Pensando A Joalheria Contemporânea Com Deleuze e Guattari

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PENSANDO A JOALHERIA CONTEMPORÂNEA COM DELEUZE

E GUATTARI

Ana Paula de Campos*

Resumo – As joias são artefatos que acompanham a trajetória humana desde remotos tempos, nas mais diversas
sociedades. Como produtos da cultura material, seus significados estão relacionados com a construção do pen-
samento individual e coletivo, configurando uma espécie de reservatório da história e da cultura. Neste artigo,
apresenta-se uma reflexão sobre o objeto joia, em que se discute a diversidade de suas possibilidades formais e
conceituais na sociedade contemporânea. Para compreender essa produção, a metodologia utilizada considera
uma investigação histórica da joalheria a partir das transformações observadas no campo da moda, do design e
da arte, desde meados do século XX, estabelecendo relações entre elas. Por fim, a temática é analisada com base
no conceito de rizoma de Deleuze e Guattari, o qual é aplicado a esse cenário em fluxo e torna possível demons-
trar e entender as possibilidades de conexão entre os campos.
Palavras-chave: joia, joalheria, arte, design, moda.

SOBRE A JOIA

As joias vêm sendo produzidas pela humanidade desde tempos imemoriais, e há indícios
de produção de ornamentação pessoal desde a pré-história. Para muitos, esse fato vem sem-
pre acompanhado de indignação: “por que o homem primitivo gastava tempo e energia na
produção de algo tão supérfluo e desnecessário à sua sobrevivência?”.
À luz de um julgamento moral, a joia traduziria a superficialidade daqueles que demons-
tram o desejo pelo precioso, pela riqueza, desejo de beleza, de poder, desejo de exibição. Na
hierarquia dos valores legitimados pela lógica do trabalho, a sobrevivência seria uma preo-
cupação mais justificável que o tempo dedicado ao que possa parecer uma preocupação
fútil e menor diante do que “realmente” é importante na vida. Todavia, parece ser inegável o
reconhecimento do papel singular da joia como objeto simbólico que tem como função ser

* Doutora em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e docente na Universidade Anhembi Morumbi.

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porta-voz de um discurso que aporta as intrincadas relações construídas pelos homens que
as criaram, possuíram e usaram. Ainda que sem utilidade aparente, a razão para seu uso
sempre foi de dar visibilidade a características e valores relativos aos sujeitos e à sociedade.
Esse objeto, entendido comumente como ornamento em material precioso, usado como
acessório de vestuário, parece ter nos materiais seus principais elementos de definição. De
contornos conceituais aparentemente simples, a relação material-joia foi onipresente du-
rante séculos na joalheira, trazendo consigo questões econômicas e de poder. Ainda que
seja possível discutir o sentido da ideia de preciosidade, bem como a variação dos materiais
considerados preciosos ao longo da história, é evidente a onipresença da combinação ouro e
pedras preciosas como matriz da produção joalheira. Nessa equação, também sempre se
estabeleceu a relação das joias com noções de ornamentação e de beleza, qualidades intrín-
secas dos materiais preciosos utilizados e/ou resultantes do arranjo de seus elementos esté-
tico-formais. Acrescentam-se a isso os significados simbólicos atribuídos ao seu portador,
pois se trata de um signo de distinção e identificação social (fator que não se desprende dos
valores materiais e estéticos intrínsecos).
Entretanto, no atual contexto da produção em joalheria, podemos observar uma grande
variedade de tipos de joia nem sempre providos de explícita relação com os critérios tradicio-
nalmente associados a ela, especialmente por meio do uso de outros materiais em sua con-
fecção. Exemplos disso podem ser encontrados em diferentes categorias de joias: em peças de
grandes joalherias, produzidas com materiais “não preciosos” como cristais de rocha (Diane
Von Furstenberg – H.Stern), seda, cristal e laca (Elza Peretti – Tiffany), aço escovado (Cartier),
couro e titânio (Tiffany). Podemos citar também a produção de designers de joias que fre-
quentemente utilizam metais como prata e cobre (Franco Pianegonda, Antonio Bernardo,
entre tantos), além de outros materiais como borracha, palha, tecido, couro e quartzo. E ainda
temos uma produção vinculada às práticas artísticas, em que há utilização livre de materiais
diversos. Assim, joias produzidas segundo os critérios mais tradicionais convivem lado a lado
com essas outras modalidades, exemplos da multiplicidade contemporânea.

