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Universidade do Sul de Santa Catarina

História da Filosofia III


Disciplina na modalidade a distância

Palhoça
UnisulVirtual
2011
Créditos
Universidade do Sul de Santa Catarina | Campus UnisulVirtual | Educação Superior a Distância
Avenida dos Lagos, 41 – Cidade Universitária Pedra Branca | Palhoça – SC | 88137-900 | Fone/fax: (48) 3279-1242 e 3279-1271 | E-mail: [email protected] | Site: www.unisul.br/unisulvirtual
Reitor Coordenadores Graduação Marilene de Fátima Capeleto Patrícia de Souza Amorim Karine Augusta Zanoni
Ailton Nazareno Soares Aloísio José Rodrigues Patricia A. Pereira de Carvalho Poliana Simao Marcia Luz de Oliveira
Ana Luísa Mülbert Paulo Lisboa Cordeiro Schenon Souza Preto Mayara Pereira Rosa
Vice-Reitor Ana Paula R.Pacheco Paulo Mauricio Silveira Bubalo Luciana Tomadão Borguetti
Sebastião Salésio Heerdt Artur Beck Neto Rosângela Mara Siegel Gerência de Desenho e
Bernardino José da Silva Simone Torres de Oliveira Desenvolvimento de Materiais Assuntos Jurídicos
Chefe de Gabinete da Reitoria Charles Odair Cesconetto da Silva Vanessa Pereira Santos Metzker Didáticos Bruno Lucion Roso
Willian Corrêa Máximo Dilsa Mondardo Vanilda Liordina Heerdt Márcia Loch (Gerente) Sheila Cristina Martins
Diva Marília Flemming Marketing Estratégico
Pró-Reitor de Ensino e Horácio Dutra Mello Gestão Documental Desenho Educacional
Lamuniê Souza (Coord.) Cristina Klipp de Oliveira (Coord. Grad./DAD) Rafael Bavaresco Bongiolo
Pró-Reitor de Pesquisa, Itamar Pedro Bevilaqua
Pós-Graduação e Inovação Jairo Afonso Henkes Clair Maria Cardoso Roseli A. Rocha Moterle (Coord. Pós/Ext.) Portal e Comunicação
Daniel Lucas de Medeiros Aline Cassol Daga Catia Melissa Silveira Rodrigues
Mauri Luiz Heerdt Janaína Baeta Neves
Aline Pimentel
Jorge Alexandre Nogared Cardoso Jaliza Thizon de Bona Andreia Drewes
Pró-Reitora de Administração José Carlos da Silva Junior Guilherme Henrique Koerich Carmelita Schulze Luiz Felipe Buchmann Figueiredo
Acadêmica José Gabriel da Silva Josiane Leal Daniela Siqueira de Menezes Rafael Pessi
Marília Locks Fernandes Delma Cristiane Morari
Miriam de Fátima Bora Rosa José Humberto Dias de Toledo
Eliete de Oliveira Costa
Joseane Borges de Miranda Gerência de Produção
Pró-Reitor de Desenvolvimento Luiz G. Buchmann Figueiredo Gerência Administrativa e Eloísa Machado Seemann Arthur Emmanuel F. Silveira (Gerente)
e Inovação Institucional Marciel Evangelista Catâneo Financeira Flavia Lumi Matuzawa Francini Ferreira Dias
Renato André Luz (Gerente) Geovania Japiassu Martins
Valter Alves Schmitz Neto Maria Cristina Schweitzer Veit
Ana Luise Wehrle Isabel Zoldan da Veiga Rambo Design Visual
Maria da Graça Poyer
Diretora do Campus Mauro Faccioni Filho Anderson Zandré Prudêncio João Marcos de Souza Alves Pedro Paulo Alves Teixeira (Coord.)
Universitário de Tubarão Moacir Fogaça Daniel Contessa Lisboa Leandro Romanó Bamberg Alberto Regis Elias
Milene Pacheco Kindermann Nélio Herzmann Naiara Jeremias da Rocha Lygia Pereira Alex Sandro Xavier
Onei Tadeu Dutra Rafael Bourdot Back Lis Airê Fogolari Anne Cristyne Pereira
Diretor do Campus Universitário Patrícia Fontanella Thais Helena Bonetti Luiz Henrique Milani Queriquelli Cristiano Neri Gonçalves Ribeiro
da Grande Florianópolis Roberto Iunskovski Valmir Venício Inácio Marcelo Tavares de Souza Campos Daiana Ferreira Cassanego
Hércules Nunes de Araújo Rose Clér Estivalete Beche Mariana Aparecida dos Santos Davi Pieper
Gerência de Ensino, Pesquisa e Marina Melhado Gomes da Silva Diogo Rafael da Silva
Secretária-Geral de Ensino Vice-Coordenadores Graduação Extensão Marina Cabeda Egger Moellwald Edison Rodrigo Valim
Adriana Santos Rammê Janaína Baeta Neves (Gerente) Mirian Elizabet Hahmeyer Collares Elpo Fernanda Fernandes
Solange Antunes de Souza Aracelli Araldi Pâmella Rocha Flores da Silva
Bernardino José da Silva Frederico Trilha
Diretora do Campus Catia Melissa Silveira Rodrigues Rafael da Cunha Lara Jordana Paula Schulka
Elaboração de Projeto Roberta de Fátima Martins Marcelo Neri da Silva
Universitário UnisulVirtual Horácio Dutra Mello Carolina Hoeller da Silva Boing
Jucimara Roesler Jardel Mendes Vieira Roseli Aparecida Rocha Moterle Nelson Rosa
Vanderlei Brasil Sabrina Bleicher Noemia Souza Mesquita
Joel Irineu Lohn Francielle Arruda Rampelotte
Equipe UnisulVirtual José Carlos Noronha de Oliveira Verônica Ribas Cúrcio Oberdan Porto Leal Piantino
José Gabriel da Silva Reconhecimento de Curso
José Humberto Dias de Toledo Acessibilidade Multimídia
Diretor Adjunto Maria de Fátima Martins Vanessa de Andrade Manoel (Coord.) Sérgio Giron (Coord.)
Moacir Heerdt Luciana Manfroi
Rogério Santos da Costa Extensão Letícia Regiane Da Silva Tobal Dandara Lemos Reynaldo
Secretaria Executiva e Cerimonial Rosa Beatriz Madruga Pinheiro Maria Cristina Veit (Coord.) Mariella Gloria Rodrigues Cleber Magri
Jackson Schuelter Wiggers (Coord.) Sergio Sell Vanesa Montagna Fernando Gustav Soares Lima
Marcelo Fraiberg Machado Pesquisa Josué Lange
Tatiana Lee Marques Daniela E. M. Will (Coord. PUIP, PUIC, PIBIC) Avaliação da aprendizagem
Tenille Catarina Valnei Carlos Denardin Claudia Gabriela Dreher Conferência (e-OLA)
Mauro Faccioni Filho (Coord. Nuvem)
Assessoria de Assuntos Sâmia Mônica Fortunato (Adjunta) Jaqueline Cardozo Polla Carla Fabiana Feltrin Raimundo (Coord.)
Internacionais Pós-Graduação Nágila Cristina Hinckel Bruno Augusto Zunino
Coordenadores Pós-Graduação Anelise Leal Vieira Cubas (Coord.) Sabrina Paula Soares Scaranto
Murilo Matos Mendonça Aloísio José Rodrigues Gabriel Barbosa
Anelise Leal Vieira Cubas Thayanny Aparecida B. da Conceição
Assessoria de Relação com Poder Biblioteca Produção Industrial
Público e Forças Armadas Bernardino José da Silva Salete Cecília e Souza (Coord.) Gerência de Logística Marcelo Bittencourt (Coord.)
Adenir Siqueira Viana Carmen Maria Cipriani Pandini Paula Sanhudo da Silva Jeferson Cassiano A. da Costa (Gerente)
Walter Félix Cardoso Junior Daniela Ernani Monteiro Will Marília Ignacio de Espíndola Gerência Serviço de Atenção
Giovani de Paula Renan Felipe Cascaes Logísitca de Materiais Integral ao Acadêmico
Assessoria DAD - Disciplinas a Karla Leonora Dayse Nunes Carlos Eduardo D. da Silva (Coord.) Maria Isabel Aragon (Gerente)
Distância Letícia Cristina Bizarro Barbosa Gestão Docente e Discente Abraao do Nascimento Germano Ana Paula Batista Detóni
Patrícia da Silva Meneghel (Coord.) Luiz Otávio Botelho Lento Enzo de Oliveira Moreira (Coord.) Bruna Maciel André Luiz Portes
Carlos Alberto Areias Roberto Iunskovski Fernando Sardão da Silva Carolina Dias Damasceno
Cláudia Berh V. da Silva Rodrigo Nunes Lunardelli Capacitação e Assessoria ao Fylippy Margino dos Santos Cleide Inácio Goulart Seeman
Conceição Aparecida Kindermann Rogério Santos da Costa Docente Guilherme Lentz Denise Fernandes
Luiz Fernando Meneghel Thiago Coelho Soares Alessandra de Oliveira (Assessoria) Marlon Eliseu Pereira Francielle Fernandes
Renata Souza de A. Subtil Vera Rejane Niedersberg Schuhmacher Adriana Silveira Pablo Varela da Silveira Holdrin Milet Brandão
Alexandre Wagner da Rocha Rubens Amorim
Assessoria de Inovação e Jenniffer Camargo
Gerência Administração Elaine Cristiane Surian (Capacitação) Yslann David Melo Cordeiro Jessica da Silva Bruchado
Qualidade de EAD Acadêmica Elizete De Marco
Denia Falcão de Bittencourt (Coord.) Jonatas Collaço de Souza
Angelita Marçal Flores (Gerente) Fabiana Pereira Avaliações Presenciais
Andrea Ouriques Balbinot Juliana Cardoso da Silva
Fernanda Farias Iris de Souza Barros Graciele M. Lindenmayr (Coord.)
Carmen Maria Cipriani Pandini Juliana Elen Tizian
Juliana Cardoso Esmeraldino Ana Paula de Andrade
Secretaria de Ensino a Distância Kamilla Rosa
Maria Lina Moratelli Prado Angelica Cristina Gollo
Assessoria de Tecnologia Samara Josten Flores (Secretária de Ensino) Simone Zigunovas
Mariana Souza
Osmar de Oliveira Braz Júnior (Coord.) Cristilaine Medeiros Marilene Fátima Capeleto
Giane dos Passos (Secretária Acadêmica) Daiana Cristina Bortolotti
Felipe Fernandes Adenir Soares Júnior Tutoria e Suporte Maurício dos Santos Augusto
Felipe Jacson de Freitas Delano Pinheiro Gomes Maycon de Sousa Candido
Alessandro Alves da Silva Anderson da Silveira (Núcleo Comunicação) Edson Martins Rosa Junior
Jefferson Amorin Oliveira Andréa Luci Mandira Claudia N. Nascimento (Núcleo Norte- Monique Napoli Ribeiro
Phelipe Luiz Winter da Silva Fernando Steimbach Priscilla Geovana Pagani
Cristina Mara Schauffert Nordeste)
Fernando Oliveira Santos
Priscila da Silva Djeime Sammer Bortolotti Maria Eugênia F. Celeghin (Núcleo Pólos) Sabrina Mari Kawano Gonçalves
Rodrigo Battistotti Pimpão Lisdeise Nunes Felipe Scheila Cristina Martins
Douglas Silveira Andreza Talles Cascais Marcelo Ramos
Tamara Bruna Ferreira da Silva Evilym Melo Livramento Daniela Cassol Peres Taize Muller
Marcio Ventura Tatiane Crestani Trentin
Fabiano Silva Michels Débora Cristina Silveira Osni Jose Seidler Junior
Coordenação Cursos Fabricio Botelho Espíndola Ednéia Araujo Alberto (Núcleo Sudeste) Thais Bortolotti
Coordenadores de UNA Felipe Wronski Henrique Francine Cardoso da Silva
Diva Marília Flemming Gisele Terezinha Cardoso Ferreira Janaina Conceição (Núcleo Sul) Gerência de Marketing
Marciel Evangelista Catâneo Indyanara Ramos Joice de Castro Peres Eliza B. Dallanhol Locks (Gerente)
Roberto Iunskovski Janaina Conceição Karla F. Wisniewski Desengrini
Jorge Luiz Vilhar Malaquias Kelin Buss Relacionamento com o Mercado
Auxiliares de Coordenação Juliana Broering Martins Liana Ferreira Alvaro José Souto
Ana Denise Goularte de Souza Luana Borges da Silva Luiz Antônio Pires
Camile Martinelli Silveira Luana Tarsila Hellmann Maria Aparecida Teixeira Relacionamento com Polos
Fabiana Lange Patricio Luíza Koing Zumblick Mayara de Oliveira Bastos Presenciais
Tânia Regina Goularte Waltemann Maria José Rossetti Michael Mattar Alex Fabiano Wehrle (Coord.)
Jeferson Pandolfo
Cesar Augusto Jungblut
Lucésia Pereira
Dante Carvalho Targa

