Militância Feminina

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MARIA CECÍLIA DE OLIVEIRA ADÃO

MILITÂNCIA FEMININA:

CONTRADIÇÕES E PARTICULARIDADES

(1964 – 1974)

Franca

2002
UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

Faculdade de História, Direito e Serviço Social

MILITÂNCIA FEMININA:

CONTRADIÇÕES E PARTICULARIDADES

(1964 – 1974)

Dissertação de mestrado apresentada ao


Curso de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual Paulista – UNESP
– Campus de Franca, sob orientação do
Prof. Dr. Héctor Luis Saint-Pierre.

Franca

2002

2
À Dolmira Monteiro de Oliveira

Minha gratidão e minha saudade

3
Muitos foram os que de alguma forma contribuíram para a realização deste
trabalho. Agradeço a todos e especialmente,

À minha família que me apoiou durante toda a realização deste trabalho,


principalmente minha mãe, Maria José, minha tia Maria Aparecida e minha
irmã Camila, que me substituíram na realização das demasiadas tarefas.
Minha profunda gratidão.

Ao amigo e companheiro André Luiz Cruz Tavares, sempre presente


durante a realização desta dissertação, minha gratidão e meu carinho.

Às grandes amigas Luciene Capellari e Thaís Benedetti que sempre me


incentivaram. A estas mulheres, no caminho da superioridade, minha
gratidão e minha amizade.

Ao amigo de longa data Henry Marcelo M. da Silva agradeço o incentivo.

Ao Prof. Dr. Héctor Luis Saint-Pierre agradeço a profunda paciência e a


sabedoria demonstradas na orientação deste trabalho. Fico grata pelo
exemplo de generosidade pessoal e competência profissional.

À CAPES instituição financiadora deste trabalho.

Finalmente, agradeço especialmente às depoentes deste trabalho, Áurea


Moretti, Criméia Alice Schmidt de Almeida, Guiomar Silva Lopes, Maria
Amélia de Almeida Teles e Profª Maria Lygia Quartim, mulheres admiráveis
e corajosas, exemplos de desprendimento e generosidade.

4
Talvez, talvez o olvido sobre a terra como uma capa
pode desenvolver o crescimento e alimentar a vida
(pode ser) como o húmus sombrio no bosque.

Talvez, talvez o homem como um ferreiro acode


à brasa, aos golpes do ferro sobre o ferro
sem entrar nas cegas cidades do carvão,
sem fechar os olhos, precipitar-se a baixo
em fundições, águas minerais, catástrofes.
Talvez, porém meu prato é outro, meu alimento é diverso:
meus olhos não vieram para morder olvido:
meus lábios se abrem sobre todo o tempo, e todo o tempo
não só uma parte do tempo gastou as minhas mãos.

Por isso te falarei destas dores que quisera afasta


te obrigarei a viver uma vez mais entre suas
queimaduras, não para nos determos como numa estação, ao partir,
nem tampouco para golpear com o rosto a terra,
nem para enchermos o coração de água salgada,
mas para caminha conhecendo, para tocar a retidão
com decisões infinitamente carregadas de sentido,
para que a severidade seja uma condição da alegria, para
que assim sejamos invencíveis.

Pablo Neruda

5
Sumário

Introdução........................................................................................................... 07

Cap. I – A mulher e as mudanças da década de 60......................................... 13


A mulher e o mercado de trabalho....................................................................... 13
A mulher e as mudanças comportamentais.......................................................... 25
A mulher e a ação política.................................................................................... 31

Cap. II – A mulher e a militância .................................................................... 39


A mulher e as organizações de esquerda.............................................................. 39
A posição das organizações de esquerda.............................................................. 50
Resistência dentro das organizações.................................................................... 59

Cap. III – A mulher e a repressão.................................................................... 66


Militância e repressão.......................................................................................... 66
Práticas da repressão............................................................................................ 74
Resistência à repressão........................................................................................ 81

Considerações Finais.......................................................................................... 87

Bibliografia......................................................................................................... 91

Anexos................................................................................................................. 97
Sobre as entrevistas.............................................................................................. 97
Entrevista com Guiomar Silva Lopes.................................................................. 100
Entrevista com Maria Amélia de Almeida Teles................................................ 109
Entrevista com Criméia Alice Schmidt de Almeida............................................ 130
Entrevista com Maria Lygia Quartim.................................................................. 142
Entrevista com Áurea Moretti.............................................................................. 152

6
Introdução

Nos últimos trinta anos a historiografia brasileira, assim como as outras


ciências humanas, esforçou-se para incluir os estudos de gênero entre seus temas. Esta
inclusão possibilitou a percepção da atuação deste outro ator histórico que até os nossos dias
permanecia oculto. Em todas as esferas do conhecimento, os estudos apresentados muitas
vezes não evidenciam a presença feminina no fazer histórico, embora as mulheres sempre
tenham adotado uma postura ativa de envolvimento neste processo. Qual é, então, o motivo
deste ocultamento?
Tradicionalmente, o elemento feminino tem sido visto como submisso,
dependente da ordem masculina secularmente estabelecida. Esta dependência e submissão
levaram a uma situação de obscurecimento da mulher enquanto sujeito, tornando-a um agente
histórico desprezado já que seu papel nos processos sociais durante muito tempo foi
considerado inexistente. Conforme comentado por Michelle Perrot, em todos os aspectos de
sua atuação histórica a mulher tem sido observada e descrita pelo homem. “Militante ela tem
dificuldade em se fazer ouvir pelos seus camaradas masculinos, que consideram normal serem
seus Porta-vozes. A carência de fontes, ligada a essa mediação perpétua e indiscreta, constitui
um tremendo meio de ocultamento.”1 A atuação social feminina foi desconsiderada em
detrimento da valorização do estudo de um todo social unitário que não possui
particularidades de gênero entre seus componentes. Assim, ao procurar nas fontes a presença
feminina, o pesquisador encontra apenas vestígios incompletos ou superficiais de sua
participação, embora ela sempre estivesse ativa. Portanto, consideramos de suma importância
procurar estes vestígios para elucidar as particularidades e as especificidades da participação
feminina na História. Pretendemos que este trabalho contribua para esta difícil e postergada
tarefa.
Para preencher as lacunas deixadas pela não documentação do fazer histórico
feminino utilizamos a metodologia da História Oral. A utilização deste método nos permitiu

1
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p.186.

7
“instituir sujeitos históricos concretos”2, recuperando uma história que não está escrita, a da
participação repleta de particularidades das militantes políticas que, juntamente com os
homens, atuaram em organizações de esquerda em oposição à Ditadura Militar instalada no
Brasil em 1964. Neste sentido, o uso da História Oral nos permitiu dar voz àqueles que não
foram incluídos na História e em sua escrita. Esta possibilidade vem diretamente ao encontro
das necessidades deste trabalho: produzir documentação que justamente dê conta da atuação
histórica feminina. Dando voz às militantes podemos aferir as várias facetas de sua atuação
política. Tomamos conhecimento dos motivos que levaram jovens estudantes a se engajarem
na luta armada, das tarefas executadas para a manutenção do funcionamento das organizações,
dos anseios das militantes e das discussões sobre o recém-chegado movimento feminista.
Entramos em contato e compartilhamos o sofrimento causado pela tortura e pela separação da
família. Esta constatação empírica nos leva a concordar com Paul Thompson quando este
afirma que pelo sentido de descoberta nas entrevistas se adquire “uma dimensão histórica
viva: uma percepção viva do passado, o qual não é apenas conhecido, mas sentido
pessoalmente”3. Possibilidade do conhecimento que a historiografia tradicional não produz
com a documentação usual e que conseqüentemente não valoriza.
A utilização da História Oral rompe com os limites e com os métodos
tradicionais de pesquisa acadêmica e nos leva a entrar em contato com os grupos que são
receptáculos de memória. Tanto a memória pessoal quanto a memória coletiva são formadas
pelas experiências vividas pela pessoa e pelas compartilhadas com o grupo ao qual pertence. A
memória está intimamente ligada à construção da identidade individual e coletiva, portanto, a
memória que uma pessoa ou um grupo guarda será o fator constituinte da imagem que terá de
si, para si e para os outros.4 A coleta, o estudo e o registro destas memórias, ou seja, a
passagem destas pelas mãos do historiador faz com que elas se transformem em História. O
atual aumento do compasso da História, ditado pela aceleração do ritmo de vida das pessoas,
possibilita o advento da hegemonia do efêmero, onde o passado perde rapidamente espaço
para um presente contínuo que propicia a perda da memória e dos grupos onde esta é
preservada. Neste sentido, para a construção do saber histórico sobre grupos específicos, é

2
GARCIA, Marco Aurélio. “O gênero da militância. Notas sobre as possibilidades de uma outra história de ação
política”. Cadernos Pagu. Campinas: ADUNICAMP, (8/9), 1997, P.334.
3
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p.30.
4
POLLAK, Michel. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº10, vol.05, 1992.

8
urgente o estudo de suas memórias. Caso contrário, corremos o risco de perder parte de nossa
História.
Olhando por este ângulo percebemos também que o método da História Oral
nos permite valorizar as falas dotadas de sentido de grupos que, como já dissemos, foram
excluídos da historiografia, neste caso específico, das militantes políticas. Sendo assim, para a
realização deste trabalho contamos com a participação de cinco depoentes que tiveram atuação
importante e expressiva em suas respectivas organizações. Quatro entrevistas foram utilizadas
como fontes para o estudo e uma quinta entrevista figura como material de apoio. A escolha
destas depoentes se deveu às suas atuações corajosas e essenciais para o funcionamento e, em
casos específicos, para a continuidade da existência das organizações em que participaram.
Ainda hoje estas mulheres são vistas como membros importantes e representativos de seus
grupos. Seus depoimentos são dotados de significado e importância, evidenciando diferentes
facetas do passado político e social recente de nosso país. Por meio das entrevistas podemos,
por exemplo, visualizar o que significava ser jovem, mulher e pertencer à classe média no
início da década de 60, as possibilidades abertas por estas determinantes e as conseqüências
das escolhas que nossas depoentes fizeram. Pelas suas experiências, seus relatos são essenciais
para a reconstrução da participação feminina nas organizações de esquerda. Os comentários
sobre a realização de cada entrevista constam nos anexos no final deste trabalho.
Tendo como objetivo analisar a militância feminina nas organizações de
esquerda, armadas ou não, em suas várias facetas que incluem a atuação no movimento
estudantil, a passagem para a clandestinidade, a prisão, dividimos o presente estudo em três
capítulos que pretendem dar conta de cada uma destas facetas.
No primeiro capítulo trataremos da situação feminina e das mudanças que esta
sofreu na década de 60. Analisaremos a inclusão da mulher no mercado de trabalho, inclusão
esta permeada pelas relações de gênero praticadas pela sociedade e construídas no processo de
socialização dos indivíduos, as mudanças comportamentais ocorridas e que alteraram a forma
de ação e o espaço ocupado pelas mulheres do período e o tipo de ação política desenvolvida
por diferentes grupos femininos.
O segundo capítulo tratará da militância feminina nas organizações de
esquerda. Analisaremos as organizações em que as depoentes militavam, a forma como estas
viam as mudanças comportamentais empreendidas por suas militantes e como reagiam às

9
questões apresentadas por elas. Discutiremos também a postura apresentada pelas militantes
como resposta ao posicionamento adotado pelas organizações.
O terceiro capítulo tratará da militante submetida aos desígnios da repressão.
Analisaremos a forma como a repressão via a militante e as formas de tortura a ela destinada.
Trataremos também da imagem da militante que a repressão procurou transmitir para a
sociedade. Finalmente, discutiremos as formas de resistência possíveis da militante diante do
poder da repressão.
O contexto histórico em que este trabalho está inserido se refere, em linhas
gerais, a um período de grande agitação social, cultural e política tanto para o país como para
o restante do mundo. No período delimitado para esta pesquisa (1964–1974) o Brasil vivia sob
uma ditadura militar imposta por um golpe orquestrado por setores da direita e das Forças
Armadas contrários ao nacional-reformismo do governo Goulart e que não encontrou
resistência das organizações de esquerda, na sua instauração em 1964. Em seqüência ao golpe
iniciou-se a aplicação de medidas de desnacionalização da economia que incluía o estímulo de
concessão de crédito para a implantação de multinacionais e a facilitação da remessa de lucros
para o exterior. A intervenção estatal em favor da desnacionalização econômica resultou em
um achatamento dos salários que funcionou como ponto principal de apoio para o crescimento
capitalista no passageiro “milagre econômico”.
Para a criação de um Estado forte foi necessário alterar a estrutura jurídica do
país e reforçar o aparato repressivo. Com este objetivo foram decretados uma série de
dezessete Atos Institucionais. O Ato Institucional de 9 de Abril de 1964, que deveria ser único,
mas acabou sendo o primeiro da série, deixou um rastro de cassações dos direitos políticos de
três ex-presidentes, de seis governadores, dois senadores e de mais de trezentos deputados
estaduais. O Ato Institucional nº2 de outubro de 1965 acabou com os partidos políticos e
consentiu na existência da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), base de apoio
situacionista e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a oposição consentida5. Este Ato
permitia também o fechamento do Congresso pelo Poder Executivo quanto este julgar
necessário. Em 1967, o país ganhou uma nova Constituição, uma nova Lei de Segurança
Nacional e uma Lei de Imprensa que visava impedir todas as possíveis denúncias contra o

5
ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985, p, 61.

10
regime instalado em 1964. Neste ínterim, a oposição ao regime começou a se reestruturar com
a organização de vários grupos de oposição armada. No ano de 1968 ocorrem duas greves de
operários e diversas manifestações estudantis, que servem de pretexto para a edição do Ato
Institucional nº5, o golpe dentro do golpe, visto que não possuía prazo de vigência e
significava o endurecimento total das medidas repressivas contra a oposição insurgente. “O
resultado de todo esse arsenal de Atos, decretos, cassações e proibições foi a paralisação quase
completa do movimento popular de denúncia, resistência e reivindicação, restando
praticamente uma única forma de oposição: a clandestina.”6
De acordo com a Doutrina de Segurança Nacional formulada pela Escola
Superior de Guerra (ESG) – instituição que formulou os novos conceitos de segurança e
desenvolvimento nacional – antagonismos internos não deveriam ser tolerados e a sociedade
como um todo deveria colaborar para o fortalecimento dos objetivos nacionais. Para aplicar as
medidas e punições previstas na Lei de Segurança Nacional aos que ousarem se opor ao
regime instalado foram criados órgãos militares que atuavam como aparelhos de repressão,
responsáveis pela morte e desaparecimento de centenas de militantes de esquerda. Sem
nenhum respeito pelos direitos humanos, estes órgãos atuaram com grande ferocidade no
sentido de acabar a oposição clandestina ao regime. Já em 1971, quase todos os grupos
armados urbanos haviam sido exterminados, restando apenas a iniciativa militar de luta no
campo do PC do B, que se estendeu até 1974, ano limite desta pesquisa.

6
ARNS, Paulo Evaristo. Op. cit., p.62. Estamos construindo aqui apenas um breve quadro sobre o período da
ditadura militar no Brasil e suas conseqüências. Para maiores informações sobre o assunto, verificar o livro acima
citado, p.60-68. Ver também: GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda brasileira: das ilusões
perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987, p. 70-72.

11
Cap I – A Mulher e as Mudanças na Década de 60

A mulher e o mercado de trabalho

Acompanhada das mudanças políticas, econômicas e sociais pelas quais


passavam a sociedade brasileira, a década de 60 trouxe consigo profundas alterações nas
práticas sociais femininas. A primeira metade desta década apresentou às mulheres a
possibilidade de adentrarem efetivamente o mercado de trabalho urbano, tanto no setor
industrial quanto na prestação de serviços.
O início do processo de industrialização exige a separação no espaço e no
tempo das atividades necessárias à produção de bens e serviços de outras atividades,
demandando cada vez mais lugares, intervalos e condições contratuais específicos. Deste
modo, a crescente especialização técnica exige a separação entre casa e trabalho. Tornada
nítida esta separação e dicotômicos os espaços, houve também a oposição entre atividade
produtiva, trabalho e tarefas domésticas. Coube à mulher as tarefas domésticas e esta tornou-
se responsável pela administração do lar e pelo processo de socialização dos filhos. Sendo
assim, “desenvolvimento econômico pode ser entendido também como um movimento em
direção a ocupações cada vez mais especializadas fora do âmbito doméstico.”7 Apesar da
progressiva separação dos espaços, a mulher nunca esteve alheia ao mundo do trabalho. Nos
estágios anteriores ao início do processo de industrialização esta era bastante ativa, atuando
nas atividades de subsistência, na manufatura caseira e no pequeno comércio.
A atuação nas atividades de subsistência ou em atividades manufatureiras
executadas no ambiente doméstico descritas acima é tida como a primeira das três fases que a
evolução do nível de participação da mulher na força de trabalho deve atravessar em um país
em desenvolvimento. Nesta primeira fase, em que o número de pessoas empregadas na
agricultura é grande, o nível de participação da mulher na força de trabalho é elevado. Em uma
segunda etapa, o desenvolvimento leva um grande número de pessoas a sair do pequeno
comércio e da fabricação caseira, ocorrendo paralelamente uma migração de áreas rurais para

7
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. “Estrutura do Emprego e trabalho feminino no Brasil 1920-1970”.
Cadernos CEBRAP. São Paulo, vol.13, 1973, p.02.

12
áreas urbanas. Neste momento, em geral, a participação da mulher em atividades produtivas
tende a cair, embora ocorra paralelamente um contínuo crescimento do emprego feminino no
setor de serviços. O terceiro estágio do desenvolvimento econômico compreende a elevação
do nível do emprego feminino justamente no setor de serviços. 8
Torna-se importante definir os diferentes estágios a serem vencidos pela
estruturação do emprego feminino, “pois a etapa em que se acha o processo de
industrialização nas diferentes nações é fator fundamental para definir a quantidade e a
qualificação das mulheres a serem absorvidas pelo mercado de trabalho.” 9 Estando à cargo das
atividades domésticas, uma maior ou menor participação feminina no mercado de trabalho fica
intimamente ligada “às possibilidades que o sistema econômico oferece de conciliar atividades
produtivas e atividades não produtivas no lar.”10 Conforme a pesquisa sobre a estrutura do
emprego e trabalho feminino, desenvolvido por Felícia R. Madeira e Paul I. Singer, a variação
do número de mulheres empregadas em um país pode variar em função da dinamização de um
ou outro setor da economia considerado mais apropriado ao desempenho feminino.
Neste ponto, chegamos à discussão do amplamente empregado conceito de
“trabalho feminino”. Concordamos com a idéia comum a diferentes autores de que para a
definir este conceito torna-se necessária relacionar a idéia de “dependência”, referindo-se à
dependência feminina da figura masculina desenvolvida durante o processo de socialização, e
a constatação de que o mercado de trabalho desempenha papel fundamental na definição dos
trabalhos ditos femininos. Felícia R. Madeira e Paul I. Singer consideram que “aproveitando
ainda da tradicional condição de dependência da mulher em alguns momentos do processo de
desenvolvimento determinadas ocupações são redefinidas como sendo preferível ou
exclusivamente femininas” 11. Exemplos deste tipo de emprego da mão de obra feminina
seriam as indústrias têxteis, de vestuário e de produtos alimentícios, que entre as décadas de
40 e 60 empregaram um considerável contingente de mulheres. Ricardo da Costa Rabello
define ocupações femininas como as que requerem “apenas qualidades medianas de quem as
realiza – ocupações, postos ou serviços chamados por isso “de mulher”. De mulher seriam

8
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p.01-05.
9
BLAY, Eva Alterman. “Trabalho industrial x trabalho doméstico: a ideologia do trabalho feminino”. Cadernos
de Pesquisa. São Paulo, nº15, dez/1975.
10
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p.02.
11
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p.04.

13
deste modo as profissões que dão aos profissionais uma situação de dependência.” 12 Heleieth
Saffioti afirma que “as conjunturas extremamente variáveis da economia capitalista
comandam, pela mediação das ideologias, a participação das mulheres nas atividades
econômicas”13, definindo não só a quantidade da força de trabalho feminina, mas também a
qualidade e a composição desta mão de obra. Em consonância, Eva Alterman Blay considera
que “as carreiras desempenhadas por mulheres na indústria são femininas por uma dupla ação:
são socialmente consideradas adequadas à mulher e não há obstáculos por parte do mercado
em empregá-las.”14
Para confirmar a veracidade destas afirmações, podemos atentar para os dados
que indicam a evolução do emprego feminino na zona rural. De acordo com a já citada
pesquisa de Madeira e Singer, entre os anos de 1960 e 1970 o número de mulheres ativas na
agricultura aumentou cerca de 28%. Segundo os autores, este incremento na mão-de-obra
feminina ocorreu graças ao crescimento do número de pequenas (10 ha) e médias propriedades
rurais (10 a 100 ha), que foi da ordem de 48%, seguindo uma tendência de expansão já
verificada no período anterior (1950-1960), quando a taxa de crescimento destes tipos de
propriedades atingiu 61%. A expansão deste tipo de posse correspondeu em grande medida ao
crescimento demográfico que levou à subdivisão das propriedades e à abertura de novas
fronteiras agrícolas, onde migrantes que se tornaram posseiros ocuparam as novas áreas. A
utilização da mão-de-obra feminina nestas áreas era essencial devido à prática preponderante
da cultura de subsistência e das poucas inovações tecnológicas incorporadas no período. Em
posição oposta, as grandes propriedades, que tiveram o auge do processo de concentração da
propriedade fundiária entre os anos de 1940 e 1950 – com mais de 90% do acréscimo de área
ocupadas no período sendo incorporada a estas propriedades – passaram paulatinamente a

12
RABELLO. Ricardo da Costa. “Aspectos sócio-econômicos da profissionalização da mulher.” Cadernos:
CERU, nº06, junho/1973, p.122. De acordo com os dados levantados por Ricardo da Costa Rabello para verificar
a natureza dos cargos ocupados pelas mulheres no setor industrial têxtil, no funcionalismo público e nas
instituições financeiras no final da década de 60, constatamos que, entre as industriarias, havia um quadro de
88,6% de cargos de dependência, 7,2% de chefia e 1,2% de autônomas, enquanto que entre as bancárias a relação
era de 87,7% de ocupações de dependência, 4,8% de chefia e 3,6% de cargos autônomos. Entre as funcionárias
públicas, foram encontradas 74,4% de postos de dependência, 16,8% de chefia e 5,2% de autônomos. O fato de
encontrarmos um maior número de mulheres ocupando cargos de chefia no último grupo é explicado pelos
critérios de promoção adotados para o preenchimento das vagas
13
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. “Aspectos gerais do problema da mulher.” Cadernos: CERU, nº06,
junho/1973, p.45.
14
BLAY, Eva Alterman. Op. cit., p.09.

14
dispensar o trabalho feminino, sendo que esta redução atingiu a ordem de 62% entre os anos
de 1940 e 1960. A explicação para esta redução é justamente oposta aos motivos que levaram
ao crescimento da utilização da força de trabalho feminina nas pequenas e médias
propriedades: a eliminação da policultura e da cultura de subsistência e a crescente
especialização verificada nestas áreas, aliada ao incremento tecnológico que possibilitou a
dispensa da força de trabalho tanto de homens quanto de mulheres, embora para os primeiros a
taxa de emprego nestas áreas tenha sido crescente (18% entre 1940 e 1950). 15
É interessante notar que, embora tenha havido um incremento de 28% na
atividade feminina na agricultura no período de 1950-1960, a maior parte deste contingente
aparece na pesquisa como membros não remunerados da família. Das 4.522.434 mulheres
ocupadas na agricultura, apenas 17,6%, ou seja, 799.225 eram empregadas, sendo que o
restante, 82,4% estavam incluídas na categoria “responsável, membros não remunerados da
família, parceiros e outra condição”. Na participação por sexo, na categoria empregados, a
participação feminina é de apenas 18,1%, ficando os homens com o restante dos 81,9% dos
empregos agrícolas. 16 (Tabela 1)
Com base nos dados, podemos considerar que o emprego feminino na zona
rural esteve sujeito às mudanças na estrutura fundiária do país que, por sua vez, procurava
integrar-se mais plenamente ao sistema capitalista naquele momento. O incremento
tecnológico, que possibilitou aumento da produtividade, significou também redução de
empregos. Em um primeiro momento, os homens substituíram o trabalho feminino nas
grandes propriedades. Em seguida, houve uma queda geral nas taxas de emprego rural nas
mesmas. Empregando-se nas pequenas e médias propriedades, a mulher participa
limitadamente do emprego efetivo, sendo que um terço dos trabalhadores agrícolas não
assalariados é formado por mulheres, que estão justamente combinando trabalho agrícola com
trabalho doméstico, assumindo tarefas como o cuidado da horta e de pequenos animais.
Assim, mesmo que seu trabalho seja indispensável, a mulher exerce atividades de menor
importância, que não lhe conferem o mesmo status ou posição social do homem. No campo a
mulher ocupa posições de dependência (membro não remunerado da família, trabalhador não
remunerado), sendo até mesmo subnumerada nos Censos Agrícolas que, de acordo com a

15
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p. 19-31.
16
Idem, p.28.

15
ideologia da dependência feminina, não consideravam o trabalho feminino como esforço
efetivo a ser computado.
Embora tenha havido um aumento da força de trabalho feminina na agricultura
da ordem de 65% entre os anos de 1940 e 1970, o crescimento total da população neste
período foi de 130%. De acordo com os dados fornecidos por Madeira e Singer, cerca de 62%
do acréscimo da população agrícola deixou o campo 17 em busca de melhores condições de
vida, incluindo mais oportunidades de emprego, tratamentos de saúde e educação.

17
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p.30, 31.

16
Tabela 1. Pessoas ocupadas na agricultura por posição na ocupação (10 anos e mais)

Posição na ocupação 1960


Total Homens Mulheres
Empregados 4.412.674 3.613.449 799.225
28,2% 32,5% 17,6%
Responsável e
membros não 11.221.311 7.498.102 3.723.209
remunerados da 71,8% 67,5% 82,4%
família, parceiros e
outras condições.
Participação por sexo
Empregados 100,0% 81,9% 18,1%
Responsável e
membros não 100,0% 66,8% 33,2%
remunerados da
família e outras
condições
Fonte: MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. “Estrutura do Emprego e trabalho feminino no
Brasil 1920-1970”. Cadernos CEBRAP. São Paulo, vol.13, 1973, p.19-30.

A década de 1960 apresentou pouco crescimento do emprego feminino no setor


industrial. Enquanto o emprego masculino aumentou 88%, o crescimento para as mulheres
alcançou apenas 27,1%. Supõe-se que estas taxas de crescimento resultaram da retração dos
setores que empregavam um maior número de mulheres (indústria têxtil e de vestuário),
tendência já verificada na década anterior. Entre os anos de 1949 e 1959, a indústria têxtil, que
empregava predominantemente mulheres, passou por crises e transformações que resultaram
na queda de seu volume de emprego: das 313.800 vagas ocupadas em 1949 restaram 306.100
em 1959. A menor expansão dos setores que ocupavam maior contingente de mulheres em
comparação com outros setores como a metalurgia e a indústria de material de transporte
resultou em grande crescimento da taxa de emprego masculino e em menor incremento do
emprego feminino.18
Não devemos concluir da análise destes dados que durante a década de 60/70 a
indústria não tenha oferecido oportunidades de participação para a mulher. O incremento
tecnológico que incorporou a automação e a mecanização em diferentes ramos industriais,
principalmente na produção de materiais elétricos e eletrônicos, possibilitou a utilização de
18
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p.37, 38.

17
mão-de-obra feminina ao lado da masculina. Em consonância com as exigências cada vez
maiores por habilidades ditas femininas, as mulheres foram incorporadas à produção
industrial, chegando a serem preferidas para a realização de tarefas que exigiam delicadeza e
minuciosidade, como na fabricação de transistores e na indústria química. 19 Emblemáticas as
palavras de Maria Amélia de Almeida Teles, combativa ex-presa política e militante feminista,
depoente deste trabalho: “Dócil, submissa, sem reclamar dos salários menores que os de seus
colegas homens, a mulher foi exercendo as tarefas mais monótonas e repetitivas. Obediente às
novas orientações que exigem mais destreza e produtividade, ela foi amplamente incorporada
aos serviços das empresas.”20
Durante a década de 60 houve também a tendência de empregar na indústria um
grande número de mulheres em funções administrativas ou burocráticas. As mudanças
tecnológicas implementadas levaram as indústrias a aumentar a contratação de pessoal ligado
à administração. Estas contratações chegaram a ser maiores do que as de pessoas diretamente
envolvidas na produção. Segundo dados de Madeira e Singer, em 1968 a média de pessoas
contratadas para serviços administrativos era de 19% em todo o setor industrial. No entanto, as
áreas que sofreram maior incremento tecnológico superaram esta média, sendo de 23% na
indústria mecânica, 23% na de material elétrico e 27% na indústria química, 21 justamente onde
verificamos um aumento das contratações femininas. Eva Alterman Blay também chama a
atenção para as ocupações burocráticas desempenhadas pelas mulheres, considerando estas
como exemplos da limitação da participação feminina nas atividades econômicas. De acordo
com a autora, na indústria, a mulher “não ocupa cargos de direção ou gerência. Com muita
freqüência, mesmo quando habilitada especialmente para atividades de produção, desempenha
atividades de caráter burocrático (como engenheiras ou médicas que realizam traduções
técnicas, por exemplo).” 22 Indo além, Heleieth Saffioti considera que além de estarem
ausentes das ocupações que conferem mais prestígio a quem as desempenha – como os cargos

19
MIRANDA, Glaura Vasques de. “A educação da mulher brasileira e sua participação nas atividades
econômicas em 1970.” Cadernos de Pesquisa. São Paulo, nº15, dez/1975, p.22.
20
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999,
p.56.
21
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p.38.
22
BLAY, Eva Alterman. Op. cit., p.09.

18
de gerência, por exemplo – as mulheres ainda recebiam (e, espantosamente, ainda recebem)
remunerações menores que os homens. 23
No entanto, é no setor terciário que se encontra o maior número de mulheres
empregadas. É para a prestação de serviços que a maior parte delas transfere-se depois de
deixar suas ocupações nas áreas rurais. Uma parte considerável das mulheres que chegavam às
cidades encontrava emprego nos grandes estabelecimentos comerciais e nas agências
bancárias que experimentaram um grande aumento entre 1960 e 1970. Nestes
estabelecimentos, era grande a demanda por mão-de-obra feminina, onde predominavam como
balconistas e atendentes. No comércio de mercadorias e de valores, as mulheres passaram a
ocupar 17,6% dos empregos, em oposição aos 4,6% que ocupavam em 1920. 24
Entre 1960 e 1970 houve um aumento intenso do número de empregadas
domésticas, fato que acompanhou uma tendência que se verificava desde a década anterior.
Em 1950, este tipo de serviço absorvia 42,3% da força de trabalho feminina engajada em
atividades não-agrícolas, permanecendo a taxa em torno de 42% em 1970. Madeira e Singer
indicam que a elevação acentuada da demanda por estes serviços “deve ter contribuído para
que um número ponderável de mulheres passasse da situação de desempregadas ocultas a
empregadas domésticas, ou em outros termos, elas deixaram de se dedicar a tarefas domésticas
unicamente em suas próprias casas, para passar a realizá-las em casas de outros, em troca de
sustento e salário."25
A procura por este tipo de trabalho pode indicar que um vasto contingente de
mulheres com baixa escolaridade e que não encontravam oportunidades de emprego
buscassem remuneração em atividades não organizadas de maneira capitalista, sendo
absorvidas pela demanda criada pela prosperidade alcançada pela classe média, que neste
período encontrava-se em franca ascensão econômica.
A área de prestação de serviços de consumo coletivo sofreu um grande
incremento a partir da década de 40, quando a crescente industrialização trouxe consigo a
exigência da melhoria dos serviços prestados (serviços sociais, educacionais e de saúde), que
anteriormente atendiam apenas uma diminuta parcela da população. Houve também um

23
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Op. cit., p.59.
24
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p.40-45.
25
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p.49.

19
aumento na diversidade e na complexidade nas funções da administração pública.
Especificamente, estes serviços absorveram uma parcela significativa da população que se
encontrava subutilizada: as mulheres com diploma de nível superior e que dispunham de uma
boa qualificação profissional. Portanto, foi reduzido o custo social para a expansão destes
serviços, já que foi aproveitado um potencial produtivo ocioso até então. Mais uma vez,
fatores estruturais – o baixo alcance e qualidade dos serviços – impediam que uma parte
significativa da mão-de-obra feminina fosse empregada. È notável o crescimento do emprego
feminino nestes serviços: com um aumento de 22,8% entre os anos de 1960 e 1970, as
mulheres passaram a ocupar 43,3% dos postos na prestação destes tipos de serviços, sendo que
em 1920 ocupavam apenas 17,2%.26
É interessante notar que apenas as mulheres que se empregaram na prestação de
serviços de consumo coletivo – professoras, médicas, enfermeiras, funcionárias públicas,
assistentes sociais, pertencentes à classe média – tinham condições de romper com os vínculos
de dependência encontrados em todos os outros setores onde as mulheres encontravam
ocupação. Somente neste setor elas desempenhavam uma atividade que apresentava o mesmo
caráter econômico e social que o exercido pelos homens. Esta posição de igualdade alcançada
por estas mulheres significava também a necessidade de uma ruptura com o papel
historicamente destinado à mulher. Para desempenharem suas tarefas, estas mulheres tiveram
que valorizar a qualificação que possuíam, encarando-a como atividade a ser plenamente
desenvolvida tendo em vista uma carreira, e romper com as tarefas domésticas, em lugar de
combiná-las, como faziam as mulheres empregadas em outros setores. Para Madeira e Singer,
a ocupação de vagas nos serviços de consumo coletivo por mulheres significava “a medida, se
não a única a mais importante, da integração da mulher na atividade produtiva social com
todas suas conseqüências econômicas e sociais.” 27.
Para as demais mulheres empregadas em outros setores, a ocupação de postos
de trabalho não significou uma efetiva valorização do seu status social, visto que passaram a
ocupar posições menos prestigiadas e remuneradas em relação às atividades exercidas pelos
homens. Neste sentido, são valiosas as palavras de Eva Alterman Blay referindo-se ao salário
pago às mulheres no período: “O salário feminino não apenas pode ser inferior ao do homem

26
Idem, p.50-52.
27
MADEIRA, Felícia & SINGER, Paul I. Op. cit., p.51.

20
na medida em que é considerado complementar, como deve ser inferior a fim de manter a
superioridade masculina no lar.”28 Tanto trabalhadoras urbanas quanto trabalhadoras rurais
separavam nitidamente o espaço do trabalho e o espaço doméstico sendo o segundo mais
importante que o primeiro. Assim, percebiam sua participação na economia doméstica como
auxiliar, apenas como complemento ao salário do marido, mesmo que este fosse menor que o
aferido por elas. Desta maneira, o marido permanecia no posto de “chefe da família”, mesmo
sendo o salário feminino essencial para a manutenção da mesma. Em sua pesquisa sobre a
ideologia que permeou a entrada da mulher no setor industrial, Eva Alterman Blay constatou
que estas não reavaliavam o papel de donas de casa que exerciam anteriormente. Antes, nas
palavras da autora,
“o processo de manutenção da imagem da mulher voltada para o lar e os filhos se
mantém quando a trabalhadora separa rigidamente sua condição de mulher da condição
profissional. O trabalho não é pensado como uma função a ser desempenhada sempre,
aperfeiçoada ao longo dos anos, aprofundada, mas sim como algo que foi ou será
interrompido se as condições familiares ou domésticas requisitarem.” 29

Dentro das famílias, as mulheres continuaram a ocupar as posições designadas


por sua condição de sexo. Esta mesma situação também era encontrada entre as trabalhadoras
rurais. Em pesquisa efetuada por Olinda Maria Noronha entre trabalhadoras rurais, constatou-
se que elas não se definiam como trabalhadoras, mas como donas de casa que estavam “no
trabalho porque precisavam e que gostariam de deixar quando fosse possível” 30, mesmo
porque seu salário era percebido apenas como ajuda tanto por ela como por seu marido. 31
Seguindo este mesmo padrão encontrado na estrutura familiar, a mulher passa a procurar os
empregos tidos como femininos, sem considerar a possibilidade de estabelecer uma carreira
como plano de vida.
“Socializadas para se tornarem esposas e mães de família, as mulheres raramente são
encorajadas a pensar em termos de uma carreira. Quando incentivadas a fazê-lo,
geralmente o são em direção a ocupações que, no mercado de trabalho, representam uma
extensão do papel subordinado que têm na família. Por isso mesmo, a mulher cresce e se

28
SAFFIOTI, Heleieth. Emprego Doméstico e Capitalismo. Rio de Janeiro: Avenir Editora, 1979, p.28
29
BLAY, Eva Alterman. “Trabalho industrial x trabalho doméstico: a ideologia do trabalho feminino. Cadernos
de Pesquisa. São Paulo, nº15, dez/1975, p.14.
30
NORONHA, Olinda Maria. De camponesa a “madame”- trabalho feminino e relações de saber no meio rural.
São Paulo: PUC, 1984 (Tese de Doutorado), p.47.
31
Idem, p.55.

21
educa pensando que se por ventura tiver necessidade de trabalhar, a sua contribuição
será meramente suplementar e temporária.”32
Esta situação está plenamente de acordo com as práticas de socialização
utilizadas dogmaticamente pela sociedade de então e em menor grau por nossa sociedade. Esta
se utiliza dos estereótipos de gênero para estabelecer os papéis sexuais a serem
desempenhados por seus integrantes, influenciando assim suas atuações sociais. Estamos
utilizando aqui, a definição de gênero descrita por Maria Alice D‟Amorim:
“gênero como a soma das características psicossociais consideradas apropriadas a cada
grupo sexual, sendo a identidade de gênero o conjunto destas expectativas, internalizado
pelo indivíduo em resposta aos estímulos biológicos e sociais.” 33

No processo de socialização, a aquisição de uma identidade de gênero,


“conjunto de crenças, atitudes e estereótipos do indivíduo”34, é estimulada principalmente pela
família que, como parte do processo, cria uma expectativa em relação ao desempenho escolar
da criança de acordo com seu sexo. Passam a esperar do menino um bom desempenho nas
matérias ditas científicas ou exatas para que ele possa, no futuro, desempenhar a tradicional
função de chefe e mantenedor da família. Para a menina, julgam apropriado que ela se saia
bem nas matérias humanas, tendo em vista que supostamente estas a tornariam mais apta a
desempenhar o papel de suporte e apoio emocional para a família. Nas palavras da autora:
“As alternativas profissionais masculinas e femininas são bem diversas em
quantidade e valor social; os meninos são encaminhados para as mais tradicionais, ou
mais rendosas segundo o tipo de valores familiares. As meninas, limitadas às profissões
menos exigentes e rendosas, têm ainda hoje, dificuldade de acesso às áreas consideradas
masculinas. Estas diferenças de socialização afetam a percepção do mundo e resultam
em identidades de gênero diferentes.” 35

Na maioria das vezes, os estereótipos de gênero tornam-se parte da


personalidade construída pelo indivíduo e de seu quadro de valores, em um processo de
internalização que passa a orientar as escolhas futuras da pessoa. Neste sentido, as colocações
procuradas pelas mulheres no início da década de 60 - e posteriormente, na segunda metade da
década, com o milagre econômico e a crescente demanda por mão-de-obra para a ocupação
das vagas recém-criadas - eram as ocupações tidas como femininas, ou seja, as que exigiam
32
MIRANDA, Glaura Vasques de. Op. cit., p.23.
33
D‟AMORIM, Maria Alice. “Cognição social, estereótipos de gênero e sexismo”. Revista Ciências Sociais. Rio
de Janeiro, vol.02, nº02, Dezembro, 1996, p.158.
34
Idem, p.158.
35
Ibidem, p.159.

22
um menor grau de qualificação ou que criavam ou detinham algum vinculo de dependência,
como citado anteriormente.

