mas como um desencadear de relações que envolvem a
cultura, o imaginário, as normas, o processo civilizatório de um povo.
Na concepção de Minayo (2006), a violência é estrutural, ou seja, está
relacionada às características socioeconômicas e políticas de uma sociedade, em um
determinado período histórico e que traz, no seu interior, a exclusão social e seus
efeitos, de maneira especial, a partir do sistema capitalista, da globalização e da
imposição de leis de mercado. Com efeito, impacta a organização das estruturas
econômicas, sociais e políticas, gerando, principalmente, o aumento de desemprego e
das desigualdades. Para ela, ainda, a violência estrutural suscita e alimenta outras
dimensões de violência, como por exemplo, a violência social.

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Em relação à realidade brasileira, Minayo (2006) argumenta que a violência
sempre foi um fator presente e que deve ser, portanto, um aspecto de reflexão no que
diz respeito a diversas condições: à aculturação dos indígenas, à escravização dos
negros, às ditaduras políticas, ao comportamento patriarcal e machista; a soma desses
tem perpetuado os abusos contra mulheres e crianças, aos processos de discriminação,
ao racismo, à opressão e à exploração do trabalho.
Seguindo as argumentações dos autores, fica evidente que a violência emerge
como implicação interacional e relacional, com usurpação do poder. No caso da violência
contra criança e contra o adolescente, ambos estão amparados no que podemos chamar
de paradigma do sistema de direitos, que contempla a noção de criança, sujeito de
direitos. Assim, “[...] qualquer ação ou omissão que provoque danos, lesões ou
transtornos ao seu desenvolvimento [das crianças], pressupõe uma relação de poder
desigual e assimétrica entre o adulto e a criança” (UNICEF, 2005, p. 2).
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 2000)
sinalizou espaços mais democráticos de discussão e reflexão sobre o significado de
infância e adolescência e dos direitos a eles reservados. Em 13 de Julho de 1990, criou-
se o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), uma conquista social inegável, mas
que, nos dias atuais, sofre resistências quanto a sua natureza e a sua aplicabilidade.
Considerar o Estatuto implica valorizar, redimensionar e assegurar à criança e ao
adolescente o direito à vida digna de um cidadão em formação e desenvolvimento.
Foi graças ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) o reconhecimento,
sobretudo por parte dos profissionais da saúde e educação, da violência contra crianças
e/ou adolescentes, tornando-a um fato de notificação compulsória (BRASIL, 2003).
Segundo o ECA (1990), em seu artigo 5º: Nenhuma criança ou adolescente será sujeito
a qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais. Para Minayo (2001, apud Faleiros e Faleiros, 2007, p. 31):

A violência contra crianças e adolescentes é todo ato ou om issão cometido pelos


pais, parentes, outras pessoas e instituições capazes de causar dano físico, sexual
e/ou psicológico à vítim a. Im plica, de um lado, um a transgressão no poder/dever
de proteção do adulto e da sociedade em geral e, de outro, num a coisificação da
infância. Isto é, um a negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem
tratados com o sujeitos e pessoas em condições especiais de crescimento e
desenvolvimento.

Entre as formas de violências, para este artigo, será priorizada a análise da


violência sexual contra crianças e adolescentes. Em um primeiro momento,
apresentamos uma discussão visando compreender o conceito de violência sexual e

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seus desdobramentos. No segundo momento, apresentamos uma análise a partir dos
dados produzidos sobre violência e abuso sexual, com o recorde de gênero, raça e
idade, divulgados pela Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, relativo ao período
entre 2011 e 2017. Segundo o Ministério, a análise apresenta o perfil sobre violências
sexuais contra crianças e adolescentes e um panorama sobre a rede de serviços de
referência para a atenção às pessoas em situação de violência sexual, com objetivo de
contribuir para conscientização do problema e proposição de políticas públicas visando
seu enfrentamento. A contribuição que se intenta com o artigo é a de produzir
resultados e discussões a partir da análise cuja base teórica é a literatura sobre gênero,
raça, classe e infância evocando o conceito de interseccionalidade.

A VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL E SUAS IMPLICAÇÕES

A Organização Mundial de Saúde (OMS,1999), ao referir-se à violência sexual em


que a vítima é uma criança ou um adolescente, adota o termo abuso sexual infantil.