História da Filosofia III


Livro didático

Revisão e atualização de conteúdo


Dante Carvalho Targa

Design instrucional
Luiz Henrique Queriquelli
Sabrina Bleicher

3ª edição

Palhoça
UnisulVirtual
2011
Copyright © UnisulVirtual 2011
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.

Edição – Livro Didático


Professores Conteudistas
Cesar Augusto Jungblut
Lucésia Pereira
Dante Carvalho Targa

Revisão e atualização de conteúdo


Dante Carvalho Targa

Design Instrucional
Luiz Henrique Queriquelli
Sabrina Bleicher (3ª Edição)

Projeto Gráfico e Capa


Equipe UnisulVirtual

Diagramação
Oberdan Piantino

Revisão
Contextuar

ISBN
978-85-7817-351-7

109
J92 Jungblut, Cesar Augusto
História da filosofia III : livro didático / Cesar Augusto Jungblut, Lucésia
Pereira, Dante Carvalho Targa ; revisão e atualização de conteúdo Dante
Carvalho Targa ; design instrucional Luiz Henrique Queriquelli, Sabrina
Bleicher. – 3. ed. – Palhoça : UnisulVirtual, 2011.
220 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7817-351-7

1. Filosofia – História. 2. Renascença. 3. Humanismo. 4. Filosofia


moderna. 5. Racionalismo. I. Pereira, Lucésia. II. Targa, Dante Carvalho.
III. Queriquelli, Luiz Henrique. IV. Bleicher, Sabrina. V. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul


Sumário

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Palavras dos professores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Plano de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
UNIDADE 1 - O Renascimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
UNIDADE 2 - O Humanismo e a releitura da cultura clássica. . . . . . . . . . . . . 41
UNIDADE 3 - O prelúdio da filosofia moderna – A Reforma
Protestante e a Revolução Científica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
UNIDADE 4 - Descartes e o Racionalismo Moderno. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

Para concluir o estudo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203


Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
Sobre os professores conteudistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
Respostas e comentários das atividades de autoavaliação. . . . . . . . . . . . . . 215
Biblioteca Virtual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Apresentação

Este livro didático corresponde à disciplina


História da Filosofia III.

O material foi elaborado visando a uma aprendizagem


autônoma e aborda conteúdos especialmente selecionados e
relacionados à sua área de formação. Ao adotar uma linguagem
didática e dialógica, objetivamos facilitar seu estudo a distância,
proporcionando condições favoráveis às múltiplas interações e a
um aprendizado contextualizado e eficaz.

Lembre-se que sua caminhada, nesta disciplina, será


acompanhada e monitorada constantemente pelo Sistema
Tutorial da UnisulVirtual, por isso a “distância” fica
caracterizada somente na modalidade de ensino que você optou
para sua formação, pois na relação de aprendizagem professores e
instituição estarão sempre conectados com você.

Então, sempre que sentir necessidade entre em contato; você tem


à disposição diversas ferramentas e canais de acesso tais como:
telefone, e-mail e o Espaço Unisul Virtual de Aprendizagem,
que é o canal mais recomendado, pois tudo o que for enviado e
recebido fica registrado para seu maior controle e comodidade.
Nossa equipe técnica e pedagógica terá o maior prazer em lhe
atender, pois sua aprendizagem é o nosso principal objetivo.

Bom estudo e sucesso!


Equipe UnisulVirtual.

7
Palavras dos professores

Caro(a) aluno(a),

Seja bem-vindo(a) à disciplina História da Filosofia III!

Com este livro didático, você vai iniciar o estudo da Filosofia


Moderna. O conteúdo aqui proposto inicia com as discussões
dos primeiros humanistas e culmina no século XVII com o
surgimento do sujeito do conhecimento. São praticamente
trezentos anos de história situados num período de intensa
fermentação social e cultural.

Para a grande maioria, a filosofia moderna define um


conjunto de saberes que foi desenvolvido na Europa durante o
século XVII, especialmente a partir de René Descartes. Nesse
caso, o Renascimento (ocorrido entre os séculos XIV, XV e
XVI) teria sido um período de transição entre o pensamento
medieval e o moderno.

Ocorre que pesquisas recentes têm se oposto a essa maneira


de compreender o Renascimento, ou seja, de vê-lo como um
período preparatório para a instalação da filosofia moderna.
A justificativa é de que nele se produziu um conhecimento
próprio a partir de novas formulações, e que estas
contribuíram para o surgimento do que se compreende por
filosofia moderna.

Outro argumento pode ser acrescido a essa defesa, pois muitas


das questões características do pensamento moderno, como a
separação entre fé e razão, a valorização da experiência e uma
nova compreensão da política, já haviam sido abordadas, de
alguma forma, na Idade Média e no próprio Renascimento.
Essas são posições que adotamos nesta proposta, mas, esteja
ciente de que isso não significa que elas sejam as únicas, nem
tampouco definitivas. A história, seja da filosofia, da arte ou
de qualquer outro tema, nunca é um conhecimento acabado.
Ela está sempre em constante elaboração, pois o passado não
é algo dado, mas uma construção discursiva que parte sempre
do presente.

Em virtude disso, e para organizar as discussões dentro dos


limites deste trabalho, foi necessário efetuar alguns recortes,
priorizando certos assuntos em detrimento da abordagem
de outros. Sugerimos que você se mantenha numa constante
condição de aprendiz, procurando com autonomia ampliar seu
conhecimento acerca desta vasta área do conhecimento, que
é a História da Filosofia. Para auxiliá-lo (a), sugerimos vários
materiais complementares ao longo do texto.

A partir desta contextualização do cenário intelectual


que marca o início da filosofia moderna, na unidade final
adentramos com profundidade no pensamento de René
Descartes em suas Meditações. Estudando detidamente a
argumentação filosófica desse autor, você compreenderá as
bases do Racionalismo moderno.

Por fim, você conhecerá também a posição de outros filósofos


que sucederam Descartes, sendo considerados grandes expoentes
da corrente racionalista no século XVII. São eles: Malebranche,
Spinoza e Leibniz.

Bons estudos e uma boa aprendizagem!


Professores Cesar Augusto Jungblut,
Lucésia Pereira e Dante Targa.
Plano de estudo

O plano de estudos visa a orientá-lo no desenvolvimento da


disciplina. Ele possui elementos que o ajudarão a conhecer o
contexto da disciplina e a organizar o seu tempo de estudos.

O processo de ensino e aprendizagem na UnisulVirtual leva


em conta instrumentos que se articulam e se complementam,
portanto, a construção de competências se dá sobre a
articulação de metodologias e por meio das diversas formas
de ação/mediação.

São elementos desse processo:

„„ o livro didático;

„„ o Espaço UnisulVirtual de Aprendizagem (EVA);

„„ as atividades de avaliação (a distância, presenciais e


de autoavaliação);

„„ o Sistema Tutorial.

Ementa
História da Filosofia Moderna. Do Renascimento ao século
XVII. Projeto de Prática da Disciplina.
Universidade do Sul de Santa Catarina

Objetivos

Geral:
Discutir o contexto do pensamento humanista/renascentista,
relacionando-o às transformações ocorridas a partir do século
XIV, as quais culminaram com o surgimento do sujeito do
conhecimento no século XVII.

Específicos:
„„ Relacionar as características sociais, políticas e
econômicas do Renascimento.

„„ Identificar as diferentes formas de compreensão do


pensamento antigo, feitas pelos humanistas.

„„ Verificar como a produção cultural refletiu os novos


valores do homem renascentista.

„„ Situar a Reforma Protestante e a revolução científica


no conjunto de transformações relacionadas ao
Renascimento.

„„ Compreender a argumentação filosófica de René


Descartes nas Meditações Metafísicas.

„„ Conhecer as ideias de outros racionalistas modernos,


como Malebranche, Spinoza e Leibniz.

Carga Horária
A carga horária total da disciplina é 60 horas-aula.

12
História da Filosofia III

Conteúdo programático/objetivos
Veja, a seguir, as unidades que compõem o livro didático desta
disciplina e os seus respectivos objetivos. Estes se referem aos
resultados que você deverá alcançar ao final de uma etapa de
estudo. Os objetivos de cada unidade definem o conjunto de
conhecimentos que você deverá possuir para o desenvolvimento
de habilidades e competências necessárias à sua formação.