A mulher e as mudanças comportamentais

Conforme salientado, o processo de socialização utiliza os estereótipos de


gênero para estabelecer os papéis sexuais que deverão ser desempenhados pelos agentes
sociais, influenciando assim suas atuações. Este processo é realizado pelas instituições sociais,
principalmente pela família e pela escola. A família da década de 60 tratava a questão da
profissionalização de seus componentes de acordo com as relações de gênero socialmente
estabelecidas. Em outras palavras, incentivavam suas filhas a desempenharem trabalhos
remunerados que fossem extensão do papel feminino socialmente definido de esposas, mães e
donas de casa. Por este motivo, como vimos anteriormente, as mulheres procuravam ou
aceitavam ocupações que tivessem caráter de dependência ou exigissem menor grau de
qualificação. Ao tratar do processo de socialização no texto “Trabalho industrial x trabalho
doméstico: a ideologia do trabalho feminino”, Eva Alterman Blay compara a iniciação
feminina com a masculina na atividade remunerada. De acordo com a autora:
“O início da atividade masculina remunerada costuma ser (parece-nos) cercada de um
certo regozijo por parte da família e por uma aprovação ostensiva dos amigos. Todos
acham que o rapaz que trabalha está cumprindo com seus deveres, está desde cedo
ajudando na casa, aliviando seus pais de um encargo econômico, demonstrando
maturidade. Mesmo nas camadas onde este trabalho não é necessário ele é altamente
valorizado como prematura demonstração da atitude „responsável‟ que o rapaz terá no
futuro. Ao tratar da moça, porém, o início da vida profissional se faz freqüentemente sob
a expectativa de que este estágio de atividade é passageiro, de que „infelizmente‟ ela
precisa trabalhar, mas ao se casar ela não mais „precisará‟ faze-lo, de que está sendo
obrigada a isso por razões econômicas. Quando não há este clima de estar a mulher
desempenhando um „falso papel‟ há uma muda indiferença que certamente vem se
somar à desaprovação e não criar um estímulo.” 36

Portanto, percebemos que o processo de socialização realizado pela família


induzia tanto homens como mulheres a encararem a profissionalização feminina – uma
inovação social – com reservas. Embora o trabalho produtivo fosse, de uma maneira geral,

36
BLAY, Eva Alterman. Op. cit., p.11.

23
altamente valorizado pela sociedade, as mulheres não eram incentivadas a desenvolverem seu
pleno potencial nesta área.
Um dos fatores que deveriam contribuir para aumentar a participação feminina
nas atividades produtivas era a educação. As escolas, segundo Eva Alterman Blay, “têm sido
entendidas como instituições destinadas a transmitir valores e atitudes de geração a geração e a
preparar os recursos humanos de uma nação para um papel produtivo.”37 No entanto, antes de
preparar as mulheres, entendidas como recursos humanos, para uma inovadora atividade
social, a escola continuava a conduzir seus alunos para os papéis reservados pela sociedade.
Guiomar Namo de Mello considera que “a escola em si mesma não é responsável pelos
estereótipos culturais. Todavia, funciona como mais uma agência de socialização a fortalece-
los.”38 De acordo com a autora, no período, a escola mantinha uma postura tradicional em
relação aos papéis sexuais e em alguns casos, para a realização das atividades curriculares, os
alunos ainda eram separados por sexo. Para as aulas destinadas à sondagem de aptidões
meninos e meninas iam para classes diferentes. 39 Eva Alteram Blay conclui que:
“Ao invés de tentar incentivar as mulheres para novas atividades e novas áreas, as
instituições educacionais parecem reforçar o papel tradicional, e quando tentam ampliar-
lhes os horizontes para novas atividades, acabam por criar nelas conflitos, uma vez que a
sociedade dificulta, ou mesmo impede a sua participação em igualdade com o homem.
Por essas razões, parece que a educação desempenha um papel até certo ponto
contraditório no sentido de levar maior número de mulheres a uma participação ativa na
força de trabalho. Educando as mulheres, estaríamos aumentando a sua probabilidade de
trabalho no mercado em atividade que exige mais alto nível de escolarização, mas
devido ao preconceito cultural, é provável que essa maior participação não se faça em
igualdade de condições com o homem.” 40

O conflito que se instala na alma feminina referido Eva Alterman Blay é


definido por Heleieth Saffioti como “uma profunda ambigüidade” construída pelo processo de
socialização e que leva a mulher a oscilar entre os extremos trabalhadora – dona de casa.41
Esta ambigüidade era ainda reforçada pelo fato de que as características necessárias para o
sucesso no mercado de trabalho não eram as mesmas que a família e a escola incentivavam

37
BLAY, Eva Alterman. Op. cit., p.23.
38
MELLO, Guiomar Namo de. “Os estereótipos sexuais na escola”. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, nº15,
dez/1975, p.142.
39
Idem, p.142.
40
BLAY, Eva Alterman. Op. cit., p.23.
41
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Op. cit., p.84.

24
que as mulheres desenvolvessem. Este mesmo conflito ou ambigüidade acabava – e ainda hoje
o faz – por criar nas mulheres o chamado “motivo para evitar o sucesso”, ou seja, o receio de
mulheres com elevada capacidade intelectual e até mesmo inclinadas a adotarem valores
inovadores, de empenharem-se demais para serem bem sucedidas. Pesquisa feita por Carmem
Lúcia Barroso e Guiomar Namo de Mello mostra que é provável que naquele período, este
receio resultasse da associação entre o sucesso e a perda da feminilidade, do o entendimento
de que a realização profissional era incompatível com um relacionamento afetivo estável e
com a maternidade ou do medo de que a competência da mulher impedisse que esta fosse
amada. 42
Contudo, em consonância com uma tendência mundial, uma vanguarda de
mulheres, com idade entre vinte e trinta anos, rompeu com os padrões comportamentais acima
descritos e empreendeu mudanças profundas e significativas para os moldes da época. Estas
mulheres pretendiam alterar os papéis sociais a elas destinados pelo processo de socialização.
Esta vanguarda, pertencente à classe média, queria ultrapassar o modelo de comportamento
social herdado de suas mães e avós, ou seja, queriam outro papel que não de ordenar o poder
privado, familiar e materno a que estavam culturalmente destinadas. Estas mulheres
questionavam a idéia de feminilidade vigente, que apresentava como mulher ideal “aquela
frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem”43, queriam demonstrar que escapavam do
estereótipo natural da mulher passiva. Com este objetivo, começaram questionar os valores e
conceitos morais já institucionalizados como a virgindade, o casamento, a monogamia, o
posicionamento da maternidade como necessidade para a realização pessoal feminina e o
exercício da sexualidade como procriação e dever, não como prazer e como direito a ser
livremente exercido. Para esta vanguarda a liberdade sexual se fez acompanhar da pílula
anticoncepcional, cujo uso, acelerou as mudanças comportamentais. 44 Naquele período a moda
também acompanhou as mudanças comportamentais. Como expressão da liberdade emergente

42
BARROSO, C.L de Melo e MELLO, G. Namo de. “O acesso da mulher ao ensino superior brasileiro”.
Cadernos de Pesquisa. São Paulo, nº15, dez, 1975, p.75.
43
BRITO, Maria Noemi Castilhos. “Mulheres como sujeitos sociais: a diferenciação feminina.” Revista Ciências
Sociais. Porto Alegre, vol.01, nº02, 1987, p.173.
44
Embora tida como fator libertador, o uso da pílula anticoncepcional demorou a se popularizar. Como mostra
Zuenir Ventura: “Uma pesquisa realizada no então Estado da Guanabara, entre 1965 e 67, mostrava que 76% das
quatro mil mulheres ouvidas usavam todos os tipos de velhos anticoncepcionais – dos diafragmas à raspagem do
útero –, menos as pílulas.” VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1988, p.35.

25
foram criados a minissaia e o biquíni, amplamente adotados pelo público feminino e criticados
na mesma proporção pelas alas conservadoras da sociedade. No entanto, não só a igreja e
outros setores conservadores depreciaram as mudanças comportamentais da década de 60.
Também as organizações de esquerda criticaram a nova forma de comportamento feminino e
tiveram dificuldades em aceita-lo.
Apesar das apreciações negativas, estas mulheres não se refrearam. Além do
direito de exercer sua vontade sobre o próprio corpo, estas mulheres também passaram a exigir
um acesso igualitário ao sistema educacional, o que possibilitaria uma melhor qualificação
para o mercado de trabalho e a conseqüente ascensão social da mulher. Desta forma, poderiam
deixar de ser “apêndices econômicos" de seus maridos. Zuenir Ventura descreve da seguinte
forma o posicionamento destas mulheres no que dizia respeito à independência econômica e à
separação conjugal:

“Na prática, isso significava para elas deixar a confortável condição de apêndice
econômico, a segurança psicológica de um lar, e partir para a arriscada aventura da
experimentação existencial, que se podia traduzir na busca de uma profissão, e novas e
descomprometidas relações, ou às vezes, em um mergulho na solidão.” 45

Enquanto vanguarda, mesmo ameaçadas por este tipo de risco, estas mulheres
continuaram avançando para ocupar os espaços até então tidos como tipicamente masculinos.
Embora, a possibilidade da mulher exercer uma profissão, com formação acadêmica, existisse
desde a década de 30, somente na década de 60, com o surgimento da universidade de massas,
é que se consolida esta tendência. Também, conforme vimos, a profissionalização feminina
não era incentivada pelas famílias. 46
Os resultados deste avanço feminino podem ser avaliados pelos dados
levantados por Rose Marie Muraro, que indicam que em 1969 cerca de duzentos mil homens
estavam na universidade, enquanto no mesmo período havia apenas cem mil mulheres nas
mesmas condições. No ano de 1975 – Ano Internacional da Mulher – o número de mulheres

45
Idem, p.29.
46
TRIGO, Maria H.B. “A mulher universitária: códigos de sociabilidade e relações de gênero”. In: BRUSCHINI,
C. e BILA, S. Novos Olhares. São Paulo: Marco Zero/Fundação Carlos Chagas, 1994, p.93. Maria Helena Bueno
Trigo, faz uma excelente análise do papel socializador exercido pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, da Universidade de São Paulo, por ocasião de sua fundação na década de 30. A autora considera que
com a abertura deste espaço, começou-se a cogitar, entre as famílias, a possibilidade de suas filhas cursarem uma
universidade, embora, isso necessariamente não significasse que futuramente, elas pudessem exercer a profissão
para que estudaram.

26
havia igualado-se ao dos homens, quinhentas mil mulheres para quinhentos e oito mil homens,
ou seja, o número de mulheres quintuplicou em cinco anos. 47 Percebemos que, apesar da
crescente procura feminina pela formação universitária, fruto e também potencializadora das
mudanças sociais, os cursos procurados pelas mulheres apresentavam o mesmo padrão das
profissões femininas discutidas anteriormente. Em outras palavras o estereótipo de gênero
aprendido no processo de socialização ainda desempenhava um papel importante nas escolhas
profissionais femininas. Assim encontramos uma preponderância feminina nos cursos
relacionados a letras, artes, educação, filosofia, psicologia e enfermagem 48, enquanto, por
exemplo, somente 3% dos matriculados nos cursos de engenharia em 1971 pertenciam ao sexo
feminino. 49 Notamos que, embora o aumento no número de matrículas femininas tenha sido
significativo, ele não se distribuiu de maneira uniforme entre os cursos das diversas áreas de
conhecimentos.
Outro fator que indica o aumento constante da presença feminina nas
universidades – embora resultado de um fato histórico indesejável – foi a entrada de um
considerável número de mulheres, professoras assistentes, nos cargos deixados por professores
cassados em 1968, mostrando que estas eram numericamente significativas nos quadros das
universidades naquele período. Chama a atenção o fato de que a grande maioria das
contratadas fosse constituída de mulheres solteiras50. Isto possivelmente se deu pela recente
qualificação profissional adquirida por estas mulheres. Provavelmente, estas não estavam
comprometidas com os encargos familiares produzidos pelo casamento e podiam se dedicar
integralmente à profissionalização. Esta possibilidade as diferenciava das mulheres casadas
que, para obterem a mesma qualificação, tinham que enfrentar desafios mais numerosos, como
a dupla jornada e o conflito instalado entre a dedicação ao trabalho doméstico e a realização
profissional.
Portanto, consideramos que apesar da forte influência que o estereótipo de
gênero inculcado nas mulheres por meio do processo de socialização, exercia no
comportamento e nas suas escolhas profissionais da década de 60, as mudanças
47
MURARO, Rose Marie. Sexualidade da mulher brasileira. Corpo e Classe social no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1983, p.14.
48
GOLDBERG, Maria Amélia Azevedo. “Concepções sobre o papel da mulher no trabalho, na política e na
família”. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, nº15, dez, 1975, p.103.
49
BARROSO, C.L. de Melo e MELLO, G. Namo de. Op. cit., p.52.
50
TRIGO, Maria H.B. Op. cit., p.106,107.

27
comportamentais empreendidas naquele período por uma vanguarda de mulheres não devem
ser desconsideradas. Estas mudanças permitiram que nas décadas seguintes as mulheres
pudessem conquistar efetivamente espaços e direitos iguais aos dos homens. Também
possibilitaram que o estereótipo de gênero feminino fosse alterado, permitindo que as
mulheres fossem socializadas desenvolvendo e valorizando outras características que não as
imediatamente identificadas com o ser feminino tradicional. Estas mudanças abriram espaço
para que as mulheres de gerações posteriores desenvolvessem outros papéis sociais.

A mulher e a ação política

Historicamente, os indivíduos sempre agiram influenciados pela identidade de


gênero adquirida em seu processo de socialização. De acordo com isto, as mulheres, de quem
se esperava submissão, obediência e passividade, estiveram confinadas ao espaço privado do
lar, principalmente após a extrema racionalização dos papéis sexuais ocorrida no século XIX.
Portanto, o papel social destinado à mulher não permitia que esta possuísse o poder político,
tradicionalmente masculino, mas possibilitava que ela exercesse influência sobre a sociedade
civil, numa equivalência entre feminino, poder privado e sociedade civil, em oposição ao
masculino, poder político e Estado. Isto não quer dizer que dentro de seus lares as mulheres
reinassem absolutas: havia ainda o chefe da família, a quem deveriam prestar contas sobre as
decisões tomadas ou ordens não cumpridas. Neste sentido, Michelle Perrot considera que “o
poder político é apanágio dos homens – e dos homens viris. Ademais, a ordem patriarcal deve
reinar em tudo: na família e no Estado. É a lei do equilíbrio histórico.”51
Portanto, para aquelas mulheres da década de 60, significava uma grande
ousadia pretenderem o espaço masculino por excelência. No entanto, muitas delas ousaram. E
mais: ousaram duplamente. Um considerável número de mulheres pertencentes a esta
vanguarda, além de tornar-se militante política, passou ainda a integrar as organizações
políticas de esquerda que se opunham ao regime militar instalado em 1964 e, em muitos casos,
optaram pela via armada como solução política contra as forças do arbítrio.
51
PERROT, Michelle. Op. cit., p.175.

28
Oriundas principalmente do movimento estudantil, estas mulheres eram cerca
de 18% do total dos integrantes das organizações de esquerda que pegaram em armas contra o
regime militar. A grande maioria das processadas compunha-se de estudantes (186; 32,2%),
professoras ou profissionais com formação superior (133; 23,0% e 103; 17,8%
respectivamente), constituindo um total de 422 mulheres (73,0%), que podem ser classificadas
como pertencentes à classe média, assim como a maioria dos integrantes processados (58%,
1096 de um total de 1897 homens e mulheres). 52 Em menor número, mulheres de outros
extratos sociais – trabalhadoras manuais, rurais e urbanas – também foram processadas por
envolvimento com as esquerdas em geral (10 trabalhadoras manuais, um total de 1,7 das 578
denunciadas com atuação conhecida), enquanto que por envolvimento com os grupos
armados, nenhuma trabalhadora manual esteve nesta situação.

Tabela 2. Mulheres processadas por envolvimento com movimentos de esquerda.


Origem social e ocupação Nº. de mulheres %
Classe Média
Estudantes 186 32,2%
Professoras 133 23,0%
Profissionais com formação superior 103 17,8%
Outros extratos sociais
Trabalhadoras manuais 10 1,7%
Outras categorias 146 25,3%
Total de mulheres denunciadas 578 100%
Fonte: RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: UNESP, 1993,
p.197.

Embora estas mulheres estivessem desempenhando um importante papel na


transformação da sociedade, este fato não era percebido pelas organizações em que se
engajavam. Enquanto as militantes questionavam “a redução das formas de discriminação
social ao exclusivo conflito de classes, condenavam as hierarquias, as estratégias que
subordinavam as reivindicações e lutas das mulheres” ao advento do período revolucionário
52
Dados retirados de RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: UNESP, 1993, p.197.
Marcelo Ridenti, com base nos arquivos do projeto Brasil: Nunca Mais, classifica as processadas aqui citadas
como pertencentes às “camadas médias intelectualizadas” (p.197). Maria Amélia de Almeida Teles em Breve
História do Feminismo no Brasil (p.64), calcula o total de mulheres que participaram dos grupos armados com
base no levantamento de mortos e desaparecidos políticos feito pelo Comitê Brasileiro de Anistia. Considera que
de um total de 340 nomes, 40 são mulheres, perfazendo um percentual de 11,7%, que coincide com o número
apresentado pelo livro Perfil do Atingidos, que é de 12%. Devemos, portanto, considerar que não existe um
levantamento real sobre o número de mulheres que participaram das organizações de esquerda armada ou não.

29
“sempre distante”53, as organizações relegavam a discussão sobre as questões femininas
específicas – discriminação salarial, dupla jornada e discriminação sexual - à segundo plano,
consideradas como divisionistas das lutas gerais contra a ditadura militar. “Não percebiam que
a defesa da liberdade do corpo se opõe frontalmente ao autoritarismo e se integra plenamente
na luta por melhores condições de vida e trabalho”54.
Esta vanguarda feminina tornou-se precursora do debate feminista que se
consolidou no final da década seguinte. Estas mulheres percebiam a importante contribuição
que a discussão dos problemas femininos específicos dariam para a solução dos problemas que
as esquerdas propunham-se a resolver, tendo em vista que a exploração da mulher era
essencial para a reprodução do capitalismo. No entanto, a consolidação do movimento
feminista no Brasil deu-se apenas no final da década de 70, quando muitas militantes
retornaram do exílio e encontraram um espaço de discussão maior do que o existente na
década anterior. Até então, o governo militar procurava construir sujeitos políticos únicos
desprovidos de visão crítica e por sua natureza conservadora, “reforçava a construção de
sujeitos historicamente retrógrados”55. Da mesma forma, as organizações de esquerda
consideravam divisionistas as questões feministas e não permitiam a criação de um espaço
amplo de discussão.
Como caso específico, no Brasil, a emergência do movimento feminista esteve
associada à luta pelo restabelecimento das liberdades democráticas, tendo em vista que estas
mulheres acreditavam que em nenhum momento a luta pela libertação feminina deveria estar
desassociada da busca de soluções para os problemas gerais da sociedade. Neste contexto, em
um primeiro momento, grande parte das militantes que retornaram do exílio reintegrou-se às
organizações de esquerda remanescentes e, posteriormente, aos partidos políticos
reconstituídos - como foi o caso do Partido Comunista do Brasil (PC do B). No entanto,
voltaram a enfrentar resistências, como relata Maria Amélia de Almeida Teles:

“Os dirigentes do partido não admitiam que suas militantes discutissem questões como
sexualidade, aborto e o direito de a mulher decidir sobre seu corpo. Eram contrários aos
53
LOBO, Elizabeth Souza. “Mulheres, feminismo e novas práticas sociais” Revista Ciências Sociais. Porto
Alegre, vol.01, nº02, 1987, p.266.
54
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999,
p.147.
55
PINTO, Celi Regina Jardim. “A mulher como sujeito político: o caso latino americano.” Revista Ciências
Sociais. Porto Alegre, vol.01, nº02, 1987, p.169.

30
encaminhamentos de lutas contra a violência doméstica e sexual. Diziam-se temerosos
de que tais questões pudessem provocar “divisões no seio da classe operária”.
Argumentavam que tais bandeira satisfaziam apenas uma elite e não “galvanizavam as
amplas massas femininas”.”56

Em alguns setores da esquerda, as feministas eram classificadas como


burguesas e suas propostas como sexistas. Suas propostas eram rejeitadas porque
supostamente não interessavam às mulheres pertencentes à classe trabalhadora. E mais:
poderiam trazer discórdia e divisões aos lares dos trabalhadores.
Confrontadas com tais resistências, as feministas brasileiras deram-se conta de
que o movimento necessitava de autonomia frente aos partidos políticos, embora existam
ainda feministas atuando neles. Passaram a acreditar que “no movimento devem participar
tanto mulheres autônomas como militantes de partido. Esse movimento deve ter uma estrutura
que garanta a democracia interna, impedindo a manipulação”. 57
Não só as organizações de esquerda resistiam ao movimento feminista. A
sociedade como um todo também o fazia. O feminismo era associado por ambas as partes com
o homossexualismo feminino. Por meio dos órgãos de imprensa, era transmitida uma imagem
pejorativa de mulheres que se organizavam contra os homens e queimavam sutiãs em sinal de
rebelião. Principalmente nos setores conservadores da sociedade, havia o temor da
desagregação e da perda dos valores morais. Temiam que esta subversão de valores pudesse
destruir as famílias. É interessante notar que este tipo de temor estava plenamente de acordo
com as expectativas sociais vigentes no período para o papel feminino. Neste sentido,
podemos destacar a discussão anterior (1939 a 1942) do anteprojeto “Estatuto da Família” que
propunha em seu conteúdo duas idéias consideradas indissociáveis: “as necessidades de
aumentar a população do país e de consolidar e proteger a família em sua estrutura
tradicional”. O anteprojeto propunha que o Estado fornecesse educação diferenciada para
homens e mulheres, a fim de que as mulheres tornassem-se “afeiçoadas ao casamento,
desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes da administração da
casa”. 58 Ficam evidentes aqui as características esperadas no comportamento feminino que,

56
TELES, Maria Amélia de Almeida. Op. cit., p.123.
57
Idem, p.127.
58
LOURO, Guacira Lopes. “Donas de casa, artesãs e técnicas.” In: BRUSCHINI, Cristina & BILA, Sorj. Novos
Olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo: Marco Zero: Fundação Carlos Chagas, 1994, p.165.
Embora tenha sofrido alterações, algumas idéias deste projeto tornaram-se parte da Reforma Capanema de 1942.

31
embora tidas como “naturais”, deveriam ser reforçadas através da educação formal, para
assegurar a preservação da instituição familiar.
Uma atitude oposta à das militantes políticas de esquerda, mas com as mesmas
características acima citadas e valorizadas, pode ser percebida nas mulheres de direita
organizadas que marcharam em apoio ao golpe militar em 1964. Organizadas por entidades
surgidas a partir de 1962 - como a União Cívica Feminina, o Movimento da Arregimentação
Feminina (MAF) e a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde) -, milhares de mulheres
participaram da Marcha com Deus pela Família e a Liberdade. Estimuladas por setores da
direita, estas mulheres desenvolveram uma “prática política” que, embora ativa e organizada,
não rompia com as expectativas tradicionais a elas destinadas. Ou seja, embora politicamente
ativas, não deixavam de ser mulheres passivas e submissas. Embora as lideranças estivessem
conscientes do papel que estavam desempenhando, grande parte das mulheres que
compunham este movimento eram empregadas domésticas, faveladas e trabalhadoras que,
ligadas à princípios religiosos, acreditavam que estavam salvando suas famílias e o país.
Em certa medida, a prática política desenvolvida por estas mulheres era
desprovida de conteúdo, pois se dava a partir da manutenção da separação tradicional entre
mulher e política orquestrada pelas forças de direita. Concordamos aqui com os argumentos
apresentados por Marcello Baquero e Jussara R. Prá, no artigo “Participação real e espaço
imaginário: a mulher e a democracia na América Latina.”59 Neste, os autores consideram que
os setores de direita contrários ao nacional reformismo, interessados na manutenção de seus
interesses, lançaram mão de suas mulheres para a “defesa da democracia”, identificando
implicitamente o estereótipo tradicional de feminilidade e o subseqüente papel de esposa, mãe
e dona-de-casa, com o qual nem mesmo as lideranças haviam rompido, com a defesa da Pátria,
da Família e da Propriedade. Nesse sentido, podemos dizer que a prática feminina era
desprovida de conteúdo porque fazia parte de uma trama onde setores políticos souberam
“operacionalizar métodos e estratégias” para mantê-las afastadas da política. Os autores
sugerem que,

“Nesse caso, o objetivo primeiro dos mentores dos movimentos revolucionários,


consistia em chamar a mulher às ruas para que ela viesse defender o privado (família)

59
BAQUERO, Marcelo & PRÁ, Jussara R. “Participação real e espaço imaginário: a mulher e a democracia na
América Latina.” Revista Ciências Sociais. Vol.01, nº02, 1987.

32
até que, uma vez restauradas a ordem democrática, ela voltasse a atuar única e
exclusivamente no espaço privado.”60

Em verdade, houve, por parte de setores da direita, uma manipulação do


interesse destas mulheres em defender seu espaço privado. Elas saíram às ruas, ao espaço
público sem questionarem a situação de subordinação a que estavam submetidas em suas vidas
cotidianas. Não havia por parte delas interesse em obter ganhos políticos com sua atuação, ou
seja, aceitavam atuar apenas como suporte para a prática política masculina. Podemos
perceber este fato como a internalização sem questionamentos dos papéis sexuais impostos
pela sociedade. Estas mulheres incluíram em suas identidades de gênero a submissão e a
passividade como uma característica intrinsecamente feminina.
As mulheres de direita organizadas assumiram também outros dois papéis: o de
representantes da opinião pública e o de atuação junto às classes populares para a
conscientização destas a respeito da importância do fortalecimento da democracia, utilizando
para isto campanhas assistencialistas e reuniões na periferia para tratar de assuntos como
civismo e educação democrática. Após o golpe militar, estas mulheres organizadas
permaneceram como entidades de apoio ao novo regime instalado, defendendo as medidas
adotadas por este. Acreditamos assim, como os autores, que

“desta forma, as mulheres se mobilizaram mais uma vez (dando continuidade à sua
pregação anticomunista) não só para exigir a punição indistinta de socialistas,
comunistas, populistas, militantes políticos, etc., mas também, buscando dar
legitimidade às diversas medidas políticas dos governos revolucionários e reivindicando
para si, a posição de “termômetros da opinião pública”.” 61

Neste papel de termômetro da opinião pública as mulheres passam a organizar o


Movimento pela Anistia em oposição às medidas repressivas adotadas pelo regime militar.
Sendo mães, esposas, filhas e companheiras, estas mulheres começaram a reivindicar medidas
do governo militar a respeito do desaparecimento de presos políticos e a volta dos exilados. 62
O início desta luta deu-se ainda no ano de 1968, quando da prisão dos estudantes que

60
BAQUERO, Marcelo & PRÁ, Jussara R. Op. cit., p.196.
61
BAQUERO, Marcelo & PRÁ, Jussara R., op. cit., p.198.
62
Processo semelhante aconteceu na Argentina, protagonizado pelas Mães da Praça de Maio em 1977, que
saíram às ruas para pedir a volta dos presos políticos desaparecidos e combater a política de repressão do governo
revolucionário argentino. Para mais informações sobre este assunto ver: RODRIGUEZ, Matilde. Participação
das mulheres na guerrilha argentina. Franca: UNESP, Dissertação de Mestrado, 2001.

33
participavam do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, formou-
se uma comissão de mães pela libertação de seus filhos. Em 1975, no Ano Internacional da
Mulher, estas mulheres passaram um abaixo assinado que percorreu todo o país acompanhado
do “Manifesto da Mulher Brasileira”, em favor da anistia. Com a grande adesão de estudantes,
profissionais liberais, outros trabalhadores e mães de família, criou-se o Movimento Feminino
pela Anistia, que mais tarde passou a integrar o Comitê Brasileiro pela Anistia, que contribuiu
decisivamente para a aprovação da Lei da Anistia em 28 de Agosto de 1979.63
Com relação a estes movimentos de oposição ao regime militar liderados pelas
mulheres chama a atenção o fato de que estas sofreram “pouca” repressão, apesar de seu
movimento opor-se efetivamente ao regime militar instituído. Isto se deu porque mães,
esposas, filhas e companheiras postavam-se como guardiãs de suas famílias que reivindicavam
a volta de seus familiares, ou seja, seres privados que por não estarem disputando espaço
político não mereciam repressão direta.
Portanto, percebemos que na década de 60 as mulheres tiveram uma atuação
política ativa. Em um primeiro momento, encontramos as mulheres de direita organizadas
marchando contra as medidas nacional-reformistas do governo Goulart que acabaram por
apoiar, respaldar e legitimar o golpe militar. Embora tivessem uma atividade política ativa e
organizada, esta se mostrou sem conteúdo inovador, já que não rompia com os estereótipos de
gênero praticados pela sociedade nem pressupunha a permanência das mulheres no cenário
político. Estas mulheres foram convocadas apenas para defenderem elementos sociais
identificados com a ordem privada e para esta mesma ordem deveriam retornar após
desempenharem seu papel.
Em um segundo momento, encontramos as militantes de esquerda que, mesmo
desorganizadas quando do advento do golpe militar, ao contrário das mulheres de direita,
tornaram-se mulheres críticas que passaram por mudanças comportamentais. Questionaram o
papel sexual a elas destinado, que incluía a passividade e a subalternidade como características
femininas “naturais” e as colocava em situação de desvantagem nas relações sociais. Queriam
alterar este quadro e, para tanto, reivindicavam espaço para a discussão de seus problemas
específicos fora e principalmente dentro das organizações de esquerda. Com o retorno das

63
TELES, Maria Amélia de Almeida. Op. cit., p.82.

34
militantes do exílio, no final da década de 70, os saberes sobre os problemas femininos
específicos que haviam ficado dispersos foram reaglutinados e ligados às lutas gerais da
sociedade, dando assim importante contribuição para a consolidação do movimento feminista
no Brasil.

35
Cap. II – A Mulher e a Militância

A mulher e as organizações de esquerda

A grande constelação de organizações de esquerda que fazia oposição ao


governo militar estabelecido após o golpe de 1964 tem suas origens nas organizações
existentes no início da década de 60: o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Ação Popular
(AP), a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-POLOP) e o Partido
Comunista do Brasil (PC do B), cisão do PCB. Em torno destas organizações orbitava todo o
pensamento de esquerda de então, sendo que as divergências entre elas estavam contidas nas
linhas políticas adotadas por cada uma.
O Partido Comunista Brasileiro, que até 1961 chamava-se Partido Comunista
do Brasil, era o aglutinador das idéias marxistas e constituía-se na principal organização de
esquerda da década de 60 e, apesar de encontrar-se clandestino neste período, tinha presença
marcante nos sindicatos industriais. A partir da Declaração de Março de 1958 e das resoluções
do V Congresso de Agosto de 1960, o PCB adotou uma linha pacifista de atuação política que
dava espaço para os processos eleitorais. Valorizava as instituições políticas existentes e
privilegiava o caminho para as transformações pacíficas da sociedade brasileira. De acordo
com a Declaração de Março, o desenvolvimento do capitalismo nacional era progressista e
vital para livrar o país das forças do atraso: os resquícios feudais e a dependência do
imperialismo norte americano. O PCB considerava que as forças progressistas nacionais, entre
elas a burguesia nacional e setores de latifundiários que se opunham ao monopólio estrangeiro,
deveriam unir-se “com a classe operária, os camponeses e a pequena burguesia urbana numa
Frente Única contra as forças do atraso: o imperialismo norte americano e as relações
semifeudais na agricultura.”64
O golpe militar, que na verdade foi fruto da união de setores sociais, políticos e
econômicos nacionais e internacionais, inclusive da burguesia nacional que havia se tornado
uma ardilosa aliada do capital estrangeiro, surpreendeu o PCB, resultando em um
constrangedor imobilismo.

64
REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1990, p.23.

36
O Partido Comunista do Brasil (PC do B) é fruto de uma cisão ocorrida no seio
do PCB devido às discussões sobre a linha política a ser adotada pelo partido que aconteceram
entre 1956 e 1960. Discordantes do papel que o PCB destinava à burguesia e da linha pacifista
adotada, João Amazonas, Maurício Gabróis, Pedro Pomar, Diógenes Arruda e outros ex-
integrantes da Executiva do partido fundaram o PC do B, reivindicando para este o posto de
verdadeiro Partido Comunista Brasileiro, fiel ao regimento de fundação datado de 1922.
Passaram a pregar, ao contrário do PCB, a violência revolucionária como o único meio para a
conquista de um governo revolucionário popular. Proponente da guerra popular prolongada
com o cerco das cidades pelo campo, o PC do B absteve-se das ações armadas urbanas e
afastou-se das manifestações operárias.
Acreditando que o campo constituía o elo fraco da dominação burguesa, o PC
do B procurou lançar ali as suas bases. Militantes se fixaram na região do rio Araguaia no sul
do Pará, área considerada ideal devido ao intenso conflito pela posse da terra que ocorria na
região entre fazendeiros, posseiros e grileiros, naquele período. Acreditavam que ali, devido
aos conflitos sociais flagrantes, poderiam conseguir o apoio de um grande contingente de
camponeses. A partir de 1967, iniciaram um trabalho sigiloso para a formação de um núcleo
guerrilheiro na área. Na Resolução do Comitê Central de janeiro de 1969 intitulada Guerra
Popular – Caminho da Luta Armada no Brasil, o PC do B analisou as experiências de luta
armada no Brasil e concluiu que o modelo foquista cubano era uma concepção puramente
militar da revolução, que desprezava o apoio das massas e negava a necessidade da direção da
guerrilha pelo partido marxista.65
No mês de Abril de 1972, os órgãos de segurança detectaram a presença dos
guerrilheiros na região do Araguaia. Somente após três campanhas ofensivas o Exército
conseguiu a vitória contra os guerrilheiros presentes na área. No ano de 1974, após cruel
repressão sobre a população da região, desfecharam-se os combates com o trágico saldo de
mais de 50 militantes do PC do B mortos.
A Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-POLOP),
conhecida também apenas pela sigla POLOP, nasceu da união de dissidentes do PCB, de
intelectuais e da influência trotskista. Também condenava as idéias reformistas do PCB e sua

65
GORENDER, Jacob. Op. cit., p.108.

37
linha pacifista, porém, dava mais importância ao debate político dentro da esquerda marxista
do que à construção de um projeto alternativo. Por conta da adoção desta linha, teve bastante
aceitação no meio universitário. No entanto, após o golpe de 1964, a POLOP não poderia
contentar-se apenas com o papel de “consciência crítica” 66 das organizações de esquerda. O
caminho encontrado para a tomada de ação foi o do foquismo 67, que permitia contornar o
trabalho imediato com as massas. No período que se estende de 1964 a 1967, a POLOP
promoveu uma mescla incoerente entre seus princípios doutrinários e o foquismo recém
admitido. Mantendo as críticas feitas ao PCB, a POLOP recusou as proposições de uma
aliança com a burguesia nacional para a superação dos resquícios feudais no campo e a luta
contra o imperialismo. Elaborou um “Programa Socialista para o Brasil” onde propunha
transformações socialistas imediatas, sem a passagem por uma etapa nacional-democrática. No
entanto, em sintonia com ideologia do foquismo, a POLOP passou a admitir que a guerrilha
rural poderia preceder a organização de um partido revolucionário. 68
O ano de 1967 marca um período de importantes cisões dentro da POLOP. No
estado de Minas Gerais a maior parte dos militantes saiu da organização para constituir o
Comando de Libertação Nacional (COLINA). Em São Paulo, parte dos militantes se juntou
aos remanescentes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e juntos fundaram a
Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR.
A Ação Popular (AP) constituía-se na vertente de oposição não marxista. Saída
da Juventude Universitária Católica (JUC), propunha um movimento político humanista
baseado nas idéias de Jacques Maritain, Teilhard de Chardin, Emanuel Mounier e do Padre
Lebret. Em seu “Documento Base” de 1973, propunha a luta por uma sociedade justa,
condenando tanto o capitalismo quanto o socialismo.69 Durante o governo Goulart apoiaram as
reformas de base e buscaram uma aproximação com o operariado. Com este objetivo,
deslocavam quadros do movimento estudantil para as fábricas a fim de que seus militantes

66
GORENDER, Jacob. Op. cit.., p.127.
67
Marcelo Ridenti resumidamente divide a idéia debrayista de “foco” em três etapas: “a da instalação do grupo
guerrilheiro (foco militar), inicialmente isolado numa certa área rural de difícil acesso para a repressão; a fase do
desenvolvimento da guerrilha, com a conquista e defesa de um território, quando camponeses seriam
incorporados à luta; e a etapa da ofensiva revolucionária para tomar o poder, liderando as massas exploradas.”
RIDENTI, Marcelo. Op. cit.,p.45.
68
ARNS, Paulo Evaristo. Op. cit., p.103.
69
ARNS, Paulo Evaristo. Op. cit., p.100.

38
pudessem fazer um trabalho de conscientização dos operários, tarefa cumprida, em certa
medida, com êxito. No movimento estudantil, conseguiram manter a diretoria da UNE e de
outras entidades no início dos anos 60.
No ano de 1965, a AP iniciou um processo de discussão interna a respeito da
linha política a ser adotada. Em 1967, venceu um grupo identificado com as idéias de Mao
Tsé-Tung e com os ideais da a Revolução Cultural Chinesa. A partir desse momento, a AP
passa por um processo de modificação até se transformar numa organização maoísta típica,
que chegou a propor o ateísmo compulsório. Entre 1972 e 1973, grande parte da organização
incorporou-se ao PC do B, em resultado de uma aproximação que vinha acontecendo desde
1971, a partir de alianças no movimento estudantil. O que restou da AP aproximou-se da
POLOP e do MR-8 para editar a revista “Brasil Socialista”, onde afirmavam o caráter
socialista da revolução brasileira.
É interessante notar que mesmo divergindo sobre o caráter da revolução
brasileira, as organizações aqui apresentadas não eram tão diferentes quanto pretendiam ser.
Todas acreditavam no caráter etapista da revolução e viam no imperialismo norte-americano e
no latifúndio os entraves para a plena expansão do capitalismo no país.
O processo de desagregação que tomou conta das organizações até aqui
expostas, após o duro golpe de 1964, de certa maneira exprimia a desmoralização, a
desorganização e a dispersão que dominavam o movimento de esquerda no Brasil, além da
desilusão quanto ao processo de discussão e organização política apresentado principalmente
pelo PCB. O imobilismo apresentado pelas organizações originais fez com que os “velhos”
dirigentes perdessem crédito junto às novas gerações, de onde surgiram líderes jovens e
inexperientes.70
Destacaremos a seguir duas das várias organizações surgidas do PCB entre os
anos de 1965 e 1968: a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e as Forças Armadas de
Libertação Nacional (FALN), organizações que encerraram em suas fileiras três das militantes
depoentes deste trabalho.
A Aliança Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighela, ex-
dirigente do PCB, caracterizava-se pelo princípio da “autonomia tática”. Esta atitude fornecia

70
REIS FILHO, Daniel Aarão. Op. cit., p.52.

39
maior mobilidade tática à organização porque permitia que cada grupo gozasse de liberdade
para fazer as ações que considerava necessárias, desde que estivessem dentro do planejamento
estratégico da organização. Por este princípio, a ALN se organizava quase como uma
federação de grupos, coordenados pelo comando centralizado de Marighela. Sendo assim, a
ALN “se constituía em uma negação radical da estrutura partidária clássica.” 71 Considerava-se
que a estrutura partidária era burocratizante, o que tornava a organização inoperante para agir
de modo revolucionário. Sendo assim, somente pequenos grupos de homens armados
poderiam oferecer a agilidade necessária para a ação revolucionária imediata.
Seguindo a proposição de seu nome, a ALN – Ação Libertadora Nacional –
propunha a maior concentração possível de forças sociais para a realização do processo
revolucionário de libertação da nação. Embora avançasse em relação ao PCB com a
declaração de uma luta de libertação nacional, antioligárquica e anticapitalista, a ALN não
propunha a passagem direta para a etapa do socialismo. Assim como as organizações
anteriormente citadas, a ALN identificava o imperialismo norte-americano como o inimigo
principal do povo brasileiro. 72 Para substituir a ditadura militar, propunha-se a instauração do
governo popular-revolucionário, ou seja, o povo armado deveria tomar o lugar dos grandes
capitalistas e latifundiários entrelaçados ao imperialismo norte-americano que apoiavam a
manutenção do poder militar.
As Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN) surgiram a partir de uma
cisão do PCB em 1966, sendo que seus integrantes eram membros do Comitê Zonal da Região
de Ribeirão Preto, cidade onde passaram a atuar. O grupo se organizava em torno do jornal
estudantil O Berro, definido como “aglutinador de idéias e elementos do grupo, que também
possuía origens na base rural e estudantil urbana do PCB. Este jornal vivia, naquele momento,
uma espécie de semilegalidade.” 73 Entre as principais atividades exercidas pelo grupo, estava a
distribuição do jornal. Devido ao seu caráter contestatório, o periódico servia para contatar e
atrair possíveis colaboradores e/ou militantes. Entre os objetivos declarados do jornal, estava a
difusão da ideologia do grupo e a obtenção de fundos humanos para a luta revolucionária.
Assim como a ALN, as FALN também discordavam do pacifismo do PCB. Porém, por meio

71
RIDENTI, Marcelo. Op. cit., p.39.
72
RIDENTI, Marcelo. Op. cit., p.31.
73
BOTOSSO, Marcelo. A guerrilha ribeirão-pretana: história de uma organização armada revolucionária.
Franca: UNESP, Dissertação de Mestrado, 2001, p.61.

40
de O Berro, tiveram uma ação de vanguarda na convocação de qualquer grupo a realizar ações
armadas em favor do povo brasileiro contra a ditadura, ou seja, optaram pela via armada antes
mesmo do fechamento do regime efetuado pela decretação do AI-5 em 1968. Após o
desmantelamento das FALN em 1969, O Berro deixou de ser produzido. De acordo com a
análise feita por Marcelo Botosso, “seria difícil imaginar a existência das FALN, tal como ela
foi, senão houvesse O Berro. Nesse caso, pode-se considerar que a imprensa alternativa foi,
exemplarmente, um vetor na organização da oposição armada.” 74
Conforme exposto anteriormente, a grande maioria das mulheres que se
engajaram em organizações de esquerda, principalmente nas que propunham a luta armada
como via principal para a libertação da nação ou para o estabelecimento do socialismo,
provinham do movimento estudantil (32,2%), que se mostrou ser um grande fornecedor de
quadros de militantes para estas organizações. Nesta situação, enquadram-se as depoentes
deste trabalho. Áurea Moretti, ex-militante das FALN, Guiomar Silva Lopes, ex-militante da
ALN e Criméia Almeida, ex- PC do B e combatente da região do Araguaia. Apenas Maria
Amélia de Almeida Teles – irmã de Criméia, também ex-militante do PC do B e originária da
ala jovem deste partido – iniciou sua militância política com trabalho de base na alfabetização
de operários.
Como a maioria das militantes políticas, Guiomar Silva Lopes, nascida na
cidade de São Paulo no ano de 1944 (02/06/44), iniciou sua militância política no movimento
estudantil ao ingressar no curso de medicina na Universidade de São Paulo (USP) no ano de
1965, quando, de acordo com seu relato, começou a reorganização do movimento estudantil
depois da instituição de Diretórios Acadêmicos (DAs) organizados por diretorias favoráveis à
ditadura militar, período em que percebia o embrião de várias discussões envolvendo a
universidade, o acordo MEC/USAID e a situação política do país. No ano de 1966, passa a
integrar a Dissidência de São Paulo 75, onde permaneceu nos dois anos seguintes, atuando
intensamente no movimento estudantil por meio da diretoria da União Estadual dos Estudantes

74
BOTOSSO, Marcelo. Op. cit., p.63.
75
A Dissidência de São Paulo foi fruto do mesmo processo de luta interna no PCB que resultou na formação da
ALN, tendo, no entanto, uma ação política mais limitada. Nas palavras da militante: “Os estudantes que eram de
uma organização como, por exemplo, a Dissidência, já tinham uma inquietação tremenda, quer dizer, o que a
Dissidência fazia? A gente sabia que ela não tinha uma capacidade, uma estrutura, para partir para o campo,
como ela propunha, não tinha uma estrutura aqui na cidade para clandestinidade, estava tudo muito nebuloso...”
Entrevista concedida por Guiomar Silva Lopes em 26/04/2001.

