Resenha Do Livro Berimbau de Lata

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Resenha do livro Berimbau de Lata

Ciro Leandro Costa da Fonseca1


Elen Karla Sousa da Silva 2

Num berimbau de palavras, um maracatu de identidades. É assim que se tece em


poemas em prosa e em versos o livro “Berimbau de Lata”, da professora Tânia Lima,
nascida na Ilha de Igoronhon, arquipélago dos lençóis maranhenses. O título já remete a
um importante símbolo da cultura negra, o berimbau, usado na capoeira de Angola, que
apesar do nome, surgiu no Brasil, com os negros vindos desse país, não no continente
africano como muitos pensam. Os poemas são baseados nas matrizes africana e
indígena que desde a epígrafe da obra a autora se apresenta como “filha de índias &
Zumbis”, e num maracatu de palavras, ritmos e identidades culturais, os poemas
rememoram os elementos constituintes das vozes ancestrais afro-ameríndias de raízes e
matrizes trazidas pelos povos negros em diáspora, encontrada no Brasil pelos
colonizadores como marcas significativas da cultura indígena, em poemas que se fazem
histórias de vida como do “nosso pai-índio – homem ferreiro – que só falava em tupi
com a nossa gente”.
As faces dos povos ancestrais formadores da identidade brasileira estão
modeladas em argila, barro de mangue, ouvida na batida dos ritmos do samba, nas
raízes de suas falas e narrativas, do som das flautas de pífanos, como é característico das
bandas cabaçais existentes em comunidades negras do Nordeste brasileiro, percussão
que tece, num caminho de trilhas sonoras descrito pela autora, as veredas das
identidades dos povos cuja trajetória de vida se encontra elaborada nos poemas de Tânia
Lima. Construído a partir de sinestesias que revelam os sentidos das identidades
indígena e afro-brasileira, como no poema dedicado Pra Lia de Itamaracá, no qual
ressalta sua identidade ancorada nas ilhas maranhenses onde o mar bebeu dentro e fora
do sentido de um pertencimento, terra descrita como o “canto das tapiocas”, que funde
a favela inicialmente habitada pelos negros às palafitas dos índios, como podemos ver:
“carne seca da favela/ palafitas de índios/ dentro dos mangues/ primeiro quilombo”. A