Unidades de estudo: 4

Unidade 1 – O Renascimento
Nesta unidade, vamos situar historicamente o Renascimento
e o Humanismo. Você verá que, neste momento, aparecem os
primeiros sinais de um processo de racionalização conhecido
como Modernidade e que implicou numa série de eventos que
romperam lentamente com a visão de mundo medieval.

Unidade 2 – O Humanismo e a releitura da cultura clássica


Esta nova etapa de estudos discutirá o papel dos humanistas e de
suas formulações nas propostas filosóficas do Renascimento do
século XVI. Você estudará também a influência do pensamento
pagão na visão do mundo renascentista e as polêmicas entre
aristotélicos e platonistas no contexto das relações entre o
Humanismo e a retomada da filosofia clássica. Verá também
como a filosofia passa a sofrer sensíveis transformações por meio
das ideias políticas de Maquiavel e do ceticismo de Montaigne.

Unidade 3 – O prelúdio da filosofia moderna – A Reforma


Protestante e a Revolução Científica
Nesta etapa de estudos você estudará a Reforma Protestante
como um processo de profunda transformação na concepção
religiosa e na estrutura social da Idade Média. A cisão na
unidade da instituição cristã, estimulada pelas críticas de
Martinho Lutero à igreja católica, será um dos principais

13
Universidade do Sul de Santa Catarina

elementos da ruptura entre o pensamento medieval e a


modernidade. Esta unidade discute também a revolução
científica iniciada pela proposição da teoria heliocêntrica,
por Copérnico e Galileu.

Unidade 4 – Descartes e o Racionalismo Moderno


Nesta última unidade você se aprofundará na leitura e reflexão
sobre a filosofia de René Descartes a partir das Meditações
Metafísicas, texto considerado como o marco inicial da
filosofia moderna. Você estudará também as ideias de outros
filósofos racionalistas como Spinoza e Leibniz, analisando o
seu posicionamento em relação à filosofia cartesiana.

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História da Filosofia III

Agenda de atividades/Cronograma

„„ Verifique com atenção o EVA, organize-se para acessar


periodicamente a sala da disciplina. O sucesso nos seus
estudos depende da priorização do tempo para a leitura,
da realização de análises e sínteses do conteúdo e da
interação com os seus colegas e professor.

„„ Não perca os prazos das atividades. Registre no espaço


a seguir as datas com base no cronograma da disciplina
disponibilizado no EVA.

„„ Use o quadro para agendar e programar as atividades


relativas ao desenvolvimento da disciplina.

Atividades obrigatórias

Demais atividades (registro pessoal)

15
1
UNIDADE 1

O Renascimento
Cesar Augusto Jungblut e Lucésia Pereira

Objetivos de aprendizagem
„„ Estudar as condições históricas do Renascimento.
„„ Relacionar o Humanismo e o Renascimento.
„„ Entender aspectos da vida intelectual
no Renascimento.

Seções de estudo
Seção 1 Condições históricas do Renascimento
Seção 2 Arte e vida intelectual no Renascimento
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo

De um ponto de vista histórico, o período renascentista


tradicionalmente é tido como fundador da sociedade moderna,
ainda que não corresponda plenamente a ela. O Humanismo
e o Renascimento se situam num período em que aparecem os
primeiros sinais de um processo de racionalização na sociedade.
Esse período, mais tarde, se estabelecerá como o Iluminismo,
no século XVIII, e redundará em determinantes mudanças no
pensamento humano, envolvendo a cultura, sociedade e economia.
Em linhas gerais, o conjunto dessas transformações, desde o
Renascimento ao Iluminismo é conhecido como Modernidade.

Mesmo na antiguidade, o uso do termo “moderno” já servia


para designar aquilo que era contemporâneo à época e que
podia ser diferenciado do que viera antes. Porém, a novidade
é que, por volta do século XVII, a este sentido comum se
agrega a ideia da superioridade do novo, diante de tudo que era
tradicional ou antigo.

Além desse sentido de progresso e ruptura, outra mudança


característica da modernidade consiste na valorização do
indivíduo e do seu potencial de conhecer, em oposição ao saber
das instituições religiosas e de outras formas de autoridade.

Para entender a formação do pensamento moderno é


imprescindível conhecer as mudanças estruturais que se
processaram no pensamento filosófico, na economia, nas
relações sociais e até mesmo nos avanços técnicos que estiveram
associados a muitas dessas mudanças.

São esses alguns dos assuntos que você vai conhecer nas
páginas deste livro. Tais temas, além do seu valor intrínseco,
são preparatórios para que você desenvolva uma compreensão
abrangente da mentalidade, ou, do Espírito Renascentista que
fundamenta as grandes transformações do pensamento, as quais
serão responsáveis pelo início da filosofia moderna e da própria
modernidade enquanto período histórico.

Vamos a eles! Bons estudos!

18
História da Filosofia III

Seção 1 – Condições históricas do


Renascimento e Humanismo
O termo “Renascimento” surge apenas no século XIX, ou seja,
a nomenclatura dada é posterior ao período a que se refere. Isso
ocorreu a partir da publicação da obra do historiador alemão
Jacob Burckhardt, intitulada A cultura da renascença na Itália
(1860). Na perspectiva de Burkhardt, o Renascimento seria
definido como um fenômeno surgido na Itália, que se opunha
ao espírito medieval em função de características como o
paganismo, a autonomia do indivíduo e uma maior flexibilidade e
questionamento perante às autoridades religiosas.

Mais tarde, a tese de Burkhardt foi questionada, sobretudo


por aqueles que defendiam que muitos dos aspectos do mundo
medieval foram continuados na civilização do Renascimento.
O recorte cronológico proposto por Burkhardt para delimitar
o Renascimento procurou circunscrever o período dentro de
algumas tendências, mostrando, por exemplo, que, do ponto de
vista do pensamento elaborado, as preocupações no século XV
estavam mais voltadas ao homem e que apenas no século seguinte
acrescentou-se a elas um maior interesse pela natureza.

Sendo assim, e em resumo, pode-se dizer que há propriamente


consenso em determinar que o Renascimento foi um movimento
surgido na Itália e de lá se espalhou para outros locais da Europa,
alcançando matizes próprios em cada um deles.

Mas por que o Renascimento surgiu na Itália?

Primeiramente, cabe destacar que a Itália, como a conhecemos


hoje – uma nação unificada –, é criação do século XIX. No
final da Idade Média, a região era composta por várias cidades,
algumas delas economicamente prósperas, como Gênova e
Veneza, as quais comandaram o comércio na Europa até o
século XVI.

Além disso, havia sido ali o centro do Império Romano e,


portanto, a região possuía muitos resquícios da tradição clássica
(documentos, livros, monumentos, obras de arte). Em função

Unidade 1 19
Universidade do Sul de Santa Catarina

dessa estrutura diferenciada, seja pela localização, seja pela


presença mais próxima do legado antigo, essas cidades tinham
uma autonomia relativa no que concernia à igreja e também ao
restante da Europa feudal.

Sendo a Itália o centro irradiador do Renascentismo, comumente


distinguem-se três fases históricas desse movimento, que
ficaram conhecidas a partir dos termos italianos. São elas,
respectivamente:

„„ trecento (século XIV);

„„ quatrocento (século XV); e

„„ quinquecento (século XVI).

Também chamada de Pré-Renascimento, a época do Trecento


ainda é fortemente marcada pelos elementos da Idade Média,
tais como a filosofia escolástica e a perspectiva marcadamente
teocentrista imposta pela igreja. Mas, além da filosofia e da
religião, outros campos da produção cultural começaram a
mostrar e a refletir algum interesse nos aspectos relacionados
ao homem. Na economia, por exemplo, aumenta a ênfase no
livre comércio e na necessidade do desenvolvimento dos meios
de produção; prenunciando-se aí as bases do capitalismo e o
rompimento com o sistema feudal.

Desde o início do século XIV, a fome, doenças como a


peste negra, guerras e rebeliões de servos denunciavam a
transformação dentro do sistema feudal. A Guerra dos Cem
Anos, envolvendo a Inglaterra e a França (que entre combates
e tréguas durou mais de um século: 1337 - 1453), acabou
vitimando um grande número de pessoas e representou mais um
golpe sobre a estrutura medieval.

Se você desejar saber mais sobre a Guerra dos Cem


Anos, pesquise nos seguintes livros:
FRANCO Jr, Hilário. Idade Média: nascimento do
ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1998.
LEGOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval.
Lisboa: Editorial Estampa, 1983.

20
História da Filosofia III

Contudo, essa crise desenrolada no século XIV foi desaparecendo


no período seguinte (Quatrocento), quando ocorreu uma
recuperação do crescimento populacional, agrícola e comercial.
Um fator a destacar no conjunto de mudanças estruturais
do Renascimento foi a expansão ultramarina. As grandes
navegações trouxeram consigo o alargamento dos horizontes
geográficos e intelectuais do homem europeu, pondo-o (ainda
que com profundos choques de ambos os lados) em contato com
povos de culturas diferentes.

As viagens oceânicas só foram possíveis graças a


invenções como o astrolábio, a bússola e o
aprimoramento da cartografia. Tais inovações apontam
para a importância do desenvolvimento da técnica
como marca do início da modernidade.

A expansão ultramarina teve como pano de fundo


a necessidade de conseguir um caminho alternativo
para chegar às Índias, pois quaisquer produtos vindos
dessa região (as famosas especiarias) só poderiam
ser adquiridos por meio do comércio com Veneza
ou Gênova, as quais detinham o monopólio desses
produtos por causa do fácil acesso aos mercados
orientais pelo Mar Mediterrâneo.

Além disso, com a tomada de Constantinopla pelos


árabes em 1453, a Europa perdera uma parte das rotas
comerciais que a ligavam à Ásia, ficando sem um
importante porto de comércio entre o Mar Mediterrâneo Figura 1.1 - Astrolábio de marinheiro
Fonte: Instituto Argentino De
e o Mar Negro. Acirrava-se, assim, a necessidade de Radioastronomia (IAR), [2008?].
ampliar o número de rotas conhecidas.

Você sabia?
A tomada da importante cidade de Constantinopla,
capital da Cristandade Oriental, sede do Império
Bizantino, ocorrida nos dias 28 e 29 de maio de 1453,
por obra do sultão turco-otomano Maomé II, foi um
dos importantes acontecimentos do início da história
moderna. Além de afugentar o cristianismo da Ásia
Menor, esse evento forçou os navegadores europeus
a buscarem outro caminho para chegar às Índias,
levando-os a enfrentar o Oceano Atlântico.