41
(UEE). Em 1968, com a intensa campanha repressiva que atingiu o movimento estudantil e
que culminou na prisão dos 693 participantes – inclusive das principais lideranças estudantis –
do 30º Congresso da UNE, que estava sendo realizado de maneira clandestina em uma
propriedade rural na cidade de Ibiúna (SP), criou-se uma situação de grande inquietação no
meio estudantil, principalmente entre os integrantes de pequenos agrupamentos, como a
Dissidência de São Paulo. De acordo com Guiomar, esta situação de insegurança levou alguns
militantes a procurarem organizações maiores e melhor estruturadas, como a ALN,
organização na qual entraria. Em suas palavras:
“Então todo mundo começou a perceber que estava chegando o momento de uma
clandestinidade, uma decisão, o movimento de massa tem que refluir, ganhar forças de
alguma maneira e esses militantes que já eram conhecidos da repressão teriam que tomar
outra situação, provavelmente a clandestinidade. Bom, então em 68, você já tem toda
essa inquietação e alguns já procuram a ALN. Eu ainda estava numa angústia tremenda,
porque eu não sabia o que deveria ser feito, se eu seria mais importante terminando o
curso de medicina ou não terminando, eu estava muito aflita, aí teve uma reunião dentro
da Dissidência com o Velho, que é o Joaquim Câmara Ferreira, e daí eu me lembro bem
ele tinha se preocupado, ele dizia: “Você precisa terminar o curso de medicina”. Além
do que os meus grandes amigos já tinham sumido, o Chael (...) Então fiquei naquela
indecisão, mas com muita vontade de participar mesmo na guerrilha, e aí esse contato
foi decisivo pra gente entrar na ALN. A ALN tinha uma estrutura que era o seguinte: a
gente se organizava em grupos pequenos, e Marighella costumava dizer que os grupos
deveriam ser autônomos. O fundamental é a autogestão, conseguir discutir e ter uma
infra-estrutura mínima. Então na ALN, que começou em 68 – 69, já existia um grupo
guerrilheiro dentro da cidade extremamente eficiente, as pessoas já tinham ido treinar
em Cuba, então tinham um grupo muito bom em termos de conhecimentos, táticas de
guerrilha urbana...”76

Podemos perceber que tanto o desejo de participar imediatamente do processo


de luta armada que, como acreditavam os militantes políticos, levaria à libertação do país da
influência imperialista, quanto a necessidade de segurança e de condições objetivas de luta
levaram nossa depoente a adentrar os quadros da ALN, organização que oferecia condições
ideais de satisfação destes anseios, já que pregava que a “ação faz a vanguarda” e propunha a
formação de “um Exército de Libertação Nacional apto a derrotar o Regime Militar e aplicar
um programa de transformações cujo eixo mais central era o „antiimperialismo‟.” 77 Em 1969,
Guiomar praticou diversas ações armadas, entre elas a expropriação ao Salão de Cabeleireiro

76
Entrevista concedida por Guiomar Silva Lopes em 26/04/2001.
77
ARNS, Paulo Evaristo. Op. cit., p.93, 94.

42
Charles, de onde o GTA (Grupo Tático Armado) a que pertencia levou dinheiro, jóias e
perucas que seriam utilizadas em ações futuras. No ano seguinte, entre outras ações, participou
do assalto à Agência do bairro Jabaquara da União dos Bancos Brasileiros em 02 de março de
1970 e da ação no Banco Brasileiro de Descontos da rua Guaípa, também em São Paulo.
Ainda em 1970, Guiomar é presa e sentenciada a 15 anos de prisão.
Em 1964, quando do desfecho do golpe militar, Maria Amélia de Almeida
Teles, nascida em Contagem/MG em 1944 (06/10/44), tinha 19 anos e já possuía militância
política formal havia 4 anos. Em 1960, ingressou no PCB, transferindo-se ao PC do B quando
da cisão que resultou na criação deste neste partido em 1962. Militando na ala jovem do PC (e
depois no PC do B), atuava na periferia de Belo Horizonte trabalhando com o método Paulo
Freire na alfabetização de operários. Filha de militante político, Maria Amélia desde a infância
teve contato com diversas tendências políticas de esquerda, fruto da convivência com
militantes de diversos setores. “(...) meu pai atuava em sindicato, era uma coisa mais aberta e a
minha casa freqüentava qualquer „ista‟ de esquerda, não tinha exclusão, então sempre tive
contato com as organizações de esquerda em geral.” 78 Desta forma, Maria Amélia sempre se
considerou de esquerda, fato tido como caminho a ser naturalmente seguido, com a influência
paterna sendo preponderante na sua formação e atuação política. Seu depoimento mostra
explicitamente esta influência:
“E por que eu era uma militante política? Porque eu já vinha de uma família que já tinha
militância. Meu pai era comunista, meu pai era ferroviário. Meu pai foi estivador,
porque nós morávamos em Santos. No porto de Santos, meu pai trabalhou muitos anos e
também desde a infância tinha a política dentro de casa. (...) A ditadura nos seus
primórdios já buscou isolar e eliminar todo foco de oposição e eu fazia parte dessa
oposição. Então, evidentemente, foi assim que desenvolveu minha militância, porque eu
tinha 4 anos de uma militância formalmente partidária e política e aí veio o golpe e passa
a ser uma militância extremamente dificultada com a oposição dos militares e que
cerceava a liberdade. Então eu não vou poder ir mais em reuniões abertas, vou ter que
ter uma atuação clandestina, perseguida e com a família sem apoio, meu pai ficou o
tempo todo preso clandestino, desaparecido pela ditadura, não recebia salário, quem
tinha que sustentar a casa era eu, eu era a filha mais velha e ao mesmo tempo nessa
situação.”79

78
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.
79
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.

43
Não só a influência paterna, mas também a consciência social adquirida durante
os anos de trabalho com operários motivaram Maria Amélia a continuar na militância política
clandestina, fazendo trabalho de base junto aos trabalhadores da Baixada Fluminense do Rio
de Janeiro, para onde se mudou depois de seu casamento.
Criméia Alice Schmidt de Almeida, irmã de Maria Amélia, aponta a própria
ditadura e o estado de coisas estabelecido por ela como os principais motivos para sua
militância política no pós-64. Em suas palavras:
“(...) a ditadura foi o ponto alto para mostrar que era difícil lutar, porque tudo que se
tinha conseguido até 64, todas as garantias democráticas, foram usurpadas pelo governo
militar. Então não há maior motivo do que a própria ditadura para você lutar contra ela,
e os partidos que lutavam contra a ditadura eram os partidos de esquerda.”80

A militância política de Criméia, assim como a de sua irmã, também foi


iniciada anteriormente ao golpe militar, tendo sido vinculada nessa fase ao PCB e
posteriormente transferida para o PC do B, onde participava do movimento secundarista. Em
1968, esteve presente no 30º Congresso da UNE, quando foi presa e indiciada em um novo
Inquérito Policial Militar, sendo que o primeiro IPM do qual constava, citava toda sua família.
Em 1969, foi para a região do Araguaia participar do desenvolvimento da luta armada no
campo, como propunha o PC do B. Ficou na região até o início de 1972, quando grávida teve
que se retirar do campo de guerrilha, pouco antes da chegado do exército à região. Em São
Paulo, foi presa junto com sua irmã Maria Amélia, seus sobrinhos e seu cunhado.
Áurea Moretti militava no movimento estudantil da antiga Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (atualmente Universidade de São Paulo –
USP/Campus Ribeirão Preto) quando, em 1965, ingressou nas fileiras do PCB, nelas
permanecendo até 1966, quando da expulsão do Comitê Zonal de Ribeirão Preto, embrião das
FALN. Até o ano de 1969, militou nas FALN, onde exercia funções de logística – atividade
que incluía levantamento de dados para ações, recolhimento de fundos para a luta e a
distribuição de O Berro. Com a queda do grupo em 1969, Áurea foi presa, assim como seus
companheiros, permanecendo nesta condição até 1971. Sobre seus motivos para entrar em
uma organização de esquerda: a percepção das injustiças sociais e o contato com as idéias
socialistas. Áurea nos conta:

80
Entrevista concedida por Criméia Alice Schmidt de Almeida em 07/01/2002.

44
“Em 65 teve duas coisas paralelas que eu entrei na faculdade de Ribeirão Preto, lá a
gente foi tomando uma consciência de esquerda e também um vê que o socialismo era a
saída, eu tinha perdido antes de 64 uma parenta que trabalhava na reforma agrária junto
com trabalhadores rurais, e eu que fui criada na fazenda sempre achei estranho porque o
povo trabalhava tanto e não tinha o que comer, e o fazendeiro tinha tudo (...)”81

Todas as depoentes passaram pela dura experiência da prisão. Todas foram


física e psicologicamente torturadas. Três depoentes relataram ter sofrido ameaça e/ou
violência sexual. Viram seus familiares serem presos e torturados ou estiveram perto da morte
em decorrência dos maus tratos recebidos.
Por suas trajetórias de militância no movimento estudantil, pela participação em
organizações de esquerda em armas e pela conseqüente experiência de prisão, os relatos destas
ex-militantes são extremamente significativos e imprescindíveis para a elaboração deste
trabalho.

A posição das organizações de esquerda

Embora estivessem imbuídas do desejo de mudança, da construção do “homem


novo”82 – sujeitos capazes de mudar a História – e guiadas pela ideologia revolucionária do
período, que valorizava “a prática, a ação, a coragem, a vontade de transformação, por vezes
em detrimento da teoria e dos limites impostos pelas circunstâncias históricas objetivas” 83, as
organizações de esquerda mais conservadoras – e mesmo os militantes de setores da esquerda
que desejavam uma revolução nas práticas sociais – não viam com bons olhos as mudanças
comportamentais empreendidas pelas mulheres na década de 60.
Geradas e inseridas no seio de uma sociedade cheia de contradições, as
organizações, armadas ou não, refletiam e reproduziam este aspecto no tratamento destinado

81
Entrevista concedida por Áurea Moretti em 04/07/2002.
82
Sobre a construção do homem novo, ver RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Artistas da
revolução: do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000. p.23-42.
83
Idem, p.31.

45
às mulheres que militavam em suas fileiras. Para muitos, como os dirigentes do PCB, que até
os anos 50 promoviam casamentos reparadores entre os membros que por ventura viessem a
cometer algum “erro” ou desvio moral, tais mudanças não eram vistas como avanço, mas
como retrocesso. “Eram sintomas de decadência da burguesia”, que manchavam a pureza
moral do ideal proletário.84 Vistas por esta perspectiva, estas mudanças eram percebidas como
contraditórias à idealização do homem novo, “um autêntico homem do povo, com raízes rurais,
do interior, do „coração do Brasil‟, supostamente não contaminado pela modernidade urbana
capitalista.”85
A perturbação da ordem, provocada pelas mudanças comportamentais
femininas, é evidente na fala de Maria Amélia:
“E as mulheres começaram a chegar em 1968. (...) E as mulheres vieram com idéias de
participação de igual para igual com os homens, elas vêm com uma idéia mais liberada a
respeito da sexualidade, elas se comportam dessa forma e veja o quanto elas incomodam
a cabeça dos homens, a sua vestimenta, elas vêm com uma mini-saia, e eles dizem que
elas já estão provocando, que dá até para ver a calcinha dela. É um direito que a mulher
tem e eu também vou mudando com isso, passo a usar mini-saia, eu acho tão bonito, tem
aquela discussão que o corpo é nosso, nós temos direito de decidir, as liberdades
individuais que eles tanto ensinavam com a Revolução Francesa, mas a pretexto, quando
eles não tinham mais argumento era o conservadorismo que prevalecia, aí quando não
tinha mais esse argumento era a segurança do Partido, se vissem uma militante de saia
iria tirar a segurança do Partido porque todo mundo ia ficar olhando. Não, todo mundo ia
ficar olhando porque todas meninas tinham mini-saia.”86

Pertencentes ao PC do B, um dos partidos de esquerda mais antigos, oriundo do


PCB87, e composto por uma elevada porcentagem de quadros antigos 88, Maria Amélia e
Criméia são unânimes ao declarar que este era um partido machista. Um indicativo para a
atitude do PC do B aparece no depoimento de Maria Amélia:
“(...) é um partido extremamente machista em todos os sentidos, não é só que acha que o
homem é mais importante que a mulher, (...) era o pensamento da sociedade: a
supremacia masculina, a inferioridade das mulheres. Mas o Partido excluía as mulheres
dos postos de comando, o que às vezes em outra organização você vai encontrar uma

84
VENTURA, Zuenir. Op. cit., p.37.
85
RIDENTI, Marcelo. 2000, Op. cit., p.24.
86
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.
87
“(...) era a mesma coisa naquela época, era Partidão e Partidinho, e eu era do Partidinho, mas era a mesma coisa
no ponto de vista da oposição biológica (...) porque eram todos contemporâneos (...)”. Idem.
88
“(...) então eles vêem que são velhos e dão valor ao quadro jovem do Partido, porque não tem jovem no
Partido, eles mesmos falavam: „nós precisamos formar quadros no Partido porque os jovens vão para outras
organizações mais interessantes, mais imediatistas‟ (...)”. Idem.

46
mulher, no Partido não, era bem rigoroso, um pensamento bem machista, que as
mulheres não são tão firmes, não têm tanta convicção diante da repressão, na hora da
tortura elas vão entregar (...)”89 (grifo nosso)
“(...) continuo no PC do B até 87, quando foram expulsas algumas feministas. Eu não,
mas a Maria Amélia foi expulsa, (...) porque uma característica dos partidos é serem
machistas. Então me afastei do Partido, deixei de participar e não entrei em nenhum
outro partido, que minha experiência mostrou que os partidos são muito machistas.” 90

Conforme destacamos anteriormente, mesmo que estivessem imbuídas pelo


desejo de mudança política, econômica e social, as organizações praticavam o mesmo tipo de
relação de gênero que a sociedade da época, fato que deve ter sido exacerbado justamente
pelas características que distinguiam o PC do B: ser uma organização antiga, constituída nos
moldes de um partido de orientação marxista-leninista, composta por quadros pertencentes a
uma faixa etária maior.
É interessante perceber que as demais depoentes, embora percebessem certas
diferenças no tratamento destinado às mulheres dentro de suas respectivas organizações, não
caracterizavam estas como machistas. Nas palavras de Guiomar Silva Lopes:
“Eu tive a oportunidade de discutir algumas vezes esta questão, uma delas com Joaquim
Câmara Ferreira, e ele era uma pessoa muito delicada, próximo da gente, dedicado,
carinhoso e daí quando eu falei da participação da mulher na guerrilha rural, ele dizia:
„Imagina uma moça participando da guerrilha rural, é muito complicado, é um cúmulo‟.
E aí discutimos um pouco, ele não queria discutir essas questões, acabava postergando.
Às vezes, senti uma dificuldade de alguns companheiros de aceitara uma mulher no
comando, mas de maneira geral, essas foram duas questões que eu estive mais próxima.
O nosso dia-a - dia era muito tranqüilo, não tinha diferença. Agora é evidente que faltou
a discussão da questão feminina.” 91

A ALN, organização a que pertencia Guiomar, era composta por quadros mais
jovens, militantes que provavelmente aceitavam com menos dificuldades as mudanças
empreendidas por suas companheiras de militância. A entrevista de apoio concedida para este
trabalho pela Profª Maria Lygia Quartim atesta esta afirmação. Segundo ela a ALN era uma
organização de um novo tipo porque “ela tinha um outro jeito de ser, tinha outro tipo de
hierarquia”92, especialmente porque estava fazendo crítica à burocracia e às hierarquias
existentes no PCB. No entanto, não devemos deixar de considerar que estas dificuldades

89
Idem.
90
Entrevista concedida por Criméia Alice Schmidt de Almeida em 07/01/2002.
91
Entrevista concedida por Guiomar Silva Lopes em 26/04/2001.
92
Entrevista concedida por Maria Lygia Quartim em 19/04/2002.

47
existiam e persistiam, principalmente por parte das lideranças mais antigas, como no caso do
próprio Joaquim Câmara Ferreira, quadro saído do PCB e citado pela depoente. Era evidente
também a dificuldade de alguns militantes em aceitar mulheres na direção, fato a que
votaremos a discutir mais adiante.
A mesma dificuldade de aceitação de mulheres na guerrilha rural também foi
sentida por Criméia quando chegou ao acampamento guerrilheiro na região do Araguaia.
“(...) eu fui a primeira mulher jovem que chegou lá porque tinha uma mais velha que era
da direção do Partido e quando eu cheguei, o dirigente João Amazonas disse que ia
depender muito do meu desempenho a ida ou não de mulheres para a guerrilha. Eu
fiquei muito revoltada com isso porque: „A participação da mulher na revolução
depende do meu comportamento individual, pessoal? Por acaso você disse isso para o
primeiro homem que veio para cá? Certamente não disse, vocês pensaram que ia
depender do comportamento desse ou daquele homem para fazer a revolução ou não?
Por que se coloca isso para uma mulher?‟” 93

Os condicionamentos apresentados para Criméia pela direção do PC do B (que


inclusive contava com uma mulher) e a negativa de discutir os temas ligados aos problemas
femininos por parte de um dos dirigentes da ALN, organização de tipo novo que prescindia da
necessidade do partido para a ação revolucionária, torna-se um exemplo claro do que pensava
os diversos setores da esquerda sobre os problemas femininos específicos. Como destacamos
no capitulo anterior, grande parte desta esquerda considerava o movimento feminista como um
divisor, não como um aliado na busca de mudanças sociais gerais. Ignorava que:
“os problemas específicos da mulher, não só sexuais como também econômicos, tais
como a dupla jornada, salário inferior ao do homem pelo mesmo trabalho(...)
contribuem, enormemente, para a acumulação de capital. Não percebiam que o sistema
não pode viver sem essa discriminação da mulher que não somente avilta os salários
masculinos como também é absolutamente essencial para que se processe a reprodução
ampliada do capitalismo.”94

Esta situação ocorria porque as organizações de esquerda pretendiam imprimir


uma resistência sistemática e concisa ao governo ditatorial. Com este objetivo, tentavam
racionalizar as relações entre os militantes adotando o princípio da igualdade entre estes, ou
seja, todos os militantes, tanto homens quanto mulheres, deveriam receber um tratamento
imparcial. Na verdade, a adoção deste princípio relegava as particularidades dos envolvidos no

93
Entrevista concedida por Criméia Alice Schmidt de Almeida em 07/07/2001.
94
MURARO, Rose Marie. Op. cit., p.15.

48
processo à segundo plano, quer dizer, desprezando as diferentes necessidades de cada
militante, principalmente das mulheres. Esta situação aparece claramente no depoimento de
Criméia:
“(...) de um lado a tentativa de deixar o trabalho doméstico para a gente, de outro lado,
quando a gente resistia a isso, era tratar a gente como se fosse um homem sem diferença
alguma. „Então tudo bem, a sua tarefa é derrubar uma árvore, sem ajuda.‟ Onde a gente
estava tinha muito essa dicotomia, hora eram paternalistas, hora era o extremo, tratava
como se não tivesse diferença alguma. Então você tinha que estar sempre lembrando:
„Eu sou mulher e sou guerrilheira. Eu não quero proteção, ma também não quero ser
explorada, eu não sou homem, eu sou mulher.‟ Então tinha que estar lembrando esses
fatos.”95

Criava-se, com a adoção deste princípio, a ilusão de um sujeito militante


unitário que não existia. Portanto, sendo iguais, as mulheres que participavam diretamente
destas organizações não poderiam apresentar necessidades diferentes. São elucidativas as
palavras subseqüentes de Criméia:
“Não se falava muito na igualdade de direitos. A gente ainda não tinha o conceito de
diferentes e iguais em direitos. As diferenças não eram tratadas, eram vistas, e aí quando
se propunha igualdade de direito. É isso que eu te disse, se supunha que uma mulher era
emancipada, ela já devia ter igualdade de deveres antes de conseguir os direitos.” 96

Os problemas diferentes, referentes às questões femininas específicas, eram


considerados secundários e/ou divisionistas. Rememorando esta questão, Guiomar coloca-a
como pendendo entre dois pontos que em sua fala aparecem como distintos, mas que em nossa
análise podem ser vistos como complementares
“Eu acho que essa discussão chegou sempre um pouco intercortada, porque a idéia é que
a gente tinha tarefas mais importantes e urgentes que era a tomada do poder e essas
questões seriam discutidas depois da tomada do poder. Então toda vez que se discutia
alguma coisa relativa à questão feminina eu acho que era mal abordada, pouco abordada.
(...) Então essas questões ficaram postergadas, acho que porque elas eram delicadas.
Fica essa dúvida, se era porque elas iam mexer muito, se porque elas eram delicadas.
As tarefas eram tantas, imediatas e urgentes (...)”97 (grifo nosso)

A discussão dos problemas ligados à questão feminina tornava-se um assunto


delicado porque se referia justamente a uma das novas reivindicações criadas pelas mudanças
comportamentais empreendidas pelas militantes. O debate aberto e intenso sobre este assunto
95
Entrevista concedida por Criméia Alice Schmidt Almeida em 07/01/2002.
96
Idem.
97
Entrevista concedida por Guiomar Silva Lopes em 26/04/2001.

49
implicaria necessariamente em uma mudança de mentalidade, atitudes e posturas
profundamente arraigadas no imaginário social – no das esquerdas especificamente – trazendo
para o primeiro plano questões que, como dito anteriormente, eram tidas como secundárias
e/ou divisionistas. Estas questões, de fato, iriam “mexer muito”, em diversos aspectos, com as
organizações de esquerda.
As organizações de esquerda eram predominantemente masculinas em sua
composição e também em suas “regras, normas e comandos” 98, o que Daniel Aarão Reis filho
classifica como um processo de elitização com indícios de superconcentração social,
geográfica, intelectual e sexual99. As organizações e seus integrantes empregavam, ainda que
não intencionalmente, as distinções culturais baseadas em diferenças físicas entre os sexos,
que por sua vez, serviam para justificar a estrutura social masculina, considerando a
capacidade de direção como atributo inerente aos homens e destinando às mulheres as
atividades complementares. Portanto, valorizavam características ligadas ao ideal de
competência masculina, como a competitividade, independência, decisão e autoconfiança,
enquanto considerava inferiores e irracionais sentimentos como a afetividade, a compreensão,
a gentileza e a empatia, características imediatamente identificadas com as mulheres. Maria
Amélia pondera sobre esse aspecto ao falar do comportamento que os companheiros
esperavam das militantes:
“Eu nunca cheguei a ser tratada como homem dentro do Partido, embora a idéia fosse
essa, eu nunca fui tratada como homem porque eu era uma militante não muito capaz, eu
não respondia àquele padrão masculino 100%, eu lidava com homens, atuava com
homens, mas eu era uma mulher e nunca deixei minha cabeça: “ai eu sou mulher e eles
são homens”. Ora! Problema deles, se eles querem ser assim, aquela ansiedade do
homem, aquele autoritarismo (…)”100

Este posicionamento resultava em um tratamento ambíguo para as militantes,


porque possibilitava que recebessem mais ajuda e proteção ou fossem procuradas como
suporte para determinados comportamentos sociais, como, por exemplo, fazer confidências.
No entanto, ao mesmo tempo, este posicionamento impedia que as mulheres tivessem acesso a
posições de comando ou direção dentro das organizações. O resultado desta forma de atuação

98
GARCIA, Marco Aurélio. “O gênero da militância. Notas sobre as possibilidades de uma outra história da ação
política.” Cadernos Pagu. Campinas: ADUNICAMP, vol.08, nº9, 1997, p.331.
99
REIS FILHO, Daniel Aarão. Op. cit., p.19.
100
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.

50
foi o reduzido número delas que ocupou postos de direção nas organizações de esquerda. No
depoimento de Maria Amélia podemos perceber este mecanismo de seleção em ação e o seu
conseqüente resultado:
“(...) olha todas as mulheres que vão para direção do Partido naquela época, que são
raríssimas, o próprio Partido tem suspeição sobre ela, é uma coisa assim tão distante e eu
não vou falar sobre isso, é uma coisa que me machuca muito. „Mulher que vai para
direção, será que está dormindo com o chefe?‟ É aquela história, fica sempre aquela
dúvida, é competente ela? (...) E essa dúvida nunca deixou de existir dentro do Partido,
ou essa posição. Então não tinha mulher na direção, não tinha e não era para ter. E as
mulheres que insistiram nessa história de participar da direção foram todas mal vistas,
era como se fossem carreiristas, oportunistas, que só pensa em direção. „Ela está é
querendo poder.‟ Como se fosse um absurdo mulher querer poder, era de extremo
machismo, era uma incoerência muito grande.”101

O já citado artigo “Cognição social, estereótipos de gênero e sexismo”, de


Maria Alice D‟Amorin, classifica como sexismo 102 benevolente o tratamento ambíguo
destinado pelas organizações de esquerda às militantes. Este comportamento consiste em um
conjunto de sentimentos masculinos em relação à mulher que, sendo ambivalente, pode incluir
a hostilidade e a benevolência.

“O sexismo benevolente é definido pelos autores como um conjunto de atitudes, em


relação às mulheres, que é sexista, pelo fato de vê-las de modo estereotipado e em papéis
sociais restritos, mas é subjetivamente positivo quanto ao conteúdo afetivo, tendendo a
evocar comportamentos pró-sociais (ajuda) ou de busca de intimidade (fazer
confidências); embora não seja em si um sentimento adequado, já que traz subjacente, o
estereótipo tradicional da dominância masculina, com o homem como provedor e a
mulher como dependente.”103

Um dos aspectos mais marcantes apresentados por este tipo de comportamento


é o “paternalismo”, comportamento que inclui elementos de autoridade e de proteção que, em
um primeiro momento, justificava a intervenção masculina porque via a mulher como um
adulto apenas parcialmente capaz física e intelectualmente e, em um segundo momento,
possibilitava que as militantes recebessem mais ajuda e proteção. O protecionismo também
aparece no depoimento de Maria Amélia:

101
Idem.
102
Sexismo é definido pela autora como “conjunto de sentimentos que tem como pressupostos que a relação entre
os sexos está basicamente condicionada pelo poder estrutural do homem nas instituições e pelo poder diádico da
mulher nas relações interpessoais.” D‟AMORIN, Maria Alice. Op. cit., p. 161.
103
D‟AMORIN, Maria Alice. Op. cit., p. 161.

51
“a idéia do Partido era mais de protecionismo, era como se a mulher fosse incapaz, então
tem que proteger em vez de sacanear. Tipo: „a mulher já é famosa por ser objeto sexual,
então vamos usá-la‟. Não, não era nesse sentido, que podia ser também, mas eu falo no
sentido do protecionismo, evitava que nós fossemos para a linha de frente na batalha,
mas agora que a contingência exigia que nós fossemos, então 30% foram.” 104

Outro elemento é o da “diferenciação de gênero”, prática anteriormente citada,


que consiste nas distinções culturais baseadas nas diferenças físicas entre os sexos. Estas
diferenças serviam para justificar a estrutura social masculina, que considerava os homens
aptos a dirigir e as mulheres como complementos que possuíam qualidades que faltam aos
homens. Isto justificava a valorização das características masculinas, o reduzido número de
mulheres dirigentes dentro das organizações e a divisão dos serviços delegados às militantes.
Estas ficavam na maior parte das vezes com as tarefas de observação, levantamento de
informações e de apoio logístico, mas raramente com o comando de uma operação.
As depoentes deste trabalho realizavam diversas tarefas. As primeiras ações de
Guiomar incluíram “expropriação” de carros e placas de automóveis, que seriam utilizadas
posteriormente em outros veículos. Participou também em várias ações armadas, sendo a
primeira em um salão de cabeleireiro para conseguirem disfarces e perucas. Porém, a principal
preocupação do grupo tático a que pertencia era angariar fundos para a organização.“(...) a
gente começou a fazer alguns levantamentos, porque a gente sabia que o grande problema era
o dinheiro, a organização não recebia dinheiro de lugar nenhum, ela tinha que tentar trazer o
dinheiro (...)”105 Entre suas atribuições também incluíam-se tarefas de apoio, como a
confecção de documentos falsos para os demais integrantes da organização e levantamento de
endereços de possíveis colaboradores da ditadura.
As tarefas de Maria Amélia estavam também ligadas à infra-estrutura da
organização. Ela cuidava, juntamente com seu marido, do setor de imprensa do PC do B e
também cuidava de aparelhos do Partido.
“As minhas tarefas vão ser ligadas à imprensa, eu vou ser rádio escuta, eu sou leitora de
jornal, para ver o que está acontecendo, eu vou trabalhar na gráfica clandestina, fazer
revisão, trabalhar com edição de material gráfico, (...) as vezes tinha que escrever algum

104
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002. Nesta passagem, a depoente se
refere ao número de mulheres militantes desaparecidas na Guerrilha do Araguaia, ressaltando que, como atuavam
clandestinamente, não se sabe ao certo o número de mulheres que militavam nas organizações armadas ou não.
105
Entrevista concedida por Guiomar Silva Lopes em 26/04/2002.

52
artigo, tinha que ter esses contatos, tanto nacionais como internacionais, esses meios de
ligação e esse trabalho é totalmente clandestino.”106

Criméia declara que para evitar as chamadas “tarefas femininas” se tornassem,


em detrimento das outras atividades, sua obrigação exclusiva, procurou realizar todas as
tarefas necessárias no acampamento, como caçar, cortar lenha e cultivar a terra. Questionada
sobre quais tarefas desempenhava, ela respondeu:
“Todas, não abri mão de nenhuma, não abri mão de fazer tarefas masculinas e não
aceitei que as tarefas femininas ficassem só comigo, então no meu dia de cozinhar eu
cozinhava e no meu dia de caçar, ir para a roça, eu não abria mão. Tinha que dividir
igualmente, é claro que se bobear sempre sobrava para a gente, principalmente as tarefas
domésticas, cozinha suja para limpar, mas eu brigava para que isso não sobrasse.” 107

Nas FALN, Áurea Moretti realizava diversos trabalhos, incluindo apoio


logístico com levantamentos, a arregimentação de novos quadros e a distribuição do jornal O
Berro. Cuidava também da assistência de saúde dos companheiros que treinavam no
acampamento guerrilheiro próximo à cidade de Ribeirão Preto. Ela descreve assim seu
trabalho:
“Eu era o apoio logístico, eu fazia os contatos, pessoas que esconder ou dormir uma
noite, outros que davam dinheiro, outros que davam consulta médica, remédio, alimento
e aqueles que iam se destacando, a gente ia trazendo mais para o grupo.”108

Como podemos perceber, as tarefas desempenhadas pelas depoentes deste


trabalho visavam a conservação do funcionamento da estrutura da organização. Em suas falas,
transparece o grau de engajamento que dedicavam às organizações. Não hesitaram em dedicar
suas vidas à uma causa que consideravam vital. No entanto, apesar de haver o desejo expresso
por parte de uma delas, nenhuma chegou a ocupar cargos de direção nas organizações em que
militavam. Consideramos esta situação como fruto das relações de gênero praticadas pela
sociedade e, de maneira análoga, pelas organizações de esquerda. Geradas e inseridas em seu
tempo, não poderiam escapar de sua influência e determinação.

Resistência dentro das organizações

106
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.
107
Entrevista concedida por Criméia Alice Schmidt de Almeida em 07/01/2002.
108
Entrevista concedida por Áurea Moretti em 04/07/2002.

53
Como vimos, as militantes recebiam um tratamento ambíguo por parte das
organizações de esquerda que, embora estivessem empenhadas na revolução da sociedade e na
criação do “homem novo”, não podiam deixar de refletir as posições sexistas encontradas na
sociedade em que estavam inseridas. Embora desejassem criar um tipo ideal de sujeito
militante único, que se aplicasse tanto a homens quanto a mulheres por meio da utilização do
princípio da igualdade entre todos, as características imediatamente associadas ao feminino
eram desconsideradas em detrimento das características marcadamente masculinas.
Estas militantes faziam parte de uma vanguarda e eram as pioneiras de um
movimento. Sendo assim, embora não tivessem adentrado às organizações de esquerda pelo
simples fato de serem mulheres, mas sim pelo desejo de atuarem politicamente na construção
de um mundo novo, essas militantes, em sua nova prática, também carregavam consigo
elementos das relações de gênero usuais. Assim, freqüentemente eram vítimas de seus
próprios preconceitos. Estas mulheres participaram dos primeiros momentos da discussão
feminista, um momento em que se privilegiava a conquista da igualdade de direitos, tarefa que
elas tentavam realizar na convivência com seus companheiros. Criméia define esta mediação e
fala de sua conseqüência:
“É claro que nós mulheres também tínhamos (preconceito) e como éramos vítimas do
nosso próprio preconceito; tínhamos mais facilidade de perceber o preconceito, ou pelo
menos perceber naquilo que estava incomodando muito, porque de vez em quando a
gente também embarcava no preconceito. (...) Era uma questão que a gente discutia
muito, essa questão do preconceito e discriminação da mulher, é que se seguia muito
dentro de um viés de igualdade de direitos e acho que pouco naquele viés das diferenças
individuais. Talvez uma fase do desenvolvimento da questão, quando se começa a ver
que é preciso ter algumas igualdades, mas também que essa igualdade nos
sobrecarregava muito. (risos)”109

Rindo da situação, hoje Criméia percebe que, além da igualdade de direitos,


também era necessário o respeito às diferenças individuais. No entanto, naquele momento
histórico, estas questões ainda não estavam formuladas. O raio de ação feminina era limitado
e, como vanguarda, estas militantes sabiam mais o que não queriam do que o que queriam,
pretendiam e rejeitavam mais que afirmavam.

109
Entrevista concedida por Criméia Alice Schmidt de Almeida em 07/01/2002.

54
Muitas se iniciaram na luta tentando se igualar ao sujeito militante unitário –
que tinha as características masculinas como ideais – para que pudessem adquirir seu espaço
como militantes, não como mulheres. O depoimento de Maria Amélia de Almeida Teles
corrobora esta afirmação: “algumas guerrilheiras tentaram se aproximar do modelo masculino.
Acreditavam que dessa forma seu desempenho seria melhor nas ações militares.” 110 Na
entrevista concedida para este trabalho, Maria Amélia relembra:
“(...) tinha uma mulher lá que o raciocínio dela era igual ao de homem, extremamente
machista e era até difícil nossa relação, porque tudo que você tinha desejo enquanto
mulher ela achava absurdo, achava vício burguês, colocava em risco a segurança do
Partido, você só podia pensar igual homem.” 111

Notamos nesta prática uma contradição: se por um lado parte das mulheres que
compunham esta vanguarda tentava se afirmar como mulheres independentes, donas de seus
corpos e destinos, outras, por outro lado, procuravam negar sua condição feminina para
poderem adentrar nos espaços masculinos. Pensavam que assexualizando-se eliminariam as
diferenças e conquistariam a igualdade com seus companheiros, seriam apenas militantes.
Esta tentativa de assexualização passava também pelos tratos e cuidados que as
militantes tinham com a aparência pessoal. Por procurarem o engajamento político, as
militantes se consideravam em um patamar intelectual superior, diferente das outras mulheres
– as “alienadas” – que tinham seus atributos e aspectos femininos desprezados. Para estas
mulheres, o cuidado extremado com a aparência pessoal não condizia com sua opção política,
não cabia mais naquela situação. Esta atitude era uma maneira de se diferenciar das outras
mulheres e se afirmar enquanto militante.
Em verdade, este desprezo para com os atributos femininos e até um relativo
descuido com a aparência pessoal também fazia parte do esforço das militantes para
adequarem-se às exigências implícitas das organizações, ou seja, tornarem-se apenas
militantes, sem nenhuma diferenciação. Faziam parte da tentativa de assexualização, para que
pudessem ocupar espaços nas organizações de esquerda que, como já dito, caracterizavam-se
pelo domínio masculino. Não tinham a clara compreensão de como deveriam se comportar

110
TELES, Maria Amélia de Almeida. Op. cit., p. 71.
111
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.

55
enquanto sujeitos políticos, já que também não tinham clareza do tipo de relações de gênero
que estavam sendo praticadas e estabelecidas naquele contexto.112
Por outro lado, havia as mulheres às quais já nos referimos, as militantes que
acreditavam serem donas de seus corpos e destinos e que também reivindicavam igualdade de
direitos com seus companheiros. Maria Amélia relata a chegada dessas mulheres ao PC do B,
vindas em sua maioria do movimento estudantil em 1968:
“E as mulheres vieram com idéias de participação de igual para igual com os homens,
elas vêm com uma idéia mais liberada a respeito da sexualidade, e elas se comportam
dessa forma e veja o quanto elas incomodam a cabeça dos homens, a sua vestimenta,
elas vem com uma mini-saia, e eles dizem que ela já estas provocando, que dá até para
ver a calcinha dela. É um direito que a mulher tem e eu também vou mudando com isso,
passo a usar mini-saia, eu acho tão bonito, tem aquela discussão que o corpo é nosso,
nós temos direitos de decidir, as liberdades individuais que eles tanto ensinavam com a
Revolução Francesa (...) Tudo isso foi muito importante, foi o nascer do feminismo,
porque ao mesmo tempo eu tomo contanto com as mulheres na organização, eu falo com
mulheres jovens, a maioria veio do movimento estudantil e vieram com tudo, a fim de
fazer a revolução pessoal, social ou econômica, eram mulheres extremamente
revolucionárias (...)”113

Estas mulheres resistiram às relações de gênero praticadas dentro das


organizações e muitas vezes, conseguiram alterar práticas estabelecidas. Maria Amélia relata
as discussões que realizava:
“Eu fazia muito essa discussão, levava um livro do Lênin para discutir, porque o Lênin
falava muito da mulher, o Marx falava muito pouco, Mao Tse-Tung não falava muito,
mas falava alguma coisa, o Éder Rocha falava muito, aqueles lá da África, Samôra
Marchal, Fidel Castro muito pouco. Então, eu trazia aquela discussão para o Partido (...)
Que como o fato do Engels, do Marx, Lênin, Mao Tse-Tung, Éder Rocha e outros mais
terem falado das mulheres, assustou muita gente dentro do Partido na luta interna. Para
defender as questões das mulheres ajudou muito, pode ter falado a abobrinha que fosse,
não interessa, mas é naquilo que eles se apegavam: “são homens como você, têm mais
autoridade que você porque fizeram a revolução, aqui nós estamos tentando fazer”. Foi
muito bom esse material, mas logo que a gente refletia sobre eles, a gente tirava uma
conclusão sempre diferente, na hora de escrever, a gente escrevia um pouquinho do que a
gente pensava, então ali era mais um requentado das leituras do Lênin e outros mais. Mas,
de toda forma, era como a gente caminhava com as coisas.” 114

112
COLLING, Ana Maria. Resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos
Tempos, 1997, p.67-71.
113
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.
114
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.

56
Como vimos anteriormente, Criméia deixa claro que não rejeitava nenhuma
atividade que necessitasse de realização dentro do acampamento guerrilheiro para que não
ficassem só com ela as tarefas domésticas. Outro episódio vivido por Criméia dá conta da
especificidade das discriminações vividas e combatidas pelas militantes:
“E teve coisas do tipo assim: „Você podia lavar roupa do companheiro da direção?‟ Que
ele via que você era lavadeira. „Eu lavo a minha e ele lava a dele. Se tiver algum
companheiro doente, pode ser da direção ou não, homem ou mulher, que eu ajudo.‟
Porque é da direção, vem uma lavadeirinha aqui... Não, eu não era lavadeira. Eu era
muito chatinha, reconheço, mas foi essa chatice que me manteve.” 115

A “chatice” ou a determinação em não aceitar um tratamento desigual e


preconceituoso era também uma forma de resistência adotada por ela e por outras militantes
que posteriormente chegaram à região.
“As outras, as que foram mais próximas de mim foram muito decididas também, então
quando elas foram chegando eu fui encontrando aliadas. Sempre havia uma tentativa de
encostar as tarefas domésticas, e isso para a gente era pesado porque as tarefas
masculinas eram muito pesadas na área rural, é cortar lenha de machado, derrubar
árvore, são tarefas pesadas para homem e mulher. Agora a gente viu que se a gente
abrisse mão dessas tarefas, quando fosse na hora do treinamento das ações armadas a
gente seria muito mais frágil, o treinamento fazia parte.”116

Na entrevista concedida pela Profª Drª Maria Lygia Quartim, ela relata que o
treinamento militar em Cuba não era estendido às mulheres. Estas somente começaram
recebê-lo quando as brasileiras chegaram àquele país e passaram a exigi a inclusão nos
treinamentos. Em suas palavras:
“ (...) em Cuba não havia treinamento das mulheres, só treinavam homens, mas quando
as brasileiras chegaram em blocos, as brasileiras exigiram treinamento militar. Então
romperam. E também tinha essa questão, no momento em que as mulheres não queriam
ficar só na retaguarda, queriam pegar em armas, as brasileiras foram as primeiras a ter
treinamento militar em Cuba.” 117

Percebemos que a determinação em mudar as relações de gênero praticadas


pelas organizações de esquerda tornou-se uma constante na prática de cada militante. E esta
persistência, em certa medida, resultou em mudanças substanciais, como no caso do início do
treinamento de mulheres em Cuba.

115
Entrevista concedida por Criméia Alice Schmidt de Almeida em 07/01/2002.
116
Idem.
117
Entrevista concedida por Maria Lygia Quartim em 19/04/2002.