Abuso sexual infantil é o envolvim ento de uma criança em atividade sexual


que ele ou ela não com preende completamente, é incapaz de consentir, ou
para a qual, em função de seu desenvolvimento, a criança não está
preparada e não pode consentir, ou que viole as leis ou tabus da sociedade.
O abuso sexual infantil é evidenciado por estas atividades entre uma criança
e um adulto ou outra criança, que, em razão da idade ou do
desenvolvimento, está em um a relação de responsabilidade, confiança ou
poder (World Health Organization – WHO –, 1999, p. 7).

No Brasil, a temática da violência sexual infantil adquiriu maior expressão no


advento da consolidação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na década de
1990. Sua criação impulsionou a maior participação dos movimentos políticos e sociais
e das Organizações Não Governamentais (ONGs) e permitiu a criação de Fóruns e
Conselhos visando a garantia dos direitos das crianças e adolescentes. A aprovação do
ECA foi consequência da importância simbólica e política representada pela Constituição
Federal de 1988 na afirmação dos direitos da criança e do adolescente, os quais
passaram de uma visão de “objeto” para sujeitos de direitos.
Na legislação brasileira, o Código Penal tipifica o abuso sexual infantil como
estupro de vulnerável (art. 217-A). São tipificadas também outras práticas de violência
sexual contra crianças e adolescentes, como o favorecimento da prostituição ou de outra
forma de exploração sexual da criança/adolescente (art. 218-B), o tráfico sexual (art.
231 e 231-A) e a pornografia infantil (art. 240). Segundo Neves, Castro, Hayeck e Cury
(2010), o abuso sexual, a depender da relação estabelecida pela criança/adolescente

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com o autor, pode ser considerado intrafamiliar ou extrafamiliar. O primeiro, de acordo
com os autores, é também denominado incesto, sendo classificado em cinco formas:
pai-filha; irmão-irmã; mãe-filha; pai-filho; mãe-filho. Nessa categoria, está incluído o
abuso sexual perpetrado por avós, tios, padrastos, madrastas e primos. No segundo
tipo, o agressor não é membro da família, tampouco conhecido pela criança ou seus
familiares. Para Piana e Bezerra (2019), a violência intrafamiliar é corroborada pelo
pacto do silêncio, mantida em segredo; em lugar de proteção, encontra-se o medo, pois
muitas vítimas ainda estão sem voz e continuam a “calar” a violência, abafando-a cada
vez mais.

[...] tem permeado a história de vida de m uitas fam ílias dem onstrando que,
por controverso que possa ser, o am biente de certos lares é inóspito ao
hum ano. Longe de ser um refúgio seguro, o recesso do lar pode
representar, m uitas vezes, um risco à segurança física e em ocional da
criança. (PIANA; BEZERRA, 2019, p. 205).

O exame da violência sexual e de suas diversas implicações é um desafio


permanente; a complexidade engendrada no desvendamento das conexões e da
multiplicidade dos fatores imbricados na constituição desse fenômeno requer uma
análise aprofundada do processo de produção e reprodução dessa violência. Com efeito,
torna-se relevante considerar as relações desiguais de gênero atreladas às faixas
etárias no entendimento de como se associam os aspectos desse tipo de violência e por
que se perpetuam até os dias atuais.

O poder é violento quando se caracteriza num a relação de força de alguém que a


tem e que a exerce visando alcançar objetivos e obter vantagens (dominação,
prazer sexual e lucro) previam ente definidos. A relação violenta por ser desigual,
estrutura-se num processo de dom inação, através do qual o dom inador,
utilizando-se de coação e agressões, faz do dom inado um objeto para seus
“ganhos”. A relação violenta nega os direitos do dom inado e desestrutura sua
identidade. (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 28).

Para Neves, Castro, Hayeck e Cury (2010), a violência contra crianças e


adolescentes configura um processo global, mas com características e especificidades
endêmicas, ou seja, inerentes às diferentes culturas e aspectos sociais. Ainda, segundo
os autores, há um exagerado abuso do poder disciplinador e coercitivo por parte dos
pais ou responsáveis acarretando uma total expropriação do poder da criança ou do
adolescente, resultando na violação de direitos fundamentais e, também,
comprometendo significativamente o desenvolvimento afetivo dos mesmos.
O poder disciplinador dos adultos em relação às crianças tem sido foco de estudo.
Para Sarmento (2005), a infância é uma categoria social e geracional. Ela depende da
categoria geracional constituída pelos adultos para a provisão de bens indispensáveis à