Unidade 1 21
Universidade do Sul de Santa Catarina

Figura 1.2 - O Cerco de Constantinopla (1453)


Fonte: Famous Historical Events [2010?].

Outra significativa contribuição à circulação do conhecimento


na Renascença foi a invenção dos caracteres móveis de impressão
pelo alemão Johann Gutenberg, a quem coube a finalização de
um processo que vinha sendo desenvolvido também por outros
indivíduos. Com a materialização das letras em metal, isto é, os
tipos móveis usados para compor uma página matriz que poderia
ser reproduzida indefinidamente por meio de uma prensa, a
reprodução de textos converteu-se em um processo muito mais
rápido, eficiente e seguro; pois reduzia a possibilidade de erros,
constantemente presentes nas cópias manuscritas. Observe que,
embora as técnicas de impressão fossem usadas na China desde
o século VIII, somente por volta de 1430 iriam adentrar na
Europa. Isso foi possível graças à explosão intelectual aliada ao
desenvolvimento da metalurgia e à fabricação de papel.

Gutenberg produziu a primeira bíblia impressa em latim,


tornando-a acessível pela primeira vez a um grande número
de pessoas. Antes disso, a posse do texto escrito constituía um
privilégio de poucos, uma vez que as cópias eram escassas, com
reprodução feita à mão. Esse pode ser considerado um feito
revolucionário, pois a confecção rápida e relativamente pouco
custosa de cópias de livros democratizou o acesso aos bens
culturais na Europa.

22
História da Filosofia III

Figura 1.3 - A invenção de Gutenberg


Fonte: Gutenberg press (2009).

Para saber mais sobre esse processo, pesquise na


seguinte fonte:
FRUGONI, Chiara. Invenções da idade média: óculos,
livros, bancos, botões e outras invenções geniais. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2007.

Em termos sociais, o crescimento gradativo da burguesia


comercial e das atividades econômicas estimulou a vida urbana,
que será típica da modernidade, diferentemente do predomínio
da vida rural do medievo. Com a ascensão da burguesia,
evidencia-se uma maior mobilidade social. A partir dos novos
valores, mais focados no desenvolvimento pessoal, o prestígio
do indivíduo passou a não recair somente em sua ascendência,
podendo agora ser alcançado como resultado do esforço e do
talento próprio.

Unidade 1 23
Universidade do Sul de Santa Catarina

Essa conjuntura, brevemente esboçada, resultará na formação


de um clima intelectual confiante na capacidade de realização
do ser humano, fazendo ecoar a afirmação feita há 2.500 anos
por Protágoras, de que “o homem é a medida de todas as
coisas”. Eis as bases da virada do pensamento humano para o
antropocentrismo, que marca o nascimento da modernidade.

Mas como fica a igreja nesse período?

Por mais renovador que pareça o contexto histórico do


Renascimento, isso não significou que a igreja tenha sido
suplantada e que a sociedade tenha se tornado laica. O que ocorre
é que, após um longo tempo, seu prestígio sofre um abalo à
medida que alguns dogmas e verdades passam a ser questionados.
Mesmo com todo o seu poder, essa instituição, sobrevivente do
mundo antigo, sofrerá um impacto resultante de nova forma de
encarar a vida, fato que será decisivo para a própria cristandade.
Tal conflito ficou conhecido como a Reforma Protestante.

O Renascimento constituiu, portanto, um dos mais


prósperos movimentos intelectuais do Ocidente,
mudando a imagem que o homem tinha de si
mesmo. Conforme Sevcenko (1994), o campo das
artes plásticas foi onde as realizações culturais do
novo pensamento ganharam corpo. O pensamento
da época passou a se nutrir cada vez mais da filosofia
grega, graças ao trabalho dos humanistas.

A escultura de Davi, de Michelangelo, conhecida


como o “gigante de Florença”, tornou-se um
dos símbolos de Florença, cidade italiana que
originalmente encomendou a obra.

Mas, se por um lado o mundo em que viveram os


humanistas foi marcado pela renovação das estruturas
sociais, políticas e culturais, é importante frisar que
Figura 1.4 - Davi (1504), de Michelangelo essas mudanças não aconteceram sem conflitos.
Fonte: GAYA (2005). Assim, juntamente com os notáveis avanços em vários
campos do conhecimento humano, o Renascimento
também pode ser visto como um tempo de
indefinição, de polêmicas e conflitos.
24
História da Filosofia III

E o Humanismo? Qual sua relação com o Renascimento?

A proposta histórica mais aceitável sobre essa relação é que


o Renascimento e o Humanismo são faces de um mesmo
movimento, surgido inicialmente na Itália. A partir dali, o
movimento esallhou-se por toda a Europa, assumindo diferentes
matizes em cada região. Contudo, mesmo com diferenças, esse
movimento teve como marca, em todos os locais, um maior ou
menor rompimento com a tradição medieval, esta que, por sua
vez, era religiosa e teocêntrica.

Do ponto de vista filosófico, o Renascimento poder ser


compreendido como o movimento amplo e gradual de
enfraquecimento do pensamento medieval em face de um novo
despertar para a cultura clássica. Já o Humanismo é justamente
a perspectiva filosófica que resulta desse movimento, marcada
então pela chamada “virada antropocêntrica”. Nas palavras de
Reale e Antiseri (2004, p. 4):

A marca que contradistingue o Humanismo foi,


portanto, um novo sentido do homem e de seus problemas,
novo sentido que encontrou expressões multiformes e
por vezes opostas, mas sempre ricas e frequentemente
muito originais, e que culminou nas celebrações teóricas
da “dignidade do homem” como ser “extraordinário” em
relação a toda ordem do mundo.

O Renascimento é essencialmente antropocêntrico,


mas isso não significa (ainda) o afastamento da
nascente filosofia moderna em relação a Deus e à
religião. Esse é um desenvolvimento cujas sementes
até podem ser vistas nas ideias dos primeiros filósofos
modernos, mas que apenas ganhará corpo no século
XIX com o pensamento positivista .

Nesse sentido, pensar o antropocentrismo renascentista como


“o homem no centro das atenções” significa principalmente
o surgimento de uma nova tônica envolvendo o ser humano
e o Sagrado. Ao contrário da ênfase medieval no homem

Unidade 1 25
Universidade do Sul de Santa Catarina

como pecador, necessitado da redenção por meio da religião, o


Humanismo renascentista vai enfatizar o homem enquanto filho
de Deus, criado à sua imagem e semelhança. Portanto, como
tendo algo divino dentro de si.

Essa presença do divino no homem, entretanto, não será


entendida apenas do ponto de vista da religião; mas também
como a própria razão, capaz de compreender as maravilhas
da criação divina.

Seção 2 – Arte e vida intelectual no Renascimento

A pintura tem seu fim comunicável a todas as gerações do


universo, porque seu fim é sujeito da virtude visiva, e não
passa pelo ouvido, ao sentido comum, do mesmo modo
que passa pelo ver. Esta, portanto, não tem necessidade
de intérprete de diversas línguas, como têm as letras, e
logo satisfez a espécie humana.

Leonardo da Vinci, em Tratado de Pintura.

Ainda que não tivesse uma política temporal firme, o papado


conseguiu manter seu prestígio até por volta de 1520, quando, por
meio da Reforma Protestante, o poder da igreja será fortemente
questionado. Entrementes, antes que a Reforma se instalasse
plenamente, a corte papal fez pesados investimentos para criar
um clima de requinte e sofisticação em torno de si. Entre outros
motivos para isso, estava a exaltação do poder terreno da igreja.

Foi nesse ambiente que a criação artística do Renascimento


ganhou enorme dinamismo, atraindo para a Itália, especialmente
para a cidade de Roma – sede do papado – artífices e artistas de
todas as especialidades e procedências. E à medida que poetas,
pintores e escultores se destacam pelos feitos notáveis que
realizam, seus serviços passam a ser cada vez mais requisitados.

26
História da Filosofia III

Figura 1.5 - Papa Paulo III, de Ticiano Vecellio (1543)


Fonte: Portrat... (2008).

Por volta do século XVI, a partir de um processo iniciado com os


primeiros humanistas, a prática da erudição e das artes liberais se
havia transformado em profissão, resultando na formação de uma
nova camada culta da sociedade. É nesse contexto que a atividade
artística passa a ser vista como atividade intelectual:

O artista deixou de ser um artífice entre artífices,


pronto a executar encomendas de sapatos, armários ou
pinturas, conforme o caso. Era agora um mestre dotado
de autonomia, não podendo alcançar fama e glória sem
explorar os mistérios da natureza e sondar as leis secretas
do universo. (GOMBRICH, 1993, p. 219).

Essa foi uma mudança crucial, tendo em vista que, durante


a Idade Média, independentemente da genialidade da obra
realizada, todo artista era visto como mero artesão.

Unidade 1 27
Universidade do Sul de Santa Catarina

Por essa razão, muitas das obras de arte que


antecedem o Renascimento permaneceram anônimas.
Aqui também é possível encontrar um paralelo
interessante entre o medievo e o nascimento da
Modernidade: Para os medievais, a figura do artista
representava tão somente o meio ou causa eficiente
para a realização de um processo mais importante,
a saber, a representação do divino por meio da arte.
Com a Renascença, por outro lado, o artista passará a
ser visto como um elemento central; com origem da
obra de arte e, por conseguinte, mostra da genialidade
humana em apreender e representar o mundo.

Colaborou para essa mudança o fato de muitos indivíduos


enriquecerem com o aumento do comércio na Europa, passando
a dispor de suas fortunas para investir também no mecenato.
Para os artistas, abria-se um novo leque de patrocínios,
Proteção às letras, artes e ciências,
bem como aos seus cultores,
determinando o fim da exclusividade da igreja. As famílias
dispensada por homens ricos e nobres e burguesas queriam expressar sua notabilidade e
amantes dessas artes. encomendavam uma variedade de obras de arte, incluindo seus
retratos no acervo de mestres famosos.

O indivíduo renascentista era, portanto, um indivíduo porque


se exteriorizava, e, nesse processo de exteriorização, veio a
conhecer a si próprio e a regozijar-se consigo mesmo. Assim,
autorealização e autofruição da personalidade transformaram-se
numa finalidade a ser perseguida pela vida afora.

É neste cenário que – diferentemente da Idade Média, em


que predominou a pintura de temas religiosos – os retratos
se tornarão um dos gêneros de pintura mais populares do
Renascimento. Nobres, homens de negócios, figuras políticas,
mulheres ricas serão representados com suas características
psicológicas, mostrando que a produção dos retratos caminha a
par e passo com o desenvolvimento da noção de individualidade.