57
É interessante notar que as demais militantes – Áurea e Guiomar – não fazem
referência a nenhum tipo de resistência que tiveram que enfrentar dentro de suas organizações.
Entre as prováveis explicações para fato, cremos que a mais acertada seja a de que, como já
dissemos anteriormente, elas pertenceram a organizações de novo tipo, formadas em moldes
diferentes do PC do B, tendo, portanto, uma prática e uma vivência diferentes das
apresentadas por Maria Alice e Criméia. As últimas pertenciam a uma organização antiga,
composta e comandada por quadros mais velhos, além de – dado importante – terem passado
por longos períodos de convivência com companheiros masculinos na militância. As primeiras
pertenciam a organizações mais jovens, portanto, com maiores possibilidades de aceitar e
empreender as mudanças propostas pelas mulheres. O tempo de convivência destas com seus
companheiros dentro das organizações também foi bastante reduzido em comparação com o
das últimas. Provavelmente, por pertencerem a partidos de esquerda desde o início da
adolescência, Maria Alice e Criméia tiveram bastante tempo para elaborar as considerações
que hoje fazem sobre estes, diferentemente de Áurea e Guiomar.
Portanto, consideramos que as militantes procuravam ganhar espaço dentro das
organizações de esquerda. Algumas, porém, faziam-no de modo ambíguo e contraditório,
assim como o tratamento que recebiam. Estas militantes procuravam se diferenciar das outras
mulheres não engajadas tornando, em alguns casos, sua condição evidente em sua aparência
pessoal. Mas, por outro lado, esta postura também indicava uma tentativa de adequar-se ao
sujeito militante unitário masculino, que era o referencial das organizações. Outras militantes
resistiram por reivindicarem direitos iguais aos dos militantes masculinos sem, no entanto,
abrirem mão de suas características femininas. Estas militantes, com o passar do tempo,
perceberam que era necessário afirmar as diferenças e procurar uma nova forma de ação
política. Estas formavam o embrião das discussões feministas dentro das organizações de
esquerda. Posteriormente, com a volta das militantes exiladas, no final da década de 70, foram
formados diversos grupos feministas que se mantiveram ativos, atuando nos diferentes
movimentos sociais do inicio da década de 80.

58
Cap. III – A Mulher e a Repressão

Militância e Repressão

Com o progressivo fechamento do regime que culminou com o decreto do Ato


Institucional nº5 (AI-5), em 13 de Dezembro de 1968, grande parte dos militantes optou pela
clandestinidade como forma de continuarem sua militância política e de escaparem das garras
da repressão. Cabe ressaltar aqui que, para a passagem da maioria dos militantes, tanto
homens quanto mulheres, do movimento estudantil para a militância em uma organização de
esquerda e a conseqüente clandestinidade, concorriam a força das circunstâncias e a opção
pessoal. No caso dos que estavam sendo procurados pela repressão, esta circunstância era
determinante, já outros optaram pela clandestinidade para poderem agir com maior liberdade e
segurança na impessoalidade dos grandes centros ou no isolamento do campo. As palavras de
Guiomar Silva Lopes ilustram bem o clima de expectativa experimentado pelos militantes no
período:
“(...) então em 68 houve uma grande repressão em cima dos estudantes, que quase
desmonta o movimento estudantil e culmina com o Congresso da UNE que é preso todo
mundo e então isso deu uma debandada geral, alguns foram presos e outros fugiram.
Então todo mundo começou a perceber que estava chegando o momento de uma
clandestinidade, uma decisão, „o movimento de massa tem que refluir, ganhar forças de
alguma maneira‟ e esses militantes, que já eram conhecidos da repressão, teriam que
tomar outra situação, provavelmente a clandestinidade.”118

Este clima de expectativa e inquietação fazia com que os militantes mais


aguerridos e que ainda não estavam inteiramente engajados em alguma organização
procurassem “formalizar” sua adesão, levando as organizações a entrarem em uma dinâmica
de “profissionalização” dos revolucionários. Independentemente dos motivos, o voluntarismo
e o ímpeto demonstrado não os fazia titubear diante das opções apresentadas. A Prof.ª Maria
Lygia Quartim, se referindo aos motivos que a levaram à ALN, assim como os que levaram
outras pessoas a se engajarem em organizações clandestinas que se opunham à ditadura militar
e que sofreriam intensa repressão, fala sobre a generosidade e o desejo de mudança como

118
Entrevista concedida por Guiomar Silva Lopes em 26/04/2002.

59
fazendo parte “daquilo que as pessoas têm de melhor”, qualidades que nos parece aliarem-se à
percepção que tinham no período de que a “resistência armada naquele momento parecia a
única saída”.119
Ficava clara para os militantes a necessidade de optar pela clandestinidade,
colocada como uma questão de sobrevivência e como a possibilidade de uma maior liberdade
de ação, apesar de não terem a noção exata da situação em que mergulhavam. Na
clandestinidade, os militantes viviam em uma situação limite: aliada à tensão de
permanecerem durante longos períodos de tempo em aparelhos clandestinos, dependendo dos
meios providos pelas organizações para sobreviverem, fora desses aparelhos existia a ameaça
de prisão ou de morte a cada ação ou atividade que realizassem. A preocupação com a
segurança tornava-se uma constante no dia-a-dia de um clandestino. Esta mesma preocupação
aparece no depoimento de Maria Amélia, aludindo ao que aprendeu com outros militantes, da
tensão e das exigências da vida clandestina. Embora seja longa a citação, vale a intensidade do
conteúdo:
“Eu fui muito cuidadosa na minha clandestinidade, porque graças à direção do Partido
que tinha acordo mesmo com as idéias do povo, muito comprometido com isso, tanto
que a grande maioria dos meus companheiros foi morta pelo compromisso. E eu fui
presa política, não sei se é sorte, não fui assassinada, sou uma sobrevivente, então
sempre me lembro com muito carinho dos meus pares daquela época porque foram eles
que me ensinaram a tomar cuidado com a segurança pessoal, que muitas vezes eles
mesmos botaram em risco, não por eles, porque eles sabiam o que fazer, mas pela
contingência do momento, porque tinha tanta tarefa a fazer, de uma mesma pessoa, ela
tinha que representar tantos papéis que muitas vezes acabava cometendo erros. Porque
muitas vezes na clandestinidade você tem que ser muitas pessoas em uma só, pode ser
clandestino ou legal, você é um só, mas você tem que representar, então na comunidade
você é uma pessoa que faz tal coisa, no partido você tem outro nome que faz outra coisa,
então você tem várias facetas muito definidas que você tem que tomar muito cuidado
com elas porque você tem uma cara diferente, uma roupa diferente. Eu tinha que andar
como uma mulher de classe popular e outro dia da classe média, bem vestida,
dependendo da tarefa que eu tinha que desempenhar. Eu tinha que ser muito rápida na
mudança de papel, no raciocínio. A clandestinidade exige um esforço que na cidade tem
essa característica, que talvez no campo você sempre seja a camponesa, na cidade você
tem que ser a popular. Você sai da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro e chega na
Zona Sul fazendo um outro papel completamente diferente, mas eu fui muito cuidadosa,
vivi quase 8 anos na clandestinidade, que é uma coisa raríssima, atuante, porque muita
gente vai pra clandestinidade e para no tempo. Eu não parei. Eu fiquei dentro do Partido
respondendo às necessidades do Partido e ao mesmo tempo respondendo às necessidades

119
Entrevista concedida por Maria Lygia Quartim em 19/04/2002.

60
da sociedade, porque a sociedade estava investindo, tinham sonhos, desejos imaginários,
eu estava inserida nos dois e não é fácil manter isso tudo e eu ainda cuidei de aparelhos
do Partido, dei uma cobertura, uma fachada legal ao aparelho, isso era um processo
difícil.”120 (grifo nosso)

Em 1969, foi criada a Operação Bandeirantes (OBAN) atuando inicialmente no


estado de São Paulo. No ano seguinte expandiu sua atuação, assumindo caráter federal com a
integração ao organograma legal com a denominação de Destacamento de Operações de
Informações/Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército (DOI/CODI II),
oficializando assim o envolvimento institucional do Exército em missões policiais. A partir
deste momento, a repressão tornou-se mais coordenada, equipada e informada 121, tornando o
cuidado com a segurança vital para os militantes de esquerda. As diversas tarefas e os vários
papéis a serem desempenhados deveriam ser magistralmente coordenados para o sucesso das
operações e a manutenção da segurança dos envolvidos. Uma única “queda” poderia resultar –
e muitas vezes resultou – na prisão de muitos companheiros, na perda de aparelhos, no
cancelamento ou frustração de operações e no desmantelamento de organizações. O cuidado
vital e contínuo com a segurança, a diversidade de tarefas, os vários papéis a serem
desempenhados, os diversos codinomes adotados, as diferentes faces para os diferentes
lugares, resultavam em um denso quadro da vida na clandestinidade difícil de ser realizado por
uma única pessoa submetida às mais diversas pressões. O período de clandestinidade variou
entre seis meses e um ano, sendo raros os casos que ultrapassaram dois anos ou que chegaram
a oito anos, como no caso de Maria Amélia, que contou também com uma inserção na
sociedade para se manter.
Neste período de imersão total na luta armada, a partir do final de 1968 e
durante todo o ano de 1969, as organizações começaram a enfrentar dificuldades de ordem
prática, tais como a obtenção dinheiro para o sustento dos militantes clandestinos e para a
manutenção dos aparelhos. As prisões também obrigavam à substituição de aparelhos, tarefa
que exigia mais dinheiro, item cada vez mais difícil de ser conseguido, já que os assaltos
resultavam em um espólio cada vez menor. Como precaução, as agências bancárias, àquela
altura, deixavam o mínimo de dinheiro dentro dos cofres. As ações de expropriação a bancos

120
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.
121
GORENDER, Jacob. Op. cit., p.157, 158.

61
repercutiam negativamente junto à população quando seguranças ou soldados eram feridos ou
mortos enquanto cumpriam suas tarefas, ao tentarem resistir aos militantes. Na análise feita
por Jacob Gorender, o pior resultado na imersão total na luta armada foi a perda da militância
e da base social de apoio. “O engajamento total na luta armada afastava militantes e
simpatizantes por falta de aptidões pessoais ou disposição ideológica.” 122 De acordo com o
autor, os avanços econômicos conseguidos pelo milagre econômico sentidos a partir de 1969,
“se não convenciam da legitimidade política da ditadura militar, desorientava e neutralizava
setores consideráveis da opinião pública” 123, tornando assim inoperantes as bases sociais de
apoio. O progressivo afastamento das organizações da sociedade criou nestas a falsa idéia de
que a população compreendia e apoiava suas ações. Nas palavras de Gorender: “No escuro da
clandestinidade, os dirigentes revolucionários se afundavam no engano fatal de que a justeza
de sua causa, a audácia dos seus feitos e a difusão de suas proclamações lhes garantiam o
apoio das massas oprimidas.” 124 Marcelo Ridenti classifica esse acontecimento como a “ilusão
da permanência representativa” 125 e acrescenta que além dos constantes questionamentos e das
cisões internas, as organizações
“caminhavam para a extinção, ao insistirem em enfrentar abertamente a repressão sem
capacidade de reciclar seus quadros e suas bases, numa conjuntura de refluxo dos
movimentos sociais. Ao invés de ganharem representatividade, as organizações
clandestinas iam perdendo aquela com que contavam, marginalizando-se socialmente,
entrando numa dinâmica ambígua de sobrevivência política e de auto-destruição, no
rumo certo do desaparecimento.”126

Em depoimento concedido a Marcelo Ridenti, Guiomar Silva Lopes resume em


sua fala os aspectos da militância clandestina que expusemos até aqui:
“... o voluntarismo da gente não permitia que fizéssemos uma análise mais concreta e
não entrássemos na clandestinidade com tanto ímpeto o que não foi só uma exigência
exterior, mas principalmente uma decisão da gente. Quando entrei na clandestinidade,
larguei estudo, família e fiquei na dependência da organização para viver; eu não tinha
fachada legal, não tinha outra atividade... A clandestinidade tem um lado que dá a
sensação, talvez falsa, de liberdade e um outro lado, que é a sensação de absoluta
solidão.”127

122
GORENDER, Jacob. Op. cit., p.158.
123
Idem, p. 159.
124
Ibidem, p. 158.
125
RIDENTI, Marcelo. Op. cit., p.246.
126
Idem, p.248.
127
Ibidem, p.250. Entrevista concedida entre os anos de 1985 e 1986.

62
No caso específico das militantes, a esta situação de extrema tensão e solidão
imposta pela clandestinidade, se acrescia a ameaça de violência sexual a que poderiam ser
submetidas caso viessem a ser capturadas pelo aparato repressivo, situação de intimidação que
acontecia exclusivamente por sua condição feminina. Por serem mulheres, por estarem
invadindo um espaço marcadamente masculino – o da militância política – e ainda por
ousarem questionar o governo militar e o estado de coisas por ele estabelecido, cabia a estas
militantes uma carga suplementar de sofrimento, além da dor física e da quebra moral que a
tortura pura e simples provoca. As forças repressivas não admitiam que sua posição de mando
e domínio na defesa da ordem política e social fosse desafiada, quanto mais por um ser
hierarquicamente inferior, mais fraco, que deveria estar em casa submissa e passivamente
cuidando do lar e não subvertendo a ordem patriarcal secularmente estabelecida. O
depoimento de Áurea Moretti ilustra bem esta situação:
“E ali na tortura, a gente também sentiu a diferença da gente ser mulher. O ódio que
tinham de nós, não só em Ribeirão Preto, mas em todos os lugares. Eles falavam que
guerrilheiras eram mais perigosas nas ruas e mais resistentes na tortura, (...) eles falavam
que tinha que estar em casa lavando roupa no tanque, que tinha que ter casado e ter filho,
que mulher nasceu para isso, „vai para a cozinha cozinhar‟, não tinha que se meter em
política, principalmente na guerrilha. Eles queriam quebrar a gente, o espancamento era
violento, o choque elétrico nas partes sexuais, no seio, na vagina, dentro da gente. (...) E
a hora que eu fui presa, eu lembro direitinho do delegado Lamano falando, que tinha
uma Maria lá no meio, que era o meu nome de guerra e ele falou que só podia ser
cozinheira do acampamento, ele falou „para que pode servir uma mulher numa
guerrilha?‟ (...) O ódio, a coisa de dominar a mulher, de destruir.” 128 (grifo nosso)

A fala de Criméia sobre sua prisão e conseqüente tortura também é rica em


significado. Presa no dia 28 de Dezembro de 1972, junto com sua irmã, Maria Amélia, seus
sobrinhos de quatro e cinco anos e seu cunhado, Criméia estava no sétimo mês de gestação.
Em sua avaliação, em um primeiro momento, os autores de sua prisão não atribuíram
importância à presa que tinham em mãos. Seguindo a lógica da discriminação de gênero,
procuravam homens dirigentes. Sendo mulher, provavelmente desempenhava papel de “apoio”
dentro da organização, e o fato de estar grávida validava este raciocínio. No entanto, a partir
do momento em que descobriram sua participação efetiva no movimento guerrilheiro
sobreveio-lhe o ódio destinado ao inimigo inferior que ousava desafiar e igualar-se ao aparato

128
Entrevista concedida por Áureo Moretti em 04/07/2002.

63
político militar. Para mostrar à militante qual era o seu lugar e reconduzi-la a ele, a repressão
se valeu da violência sexual, que pretendia dobrar e humilhar a guerrilheira. Vale a citação:
“Olha, a repressão também é machista, então é óbvio que eles procurassem nos homens
os dirigentes e nas mulheres o apoio, era assim que a gente era vista. E, além disso, o
fato de estar grávida era mais um significado da minha pouca importância na
organização. Então no primeiro momento eu acho que teve esse lado. Agora, quando
eles descobriram que eu era guerrilheira e eu acho que estar grávida incomodou demais
porque de repente eu sou um militar como eles, no momento em que eu fui presa, era um
momento em que eles não tinham tido vitórias ainda, não tinham acabado com a
guerrilha ainda. E não acabar com aquela guerrilha que eram 70 pessoas contra 5 mil ou
10 mil, sei lá quantos deles, era qualquer coisa de humilhante. E se associa a isso se a
presa deles era uma mulher grávida, eu acho que isso incomodou demais esses caras e
assim vamos dizer, o ódio deles aumentou por causa disso, porque eu significava, eu
estava materializando aquele bando de gente que eles menosprezavam, etc. (...) o fato de
ser mulher de um lado só é menosprezado e de outro lado incomoda muito ter um
inimigo que está dentro da categoria do desprezível e de repente o inimigo que está
combatendo é esse desprezível. Eu acho que isso mexeu muito com a cabeça deles e
deixava eles mais violentos contra a gente. É uma violência sexista, eles não abriram
mão do patriarcalismo na tortura, então eles faziam questão de torturar a gente nua, de
fazer comentários sobre o nosso corpo...”129

Maria Amélia relata a mesma “desconsideração” de sua presença no momento


de sua entrada na OBAN. Por ser mulher, à vista de seus algozes, tinha menos importância que
os dois companheiros, César Augusto Teles, seu marido, e Carlos Nicolau Danielli 130, que
chegaram junto com ela. Questionada acerca da influência de sua condição de gênero no
momento de sua prisão ela diz:
“E aí, no pátio da Operação Bandeirantes eles pegaram o Danielli e pegaram o César e
começaram a bater neles, e eu fiquei solta, assistindo. Tanto é que tinha um cara que era
comandante, que depois eu fiquei sabendo que era o Ustra, o comandante da Operação
Bandeirantes, ele gritava com as pessoas e eu: „Gente, tenho que fazer alguma coisa.‟
Então me dirigi a ele para falar alguma coisa e ele então me deu um soco no rosto e me
jogou escada abaixo e eu rolei, não sei se foi tapa ou soco, só sei que nunca pensei que
fosse tão leve, que eu voasse com tanta facilidade como foi ali (...) Acho que eu falei
com ele alguma coisa: „É um absurdo o que está sendo feito aqui, esse país não tem...
não existe direito‟, alguma coisa que falei foi inútil naquele momento, mas era uma
forma de você, de mostrar minha presença, porque eu estava invisível para eles. Pronto

129
Entrevista concedida por Criméia Alice Schmidt de Almeida em 07/01/2002.
130
Carlos Nicolau Danielli, também militante do PC do B, foi morto após três dias de tortura. Sua morte,
denunciada por Maria Amélia na 1ª Auditoria em São Paulo em 1973, foi noticiada em jornais como tendo
acontecido em um tiroteio na Av. Armando de Arruda Pereira na cidade de São Paulo. ARNS, Paulo Evaristo.
Op. cit.,. p.252.

64
que me prendessem, quer dizer, eu tive necessidade de mostrar minha presença, sou
mulher, sou ativa, sou cidadã, tenho direitos, quero fazer alguma coisa (...)”131

Cremos que o fato de terem sido presas em casa, sem resistência ou confronto
armado e com outros homens levou a esta situação de desconsideração e menosprezo pela
presença ou importância das depoentes. Em situações diversas, mulheres que foram presas em
confronto ou que ofereceram resistência sofreram imediatamente a fúria do aparato repressivo,
o que em vários casos resultou no assassinato da militante sob tortura ou mesmo antes de ser
presa.132
Três da quatro depoentes deste trabalho declararam ter sofrido violência sexual
no cárcere. Suas falas demonstram coragem e vontade de denunciar os abusos de que foram
vítimas. No entanto, apesar deste empenho e decisão, notamos que recordar esta experiência
causa-lhes dor e sofrimento. O silêncio, a fala muitas vezes rápida ou em voz baixa, validam
esta afirmação. Além das declarações de Áurea e Criméia, temos a fala de Maria Amélia, que
relata que as violências sexuais que sofria foram usadas contra seus companheiros, numa
tentativa de também atingi-los. Ela diz:
“Mas as violências sexuais só nós que sofríamos, então por exemplo: várias vezes fui
espancada... eles vinham me esfregar, passar a mão nos meus seios, passar a mão na
minha bunda, coisa que eles não fizeram isso com um homem, eu pelo menos não vi. Eu
vi 2 homens sendo torturados praticamente o tempo todo que era o meu companheiro e o
meu camarada lá, nenhum foi punido, embora tinha tortura sexual contra eles, mas a
tortura sexual contra eles era assim, eles faziam comigo e diziam para eles: „vocês não
vão fazer nada (...)?‟” 133

A experiência de Maria Amélia, que sempre militou em companhia masculina,


é exemplar. Quando militava, o homem cometia o crime de subverter o estado de coisas
estabelecido pelo regime militar. A militante, porém, cometida dois crimes: o de pretender a
um domínio que não era o seu, ocupando o espaço público da discussão política junto a outros
homens e o de desafiar e opor-se à ordem patriarcal personificada pelo aparato repressivo.
Esta dupla contravenção atraía para as militantes um acentuado sentimento de vingança, pois
os militares acreditavam que estas deveriam ser postas em seus devidos lugares. Em outras

131
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.
132
A este respeito ver: CARVALHO, Luiz Maklouf. Mulheres que foram à luta armada. São Paulo: Globo,
1998, p.270-280, 291-294.
133
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.

65
palavras, deveriam ser e permanecer submetidas às suas vontades, quer dizer, à vontade
masculina. Para isto, utilizavam o que a militante tinha de diferente e particular: sua condição
de gênero. Por este motivo, Maria Amélia sofria violência sexual e seus companheiros não. A
tortura, em um primeiro momento, tinha por objetivo obter informações úteis na batalha contra
um inimigo difícil de ser detectado; em um segundo momento, visava punir com a quebra
moral os militantes que ousaram se insubordinar contra o estado de coisas estabelecido. No
caso das militantes acrescia-se o suplício da violência sexual, utilizada como meio de
submeter e reconduzir por meio da humilhação a mulher ao seu lugar secularmente
estabelecido. Torturar e humilhar a militante utilizando-se da violência sexual equivalia a
mostra-lhe que o aparato repressivo, que também encarnava a ordem patriarcal, se impunha a
tudo e a todos. Dominavam seus corpos e, por meio do sofrimento imposto, procuravam
também dominar suas mentes. A mensagem clara transmitida às mulheres era de que estas não
deveriam ter cometido seu duplo crime e sim terem permanecido na segurança da reclusão do
espaço privado.

Práticas da Repressão

Para vencerem a luta contra um inimigo interno de extrema periculosidade,


capaz de subverter a ordem social estabelecida e a vida política do país, os militares
concluíram que não bastava prender,

“era necessário destruí-los e/ou dominá-los fisicamente. Este é o sentido da violência


política: como intervenção voluntária que tenta impedir fisicamente a ação de um
determinado grupo político. A violência é sempre uma forma de ação que se dirige ao
corpo do indivíduo, seja para destruí-lo, seja para dominá-lo.”134.

Para submeter, dominar e destruir, era necessário o uso indiscriminado da


violência física e psicológica contra os presos políticos. Tanto mulheres quanto homens que
foram apanhados pela repressão passaram por maus tratos físicos e psicológicos para que
fornecessem dados necessários para o sistema de informações do aparato repressivo montado

134
COLLING, Ana Maria. Op. cit., p.79.

66
pelo Estado.135 Muitos passaram por choques elétricos, afogamentos136, pau-de-arara137, prisão
de familiares e outros tipos de ameaças à integridade física e moral. No caso das mulheres,
esta prática era acompanhada de ameaça sexual e moral, para que a militante percebesse sua
condição de inferioridade em relação ao poder instituído. Não havia mais nenhuma garantia
legal que assegurasse a integridade dos presos. A cena relembrada por Áurea Moretti exprime
bem a dimensão dos acontecimentos e o estado de desamparo e vulnerabilidade dos presos
políticos diante de seus algozes:
“Na hora do DOPS, cara me abraçando, dizendo que era o meu noivo, passando naquele
corredor e os soldados cantando a marcha nupcial para mim e todo o terror que eles
tinham e o pior era o que estava dentro da sala, que era o pau-de-arara, a máquina de
choque, o holofote. Me arrancaram a roupa, então é outro modo de olhar a mulher, ainda
mais naquela época, então rasgaram a roupa da gente, amarraram as cordas, aquela corda
que quanto mais você puxa, mais ela te prende, joga água no corpo e dá choque nas
partes sexuais, ou apalpando, jogar dado para ver quem ia ser o primeiro da fila (...)”138

Neste período, a tortura anteriormente institucionalizada como o meio mais


utilizado e eficaz para a obtenção de informações de presos comuns, estendeu-se à classe
média, atingindo profissionais liberais e estudantes, maioria entre os torturados. 139 Contudo, a
tortura não visava apenas produzir a confissão por meio da dor. Pretendia também destruir
moralmente o torturado, na medida em que fazia com que a vítima traísse seus princípios e

135
Para punir e resolver os antagonismos internos previstos na Lei de Segurança Nacional, foram criados órgãos
militares que atuavam como aparelhos de repressão. Foi criado o Serviço Nacional de Informações (SNI) que
coordenava as atividades de informação, em particular as que interessassem à Segurança Nacional. Em 1969, foi
criada a Operação Bandeirantes, a Oban, que era financiada por grupos multinacionais e deu origem a outros
órgãos como o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI –
CODI), que estava ligado ao Exército. Havia também o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS, mais
tarde DEOPS) que estava sob a jurisdição dos Estados. Todos estes órgãos repressivos atuavam de maneira
coordenada e a sua ação, que envolvia prender, torturar e matar permanecia na face oculta da “democracia”
militar. Atuava também, com a conivência do Estado, o chamado “Esquadrão da Morte” grupo paramilitar
organizado em torno do delegado Sérgio Paranhos Fleury que foi responsável por inúmeras mortes e
desaparecimentos de presos políticos. Sobre a montagem do aparelho repressivo ver: ARNS, Paulo Evaristo.
Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985, p.69-76.
136
Utilizado como um dos complementos do pau-de-arara, o afogamento é feito por meio de um tubo de borracha
introduzido na boca ou narina do torturado, vertendo água enquanto este recebe choques elétricos. ARNS, Paulo
Evaristo. Op. cit., p. 36.
137
“(…) O pau-de-arara consiste numa barra de ferro que é atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do
joelho, sendo o „conjunto‟ colocado entre duas mesas, ficando o corpo do torturado pendurado a cerca de 20 ou
30 cm do solo. Este método quase nunca é utilizado isoladamente, seus „complemento‟ normais são
eletrochoques, a palmatória e o afogamento. (...)”. ARNS, Paulo Evaristo. Op. cit., p.34.
138
Entrevista concedida por Áurea Moretti em 04/07/2002.
139
OLIVEIRA, Luciano. Do nunca mais ao eterno retorno. Uma reflexão sobre a tortura. São Paulo: Brasiliense,
1994, p.20,21. A respeito de setores minoritários da sociedade também atingidos pela tortura ver: RIDENTI,
Marcelo. Op. cit., p.165-241.

67
delatasse seus companheiros, condenando a estes e a si mesmo. De acordo com a declaração
do General Adyr Fiúza de Castro, a tortura havia se tornado uma questão de combate.

“Em combate se interroga o prisioneiro de guerra logo após sua prisão, pois esse é o
momento que ele falará mais. Depois ele se recompõe, já não fala tanto. Porque o medo
é um grande ajudante do interrogatório. Os ingleses, por exemplo, recomendam que só
se interrogue o prisioneiro nu, porque afirmam que evidentemente uma das defesas do
homem e da mulher é a roupa (...) Com exceção das pessoas mais estruturadas, (...) os
prisioneiros, quando despidos, ficavam num estado de angústia, de depressão muito
grande (...)”140

Devido aos princípios adquiridos no processo de socialização, no caso das


mulheres, a nudez tem um significado especial, visto que à estas é ensinado a esconder e
preservar o seu corpo. Muitas vezes esta prática foi utilizada acompanhada do encapuzamento.
Deixavam a militante nua e encapuzada para que ela ficasse só consigo mesmo. Era esta
condição de isolamento que assegurava o encontro da torturada a sós com o poder que se
exerceria sobre ela, condição primeira para a submissão total. 141 Esta técnica de tortura foi
utilizada tanto em homens quanto em mulheres. No entanto, devido aos princípios aprendidos
durante o processo de socialização, as últimas se sentiam mais atingidas.
Falando sobre a prática da tortura, o livro “Brasil: Nunca Mais” considera que:
“Não se tratava apenas de produzir, no corpo da vítima, uma dor que a fizesse entrar em
conflito com o próprio espírito e pronunciar o discurso que ao favorecer o desempenho
do sistema repressivo, significasse sua sentença condenatória. Justificada pela urgência
de se obter informações, a tortura visava imprimir à vítima a destruição moral pela
ruptura dos limites emocionais que se assentam sobre relações efetivas de
parentesco.”142

Esta referida tentativa de destruir moralmente os torturados por meio da ruptura


dos limites emocionais relacionados às relações de parentesco é claramente percebida nas
experiências de Maria Amélia e Criméia. Como dissemos anteriormente, ao serem presas,
estavam acompanhadas dos filhos de quatro e cinco anos de Maria Amélia, de seu marido e,
além disso, Criméia estava grávida. Em documentação aferida pelo Projeto Brasil: Nunca

140
MONTENEGRO, Marcelo. “Anos de Chumbo”. Cadernos do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro, nº179,
Novembro, p.06
141
COLLING, Ana Maria. Op. cit., p.83.
142
ARNS, Paulo Evaristo. Op. cit., p.43.

68
Mais e incluída em seu relatório final, constam as declarações de Maria Amélia e de seu
marido a respeito da utilização de seus filhos e das ameaças feitas a estes. Segue a citação:
“Na tentativa de fazerem falar o motorista César Augusto Teles, de 29 anos, e sua
esposa, presos em São Paulo em 28 de dezembro de 1972, os agentes do DOI-CODI
buscaram em sua casa os filhos menores deles e os levaram àquela dependência policial-
militar, onde viram seus pais marcados pelas sevícias sofridas:
(...) Na tarde desse dia, por volta das 7 horas, foram trazidos seqüestrados, também
para a OBAN, meus dois filhos, Janaína de Almeida Teles, de 5 anos, e Edson Luiz
de Almeida teles, de 4 anos, quando fomos mostrados a eles com as vestes rasgadas,
sujos, pálidos, cobertos de hematomas. (...) Sofremos ameaças por algumas horas de
que nossos filhos seriam molestados. (...)
A companheira de César, professora Maria Amélia de Almeida Teles, também
denunciou no mesmo processo:
(...) que, inclusive, ameaçaram de tortura seus dois filhos; que torturaram seu marido
também; que seu marido foi obrigado a assistir todas as torturas que fizeram consigo;
que também sua irmã foi obrigada a assistir suas torturas; (...)”143

Não havia limites para os suplícios impostos aos torturados. Ameaças à


integridade física e psicológica de seus filhos, prisão e tortura de parentes eram acrescidos
constantemente ao sofrimento dos presos políticos. Durante seu período de prisão Maria
Amélia viu sua família se desintegrar:
“Meus filhos foram entregues a um delegado de polícia que era cunhado do meu marido
e que muito judiou dos meus filhos, eles sofrem as seqüelas de tudo isso até hoje. Minha
irmã foi para Brasília porque estava presa também. Minha família acabou toda. Eu
raríssimamente tinha notícias, minha grande meta na vida era receber alguma notícia da
minha família. Eu passava a semana inteira para saber se algum preso tinha algum
advogado com alguma notícia para me trazer, essa era minha grande expectativa, quando
eu vivia os dias pensando até que não ia vê-los mais, ficava até na dúvida se ia vê-los ou
não, se eles iam matar a minha irmã, porque eles sempre falavam que matavam e que eu
não pudesse ver mais e que pudesse matar também o bebezinho que ela tinha. Muito
pouca notícia eu tive deles naquele período e as poucas que eu tive foram muito fortes,
foram muito importantes.”144

Neste período, crianças eram separadas dos familiares e levadas para lares
clandestinos ou internadas em instituições estaduais, ficando muitas vezes desaparecidas. O
destino do filho que ainda estava por nascer era motivo de grande angústia para Criméia. Ela
descreve sua situação:

143
Idem, p.45
144
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.

69
“A minha barriga era motivo de muito desprezo e ódio, isso eu sentia e por outro lado
eles te torturam no que você tem de particular. No meu caso eu estava grávida e o que eu
tinha de particular ali era um filho para nascer. Eu acho que eles foram assim com as
outras companheiras também, de ameaçar torturar os filhos. E a mim eles ameaçavam de
tomar o filho, inicialmente eles disseram que iam fazer aborto, depois que se fosse
homem, eles diziam: „Homem, branco e saudável‟ (...) esses eles iam adotar (...)” 145

A possibilidade de ter que se separar de seu filho fez com que Criméia
desejasse ter uma filha e não um filho. O futuro das crianças nascidas no cárcere era motivo de
verdadeira apreensão. Em suas palavras da depoente:
“Então nessa hora a única coisa que eu queria ter era uma menina, eu tive um menino, eu
sabia que ia ser branco, saudável qualquer mãe quer, ainda mais nessa situação e por
azar meu filho nasceu homem e de olho azul. Quando eu olhei aquilo, para mim foi a
morte. Então eles usaram isso e me chocou muito (...)”146

O direito à vida não constava entre as prioridades do aparato repressivo. A


ameaça de aborto era uma constante como podemos aferir pelas entrevistas. Muitas mulheres
que adentraram grávidas nos locais de tortura sofreram abortos. Foram torturadas, coagidas ou
viram seus maridos e companheiros sendo torturados. Em resultado desses suplícios muitas, de
modo doloroso, perderam seus filhos.
Outro modo de deixar as marcas da repressão nas militantes que ousavam se
opor à ditadura militar era criar uma imagem negativa destas para a sociedade. Em oposição à
imagem das mulheres submissas e passivas que atuaram ao lado de seus maridos na defesa da
ordem democrática e dos bons costumes na Marcha com Deus pela Família e a Liberdade em
1964, mulheres louvadas e apresentadas como exemplo, o governo ditatorial procurou
construir fora de seus porões uma imagem que denegrisse a militante política. Procuraram
retratar a mulher que participava de organizações políticas de esquerda como uma desviante
que fugia dos padrões familiares e que representava uma verdadeira ameaça para estes. A
militante era apresentada como uma mulher que havia aderido à violência, tomado gosto pelo
sangue e deixado desencadear em si a paixão noturna que nela habitava. Igual a um rio
selvagem que sai de seu leito, esta mulher destruiria tudo o que encontrasse em sua

145
Entrevista concedida por Criméia Alice Schimidt de Almeida em 07/01/2002.
146
Idem.

70
passagem. 147 Na verdade, não se tratava de uma mulher, mas de um desvio de mulher, porque
uma mulher “normal” não estaria militando em uma organização de esquerda.
Para fixar esta imagem, tornou-se recorrente afirmar que a militante era
promíscua, que entrava nas organizações de esquerda somente para levar uma vida libertina e
exatamente por este motivo não merecia respeito. Prova da tentativa de desmoralizar as
militantes foi a exibição das caixas de anticoncepcionais apreendidas junto das participantes
do Congresso da UNE em Ibiúna. Os militares queriam provar que aquelas mulheres não eram
“moças de família” e que estavam ali porque queriam algo mais que discutir questões
políticas. 148
Tornou-se comum o uso do termo “puta comunista” para designar as presas
políticas, numa tentativa de desmoralizar e humilhar a militante diante de seus torturadores, da
sociedade e até mesmo diante de si mesma. Este termo estava ligado a duas figuras sociais
problemáticas que a repressão vinculou à imagem das militantes: a prostituta que representava
a desviante social, a mulher “de vida fácil” e a comunista como a desviante da ordem política.
Maria Amélia atesta este tipo de tratamento em sua entrevista: “Nós, mulheres presas, éramos
consideradas putas. Terroristas, putas e seres mínimos (...)”149
É comum nos documentos oficiais encontrar a “acusação” de envolvimento
amoroso entre militantes. Para a mulher, de acordo com a lógica militar carregada de
preconceitos de gênero, era considerado subversão, crime contra a Segurança Nacional possuir
um envolvimento amoroso. Áurea Moretti relata a pressão que ela e Madre Maurina
receberam durante a tortura para que declarassem ter envolvimento amoroso com outros
militantes:
“(...) muitas vezes eles nos torturavam para dizermos que a gente era amante de alguém.
Por exemplo, em Ribeirão Preto, eles falaram que eu era amante do Guilherme Simões e
a Irmã Maurina, eles queriam por todos os modos que ela e o Mário Bugliani, que
participava lá no colégio. Mil vezes eles foram interrogados e torturados para dizer que
eles eram amantes, eles diziam que eu era amante de todo mundo.” 150

Por outro lado, caso a militante não integrasse uma organização de esquerda por
estar procurando vida fácil, era porque realmente não era mulher, mas por possuir um outro

147
PERROT, Michelle. Op. cit., p.174.
148
VENTURA, Zuenir. Op. cit., p.35.
149
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.
150
Entrevista concedida por Áurea Moretti em 04/07/2002.

71
tipo de desvio: era homossexual, “sapatão”, como freqüentemente eram chamadas. É
interessante notar que estes conceitos pejorativos – “puta comunista” ou “sapatão” –
representam, no imaginário coletivo, os dois tipos de mulheres que demonstram mais coragem
e destemor. Assim eram vistas as militantes: “Eles falavam que guerrilheiras eram mais
perigosas nas ruas e mais resistentes na tortura (...)”151 Aguerridas combatentes que
militarizadas ousavam ainda mais, iam além do simples oposição ao regime ditatorial
instalado, se equiparavam aos militares, incomodavam porque “seriam soldados como eles” 152.
Para os militares e para a sociedade como um todo, a presença nas organizações
de esquerda de uma mulher que atendesse às expectativas gerais de comportamento social era
inconcebível. Caso uma mulher “normal” fosse encontrada entre as militantes, era porque esta
tinha sido influenciada por seu marido ou namorado, havia sido “ganha” para a causa. Este
tipo de raciocínio demonstra que a mulher sendo “normal” se constituía em um ser
influenciável, que não agia por vontade própria.
A repressão via a militante como um ser que ousava sair do espaço privado para
subverter o espaço público. Para combater sua influência e desacreditar sua prática política, a
militante foi desmoralizada perante a sociedade, caracterizada como uma mulher desviante ou
incapaz de escolhas próprias.

Resistência à repressão

A hierarquização imposta pelas relações de poder entre os gêneros fez com que
a militante tivesse sua sexualidade transformada em principal via de maus tratos sob o
domínio do torturador. Como vimos anteriormente, a tortura acompanhada de violência sexual
tinha como objetivo, além da obtenção de informações, castigar e mostrar à militante qual o
seu devido lugar na sociedade patriarcal defendida pelo Estado militar. Deveria produzir a
quebra moral e a desintegração psicológica da militante, para que esta voltasse a ser um ser
submisso, isto é, tradicionalmente feminino. Por este motivo, foram praticadas várias formas
de tortura psicológica, como a intimidação, a humilhação e a destruição moral, além do

151
Idem.
152
Entrevista concedida por Criméia Alice Schmidt de Almeida em 07/01/2002.

72
descrédito da capacidade ideológica da militante. Como vimos, outra forma de violência era a
constante ameaça de tortura de familiares aliada à tortura física.
No caso das militantes grávidas, a ameaça de tortura era ainda mais aflitiva.
Corriam o risco de seus filhos nascerem com seqüelas ou ainda de os perderem. Os
torturadores não faziam concessões para as gestantes e, em muitos casos, apenas a tortura
psicológica foi suficiente para o desencadeamento de quadro de aborto. Em entrevista
concedida para o livro Breve história do feminismo no Brasil, Criméia denuncia que “a
violência sexual esteve sempre presente na nudez durante os interrogatórios, nos choques
elétricos na barriga e seios e no que cada um dos torturadores achava de „melhor‟ ou „pior‟ no
meu corpo de mulher grávida.” Neste caso, a melhor forma de resistência é indicada pela
própria depoente. “Nessas condições, a mulher pode dar uma resposta inesperada – à ameaça
de morte, podemos responder com uma nova vida.”153
Vivendo em um contexto desfavorável, com a possibilidade de serem presas,
mortas ou exiladas e sem o desejo de abandonar a luta, parte das militantes abdicava da
maternidade, adiando-a para dias melhores. As militantes que, como Criméia e Maria Amélia,
tiveram filhos e foram presas, temiam pelo bem estar destes. Para Maria Amélia a integridade
de seus dois filhos nascidos durante o período de clandestinidade era preocupação recorrente
nos piores momentos do cárcere:
“Mais forte para mim foi isso, era tão forte que eu tinha alucinações, eu via eles picando
o braço do meu filho, parecia que estourava todo picadinho e eu pegava os pedacinhos
no chão e juntando para fazer um braço novo.”154

Alterar ou melhorar a ambientação das celas, para garantir o bem estar das
crianças nos dias de visita, era outra maneira de resistir ao ambiente hostil das prisões. Mesmo
não tendo filhos neste período, Áurea Moretti nos contou emocionada sobre os dias de visita
no Presídio Tiradentes:
“Então é uma coisa que eu não tive problema por ser solteira, mas que tocava muito em
nós, quando acabava a tortura e começavam com o processo na Auditoria, liberava os
filhos, achavam as crianças, essas crianças visitavam os pais, e o dia de visita era muito
especial para nós, porque a gente… (choro) Então a gente fazia uma cadeia diferente,
com uma cela diferente, uma comida gostosa, brincava, desenhava e cantava e para nós

153
TELES, Maria Amélia de Almeida. Op. cit., p.72.
154
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.

73
também era um dia diferente. E tinha o pai de um lado e a mãe de outro, então ficava
uma vez com o pai e uma vez com a mãe.”155

A alteração do ambiente era uma maneira de resistir à desintegração pessoal


causada pelo cerceamento da liberdade. A tentativa de construir um espaço diferenciado,
aconchegante, onde pudessem receber seus filhos, significava também uma tentativa de
reconstruir ou retomar as relações interrompidas. Estes dias de visita se tornaram o referencial
para muitos presos políticos. Aguardavam este dia para receberem notícias, carinho e consolo
de seus familiares. A família exercia um papel importante a partir do momento da prisão dos
militantes. Passava a representar o único ponto de apoio emocional diante da situação de
extrema degradação física e psicológica por que passavam. Áurea declara que o apoio
recebido de sua família foi o que a motivou a lutar pela vida diante da pulsão de morte
produzida pela tortura. “Então um sofrimento muito grande e ao mesmo tempo, só fiquei viva
por causa deles. Falo que a culpa é deles, a culpa é da minha irmã. (risos) Não me largaram.
Nem que fosse para ir lá, para mostrar que tinha família, (...)”156
Em alguns casos as sucessivas sessões de tortura a que eram submetidos
chegaram a produzir nos torturados o desejo de morrer. Encontrar a morte nestas
circunstâncias poderia abreviar o sofrimento ou mesmo garantir a preservação de informações
que eram do conhecimento do torturado. Não revelar sob tortura informações que pudessem
comprometer companheiros ou o funcionamento da organização era visto como o
comportamento ideal de um militante preso. A experiência relatada por Guiomar nos dá uma
idéia da intensidade dos suplícios enfrentados pelos presos políticos. Ela relata:
“Essa história da prisão é um pouco complicada, eu sou presa aí eles batem, eles batem
muito, aí eu começo a passar mal, aí eles me levam para o hospital, aí eu continuo lá no
hospital (...) Aí eu continuo mal e eles ficaram com receio, só que eles queriam
informação, até então eles não queriam matar as pessoas. Então eles me levaram para o
HC, só que eles estavam com medo que eu tivesse ingerido veneno, que eles me
pegaram com uma cápsula de cianureto, ficou aquela dúvida, não melhorava. Aí eu fui
para o Hospital das Clínicas, lá eu fui examinada, me botaram soro. Eu fiquei num boxe,
com um tira do lado de fora e tinha uma janelinha, aí eu pensei, bem, eu disse: „Não dá.‟
Eu tirei o soro e me atirei da janelinha do 4º andar. Eu me machuquei muito, tive fratura,
luxação, enfim. Eles me levaram para o Hospital Militar, onde fiquei um bom tempo me

155
Entrevista concedida por Áurea Moretti em 04/07/2002.
156
Idem.

74
recuperando, nesse tempo me levaram para interrogatório e eu tive processo de trombose
lá, passei muito mal, me levaram de volta para o hospital (...)”157

Diante da possibilidade da continuação dos maus tratos, o atentado contra a


própria vida foi visto por alguns militantes “como meio de escaparem do sofrimento
infindável. Era também o recurso extremo da fidelidade às suas próprias convicções, diante de
um inimigo revestido da autoridade do Estado e que tinha a seu favor o tempo, a crueldade dos
modos e dos instrumentos de suplício, e a impunidade.”158
Durante as sessões de tortura, Maria Amélia também desejava morrer para que
seu sofrimento tivesse fim. No entanto, a vontade de viver e denunciar o tratamento cruel a
que estava sendo submetida prevaleceu. Ela relata um destes episódios, quando descobriram
que Criméia era sua irmã, e não a empregada como ambas até então sustentavam:
“Nesse dia eu fui tão torturada, eu saí fora de mim, perdi a consciência total, apaguei. Só
sei que quando eles me levaram de volta, eles me carregaram nas costas, como um saco
de batata e me jogaram, eu inerte, deu a impressão que eu era um saco de batata e nada
mais. Certo? Tanto é que eu fiquei um tempão ali jogada no chão, e eu via aquelas
batatas rolando, eu não sei se me deram alguma coisa na veia também, porque eu estava
muito alucinada, vendo as batatas rolando e eu pegando as batatas e pondo dentro do
saco e elas rolavam de novo e eu não conseguia me mexer, fiquei um tempão assim. (...)
Eu ia lá na tortura, eu era chamada para as sessões de tortura, era torturada e queria
morrer logo e não morria, eu vi como é difícil morrer, você morrer quando é jovem. (...)
Mesmo com a negligência médica que existe nos presídios você não morre, é muito
difícil. Aí eu queria morrer, quando voltava para a cela aquele saco de batatas, eu queria
viver: „Eu tenho que contar essa história, eu tenho que denunciar, seja aonde for, o ano
que for, vou viver minha vida para denunciar esses caras‟.” 159

A dor e o sofrimento físico causados pela tortura aliados às constantes ameaças


à própria vida, à de companheiros e à de familiares eram capazes de causar transtornos
psíquicos que levavam os torturados a alucinações ou pesadelos freqüentes 160. Vale a
continuação do relato de Maria Amélia:
“Mais forte para mim foi isso, era tão forte que eu tinha alucinações. Eu via eles picando
o braço do meu filho, parecia que estourava todo picadinho e eu pegava os pedacinhos

157
Entrevista concedida por Guiomar Silva Lopes em 26/04/2001.
158
ARNS, Paulo Evaristo. Op. cit., p.218.
159
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.
160
TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999, p.15. O jornalista Flávio Tavares
relata que um sonho o acompanhou durante dez anos de exílio. Conta que parte de seu corpo em que recebeu
choques elétricos durante sessões de tortura se desatarraxava do restante. E que sua tarefa constante era verificar
se esta parte ainda estava viva e parafusá-la novamente no lugar.