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sobrevivência dos seus membros – as crianças - e essa dependência tem efeitos na
relação assimétrica relativamente ao poder, ao rendimento e ao status social que têm
os adultos e as crianças, e isto independente da pertença a distintas classes sociais. A
infância, a despeito do contexto social ou da conjuntura histórica, está em uma posição
subalterna face à geração adulta.
Na maioria das vezes, o abuso sexual decorre do fato de a criança ser tratada e
vista como objeto, destarte que “o lugar da criança, ao longo da história, foi desenhado
como lugar de objeto, de incapaz, de menor valor.” (FALEIROS; FALEIROS, 2008, p.37).
Desse modo, o adulto pode aproveitar-se da posição privilegiada que ocupa e do poder
que detém sobre a criança para praticar a violência sexual.

A vitim ização sexual constitui fenôm eno extrem amente disseminado,


exatam ente, porque o agressor detém pequenas parcelas de poder, sem
deixar de aspirar o grande poder. Em não se contentando com sua pequena
fatia de poder e sentindo necessidade de se treinar para o exercício do
grande poder, que continua a alm ejar, exorbita de sua autoridade, ou seja,
apresenta a síndrome do pequeno poder. (SAFFIOTI, 2007, p.17).

A violência sexual transforma a relação humana entre adultos e crianças em uma


relação desumana, com toda a perversidade e o egoísmo que possam existir. Trata-se
de uma dominação exercida pelo adulto, que traz elementos históricos sociais
intrínsecos no cotidiano, capazes de revelar as relações de poder, a coerção e a
desigualdade de gênero. O poder do adulto é exercido devido a sua capacidade mental,
física e social, em relação à criança, que por sua idade encontra-se em submissão
àquele que lhe detém a autoridade. Nessa relação, a criança é considerada um objeto
do agressor, que tira seus direitos nos aspectos mais íntimos, causando uma ferida que
em muitos casos demora muito para cicatrizar.
Uma experiência violenta, quando ocorre, principalmente na primeira infância,
pode acarretar sérios prejuízos para o desenvolvimento da criança, por exemplo, a
depressão é o transtorno que mais acomete pessoas vítimas de abuso sexual infantil.
Tendo em vista que esse tipo de violência é um fenômeno social que fere os direitos
humanos e provoca sérios danos para a saúde física e mental das vítimas é importante
debater, no âmbito social, formas de preveni-lo.

O GÊNERO, A RAÇA, A CLASSE E A IDADE DA VIOLÊNCIA SEXUAL NA INFÂNCIA:


UMA POSSIBILIDADE DE ANÁLISE INTERSECCIONAL

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Para dar visibilidade à violência, revelando sua magnitude, tipologia, gravidade,
perfil das pessoas envolvidas, localização de ocorrência e outras características dos
eventos, o Ministério da Saúde desenvolveu o Sistema de Vigilância de Violências e
Acidentes (Viva). A partir de 2011, entre outras ações, tornou obrigatória a
comunicação de qualquer tipo de violência contra crianças e adolescentes ao Conselho
Tutelar, conforme preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Assim,
foi realizado um estudo descritivo do perfil epidemiológico das violências sexuais1 contra
crianças e adolescentes notificadas pelos serviços de saúde, no período de 2011 a 2017.
Esse estudo delimita como crianças os indivíduos com idade entre zero e nove anos e
como adolescentes aqueles entre 10 e 19 anos, conforme a convenção elaborada pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotada pelo Ministério da Saúde.
Os resultados da pesquisa foram publicados no Boletim Epidemiológico da
Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde (2018). Aqui, será
considerada parte desses resultados, compreendidos no período de 2011 a 2017,
quando constavam 184.524 casos notificados de violência sexual, sendo 58.037
(31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes, totalizando 76,5% dos
casos notificados nesses dois cursos de vida. Comparando-se os anos de 2011 e 2017,
observa-se um aumento de 64,6% e 83,2% nas notificações de violência sexual contra
crianças (cf. Tabela 1).