28
História da Filosofia III

Figura 1.6 - Retrato de Magdalena Doni, de Rafael Sanzio (1506)


Fonte: Maddalena [19--?].
Figura 1.7 - Retrato de Lorenzo de Médici, Rafael Sanzio (1518)
Fonte: El duque... [19--?].

A curiosidade intelectual que foi típica do Renascimento


resulta também em uma ampla investigação do homem na sua
exterioridade, ou seja, enquanto elemento distinto na Criação.
Tratava-se então de compreender o ser humano sob diferentes
pontos de vista. Nesse sentido, a arte permanecerá em estreito
contato com outras áreas do conhecimento. Nasce a fisiologia
moderna, por exemplo, pela combinação entre o esforço dos
médicos e o interesse e curiosidade dos artistas em compreender a
estrutura do corpo humano.

Para esses indivíduos, o mundo passa a constituir uma realidade


a ser compreendida cientificamente, e não apenas admirada. É
estabelecida, assim, uma proximidade entre arte e ciência e isso
faz com que, em sua grande maioria, as realizações artísticas do
Renascimento despertem até hoje profunda admiração.

O desenvolvimento da arte, portanto, transmite uma imagem


significativa da efervescência cultural que caracteriza a
Renascença: em meio aos austeros costumes e valores morais do
mundo medieval surge um forte impulso de renovação, motivado

Unidade 1 29
Universidade do Sul de Santa Catarina

ao mesmo tempo pelo redescobrimento da antiguidade e pelo


contato com a nova ciência.

Nesse período, os artistas buscam distinção e se entregam a


iniciativas audaciosas, inovando e desenvolvendo características
que os destaquem no seu coletivo. Mesmo quando o objetivo
era representar temas bíblicos tradicionais, como “a expulsão do
paraíso”, isso acontecia a partir de um novo tratamento. Como
resultado, vemos que, nas mãos de muitos artistas, temas como
esses parecem meros pretextos para estudar a anatomia humana,
a flora e a fauna.

Um exemplo é o pintor Albert Dürer (1471-1528). Algumas de


suas obras mostram a influência de teorias matemáticas, tais
como a da proporção. Em certa oportunidade, Dürer descreveu
as intrincadas construções de régua e compasso que usou para
construir as figuras representadas na gravura a seguir.

Ao olharmos as obras do Renascimento hoje, não avaliamos


o desafio que a sua realização colocava aos artistas. Com o
aprofundamento das bases teóricas da produção artística,
ainda que a temática geral das obras permanecesse atrelada à
tradição, os artistas partiam para novas investigações. Cada
parte, seja de um quadro ou de uma obra arquitetônica,
era meticulosamente calculada e articulada. É importante
salientar que, de modo geral, o universo continuava a ser
visto como uma criação divina, mas essa ideia passou a
conviver com a noção de que a natureza era regida por
princípios universais e como tal podia ser conhecida. Tais
princípios ou “qualidades primárias” estavam ligados à
Figura 1.8 - A queda do homem, de
Albert Dürer (1504) regularidade matemática, como veremos mais adiante ao
Fonte: Dürer’s ‘Adam and Eve’ (2010). estudar o pensamento de Galileu.

Observe que essa posição muda a forma de se relacionar com o


conhecimento, a qual, antes, objetivava conhecer a essência das
coisas. Na perspectiva renascentista, o conhecimento das leis da
natureza deve servir para satisfazer as necessidades do homem, a
quem não basta agora a contemplação, mas o desvelamento dos
seus processos e a intervenção neles.

30
História da Filosofia III

Em relação à filosofia, a partir da retomada do platonismo,


destacadamente com a tradução dos Diálogos feita pelo humanista
Marsílio Ficino (1433-1499), o exercício matemático passou a ser
tido como um caminho ao mundo das ideias. Assim, fazer com
que uma obra se enquadrasse às leis matemáticas significava para
o artista dotá-la de espiritualidade.

Para compreender essa ênfase na ligação com a


matemática, entendida como sinal de perfeição e
simplicidade, é pertinente retomar as diferenças
entre o platonismo da Idade Média e a releitura
do platonismo e neoplatonismo realizada no
Renascimento. O primeiro, detinha-se na dialética para
a elevação espiritual, tal como se apresenta na Teologia
de Santo Agostinho e outros. Já no Renascimento,
características diversas da filosofia platônica serão
retomadas, como a noção de harmonia matemática do
mundo e da natureza com um sistema universal de leis.

Se, como afirmou o historiador E. H. Gombrich (1993), a


grande profusão de gênios na arte renascentista não pode ser
totalmente explicada, ela mostra, entretanto, que, além do ideal
de universalidade, a formação do artista exprimia também
a dimensão multidisciplinar que as diferentes atividades
humanas assumiam.

Talvez o personagem que mais ilustre o perfil do “gênio criador”


renascentista seja Leonardo da Vinci (1452-1519). Ela era
arquiteto, escultor, homem de ciência, inventor e desenhista.
Somava-se ao seu talento artístico uma curiosidade intelectual
que foi determinante na arte do seu tempo. Foi Da Vinci quem
lançou as bases da perspectiva e do desenho.

Ao contrário da arte bizantina medieval, cujas representações


gráficas eram predominantemente bidimensionais, a pintura
ganhava agora a noção de profundidade. Em termos
filosóficos, essa aquisição denota a capacidade de representar
objetivamente um objeto tridimensional em um plano por
meio da aplicação de relações e proporções matemáticas. Pela
prática do esboço, explorada a fundo por Da Vinci, o artista

Unidade 1 31
Universidade do Sul de Santa Catarina

agora começava a antecipar-se à simples percepção, buscando


no intelecto a forma mais adequada de representar a harmonia
da natureza. Eis o germe da noção filosófica de representação,
que será extremamente importante para o desenvolvimento da
filosofia moderna.

Figura 1.9 - Estudo de embriões, de Leonardo da Vinci (1510-1513)


Fonte: Enciclopédia (2011).

32
História da Filosofia III

Você sabia?

A introdução da perspectiva não ocorreu, contudo, de uma hora para


outra. Foi fruto, sim, de tentativas iniciadas com os primeiros mestres
da pintura, como Giotto di Bondonne (1267-1337), que, já no Trecento,
haviam introduzido e procurado naturalizar a representação.

Figura 1.10 - Entrada em Jerusalém, de Giotto (1304-06)


Fonte: The Entry Into Jerusalem [200-].

Figura 1.11 - O casamento da Virgem, de Rafael Sanzio, (1504)


Fonte: Biografias (2009).

Giotto foi o primeiro a criar uma ilusão de espaço em suas pinturas, com
paredes que pareciam estar se afastando do observador e entrando
em um “espaço” imaginário. Dois séculos mais tarde, a ilusão de
espaço parece definitivamente conquistada. Veja, no quadro de Rafael
(figura 1.11), como as figuras estão dispostas de modo esquemático e
proporcional, dando a perfeita ilusão de profundidade.

Unidade 1 33
Universidade do Sul de Santa Catarina

A partir de um rigorismo científico, Leonardo Da Vinci


tentava representar a natureza (inclusive a figura humana) o
mais fielmente possível, expressando assim sua convicção de
que a pintura era uma forma perfeita de conhecer os mistérios
do universo:

[...] a pintura é, para Leonardo, uma forma de


conhecimento, uma forma de investigar o mundo, de
descobrir suas harmonias secretas. Por isso, não se vê [o
artista] como um artesão a serviço de alguém, mas como
um condottiere do espírito. (ABRIL, 1971, p. 646).

O interesse em olhar analiticamente para tudo que o cercava


identifica as suas preocupações filosóficas. Ainda que não tenha
deixado um conjunto sistemático de estudos a este respeito, em
seu Tratado de Pintura, Leonardo antecipa a nova compreensão da
ciência. Ela seria moldada um século mais tarde na Revolução
Científica pela sua afirmação de que “a ciência é mais útil quando
seu fruto é mais comunicável e, ao contrário, menos útil quando é
menos comunicável.” (DA VINCI apud REALE e ANTISERI ,
2005, p. 127).

Leonardo era adepto da doutrina do pararelismo entre


o macrocosmo (o universo concebido geralmente em
termos de um grande organismo) e o microcosmo (o
mundo menor, o homem). Como centro da criação, o
homem passou a ser visto como um microcosmo que em
si reproduz a dinâmica do próprio cosmo.

Essa doutrina da correspondência era bastante antiga


e sobre ela havia diferentes concepções. Ferrater Mora
(2000) explica que ela se fez presente em todo o
Renascimento na reflexão de humanistas como Picco
della Mirandolla. Em Leonardo, a correspondência
não é vista como mítica e mágica, porque, para ele, a
natureza era dotada de uma ordem mecanicista, que
podia ser captada pelo saber e pela experiência, e deveria
ser rigorosamente demonstrada pela matemática.
Figura 1. 12 - Suposto autorretrato
de Leonardo (c. 1512)
Fonte: Alinari-Giraudon [200-].

34
História da Filosofia III

No desenho, Leonardo elaborava estudos para suas


pinturas, projetos arquitetônicos, esculturas; registrava
também aspectos da natureza e esboçava inventos
cuja execução só seria possível séculos mais tarde.
Em 1492, ele realizou o desenho conhecido como o
“homem vitruviano”. Pesquise em fontes devidamente
estabelecidas e elabore um texto dissertativo,
explicando a história relacionada à produção desse
desenho, bem como com quais ideias do Renascimento
ele se relaciona.

Unidade 1 35
Universidade do Sul de Santa Catarina

36
História da Filosofia III

Síntese

Você estudou, nesta unidade, que embora exista uma ampla


discussão teórica a respeito do Renascimento, há consenso em
determinar seu surgimento na Itália, alcançando em seguida
outros locais da Europa. Analisou também como as condições
de vida dos homens, das mulheres e o pensamento passaram por
mudanças estruturais nesse período.

Outro tema desta unidade foi a formação do artista que, nesse


momento, assume uma perspectiva multidisciplinar e passa a
expressar um caráter de universalidade. Junto a isso, você estudou
a mudança na forma de se relacionar com o conhecimento que,
na perspectiva renascentista, buscava entender as leis da natureza
e a satisfação das necessidades do homem.

Por fim, você estudou que, a partir da retomada do platonismo,


o exercício matemático passou a representar um caminho
ao mundo das ideias. Para o artista, enquadrar a obra a leis
matemáticas significava o mesmo que dotá-la de espiritualidade.

Unidade 1 37
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de autoavaliação

Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação. O


gabarito está disponível no final do livro didático. Mas, esforce-se para
resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará
promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1) O Renascimento foi um amplo movimento cultural que se iniciou


por volta de 1300, perdurando até o século XVI. Ao contrário do
teocentrismo medieval, a valorização das realizações do homem e das
experiências sensíveis aparece nesse contexto.
Com base nesses dados e nos estudos que realizou ao longo desta
unidade, explique como a arte expressou os ideais renascentistas.