75
no chão e juntando para fazer um braço novo. Parece uma coisa de louco e é uma coisa
de louco mesmo, a gente não nasceu para pensar nessas coisas, a gente nasceu para
viver, para ser feliz, tranqüila. Então você vivia uma situação tão absurdamente
desumana que você fica louca, então eu tinha muito isso. Toda hora eu via que estourava
alguma coisa, alguma parte e eu tinha que ir pegar os pedacinhos todinhos e ajuntar. ”161

Podemos considerar a partir deste relato que uma das formas de resistir à
quebra física, moral e psicológica provocada pela tortura era criar a firme determinação de se
manter viva. Juntar os próprios pedaços, colar as partes desintegradas pela fúria repressiva
fazia parte da luta diária pela sobrevivência.
Durante as sessões de tortura, a única possibilidade de resistência que restava à
militante era a sua determinação pessoal em não se submeter ao torturador, procurando
manter-se íntegra pelo maior tempo possível frente às ameaças e agressões. Neste ponto, os
militantes sofriam também a pressão externa das organizações que vinculavam o bom
desempenho do militante preso e torturado à não delação de seus companheiros. Em algumas
organizações, havia até mesmo um “dispositivo de escape”: a pílula de cianureto, citada por
Guiomar. Na iminência da prisão os militantes concordavam em tomá-la para evitar o
vazamento de informações. Na verdade, não havia uma discussão realista por parte das
organizações a respeito da possibilidade de delação, do real poder do aparato repressivo e da
“influência” que este exercia sobre o torturado. Por não entenderem o nível de tensionamento
ao qual os militantes eram submetidos, as organizações de esquerda cometeram inúmeras
injustiças. Os militantes que morreram e não delataram seus companheiros foram tratados
como heróis. Os que delataram e sobreviveram carregam até hoje o peso da culpa da delação e
de serem considerados traidores
As militantes, assim como muitos de seus companheiros masculinos, tiveram
que resistir ainda às propostas de negarem publicamente as torturas de que foram vítimas em
troca da liberdade, de uma mudança de identidade, de proteção policial e de uma transferência
para o exterior. Vitimados pela quebra física, moral e psicológica, diante da possibilidade da
morte, alguns sucumbiram; outros, em melhores condições físicas e psicológicas, resistiram.
Portanto, consideramos que a militante possuía apenas meios subjetivos de
resistir à repressão. Muitas, vivendo em um contexto adverso, com a possibilidade de serem

161
Entrevista concedida por Maria Amélia de Almeida Teles em 07/01/2002.

76
presas, mortas ou exiladas e sem o desejo de abandonar a luta, abdicaram da maternidade,
adiando-a para dias melhores. Uma vez encarceradas, restava às militantes a determinação
pessoal de manter-se íntegra pelo maior tempo possível diante dos torturadores. Em certos
momentos, diante da desintegração física, psíquica e da pulsão de morte produzidas pela
tortura, a determinação de permanecerem vivas para denunciar a violência de que eram
vítimas era a única proteção de que as militantes dispunham. A partir do momento em que a
prisão da militante era legalizada, esta podia contar com o apoio da família. Neste momento,
as visitas e a manutenção ou retomada dos relacionamentos familiares passavam a se constituir
em importante referencial para a reversão do processo de quebra física, moral e psicológica
pelo qual passavam. A espera e a preparação no ambiente em que viviam para o dia de visita
significava um passo importante neste sentido.

77
Considerações finais

Consideramos que dentro do mercado de trabalho a mulher sofria a


discriminação semelhante à que era praticada nos outros setores da sociedade, tendo em vista
que ali se estabeleciam as mesmas relações de gênero. Em consonância com os estereótipos de
gênero adquiridos no processo de socialização, em sua maioria as mulheres procuravam e
aceitavam cargos que exigiam menor qualificação, apresentavam relações de dependência e
eram considerados de valor inferior aos dos homens. Esta situação evidenciava a
discriminação efetuada contra a força de trabalho feminina, que conseqüentemente recebia
salários menores e freqüentemente era utilizada para aviltar os salários masculinos. Apenas
uma parcela de mulheres que se empregaram na prestação de serviços conseguiram romper
com os vínculos de dependência encontrados em outros setores de ocupação. Estas mulheres –
professoras, médicas, enfermeiras, funcionárias públicas, assistentes sociais, pertencentes à
classe média – conseguiram desempenhar atividades que apresentavam o mesmo caráter
econômico e social que as exercidas pelos homens.
Verificamos que, apesar da forte influência exercida pelos estereótipos de
gênero que a sociedade por meio da família e da escola procuravam inculcar nas mulheres,
uma vanguarda com idade entre vinte e trinta anos, rompeu com os padrões vigente e
promoveu importantes mudanças comportamentais. Estas mudanças possibilitaram que as
mulheres daquela geração questionassem o papel e o espaço destinado a elas na sociedade
brasileira da década de 60. Estas mulheres romperam com o modelo herdado de suas mães e
avós e se recusaram a ficar restritas ao espaço privado. Passaram a exigir acesso igualitário ao
sistema educacional, qualificaram-se para o mercado de trabalho e adentram os espaços até
então tidos como exclusivamente masculinos.
O principal espaço masculino em que passaram a atuar foi o da arena política.
As mulheres atuaram tanto na direita política, apoiando o governo militar golpista, quanto na
esquerda, em oposição a este. Consideramos que a atuação política desenvolvida pelas
mulheres de direita, embora tenha sido organizada e ativa, não apresentou conteúdo político
inovador, tendo em vista que o não rompimento com os estereótipos de gênero sexistas
praticados pela sociedade e pretendeu apenas a defesa de elementos sociais identificados com
o espaço privado a que pertenciam, não assegurando para si um espaço permanente de atuação

78
política. As militantes de esquerda, oriundas principalmente do movimento estudantil,
buscaram nas organizações de esquerda um espaço em que pudessem atuar politicamente na
oposição ao governo militar e onde pudessem discutir e questionar as relações de gênero
praticadas pela sociedade. Queriam debater os problemas femininos específicos, porém, assim
como na sociedade, encontraram resistência dentro das organizações, que viam nestas
discussões questões divisionistas e secundárias que impediam uma oposição concisa ao
governo arbitrário estabelecido. Somente no final da década de 70, com o retorno do exílio e
com a autonomia em relação aos partidos que consideraram necessária, as militantes puderam
reunir os saberes sobre os problemas femininos específicos que haviam ficado dispersos
durante o período de repressão e liga-los às lutas gerais da sociedade, dando assim importante
contribuição para a consolidação do movimento feminista no Brasil.
Embora as organizações de esquerda estivessem empenhadas em promover
grandes mudanças na estrutura da sociedade e em criar o “homem novo”, não podiam deixar
de refletir as posições sexistas encontradas nesta mesma sociedade em que estavam inseridas.
Mesmo que não intencionalmente, destinavam às militantes um tratamento ambíguo que, por
um lado, afirmava que todos eram iguais, mas, por outro lado, valorizava as características
masculinas em detrimento das femininas. Este tratamento ambíguo possibilitava que as
mulheres recebessem maior ajuda e proteção, no entanto, impedia que elas assumissem cargos
de comando e direção, ficando restritas a tarefas de observação, levantamento de informações
e logística.
Para conquistarem seus espaços dentro das organizações as mulheres também
agiram de forma ambígua e contraditória. Para afirmarem-se como militantes políticas estas
mulheres procuraram diferenciar-se das outras mulheres, as “alienadas”, por seu modo de
vestir e no relativo descuido com a aparência pessoal. Contudo, esta postura indicava também
uma tentativa de adequação ao sujeito militante unitário masculino que era o referencial
adotado pelas organizações. Apresentavam uma contradição em seu modo de agir: se por um
lado procuravam apresentar-se como mulheres conscientes, capazes de gerir seus próprios
destinos, por outro tentavam se assexualizar para conseguirem espaço em organizações
tipicamente masculinas.
Quando caiam nas garras da repressão, cabia às militantes uma carga
complementar de sofrimento, já que elas haviam cometido o duplo crime de atuar

79
politicamente e de opor-se ao regime militar. Para que soubessem e retornassem ao seu devido
lugar de submissão, a repressão fez da sexualidade das militantes sua principal via de maus
tratos. Embora tanto homens quanto mulheres fossem torturados, no caso específico das
militantes, o aparato repressivo utilizava a tortura acompanhada de violência sexual para estas
percebessem sua posição de inferioridade em relação ao poder instituído.
A repressão via a militante como um ser que ousava sair do espaço privado e
subverter a ordem do espaço público. Para combater sua influência e desacreditar sua prática,
a militante foi caracterizada como uma mulher desviante: a “puta comunista”, uma mulher
com desvio social e político ou a homossexual que nem mesmo poderia ser considerada
mulher. Caso a mulher fosse “normal” e estivesse dentro de uma organização política de
esquerda, certamente esta não agia por vontade própria, havia sido influenciada pelo marido
ou namorado. Na visão transmitida pela repressão e adotada pela sociedade não havia espaço
para as “boas mulheres” em uma organização política de esquerda. Seu espaço continuava a
ser o lar, sob a benigna influência de seus pais ou maridos.
Consideramos que, diante do quadro desfavorável que se apresentava à
militante, estando em uma situação de prisão e tortura que ameaçava sua vida e a de outros
companheiros, a militante possuía apenas meios subjetivos de resistir à repressão. Uma vez
encarceradas, restava às militantes a determinação pessoal de manterem a integridade as pelo
maior tempo possível diante dos torturadores. Nos momentos mais difíceis da tortura a única
“proteção” que a militante tinha ao seu alcance era a manter a firme determinação de
permanecer viva para denunciar a violência de que estava sendo vítima. A militante poderia
contar com o apoio da família apenas após a legalização de sua prisão. A partir deste momento
a retomada dos relacionamentos familiares constituía-se no principal referencial de para a
reversão do processo de destruição moral, física e psicológica pelo qual a militante passava.
Apesar, da violência de que foram vítimas e das dificuldades de superarem as conseqüências
destas, as militantes depoentes deste trabalho mostraram grande coragem e denunciaram seus
agressores. Todas se mantêm ativas social e/ou politicamente e continuam fiéis aos princípios
que as conduziram pelos caminhos da militância política.

80
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85
Anexos
Sobre as entrevistas

As entrevistas transcritas a seguir foram realizadas entre os meses de abril de


2001 e julho de 2002 e se constituíram nos momentos mais gratificantes da realização deste
trabalho.
A primeira entrevista foi feita com a médica Guiomar Silva Lopes, ex-militante
da ALN. Meu primeiro contato com Dona Guiomar foi na cidade de Brasília, por ocasião da
realização da 52ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada na
Universidade de Brasília. Fomos apresentadas por sua filha Joana, que visitou o painel que eu
apresentava sobre a imagem que a repressão havia construído sobre as militantes. Com grande
simpatia, Dona Guiomar aceitou me conceder uma entrevista e cerca de um ano mais tarde me
recebeu em sua casa na cidade de São Paulo. Creio que neste dia, o da minha primeira
entrevista, o ambiente familiar e aconchegante em que fui recebida foi mais favorável à mim e
à minha ansiedade do que à própria depoente. Tenho a impressão que diante de minha
inexperiência, D.Guiomar agiu com grande bondade, dando um depoimento espontaneamente
rico em significado.
As duas entrevistas seguintes foram realizadas no início do ano de 2002, no
mesmo dia, com as irmãs Maria Amélia de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de
Almeida, indicadas como possíveis entrevistadas por D.Guiomar. Até este dia todos os nossos
contatos tinham sido feitos pelo telefone. Na manhã do dia 07 de janeiro realizei uma
entrevista que, agradavelmente, parecia uma longa conversa com Maria Amélia na Câmara
Municipal de São Paulo. Tive a oportunidade de conhecer uma pessoa que já havia feito uma
profunda reflexão sobre o papel histórico que havia desempenhado. Este é um dos resultados
agradáveis do trabalho com a História Oral: a oportunidade de ultrapassar os limites da
academia e tomar contato com os “sujeitos concretos da história” 162. A mesma reflexão
acrescida de uma admirável objetividade me foi apresentada por Criméia, que me recebeu em
sua casa na tarde do mesmo dia. Creio que a longa vivência política destas duas irmãs levou-as
a tamanho nível de conscientização política e social.

162
GARCIA, Marco Aurélio. Op. cit., p.334.

86
A quarta entrevista foi concedida pela Profª Drª Maria Lygia Quartim quando
de sua visita ao campus da UNESP de Franca no dia 19 de abril de 2002. Meu interesse por
seu depoimento havia sido despertado em uma visita anterior, quando a professora proferiu
uma palestra sobre a militância feminina, revelando muito de sua experiência. Sua entrevista
esclareceu vários pontos que se mantinham obscuros neste trabalho até aquele momento.
A última entrevista foi realizada com Áurea Moretti, velha conhecida, que já
havia participado em um trabalho, também sobre militância feminina, anterior a este. Áurea
me recebeu em sua casa, na cidade de Ribeirão Preto e me concedeu um longo e emocionante
depoimento.
O conteúdo das entrevistas se mostrou rico em significado. Os depoimentos não
trazem apenas informações referentes à militância, mas revelam também a percepção que cada
militante teve de suas vivências. Ao recordarem suas experiências algumas vezes se
emocionaram. Confesso que muitas vezes me impressionei com a força demonstrada por estas
mulheres que me relatavam acontecimentos que me causavam, apenas por ouvi-los, um
atordoamento difícil de disfarçar. Creio que o exercício da recordação não tenha sido fácil
para as entrevistadas. Recordar remete ao latim cordis, coração. Em outras palavras, recordar
significa passar de novo pelo coração. Nestes casos, passar pelo coração os antigos
sentimentos pode ter sido doloroso, o que foi demonstrado pelos silêncios ou pelas frases ditas
rapidamente e em baixo tom. No entanto, nem tudo é tristeza, transparecem também nas
entrevistas a alegria e a dignidade possíveis somente às pessoas que se dedicaram a seus
objetivos e não traíram seus princípios.
Aos decidirmos pela anexação das entrevistas ao corpo do trabalho, optamos
por faze-lo mantendo as transcrições inalteradas. Nenhum tipo de trabalho de limpeza ou
reordenamento do texto foi realizado. Esta escolha visa garantir que este material também
sirva de fonte para outros estudiosos, que poderão optar, de acordo com seus objetivos, pelo
tratamento mais adequado a ser dado ao documento. Como dito na introdução deste trabalho, é
urgente a criação de fontes que dêem conta da participação feminina no fazer histórico. Para o
historiador interessado nestas questões é extremamente recompensador participar da
construção do conhecimento utilizando estas fontes.

87
Entrevista com Guiomar Silva Lopes
São Paulo, 26/04/2001.

Cecília: D. Guiomar eu queria que a senhora contasse um pouco da sua história de vida na
militância. Como a Sra. Começou?
Guiomar: Bom, eu começo a minha participação política praticamente devagarinho, em 1965
quando eu entro na faculdade. Então após o golpe começou a se reaglutinar uma frente ampla,
antiditadura, começam a surgir vários grupos, nessa tentativa de retomada de um processo
democrático e tal, é aí, nesse período quando também começa se organizar o movimento
estudantil, que a repressão é chatinha, porque já tinha acontecido nos centros acadêmicos, e
começam a instituir os DAs que eram os diretórios e colocam a diretoria absolutamente a
favor da ditadura, então eles tinham uma luta importante dentro do movimento estudantil que
é uma reorganização em outra base, e tinha a questão de acordo MEC/USAID, discussão da
própria Universidade, então tinha várias coisas embrionárias em ebulição e a discussão da
própria situação política do país. Nesse período, o que existe é 65, 66 então já existia o
movimento estudantil, já tinha muitas passeatas que são reprimidas de uma forma bastante
violenta, eles colocavam tanques na rua para reprimir passeata e aí neste período é que
acontece a OLAS, assembléia da Organização Latino Americana de Solidariedade, enfim. Isso
provoca uma dissidência no partidão, aí sai Marighela do partidão.

C: A Sra. estava no partido?


G: Não nesse período eu não estava em nada, só no movimento estudantil. Quando Marighela
rompe e sai para organizar o que depois seria a ALN, junto sai um outro grupo que era um
grupo estudantil que não fica de imediato com Marighela, mas fica separado numa outra
organização que eles chamavam de Dissidência. Então essa organização estava estudando o
foco guerrilheiro baseado em várias coisas, na época se estudava a guerra do Vietnã, a Argélia,
se estudava a China, enfim, e propunha o foco, mas era uma coisa muito pequena, quer dizer,
era uma organização feita de estudantes e a grande força vinha do Movimento Estudantil, quer
dizer a proposta de indenizar o movimento estudantil teve uma repercussão importante,
porque conseguiram indenizar. Então 66, 67 e 68 eu estou na Dissidência e atuando muito no
Movimento Estudantil, participo da UEE, participo da diretoria, atuo bastante no movimento

88
estudantil. 68 começam as primeiras ações armadas, mas ainda não assumidas como a ALN e
tal, mas entre nós, os estudantes que eram de uma organização como, por exemplo, a
Dissidência, já tinha uma inquietação tremenda, quer dizer, o que a Dissidência fazia? A gente
sabia que ela não tinha uma capacidade, uma estrutura, para partir para o campo, como ela
propunha, não tinha uma estrutura aqui na cidade para clandestinidade, estava tudo muito
nebuloso, então em 68 houve uma grande repressão em cima dos estudantes, que quase
desmonta o movimento estudantil e culmina com o Congresso da UNE que é preso todo
mundo e então isso deu uma debandada geral, alguns foram presos e outros fugiram. Então
todo mundo começou a perceber que estava chegando o momento de uma clandestinidade,
uma decisão, o movimento de massa tem que refluir, ganhar forças de alguma maneira e esses
militantes que já eram conhecidos da repressão teriam que tomar outra situação,
provavelmente a clandestinidade. Bom, então em 68, você já tem toda essa inquietação e
alguns já procuram a ALN. Eu ainda estava numa angústia tremenda, porque eu não sabia o
que deveria ser feito, se eu seria mais importante terminando o curso de medicina ou não
terminando, eu estava muito aflita, aí teve uma reunião dentro da Dissidência com o Velho,
que é o Joaquim Câmara Ferreira, e daí eu me lembro bem ele tinha se preocupado, ele dizia:
“Você precisa terminar o curso de medicina”. Além do que os meus grandes amigos já tinham
sumido, o Chael, o Ziga, o Toriguara ainda estava lá, mas também não sabia o que deveria
fazer. Então fiquei naquela indecisão, mas com muita vontade de participar mesmo na
guerrilha, e aí esse contato foi decisivo pra gente entrar na ALN. A ALN tinha uma estrutura
que era o seguinte, a gente se organizava em grupos pequenos, e Marighela costumava dizer
que os grupos deveriam ser autônomos, o fundamental é a autogestão, conseguir discutir e ter
uma infra-estrutura mínima. Então na ALN que começou em 68, 69 já existia um grupo
guerrilheiro dentro da cidade extremamente eficiente, as pessoas já tinham ido treinar em
Cuba, então tinham um grupo muito bom em termos de conhecimentos, táticas de guerrilha
urbana, então nós formamos o que nós chamamos de GPD. O GPD era um grupo que começou
a discutir e a tentar fazer as próprias ações, não me lembro bem, a gente começou a fazer
alguns levantamentos, porque a gente sabia que o grande problema era o dinheiro, a
organização não recebia dinheiro de lugar nenhum, ela tinha que tentar trazer dinheiro, então a
gente começou a pensar num tipo de coisa que não nos arriscasse muito porque éramos mais
inexperientes e que nos rendesse algum dinheiro, a gente começou com pequenas coisas,

89
começamos a fazer furto de carro, de placa de automóveis que era utilizada depois num carro
roubado. Então as primeiras ações foram isso: a gente via um carro estacionado ia lá tirava a
chapa, depois tivemos algumas coisas de tirar automóvel, depois tivemos uma ação no
cabeleireiro que era pra roubar disfarce, perucas. Não fiz muita coisa, mas a preocupação era
fazer levantamento de coisas, eu me lembro que agente fez um levantamento do cursinho do
Eugênio, o Objetivo, já naquela época agente sabia que o Eugênio tinha uma ligação muito
forte com o Fleury, todo mundo da repressão sabia que ele tinha muito dinheiro. Então a idéia
era essa, tentar se programar e fazer algumas ações que nos fossem dando segurança para cada
vez conseguir ações mais arriscadas, mais complicadas e tal. Aí eu fui convidado pra ir pra
GTA, não me lembro agora que mês foi isso porque tudo me parece uma eternidade, então eu
não tenho noção do mês. Só sei que participei de uma ação da GTA uma das primeiras ações,
acho que foi a tomada da Radio Nacional. Marighela gravou, não ele, foi o Professor, mas o
texto era dele, um pronunciamento anunciando o desencadeamento da guerrilha rural também
e falou da situação no país justificando a guerra, porque a guerra é revolucionária e tal. Existia
um programa na época de uma rádio extremamente ouvida, era o que se compara hoje em
termos de televisão a Globo, mas na época era Radio Nacional, acho que depois virou TV
Nacional, não tinha uma coisa assim? Bom, isso não importa. Era de uma audiência tremenda,
era um programa policial. Nove horas da manhã todos os rádios de São Paulo estavam ligados
nesse programa de crime, então achamos melhor pegar esse dia nesse horário, mas nós
tínhamos alguns probleminhas técnicos, imagina a gente tomar a Rádio Nacional qualhada de
seguranças, prédio, enfim. Então tínhamos uma pessoa que era extremamente entendida em
radio comunicação, um técnico mesmo e ele disse que era melhor tomar a torre de
transmissão. Colocamos o gravador, os caras ficaram alucinados, porque procuravam: Onde?
Como? E eles não conseguiam bloquear, eles só conseguiram bloquear desligando a luz de
toda a região. Aquilo causou um impacto na cidade, algumas pessoas ficaram alegres,
tomaram chope, porque acharam que a revolução estava no auge e a tomada do poder seria no
dia seguinte. Depois ainda participei de várias outras, teve ação de banco, sempre a
preocupação era dinheiro, então teve alguns assaltos a banco, isso foi até Setembro de 69, que
houve o seqüestro do embaixador americano e aí a repressão foi um negócio muito
complicado, porque recrudesceu muito o processo, ficou uma questão de vida ou morte neste
período, eles teriam de que prender o pessoal que fez este seqüestro. Então eles começaram

90
uma coisa que a gente não tinha noção naquela época, porque a gente um pouco subestimava a
organização deles. Eles começaram a fazer um levantamento, começou a pegar como é que
era, eles perceberam que existia roubo de carro e de placas, então o negócio era ir atrás dessas
placas e conseguiam. O pessoal pegava o carro e deixa estacionado na rua. Aí, por exemplo,
você ia usar o carro numa ação no outro dia, você ia lá pegava o carro usava e depois
abandonava o carro, não existia nenhum esconderijo nem nada. E estava programada uma
ação para os dias posteriores a isso que vou contar que foi uma prisão importante, boa parte do
GTA cai em Setembro. Então eles começaram a perseguir e descobriram que um dos carros
estava estacionado na Alameda Campinas, eles montaram um cerco brutal e o pessoal quando
chegou pra retirar o carro foram presos. Daí pra frente a coisa é complicadíssima, todo o GTA
cai de setembro a novembro, mas foi de toda o GTA. Eu consegui escapar sei lá como, a
organização começou a afundar. Era um grupo bastante especializado, coeso, com uma cabeça
razoável, experiente, então eu acabo tendo que tomar conta de algumas tarefas, tendo que
assumir responsabilidades cada vez maiores, aí eu comecei a tentar me aproximar de outras
organizações que existiam, a VPR e a Rede. A VPR, sempre teve muita proximidade com a
ALN, mas depois das questões das armas que saíram com o Lamarca do quartel e houve lá
algum desentendimento, então eles se afastaram durante algum tempo. A gente resolve
retomar este contato então em Novembro, Marighela é morto, aí foi um choque brutal,
ninguém podia imaginar que ele ia ser morto naquela situação e Joaquim Câmara Ferreira
estava viajando pra Cuba, ele voltou e a gente tentando reagrupar as pessoas que tinham
ficado, aí então a gente quer fazer essa Frente, que a gente chamava de Frente: tentar se unir
com todas as organizações. Começamos a atuar e fizemos algumas ações. Aí tem o seqüestro
do Cônsul japonês, tem assaltos, enfim. Mas a repressão está cada vez mais próxima e nós
cada vez mais cercados, e aí eu sou presa em Março de 70 e aí já começa outra história, só que
aí eu permaneço um tempo lá na... Essa história da prisão é um pouco complicada, eu sou
presa aí eles batem, eles batem muito, aí eu começo a passar mal, aí eles me levam para o
hospital, aí eu continuo lá no hospital, um hospital que tinha na Brigadeiro Luís Antônio, eu
nem sei se ainda existe, um pronto-socorro particular. Aí eu continuo mal e eles ficaram com
receio, só que eles queriam informação, até então eles não queriam matar as pessoas. Então
eles me levaram para o HC, só que eles estavam com medo que eu tivesse ingerido veneno,
que eles me pegaram com uma cápsula de cianureto, ficou aquela dúvida, não melhorava. Aí

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eu fui para o Hospital das Clínicas, lá eu fui examinada, me botaram soro. Eu fiquei num
boxe, com um tira do lado de fora e tinha uma janelinha, aí eu pensei bem, eu disse: “Não dá”.
Eu tirei o soro e me atirei da janelinha do 4º andar. Eu machuquei muito, tive fratura, luxação,
enfim. Eles me levaram para o Hospital Militar, onde fiquei um bom tempo me recuperando,
nesse tempo me levaram pra interrogatório e eu tive processo de trombose lá, passei muito
mal, me levaram de volta para o hospital, enfim. Depois, eu vou para o DOPS, a OBAN era o
inferno, depois vinha o purgatório que era o DOPS e o paraíso era o Tiradentes. Então eu
fiquei um tempo lá no DOPS onde eles faziam um depoimento que seria enviado para a
Auditoria. Aquele documento era como se legalizasse a nossa situação que até então
estávamos clandestinos, ninguém reconhecia nossa prisão, a família sem nos ver e aí do DOPS
para frente tudo é legalizado, prestam depoimento. Aí eu vou para o Tiradentes, onde fiquei
acho que dois anos e aí como eu tinha um problema na perna, minha família ficava
pressionando, pedindo para eles soltarem, me levar para o médico e dizem eles por causa
dessa encheção da família eles me transferiram para o presídio comum, Penitenciária
Feminina. Nesse meio tempo tinha sido transferida também uma outra presa que, aliás, é de
Ribeirão Preto, Angela Rocha, ela era de uma outra organização e também foi transferida para
esse presídio, foi outro período difícil, porque a gente tinha de conviver com as presas
comuns, presídio dirigido por freiras e tínhamos celas individuais, mas tínhamos que participar
da vida normal daquele presídio. Agora a agente achou a convivência meio complicada,
porque eu pensei: “Agora eu enlouqueço aqui ou não sei como vou fazer. Entrar no mundo
delas é impossível, fazer com que elas entrem no meu também, é impossível.” Eu teria que
criar um meio termo aí, então a gente começa a criar coisas, teatro de fantoche, começa dar
aula, isso foi um fôlego para gente, porque a gente sentia que podia não enlouquecer mais. Foi
um período até rico, a gente fez muitas coisas com as presas comuns, foi muito interessante
porque tivemos ajuda de uma assistente social e essa assistente social por coincidência era
amiga de uma moça, de uma atriz que esteve presa comigo. Essa assistente social falou pra
freira que tinha uma amiga, que era atriz, que era muito católica, que gostaria de ajudar essas
presas, a freira achou muito bom e essa minha amiga foi até o presídio ensinar fazer o boneco
de fantoche. Então ela foi lá, ensinou e a gente fez várias coisas lá. Nesse presídio eu fiquei
acho que 1 ano e meio, e fomos transferidas, e a gente sempre pedindo pra voltar, sempre
mandando documento pra Auditoria, para a gente poder voltar e ficar em contato com as

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outras presas políticas, aí colocaram todas as presas políticas na casa que eles chamaram de
Casa Regresso, é um lugar onde as presas que estavam para sair ficavam e elas podem sair
durante o dia. A proposta desse lugar, dessa estrutura era essa, aí nós ficamos lá, mas juntou
todas as presas políticas, aí eu fiquei lá mais um tempo, cumpri os quatro anos e continuei
quatro anos em condicional. Depois essa condicional eu praticamente obtive com o acordo de
poder voltar a estudar ou trabalhar, eu não trabalhava, eu estudava, então voltei a estudar. E
voltar a estudar foi outro processo complicado, porque a escola não me queria lá de jeito
nenhum, eles fizeram todo o possível e o impossível para me tirar de lá. Um mês depois ou 15
dias depois, eles me entregaram um documento dizendo que eu seria jubilada, porque existia
uma lei do Passarinho com medo dos chamados estudantes profissionais, eles diziam que o
movimento estudantil estava cheio de estudante profissional, que eles estavam lá para fazer
agitação política, então ele criou uma lei lá que o indivíduo tinha que terminar o curso em x
tempo, acho que eram 8 anos. Eu já tinha estourado esse meu prazo, então eu seria jubilada. Aí
foi outra angústia, uma epopéia para poder vencer esse tal batalha e não ser jubilada. Eu
consegui terminar o curso, eu tinha terminado o 4º ano de medicina, eles me fizeram voltar
para o terceiro, tinha 3º, 4º, 5º e 6º, mas consegui com muita dificuldade, dificuldade
financeira também, porque a minha família se desestruturou com a minha prisão e aí foi muito
difícil pagar a escola, mas eu tinha que ir, que recomeçar. Bem, sinteticamente é mais ou
menos isso.

C: Quando a senhora decidiu entrar para a clandestinidade, como ficou a relação da senhora
com sua família?
G: Nesse período eu falei para minha família que eu estava tendo que fugir porque eu tinha
sido identificada no movimento estudantil e que era melhor eu ficar um pouco escondida. Eles
sabiam que eu participava do movimento estudantil, eles ficaram um pouco preocupados,
ficaram tão preocupados que acharam que estava meio biruta e aí minha mãe disse um dia que
precisava em levar ao psicólogo, eu vi que a preocupação era tão grande e eu tinha tanto medo
que ela mandasse me investigar, que eu topei qualquer coisa, eu fui na psicóloga. Eu me
lembro que ela conversou comigo, ela falou: “A sua mãe esta achando que você esta biruta,
mas você esta normal, não estou vendo nenhum distúrbio de conduta, você tem uma conversa

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lógica e coerente”. Mas a família ficou sempre muito preocupada. Então eu entrei para
clandestinidade, mas de vez em quando eu entrava em contato.

C: Depois da morte de Marighela a senhora estava bem próxima dele, como é que se deu essa
aproximação?
G: Tivemos algumas reuniões com ele depois da queda do GTA, numa tentativa de
reorganizar esse GTA num agrupamento que pudesse fazer ações de novo, mas a gente sabia
que era importante recuar um pouco porque a repressão estava muito em cima, mas ao mesmo
tempo não deixar as coisas, estar sempre atento , continuar reorganizando e fazendo algumas
ações.

C: Como a senhora se via enquanto mulher dentro de uma organização de luta armada?
G: Olha, eu tive a oportunidade de discutir algumas vezes esta questão, uma delas com
Joaquim Câmara Ferreira, e ele era uma pessoa muito delicada, próximo da gente, dedicado,
carinhoso e daí quando eu falei da participação da mulher na guerrilha rural, ele dizia:
“Imagina uma moça participando da guerrilha rural, é muito complicado, é um cúmulo”. E aí
discutimos um pouco, ele não queria discutir muito essas questões, acabava postergando. Às
vezes senti uma dificuldade de alguns companheiros de aceitar uma mulher no comando, mas
de maneira geral, essas foram duas questões que eu estive mais próxima. O nosso dia a dia era
muito tranqüilo, não tinha diferenças. Agora é evidente que faltou a discussão da questão
feminina.

C: Sobre essa discussão que a gente já tinha comentado, a senhora pode falar?
G: Eu acho que essa discussão chegou sempre um pouco intercortada porque a idéia é que a
gente tinha tarefas mais importantes e urgentes que era a tomada do poder e essas questões
seriam discutidas depois da tomada do poder. Então toda vez que se discutia alguma coisa
relativa a questão feminina eu acho que era mal abordada, pouco abordada. O contexto era
ainda... O movimento era recente, um movimento de massa, que estava colocando questões,
revolucionando a cabeça dos homens, das mulheres, então tudo era novo e assustador para
todo mundo. Então essas questões ficaram postergadas, acho que porque elas eram delicadas.

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Fica essa dúvida, se era porque elas iam mexer muito, se porque elas eram delicadas. As
tarefas eram tantas, imediatas e urgentes, não sei...

C: A senhora sentia um militante ou uma guerrilheira propriamente dita?


G: Na ALN as pessoas que entravam podia ser apoio, oferecer a casa, esconder gente, dar
recursos financeiros, enfim alguma coisa assim, isso agente chamava de apoio. Mas existiam
militantes que estavam ligados ao movimento de massa, que podiam participar de operações
mais arriscadas como, por exemplo, uma panfletagem que precisasse, se precisasse de um
esquema mais rigoroso, de uma retaguarda, de carro, de gente armada, porque a polícia ia dar
em cima. Na verdade a idéia era constituir grupos autônomos. Pra nós militante ou guerrilheiro
isso não fazia diferença. Eu me sentia uma militante guerrilheira.

C: Na sua atuação, como apoio logístico ou mesmo na luta armada a senhora sentiu alguma
vez um impedimento que a senhora participasse desse segmento?
G: Não, de jeito nenhum.

Final da gravação.

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Entrevista com Maria Amélia de Almeida Teles
São Paulo, 07/01/2002.

Cecília: Conte-me sobre sua militância política em oposição à ditadura militar.


Maria Amélia: Quando foi dado o golpe militar em 1964 eu tinha 19 anos de idade e já
participava da política. Eu entrei formalmente no Partido Comunista com 15 anos, eu era
militante da ala jovem e atuava mais com operários no processo de alfabetização na periferia,
com as idéias do Paulo Freire que eram pouco divulgadas. Eu comecei minha atuação em 1960
e era um período de democracia ainda no país, então trocar idéia, desenvolver um pouco a
frente política, e a coisa que mais me tocava era o número de analfabetos no Brasil, que era
grande, a desigualdade social visível e tão absurda quanto hoje. É claro que em um outro
contexto, há quase 40 anos e tudo isso, então eu já tinha uma militância política.
E por que eu era uma militante política? Porque eu já vinha de uma família que já tinha
militância. Meu pai era comunista, meu pai era ferroviário. Meu pai foi estivador, porque nós
morávamos em Santos, no porto de Santos meu pai trabalhou muitos anos e também desde a
infância tinha a política dentro de casa. Então em 1964, quando foi dado o golpe, o golpe já
vem atingindo minha facção, minha família, o meu pai foi preso já nos primeiros dias do
golpe, na época que desaparecia e ficava desaparecido por volta de 6 meses e eu já sou
indiciada por Inquérito Policial Militar, eu sou convocada pela grande imprensa, o que me
deixa extremamente queimada junto ao meu trabalho, junto a uma série de fatos que as
pessoas comentam muito, e o fato de você estar respondendo IPM era motivo de isolamento,
de medo, ou seja, já causava uma certa intimidação. Então me prejudica desde o primeiro
momento, assim como milhões, não é? Porque muita gente não é atingida diretamente, é
atingida indiretamente, quer dizer, mesmo que eu não tivesse sido atingida diretamente, meu
pai foi e eu já tinha sido atingida por isso. A ditadura nos seus primórdios já buscou isolar e
eliminar todo foco de oposição e eu fazia parte dessa oposição, então evidentemente foi assim
que desenvolveu minha militância, porque eu tinha 4 anos de uma militância formalmente
partidária e política e aí veio o golpe e passa a ser uma militância extremamente dificultada
com a oposição dos militares e que cerceava a liberdade. Então eu não vou poder ir mais em
reuniões abertas, vou ter que ter uma atuação clandestina, perseguida e com a família sem
apoio, meu pai ficou o tempo todo preso clandestino, desaparecido pela ditadura, que não

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recebia salário, quem tinha que sustentar a casa era eu, eu era a filha mais velha e ao mesmo
tempo nessa situação.
Agora, durante a ditadura militar, eu vejo que as opções se incurtaram muito. Todo trabalho,
eu fazia trabalho popular, e esse trabalho popular estava impedido de ser desenvolvido, em
pouco tempo eu fui demitida do trabalho, porque eu indiciada, eu fiquei sendo como
responsável pelos comunistas, até na universidade eu não consegui, eu entrei na universidade
sem poder freqüentar, então eu não freqüentei, mas eles me colocaram como responsável até
pelos estudantes universitários arregimentados por partidos. Então entrei para a
clandestinidade, minha família toda também foi para a clandestinidade, eu me casei na
clandestinidade ou quase na clandestinidade. Eu fui viver no Rio, onde vou viver clandestina.
As minhas tarefas vão ser ligadas à imprensa, eu vou ser rádio escuta, eu sou leitora de jornal,
para ver o que está acontecendo, eu vou trabalhar na gráfica clandestina, fazer revisão,
trabalhar com material gráfico, com edição de material gráfico, às vezes tinha que escrever
algum artigo, tinha que ter esses contatos, tanto nacionais como internacionais, esses meios de
ligação e esse trabalho é totalmente clandestino. Às vezes no tempo... Eu tentei no Rio, eu
tentei fazer uma... eu sempre achei as publicações que eu fazia com a direção, meu trabalho
era mais de execução do que elaboração, eu via muitas vezes uma linguagem extremamente
hermética, muito distante do que passava na cabeça do povo, eu vim do movimento popular e
dele aprendi a viver no mundo, então eu achava aquela linguagem difícil. Então eu pegava
aqueles artigos, pequenos porque não podia escrever muito, a imprensa era feita quase toda
manual, era artesanal, era muito diferente do que se vê, não dá nem para comparar, a situação
era muito precária. Então eu cheguei a pegar documento de uma página de papel sulfite, mas
tinha uma 30 ou 40 palavras totalmente não usuais das linguagens populares ou medianamente
formadas. Eu pegava as palavras que não sabia, sublinhava, procurava no dicionário e fazia a
tradução da linguagem partidária para o operário que estava no partido porque os próprios
militantes do Partido não conseguiam entender, não era nem pra grande massa. Então reunia
bases do Partido na Baixada Fluminense par discutir gramaticalmente o significado daquele
texto, o que se entendeu da linguagem, para depois fazer uma discussão política, porque eu
achava difícil discutir política sem saber o que estava escrito, eu sentia o operariado se
formando com uma linguagem estereotipada, sem sentido, eu fiz essa discussão muito tempo
lá no Rio. Bom, isso eu estou resumindo, porque são tantos anos, e cada dia na clandestinidade

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vale um ano ou mais de vida, de experiência, porque não existe um dia que seja rotineiro, não
existe um dia que você diga: “hoje eu não vou pensar em nada”. Não existe isso na
clandestinidade, você está sempre pensando no inimigo, se te localizou, quem foi preso. Eu fui
muito cuidadosa na minha clandestinidade, porque graças à direção do Partido, porque eu
atuei num partido onde não existia... Eu fui do PC do B, mas não é esse de hoje, é
completamente diferente, esse aí faz acordo com Deus e o mundo, o nosso não. Tinha acordo
mesmo com as idéias do povo, muito comprometido com isso, tanto que a grande maioria dos
meus companheiros foi morta pelo compromisso. E eu fui presa política, não sei se é sorte,
não fui assassinada, sou uma sobrevivente, então sempre me lembro com muito carinho dos
meus pares daquela época porque foram eles que me ensinaram a tomar cuidado com a
segurança pessoal, que muitas vezes eles mesmos botaram em risco, não por eles, porque eles
sabiam o que fazer, mas pela contingência do momento, porque tinha tanta tarefa a fazer, de
uma mesma pessoa, ela tinha que representar tantos papéis que muitas vezes acabava
cometendo erros. Porque muitas vezes na clandestinidade você tem que ser muitas pessoas em
uma só, pode ser clandestino ou legal, você é uma só, mas você tem que representar, então na
comunidade você é uma pessoa que faz tal coisa, no partido você tem outro nome que faz
outra coisa, então você tem várias facetas muito definidas que você tem que tomar muito
cuidado com elas porque você tem uma cara diferente, uma roupa diferente. Eu tinha que
andar como uma mulher de classe popular e outro dia da classe média, bem vestida,
dependendo da tarefa que eu tinha que desempenhar. Eu tinha que ser muito rápida na
mudança de papel, no raciocínio. A clandestinidade exige um esforço que na cidade tem essa
característica, que talvez no campo você sempre seja a camponesa, na cidade você tem que ser
a popular. Você sai da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro e chega na zona sul fazendo um
outro papel completamente diferente, mas eu fui muito cuidadosa, vivi quase 8 anos na
clandestinidade, que é uma coisa raríssima, atuante, porque muita gente vai pra
clandestinidade e para no tempo, e não parei, eu fiquei dentro do Partido respondendo às
necessidades do Partido e ao mesmo tempo respondendo às necessidades da sociedade, porque
a sociedade estava investindo, tinham sonhos, desejos imaginário, eu estava inserida nos dois e
não é fácil manter isso tudo e eu ainda cuidei de aparelhos do Partido, dei uma cobertura, uma
fachada legal a aparelho, isso era um processo difícil.