Tabela 1. Violência sexual sofrida por crianças (de zero a nove anos) relacionada ao gênero, à idade e à
raça/etnia (dados de 2011-2017)
Categorias (N = 58.037) Feminino (N = 43.034) Masculino (N= 14.996)
Faixa etária Número % Número % Número %
Menor que 1 ano 2.653 4,6 2.238 5,2 415 2,8
1a5 29.686 51,2 22.354 51,9 7.332 48,9
6a9 25.691 44,3 18.442 42,9 7.249 48,3
Raça/cor da pele
Branca 22.611 39,0 16.577 38,5 6.034 40,2
Negra 26.407 45,5 19.782 46,0 6.625 44,2
Amarela 280 0,5 209 0,5 71 0,5
Indígena 586 1,0 509 1,2 77 0,5
Ignorada 8.146 14,0 5.957 13,8 2.189 14,6
Fonte: Ministério da Saúde (2018) Elaborada pela autora.

1
Incluem-se como violência sexual os casos de assédio, estupro, pornografia infantil e exploração sexual, que podem
se manifestar das seguintes maneiras: abuso incestuoso; sexo forçado no casamento; jogos sexuais e práticas eróticas
não consentidas; pedofilia; voyeurismo; manuseio; penetração oral, anal ou genital, com pênis ou objetos, de forma
forçada. Incluem-se, também, exposição coercitiva/constrangedora a atos libidinosos, exibicionismo, masturbação,
linguagem erótica, interações sexuais de qualquer tipo e material pornográfico. Ademais, consideram-se os atos que,
mediante coerção, chantagem, suborno ou aliciamento, impeçam o uso de qualquer método contraceptivo ou force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto, à prostituição; ou que limitem ou anulem em qualquer pessoa a autonomia e o
exercício de seus direitos sexuais e direitos reprodutivos.

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Para iniciar a análise, importa destacar, conforme demostrado neste e reforçado
por outros estudos, que as crianças do sexo feminino são significativamente mais
violentadas que aquelas do sexo masculino. Para Saffioti (2004), a sociedade, de
maneira geral, legitima não somente o adultocentrismo, mas também o androcentrismo
(supervalorização do homem), conferindo, portanto, aos homens o direito de exercer
seu poder sobre as mulheres, crianças e adolescentes, sendo que essas duas
características (adultocentrismo e androcentrismo) interconectam-se, caminhando
juntas na esfera privada e alimentando-se do patriarcado para sua plena reprodução.
Outro elemento imprescindível para a captura do fenômeno diz respeito à perspectiva
falocrática, que, segundo Azevedo (2001), compreende as relações desiguais de gênero
dentro da família, caracterizando, assim, entre outros aspectos, o que podemos chamar
de violência de gênero. Para Saffioti (2001, p. 108),

[...] violência de gênero é o conceito m ais am plo, abrangendo vítim as como


m ulheres, crianças e adolescentes de am bos os sexos. No exercício da
função patriarcal, os hom ens detêm o poder de determ inar a conduta das
categorias sociais nom eadas, recebendo autorização ou, pe lo m enos,
tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio.

Ainda, para a autora, a violência de gênero é produzida no interior das relações


de poder, visando ao controle e domínio do outro, exercendo uma relação de poder e
de exploração-dominação por meio do não consentimento do outro sujeito que sofre a
violência. Acompanhando a argumentação de Neto, Rezende e Carvalho (2021), ao
concordarem com Saffioti (1997), quando denuncia existir, na sociedade, um conjunto
de “gramáticas” que são socializadas na esfera social, regulando as relações humanas.
Para a autora, tais gramáticas são ensinadas desde cedo pela família para que as
crianças aprendam a desempenhar seus papéis sociais em meio ao afeto ou à
repreensão. Saffioti (1997) entende que, como responsável por regular as relações
entre homem e mulher, temos a gramática sexual ou de gênero; para inferiorizar ou
enaltecer uma pessoa pela sua raça, temos a gramática de raça/etnia. Dividindo os
indivíduos entre pobres e ricos, visando a dominação/exploração de uma determinada
classe, temos a gramática de classe social. A autora aponta ainda uma outra gramática,
secundária, que regula as relações humanas conforme a idade.
A divisão etária, como já mencionada, produz uma hierarquia em que o adulto
tem maior poder de decisão sobre a criança e sobre o adolescente. A faixa etária das
crianças vítimas de violência sexual chama a atenção, já que, entre as meninas, mais
de 50% encontravam-se com idade até cinco anos de idade. Não são raros os estudos
que têm a primeira infância como uma das fases mais importantes da criança,