Durante o século XX, a joia abandonou o privilégio do artesanal e do uso exclusivo de


materiais nobres e luxuosos e se aproximou de “ligações perigosas” com consequências
muito interessantes. A inserção de ”materiais vulgares” na esfera simbólica do luxo con-
fundiu e contaminou os limites entre o valorizado e o desvalorizado, o que resultou em
uma mudança deliberada na consolidação das hierarquias do bom gosto e da preciosidade
(ANNICCHIARICO; CAPPELLIERI; ROMANELLI, 2004, p. 7).

O fato de um objeto milenar como a joia estar hoje mais complexa, o que é evidenciado
pela atual diversidade de suas possibilidades, é reflexo da fluidez da sociedade pós-industrial
(BAUMAN, 2001). Atualmente, a construção da imagem pessoal é importante função atribuída

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aos objetos, o que resulta numa efervescente produção de novidades acelerada pela máqui-
na-moda (MESQUITA, 2000). Quando se colocam em perspectiva os aspectos socioculturais
que constituem o cenário da confecção e uso das joias, diferentes aspectos se sobrepõem e
se multiplicam na atribuição dos seus significados e valores, todos eles relativos a dimensões
do humano. De fato, toda joia serve como veículo de expressão de um sujeito e de seu tem-
po, sendo reveladora das transformações do indivíduo e, consequentemente, da sociedade.
Seu entendimento como forma de distinção e de construção da identidade hoje pressupõe a
compreensão das transformações socioculturais postas em ação desde a Revolução Indus-
trial e intensificadas a partir da segunda metade do século XX, cujos desdobramentos confi-
guram o cenário atual. Ao lado da arte e do design, o luxo e a moda1 parecem estar muito
presentes nessa discussão, subsidiando a reflexão sobre a posse e a exibição do ornamento
como elementos que revelam a constituição das diferenças entre os indivíduos.

MODA, DESIGN E ARTE

A rejeição à ênfase decorativa observada a partir do início do século XX, estimulada pelas
vanguardas artísticas e que culminou na estética modernista exercitada na arquitetura e no
design, também causou significativas alterações na produção de joias. Nesse percurso traça-
do historicamente pela joalheria, temos na figura de René Lalique uma espécie de precursor.
Mestre nas artes do vidro, introduziu esse material na produção de joias com excelência,
tendo também se notabilizado pelas peças que produziu para a atriz Sarah Bernhardt. À
qualidade técnica de suas peças soma-se uma investigação formal diretamente relacionada
ao uso de materiais muitas vezes não preciosos. Entretanto, sua produção estava vinculada
à temática e ao estilo art nouveau, como também estavam as grandes maisons, como Cartier
e Boucheron.
O impacto da Primeira Guerra Mundial produziu profundas transformações socioeconô-
micas e culturais que resultaram em significativas mudanças no cenário das artes, marcando
uma ruptura com a estética decorativa que impactou também o campo da moda e do design.

1 - Ainda que frequentemente relacionada com o campo do vestuário, a moda deve ser compreendida aqui nos termos propos-
tos por Gilles Lipovetsky (1989, p. 24) como “um dispositivo social caracterizado por uma temporalidade particularmente breve”,
dotado de significativo papel no estabelecimento das dinâmicas socioculturais, particularmente a partir da segunda metade do
século XIX. Como fenômeno, é possível encontrar os elementos de sua origem no final da Idade Média, mas foi a latente mobi-
lidade social decorrente do surgimento da burguesia que operou, a partir do século XIV, uma importante transformação social
que resultaria na sua concretização. Esse processo foi sendo ampliado ao longo dos séculos, culminando com o nascimento da
moda, que teve no vestuário o terreno mais fértil para sua instalação, sendo este seu principal veículo de difusão nos séculos
XIX e XX. Considerado na atualidade, Rafael Cardoso (2004, p. 130) assinala a importância do fenômeno moda “na definição de
noções de atualidade e modernidade, já que, junto com a evolução tecnológica, a moda talvez seja o elemento mais influente
na imposição de um ritmo para as mudanças visíveis das formas e dos hábitos culturais”.