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Caíram pessoas no Rio, foram presas, eu tive que vir para São Paulo. Em São Paulo eu dei
mais um tempo, também da mesma forma que no Rio, com exceção que aqui eu não fiz
nenhum trabalho durante a clandestinidade, praticamente não fiz nenhum trabalho de base, fiz
só trabalho junto ao Comitê Central do Partido, era tanto o trabalho de imprensa, gráfico,
como trabalho de aparelho e fiquei aqui em São Paulo. Meu companheiro ficou tuberculoso
por conta do trabalho na gráfica, ele era o responsável principal, ficou diabético, tuberculoso,
teve úlcera, teve muitos problemas de saúde e eu fiquei assumindo a responsabilidade sozinha
por um longo tempo. Eu tive dois filhos na clandestinidade, eu nunca deixei de ser uma pessoa
“normal”, porque afinal o que é ser normal? Mas sempre fui uma pessoa comum, embora
tivesse uma tarefa especial que as pessoas não sabiam, não compartilhavam comigo e nem eu
podia compartilhar com elas, e sempre tive um trabalho com o povo, mesmo que não
designada para isso, mesmo aqui em São Paulo eu nunca perdi o contato com o povo, esse era
um ensinamento do Partido e talvez um pouco de Mao Tse-Tung. Eu tinha uma influência que
ele coloca como uma necessidade viver com o povo, como peixe dentro da água e sempre tive
contato, não é que você está distante daquelas pessoas, é que você quer a liberdade delas, que
você quer se libertar, depois o ser humano é um ser social, não dá para você viver. Então essa
sempre foi uma contradição minha com o Partido, que o Partido não gostava disso, inclusive
eu era clandestina do próprio Partido. Quando eu ia numa festa junina com o povo, em festa de
Carnaval, na casa das pessoas, o pessoal colocava isso como perigoso e na verdade era, viver é
perigoso como dizia o Guimarães rosa, mas você não podia deixar de viver para ter atuação
política. E lógico que você está numa festinha, aí pode aparecer a polícia, você tem que tomar
cuidado, pode sair uma briga e você tem que saber sair dela, ainda mais que eu sempre morei
em bairro da periferia, que a política vem com truculência, ainda mais na ditadura e continua
até agora, uma truculência de longa data junto às pessoas populares.
Atuei aqui em São Paulo com a mesma atividade do Rio, tinha de fazer contatos nacionais e
internacionais, dar conta da divulgação da imprensa e da distribuição, eu era responsável por
auxiliar o Comitê Central na distribuição de 1500 exemplares da Classe Operária, que não era
pouca coisa naquele tempo. Você entregar um Classe Operária para alguém era uma tarefa
difícil e você encontrar alguém que quisesse receber mais difícil ainda.
As quedas do Comitê Central. Dizem que começou no Rio de Janeiro, ninguém nunca sabe,
isso nunca foi esclarecido, está ai uma tarefa se o Partido se interessasse, mas até hoje não se

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interessa, porque a polícia não vai contar... Só que começaram as quedas no Rio de Janeiro,
vieram para São Paulo e eu fui presa junto com um camarada que eu atuava junto com ele, que
foi assassinado pela repressão num processo de 3 dias de sofrimento mesmo. Meu
companheiro foi preso, minha filha de 5 e meu filho de 4 foram presos, minha irmã grávida de
7 meses. Eu, a Criméia e a Luciana somos testemunhas deste assassinato desse companheiro
que era muito presente na nossa vida. Que era assim o lado afetivo da clandestinidade, muito
importante, era um elo muito importante da vida presente com a futura, era uma pessoa muito
capacitada, competente e muito humana, representou uma perda muito grande para mim e para
toda organização. A minha prisão se dá em 28 de dezembro de 1972. Fico presa e a prisão é
uma atividade política constante, aprendi a sobreviver com a perspectiva e dignidade na mão
do inimigo, não é fácil, é um trabalho constante de atividade política que você faz para se
recompor a cada dia que eles te destroem e você se recompõe a cada dia, a cada momento que
você está na mão do inimigo. E por fim eu continuo a minha militância, eu vou ser liberada em
termos, porque eu vou ser processada até 1978, 79 sou anistiada, mas a perseguição continua,
se for ver meus autos, vai até 1990. Até 1990 eles estão me acompanhando não sei porque.
Porque tinha o SNI, né? Serviço Nacional de Informação. E minha militância sempre
permaneceu constante, hoje eu trabalho, eu estudo, comecei a estudar, estou fazendo um livro
agora, milito. Estou aqui na Comissão de Direitos Humanos, que é uma construção nossa
também, pode dizer que cada lugar que você for que tem um preso político que puxou isso.
Fui nomeada agora para essa comissão do governo que vai indenizar os ex-presos políticos,
que eu não sei se vai atingir seus objetivos. É que a regulamentação da lei é muito ruim, mas
enfim estou na militância.

C: Como a senhora tomou contato com as organizações de esquerda?


MA: Eu sempre tive contato porque eu tinha a militância em casa, sempre fui de esquerda,
nasci na esquerda porque meu pai era comunista, então não tinha como fugir a esse tema, até
podia responder de forma contrária à proposta dele, mas sempre me considerei de esquerda e
sempre tive contato, até porque meu pai era um comunista muito aberto, não era um comunista
quadrado como tem por aí hoje em dia, os comunistas ficaram muito quadrados com a
ditadura, ficaram bitolados, muito fechados achando que eram donos da verdade, mas meu pai
atuava em sindicato, era uma coisa mais aberta e na minha casa freqüentava qualquer “ista”

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de esquerda, não tinha uma exclusão, então sempre tive contato com as organizações de
esquerda em geral. Eu me afastei mais das organizações de esquerda quando estava na
clandestinidade, me voltei mais para o Partido Comunista. Ele é por razões que eu não posso
explicar, talvez você é que vai explicar, porque você é historiadora, é um partido
extremamente machista em todos os sentidos, não é só que acha que o homem é mais
importante que a mulher, que isso todos os homens achavam, era o pensamento da sociedade:
a supremacia masculina, a inferioridade das mulheres. Mas o Partido excluía as mulheres dos
postos de comando, o que às vezes em outra organização você vai encontrar uma mulher, no
Partido não, era bem rigoroso, um pensamento bem machista, que as mulheres não são tão
firmes, não têm tanta convicção diante da repressão, na hora da tortura elas vão entregar, como
foi feito em 1940 e tanto, que matou aquela empregada doméstica, achando que era ela a
responsável pela entrega, não eram os homens, né? Então essa idéia vem de longa data, as
mulheres não tinham tantos direitos quanto os homens, as mulheres eram bastante excluídas.
Eu tive uma ação bastante isolada, eu era “a” mulher com homens, dos meus 15 anos até
minha prisão, a minha militância era com homens. Foram 12 anos importantes na minha vida,
você aprende muita coisa, eu aprendi a fazer política com homens e tenho que tomar cuidado
para não cometer os mesmos erros porque era uma política machista. E por outro lado, as
mulheres começaram a chegar no Partido. Tinha uma mulher lá que o raciocínio dela era igual
ao de homem, extremamente machista e era até difícil nossa relação, porque tudo que você
tinha desejo enquanto mulher ela achava absurdo, achava vício burguês, colocava em risco a
segurança do Partido, você só podia pensar igual homem. E as mulheres começaram a chegar
em 1968, 68 é um ano de muita, era um ano de muita luz, no mundo inteiro, é um ano muito
bonito que a gente recorda com saudades porque ele trouxe muitas idéias revolucionárias para
todos, um ano acho que ninguém conseguiu escrever nem trazer de volta, até porque depois
aconteceram tantas coisas ruins depois, que todo mundo teme falar de 68 com peito aberto. E
as mulheres vieram com idéias de participação de igual para igual com os homens, elas vêm
com uma idéia mais liberada a respeito da sexualidade, e elas se comportam dessa forma e
veja o quanto elas incomodam a cabeça dos homens, a sua vestimenta, elas vem com uma
mini-saia, e eles dizem que elas já estão provocando, que dá até para ver a calcinha dela. É um
direito que a mulher tem e eu também vou mudando com isso, passo a usar mini-saia, eu acho
tão bonito, tem aquela discussão que o corpo é nosso, nós temos direito de decidir, as

101
liberdades individuais que eles tanto ensinavam com a Revolução Francesa, mas que a
pretexto, quando eles não tinham mais argumentos era o conservadorismo que prevalecia, aí
quando não tinha mais esse argumento era a segurança do Partido, se vissem uma militante de
saia iria tirar a segurança do Partido porque todo mundo ia ficar olhando. Não, todo mundo vai
ficar olhando porque todas meninas tinham mini-saia.
Então, essas foram discussões que as mulheres foram trazendo para o partido. E essas eram
questões permanentes dentro do Partido e que trouxeram muitos conflitos, e nós trazíamos
aqueles costumes que iam sendo modificados pela sociedade para o Partido e vinculávamos à
revolução cultural do Partido, era uma loucura, que hoje eu vejo no cinema e falo: “o povo é
doido”, porque aquilo ali era de um sectarismo, mas como nós víamos na nossa imaginação
naquela época, 68, aquela revolução cultural era uma beleza, era você poder andar de mini-
saia, cantar em inglês e dançar em inglês e não ser alienada e não ser a favor do imperialismo,
porque você podia falar inglês e não ser a favor do imperialismo, e essa era uma discussão
dentro do Partido, eles tinham medo de que “se você ficar lendo muito em inglês daqui a
pouco você está americanizada”, não você pode ler em inglês e pensar como uma brasileira
que eu sou, uma brasileira que está aí na vida. Tudo isso foi muito importante, foi o nascer do
feminismo, porque ao mesmo tempo eu tomo contanto com as mulheres na organização, eu
falo com mulheres jovens, a maioria veio do movimento estudantil e vieram com tudo, a fim
de fazer a revolução pessoal, social ou econômica, eram mulheres extremamente
revolucionárias, que são a luz da minha vida até hoje. Você pode ver meu livro que sempre me
lembro dessas mulheres, porque elas foram as precursoras da nossa época porque elas eram
muito despojadas, confiavam que aquelas idéias eram tão justas que elas podiam morrer hoje
aqui que amanhã outras iam levantar aquela bandeira e tocar para frente. Eu penso que é um
aprendizado que eu não quero perder nunca, é um aprendizado que eu quero absorver cada vez
mais essa idéia, o tempo todo; aí você tem que aprofundar no feminismo. E a dificuldade dos
homens é entender isso, o Partido comunista tem uma história aí de fratura, você pode me
ajudar a esclarecer a história. É o seguinte: os comunistas são bem mais velhos que os outros
partidos que nascem depois da ditadura e os comunistas nascem antes, são do começo do
século passado. Em 1922 é fundado o Partido Comunista, então eles vêem que são velhos e
dão valor ao quadro jovem do Partido, porque não tem jovem no Partido, eles mesmos
falavam: “nós precisamos formar quadros no Partido porque os jovens vão para outras

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organizações mais interessantes, mais imediatistas”, mas a vida deles ali não é uma vida de
pessoas mais velhas.

C: A senhora era do Partidão?


MA: Não, não era Partidão, já tinha rachado naquela época, mas era a mesma coisa naquela
época, era Partidão e Partidinho, eu era do Partidinho, mas era a mesma coisa no ponto de
vista da oposição biológica, vamos dizer assim, porque eram todos contemporâneos e essa
formação desses quadros jovens é que é feita no Partido. Os quadros que se formam nessa
época vão ser todos mortos pela ditadura. O Partido investe mais nos homens do que nas
mulheres evidentemente, mas as mulheres também morrem porque elas viram quadro também,
acho que nós éramos 30%, eu sempre falo que hoje com a lei da Marta Suplicy nós
conseguimos 30%, mas nós éramos 30%, eu não gosto de falar isso em público porque parece
que não valeu nada, mas valeu, só que nós éramos 30% não que o Partido fosse... Porque 30%
não é feminista, é mais ou menos feminista, porque se fosse feminista era 50%, essa lei não é
feminista, é uma tentativa de chegar ao feminismo, mas que nós éramos 30% não porque o
Partido era feminista, mas porque precisava. A repressão matava os homens, as mulheres
foram usadas e tínhamos uma certa consciência disso, umas mais outras menos, mas fomos
usadas, eu fui usada, mas não tenho do que me arrepender, era um contingente sólido, era
conjuntura, não era usada no sentido sacanagem, assim como “vou usar a mulher
propositalmente para diminuir ela”, não era nesse sentido, a idéia do Partido era mais de
protecionismo, era como se a mulher fosse incapaz, então tem que proteger em vez de
sacanear, tipo “a mulher já é famosa por ser objeto sexual, então vamos usá-la”. Não, não era
nesse sentido, que podia ser também, mas eu falo no sentido do protecionismo, evitava que
nós fossemos para linha de frente na batalha, mas agora que a contingência exigia que nós
fossemos, então pelo menos 30% foram. Eu falo 30% mais ou menos, o número de mulheres
mortas, desaparecidas lá no Araguaia, então eu falo 30%, mas não sabíamos quantas eram, nós
vivíamos clandestinas, nós temos certeza absoluta de que nós éramos a infra-estrutura da
organização, nós éramos pau para toda obra, apesar de sermos mulheres, faltou coringa?
Éramos nós. Agora quantas éramos não sabemos e na direção nunca fomos, olha todas as
mulheres que vão para direção do Partido naquela época, que são raríssimas, o próprio Partido
tem suspeisão sobre ela, é uma coisa assim tão distante e eu não vou falar sobre isso, é uma

103
coisa que me machuca muito. “Mulher que vai para direção, será que está dormindo com o
chefe?” É aquela história, fica sempre aquela dúvida, é competente ela? Entendeu? E essa
dúvida nunca deixou de existir dentro do Partido, ou essa posição. Então não tinha mulher na
direção, não tinha e não era para ter. E as mulheres que insistiram nessa história de participar
da direção foram todas mal vistas, era como se fossem carreiristas, oportunistas, que só pensa
em direção. “Ela está querendo é poder”. Como se fosse um absurdo mulher querer poder, era
de extremo machismo, era uma incoerência muito grande.

C: As mulheres também pensavam assim?


MA: Acho que algumas sim, nem toda. Eu não, até porque nunca fui da direção e eu tinha
desejo de ser da direção como qualquer outra pessoa e o fato de eu ter manifestado o desejo,
eu fui excluída, fui mal vista, então eu não pensava desse jeito. Agora as outras deram apoio
àqueles dirigentes, provavelmente pensavam dessa forma. Acho que existiu uma dúvida entre
as mulheres, se elas deviam ocupar o cargo de direção, se não seria mesmo oportunismo.

C: A senhora pode detalhar mais qual era o papel desempenhado pelas mulheres e o papel que
a senhora desempenhava dentro da organização? Tarefas, como as mulheres trabalhavam,
como era o dia a dia?
MA: Olha, eu não posso falar muito das mulheres porque eu fiquei com os homens. Quem
pode falar mais das mulheres na luta armada para você vai ser a Criméia. Eu era uma mulher
que aprendeu a usar arma com homens, então eu andava armada e achava aquilo um horror,
andar armada pra mim era o fim, um peso, como eu sofria com aquilo, principalmente se eu
tivesse que usar a arma. Algumas vezes tive que usar a arma e não usei, fui criticada
severamente por isso. Embora eu defendesse com todo empenho, como todo amor a luta
armada, nunca me arrependi de ter defendido, acho que o que a ditadura fez, você tinha que
responder coma arma na mão mesmo, porque era muito injusto você ver companheiros e
companheiras sendo assassinados e você não poder fazer nada, você se sentir impotente, então
nessa parte das armas eu era péssima, não gosto de falar disso, pelo amor das Deusas! (risos)
Meu trabalho era muito intelectual, era leitura, escrita, escuta de rádio, ficar ouvindo rádio em
espanhol principalmente, em outras línguas também era mais difícil, eu sou péssima de
ouvido, e além do que você tinha que ouvir aquelas rádios que eram uma chiadeira, era

104
horrível você ouvir rádio naquela época, rádio em Moscou, em Pequim, Rádio Havana, era
uma tarefa muito difícil, exigia muita paciência, só mulher para fazer mesmo. Cuidar de
aparelho, né? Que era uma fachada legal, isso mulher também faz muito bem porque mulher é
da casa, né? Cuida da casa.
No Partido era tudo considerado de homem, mulher era só para ajudar, fazer tarefas mesmo
nada, eles não confiavam em nada, entendeu? Esses eram meus companheiros, com eles que
aprendi, mas a cabeça deles era terrível. E eles disfarçavam, eles eram sutis, não é tão simples
como estou te falando, mas eu passava meses, anos discutindo com essas pessoas, sobre
homossexualidade. Porque eu tinha um amigo homossexual e eles queriam que eu terminasse
a amizade, eu falei: “Não termino de jeito nenhum”, que era, era não, é ainda porque ele
sobreviveu, um grande amigo que eu tinha e nunca entrou no Partido porque era homossexual,
então era uma discussão pesada. Mas eu sempre vivi assim, um lado e outro pesavam. Entre a
ditadura, os absurdos da ditadura, até porque eu tinha muita amizade com eles, talvez muita
ligação afetiva, então isso me dava muita segurança de estar com eles mesmo com aquelas
idéias absurdas, eu fico pensando o que seria de nós hoje se estivéssemos no poder, não sei,
talvez mudasse, é o que a gente pensava.
Tem muita mulher que atuou de igual para igual com homem, o que deu muita vitória,
principalmente essas jovens que vieram em 68. E eu sei que sempre fui discriminada, mas
sempre procurei atuar com competência e responsabilidade minhas tarefas, não foi fácil
porque eles não confiavam em mim e ao mesmo tempo eram obrigados a confiar, porque a
vida deles estava na minha mão, eu vivia essa contradição, mas eu tinha certeza que eles não
confiaram e ao mesmo tempo tinham que confiar. Era assim, eles dormiam com um revolver
em baixo do travesseiro e eu com outro, era aquela história, quem vai para duelo primeiro?
Existia muita desconfiança, que era natural, não acho que era absurdo na época que a gente
vivia, era extremamente natural, vivia com adrenalina o tempo todo sempre esperando alguma
coisa acontecer. Eu diferentemente deles, eu confiei neles, confiava, entendeu minha relação
de confiança? Engraçado, eu talvez sem ser ainda uma feminista e sem entender ainda o
machismo, como entendo hoje, eu já tinha aquela idéia que tudo para mudar demora muito, a
mentalidade para mudar demora muito. E acho que isso é uma coisa que eu aprendi foi com os
chineses, embora eu tivesse muita crítica a eles, Mao Tse-Tung falava revolução prolongada,
da guerra popular prolongada, que demora você mudar a mentalidade e eu transferi aquele

105
conhecimento para relação homem mulher. Eu então, eu sempre tive paciência, eu sou uma
pessoa com a característica sempre voltada para a paciência, que um dia ia mudar. Eu estou
fazendo aqui o meu pouquinho, outros podem estar fazendo em algum lugar e alguma coisa
vai ser mudada. E isso foi o que me deixou tranqüila da atuação política dentro do Partido, que
se fosse pelas atividades deles eu já teria desistido, mas eu aprendi muito.
Às vezes eu levantava às 5 horas da manhã e ia me deitar às 11 da noite para escrever, eu tinha
que escrever das 4 ás 6 porque tinha que ter sossego, se tivesse zoeira eu não conseguia e ler
também, eu era uma das primeiras a ir na padaria comprar pão, à banca de jornal. Aquele
tempo em São Paulo funcionava melhor e mesmo no Rio, no tempo da ditadura funcionava
melhor porque tinha mais emprego para trabalhar, coisa que hoje tem que tomar cuidado, a rua
está vazia, aquela época não. Então eu saia cedo, eu tinha minhas tarefas de dona de casa, de
militante intelectual e minhas tarefas de cidadã porque eu sempre tinha tempo de saber o que
estava acontecendo na minha rua, que é tarefa de mulher também, a mulher é muito mais
voltada para isso. Eu nunca cheguei a ser tratada como homem dentro do Partido, embora a
idéia fosse essa, eu nunca fui tratada como homem porque eu não era uma militante não muito
capaz, eu não respondia àquele padrão masculino 100%, eu lidada com homens, atuava com
homens, mas eu era uma mulher e nunca deixei minha cabeça: “Ai eu sou mulher e eles são
homens”. Ora! Problema deles, se eles querem ser assim, aquela ansiedade do homem, aquele
autoritarismo, eu sempre tive uma crítica a isso, eu devo ter assimilado com tanto tempo de
militância, são anos muito importantes da vida, anos de formação. Hoje que eu vejo, naquele
tempo 30 anos era velhice, tem até a música: “Eu não acredito em quem tem mais de 30 anos”.
Trinta anos era absurdamente velho, quer dizer com 20 anos você está velha, já tem condições
de assumir tudo, não se considera jovem, era adulto com plenos poderes de decidir o que fosse
para você, para o mundo, para o planeta. A nossa geração foi extremamente revoltante, nós
aprendemos a ser arrogantes desde a adolescência, nós podemos, nós fazemos, nós
acontecemos, nós não esperamos ninguém mandar, fomos uma geração diferente das outras
por causa da iniciativa, tanto é que a maioria das pessoas, dos mortos, tinham menos de 27
anos, eu fui presa com 27 anos e era considerada velha na cadeia. Minhas companheiras
tinham 21 ,22, 23 lá na cadeia. Era muita juventude, muita inexperiência, enfim, uma história
que é nossa.

106
C: E como os companheiros tratavam as militantes femininas? Eles tinham um tratamento
diferente?
MA: Claro que tinham um tratamento diferente. Para começar que eles não confiavam nas
mulheres, eles achavam que as mulheres eram menos capazes que os homens, então a mulher
tinha que ser protegida, que elas eram importantes para a humanidade porque elas eram mães.
Eles vêem as mulheres como mães e as que não puderam ser mães ou não eram mães por
opção, ninguém sabia, porque muitas companheiras não foram mães, aliás, era mais comum
não ser mãe, eu fui exceção em bastante situações, porque era uma luta armada e não gostava
de armas, eu sempre fui voltada para o feminismo e atuava só com homens, eu era uma jovem
que não podia ser mãe, era quase regra não ser mãe eu era mãe. Então você imagina né? Eu
era muito fora daquele padrão, eu não correspondia muito, então as mulheres que não foram
mães eles disseram: “Coitadas, elas não puderam ser mães porque a ditadura não permitiu.”
Agora você imagina: o ideal de uma mulher é ser mãe, completamente fora do contexto, mas
eles pensavam assim. Eles achavam que mulher não tinha força física, enfim, eram muito
ignorantes com relação à mulher, eles tinham uma visão totalmente burocrática da mulher. Um
ou outro tentava se aproximar e se descobria ignorante e pouco compreensivo. Eu fazia muito
essa discussão, levava um livro do Lênin para discutir, porque o Lênin falava muito da mulher,
o Marx falava muito pouco, Mao Tse-Tung não falava muito, mas falava alguma coisa, o
Éder Rocha falava muito, aqueles lá da África, Samôra Marchal, Fidel Castro muito pouco.
Então eu trazia aquela discussão para o Partido, aliás nesse período, eu tinha até vontade de
achar, talvez você ache lá na Unicamp, no primeiro artigo da época da ditadura, falando do
CENIMAR, não está lá meu nome lógico, porque sou clandestina, se tiver algum nome deve
ser nome de homem que geralmente saia com nome de homem. Mas está lá no primeiro artigo,
eu tinha vontade de ver para ver como é que eu pensava na época, o que está escrito, não come
eu pensava porque tinha que ser um artigo muito pequeno, eu fui muito cortada, muito
censurada. Que como o fato do Engels, do Marx, Lênin, Mao Tse-Tung, Éder Rocha e outros
mais terem falado das mulheres, assustou muita gente dentro do Partido na luta interna. Para
defender as questões das mulheres ajudou muito, pode ter falado a abobrinha que fosse, não
interessa, mas é naquilo que eles se apegavam: “são homens como você, têm mais autoridade
que você porque fizeram a revolução, aqui nós estamos tentando fazer”. Foi muito bom esse
material, mas logo que a gente refletia sobe eles a gente tirava uma conclusão sempre

107
diferente, na hora de escrever, a gente escrevia um pouquinho do que a gente pensava, então
ali era mais um requentado das leituras do Lênin e outros mais. Mas de toda forma era como a
gente caminhava com as coisas.

C: E entre as mulheres? Como era essa discussão entre as militantes?


MA: Olha eu não posso te falar porque não tive essa oportunidade, principalmente em 68 a 71
que é seu trabalho. Eu vou fazer essa grande discussão, esse grande aprendizado junto ao
presídio junto às mulheres, porque lá eu participo do coletivo de mulheres, mas lá é no ano de
73.

C: Mas neste período já se falava em feminismo, durante sua atuação?


MA: Sim, falava de feminismo. Até o Lênin, se não me engano, tem uma passagem sobre isso.
O Lênin falava que feminismo é coisa de burguês, porque ele acha que o proletariado é que vai
libertar todas as classes sociais e todos os problemas internos da classe, que são as diferenças
entre homem e mulher. Ele tem uma visão da discriminação contra a mulher apesar de ser
histórica, ela se aprofunda no capitalismo, então resolvendo a luta contra o capitalismo se
resolve a libertação das mulheres. E as feministas do século 19 questionam essa posição,
depois elas vão criar mais teoria sobre isso, mas elas questionam, então o Lênin tem rejeição
ao feminismo, embora ele defenda as idéias feministas.

C: O fato de ser mulher influenciou no momento e durante a prisão?


MA: O tempo todo, porque eu fui presa com 2 homens, que era o meu companheiro e outro
camarada da organização e nós estivemos no pátio da Operação Bandeirantes, tem um Opala
verde com sirene, parecia uns terroristas presos e todo mundo gritava com a gente:
“terroristas!”. Eles gritaram com a gente no momento da prisão: “terroristas, estão presos” e
com metralhadoras e tal. Foi uma verdadeira operação de guerra para nos prender. E aí, no
pátio da Operação Bandeirantes eles pegaram o Danielli e pegaram o César e começaram a
bater neles, e eu fiquei solta, assistindo. Tanto é que tinha um cara que era comandante, que
depois eu fiquei sabendo que era o Ustra, o comandante da Operação Bandeirantes, ele gritava
com as pessoas e eu: “Gente tenho que fazer alguma coisa”. Então me dirigi a ele para falar
alguma coisa e ele então me deu um soco no rosto e me jogou escada abaixo e eu rolei, não sei

108
se foi tapa ou soco, só sei que nunca pensei que eu fosse tão leve, que eu voasse com tanta
facilidade como foi ali, ele disse: “Foda-se sua terrorista”. Acho que eu falei com ele alguma
coisa: “É um absurdo o que está sendo feito aqui, esse país não tem, não tem... não existe
direito”, alguma coisa que falei foi inútil naquele momento, mas era uma forma de você, de
mostrar minha presença, porque eu estava invisível para eles. Pronto que me prendessem, quer
dizer, eu tive necessidade de mostrar minha presença, sou uma mulher, sou ativa, sou cidadã,
tenho direitos, quero fazer alguma coisa, estou lutando para esse país melhorar, e vocês o que
vocês vão fazer? Isto, hoje eu interpreto essa minha postura porque é uma interpretação que eu
faço hoje, porque na hora eu não lembro direito o que eu falei para ele, eu lembro que eu reagi,
e no eu reagir eu levei esse tapa que eu voei escada abaixo, que também não era muito grande
a escada não. Não era muito grande, mas eu fui lá no chão, entendeu? Foi assim (gesto
demonstrando o tapa). Talvez ele soubesse bater bem e eu não soubesse apanhar o suficiente,
porque eu cai, fui no chão. Eles então viera,, os torturadores, à mando dele e me seguraram e
me levara para a tortura, mas isso foi uma, já foi a minha simplicidade, porque ele não vêem
porque o tempo todo que eles viram que eu estava presa eles falavam isso à mulher, “que se
eles não fossem muito bons”, eles torturadores, “então ia passar por uma qualquer, ia passar
por uma prostituta”. Eles tiravam sarro em mim porque eles falavam que eu parecia a Regina
Duarte, na época porque eu tinha cabelo comprido igual o dela e o tipo, que tínhamos a mesma
idade, então eles faziam eu me parecer uma sósia da Regina Duarte. “Por aí, se caísse nas
mãos de um delegado qualquer ia parecer uma artistazinha.” Será que eles achavam que eu era
artista? Acho que é. Todo militante tinha, eu acho que é um artista, quem principalmente
militou na clandestinidade era um artista. Nesse ponto eu concordo com ele, porque se você
não for um artista, você não milita, porque tantos papéis que você representa em um dia só,
isso tem que ter essa capacidade. Mas as violências sexuais só nós que sofríamos, então por
exemplo: várias vezes fui espancada, tive assim... eles vinham me esfregar, passar a mão nos
meus seios, passar a mão na minha bunda, coisa que eles não fizeram isso com um homem, eu
pelo menos não vi. Eu vi 2 homens só sendo torturados praticamente o tempo todo que era o
meu companheiro e o meu camarada lá, nenhum foi punido, embora tinha tortura sexual contra
eles, mas a tortura sexual contra eles eram assim, eles faziam comigo e diziam par eles:
“Vocês não fazem nada, ela é puta de vocês” por exemplo. Nós mulheres presas éramos
consideradas putas. Terroristas, putas e seres mínimos, então, eles falavam isso: “Ela é puta de

109
vocês, ela que dá para vocês o tempo todo, era uma tortura sexual para eles também, mas de
uma outra forma do que a que eu sofri. Então o fato de ser mulher, o tempo todo você só vai
lidar com homens, não tem mulher na tortura, praticando a tortura, não tinha né? Hoje já tem,
eu vejo as delegadas sendo denunciadas. Atualmente uma involução também, mas na época
não tinha. As mulheres fazem trabalho de externa, de escuta, de campana, mas nada de mulher
da repressão. Elas fingiam que eram namoradinhas para ficar esperando o cara sair do ponto,
mas não como torturadora. Então era torturada só por homens. Eu era uma mulher, também
minha prisão foi eu e minha irmã e os meus filhos, meus filhos se separaram, logo puseram
em uma casa clandestina. Minha irmã separam logo também, quer dizer, por um tempo nós
ficamos juntas. Porque nós temos uma história que eu não sei como, aquelas coisas assim que
eu falo assim que tudo acontece e você não tem mais explicação, mas foi acontecer e acho que
salvou nossas vida. Porque nós não chegamos a combinar nada na hora da prisão, ou
combinamos assim, rapidamente, eu não me lembro e naquela hora era só tortura, pau-de-
arara, choque todas aquelas torturas que se descreve, eu passei por elas, muitas eu não devo ter
passado, mas muitas eu passei. E ela falou o nome dela clandestino eu não sabia o nome dela
clandestino, eu dei um apelido para ela porque eu não sabia usar o nome dela e nem o
clandestino, porque ela tinha um documento com aquele nome e eu não sabia, e ela falou bem
alto, ela foi bastante esperta, eu falo essa história e se ela manter eu fico, e foi assim. E nós
mantivemos uns 10 dias torturadas, eu mais do que ela, porque ela era minha empregada,
então ninguém torturava ela tanto quanto eu. Eles procuravam minha irmã que era
guerrilheira, que era ela, mas eu falava que não sabia onde é que ela estava, e quando eles
descobriram a verdade, a história verdadeira. Eu acho que eu e a Criméia fomos uma das
poucas pessoas a serem torturadas pelo General Humberto de Souza Melo, que era
comandante do II Exército na época. Ele era chamado pelos torturadores, pelos agentes de
Porquinho, porque ele era muito gordinho, muito baixinho e ele foi que torturou a gente,
porque ele ficou puto da vida da gente ter contado aquela mentira tão descarada na cara deles,
ter enganado eles. Bateu nos torturadores também com raiva deles terem acreditado na nossa
história também, porque era só ver, a cara de uma o focinho da outra, a voz a mesma coisa.
Nesse dia eu fui tão torturada, eu saí fora de mim, perdi a consciência total, apaguei. Só sei
quando eles me levaram de volta, eles me carregaram nas costas, como um saco de batata e me
jogaram, eu inerte, deu a impressão que eu era um saco de batata e nada mais. Tanto é que eu

110
fiquei um tempão ali jogada no chão, e eu via aquelas batatas rolando, eu não sei se me deram
alguma coisa na veia também, porque eu estava muito alucinada, vendo as batatas rolando e eu
pegando as batatas e pondo dentro do saco e elas rolavam de novo e eu não conseguia me
mexer, fiquei um tempão assim. Mas foi muito interessante o fato deles ficarem com raiva
porque foi uma vitória nossa, a gente pensa assim. É uma derrota ser jogada como um saco de
batata, por isso que eu falo, a prisão para mim foi um processo de desconstrução e construção.
Eles queriam me destruir e eu brotava das cinzas, o tempo todo foi isso, foi uma luta muito
grande.

C: Era essa a relação que a senhora e as outras presas mantinham com os torturadores? Era a
isto que a senhora se referia?
MA: Mais forte para mim foi isso, era tão forte que eu tinha alucinações. Eu via eles picando o
braço do meu filho, parecia que estourava todo picadinho e eu pegava os pedacinhos no chão e
juntando para fazer um braço novo. Parece uma coisa de louco e é uma coisa de louco mesmo,
a gente não nasceu para pensar nessas coisas, a gente nasceu para viver, para ser feliz,
tranqüila. Então você vivia uma situação tão absurdamente desumana que você fica louca,
então eu tinha muito isso. Toda hora eu via que estourava alguma coisa, alguma parte e eu
tinha que ir pegar os pedacinhos todinhos e ajuntar. E eu nunca fiz análise, eu fiquei pensando
com meus próprios botões. Eu ia lá na tortura, eu era chamada para as sessões de tortura, era
torturada e queria morrer logo e não morria, eu vi como é difícil morrer, você morrer quando é
jovem. Eu até quando vi esse menino que foi assassinado, o seqüestrador, eu disse: “Ele foi
assassinado, ele não morreria não”. Mesmo com a negligência médica que existe nos presídios
você não morre, é muito difícil. Aí eu queria morrer, quando voltava para cela aquele saco de
batatas, eu queria viver: “Eu tenho que contar essa história, eu tenho que denunciar, seja aonde
for, o ano que for, vou viver minha vida pra denunciar esses caras”. Eu pensava: “Isso é um
absurdo”. É essa a relação que eu vive muito intensamente.

C: Entre os presos políticos, como eles se relacionavam?


MA: Era vida bem coletiva, tinha a ala das presas políticas, a ala dos presos políticos e a gente
organizava a nossa vida, tinha tipo um regimento interno, tinha tarefas específicas que deviam
ser desempenhadas por todas as presas políticas, a não ser que alguma considerasse totalmente

111
incapaz para aquela tarefa, ela tinha que explicar porque era incapaz e convencer as demais
que ela não podia exercer tal tarefa. Nossas tarefas eram todas coletivas e praticamente só
vivíamos intensamente o coletivo. Aquelas que não tinham condições psicológicas, que às
vezes tinham aquelas depressões, a pessoa dormia a semana inteira, não saia da cama. Naquela
semana elas não participavam, mas fora isso era uma rotina de trabalho, você tinha toda a
faxina para fazer naquele presídio que era uma imensidão, trabalho pesado, lavar roupa, fazer
ginástica porque a gente cuidava muito do nosso físico, fazer leitura dos jornais, o jornal todo
aberto, recortado, cheio de janelas, censurado. O jornal já era censurado pela ditadura e eles
ainda cortavam as notícias. Dentro do presídio eles tinham um assessor interno. Na verdade a
gente discutia e lia mais a política internacional que eles censuravam menos. A gente ficava
sabendo da nacional com muita dificuldade, através dos advogados, através de visitas. E eu,
por exemplo, era uma espécie de ponto de ligação entre a ala masculina e ala feminina porque
eu tinha um companheiro preso, então de vez em quando eu podia visitá-lo, então eu trazia
notícia de como estava o lado de lá e levava notícias. E trabalhos de artesanato para vendas
fora, naquela época a economia estava melhor do que agora e eu consegui um salário pela
venda de materiais para botiques.

C: E sua família, seus filhos? Como ficaram durante o período da sua prisão? Como sua
família como um todo reagia durante esse período de militância?
MA: Olha meu pai não pode fazer nada porque ele era perseguido, estava com mandato de
prisão e se fosse ao presídio era preso também, então ele não pode fazer nada. Minha mãe
estava muito doente, a clandestinidade matou minha mãe aos poucos, foi um assassinato assim
de dia a dia, até que ela não suportou a clandestinidade. Suportou até que por muito tempo,
mas morreu. Meus filhos foram entregues a um delegado de polícia que era cunhado do meu
marido e que muito judiou dos meus filhos, eles sofrem as seqüelas de tudo isso até hoje.
Minha irmã foi para Brasília porque estava presa também. Minha família acabou toda. Eu
raríssimamente tinha notícia, minha grande meta na vida era receber alguma notícia da minha
família. Eu passava a semana inteira para saber se algum preso tinha algum advogado com
alguma notícia para me trazer, essa era minha grande expectativa, quando eu vivia os dias
pensando até que não ia vê-los mais, ficava até na dúvida se ia vê-los ou não, se eles iam
matar minha irmã, porque eles sempre falavam que matavam e que eu não pudesse ver mais e

112
que pudesse matar também o bebezinho que ela tinha. Muito pouca notícia eu tive deles
naquele período e as poucas que eu tive foram muito fortes, foram muito importantes.

C: Bom, a gente está terminando as questões mais formais, a senhora gostaria de acrescentar
mais alguma coisa, esclarecer alguma coisa?
MA: Eu não sei, eu sempre coloco minhas impressões para todas as pessoas, sou aberta. Não
que eu gosto de falar nesse tema, não gosto, mas me sinto na obrigação de falar, até porque eu
represento os desaparecidos, aqueles que não tiveram voz mais. Sentimentalmente eu sou
ligada aquelas pessoas, então me sinto na obrigação de estar falando, acho importante o seu
trabalho, que tem sido, ainda que pese que muito se fez nesses últimos anos, mas ainda são
muito esquecidas. Eu mesmo tenho um livro escrito que eu nunca publiquei sobre esse tema,
porque acho que é muito a minha história e é muito mais difícil você falar de sua história,
talvez um dia eu publique, não sei.

Final da gravação.

Entrevista com Criméia Alice Schmidt de Almeida


São Paulo, 07/01/2002.

Cecília: Conte-nos sobre sua militância política em oposição à ditadura militar.