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particularmente, a idade do zero aos seis anos. Muitas das literaturas sobre o tema
consideram esse o período crucial, quando ocorre o desenvolvimento de estruturas e
circuitos cerebrais, bem como a aquisição de capacidades fundamentais que permitirão
o aprimoramento de habilidades futuras mais complexas. Destaque-se que, entre as
meninas nessa faixa etária, 46% eram negras.
Saffioti (1997) diz que, ao tomarmos a organização social por meio da interação
das gramáticas de regulação social, como apresentado, a menina negra estaria no grau
mais elevado de vulnerabilidade social, por ser a última nessa escala de poder, ou seja,
ao poder relativo ao gênero, à raça/etnia, à classe social e à idade. Para ela, são as
crianças do sexo feminino, negras e economicamente desfavorecidas que lideram o
ranking das violações sexuais, ou seja, quando os dados são analisados de forma
interseccional, a questão racial no fenômeno da violência sexual infantil emerge de
forma incontestável. Portanto, é possível perceber que o machismo, o racismo, a
desigualdade social e o adultocentrismo – masculino - sustentam as violências sexuais
na infância, dando-lhe um determinado corpo. O abuso sexual está perpassado por
esses fenômenos, sendo impossível desassociá-lo desse repertório.
De acordo com Camargo, Alves e Quirino (2005), a violência praticada contra
crianças e adolescentes negros não é um acontecimento novo no Brasil. Desde o período
colonial até os dias atuais, essa parcela da população vem sendo espoliada, oprimida,
negligenciada, sofrendo, assim, as consequências da violência sob todas as formas que
essa pode incidir sobre uma pessoa e/ou comunidade. No período colonial,

[...] além da violência física a que as crianças e os adolescentes eram


subm etidos, as relações sexuais entre adultos e crianças, na época colonial,
não eram condutas das m ais condenadas. Mesmo quando realizada com
violência, a pedofilia, em si, nunca chegou a ser considerada um crime
específico. (CAMARGO, ALVES, QUIRINO, 2005, p. 612).

As crianças do sexo feminino e negras, especialmente, continuam a ser as


principais vítimas da violência sexual. Para Sarmento (2009), a condição social da
infância é simultaneamente homogênea como categoria social, por relação com as
outras categorias geracionais, e heterogênea, pelo cruzamento com outras categorias
sociais. Assim, a variação das condições sociais em que vivem as crianças é o principal
fator de heterogeneidade. Para além das diferenças individuais, as crianças distribuem-
se na estrutura social segundo a classe, a raça, a etnia a que pertencem, o gênero e a
cultura.
Na verdade, o que está em jogo são as criações realizadas a partir da ideia de
modernidade, que evoca o desenvolvimento do capitalismo e da industrialização, bem

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como o estabelecimento dos Estados-nação e, com efeito, o crescimento de
desigualdades no sistema-mundo. Esse período, também testemunhou transformações
sociais e culturais. As categorias gênero e raça emergiram nessa época como dois
pilares: exploração de pessoas e sociedades estratificadas. De acordo com Silvério
(2020), neste período que o “Negro” foi criado como uma tentativa de apagamento da
diferença étnica entre os não europeus e, em especial, os descendentes de africanos
por meio da construção de uma identidade coletivamente negativa e inferiorizante,
portanto, colonizadora e construtora de um Outro mitologicamente sem história e sem
cultura. A criação e racialização do Outro, bem como o estranhamento daí resultante,
retiraram do colonizado a possibilidade de ser visto (e, consequentemente, de se ver)
como expressão também universal do gênero humano.
Em relação às crianças, Sarmento (2009) contribui com o debate ao argumentar
que foi no período da modernidade que a infância foi criada e, contrariamente ao que
ocorria antes, as crianças passaram a ser mais confinadas em espaços privados,
tornando-as à margem de espaços considerados públicos. Da mesma forma suas
competências e capacidades passaram a ser consideradas em um compasso de espera,
ou seja, uma espera para serem adultas, para tornarem-se um verdadeiro membro da
comunidade humana. Todos esses aspectos são importantes para compreender a
caracterização da posição social que cada criança ocupa no mundo e n os diferentes
lugares, já que, a infância não é universal.
Assim, para a situação aqui analisada, é necessário considerar, para além das
condições isoladas em que vivem as crianças, o processo de opressões interseccionadas
pelo qual elas passam. Para ilustrar, podemos utilizar a entrevista veiculada em 2016,
em que Crenshaw apresenta uma metáfora, também utilizada por Akotirene (2018):
segundo as autoras, os marcadores sociais são como avenidas e os sujeitos/as sujeitas,
ao longo de suas vidas, são posicionados nos cruzamentos dessas avenidas de acordo
com suas identidades e subjetividades (na “rua da raça”, na “rua da classe” e na “rua
do gênero”, por exemplo). Sujeitos posicionados em cruzamentos, encontrar-se-iam
em locais mais suscetíveis a “atropelamentos” individuais e simultâneos – do “carro do
racismo”, do “carro do sexismo”, do “carro do classismo” e de outros “carros”. Portanto,
quanto maior o número de opressões que se sobrepõem na vida de um sujeito, maior
a situação de vulnerabilidade desse sujeito.
As meninas negras sexualmente abusadas estão posicionadas nos cruzamentos
e são atropeladas – simultaneamente - pelas opressões de raça, classe, gênero e idade.
Tais opressões as deixam mais vulneráveis. Para Azevedo e Guerra (2007), citados por