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Em 1919, a inauguração da Bauhaus2 foi o marco na difusão dos princípios do modernis-


mo no contexto dos objetos, por meio da construção de um pensamento e de uma estética
funcionalistas, de produção industrial. É curioso notar que, segundo Rafael Cardoso (2004),
apesar da expressiva presença de artistas e artesãos dentre os docentes da escola, foi notá-
vel sua contribuição na demarcação de territórios antagônicos entre o design e a arte e o
artesanato.
Os princípios adotados pela Bauhaus não eram entendidos como estilo, mas sim como
resultado de uma racionalidade oriunda da função do produto e aplicada à sua fabricação, o
que deveria revelar a essência dos objetos, despindo-os de qualquer outro significado. Por
estar relacionada à ornamentação, cuja funcionalidade vincula-se a questões estéticas e
simbólicas, a joia foi um objeto desconsiderado pelo campo do design nesse período. Segundo
Annicchiarico, Cappellieri e Romanelli (2004), sua conotação artística era tomada de modo
pejorativo, e seu forte vínculo de produção com o artesanal e a manufatura distanciaram-na
das discussões do design, tanto no que diz respeito aos aspectos formais quanto ao caráter
industrial da fabricação.
O pensamento modernista desconsiderava que “a capacidade de evocar ideias também faz
parte de qualquer proposta de design: ou seja, as funções de um objeto não podem ser re-
duzidas apenas ao seu funcionamento” (CARDOSO, 2004, p. 131). Por isso, objetos de uso
pessoal, roupas e acessórios, que sempre foram mais suscetíveis às noções de estilo e de
gosto, aos fluxos da moda e aos significados simbólicos, desenvolveram-se paralelamente ao
campo do design, numa espécie de território próprio.
No pós-guerra, começou-se a estabelecer uma distinção entre a produção das grandes
joalherias e a criação de novos desenhos sob a influência de artistas e das novas formas de
abordagem da ornamentação pessoal, oriundas do campo da moda. Significativas transfor-
mações do ponto de vista estético e conceitual começaram a ser engendradas, subvertendo
a ordem das relações entre valor material e valor do desenho.
A parceria da joalheria com a moda resultou, por influência de Chanel, na “invenção” da
bijou fantasie3 ou costume jewelry, ou seja, a valorização de um ornamento que não se res-
tringia a ser apenas uma imitação da joia verdadeira em material não precioso (como havia
sido a produção de réplicas até então), mas sim “um desenho novo que era sinônimo de
atitude e de estilo da mulher moderna” (PULLÉE, 1990, p. 48). Segundo a estilista, “uma joia
é primeiro um design. Elas representam, antes de tudo, uma ideia” (KLEIN, 2004, p. 87) e, por
isso, não estava necessariamente vinculada ao valor material. O contexto mostrou-se terreno

2 - Escola alemã de arquitetura e design que tinha como propósito formar profissionais capacitados para realizar uma fusão
entre artes e indústria.
3 - Jane Mulvagh (1988) distingue bijou d’imitation (que vale pela fidelidade de sua cópia) de bijou de fantasie (que se impõe
pela criatividade e por saber resistir ao desejo de parecer "verdadeira"), apontando esta última como produto exclusivo do sé-
culo XX.