Criméia: a minha militância começou logo com a ditadura, contra a ditadura porque eu tinha
uma militância anterior, eu era do movimento secundarista e logo com o golpe, logo nos
primeiros dias de Abril meu pai foi preso e eu respondi um IPM (Inquérito Policial Militar).
Meu nome foi um dos primeiros nomes a sair naquelas listas que saiam nos jornais de 64, eu
morava em Belo Horizonte. Então desde o começo da ditadura é a minha história de luta
contra a ditadura. Eu era do Partido Comunista do Brasil, foi um partido que optou pela luta
armada no campo. Em 69 eu fui para o campo na região do Araguaia, participei da luta
armada, eu fiquei na região até fins de 72, aí vim para São Paulo. Fui presa, em São Paulo, não

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fui presa na região e eu passei a fazer uma militância de ex-presa. Fim de 68 até 72 eu fui
clandestina, mas eu passei a ser legal, mas ex-presa, que é um tipo de legal, mas diferente, que
é vigiada. Eu continuei militando, participei no Movimento pela Anistia, também em 75. O
movimento feminista começa a se organizar em 75, o Ano Internacional da Mulher, eu
participei do movimento contra a carestia porque os ex-presos tinham muita dificuldade de
fazer o trabalho partidário e legal porque eles eram alvos fáceis da polícia, então a gente
participava do movimento de massa legal que existia. Então a gente participava da Anistia, do
movimento feminista, Movimento contra a Carestia, colaboração com jornais alternativos que
naquela época tinham um papel muito grande contra a ditadura e o movimento estudantil
porque eu voltei a estudar em 77. E o que culminou foi o movimento pelas diretas,
considerando a ditadura até o advento do governo Sarney, embora seja um governo meio
ditatorial, era de transição. Até o movimento pelas diretas foram esses os movimentos que eu
participei em oposição à ditadura. Colocando na ordem: o movimento estudantil em 68 que eu
fui presa no Congresso de Ibiúna, depois clandestinidade e luta armada, depois movimento
pela anistia, movimento feminista e contra a carestia que foram mais ou menos na mesma
época e luta pelas Diretas.

C: E o movimento pela creche, a senhora participou também?


C: Não eu não morava aqui em São Paulo, o movimento foi mais intenso aqui.

C: E a passagem para o PC do B como foi para a senhora?


C: Em 64 eu estava no PC do B, eu entrei inicialmente no PCB, depois houve o racha e eu
passei para o PC do B, continuo no PC do B até 87, quando foram expulsas algumas
feministas. Eu não, mas a Maria Amélia foi expulsa, a Terezinha, a Lurdinha foram expulsas
porque uma característica dos partidos é serem machistas. Então me afastei do Partido, deixei
de participar e não entrei em nenhum outro partido, que minha experiência mostrou que os
partidos são muito machistas.

C: A senhora já tinha uma militância anterior, mas qual foi o motivo que fez a senhora
permanecer na militância estudantil e depois entrar no PC do B e na Guerrilha do Araguaia?

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C: A militância anterior era de PC, a ditadura foi o ponto alto para mostrar que era difícil lutar
porque tudo que se tinha conseguido até 64, todas as garantias democráticas, foram usurpadas
pelo governo militar. Então não há maior motivo do que a própria ditadura para você lutar
contra ela e os partidos que lutavam contra a ditadura eram os partidos de esquerda.

C: E como era o dia a dia da organização que a senhora pertencia? Como era por ex. no
Araguaia, no dia a dia da organização?
C: No Araguaia, a luta armada no campo, o fundamental é que você garanta a sobrevivência
na mata, então o dia a dia era voltado para o aprendizado da sobrevivência na mata, o caçar, a
pesca, a se orientar na mata, então era muito voltado para isso. Agora se você pegar a questão
de gênero, eu fui a primeira mulher jovem que chegou lá porque tinha uma mais velha que era
da direção do Partido e quando eu cheguei o dirigente João Amazonas disse que ia depender
muito do meu desempenho a ida ou não de mulheres para a guerrilha. Eu fiquei muito
revoltada com isso porque: “A participação da mulher na revolução depende do meu
comportamento individual, pessoal? Por acaso você disse isso para o primeiro homem que
veio para cá? Certamente não disse, vocês pensaram que ia depender do comportamento desse
ou daquele homem para fazer a revolução ou não? Por que se coloca isso para uma mulher?”
Então isso já me irritou bastante. Depois tinha umas coisas, por exemplo: na mata é muito
desconfortável, você de saia e os mosquitos, os galhos, como você vai andar na mata de
vestidinho? “Então vou usar calça comprida”. Eles disseram que eu ia ficar muito diferente da
população porque as camponesas não usam calça comprida. Eu disse: “Já sou muito diferente
da população, a população não está tentando fazer luta armada, eu não vou usar vestidinho
dentro da mata. Porque daí eu vou usar vestidinho, eu não vou andar armada porque a mulher
não anda armada e que diabo de luta armada é essa que eu vou fazer, que eu tenho que ficar
igual a uma ... Porque a hora de ir para a luta, fazer as tarefas, você é revolucionária, diferente
na hora de se comportar, você tem que ser igualzinha ao tradicional. Eu falei: “Não, vai ser
tudo diferente, eu não vou ser isso”. Eles são machistas. E teve coisas do tipo assim: “Você
podia lavar roupa do companheiro da direção?” Que ele via que você era lavadeira. “Eu lavo a
minha e ele lava a dele. Se tem algum companheiro doente, pode ser da direção ou não,
homem ou mulher, que eu ajudo.” Porque é da direção vem uma lavadeirinha aqui... Não, eu
não era lavadeira. Eu era muito chatinha, reconheço, mas foi essa chatice que me manteve.

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C: E quais eram as tarefas que a senhora desempenhava?
C: Todas, não abri mão de nenhuma, não abri mão de fazer as tarefas masculinas e não aceitei
que as tarefas femininas ficassem só comigo, então no meu dia de cozinhar eu cozinhava e no
meu dia de caçar, ir para a roça, eu não abria mão. Tinha que dividir igualmente, é claro que se
bobear sempre sobra para a gente, principalmente as tarefas domésticas, cozinha suja para
limpar, mas eu brigava para que isso não sobrasse.

C: E as outras mulheres? Qual era o papel que elas desempenhavam?


C: As outras, as que foram mais próximas de mim foram muito decididas também, então
quando elas foram chegando eu fui encontrando aliadas. Sempre havia uma tentativa de
encostar as tarefas domésticas, e isso para a gente era pesado porque as tarefas masculinas
eram muito pesadas na área rural, é cortar lenha de machado, derrubar árvore, são tarefas
pesadas para homem e mulher. Agora a gente viu que se a gente abrisse mão dessas tarefas,
quando fosse na hora do treinamento das ações armadas a gente seria muito mais frágil, o
treinamento fazia parte. É claro que tínhamos muito mais dificuldade que os homens, para a
gente fazer o mesmo trabalho que eles nós tivemos que nos esforçar muito mais. É claro que
tinha homens mais frágeis, mas, por mais frágil que um homem seja na nossa cultura ele é
mais apto do que a gente nas tarefas pesadas.

C: O fato de serem mulheres influenciava no tratamento que vocês recebiam, na divisão de


tarefas e no relacionamento com outros companheiros?
C: É isso que eu te disse, de um lado a tentativa de deixar o trabalho doméstico para a gente,
de outro lado, quando a gente resistia a isso, era tratar a gente como se fosse um homem sem
diferença alguma. “Então tudo bem, a sua tarefa é derrubar uma árvore, sem ajuda.” Onde a
gente estava tinha muito essa dicotomia, hora eram paternalistas, hora era o extremo, tratavam
como se não tivesse diferença alguma. Então você tinha que estar sempre lembrando: “Eu sou
mulher e sou guerrilheira. Eu não quero proteção, mas também não quero ser explorada, eu
não sou homem, eu sou mulher.” Então tinha que estar lembrando esses fatos.

116
C: As integrantes das organizações, elas discutiam problemas ligados aos problemas femininos
entre si e com os outros companheiros?
C: Discutiam. Eu aprendi que o dia 08 de Março era o Dia Internacional da Mulher, foi no dia
08 de Março de 69, que eu nem sabia que tinha esse dia. Aí cheguei em casa, tinha ido fazer
umas tarefas na mata, quando cheguei estava cheio de flores, disseram que eram para mim,
que era o Dia Internacional da Mulher, aí foram me contar a história, eu aprendi com a direção
do Partido. Agora as discussões eram anteriores. Até minha ida para lá, porque quando eu
estava no movimento estudantil se colocava muito essa questão, que homem e mulher tinham
que ter obrigações iguais. Me lembro que algumas coisas que sempre davam atrito com os
companheiros da cidade é quando a gente ia fazer pichação. Eu morava no alojamento da
escola Ana Neri, que fechava às 10 da noite, então para fazer pichação eu tinha que sair cinco
para as 10 e ficar na rua até 1 ou 2 da manhã, que era quando a gente se encontrava para fazer
pichação. Terminava a pichação umas 4 ou 5 da manhã, eu tinha que ficar na rua até umas 7
que era a hora que abria o alojamento. Eu dizia para eles: “Não dá para mim, é muito difícil
porque é uma hora assim, você não tem um cinema para entrar, a única coisa que às vezes
você encontra aberto a essa hora é botequim para entrar e para mim é difícil entrar.” E os
companheiros falavam: “Mas você não é uma mulher emancipada?” Eu disse: “Eu sou, mas o
mundo não é, e eu estou no mundo” Então essas eram questões eram colocadas e a esquerda às
vezes cobrava dessa forma simplista, como se fosse um problema subjetivo da gente. Eu não
tenho problema nenhum em ficar na rua de madrugada, sozinha na rua, não é verdade? Então
tinha esses atritos.

C: E sobre as questões femininas, esse feminismo como mais ou menos a gente conhece,
guardando as proporções de tempo, já se falava?
C: Não se falava muito na igualdade de direitos. A gente ainda não tinha o conceito de
diferentes e iguais em direitos. As diferenças não eram tratadas, eram vistas, e aí quando se
propunha igualdade de direitos. É isso que eu te disse, se supunha que uma mulher era
emancipada, ela já devia ter igualdade de deveres antes de conseguir os direitos.

C: Qual era a postura adotada pelo Partido diante dessas discussões de gênero?

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C: Olha, a direção do Partido com quem eu convivi colocava, não questões de gênero, porque
colocamos a questão feminista, a questão da mulher, tinha uma posição razoavelmente
avançada. Nas questões teóricas você discutia, nas questões práticas esse negócio “que você
não deve usar calça comprida porque você fica muito diferente” e é um negócio complicado
porque a gente é formada com concepção patriarcal, eu acho que existiu uma preocupação dos
companheiros de combater todos esses preconceitos que eles tinham, mas eles tinham
preconceito. É claro que nós mulheres também tínhamos e como éramos vítimas do nosso
próprio preconceito tínhamos mais facilidade de perceber o preconceito, ou pelo menos
perceber naquilo que estava incomodando muito, porque de vez em quando a gente também
embarcava no preconceito.

C: A senhora já falou que as militantes meio que assimilavam o preconceito, a próxima


questão é sobre como elas viam a posição do partido?
C: Era uma questão que a gente discutia muito, essa questão do preconceito e discriminação da
mulher, é que se seguia muito dentro de um viés de igualdade de direitos e acho que pouco
naquele viés das diferenças individuais. Talvez uma fase do desenvolvimento da questão,
quando se começa a ver que é preciso ter algumas igualdades, mas também que essa igualdade
nos sobrecarregava muito. (risos)

C: O fato da senhora ser mulher influenciou no momento e durante a sua prisão?


C: Olha, a repressão também é machista, então é óbvio que eles procurassem nos homens os
dirigentes e nas mulheres o apoio, era assim que a gente era vista. E além disso, o fato de estar
grávida era mais um significado da minha pouca importância na organização. Então no
primeiro momento eu acho que teve esse lado. Agora, quando eles descobriram que eu era
guerrilheira e eu acho que estar grávida incomodou demais porque de repente eu sou um
militar como eles, no momento em que eu fui presa, era um momento em que eles não tinham
tido vitórias ainda, não tinham acabado com a guerrilha ainda. E não acabar com aquela
guerrilha que eram 70 pessoas contra 5 mil ou 10 mil, sei lá quantos deles, era qualquer coisa
de humilhante. E se associa a isso se a presa deles era uma mulher grávida, eu acho que isso
incomodou demais esses caras e assim vamos dizer, o ódio deles aumentou por causa disso,
porque eu significava, eu estava materializando aquele bando de gente que eles

118
menosprezavam, etc. Mas por outro lado eles não estavam ganhando, eu fiquei presa em 72,
73 e a vitória deles só foi ocorrer em 74, então era uma época que eles não eram vitoriosos
ainda, porque eu era uma espécie rara na minha cela, eu era o zoológico, eles iam ver o bicho
raro e era um negócio assim que todos ficavam chocados. A impressão que eu tinha era essa
porque inclusive quando o General Bandeira, ele ficava muito irritado, ele xingava os
subalternos dele na minha frente. Eu me lembro dele falando do João Carlos, que foi morto,
ele dizia: “Se eu tivesse meia dúzia de soldados como esse cara a gente já tinha ganho essa
guerra.” Ele falou isso na minha frente e de repente eu sou uma mulher e os caras tendo que
ouvir isso, sendo humilhados na minha frente, pelo machismo deles. Os caras babaram de
ódio, quer dizer, o fato de ser mulher de um lado só é menosprezado e de outro lado incomoda
muito ter um inimigo que está dentro da categoria do desprezível e de repente o inimigo que
você está combatendo é esse desprezível. Eu acho que isso mexeu muito com a cabeça deles e
deixava eles mais violentos contra a gente. E uma violência sexista, eles não abriram mão do
patriarcalismo na tortura, então eles faziam questão de torturar a gente nua, de fazer
comentários sobre o nosso corpo, porque eu acho que é uma questão mal resolvida para o
homem patriarcal a questão da maternidade, acho que eles invejam muito. Eles falam que a
gente inveja o falo, eu acho que eles invejam a nossa capacidade de reproduzir. A minha
barriga era motivo de muito desprezo e ódio, isso eu sentia e por outro lado eles te torturam no
que você tem de particular. No meu caso eu estava grávida e o que eu tinha de particular ali
era um filho para nascer. Eu acho que eles foram assim com as outras companheira também,
de ameaçar torturar os filhos. E a mim ele ameaçavam de tomar o filho, inicialmente eles
disseram que iam fazer aborto, depois que se fosse homem, eles diziam: “Homem, branco e
saudável”. Então é o racismo e o sexismo, tudo discriminação né? Porque se fosse deficiente
também não servia, tinha que ser homem, branco e saudável, esse eles iam adotar e isso
porque um dos caras que me torturava tinha um filho deficiente mental e outro tinha 2 filhas e
ele chegou até a falar: “Acho que eu vou trocar.” Eu hoje olho no meu filho e penso na filha
ele que tem a mesma idade do meu filho, como ela deve se infeliz, como ele deve ter tratado
ela ao longo da vida. Então nessa hora a única coisa que eu queria ter era uma menina, eu tive
um menino, eu sabia que ia ser branco, saudável qualquer mãe quer, ainda mais nessa situação
e por azar meu filho nasceu homem e de olho azul. Quando eu olhei aquilo, para mim foi a
morte. Então eles usaram isso e me chocou muito, para mim chocou muito o racismo dentro

119
do quartel. Eu falei de sexismo, eles têm muito ódio de mulher mesmo, não sei se porque eu
era uma mulher de luta armada e isso incomodava eles, porque eu seria um soldado como eles.
Mas eles tinham muito ódio de mulher porque inclusive na prisão eu praticamente fiquei o
tempo todo na solitária e em Brasília, no Pelotão de Investigações Criminais, a cela é um
corredor comprido na frente é a grade. Junto à grade é o vaso sanitário e o chuveiro, você sem
privacidade nenhuma, bem exposto mesmo, depois atrás é que você tem a cama, então eu pedi
uma cortina. O Cabo Vasconcelos que era um dos poucos negros que tinham lá, o único que
me lembro falou assim: “Não precisa porque nós não gostamos de mulher.” Eu disse: “Não
estou perguntando do que vocês gostam ou não gostam, porque eu não estou aqui para agradar
vocês, eu quero uma cortina porque eu não gosto de tomar banho exposta.” E foi uma briga
pra conseguir essa cortina e não adiantou nada porque quando abria o chuveiro eles corriam e
abriam a cortina. Então eu tomava banho de roupa. Mas o cara faz questão de dizer: “Nós não
gostamos de mulher.” Então o machismo e até que ponto o homossexualismo deles, porque eu
acho que se verbalizavam tanto ódio à mulher é porque é verdade.
Agora do racismo, eu fiquei no Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército de
Brasília e me chamou a tenção que, não sei se você já reparou que soldado da Polícia do
Exército são todos mais altos, tem uma média de 1.80m, são todos grandões e o que mais me
chamou a atenção em Brasília era que eram todos loiros de olho azul. Eu pensei: “Onde estou?
Que país é este?” Porque são todos de olhos azuis. Aí os soldados me explicaram que eles
eram recrutados principalmente nos estados do sul, porque eles faziam a segurança dos
embaixadores, dos representantes de outros países que vinham ao Brasil e era preciso passar a
imagem de um país branco, ariano. Eu pensei que estivesse num campo de concentração
nazista porque com tanto loiro de olho azul e a forma de tratamento. Então a partir daí eu
comecei a reparar todas as manifestações que tem presidente da república, que tem
estrangeiro, procura olhar quem são os seguranças, não são negros. Esse Cabo era o único
negro que tinha, um negro bonito, alto, dentro dos padrões de PE (Polícia do Exército), porque
PE são bonitos como homem. Tinha essa, tinha que ser loiro a PE de lá.

C: Que tipo de relação a senhora desenvolveu com os torturadores?


C: De muito ódio, né? Só ódio, né? Eu fui seqüestrada, nunca fui legalmente presa, então
minha relação com meus seqüestradores, que se quer me preservaram, porque bandido comum

120
ainda tem a preocupação de preservar o seqüestrado para fazer a troca, eu não era objeto de
troca, então eles não tinham nenhuma preocupação nem comigo nem com meu filho. Então
qual outra relação que você pode ter com o seqüestrador a não ser de ódio, muito ódio, porque
afinal de contas eu pagava para a manutenção de uma instituição que não respeitava a lei e
comigo inclusive, eu estava pagando a manutenção de uma instituição que agia
clandestinamente e que hoje quando você denuncia a atuação deles, eles dizem: “Foi um ou
outro.” Foi um ou outro não! Eu fui torturada e toda tortura que eu sofri foi em instituições do
Exército, inclusive no Ministério do Exército eu fui interrogada. Então não foi um ou outro,
foi a instituição mesmo, o Estado sabia, o Estado que se permitia agir acima da lei, aliás o que
ele já tinha feito, destituindo o governo. Então a relação é de ódio mesmo.

C: E como os presos políticos se relacionavam na prisão?


C: A minha relação foi pouca porque eu fiquei menos de um mês no coletivo, foi o tempo que
fiquei aqui em São Paulo, eu fui presa dia 28 de Dezembro, no dia 22 de Janeiro eu fui para
Brasília. Nesse período de 28/12 a 22/01 às vezes eu fiquei no coletivo, as outras eu fiquei só.
Então a relação com os presos foi muito pequena. Então quando eu fui para Brasília, os
homens ficavam em celas coletivas, mas eu era a única mulher, então eu ficava numa cela
individual. A gente gritava de uma cela para outra, só que quando eu fazia isso, pelo fato de
ser a única mulher, logo era identificada e isso era proibido, aí já vinha repressão em cima. A
minha forma de comunicar às vezes era cantando alguma coisa, sabe você canta muda um
pouquinho a letra rapidamente e continua. (risos)

C: E como foi esse período da prisão até a libertação da senhora?


C: Foi um período de muito isolamento, que eu fiquei praticamente o tempo todo na solitária e
outro tempo n hospital, mas hospital do Exército, o relacionamento com os profissionais de
saúde não existe porque quem me atendia era militar e todos me tratavam como inimigo, então
não tinha uma relação com profissional de saúde, era militar. E depois que tive meu filho, eu
voltei para cela, mas sempre nessa relação individual e com os torturadores.

C: E o período posterior à libertação da senhora, como é que foi?

121
C: Quando saí o General Bandeira que comandava o interrogatório, ele disse o seguinte: que
eu nunca tinha sido presa, apenas detida para averiguação em 73. Que eu não seria presa, se
necessário seria morta, mas presa não, não seria julgada porque não interessava ao Estado
julgar uma mulher que tinha tido um filho na cadeia porque eu ia denunciar as condições em
que tive meu filho e o Estado não tinha interesse em reconhecer a existência da guerrilha.
Então não haveria processo, ninguém foi processado por causa da guerrilha, então que eu seria
morta. Ele ainda riu e disse: “Sabe como o mundo anda violento, um assalto, um
atropelamento e depois também as pessoas podem suicidar, né? Se atirar no metrô.” Então
quando eu sai da prisão logo que foi possível, eu denunciei tudo isso que ele tinha dito e
coloquei que eu não tinha a intenção de me matar, então que se eu caísse no metrô, fosse
atropeladas, suspeitassem de crime e foi através de Dom Paulo Evaristo Arns, mandei essa
denuncia para o exterior. Eu tomava muito cuidado, acho que até hoje... (risos) Então para
mim não basta fechar o sinal, era preciso que ficassem todos paradinhos... (risos), também não
fico na beirinha do metrô. E eles me seguiam, me seguiram todo esse tempo, naquela época do
Rio Center eles me seguiam com um Puma, várias vezes, era amarelo, vermelho. Depois que
eu vi meu Habeas Data, que depois eu pedi meu Habeas Data, depois da Constituição, então
eu vi que eu era seguida. Meu Habeas Data vai até 88, mas até hoje. O ano passado que eu
investiguei o meu Infosec, daquela ABIN, Agência Brasileira de Informação, meu nome está
lá. Então até que eu pedi meu Habeas Data que veio em 90, toda manifestação de 8 de Março,
1º de Maio, eles dizem: “estava presente na Praça da Sé, em São Bernardo” e não sei onde,
então eles me acompanharam. Eu brinco até hoje, os arapongas devem estar aí no meu
telefone, que de vez em quando ele chia. Esse período até a anistia eles me seguiram muito
intensamente e depois eu fiquei sabendo pelo Habeas Data, talvez porque eu já nem andava
mais olhando para trás, para ver se eles estavam atrás de mim e com eu procuro mortos e
desaparecidos políticos, sempre que eu ia no Araguaia eu sentia que estava sendo seguida.
Sempre vê o mesmo carro, tem uma pessoa que você sempre vê em todos os lugares. Até que
no ano passado o Ministério Público achou os caras lá, foi o maior escândalo, foi ótimo porque
eu me curei da minha neurose, porque aí eu vi que não estava tendo alucinação.

C: E durante todo esse período qual foi a posição da família da senhora?

122
C: Meu pai era de esquerda, tinha sido preso, não teve nenhuma postura de oposição, a minha
mãe não tinha posição política, não era uma pessoa reacionária, mas teve uma postura de
apoio também. E óbvio que entre a repressão e a família dela, ela ficava com a família. Não
tive problemas com a família, nunca tive problemas com a família por ser de esquerda.

C: Como a senhora foi selecionada para ir para Araguaia?


C: O critério era o seguinte, quem queria. O Partido tinha uma proposta de luta armada no
campo, eu não sabia que era no Araguaia, fiquei sabendo quando cheguei lá. Eu queria ir,
estava disposta, eu queria brigar contra a ditadura porque eu já tinha sido presa em 68, quando
veio o AI-5. Eu teria que ir pra clandestinidade, eu acha que no campo seria melhor a
clandestinidade, ser mais livre, ser clandestina na cidade era muito difícil, enfim, como eu era
adepta da luta armada no campo: “É para lá que eu vou”.

C: Nesse período, a senhora morava onde antes de ir para o Araguaia?


C: Morava no Rio, porque eu morava em Belo Horizonte e fui processada em 66, 66 fiz
vestibular em Belo Horizonte, mas aí fui processada e fui para clandestinidade, eu fui excluída
do processo porque eu era menor na época do delito, eu tinha 17 anos em 64. Aí fui pra
clandestinidade no Rio, fiz vestibular de novo, entrei em outro curso e em 68 fui presa de
novo.

C: A senhora tem alguma coisa que gostaria de acrescentar ao que foi dito? Alguma coisa que
acho que não ficou claro?
C: Não.
Final da gravação.

123
Entrevista com Maria Lygia Quartim
19/04/2002

Cecília: Conte-nos sobre sua militância política em oposição ao regime militar.


Maria Lygia: Na verdade, tudo começou antes do regime militar. Eu, por causa do ambiente
familiar, uma coisa também de preocupação social também. Eu escolhi meu curso Ciências
Sociais, foi em 1963, logo antes do golpe de Estado. Eu tinha grandes esperanças exatamente
na transformação democrática do Brasil, com todo um movimento estava em andamento,
governos sociais fortes, com a proposta do presidente João Goulart. E a escolha de Ciências
Sociais foi exatamente uma escolha para eu participar com mais cientificidade, conhecer
melhor os problemas brasileiros. Então eu comecei minha militância política assim que eu
entrei na universidade, já vinha de família burguesa, estudei em colégio de freira, não fiz nem
cursinho, fui direto para Ciências Sociais da USP e da minha classe todo mundo já estava
engajado politicamente. Eu ingressei no Partido Comunista Brasileiro, já em 63, antes do
golpe. Então, o primeiro golpe, que temos 2 golpes, o golpe de 64 e 68. O primeiro golpe, ele
teve um impacto direto na minha vida, porque ele começou exatamente no... Chegamos a
assistir reuniões, Fernando Henrique Cardoso foi meu professor, o Leandro César Rodrigues,
o Florestan Fernandes, então eu me lembro da reunião, que a gente achava ainda que havia
discussão, alguns achavam ainda que era golpe, desespero da direita. Eu me lembro nós fomos
eu e o Quartim e dissemos: “Olha eu acho que isso aí é, os dois (inaudível) E de fato, alguns
professores, a gente seguia mais a linha. E você sabe, eles instalavam Inquérito Policial Militar
dentro da universidade, então dificilmente algum estudante, qualquer estudante da USP não
sentiria muito atingido por aquela presença. A USP também foi invadida, até então a USP
ficava na R. Maria Antônia, toda a nossa atividade política se desenvolveu, é importante dizer
isso porque a R. Maria Antônio é em frente à Universidade Mackenzie, que era nosso grupo de
direita. E permitia uma rápida mobilização, a gente ia pras ruas, havia uma ligação entre
estudantes e o povo, a tal ponto chegava nosso... Bom, em um primeiro momento, foi em 64.
Eu por conta de divergências, eu fiquei muito desgostosa, eu sai do PC, um partido que eu
achava muito tímido, mas não meu marido, ele continua. E ele é professor de Economia. Ele
então fez parte de uma dissidência junto com Carlos Marighela, o grupo que originou a ALN.
Eu participava ativamente então da política a partir então dessa ligação com a ALN, mas

124
exatamente nessa medida da ALN tinha que ter quadros que foram clandestinos. A minha
atividade na universidade continua, estudante destacada, participava nas manifestações, mas
tinha de ser mais discreta, para não haver risco de ser presa assim ou qualquer tipo de
empreendimento. Bom, o meu marido estava mais engajado, a ligação dele era muito mais
profunda que a minha, na medida em que ele estava ligado também àquilo que se chamava de
Setor de Estratégia. Era o setor das armas. E nessa medida, como a nossa casa, que era uma
casa de burguesia, freqüentada por pessoas da USP, que oferecia toda uma condição de
segurança, e a nossa casa era escolhida para muitos encontros e cada vez mais, quanto mais a
minha casa se transformava nisso, mais também eu tinha que tomar cuidado para não ser presa
por uma bobagem menor. Em 68 tem segundo golpe, o engajamento já tinha aumentado, meu
marido tinha participado em algumas ações, já era uma espécie de beco sem saída. Sobre esse
fato, o meu irmão era comandante de uma outra organização, da VPR. Em janeiro de 1969,
por conta de infiltrados meu marido foi preso, e logo em seguida estourou a história da VPR,
que também souberam do meu irmão, que era professor de Filosofia da USP, João Quartim,
passou a ser perseguido. Você pode imaginar que eu vivia no DOPS, mas meu marido fugiu,
foi para Cuba, eu fiquei um tempo no Brasil, quando minha situação ficou insustentável. Eu
sai do Brasil em Julho de 69.

C: Além da escolha pela militância em 63, houve outros motivos que levaram a senhora a se
engajar na ALN?
ML: Olha, eu acho que a generosidade, a generosidade, o desejo de mudança faz parte daquilo
que as pessoas têm de melhor. Eu vejo os meus alunos, eu fico muito contente porque eu gosto
de dar aula. Agora, por que ALN? Porque a ALN era a seqüência da primeira opção, que foi o
comunismo. Meu irmão que nunca foi do Partido Comunista, mas estava a fim de resistência
fez parte da luta armada, mas porque resistência armada naquele momento parecia a única
saída. Um pouco o exemplo de Cuba. E foi uma escalada, não havia nenhuma definição, você
vai sendo levado, tem uma lógica e você não tem retorno. O retorno é o exílio, a
clandestinidade e morte, porque clandestino, o tempo de duração chegou a ser 6 meses. Eu
tenho uma filha que nasceu no ano do golpe, quer dizer, tinha 5 anos de idade quando eu sai
do Brasil e ai a continuidade da minha militância se fez de outra maneira, porque primeiro ser
militante no exterior já muda tudo, segundo porque eu vivi em Cuba 1 ano. Aprendi uma lição

125
muito importante, porque na realidade os problemas que você enfrenta no cotidiano: O que é
revolução? Como ganhar a guerra? Às vezes ganhar a guerra não é o mais complicado. O mais
complicado é você realmente conseguir uma nova sociedade. Fiquei muito atenta, sempre tive
muita atenção à questão da mulher, mesmo porque acho que sempre fui uma feminista, eu
cheguei ao socialismo através da Simone de Bouvoir. Já o socialismo parecia a única saída, o
socialismo se consolidou, isso eu acho cada vez mais isso mesmo. Depois mais 5 anos que eu
morei no exílio, total foram 6 anos, eu também morei, conheci a experiência chilena 2 anos,
morei na França 3 anos e ai todos esses países havia brasileiros. A experiência chilena foi mais
dolorosa porque quando eu fui pro Chile já tínhamos feito uma autocrítica da luta armada. Da
luta armada principalmente, não tanto do impulso inicial. E o Chile correspondia àquilo que
era, era a grande situação, você conquistar, chegar ao poder com um programa, com apoio de
amplos setores da sociedade e através do voto. A derrubada, da forma brutal que foi, eu acho
que foi uma das piores situações históricas que eu vivi na minha vida, foi pior que o Brasil,
acho que muito pior que o Brasil. No Brasil ainda não tinham chegado nunca a conquistar
democraticamente o poder do Estado e aquilo tinha uma esperança, eu acho um acontecimento
traumático para minha geração. Para toda a América Latina, mas o Brasil foi pior porque nós
chegamos, nós fizemos esse ciclo. O que eu falei hoje pro Prof. Héctor, quando ele chegou no
Brasil em 82, que a coisa foi na Argentina, nós já tínhamos passado por tudo isso. E o Brasil
foi o primeiro em tudo, foi inclusive o primeiro seqüestro político, a Argentina teve o primeiro
seqüestro, que eu achei que foi pisada na bola, aqui no Brasil nunca se seqüestrou por
dinheiro, era sempre seqüestro político de uma figura que representava seu país, diplomática.
Na Argentina eles começaram essa história de dinheiro, daí para você cair como está agora no
Chile, alguns grupos viraram, nem falo de esquerda, são marginais. Dá para entender que a
democracia foi se abrindo e depois fechando, o recurso à luta armada virou uma coisa fácil,
por isso para tudo tem que ter um contexto.

C: E o dia a dia dentro da organização, como era?


ML: A organização por definição não tem a questão do dia a dia, a não ser que seja
clandestino, que você mora com nome falso, está certo, há situações, se não, ao contrário, a
organização é fluida, você encontra na rua por definição. Então eu acho que a gente
reproduziu, chamou questão de gênero. Eu acho que menos importante foi aqui no Brasil. A

126
questão de diferenciação não aparecia tanto aqui no Brasil, acho que ela foi muito mais clara
para quem foi morar na Europa. Eu acho que o exemplo europeu porque o relacionamento do
homem/mulher era muito mais avançado, o nível de consciência financeira muito mais
avançada, então isso criou um impacto muito grande. Esse dia a dia foi muito importante,
questão de gênero é normal, isso é, entre os exilados, muitos dos quais mulheres e homens que
pegaram em armas, na hora de reconstituir o cotidiano, se introduzia uma questão de diferença
entre homens e mulheres. Por isso que dos grupos mais fortes que os exilados criaram no
exterior, que foi o que deu mais frutos, foi o movimento feminista, entendeu? O grupo de
mulheres, toda a vanguarda feminista que atuou nos anos 70, a partir de 74, 75, está muito
ligada à experiência do feminismo europeu.

C: E no Brasil, já havia uma discussão das questões de gênero dentro das organizações?
ML: Não, a esquerda em geral sempre considerou isso uma questão secundária, dizendo que o
socialismo igualaria todos, homens e mulheres, não era contestado. Eu acho que a contestação
se deu muito mais em... Se bem, 2 coisas por exemplo: Eu acho muito interessante, em Cuba
não havia treinamento das mulheres, só treinavam homens, mas quando as brasileiras
chegaram em blocos, as brasileiras exigiram treinamento militar. Então romperam. E também
tinha essa questão, no momento em que as mulheres não queriam ficar só na retaguarda,
queriam pegar em armas, várias mulheres brasileiras foram as primeiras a ter treinamento
militar em Cuba. Isso é uma dimensão da coisa. A outra dimensão que eu acho mais
importante que viver numa sociedade militar, foi a experiência realmente de você viver numa
sociedade em que o nível de relações era muito mais desenvolvido que o Brasil, o nível de
cidadania era maior e com uma visão feminista que era próxima da gente. Por quê? Porquê o
feminismo brasileiro sempre foi um feminismo político. Por isso você tinha essa dimensão
muito grande, dada à própria importância do PC, do Partido Comunista francês. Esses paises
tiveram grupos que foram fundamentais para as mulheres com a luta do aborto, que na França
não tinha, não tinha. E na Itália a mesma coisa, o aborto e o divórcio. Então foram lutas que
dizem respeito às mulheres e que dividiram o país entre esquerda e direita, que foram vencidas
pela esquerda com as mulheres. Então esse era o quadro que a gente viveu. Eu acho isso
extraordinário com respeito às mulheres.

127
C: Dentro da organização havia divisão entre tarefas femininas e masculinas?
ML: Não.

C: A senhora desempenhava que papel na organização?


ML: Tinha mais a ver com a sua decisão de participação do que propriamente com o sexo. Se
quisesse pegar em arma, você pegava em arma, várias mulheres pegaram em arma, se você
não era o caso pegar em arma e quisesse fazer outra... Então é menos rígido do que você está
imaginando. E é menos hierárquico do que você está imaginando também, mesmo porque o
espírito das organizações era a ação faz a organização. Se amanhã um grupo quisesse crescer e
fazer uma ação revolucionária, fazia porque era muito... Até suas questões, estou achando
engraçadas, porque elas dizem respeito não sei que tipo de experiência, mas com certeza na
experiência do... No exílio se você quiser, por conta que a gente ai tinha uma legalidade, a
gente tinha casa, nós éramos mais de mil. Porque na França, no momento em que todo mundo
decidiu ir para a França depois do golpe do Chile. A esquerda se reunia. A esquerda brasileira
sempre teve um fórum de encontro tanto no Chile como na França. A gente fazia reuniões de
várias pessoas. Esse cotidiano na Europa até era mais enfrentamento da questão homem e
mulher. Você pode imaginar que no Brasil você vivia com medo, completamente tensa.

C: O que eu quero identificar é se havia discriminação dentro da organização, partindo do


ponto de que na sociedade como um todo havia esse tipo de tratamento.
ML: Uma organização revolucionária por definição ela é de sociedade num certo sentido,
entende? Na ALN de novo, ela tem um outro jeito de ser, tem outro tipo de hierarquia,
especialmente porque a gente estava fazendo crítica ao que? À burocracia do PC, às
hierarquias, inclusive eu acho que o meio que mais medrou o feminismo foi esse meio, porque
mais homens de converteram. Digamos nesse embate no exterior, você pode pegar a
reorganização no exterior, você pode pegar as diversas linhas, trotskistas, comunistas, etc,
todos têm a questão da mulher, que ai a mulher fica mais visível, mas muito mais motivado
pelo fato de que ai a gente começou a ter a vida normal: dona de casa, mãe, ai as questões de
divisão de trabalho. É assim, todo mundo que passa por uma experiência, que sua vida está...
vivendo a intensidade, não sabe se vai estar viva hoje, amanhã. Isso muda todas as categorias
morais. Eu acho assim, que houve uma revolução nas relações pessoais, na idéias de

128
fidelidade, na idéia de casar e descasar, porque é muito intenso, é tudo muito urgente, você
não sabe se vai ter um amanhã. Então aí você fica meio moralista, ninguém tinha lá família
para ficar regulando, morreram todos muito jovens. Pega a maioria, eu era uma das pessoas
mais velhas, tinha vinte e poucos anos e tinha filho, a maior parte das pessoas foi ter filho
depois. O que tinha de criança brasileira, chilena, mexicana, o diabo a quatro.

C: A senhora ia até o DOPS para verificar a situação do seu marido, mas e, algum momento a
senhora chegou a ser detida?
ML: Não, eu não ia lá verificar a situação, eu era intimada a depor, mas não cheguei a fiar
detida, porque quando eu achei que ia ser detida e presa eu fui embora, com certeza eu ia ser.

C: Como foi esse período de decisão entre ficar no Brasil e sair?


ML: Foi assim, eu fui chamada praticamente todo dia para ir ao DOPS, tinha uma viatura de
polícia na porta da minha casa, eles invadiram minha casa duas vezes para levar... Isso ainda
antes de começar a OBAN, isso ainda era quando os delegados chegavam na sua casa, e como
era casa de burguesia, com carros, os caras ainda mostravam... “Qual o seu nome?” Eu sei o
nome das pessoas que foram na minha casa, eu sei o nome do delegado que interrogava o
Norberto. A gente começou a perceber, porque eles também não tinham idéia exata da
proporção dos envolvidos. Estavam muito acostumados a lidar com os comunistas de costume.
As pessoas de alta burguesia, para eles era um absurdo a idéia de que as pessoas com a vida
que a gente tinha pudessem ter algum... Eles ficavam pasmos.

C: E sobre prisão, tortura, morte?


ML: O que aconteceu. Eu na prática, quando eu saí do Brasil, no nordeste, não chegou gente a
morrer, mas teve muito espancamento. O DOPS sempre foi o que é, sempre teve tortura, meu
marido ficou preso no DOPS, então ele especialmente era assim, naquele momento não
chegou a receber nenhuma violência física, era só ameaça, deixar pelado, coisa assim. Mas
muita gente acaba sendo torturada. Especialmente não tinham...
Ele era professor da USP, economista, ele estava maneirando por assim dizer, e não tinham
ainda provas concludentes. Com o tempo, depois da... Eu acho que onde mexeu mais foi com
a coisa do Exército, quando o Capitão Lamarca saiu... Tudo isso, ai mudou a configuração e aí

129
começou a história da criação, houve assim um agenciamento rápido da direita extrema, que
financiava esses caras, tipo o Maluf, outros milionários ai, o pessoal da Ustra, o Gastone
Vidigal, foram vários que financiavam. Aí que se criou esta estrutura que era clandestina, da
OBan. Antes disso tudo eu já fui embora, eu não tinha condições de ficar no Brasil, com meu
irmão, meu marido, tinha a coisa do DOPS. Depois porque também, no momento em que eu
estava na faculdade, na USP, o meu orientador era o Fernando Henrique Cardoso, que foi
cassado, todos os meus amigos, companheiros, que nem tinham sido torturados, que eram
pessoas de esquerda, estavam indo embora. Então não tinha como, ainda bem que eu sai e
mais, eu tinha que sair porque meu marido saiu, ele ia para Cuba, e iria voltar. Eu ficaria
sempre um risco para ele, então, quer dizer, que da hora em que ele voltou eu não podia mais
entrar no Brasil. Eu só pude entrar no Brasil porque ele foi morto rápido, porque a minha
presença era um risco à segurança dele.

C: Ele é desaparecido?
ML: Não, ficou desaparecido um tempo, o corpo. Depois o corpo foi entregue, tinha sido
enterrado com um outro nome, não pudemos fazer nenhuma autópsia, nada disso, foi
enterrado, mas com o nome dele. Então ele não é desaparecido, mas ele entrou naquela lista
dos mortos e desaparecidos, e lá fala que ele ficou desaparecido um tempo.

C: E durante esse tempo com a sua família, qual foi a posição que eles adotaram?
ML: O meu pai tinha dois filhos, meu irmão mais velho e eu. Primeiro ele sempre ficou do
nosso lado. Minha mãe especialmente era uma pessoa de uma coragem extraordinária. Por
exemplo, ajudou meu irmão a desfazer aparelho.minha mãe se dedicou muito. E depois nós
fomos viver no exterior, eles iam sempre encontrar com a gente. O exílio para mim foi sempre
muito bom, que eu aprendi muito. A grande tristeza segundo a situação do Brasil, mas fora
isso tinha um exílio que deu para estudar, fazer coisas.

C: A sensação do exílio é que é uma experiência enriquecedora.


ML: Olha, eu acho que 99% das pessoas foi. O Gabeira era um quando foi pro exílio, saiu
outro da Suécia. Ainda bem, não é? Abertura para absorver coisas novas.

130
C: Havia o interesse de sua parte em voltar?
ML: Eu acho que é um delírio do exilado, nós todos. Eu nunca estudei tanto, li tanto sobre o
Brasil como na época do exílio. E só pensava, que com certeza tem gente que não faria não.
Nunca imaginei, eu nunca imaginei morar fora do Brasil. Quando eu estava no Chile eu fiquei
muito confortável, era superior, mas de resto, na França e depois, com tudo que a França é
legal, e tal, sempre quis voltar. A minha filha, minha única filha ia, eu ficava com dor no
coração, mas ela ia uma vez por ano pro Brasil, eu achava que ela não podia perder. Foram 6
anos, ela saiu com 5, voltou com 11, se ela não voltasse todo ano ia perder o contato. Então
não. Isso eu acho, continuo assim, gosto do Brasil, quero viver aqui.