38
História da Filosofia III

2) Faça uma pesquisa em livros, revistas ou outras fontes devidamente


estabelecidas e elabore um texto dissertativo, explicando porque
a Itália foi o berço do Renascimento. Acrescente, pelo menos, dois
exemplos à sua argumentação.

3) A partir dos estudos realizados nesta unidade, apresente dois sintomas


renascentistas da mudança da imagem do homem e do mundo que se
refletem concretamente nas obras de arte.

Unidade 1 39
Saiba mais
Para aprofundar seus estudos sobre o Renascimento, sugerimos a
seguinte leitura:

GARIN, Eugene (Org.). O homem renascentista. Lisboa:


Presença, 1991.

Nessa obra, renomados autores como Peter Burke, Tzvetan Todorov,


Eugene Garin, entre outros, enfocam o homem renascentista na sua
vivência política, religiosa, socioeconômica e cultural, traçando alguns
de seus principais perfis: o filósofo e o mago; o mercador e o banqueiro;
o artista; a mulher; os viajantes e os indígenas.
2
UNIDADE 2

O Humanismo e a releitura da
cultura clássica
Cesar Augusto Jungblut e Lucésia Pereira

Objetivos de aprendizagem
„„ Avaliar as perspectivas históricas sobre o humanismo.
„„ Estudar como ocorreu a apropriação da cultura antiga
pelos pensadores humanistas.
„„ Conhecer a influência da concepção mágica e
distinguir as diferentes leituras realizadas acerca de
Platão e Aristóteles.
„„ Conhecer aspectos da filosofia política de
Nicolau Maquiavel e a retomada do ceticismo no
pensamento moderno.

Seções de estudo
Seção 1 A visão histórica do Humanismo
Seção 2 Os humanistas e o saber antigo
Seção 3 A magia natural no Renascimento
Seção 4 As polêmicas entre aristotélicos e platônicos
Seção 5 A filosofia em transformação
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo

Para melhor entender a formação e o desenvolvimento do


pensamento Humanista, é necessário compreender, além do
próprio conceito, a visão histórica que se construiu ao longo do
tempo sobre esse movimento.

Nesta unidade, além de estudar esse assunto, você analisará


o interesse pelo conhecimento antigo e verá de que modo
os primeiros expoentes do Humanismo foram influenciados
e se posicionaram frente a esse conhecimento. Verá que, na
recuperação da antiguidade, os humanistas estavam imbuídos
de uma atitude renovadora, se comparada à maior parte das
interpretações feitas na Idade Média.

Você conhecerá também duas importantes influências na


história da filosofia do Renascimento. A primeira diz respeito
às concepções mágicas e às relações delas com a divulgação
de escritos neoplatônicos no Renascimento. Você saberá que
a penetração desses escritos marcou a relação complexa entre
magia, cristianismo e platonismo, cujo entendimento é necessário
para compreender o período renascentista.

A segunda influência está relacionada às polêmicas entre


aristotélicos e platônicos. Você estudará que, apesar
da predominância de Platão, os estudiosos concordam
que as relações da obra de Aristóteles ainda não foram
exaustivamente estudadas para se precisar o alcance de sua
influência na Renascença.

Por fim, procuraremos distinguir a diversidade de ideias


e de abordagens que configuraram o Humanismo e seus
desdobramentos para o pensamento filosófico. Entre elas, a
polêmica visão da política cunhada por Nicolau Maquiavel e as
razões que motivaram a retomada do ceticismo no século XVI.

42
História da Filosofia III

Seção 1 – A visão histórica do Humanismo

E assim, portanto, há uma idade que temos que chamar de


ouro [...] e que o nosso século seja assim, áureo, ninguém
duvidará disso se tomar em consideração os admiráveis
engenhos que nele se achou.
Marsilio Ficino, Epistole IX, 1492

Segundo Reale e Antiseri (2005), o termo Humanismo foi usado


pela primeira vez somente no século XIX. Naquele momento,
ele designava a área cultural abarcada pelos estudos clássicos
em oposição às disciplinas científicas. Tratava-se, portanto, de
um conceito tardio em relação ao aparecimento do movimento
cultural do século XIV.

Por sua vez, a palavra humanista já aparece citada a partir do


século XV e, com base na cultura antiga, ela definia aqueles
estudiosos dedicados à gramática, retórica, poesia, história e Estudos das humanidades
e estudos relativos ao
filosofia moral. Na antiguidade latina, studia humanitatis e
gênero humano.
studia humaniora era como os eruditos Cícero (106-43 a.C.) e
Aulo Gélio (125-180 a.C.) se referiam ao conjunto dessas
disciplinas. Ainda, Reale e Antiseri (2005, p. 17) explicam o
sentido que o termo possuía para esses autores:

[...]‘humanitas’ significava aproximadamente


aquilo que os helênicos indicavam com
o termo ‘paideia’, ou seja, educação e
formação do homem. Ora, considerava-se
que as letras, ou seja, a poesia, a retórica, a
história e a filosofia desempenhavam um
papel essencial nessa obra de formação
espiritual. Com efeito, são essas disciplinas
que estudam o homem naquilo que ele
tem de peculiar, prescindindo de qualquer
utilidade pragmática. Por isso, mostram-
se particularmente capazes não apenas de
nos dar a conhecer a natureza específica do
próprio homem, mas também de fortalecê-
la e potencializá-la. Em suma, mostram-
se mais capazes do que todas as outras
disciplinas a fazer o homem ser aquilo que
deve ser, precisamente em virtude de sua
natureza espiritual específica. Figura 2.1 - Busto de Cícero
Fonte: Marco (2010).

Unidade 2 43
Universidade do Sul de Santa Catarina

Veja que, para esses autores, o estudo dessas disciplinas (também


conhecidas em conjunto como trivium – gramática, lógica
e retórica) permitia autoconhecimento e aprimoramento de
qualidades mais intrinsecamente humanas. Nesse sentido, o
mesmo objeto de estudo da filosofia escolástica passa a ser visto
sob outra ótica.

Segundo a mentalidade medieval, todas as qualidades


que constituíam a natureza humana (inclusive a
sabedoria) eram dadas a priori por Deus, estando
presentes em potência desde o nascimento de cada
pessoa. Estudar, portanto, correspondia ao ato de
despertar esta “herança divina”; algo próximo da
noção platônica de reminiscência. Já o pensamento
humanista inverterá esta perspectiva, considerando
que aquilo que constitui o saber se deve ao
aprofundamento do conhecimento produzido pelo
próprio homem. Estudar, portanto, é conhecer e
reconhecer-se no pensamento humano.

Assim, no contexto do século XIV, o interesse em torno


das humanae literae (letras humanas) ou studia humanitatis é
renovado. Para esses primeiros humanistas, diferentemente
dos estudos filosóficos-teológicos da Idade Média, as referidas
disciplinas estavam centradas naquilo que os próprios homens
haviam realizado.

A visão histórica do Humanismo


Ainda que o Humanismo seja reconhecido pela contribuição
fundamental à filosofia da Renascença, a opinião de estudiosos
sobre a sua importância não é uniforme. Ao longo dos séculos,
uma diversidade de teorias e propostas de interpretação
procurou dar conta do sentido desse movimento cultural.
Seguindo os estudos de Reale e Antiseri, vamos apresentar aqui
duas importantes visões que julgamos serem de interesse para a
sua compreensão.

44
História da Filosofia III

A primeira delas se refere ao pensamento defendido por


Kristeller (1976). Para esse estudioso, os humanistas não foram
precisamente filósofos e seu programa se limitava às questões
culturais e pedagógicas. Ainda na visão desse autor, a leitura
mais significativa e reformuladora da filosofia clássica ocorreria
somente a partir da segunda metade do século XVIII, quando
filósofos como Imannuel Kant avançaram a partir das ideias
surgidas no século XVII.

Mas, então, como Kristeller justifica a importância que


se atribui ao Humanismo?

Para Kristeller, isso ocorreu pela hostilidade dos estudiosos à


Idade Média, os quais, ao repudiarem as realizações do medievo,
não enxergaram a leitura inovadora de Aristóteles que se fez
no Renascimento. Ou seja, foi pelo fato desse aristotelismo
renascentista ter se apropriado de certos elementos da escolástica,
que o mesmo acabou sendo associado à estrutura medieval. Em
virtude desse fator, na visão de Kristeller, o “novo” aristotelismo
foi ofuscado, e o mérito da articulação do novo pensamento
recaiu sobre os humanistas.

Oposta a essa visão, temos a reflexão de Eugene Garin, que, por


sua vez, reivindicou legitimidade para o Humanismo, afirmando
que o repúdio à sua importância e originalidade deriva de uma
concepção da filosofia mais fechada e distante dos problemas
práticos. Na ótica de Garin, citado por Reale e Antiseri (2005, p.
21), o pensamento humanista vai se opor à:

[...] construção de grandes ‘catedrais de ideias’, das


grandes sistematizações lógico-teológicas: a filosofia
que submete todo problema e toda pesquisa à questão
teológica, que organiza e encerra toda possibilidade
na trama de uma ordem lógica preestabelecida. Essa
filosofia, ignorada no período do humanismo como
vã e inútil, é substituída por pesquisas concretas,
definidas e precisas na direção das ciências morais
(ética, política, economia, estética, lógica e retórica)
e das ciências da natureza [...].

Unidade 2 45
Universidade do Sul de Santa Catarina

Garin defende também que o Humanismo inaugurou uma nova


e peculiar forma de ler o passado, impondo um distanciamento
e situando os acontecimentos no seio desse próprio passado
histórico. O resultado desse movimento foi a possibilidade de
enxergar o pensamento da antiguidade clássica como

[…] pensamentos humanos, produtos de certa cultura


e resultado de experiências parciais e particulares;
não oráculos da natureza ou de Deus, revelados por
Aristóteles e Averróis, mas sim visões e cogitações
humanas. (REALE e ANTISERI, 2005, p. 23).

Como você pode ver, os dois estudiosos apresentam pontos


importantes. Em nosso estudo, vamos adotar uma perspectiva
intermediária sugerida por Reale e Antiseri. Trata-se de
considerar os dois pontos de vista para uma compreensão mais
abrangente desse período. Ou seja, consideremos que Kristeller
faz bem ao apontar a pouca importância que se dá ao aristotelismo
renascentista, mas também que Garin tem coerência ao afirmar
que os humanistas leram os clássicos com uma nova atitude.