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fértil para o desenvolvimento desse conceito, pois a exibição de fortuna e de luxo na forma
de pedras e metais preciosos era vista como atitude antipatriota e frívola, o que não combi-
nava com a imagem da nova mulher. O uso da bijou fantasie proclamava um comportamento
de autoconfiança e recusa de ser julgada em função do casamento. Ironicamente, a própria
Chanel, presenteada pelo grão-duque Dimitri da Rússia, possuía joias caríssimas que usava
com desenvoltura associadas às suas bijoux fantasies. Fiel ao seu pensamento, ela justapu-
nha cordões de strass e colares com pedras verdadeiras enormes, numa ousadia em que
elegância e sofisticação reportavam-se mais à atitude que ao valor. Sobre isso comentou:
“Nada parece mais uma joia falsa que uma bela joia” (MULVAGH, 1988, p. 52).
Sua rival, a estilista italiana Elsa Schiaparelli, influenciada pelo cubismo e surrealismo em
suas criações, trabalhou em parceria com artistas como Jean Cocteau e Salvador Dalí, pro-
movendo uma aproximação da moda e da joalheria com a arte. Considerada “surrealista” no
campo da moda por sua excentricidade tanto nas roupas quanto nos acessórios, pediu a
Dalí, por exemplo, que desenhasse brincos-telefone e um broche-relógio em formato de olho
(Figura 1). Também comprou da artista alemã Meret Oppenheim a ideia do bracelete de prata
revestido de pele (Figura 2) que serviu de inspiração para sua emblemática obra surrealista
Breakfast in Fur4.

Figura 1 Broche The eye of time (1949, Salvador Dalí): platina, rubi e diamante
Fonte: The eye of time (2010).

Figura 2 Bracelete (1935, Meret Oppenheim): prata e pele


Fonte: Levy (2003).

4 - Apresentada na exposição Surrealista de Objetos da galeria Charles Ratton (Paris-1936), a obra foi “descoberta” por Alfred
H. Barr, então diretor do Moma-NY, que a adquiriu para o acervo do museu. O estranhamento causado pela combinação da
porcelana branca com a pele aportava elementos do repertório surrealista, associando objetos do cotidiano com imaginário e
inconsciente, envolvidos por um forte apelo erótico. Para obter mais informações, ver Thomas Levy (2003).

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Ainda que, a partir da influência da moda, novos pressupostos e uma nova estética te-
nham sido produzidos no campo da ornamentação, dando início a um certo “embaralha-
mento” das fronteiras, o cenário ganha complexidade após a Segunda Guerra Mundial.
Caracterizado como pós-industrial, o período foi marcado pela intensificação das mudan-
ças na sociedade, promovidas pelo desenvolvimento tecnológico e crescimento dos setores
de serviços, comunicação e informação, o que promoveu um grande interesse pelas inova-
ções e gerou um aumento do consumo. Desfrutando de uma situação privilegiada na oca-
sião, os Estados Unidos se transformaram num importante cenário para o desenvolvimento
do design, e a produção de objetos industriais passou a estender seus significados para além
das questões funcionais e utilitárias. Novos produtos começam a ser criados de modo a gerar
demanda, evidenciando o entendimento da presença e importância do papel simbólico dos
objetos, fatores que se tornaram propulsores do consumo. A partir daí, transformações sig-
nificativas na joalheria decorreram de sua concepção vinculada ao campo do design em
sintonia com as dinâmicas da moda, ainda que formas mais artesanais de confecção pudes-
sem ser observadas.
Ainda no que concerne à joalheria, outra mudança que merece destaque nesse período
refere-se ao surgimento de muitos joalheiros dedicados a uma produção influenciada por
princípios da arte, tanto nos Estados Unidos como na Europa, sobretudo na Alemanha, Ingla-
terra e Itália. As joias produzidas nesse contexto não se restringiam à exploração dos aspec-
tos formais, mas se focavam, sobretudo, na dimensão poética e conceitual do objeto. Bus-
cando dialogar com os novos conceitos da vanguarda artística, essa produção colocava-se
com uma forte reação às formas da joalheria comercial e tradicional. Segundo Susan Grant
Lewin (1994), observa-se, na produção norte-americana dos anos 1940-1960, uma forte
presença de conceitos como biomorfismo, primitivismo e construtivismo (figuras 3 e 4).

Figura 3 Anel (1948, Margaret de Patta): prata e ouro quartzo


Fonte: Greenbaum (1996, p. 63-64).

Figura 4 Broche (1945, Margaret de Patta): prata e pérola negra


Fonte: Greenbaum (1996, p. 63-64).