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de Santa Catarina. ISSN 1980-4512. DOI: https://doi.org/10.5007/1980-4512.2022.e87381
Vieira (2018, p. 108), a violência sexual traz, em seu centro, a transversalidade, pois
“trata-se de um fenômeno que não é caudatário do sistema de estratificação social e
do regime político vigente numa sociedade [...], [portanto], não pode ser dito que é um
fenômeno característico da pobreza”. No entanto, segundo Vieira (2018), a exploração
sexual comercial atinge profundamente as crianças e adolescentes pertencentes às
classes e aos estratos sociais menos favorecidos, por serem mais suscetíveis à
exploração sexual infanto-juvenil. As condições de pobreza influenciam e,
principalmente, potencializam o acometimento desse crime. Para Crenshaw (1991,
p.3),

[...] raça, gênero e classe estão im plicados juntos porque o fato de ser uma
m ulher de cor correlaciona-se fortemente com a pobreza. Além disso, o
acesso desigual a habitação e em prego - isto é, o fenôm eno da
discrim inação - é reproduzido através da sua raça e identidade de gênero.

No caso das crianças, a título de exemplo, segundo o Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF, 2010), de cada dez crianças pobres, sete eram negras. A
pobreza atingia 32,9 % entre as crianças brancas; entre as crianças negras, atingia
56%. Entre os 26 milhões de crianças que viviam em famílias com renda per capita de
até meio salário-mínimo, 17 milhões eram de crianças negras. De acordo com o Fundo
das Nações Unidas para a Infância (2018), a pobreza na infância e na adolescência tem
múltiplas dimensões, que vão além do dinheiro, ou seja, para compreendê-la, é
necessário considerar que ela é o resultado da relação entre privações, exclusões e de
diferentes vulnerabilidades a que meninas e meninos estão expostos e que impactam
seu bem-estar. Em relação às meninas e meninos negros, o índice de privação de
direitos é de 58,3%, enquanto entre crianças e adolescentes brancos, ela é de 40%. O
mesmo ocorre para a privação extrema, que afeta 23,6% dos negros e 12,8% dos
brancos. O estudo indica que a incidência de privações entre meninas e meninos negros
é 1,5 vez maior do que entre brancos, sendo que a precarização de suas condições
aumenta ainda mais nas privações extremas, em que a incidência entre negros é duas
vezes maior do que entre brancos.
Considerando a intersecção de gênero, raça, classe e idade, as meninas negras
são mais vulneráveis e tendem a ter seus direitos, como crianças, menos assegurados.
Elas, desde a tenra idade, passam por um processo de “adultização”, ou seja, são
consideradas mulheres adultas e vivenciam as mesmas situações que, historicamente,
as mulheres negras vivem. Segundo Angela Davis (2016), o estupro da mulher negra
é usado como castigo desde o tempo da escravidão: “O estupro, na verdade, era uma

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expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do controle do feitor sobre
as mulheres negras na condição de trabalhadoras” (DAVIS, 2016, p. 20). Como a
mulher negra trabalhava tanto quanto o homem negro e tinha a sua feminilidade
apagada por conta disso, ela podia perceber a própria força e ter noção do seu poder
de resistência. Para que isso não acontecesse, eram violadas sexualmente e, dessa
forma, elas se lembrariam da sua condição de fêmea: “Na visão baseada na ideia de
supremacia masculina [...], isso significa passividade, aquiescência e fraqueza” (DAVIS,
2016, p. 37).