C: Na época de Cuba havia essa idéia de voltar, de lutar?


ML: Cada vez se voltava por uma coisa, mas sim, acho que nós todos que voltamos, voltamos
para militar. Eu imediatamente montei grupo feminista, fui perseguida pela polícia, fui
ameaçada de morte.

C: Eu acho essa experiência da volta e do feminismo muito interessante. Dá uma idéia de


processo mesmo, a situação da mulher na luta armada, a transição...
ML: Se você pegar o número de mulheres que passaram por isso, foi muito importante
mesmo. Agora, evidentemente que se refaz, mas pro primeiro feminismo, esse dos anos 70,
com certeza foi decisivo.

C: Uma última pergunta para fechar. Das pessoas que a senhora conhecia, quando vivia no
exílio, havia relatos sobre uma carga excedente de...
ML: Tortura? Eu fiz até um seminário discutindo isso. Havia sim! Posso até te passar
depoimentos de quem era mulher, experiências assim dolorosíssimas. Muitas estavam
grávidas, outras estavam amamentando, até uma jornalista... Eles davam choques e ficavam se
divertindo com o leite jorrando. Eu acho que tem uma questão, que a dor do corpo é terrível,
mas aquele tipo de humilhação, o tipo de sevícia sexual que era pras mulheres...

C: Os homens também sofreram violência sexual.


ML: Também, mas as mulheres... Tem criança que foi torturada para fazer a mãe falar.

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C: Professora, muito obrigada.

Final da gravação.

Entrevista com Áurea Moretti


04/07/2002

Cecília: Áurea, conte-nos um pouco sobre sua militância política.


Áurea: A gente começou no Golpe de 64, tinha algumas leis erradas, porque todo o aparato
democrático foi arrebentado, o congresso, cassação de deputado. A gente ia entendendo, por
exemplo, contra a reforma agrária, contra reforma de base, contra os direitos da colocação do
Brasil e assim entregando o Brasil nas mãos dos EUA que eram quem estava dominando toda
essa parte. Em 65 teve duas coisas paralelas que eu entrei na faculdade de Ribeirão Preto, lá a
gente foi tomando uma consciência de esquerda e também eu vi que o socialismo era a saída,
eu tinha perdido antes de 64 uma parenta que trabalhava na reforma agrária junto com
trabalhadores rurais, e eu que fui criada na fazenda sempre achei estranho porque o povo
trabalhava tanto e não tinha o que comer, e o fazendeiro tinha tudo sem fazer nada. O meu pai
era dono do armazém, então a gente era médio. Então porque os meus amiguinhos na época da
colheita não podiam ir à escola? O contato com a gente pobre me abriu o mundo, mais
abertura, a atividade dentro da universidade, em 65 eu também fui recrutada no Partido
Comunista, que já estava ilegal, então a gente falava publicamente chamando as mulheres,
subindo no caixotinho e do outro lado naquela ilegalidade, mas já organizando a luta contra a
ditadura, cada dia com uma consciência melhor.

C: E que motivos a levaram a se engajar nessa organização?


Á: Olha, primeiro a questão das mulheres, que eram objeto de uso. Uma sociedade forte, que
exigia tanto das pessoas e muitas leis, ajustes e julgando todos os benefícios em detrimento de
milhares de pessoas, trabalhadores que eram quem realmente produziam no campo; uma

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injustiça, uma sociedade hipócrita e ao mesmo tempo repulsiva que era o que a gente sentia
todo o dia dentro da faculdade e também essa visão que a gente conhecia de tudo, do social,
então foi o que ligou para eu entrar no Partido Comunista e em alguns anos o movimento foi
às ruas enfrentar polícia, chegava a tirar 5 mil estudantes, enfrentar cavalo, tiro, cachorro. As
nossas armas eram a bandeira do Brasil, um cartaz escrito “Viva a UNE, abaixo a ditadura”, e
a gente tinha bolinha de vidro, de rolha de garrafa que a gente jogava no pé do cavalo no meio
da confusão e já derrubava o cavalo de cima e o cavalo de baixo. Os comerciantes abriam as
portas, puxavam a gente para dentro, as igrejas também, apanhava deputado e todo mundo no
meio da confusão e cada dia a gente surgia em um lugar como eu já te falei, em dois grupos,
um grupo e o outro já clandestino dentro do Partido Comunista, já visando derrubar a ditadura.

C: Como era o dia a dia dentro da organização?


Á: Era um tempo muito agitado, muita confusão: de repente eles baixavam lá e era aquela
correia. Tempo de fogueira para queimar material, muitas vezes até no local. Era uma
insegurança muito grande e ao mesmo tempo aquela força, aquela energia, uma bandeira que
era nossa. Eu acho que a gente só não tinha condição de calar a boca, de aceitar um estado de
coisas e uma situação como era e se calar. Então para gente era nosso arroz com feijão. Tinha
que dormir na casa de um, na casa de outro, tudo era organizado no diretório acadêmico
enquanto tinha uma turma preocupada com encontros, a gente estava no porão imprimindo
folhetos escondido, nas salas estavam organizando manifestações, pichações de ruas ou
reuniões. Nós disfarçávamos as notícias porque tudo era censurado. Então dia e noite a gente
vivia para isso, tinha muita solidariedade porque a luta era de todo mundo.

C: E como eram as reuniões?


Á: A reunião tinha um objetivo. Por exemplo, vinha um palestrante, o Partido estava
preocupado com a formação de quadros. O Lepera fez uma reunião onde a gente fez uma
comissão feminina dentro do Partido. Os homens não sei de gostaram disso, mas a gente fez e
foi a primeira palestra. O Lepera falando da mulher na família, não a mulher objeto para o
sistema capitalista. Em Cuba aconteceu uma coisa tão linda, as prostitutas de lá trabalhavam à
noite, com a revolução, a prostituição foi eliminada e como elas tinham aquele tipo de vida,
elas passaram a fazer a guarda, a ronda, e elas se engajaram na sociedade justa, na luta, na

133
política. São o homem e a mulher juntos, lutando por uma sociedade justa, pela família, pelo
trabalhador, pelo operário. Então ele explicou como era, que a mulher não tinha prostituição,
mas ela trabalhava para a sociedade, ganhar o salário dela. E ele contou que os professores e
os médicos iam para o campo cortar cana, o trabalho era o mesmo, pegar o facão. Fazia isso
também, pegar o pessoal, os universitários e levando para ser um companheiro do trabalhador,
aprender como o trabalhador muito mais do que ensinar. E eu lembro uma coisa bonita, que
um camponês tinha um crucifixo no peito e a gente perguntou que igreja era a dele. Ele disse
que era Cubano Católica Comunista de Fidel Castro. Então a religião dele era o comunismo,
porque era o governo que pagava os impostos dele, que era o governo de assistência imediata,
de saúde e até hoje tem sido, a mortalidade infantil lá é zero e continua. Não sei onde vai
parar.

C: E dentro da organização, que papel você desempenhava?


Á: Eu comecei como militante, na base que era Medicina e Odontologia. E os meus
companheiros que eram da turma, reuniam em cada época na casa de alguém, sempre com
cuidados, e de repente caia um companheiro, mas aí tinha uma coisa, na casa em que a gente
ia discutir como fazer o folheto. Dentro da saúde quem vigorava era o Sérgio Haroldo, hoje é
deputado federal, ele que puxava a estudantada para cima e militavam juntos mulher e homem,
na voz, no voto, a gente sempre, se bem que de algum modo, parece que na hora do vamos ver
tinha mais homem do que mulher, tinha uma diferença, por mais que fosse... Porque na
verdade a mulher estava começando a ocupar o espaço, na posição, no mercado de trabalho, a
se levanta. Eu estava vendo que até 1972 para a mulher trabalhar fora o marido tinha que
autorizar antes, e de repente a gente estava libertando a mulher, veio a mini-saia, chegou a
pílula anticoncepcional, porque a mulher tinha que se casar virgem, se ela não fosse virgem
não casava mais, “jogava no vento”, era considerada uma prostituta. Ainda na época na
faculdade de enfermagem, falaram que uma menina que estava grávida, não ia se casar, nós
fizemos a maior gritaria, não adiantou. Foi expulsa. A mulher era submissa, era criada para
bordar, para cozinhar, cuidar do marido e dos filhos e obedecer ao marido e depender, porque
o domínio era econômico, porque só o homem ganhava e sustentava, e mesmo que o homem
tivesse outra mulher ou qualquer coisa, ela tinha que calar a boca porque ele tinha um meio de

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ganhar e ela não tinha, sabendo disso tinha até um despeito pela gente, mas eu ainda sinto que
tinha alguma coisa. Os machões, coitados deles...

C: E as outras mulheres? Qual era o papel que elas exerciam?


Á: Nós formamos na comissão feminina, ganhamos uma certidão que fazíamos trabalho
social. Quando foi em 1967 nós rompemos com o Partido, porque o Partido tinha uma linha
radical de trabalho com a burguesia nacional para derrubar a ditadura por eleições, e nós não
tínhamos paciência, a gente queria era partir para a briga e derrubar a ditadura, tinha o
Guevara com a guerrilha, o foco como eles fizeram em Cuba, que foi a grande mentora nossa
de ir para a montanha, sair na guerrilha e até começarmos. Rompemos com o Partido,
montamos o jornal “O Berro”, era um outro grupo que nós fomos formando, ligando contatos
com a região toda, formando uma base de apoio e ao mesmo tempo iniciando alguma ação,
colocando bomba no cinema, estouramos a vigia do quartel, já pregando a luta armada.
Conseguimos um grupo de camponeses, fizemos um acampamento de guerrilha. Aí já mudou,
era uma linha direta de atuação. Eu era o apoio logístico, eu fazia os contatos, pessoas que
esconder ou dormir uma noite, outros que davam dinheiro, outros que davam consulta médica,
remédio, alimento e aqueles que iam se destacando. A gente ia trazendo mais para o grupo.
Fizemos o assalto à mineradora, roubamos dinamite e assim estava crescendo o grupo já com
acampamento, trabalhando muito com camponeses, cortador de cana e estudante, eu dava toda
essa parte de abrir contato, de dar apoio, no que precisar, um apoio logístico.

C: As outras mulheres te apoiavam nessa tarefa?


Á: Tinha a Lúcia, a Lázara e outras mulheres, agora, engajada, na enfermagem, na nossa
organização mesmo tinha eu e outras que davam apoio e ao mesmo tempo a gente estava
dentro dessa universidade, subindo nos banquinhos, dentro das assembléias, chamando as
mulheres para participar da luta e assim foi até 1969, que nós programamos seqüestrar um
usineiro da região, que era o João Marcelo. Nesse caso eu tinha uma tarefa, que era costurar o
hábito da freira. Porque para parar o usineiro na estrada “se tiver uma freira pedindo socorro
na beira da estrada, todo mundo para”. Seria este o esquema, eu cuidava muito da saúde, fiz
até uns manuaizinhos de coisas no campo, também se baseava nos escoteiros, então nessa hora
sobrava para mim. Eu tinha que fazer o hábito da freira e eu nem sabia costurar e eu falei para

135
minha irmã umas coisas, mas ninguém podia ver e ela me ensinou mais ou menos e eu
costurei. Elas usavam uma coisa branca na testa, eu colei um pedaço de cartolina, aí peguei o
César, que era um dos meninos, que já estava na guerrilha, no acampamento e experimentei
nele. Depois nós fomos levar em Sertãozinho, e eles já estavam fardados, sempre roubavam
uma arma, já preparados para seqüestrar o usineiro, eu peguei a minha ligação na imprensa,
que era uma das coisas que eu deveria fazer... E a gente exigia os direitos do cortador de cana.
Coisa louca! (risos) claro que também o dinheiro que a gente precisava mas, a coisa maior era
divulgar os princípios da nossa luta, principalmente os direitos do bóia-fria. Foi aí que eles
foram presos. Foram levados até o acampamento, tinha o buraco, o local onde ficavam os
(inaudível) fechados, interrogavam eles, era mesmo para fazer ação política. Mas aí tinha o
diário do Djalma, que tinha nome de guerra misturado com nome verdadeiro. E aí foi todo
mundo para a tortura até o ponto onde um fala uma coisa, outro fala outra. Eu e o Wanderley
na mesma hora, ele vivia sendo preso e um policial teve a idéia, deve ser o Wanderley e
pegaram. Ao mesmo tempo eles invadiram minha casa, pegaram e foi a tortura. De dia, de
noite. Fomos levados a São Paulo, no DOPS, no quartel de Ribeirão Preto, foram dias e noites.
A gente desaparecido, a família não sabia de nada, iam atrás e ninguém dava resposta. E ali na
tortura a gente também sentiu a diferença da gente ser mulher. O ódio que tinham de nós, não
só em Ribeirão Preto, mas em todos os lugares. Eles falavam que guerrilheiras eram mais
perigosas nas ruas e mais resistentes na tortura, mais resistente que os homens e eu atesto que
tinha, porque existe uma linha de dor da mulher, eu ela é bem, mas alta, tem que sentir muito
mais dor para chegar no seu limite, já o homem com pouca coisa ele pode chegar no limite,
mas o ódio deles era e eles falavam que tinha e que estar lavando roupa no tanque, que tinha
que ter casado e ter filho, que mulher nasceu para isso, “vai para a cozinha cozinhar”, não
tinha que se meter em política, principalmente na guerrilha. Eles queriam quebrar a gente, o
espancamento era violento, o choque elétrico sempre nas partes sexuais, no seio, na vagina,
dentro da gente. Em São Paulo e no Rio chegaram a estuprar companheiras com cabo de
vassoura, com cassetete, para destruir mesmo. E a hora que eu fui presa, eu lembro direitinho
do Lamano falando, que tinha uma Maria lá no meio, que era o meu nome de guerra e ele
falou que só podia ser cozinheira do acampamento, ele falou “para que pode servir uma
mulher numa guerrilha?” Era muito violento o assédio sexual, tem o caso da Irmã Maurina,
não esclarecido, de que ela teria sido estuprada no quartel e o cúmulo é que quem falava isso

136
era a polícia, e muitas vezes eles nos torturavam para dizermos que a gente era amante de
alguém. Por exemplo, em Ribeirão Preto eles falaram que eu era amante do Guilherme Simões
e a Irmã Maurina, eles queriam por todos os modos que ela e o Mário Bugliani, que
participava lá no colégio, mil vezes eles foram interrogados e torturados para dizer que eles
eram amantes, eles diziam que eu era amante de todo mundo. Eles diziam “que os meninos
disseram que estavam nisso aí porque gostavam de você”. O ódio, a coisa de dominar a
mulher, de destruir. Todos nós passamos pela tortura em todos os lugares que nós passamos. O
assédio era assim: era ir no banheiro e eles não deixavam a gente ir, ou então ia com um
soldado armado e o soldado queria entrar no banheiro com a gente. Teve um dia que eu
comecei a grita e o cara veio ver o que era. Na hora do DOPS, cara me abraçando, dizendo que
era o meu noivo, passando naquele corredor e os soldados cantando a marcha nupcial para
mim e todo o terror que eles tinham e o pior era o que estava dentro da sala, que era o pau-de-
arara, a máquina de choque, o holofote. Me arrancaram a roupa, então é outro modo de olhar a
mulher, ainda mais naquela época, então rasgavam a roupa da gente, amarravam as cordas,
aquela corda que quanto mais você puxa, mais ela te prende, joga água no corpo e dá choque
nas partes sexuais, ou apalpando, jogar dado para ver quem ia ser o primeiro da fila, ao ponto
do coronel ter que tirar nós do quartel, ele falou que nenhuma noite mulher ia dormir mais no
quartel. Só no Cadeião estive livre, e aí lá a gente tinha paz, que eram soldados, mas eles iam
buscar nós para torturar lá em cima, tiveram que tirar nós do quartel por isso, porque qualquer
soldado se dava o direito de atacar a gente. Imagina isso na Operação Bandeirantes, aqui era
uma cidade do interior, agora imagina em São Paulo e no Rio como se deu. Tinha coisas que
eu nunca vou esquecer. Tinha uns 3 metros o quarto, nem dava para todo mundo dormir, então
umas ficavam deitadas, umas sentadas e outras em pé na janelinha para ver quem que chegava
da viagem, quem tinha sido preso, a gente ia revesando sem dormir, sem comer, sem ir ao
banheiro, indo ao banheiro com 4 homens armados de metralhadora, um coitado lá de um
soldadinho que trouxe um cigarro para nós e ascendeu, deve ter sido espancado, que falaram
que estava colaborando com os terroristas. Então era assim, dia e noite, trancados e a hora que
saia uma, saia para a tortura e a gente com o coração na mão, já voltava toda arrebentada e
passamos os dias. Eu não tinha noção de quanto tempo fiquei lá, é o único lugar, eu perdi
totalmente a noção. Era um sistema ilegal dentro da ilegalidade, a Operação Bandeirantes era
clandestina dentro da ditadura, lá eles diziam que se o presidente da república e ele quisesse

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dar palpite ele ia para o pau-de-arara. Na Operação Bandeirantes nós ficamos em uma cela
pequena, não dava para ficar todo mundo, algumas ficavam deitadas, outras ficavam em pé,
nós ficamos em 8 mulheres, não podia ir ao banheiro. Tinha uma professora lá que eu nunca
esqueci na minha vida. Ela era democrata, deve ter falado na classe da ditadura, mas ela tinha
um aluno que era sargento, aliás, todas as faculdades tinham militares, que prestavam
vestibular e entravam, até menina ligada à polícia. E ele queria ter relação com ela e ela nunca
aceitou, então “O que então ela pensava? Que além de ser mulher, ela era uma negra, quem era
ela para se recusar a transar com ele?” Então foi e denunciou ela como terrorista, essa criatura
foi presa, passou por um quartel onde nenhum comandante sabia o que ela estava fazendo lá.
Todos nós estávamos na Operação Bandeirantes sendo torturadas, e o que nós sentimos, nunca
mais tivemos notícias dessa pessoa, não sabemos o que aconteceu com ela, pode ser uma das
que foram mortas, desaparecida. Que quando foi assim, eles falavam que a pessoa fugiu, foi
atropelada e entregavam o corpo todo estragado, agora tem dó.
A mulher que tinha filho, então era presa a família inteira, sumiam com os filhos ou
torturavam a criança na frente da mãe, do pai, da tia, para eles confessarem o que a repressão
queria. Até no caso da Hilda, que era mulher do Jonas, que ela recebeu choque elétrico com o
menino dela no colo, tomaram choque juntos e eles sumiram com as crianças e colocaram na
FEBEM, você imagina o que era a FEBEM naquele tempo. Sumido, desaparecido, isso era o
maior sofrimento para quem tinha filho, porque aquelas que foram presas grávidas eles
provocaram o aborto com cacetete, com cabo de vassoura ou com a própria tortura, por
espancamento, até que abortasse, era para destruir. E a Damaris, eu a encontrei agora em um
jantar, ela me contou que na operação Bandeirantes, ela era ligada com a VPR, ela teve a
vagina, o anus rasgado com pau e prenderam cinco netos delas. Esses netos também foram
torturados. Aí ela foi para o México, a netinha foi no colo da Irmã Maurina e no México foi
quem deu apoio para ela, mais tarde ela foi para Cuba, mas ali foi a Irmã Maurina. Então é
uma coisa que eu não tive problema por ser solteira, mas que tocava muito em nós, quando
acabava a tortura e começavam com o processo na Auditoria, liberava os filhos, achavam as
crianças, essas crianças visitavam os pais, e o dia de visita de criança era muito especial para
nós, porque a gente... (choro) Então a gente fazia uma cadeia diferente, com uma cela
diferente, uma comida gostosa, brincava, desenhava e cantava e para nós também era um dia

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diferente. E tinha o pai de um lado e a mãe de outro, então ficava uma vez com o pai e uma
vez com a mãe.
Eu não sei se a gente gravou, eu vou falar então da relação entre os companheiros dentro, tudo
era complicado, então quem era namorado tinha direito a visita, no pátio da prisão. E a relação
era muito bonita, quando o companheiro saia da prisão, a primeira música era a Internacional,
então começava a cantar de lado e o outro lado cantava junto, despedindo daquele
companheiro, encontrava na Auditoria se desse certo. Então tinha uma pastilha com papel de
seda, bem pequenininho, você podia fazer um documento em 5 cm de papel de seda, dava para
você fazer o dobro. Esse papel era enrolado em um plástico com bastante durex e no fim fazia
uma bolinha, essa bolinha era colocada na boca. Tinha a dentista que era companheira nossa,
que dava assistência para todo mundo. Então ia para a dentista morrendo de dor de dente e a
dentista tirava e punha no bolso. Daqui a pouco chamava o marido ou a pessoa sem que a
carcereira visse e essa bolinha passava, e aí nas celas eles dividiam. Tinha um código secreto
de bater na parede, tinha uma célula que até as meninas conseguiram um (inaudível), o
conjunto na greve de fome que eles estavam querendo matar os cabeças, também saímos
juntos, homem e mulher, era uma coisa que unia muito. Mesmo dentro do presídio, quanto
maior a repercussão, um procurando cobrir o outro, nas auditorias, nos depoimentos, tinha
uma relação de muito companheirismo. Eu senti muito isso com a minha turma, durante a
prisão e depois, quando a Matilde foi solta, ela chegou em mim e falou: “Áurea (inaudível)” e
era um carinho mesmo. A gente escondido fazia material, à base manual mesmo e mandava
uma família levar para outra. E nós tivemos a nossa reunião aqui na Câmara, ele estava
falando para a mulher dele: “Olha a coisa mais bonita que eu ganhei foi uma boina que a
Áurea tricotou para mim”. Na Auditoria, tinham 15 no julgamento, cada um me dava uma
florzinha. O silva pegou o DROPS e tirou o R, ficou DOPS. Até hoje quando a gente se
encontra, quando eu voltei da prisão, a gente chora e se abraça. O Mário Bugliane, quando sai
da prisão, já bateu direto na minha casa e a gente saiu conversando e ao meu pai bravo: “vai
ser presa de novo”.

C: Qual era a relação que havia entre as presas políticas e os torturadores?


Á: Uma relação de ódio, que eles tinham por a gente mulher, por a gente ser estudante. Eles
diziam: “Você não é estudante nada”, e enchia a gente de porrada. Era um tipo de destruição.

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C: Você sentia que tinham mais ódio de vocês, por serem mulheres em relação aos meninos?
Á: Sim, em todo lugar, em todo presídio, até dentro da Auditoria Militar tinha uma diferença.
“Como pode uma mulher ser ativa na política?” Então tinha um ódio e no fundo a gente
também tinha muito ódio.

C: E dentro da organização? O fato de vocês serem mulheres influenciava na divisão das


tarefas ou no relacionamento entre os companheiros?
Á: Tinha coisa que realmente precisava. Geralmente não era tanto, muitas vezes até tinham um
cuidado maior com nós. Por exemplo: Pichar muro era bom que não fosse mulher, porque a
mulher não saia à noite, se saia era prostituta e muitas vezes teve companheira que teve que se
vestir de homem para fazer uma ação, até para não caracterizar que era uma mulher, mais fácil
para a polícia detectar, tinha essa divisão, ou na própria ação armada, querendo ou não.

C: Havia alguma discriminação de gênero entre os integrantes da organização? E mais ou


menos quando isso acontecia, se acontecia?
Á: Dentro do Partidão a gente conhecia as pessoas e era uma relação muito boa, na qual nunca
teve esse tipo de coisa. Só uma vez que eu acho que já te contei que nós fomos treinar tiro no
campo e eu peguei uma flor e peguei uma latinha e coloquei a florzinha na água e aí chegou o
Wanderley, que era o chefe e ficou muito bravo: “O que é isso? Aqui não tem nada de flor, é
um campo para treinar guerrilha”. Hoje ele dá risada disso, mas ele fez. (risos)

C: Vocês já discutiam questões feministas nesse período?


Á: Porque o feminismo estava brotando no mundo, então começa nos EUA, até expoente, com
a minissaia, a pílula anticoncepcional liberou a mulher, porque dentro da relação ela
engravidava, e grávida ou ela casava ou era rejeitada pela sociedade. E com a pílula ela podia
ter relação e não engravidar. E essa liberação da mulher entrando nas universidades, no campo
de trabalho, quebrando o domínio do homem, mas a gente tinha orientação dentro do
socialismo. Então eu estava assim, eu nunca queimei sutiã em praça pública porque eu nunca
usei sutiã, em protesto. (risos) Eu falava que era um arreio e eu não me submetia. Então

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queimava sutiã e contra os homens, contra o tempo de discriminação. Então era mais ou
menos neste sentido.

C: E como a organização via essa postura de vocês?


Á: Aceitava sem problemas.

C: E depois da sua libertação? Como foi esse período?


Á: Eu sai com a liberdade condicional, eu cumpri 3 anos, 3 meses e 2 dias, como diz a minha
irmã. Então eu mudei para Ribeirão, eu tinha um mês, ou voltava para a faculdade ou
arrumava um emprego. Eu não podia mudar de casa, eu não podia ir para outro estado, tinha
que avisar tudo. Na saída eles falaram que não era para ter contato com coisas que foram
subversivas, são subversivas ou poderão ser subversivas. E o Oficial de Justiça, na despedida
disse: “Olha gastamos muito papel com você, (e é verdade, 5 mil ou 4 mil folhas) gastamos
papel, demos de comer e ainda fizeram greve de fome, porque entra na cadeia para dar
trabalho. Está saindo. Olha é uma bala só, nunca mais você dá trabalho, estou avisando.”
Pegou na minha mão: “Olha, que você seja muito feliz.” Então eu voltei para a faculdade, o
Conselho de escola deixou eu voltar porque todo ano a diretora mandava o papel onde eu fazia
a minha matrícula e encerrava minha matrícula. Ela chamou a minha mãe, chorou com a
minha mãe. Falou da Lúcia, que fugiu estava na Itália, ela deu os documentos, mandou os
documentos todos e que enquanto ela estivesse na escola, o que eu precisasse ela mandava
para mim, livro de enfermagem, menina tanto o que eu estudei de enfermagem na cadeia. Mas,
aí eu tive o direito de voltar, quando eu voltei eu tive de levar o documento onde todo mês eu
ia assinar o livro com a minha freqüência e a minha nota, eles viravam e mexiam, eles estavam
dentro da faculdade, mexendo, interrogando, em todo lugar eu não tinha paz, eu tinha medo de
ter novos amigos porque eu não sabia quem eles eram, na própria faculdade eu falava para as
meninas não andarem comigo na rua. E tinha a (inaudível), ela está hoje na Universidade de
Araras, era teimosa que nem uma mula e quanto mais eu falava, mais ela saia comigo, ia ao
barzinho tomar café e fazia questão. Juntou um pessoal que me ajudou muito, as professoras,
as colegas de escola. Quando eu cheguei perguntaram de qual faculdade eu vim transferida, eu
cai no 2º ano de volta de enfermagem, e eu falei para elas que eu vim transferida da
Penitenciária Feminina de Taubaté. (risos) Mas o que me ajudaram, e muitas vezes, quando

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me perseguiam falavam: “Vamos lá no banheiro comigo” e falava: “Áurea, tem um cara aí na
faculdade”. Tinha que dizer para minha família ir para escola e muitas vezes tomavam o lugar
do motorista de um estágio, uma coisa louca.
Em 74 já começou a quebrar porque o MDB explodiu no Brasil, mas eu ainda estava dentro da
condicional. Mas eu tinha medo de namorar, de ter amigos, quando estourou a Guerrilha do
Araguaia cercavam a minha casa aqui na Av. Independência. Para me conferir, se eu estava
aqui ou na faculdade. Eu tinha que estar sempre à mostra de todo mundo, de pessoas que viam
com carinho, outras que faziam política em cima da gente. Para readaptar foi duro e eu tive
muito apoio da minha família e de um grupo espiritualista, que aí eu comecei a ler e ter o
plano maior. Dentro da prisão eu já tinha tido algum entendimento também, mas o que me
ajudou muito de verdade a me ajuntar, para dar apoio, dar força para a gente são os amigos
que até hoje me dão o de sempre, mas foi muito difícil.
Em 75 eu acabei a faculdade, aí eu não tinha emprego, onde eu apresentava, até meu pai foi na
prefeitura, na Comissão da Enfermeira de Alto Padrão, a hora que dizia o meu nome, falavam:
“De jeito nenhum, você está louco?” Aí na minha formatura um militar veio, disse que era
para dar os parabéns, queria dançar comigo e sentar na minha mesa. Eu disse que estava
lotada, “Quer dançar? Já tem uma fila enorme, meus primos, todo mundo.” Aí no fim ele abriu
o jogo, ele queria saber onde eu ia trabalhar. “Para onde você vai?” “Eu vou para casa
descansar.” “Não, mas emprego, para onde você vai?” “Eu disse não sei, deixa que o emprego
vem atrás de mim. Ninguém tinha coragem na USP, em São Carlos, onde estava o meu nome,
na Escola de Enfermagem. Aí veio uma oferta do Acre, então a própria escola procurou me
ajudar. Eu fui para o Acre e lá foi bom porque eu desenvolvi uma luta democrática. Fundamos
a faculdade de enfermagem e depois voltei. Quando voltei fui para a Pontifícia Universidade
Católica (PUC) de Campinas clandestina, se eles sonhassem que eu tinha processo político eu
estava demitida por justa causa, assim até 1980, quando veio a anistia, outro tipo de
(inaudível). A partir de 1980 já assumimos, fui para o Vale do Ribeira onde eu concentrei meu
mestrado e doutorado com um índio, benzedor, raizeiro, preto velho e aprendi a prática
natural. Fui treinada pelo governo do estado, onde me deu diploma. Depois meus filhos
crescidos, que eu casei, meu marido era companheiro daqui, mas não chegou a ser preso, eu
morava em Campinas ele foi para lá, moramos juntos algum tempo e depois casamos. E os
filhos cresceram e eu precisei voltar para eles poderem disputar, depois, na faculdade. Foi

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muito bom, meu filho acabou de formar em Odontologia na USP, já está trabalhando. A
Raquel está fazendo Turismo e eu espero quando ela terminar, vai me liberar para eu voltar
para o mato.

C: Fale um pouco mais sobre a posição de sua família nesse período todo.
Á: Eles sabiam que eu estava no movimento estudantil, nunca escondi. Quando tinha passeata,
às vezes meu pai estava viajando, por Orlândia, por aqui, ouvia no rádio e voltava de viajem
para me segurar, porque ele tinha medo. Às vezes eu estava indo para passeata, ele ia junto
para me segurar. Até que um dia ele viu uns caras arrebentando os estudantes, ele viu toda
aquela revolução que nós fazíamos, enchia a Catedral, enchia o Palácio, tinha menino que ia
parar em baixo da mesa do prefeito, nas árvores, em cima da prefeitura, esparramava dali,
juntava de lá e saia mais 2, 3 passeatas. Mas sempre com receio ele. Meu irmão, minha mãe
entendiam melhor, minhas irmãs também, sem problemas, mas ninguém no final, sabia que eu
estava na luta armada. Aí começou a cair em São Paulo e minha irmã estava lá, desesperada.
Então ela arrumou dinheiro para eu ir embora, porque estavam prendendo e batendo em São
Paulo, iam matar e Ribeirão Preto. Eu falei para eles: “Daqui eu não saio, eu estou numa luta
que eu assumi, para viver, para comer, o que for.” Foi embora chorando, né? Aí como eles
cercaram o quarteirão em uma noite, 22 de outubro, já começaram a me bater dentro de casa,
eu sai algemada, um bando de homem armado. Imagina minha mãe. Ficou para dentro de casa,
primeiro que levou um susto e quem era Maria? Minha mãe não sabia de Maria nenhuma:
“Imagina, aqui não tem Maria nenhuma.” Até que eles começaram a entender alguma coisa.
Aí eles viviam dia e noite lá em casa vigiando. Então meu irmão às vezes jogava pedra na
janela para abrir a porta quando meu pai estava em casa, que meu pai era bravo. O meu irmão
não sabia, foi jogar pedrinha na minha janela, a polícia pegou ele, saiu minha mãe, a minha
irmã estava grávida com o choque quase perdeu a criança. Porque eles falam que tinham me
procurado que nem loucos para todo lado. Meu irmão foi até em Brasília para reconhecimento.
Meu tio que era vereador, era advogado, foi 5 vezes na porta do Quartel. Ele falou que era
meu advogado e falaram para ele que se ele voltasse, ele estaria em perigo. O pai do
Wanderley um dia ficou tão bravo, pegou o revólver e foi lá. Tomaram o revólver dele e
falaram que “se o senhor voltar aqui eu cubro com tiro”. E as famílias desesperadas porque
não sabiam o que iria acontecer, porque sempre falaram que primeiro iam espremer tudo e

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depois matar, eu e o Mário Bugliani, que era um camponês. Uma noite falaram para minha
irmã que eu tinha morrido, para avisar para os amigos que o meu corpo já estava a caminho.
Foi no dia seguinte que o Arcebispo excomungou esse delegado, não só por nós, mas pela
Irmã Maurina também. Estava tudo preparado para eliminar, espalhar na cidade, tudo. Agora
imagina para a família ficar sabendo que eu estava sendo torturada e eu ia ser morta e ainda
foram lá avisar. Ai a família reuniu. A mãe do Wanderley, a D. Rita, passava no quarteirão,
desesperada, de carro, sem coragem de entrar, de me ver que ela falava: “Foi a Áurea que
morreu.” Até conseguiu depois saber que eu estava reagindo, conseguiram me levar as coisas,
liberaram o bilhete. No meio dessa história tinha um soldado amigo do meu cunhado e tudo o
que ele podia saber no quartel, eles se encontravam numa pracinha, ele passava para o meu
cunhado. Eu lembro que eu fui ao banheiro e na hora que eu sai ele falou “Aonde vocês vão”.
Eu falei (inaudível). Eu tenho a impressão que ele falou com meu cunhado e passaram 2 dias
foram minha irmã e meu cunhado lá. E minha irmã parecia comigo, e aí o delegado falava que
eu não estava lá. E eu escutei da cela a voz dela e eu comecei a gritar, chamando pelo amor de
Deus, mas ela não ouvia, e o delegado desconversou e falou: “Isso aí só em Ribeirão Preto”,
ele morria de medo de Ribeirão Preto e São Paulo. Na hora que eles estavam saindo tinham 2
soldados e o do posto falou para o outro: “Não é aquela que está lá dentro?” e o outro falou:
“É parece com ela, mas não é não, ela não é loira.” E o outro falou assim: “Puxa! Se corressem
as duas eu não saberia em quem atirar” e o outro: “Por segurança é melhor atirar nas duas”.
(risos) E ela saiu com meu pai e falou: “Pai a Áurea está aqui.” E logo eu fiz aniversário, a
minha mãe pediu para levar o bolo. E a minha irmã fala que eu estava sem cabelo e o
pouquinho cabelo que eu tinha era branco, embranqueceu e eu nem percebi. Ai saiu a
preventiva e eu fui para o Tiradentes e depois, como eu estava morrendo no Tiradentes, minha
tia conseguiu me levar para a Penitenciária.
Então da minha família: sofreram quando eu fui presa na Penitenciária Feminina, quando
minha mãe viu meu corpo todo machucado, não tinha cabelo, meu corpo estava todo
queimado de choque de fio elétrico, dos fios que eles colocavam no corpo. Eu mesma toda
machucada, você imagina que estado eu devia estar de depressão, sabe? Eu não devia estar
nem falando coisa com coisa, pelo que eles falam. E minha mãe, minha tia freira, minha irmã,
junto comigo, só restou para nós chorar, nos abraçar, chorar e a revolta. E onde minha família
ia, metia a boca nos militares. E eu quando sai também, eu falava: “Não posso fazer mais, mas

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posso falar”. Não mandei eles me deixarem viva até o fim, e até hoje a gente denuncia, a gente
mexe, para nunca mais voltar.
De fato, 3 anos e meio, quando eu sai, depois quando formei, então fui pro Acre, depois voltei,
ai fui para Campinas, assim, uma vida inteira eles tomaram conta de mim. Quando eu voltei
para Ribeirão que os companheiros iam me visitar, meu pai dava carreirão. Ai eu combinei:
“Pai, a primeira vez eu recebo os meninos. Depois se voltar...” Porque eu falava e realmente
eu estava vigiada, estava seguida. Às vezes alguns que não eram, que estavam continuando a
luta, queriam que eu fosse a alguma reunião. Eu falava: “Pelo amor de Deus gente. Quer todo
mundo ser preso. Então vamos, é para hoje mesmo. Então tem que levar bolacha, chocolate,
quem fuma leva cigarro, não esquece de levar identidade...” Como nas passeatas (risos). Mas
teve um tempo assim, um tempo muito perigoso, era dia e noite e qualquer coisa. Tudo isso
minha família viveu comigo, me amparou, até eu formar, até eu ir embora. Eu lá no Vale do
Ribeira, meu pai preocupado. Fui pro Acre, área de segurança nacional não dormia em paz. Aí
resolvi voltar. Assim é uma vida inteira. Quando eu formei (choro) o maior orgulho do meu
pai... O maior orgulho do meu pai foi o dia que eu me formei, que alegria que ele sentiu,
comprou terno novo, comprou vestido para mim, foi tão feliz, tão feliz que a filha dele...
(sorrindo). E, além disso, eu fui a primeira, a única daquela época, da família que fez uma
faculdade, ainda tinha isso né? Ainda tinha, coitadinho (silêncio).
Minha... Então, um sofrimento muito grande e ao mesmo tempo, só fiquei viva por causa
deles. Falo que a culpa é deles, a culpa é da minha irmã. (risos) Não me largaram. Nem que
fosse para ir lá, para mostrar que tinha família, entendeu?! Que estavam de olho, minha tia
brigava com os militares mesmo, que coisa louca! Até me encaminhar, depois veio, graças a
Deus veio a Anistia para todos, companheiros voltaram , porque ainda a gente vivia as quedas,
as mortes, a Guerrilha do Araguaia, companheiros que foram para Cuba, daí clandestinos
entravam nesse país, eram assassinados. Hoje nós sabemos, imagina, tinha gente infiltrada,
tinha Cabo Anselmo. Inclusive o livro do Cabo Anselmo não entra na minha casa, não entra,
meu marido quer, não entra! Aquela coisa não entra dentro da minha casa. Não entra. E assim,
ai depois vem a democracia, então lá vamos nós lutar pelas diretas, as Diretas Já! Ai esse povo
inteligente brasileiro elegeu o Collor (risos), ai lá vamos nós tomar sol, tomar chuva nas
praças e derrubar o Collor. E assim vai, nunca a gente parou de lutar. Que nem, no Vale do
Ribeira, eu meu marido fomos para lá, já lá o Montoro desapropriou duas áreas de reforma

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agrária, a gente ajudando fazendo as manifestações com os posseiros no local, organizando o
Partido Comunista. Então eu pedi meus antecedentes na ABIN, “Agência Brasileira de
Desinteligência”, até 89 me seguiram, está lá: em 89 eu organizando o Partido Comunista no
Vale do Ribeira. Depois voltamos para Ribeirão, quer dizer, sempre atuando junto com o PT,
com outras organizações e nunca paramos. E hoje por exemplo, o que eu faço? Eu, o
Wanderley e muitos companheiros? A gente luta junto com os sem terra. Então parece que é
assim, volta na minha origem na roça. Então hoje lutando pela reforma agrária, lutando pelos
direitos, muito mais dificuldades hoje, porque nunca sabe onde está o inimigo. Naquele tempo
nós tínhamos a ditadura militar e o imperialismo norte-americano. Agora, hoje é uma coisa
que a gente acha assim, que valeu a pena, que a gente faria do mesmo modo para ter a
democracia, mas que não é a democracia que nós queremos, não é um mundo justo, bonito que
a gente sonhou. Mas de qualquer modo valeu a pena, contribuímos com a história. E o que a
gente sente mais assim, são os que morreram, os desaparecidos, todos eles, companheiros que
saíram com a gente, mas não voltaram. Esses não tem perdão, né? Agora eles vão indenizar
nós, e eu pedi, até falei no rádio e na televisão, que não têm dinheiro que me indeniza, não
tem. Não tem nada, nada que pague. O que paga nós é ter democracia no país ainda, é ter o
renascimento político. O dinheiro, quando vem o dinheiro, isso aí é uma conseqüência.
Importante que o Estado, que nos torturou, que massacrou, reconhece publicamente, o crime
que foi feito. O que indeniza nós é o reconhecimento público perante a própria sociedade. E
que nem, aqui em Ribeirão pelo menos, a Câmara Municipal já deu título de Cidadão Emérito
para quase todos nós. Então isso é uma coisa que conforta a gente porque é a cidade onde
fomos perseguidos, onde nós ficamos perseguidos e massacrados e publicamente resgatados.
Hoje a gente está juntando os companheiros, e tão gostoso, que nem o Marcílio, há quantos
anos que eu não o via, ele veio, mas numa alegria tão grande, as pessoas se reencontrando,
sendo solidárias hoje, como em São Paulo, no fórum que teve, dos perseguidos políticos. Estão
lá deixando o Alckimin doido da cabeça, estão brigando com o Fernando Henrique por causa
da Medida Provisória que também ele fez em Brasília e principalmente essa união, sabe? Uma
solidariedade, o pessoal de São Paulo conseguiu tratamento no Hospital das Clínicas e vão
todos juntos, fazer fisioterapia, fazer acupuntura. E aqui nós já começamos a encaminhar
também. E é isso que está valendo a pena, e ao mesmo tempo estamos brigando, nós brigamos
com o MST, ajudamos, continuamos a mesma luta, enquanto viver a gente vai estar fazendo

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confusão, que eu acho que é para isso que nós estamos vivos (risos). Pode não resolver, mas
para fazer, eu adoro confusão, nós somos muito bons.
C: Áurea, muito obrigada pela entrevista.
A: Obrigada você, obrigada à sua geração que é quem está contando nossa história. As
universidades, são jornalistas, historiadores que estão pesquisando,muita dificuldade, porque
não têm condições de falar, muita gente também, que já morreu. Então a gente a agradece a
você e à sua geração.
C: Obrigada à senhora. Final da gravação.

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