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Profissionais dedicados à produção de uma joia menos relacionada às questões decorati-


vas e mercadológicas e de acúmulo de valor material configuraram o que foi posteriormen-
te denominado arte-joalheria, movimento que começou a se destacar internacionalmente a
partir de 1960-1970. Para David Watkins (1993), hoje se pode observar uma categoria mais
ou menos identificável, resultante das atividades de um pequeno número de artistas e seus
seguidores ao redor do mundo.

São trabalhos de arte executados por artistas, que existem no formato da joalheria, de-
safiando convenções e percepções, sempre centrados no mundo das ideias. A joias são
concebidas, desenhadas e construídas predominantemente como trabalhos de arte, tudo
o mais sendo secundário. Materiais sujeitos ao conceito. Como toda arte, a arte-joalheria
deve semear novos solos e levantar questões (LEWIN, 1994, p. 13).

Esse movimento propunha uma reflexão sobre o papel sociocultural da joalheria num
diálogo permanente com as restantes formas artísticas. A joia passava a ocupar então o
quadro das artes como veículo de expressão plástica, com um papel que ultrapassava e
transcendia o estatuto da joia de ostentação a que estava associada no passado.
Segundo Peter Dormer e Ralph Turner (1985), a motivação inicial para o desenvolvimento
de um novo tipo de trabalho nesse campo era de reação à joalheria conservadora e ostensi-
vamente cara produzida na época. As peças produzidas pelos artistas pioneiros tinham em
comum a intenção de evitar os formatos clichês da joalheria; um interesse na produção de
peças impactantes, estimulantes e, se possível, baratas; uma orientação para a criação de uma
joalheria unissex; o propósito de expressar desaprovação pela joia meramente concebida
como tentativa de buscar status; sempre assegurar uma relação dinâmica e interdependente
entre o ornamento e o corpo.
Ao se inscrever sob o domínio da arte, a joia ganhou nova condição e propósito: deixou
um território repertoriado predominantemente pela beleza e pelo valor econômico, passando
a convocar o pensamento para uma reflexão sobre seu sentido, tanto no que concerne à
noção de preciosidade quanto no das relações engendradas a partir do contexto social. Em
vez da sedução imediata do material e do desejo instantâneo de consumo, uma pergunta,
um provável desconforto. Alguns exemplos destacam-se, como o bracelete Gold makes you
blind (Figura 5), de Otto Künzli (CAMPOS, 1997, p. 83). Feito de borracha, contém, em seu
interior, uma esfera de ouro. O artista, ao esconder o metal precioso, questiona seu papel na
configuração das joias. Por meio do título, alerta sobre os riscos da sedução que eles exercem
sobre o homem. Na obra Terrifying beauty (Figura 6), da artista turca Burcu Büyükünal, vin-
cula-se a noção de beleza e sedução presentes na joalheria aos esforços contemporâneos na
busca de uma aparência idealizada. As peças evidenciam o atual sentido distorcido da beleza
por meio de seus fios metálicos que acabam por acentuar algumas partes do rosto cons-
truindo assimetrias, o que o torna deformado e, portanto, menos bonito.

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Figura 5 Bracelete Gold makes you blind (1980, Otto Künzli): borracha e ouro
Fonte: Otto Kunzli (2009).

Figura 6 Adorno para cabeça 1 Terrifying beauty (2008, Burcu Büyükünal): latão, banho de ouro e diamante
Fonte: Büyükünal (2008).

Figura 7 Adorno para cabeça 4 Terrifying beauty (2008, Burcu Büyükünal): latão e banho de ouro
Fonte: Büyükünal (2008).

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O uso da joia como ícone do desejo humano de se distinguir dos demais é apresentado no
projeto Chew your own Brooch (Figura 8), do artista holandês Ted Noten. Trata-se de uma
goma de mascar apresentada numa embalagem especial com uma caixa de retorno. Após ser
mastigada, ela é enviada novamente ao artista que trata de fundi-la em prata, acrescenta um
pino, aplica um banho de ouro e envia de volta ao remetente, criando realmente uma joia úni-
ca. De forma irônica, o artista explora a questão simbólica da construção de um objeto único
a partir de algo banal, como um chiclete, criando uma tensão no conceito de preciosidade e
customização dentro do contexto contemporâneo.