Seção 2 - Os humanistas e o saber antigo


Como se sabe, o pensamento grego e o latino já eram
amplamente conhecidos durante a Idade Média, mas é a partir
de uma nova atitude para com o passado que eles passam a
ser restituídos pelos humanistas ao seu tempo e seu meio. Isso
significa que os humanistas não procuraram apenas compreender
e comentar os clássicos (e mesmo os livros sagrados), como
ocorreu na maior parte das interpretações propostas na Idade
Média. Tratava-se de reler essas obras com nova disposição; com
No ensaio de Ginzburg, intitulado
Mitos emblemas e sinais,
os “óculos” da Renascença, por assim dizer.
há também uma interessante
discussão sobre o tema do Como escreve Marilena Chauí (2002), o renascimento do
conhecimento proibido nos séculos saber antigo não se resumiu ao enaltecimento do passado, mas
XVI e XVII. Ao final do livro, você vinha imbuído de uma atitude crítica e criadora com relação
encontra a referência completa à
ao presente. É interessante a esse respeito, citar um exemplo
obra desse autor.
mostrado por Ginzburg (1990) sobre a questão da mudança de
perspectiva que ocorre com os humanistas.

46
História da Filosofia III

Ginzburg conclui que a partir das interpretações da Vulgata, no


século IV, um trecho da Epístola aos Romanos foi mal-entendido
Vulgata é a tradução para
até o Renascimento. Trata-se da máxima do apóstolo Paulo: “Não o latim da Bíblia, escrita
queiras julgar-te grande, mas teme” (noli altum sapere, sed time). entre o fim do século IV
De acordo com esse autor, tal mensagem de São Paulo se referia e o início do século V, por
a uma questão moral, recomendando uma atitude de humildade São Jerônimo, a pedido
com relação aos sucessos mundanos. Entretanto, durante muito do Papa Dâmaso I. Ela foi
usada pela igreja Católica e
tempo seu conteúdo foi interpretado como um desencorajamento ainda é muito respeitada.
e até proibição à curiosidade intelectual, mantendo os monges
cristãos afastados das profusas especulações filosóficas presentes
nos textos clássicos. Já o humanista Erasmo de Roterdam, a
partir de outro viés interpretativo, sugere que a intenção das
palavras de São Paulo seria a crítica à arrogância e à modéstia,
não tendo relação alguma com a proibição de conhecer as coisas.

O humanismo tende a se libertar, portanto, não


exatamente da fé cristã; mas sim do caráter onipresente
da cultura eclesiástica em todos os setores da vida
humana, tal como ocorrera na Idade Média.

A erudição e a linguagem foram fundamentais no


desenvolvimento do Humanismo, sendo a via pela qual o homem
que conhece pode, ao mesmo tempo, se distanciar e se aproximar
dos autores antigos. Isso se tornou imprescindível inclusive para
que fosse possível avançar, produzindo novos conhecimentos mais
sintonizados com o momento em que viviam.

Essa inserção do sentido de historicidade, como já havia sido


mostrado por Eugene Garin, significa uma novidade com relação
ao pensamento correspondente à Idade Média. No contexto
medieval, os personagens, as doutrinas e os acontecimentos
do passado não eram vistos na sua singularidade. Eles eram
estudados e adaptados de acordo com os interesses da doutrina
cristã, direcionada, por sua vez, pela igreja. Figuravam, então,
como acontecimentos fora do tempo.

Com o avanço do humanismo, outros saberes como a geografia


e a cronologia começaram a ser considerados no estudo da
antiguidade, assim como a adoção de métodos críticos, nas
pesquisas em bibliotecas e acervos. Contribui para isso o

Unidade 2 47
Universidade do Sul de Santa Catarina

surgimento das academias laicas e livres, tirando das instituições


religiosas o monopólio da produção do saber.

Nessas novas academias, onde se tentava recriar a atmosfera


que imaginavam ser característica da antiguidade clássica, as
studia humanitatis se transformam num programa de formação,
ingressando definitivamente nos currículos escolares.

O estudo da antiguidade grega e latina passou a representar o


padrão a ser buscado, um modelo de ideal para os humanistas.
Mas, reiteramos que esta atitude não deve ser vista como uma
mera tentativa de copiar ou imitar os clássicos, mas sim de
utilizar a erudição como atitude crítica diante da apropriação da
tradição cultural da antiguidade que a igreja Católica havia feito
durante um longo período.

A valorização que os humanistas fizeram do pensamento clássico


foi, portanto, uma parte central nesse processo de renovação
cultural, prenunciando o início da modernidade. Nas palavras de
Sevcenko (1988), vemos que, com o seu interesse pelos clássicos,
o Humanismo converteu-se de um grupo de estudiosos para uma
espécie de mentalidade vigente entre a camada culta da sociedade
europeia nos séculos XIV e XV.

Assim, se esse título de humanistas identificava inicialmente


um grupo de eruditos voltados para a renovação dos estudos
universitários, em pouco tempo ele passou a se estender a todos
aqueles que se dedicavam à crítica da cultura tradicional e à
elaboração de um novo código de valores e de comportamentos
centrados no indivíduo e em sua capacidade realizadora, quer
fossem professores ou cientistas, clérigos ou estudantes, poetas ou
artistas plásticos. Graças aos humanistas, numerosas obras gregas
e latinas, relacionadas a temas literários, filosóficos e científicos,
foram traduzidas e difundidas. Como relata Furlan (2005, p. 10):

A filologia desenvolveu-se; surgiram as primeiras


gramáticas das línguas modernas. [...] Uma nova maneira
de traduzir se desenvolve no período. Por meio de uma
crescente onda de traduções e realizações específicas
de algumas personalidades, começa-se a propor novas
correntes estéticas e a promover o abandono ou livre
exame da visão teocêntrica.

48
História da Filosofia III

Mesmo que o pensamento religioso mantivesse firme a sua


influência, é reconhecido que o Humanismo trouxe novos
temas e formas de pensar, entre eles a discussão da posição do
ser humano no mundo e também perante Deus. O homem vai
passar a ser o centro das preocupações, e, por meio de diferentes
enfoques, os humanistas defenderão a ideia de que ele possui uma
dignidade natural e que deve, por isso, ter o direito de ser livre
para conhecer, se autoformar e buscar a felicidade.

Esta nova visão antropocêntrica do Renascimento está sintetizada


no célebre pensamento de William Shakespeare, expresso pelo
personagem Hamlet:

Que obra-prima, o homem! Quão nobre pela razão!


Quão infinito pelas faculdades! Como é significativo e
admirável na forma e nos movimentos! Nos atos quão
semelhante aos anjos! Na apreensão, como se aproxima
dos deuses, adorno do mundo, modelo das criaturas!
No entanto, que é para mim essa quintescência de pó?
Os homens não me proporcionam prazer; sim, nem
as mulheres, apesar de vosso sorriso querer insinuar o
contrário. (SHAKESPEARE, 2000, p. 36).

Como veremos mais adiante, essa nova imagem do homem,


gestada gradualmente por meio da arte, da literatura e das
transformações político-sociais, ganhará forma na nascente
filosofia moderna com René Descartes e na metafísica da
subjetividade pensante.

O grupo de indivíduos conhecido por humanistas, longe


de compor um painel ordenado, refere-se a uma miríade de
pensadores, cujas preocupações vão desde a discussão sobre ética
e moral até as discussões sobre artes, magia, política e religião.
Em comum, este grupo tem o fato de ter vivido num período
turbulento e de mudanças, algumas das quais eles foram os
incentivadores, como o desenvolvimento das línguas nacionais.
Em geral, seus membros ocupavam-se de atividades ligadas à
política, ao clero, à medicina e ao ensino – eventualmente de
mais de uma delas.

Em sua maioria, os pensadores humanistas conheciam os


clássicos antigos e se formaram dentro da tradição de valorização

Unidade 2 49
Universidade do Sul de Santa Catarina

do pensamento de Aristóteles, que ainda era predominante nas


universidades da época, em que o ensino da filosofia escolástica
Desde 1255, a Faculdade de
Artes de Paris havia imposto que
perdurou até meados do século XVI. Outra afinidade era o
todos os seus alunos estudassem fato de os humanistas se colocarem como “sujeitos” de um novo
integralmente a obra de Aristóteles. tempo que, com maior ou menor ênfase, procuravam rediscutir
a relação entre fé e conhecimento, cristalizada pela perspectiva
teológica medieval.

Vejamos um breve panorama das ideias dos primeiros


humanistas, iniciando com o Trecento, quando indícios do
novo pensamento aparecem na obra de autores como Petrarca e
Coluccio Salutati.

Francisco Petrarca (c.1304-1374) é considerado o pai


do Humanismo. Seus poemas se caracterizam pelo
evidente teor humanista e marcantes traços gregos e
latinos. Sendo considerado um dos maiores latinistas
de seu tempo e o inventor da forma poética conhecida
como soneto, ele abordou em seus poemas temas
relacionados ao desejo, à vontade, à razão e à
experiência humana.

No campo do conhecimento, Petrarca julgava que os


problemas de sua época se deviam a duas razões: à ênfase
numa filosofia da natureza e à supremacia da lógica e da
Figura 2.2 - Francesco Petrarca, poeta dialética; ambos os aspectos legados pela interpretação
italiano e historiador, 1304-1374 medieval da filosofia aristotélica. Para contornar esses
Fonte: Gustav Schauer Photographic Art problemas, sugeria que, ao invés do exame da natureza, era
Institute (2009). necessário olhar para o seu interior; e, em lugar da dialética,
era necessário dedicar-se aos estudos das humanae litterae.

Para Petrarca, o mais importante é o conhecimento de si e,


nesse ponto, ele reivindicava que o estudo da filosofia moral
deveria se sobrepor às tendências filosóficas centradas na
interpretação de obras como Física, Metafísica, Sobre o Céu e
Sobre a Geração e a Corrupção, de Aristóteles, bem como das
traduções e comentários árabes e latinos a estas obras, sobretudo
aqueles elaborados por Averróes e Avicena. Sua crítica ao
interesse manifestado por seus contemporâneos pela observação
da natureza aparece na seguinte passagem:

50
História da Filosofia III

Mesmo que essas coisas fossem verdadeiras, elas não


seriam de nenhum auxílio para nos assegurar uma vida
feliz. Pois qual seria a vantagem de conhecer a natureza
de animais, pássaros, peixes e répteis, enquanto se
permanece ignorante da natureza do homem, sem saber
ou se interessando de onde ele veio e para onde vai?
(PETRARCA apud PESSOA Jr., 2007, p. 40).