Desde os tem pos da escravatura que as gentes brancas estabeleceram uma


hierarquia social assente na raça e no sexo que punha os brancos em prim eiro
lugar, as brancas em segundo, ainda que por ve zes no m esmo patam ar dos
negros, que se encontram em terceiro, e as negras em últim o lugar. O que isto
quer dizer, no contexto da política sexual da violação, é que se considera m ais
im portante e significativo um a branca ser violada por um negro que m ilhares de
negras serem violadas por um só branco. (HOOKS, 2018, p. 93-4).

As violências doméstica, sexual e simbólica são as formas mais denunciadas pelo


movimento de mulheres negras. Segundo Crenshaw (2001), em relação às duas
primeiras, as mulheres negras não são apenas as maiores vítimas como também são
as que menos recebem solução ou acolhimento nos instrumentos do Estado. Essa noção
de que o Outro é descartável está intrinsecamente ligada à base do racismo, que cria
uma divisão entre os sujeitos, colocando-os em subgrupos que podem ser
caracterizados entre os que possuem algum valor para o Estado.
Para Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge (2020, p. 42), o que faz com que uma
análise seja interseccional “[...] não é o uso que ela dá ao termo ‘interseccionalidade’
nem o fato de estar situada numa genealogia familiar, nem de se valer de citações
padrão”, o foco deve ser “o que a interseccionalidade faz” e “não o que a
interseccionalidade é” – como nos ensinam as autoras:

O uso da interseccionalidade com o ferram enta analítica aponta para várias


dim ensões im portantes do crescimento da desigualdade global. Prim eiro, a
desigualdade social não se aplica igualm ente a m ulheres, crianças, pessoas de
cor, pessoas com capacidades diferentes, pessoas trans, populações sem
documento e grupos diferenciados de indivíduos, a interseccionalidade fornece
estrutura para explicar com o categorias de raça, classe, gênero, idade, estatuto
de cidadania e outras posicionam as pessoas de m aneira diferente no m undo.
Alguns grupos são especialm ente vulneráveis às m udanças na economia global,
enquanto outros se beneficiam desproporcionalmente delas. A interseccionalidade
fornece um a estrutura de interseção de desigualdades sociais e desigualdades
econômicas como m edida da desigualdade social global. (COLLINS; BILGE, 2021,
p. 42).

Ainda, para elas, três fatores são fundamentais para compreender a


interseccionalidade como ferramenta analítica: a desigualdade social, as relações de

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poder e o contexto social. Em relação à desigualdade social, dizem que é necessário
entendê-la para além de lentes exclusivas de raça ou classe; em vez disso, entende-se
a desigualdade social por meio das interações das várias categorias de poder. Por outro
lado, as relações de poder interseccionais devem ser analisadas por meio de
intersecções específicas – por exemplo, racismo e sexismo, ou capitalismo e
heterossexismo –, bem como entre domínios de poder – a saber, estrutural, disciplinar,
cultural e interpessoal. Por fim, sobre o contexto social, é importante a análise do
crescente reconhecimento da desigualdade econômica global, que enfatiza a
importância das políticas dos Estados-nação e dos contextos sociais das instituições
governamentais.
No caso dos dados analisados, o uso da interseccionalidade como ferramenta
analítica, fez compreender que: a violência sexual sofrida pelas meninas com menos de
cinco anos de idade, foi em função de elas fazerem parte da parcela da sociedade que
é mais impactada pelas desigualdades sociais e econômicas, por serem membros de
um grupo étnico-racial - negro - historicamente discriminado e, por serem meninas.
Além desses fatores, que são estabelecidos por relações de poder, a idade em que elas
se encontram são hierarquicamente mantidas pelo poder dos adultos em relação a elas,
impondo formas de disciplinas que os favorecem. Ademais, elas vivem em um contexto
tanto nacional quando local, onde são duplamente invisibilizadas por serem crianças e
por serem negras. Seguindo a argumentação das autoras,

O que faz com que um projeto seja interseccional crítico é sua conexão com a
justiça social. A justiça social tam bém é ilusória, onde aparentemente as regras
são aplicadas de m aneira igual a todos, m as, ainda assim , produzem resultados
desiguais e injustos: nas social-dem ocracias e nos Estados-nação neoliberais,
todos podem ter o “direito” de votar; m as nem todos têm igual acesso para fazê -
lo, e os votos têm pesos diferentes. (COLLINS; BILGE, 2021, p. 47).