Figura 8 Broches série Chew your own Brooch (iniciado em 1998 por Ted Noten): prata e ouro
Fonte: Imagens fornecidas à autora pela artista portuguesa Cristina Filipe.

Mesmo que seja possível compreender e distinguir o papel e os propósitos da moda, do


design e da arte na produção de joias, esses territórios são mediados pelo mercado e colo-
cam-se em permanente estado de fluxo na contemporaneidade, multiplicando em escala
geométrica o leque de diferenciais que orientam a criação e o desenvolvimento de novida-
des. Nesse contexto múltiplo e mutante, inúmeras nomenclaturas surgem para designar
categorias mais ou menos distintas de ornamentos, resultando numa confusa utilização das
palavras joia, design e arte. É preciso esclarecer que não se trata de classificar, categorizar,
valorizar ou validar as possibilidades de cada campo, mas sim de tentar compreender os
mecanismos que possibilitaram o surgimento de tamanha diversidade e refletir sobre isso a
partir do pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

RIZOMA E JOALHERIA

A proposta de uma teoria das multiplicidades, descrita e desenvolvida por Deluze e Guat-
tari (1995a, 1995b, 1996, 1997a, 1997b) na série Mil platôs considera que estas constituem
a própria realidade, ultrapassando qualquer relação de dualidade, unidade ou totalidade.
Desse modo, os processos, individuais ou coletivos, conscientes ou inconscientes, naturais ou
históricos, físicos ou psíquicos, se produzem e aparecem na multiplicidade. Nesse sentido, o

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mundo é constituído por múltiplos fluxos que atravessam pessoas, coisas, acontecimentos,
configurando, por princípio, estados em contínuo encadeamento de relações, bem como
suscetíveis a modificações e substituições. Na matriz dessa abordagem, o conceito de rizoma
foi escolhido pelos autores como modelo de realização, de modo que seus elementos possam
configurar territórios onde as relações são agenciadas e novas formas de significação são
produzidas. Um sistema do tipo rizoma se caracteriza por seus princípios de conexão e hete-
rogeneidade, ou seja, todos os seus pontos são necessariamente interconectáveis, não apre-
sentando pontos fixos ou hierarquizados – como num sistema de raiz fasciculado ou numa
estrutura lógica binária – de modo que só se realize no campo das multiplicidades. Sua prin-
cipal característica está expressa na inclusão e no encadeamento, “tudo ao mesmo tempo”. É
possível identificar as conexões entre as partes, permitindo-se múltiplas entradas (sua carac-
terística essencial), mas sempre há que se ter uma ou várias brechas por onde escapar, “tem
como tecido a conjunção ‘e... e... e... ’” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 37). Sua dinâmica se dá
na configuração de vetores de realização que atravessam as multiplicidades, produzindo
territórios-significados e também graus de desterritorialização.
Se hoje as joias compartilham da aceleração e da fragmentação da sociedade pós-indus-
trial, elencar critérios quantitativos referentes à preciosidade dos materiais parece não ser
suficiente para qualificar esse objeto que, configurando-se a partir de novos códigos comu-
nicacionais, constrói para si uma nova noção de valor muito mais assegurado pelas associa-
ções entre luxo e arte, repertório e atitude, moda e formadores de opinião. Essa situação não
é apenas consequência das transformações nos processos produtivos e na ampliação da
oferta promovidas pelos avanços tecnológicos e pelas estratégias do marketing, mas reflete
também as mudanças resultantes da valorização da individualidade, de modo que normas e
diretrizes sociais são relativizadas, possibilitando a convivência de uma multiplicidade de
valores e pontos de vista.
Na atual produção joalheira, o design como atividade projetual passa a se ocupar em ex-
pressar essa diversidade que, atualizada pelos fluxos da moda, amplia as possibilidades de
escolha nos mais diversos setores da produção e consumo de bens. Essa diversidade de tipo-
logias produzidas torna-se então elemento complicador da atribuição de significados fixos
para a joia na atualidade. Nesse sentido, podemos pensar o conceito contemporâneo de joia
dentro de um modelo rizomático, pois este é resultado de um conjunto de variáveis cujos
diferentes arranjos abarcam as múltiplas formas da joalheria. Desse modo, não se promove
uma ruptura com a ideia tradicional de joia, mas se contempla a convivência/coexistência de
um amplo espectro de possibilidades desse objeto.
Para compreender os conteúdos postos em fluxo na configuração desses arranjos, é pre-
ciso compreender, mais que seus significados, a natureza de suas articulações.