1
Doutorando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte–UERN. Pau dos Ferros –Rio Grande do Norte. Email: [email protected]
2
Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte –UERN. Pau dos Ferros –Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]
autora traz para um mesmo campo semântico a favela habitada pelo negro, a habitação
do índio e o símbolo maior de resistência que é o quilombo. Como representante das
culturas afro-ameríndias, os versos de Tânia trazem, conforme Paul Giroy em sua obra
“O Atlântico Negro”, uma identidade construída a partir das experiências da escravidão
e do tráfico negreiro que tem no quilombo o signo maior dessa resistência à cultura do
colonizador, numa construção identitária complexa, por se fundar étnica, política e
culturalmente a partir desse contexto histórico e social.
No poema Tambor de Crioula se apresentam elementos culturais da cultura
popular afrodescendente, como o maracatu rural e seu caboclo de lança, também
conhecido como lanceiro africano ou guerreiro de Ogum, orixá africano, no Brasil
sincretizado no santo católico São Jorge Guerreiro. Nesse caldo cultural híbrido, “Ogum
sofreja pra Iansâ”, representada no sincretismo por Santa Bárbara, protetora contra raios
e tempestades, “cigana lê as mãos do Marco Zero/ Zumbi e Urucungo/ chocalha tambor-
de-crioula/ reco-reco de agogô/ alfaia começa BATUCADA”. Zumbi dos Palmares
aparece como signo da cultura e da luta contra a escravidão e o racismo, o urucungo
como símbolo, instrumento musical de origem africana que também é conhecido como
o nosso berimbau, metonímia da identidade cultural tecida na obra.
Outra identidade apresentada na lírica da autora e a da mulher negra,
caracterizada pelo traço físico “Essa Nega Fulô/ rebola os pixains/ bum-bum-bum”
numa mistura que reúne os sons do pandeiro, do tamborzim, do tamborim, do batido da
zabumba de um maracatu virado. No viés dos poemas visuais e concretos a autora
elabora a história dos povos negros através dos espaços “casa grande/ senzala/ CASA
PEQUENA/ sem sala/ FAVELA”. Na obra, o poema é disposto na vertical, como uma
gradação dos lugares representativos do lugar do negro na sociedade: a senzala dos
escravos, a casa pequena onde foram habitar após a abolição, a favela originada no
arruado de Canudos, considerada um quilombo por sua quantidade de habitantes negros.
Já o poema em prosa Palácio dos negros subverte a senzala e a favela e os coloca numa
outra atmosfera, onde “não se abafaram os bemóis da memória do porão da casa velha”.
Nessa “ladainha do canto” descrita no poema, a cultura dos antepassados encontra
outros aconchegos.
A religiosidade afro-ameríndia é apresentada nos rituais narrados pela autora em
outros poemas em prosa que misturam “céu, mangue, rio, barco, ferro, família, religião”
e nessa resistência: “Nosso pai-índio nunca entrou na igreja. No terreiro dos Gunguns se
benzia. Tomava passe e posse”. Esse relato poético relembra Frantz Fanon, em sua obra
“Pele Negra Máscaras Brancas”, ao refletir que numa sociedade colonizada pela
hegemonia branca é preciso branquear para não desaparecer. Porém, nosso pai-índio
não branqueou, resistiu à religiosidade imposta desde a colonização e tomou posse de
sua cultura, do seu espaço. Como também no mesmo poema “Na sexta-feira nosso pai-
índio levava a família para benzer o rio, abrir os pontos. No domingo, nossa mãe
celebrava as sobras da hóstia da igreja. Nosso pai naquela de jesuítas”. O pai-índio abria
os pontos do rio, lugar sagrado para os nativos e metonímia da identidade ancestral dos
indígenas, abrindo dessa forma as veredas da identidade coletiva do seu povo e “Pegava
a pedra do sal para abençoar os espíritos.” Esses ritos ancestrais tecem a memória do
grupo, falam um “idioma lama” numa mistura étnica e cultural que coexiste com o
palácio dos negros, que surgia do outro lado da ilha numa comunhão de identidades.
A proteção de Nanã ao mangue do rio, o som da floresta em solo de flauta
indígena, a caipora que dança o Toré, são elementos culturais afro-ameríndios que
formam a identidade brasileira numa pluralidade de raízes. O tambor de crioula, o
berimbau de lata entoa sons e vozes que a colonização e a dominação portuguesa não
abafaram, apenas tentaram branquear e que ressurgem na lira de Tânia Lima como um
cancioneiro poético dos povos formadores da nação cuja contribuição modela o Brasil.
Identidade modelada em terra e lama ancestral, dos mangues, das florestas e dos
quilombos, compota de cantos lendários, solos indígenas e africanos, num retomar de
vozes que tecem um mosaico afro-ameríndio-brasileiro.
A inserção cultural da autora nas nações indígena e negra constrói novos
horizontes. O índio pré-colonial, o negro escravizado durante a colonização, em versos
que posicionam em pé de igualdade as culturas mestiças em face da europeia, saindo da
hegemonia colonial e do eurocentrismo presente em boa parte da literatura brasileira
numa descolonização poética. A cultura é mostrada por quem dela faz parte, do lado de
dentro do eu fazer. As experiências dos povos nativos e diaspóricos em diálogo com a
cultura europeia constroem uma identidade híbrida, plural e complexa como o é a poesia
de Tânia Lima. Uma poesia que bebe nas fontes populares, que se faz vida sem medida,
como poetisa na dedicatória do livro, modelada em argila e se constitui, como afirma
Maria Ignez Ayala, ao se referir às culturas populares, como um fazer dentro da vida.

LIMA, Tânia. Berimbau de Lata. Natal: Sebo Vermelho, 2015.

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