Segundo o ECA (1990), em seu artigo 5º: Nenhuma criança ou adolescente será
sujeito a qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais. Para seguir com a conversa, considerando uma sociedade que
preza pela justiça social: quem teria direito a ter direito?

CONSIDERAÇÕES PARA CONTINUAR...

Com o artigo, a partir dos dados apresentados no Boletim Epidemiológico da


Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (2018), buscou-se analisar a

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de Santa Catarina. ISSN 1980-4512. DOI: https://doi.org/10.5007/1980-4512.2022.e87381
violência sexual contra crianças. Partimos, em um primeiro momento, da discussão
sobre violência sexual, considerando a perspectiva de diferentes autores. Com a
discussão que propusemos, ficou evidente que a violência sexual que acomete crianças
e adolescentes é sobretudo decorrente das relações de poder que são estabelecidas
pelos adultos, que as consideram como “coisa” desrespeitando tanto suas condições
como humanos quanto, fundamentalmente, seus direitos garantidos por lei.
Posteriormente, com o perfil sociodemográfico e, especificamente, considerando
as categorias sexo, idade, classe e raça, ficou evidente que as crianças do sexo
feminino, negras e com idade até cinco anos são as vítimas que mais sofrem violência
sexual. A base teórica que pautou a análise contribuiu para evidenciar como as
opressões de gênero, raça, classe e idade podem ser interseccionadas, trazendo à baila
um problema social, como é o caso da violência sexual contra crianças e adolescentes.
Do ponto de vista do artigo, a interseccionalidade, como ferramenta analítica e como
práxis social, deve ser entendida como uma visão e postura frente ao mundo e suas
injustiças, no caso, as injustiças praticadas pelos adultos em relação às crianças,
especialmente aquelas relacionadas às meninas negras violentadas permanentemente
por aqueles que deveriam protegê-las e, em locais, onde deveriam se sentir seguras.
Como foi possível verificar, além das mulheres negras, que historicamente sofrem
violências diversas e abuso sexual, as meninas negras sofrem pelo mesmo machismo,
classismo e racismo presentes na sociedade brasileira e, por isso, necessitam de
adultos/adultas que possam escutá-las, dando visibilidade às suas histórias, às suas
opressões, às suas dores e às suas vidas.

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de Santa Catarina. ISSN 1980-4512. DOI: https://doi.org/10.5007/1980-4512.2022.e87381
NOTAS
TÍTULO DA OBRA
VIOLÊNCIA SEXUAL NA INFÂNCIA: GÊNERO, RAÇA E CLASSE EM PERSPECTIVA
INTERSECCIONAL
Sexual violence in childhood: gender, race and class in intersectional perspective

Cristina Teodoro
Doutora em Educação
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB)
Curso de Pedagogia do Instituto de Humanidades e Letras
Salvador, Brasil
[email protected]
https://orcid.org/0000-0002-0850-4014

ENDEREÇO DE CORRESPONDÊNCIA DO PRINCIPAL AUTOR


Rua Manoel Galiza, 45, CEP 41.650105, Salvador-BA, Brasil.

AGRADECIMENTOS
Não se aplica.

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA
Concepção e elaboração do manuscrito: C. Teodoro
Coleta de dados: C. Teodoro
Análise de dados: C. Teodoro
Discussão dos resultados: C. Teodoro
Revisão e aprovação: C. Teodoro

CONJUNTO DE DADOS DE PESQUISA


Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
FINANCIAMENTO
Não se aplica.

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM


Não se aplica.

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA


Não se aplica.

CONFLITO DE INTERESSES
Não se aplica.

LICENÇA DE USO – uso exclusivo da revista


Os autores cedem à Zero-a-Seis os direitos exclusivos de primeira publicação, com o trabalho
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- NUPEIN/CED/UFSC. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de
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Recebido em: 09-05-2022 – Aprovado em: 27-11-2022

Zero-a-Seis, Florianópolis, v. 24, n. Especial, p. 1582-1598, dez., 2022. Universidade Federal 1598
de Santa Catarina. ISSN 1980-4512. DOI: https://doi.org/10.5007/1980-4512.2022.e87381

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