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[...] as linhas são os elementos constitutivos das coisas e dos acontecimentos. Por isso cada
coisa tem sua geografia, sua cartografia, seu diagrama. O que há de interessante, mesmo
numa pessoa, são as linhas que a compõem, ou que ela compõe, que ela toma emprestado
ou que ela cria (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 47).

Trata-se de linhas múltiplas que não param de se misturar e de se influenciar em dinâmi-


cas de simultaneidade e complexidade, sobre as quais não deve haver juízo de valor, pois não
são boas ou más a priori. São elas:

• Linhas de segmentaridade dura ou molar: configuram territórios bem determinados e


planejados, com início e fim dos segmentos. São linhas potencializadas por explicações
e esclarecimentos.
• Linhas de segmentação maleável ou molecular: linhas mais flexíveis que escapam da
classificação e se oferecem à interpretação. Produzem relacionamentos menos locali-
záveis.
• Linhas de fuga: provocam uma tensão máxima entre as anteriores, resultando numa
transformação. Operam por ruptura, uma explosão de intensidades com poder de des-
territorialização, o que gera a necessidade de traçar novos territórios.

Diante desse referencial, podemos compreender as transformações que levaram, por


exemplo, a joalheria tradicional, produzida em metal precioso, a vincular-se a uma ideia de
permanência, cuja delimitação legitimada socialmente se mantinha inquestionável há sécu-
los: admitir uma inserção de materiais menos nobres e passar a ofertar coleções temáticas,
evidenciando influências oriundas de uma produção vinculada ao design e à moda. Em sin-
tonia com as transformações do universo feminino na contemporaneidade, moda e design
também multiplicaram o significado da joia, tornando-a um objeto mais efêmero ao experi-
mentar novos arranjos e materiais para criar novidades, sobretudo do ponto de vista formal.
Nesse cenário, acelera-se a produção joalheira, muitas vezes incorporando elementos traba-
lhados no campo da arte, mas sempre os vinculando à função decorativa da joia. É possível
também compreender o surgimento da joia como produto da arte, tencionando e rompendo
com alguns dos valores e significados seculares que, apesar da potência das transformações
que impactaram toda a cultura ocidental desde meados do século XX, ainda permanecem
presentes por meio desse objeto. A diversidade de produtos resultantes dessas múltiplas
abordagens da joalheria, ao mesmo tempo que revela sua essência, evidencia as relações que
estabelecem entre si.
Diante desse contexto, parece correto pensar que, na contemporaneidade, para delimitar
um conceito de joia dentre os muitos possíveis, é preciso ter claro que elementos compõem
determinados agenciamentos, de maneira que se possa afirmar: “é uma joia porque...”. Esse

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conceito será construído com base em suas relações que, constantemente transformadas,
permitem sua constante ressignificação. Sob essa circunstância, as relações se tornam mais
significantes que as características do objeto em si. Um rizoma é feito de dimensões e dire-
ções movediças, é circulação de estados e, por isso, é capaz de contemplar a condição da
produção joalheira na contemporaneidade, permitindo compreender as múltiplas relações aí
engendradas.

Thinking contemporary jewelry with Deleuze and Guattari

Abstract – Jewels are artefacts that follow the human trajectory in all societies since ancient times. As products
of the material culture, the meanings of jewellery are related to the construction of the individual and social
thought that reflect the history and culture. This paper reflects about the jewellery as an object and discuss about
the diversity of its formal and conceptual possibilities in contemporary society. The methodology is based on the
historical investigation of the jewellery from the middle of the 20th century and in the established relations
between fashion, design and art in the same period. Finally, the problem was analysed using the rhizome concept
developed by Deleuze and Guattari that made possible to demonstrate and understand the possibilities of con-
nection in the fields.
Keywords: jewel, jewellery, art, design, fashion.

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