Ao lado dessa crítica, Petrarca passou a repensar o formato


da educação escolástica tradicional, propondo um modelo de
ensino baseado no aprendizado das letras clássicas (o estudo das
humanae litterae), em oposição ao método quaestio da escolástica,
o qual permanecia centrado especificamente no confronto lógico
de teses e suas antíteses. Considerando que a finalidade da
educação encontra-se no desenvolvimento ético do indivíduo,
Petrarca coloca a dialética em segundo plano, advogando a
favor das disciplinas que promoviam conhecimentos, métodos e
habilidades intelectuais gerais para seus detentores, tais como a
retórica, a oratória e o estudo das obras clássicas.

Coluccio Salutati (1331-1406), outro nome importante do


Humanismo desse período, deu continuidade ao que foi começado
por Petrarca. Dentre seus méritos conta-se o estabelecimento da
primeira cátedra de grego na cidade de Florença. Como Petrarca,
Salutati também se contrapunha ao primado dialético racionalista
da escolástica, afirmando que a filosofia era uma mensagem
testemunhada com a própria vida e, como exemplo disso, citava
Sócrates e santos, como Francisco de Assis.

Para compreender de modo mais abrangente o alvo


das críticas desses dois humanistas, é importante
que você tenha em mente a crise enfrentada pela
escolástica no século XIV, impulsionada por pensadores
ligados a Oxford, que vinham mostrando, desde o
século XIII, um interesse na observação da natureza
e na experimentação. Em outras palavras, as críticas
à tradição medieval por parte dos adeptos da nova
ciência insinuavam também um movimento de rejeição
à cultura clássica em bloco, que de fato ocorrerá mais
tarde, no século XVII, com o nascimento da filosofia
moderna. Entretanto, muitos humanistas se opuseram
a esta oposição ressaltando a grandeza dos studia
humanitatis para a formação do homem.

Unidade 2 51
Universidade do Sul de Santa Catarina

O termo “filósofo” talvez não soe adequado para se referir


aos humanistas, porque a maioria deles tratou de assuntos
relacionados a várias áreas do conhecimento. Isso foi comum
a pensadores expoentes do Quatrocento, como Leon
Battista Alberti (1404-1472), que possuía a típica curiosidade
intelectual do Renascimento – o gênio universal – a exemplo
de Leonardo da Vinci.

Alberti produziu textos literários e fez pesquisas na área da


matemática, física e ótica. Escreveu também importantes tratados
sobre escultura, pintura e arquitetura, tendo sido responsável
pelo projeto de edificações renascentistas, como a igreja de
São Francisco em Rímini e as igrejas de São Sebastião e Santa
Andréia em Mântua. A teoria da arquitetura de Alberti está
associada a uma filosofia do Estado e da sociedade, que se
desenvolve ao longo do Renascimento. Para ele, o arquiteto
poderia promover a paz social usando um projeto de cidade que,
situada em local adequado, refletisse no ordenamento de suas
edificações a hierarquia das classes sociais.

Figura 2.3 - Catedral de Florença, obra de Filipo Brunelleschi (1377-1446),


estudioso da arquitetura greco-romana e de sua teoria das proporções
Fonte: Basílica... (2009).

52
História da Filosofia III

Um dos pontos de seu trabalho que causou maior impacto foi a


crítica às investigações teológico-metafísicas, que ele considerava
sem importância, mediante a relevância das questões morais.

Figura 2.4 - Fonte de Trevi, em Roma, obra de Leon Battista Alberti


Fonte: Iliff (2007).

Alberti defendia a ideia da inutilidade da procura das causas


supremas das coisas, pois as únicas coisas que podiam ser
conhecidas eram as da experiência. Ele enaltecia a capacidade
produtiva do homem, especialmente aquela que não visa ao
benefício de um indivíduo, mas de todos os homens. Repudiava
também a contemplação pura, que, em sua visão, era destituída
de sentido, quando não houvesse ação. É possível considerar,
aqui, uma correspondência com o movimento empreendido pelo
pensamento socrático no contexto da filosofia grega: da mesma
forma como Sócrates (e antes dele os sofistas) se afasta das ideias
dos filósofos naturalistas, deslocando o eixo da reflexão filosófica
dos cosmos para o próprio homem, Alberti pretendia abandonar
as infindáveis discussões escolásticas sobre a natureza ontológica
dos anjos, ou sobre os limites da liberdade de Deus em interferir
na criação, por exemplo, para refletir diretamente sobre as
questões humanas em seu aspecto prático.

Unidade 2 53
Universidade do Sul de Santa Catarina

Alberti discutiu também o conceito de virtude, identificando-o


como atividade característica do aperfeiçoamento do homem,
capaz de lhe garantir o domínio sobre as coisas. Essa concepção,
em consonância como a perspectiva humanista, tende a se
aproximar mais da noção grega de virtude (areté), deixando em
segundo plano a conotação cristã associada a esse conceito.

A dignidade do homem, para Alberti, não é compatível


com aquela sustentada pela maior parte dos
humanistas, pois ela não reside num status ontológico
especial, deduzido teológica ou filosoficamente,
mas está fundamentada na própria natureza do ser
humano. Enfim, nota-se uma relação pragmática entre
o pensamento e as ações, entre conceber e fazer. Essa
necessidade de conexão das ideias com o contexto
concreto, individual ou coletivo, irá se tornar mais
evidente no pensamento político de Maquiavel, como
veremos a seguir.

Outro autor de destaque é Lourenço Valla (1406-1457).


Grande parte de seus escritos são polêmicas análises filológicas
relacionadas a questões filosóficas e políticas. Nas considerações
que fez sobre o novo testamento, Valla foi criticado por afirmar
que a teologia procurasse se expressar de modo mais refinado,
sugerindo a substituição da teologia filosófica por uma teologia
retórica. A retórica era a base de sua filosofia, que – julgava
ele – deveria reger os sistemas filosóficos, pois representava a
maneira pela qual a verdade chegava às pessoas. Sobre isso,
Blum (2003, p. 55) afirma:

Abstraindo da metafísica, Valla considera válido apenas


o que pode ser tematizado linguisticamente. A tarefa da
Nesta reflexão exposta por Lourenço
filosofia não é, portanto, abrir e analisar o fosso entre a
Valla, podemos enxergar uma
palavra e o objeto, entre o pensamento e – como se dirá
significativa antecipação de alguns
mais tarde – a realidade externa à mente, mas partir
aspectos da filosofia da linguagem e
do fato de que as coisas nos são dadas em palavras e os
da epistemologia contemporânea.
assuntos sempre em linguagem.

Assumindo uma posição polêmica para seu tempo,


LourençoValla se envolveu na discussão do conceito de prazer.
Opondo-se ao ascetismo estoico e monástico, caracterizados
pela abnegação dos impulsos do corpo em favor do controle

54
História da Filosofia III

das vontades e impulsos da alma, o autor afirmou que o prazer


não poderia ser visto somente como o prazer da carne. Valla
tentou, portanto, retomar o epicurismo a partir de bases
cristãs. No seu pensamento, toda obra da natureza é louvável e,
Epicurismo é o sistema
dessa forma, o prazer também é louvável. O impulso do prazer filosófico ensinado por
leva o ser humano à ação, e, dessa forma, é o prazer que leva o Epicuro de Samos, filósofo
homem a buscar o transcendente. A busca espiritual, portanto, ateniense do século IV
não seria necessariamente contrária a todos os prazeres a.C., e seguido depois
terrenos, conforme defendia a cultura medieval. por outros filósofos,
chamados epicuristas.
Propunha uma vida de
contínuo prazer como
Lembre-se de que a ética epicurista é hedonista, o que chave para a felicidade.
equivale a dizer que é fundada na ideia do prazer.

Segundo o pensador humanista, uma vez que o homem é feito


de corpo e alma, o prazer sensível estaria em uma categoria
inferior e os outros prazeres das leis, das artes e da cultura seriam
superiores. A todos esses se sobrepunha o amor por Deus. Veja
como essas ideias aparecem em sua obra, citadas por Reale e
Antiseri (2005, p. 29):

Primeiramente responderei em defesa de Epicuro, isto é,


de um grego e, portanto, em defesa dos Latinos, e, por
fim, sobre o costume cristão. No que se refere a Epicuro,
parece-me que, em todo lugar, os vossos tenham atitude
semelhante, quando vos deixais induzir em um erro tão
grave e afirmais que o termo “prazer” que se encontra
em Epicuro é outra coisa, assim como o termo “letícia”,
que se encontra em Aristóteles, dado que foi assim que
os bárbaros o traduziram. De fato, se Aristóteles não
condena toda letícia, só digo isso, a causa já está vencida:
com efeito, quem aprova a letícia, também não condena
o prazer, uma vez que, ao menos em seus escritos, estes
dois termos são um só. Entre nós, porém, eles diferem,
como gênero e espécie.

Lourenço Valla, como filólogo, reviu também alguns textos


sagrados, procurando retirar a excessiva carga de significação
a eles atribuída no correr dos séculos, especialmente na Idade
Média. Um de seus maiores feitos foi apontar, a partir de
rigorosa análise, a falsidade da Doação de Constantino, uma das
principais fontes de fundamentação do poder temporal da igreja,
e que, para Valla, era a origem de toda a sua corrupção.

Unidade 2 55
Universidade do Sul de Santa Catarina

Conforme Reale e Antiseri (2005, p. 27), Valla sustentou o


seguinte sobre esse assunto:

Que eu possa um dia ver – e não há nada que eu deseje


ver mais fortemente do que isso, especialmente se
acontecer a meu conselho – o Papa sendo apenas vigário
de Cristo, e não de César.

Compreenda melhor esse evento lendo o quadro a seguir:

A Doação De Constantino (Constitutum Donatio Constantini


ou Constitutum domini Constantini imperatoris, em latim) é um
documento forjado, apresentado na Idade Média como um édito
imperial romano. Preparado provavelmente entre 750 e 850,
esse documento registra um suposto ato pelo qual o Imperador
Constantino I teria doado ao Papa Silvestre e seus sucessores a
primazia sobre a igreja do Oriente e o imperium (poder imperial)
do Império Romano do Ocidente.
O propósito dessa falsidade documental foi, seguramente,
a defesa dos interesses papais, possivelmente contra as
reivindicações do Império Bizantino ou do Rei franco Carlos
Magno, que havia assumido a antiga dignidade imperial no
Ocidente e com esta o título de “Imperador dos Romanos”. A
Doação foi utilizada pelo papado durante toda a Idade Média
para ampliar o seu território na Península Itálica e fortalecer o
poder secular do pontífice.

Seção 3 – A magia natural no Renascimento


Entre os aspectos do pensamento humanista, destaca-se a
presença de uma concepção mágica do mundo que compreende
o universo como um todo animado; como um imenso ser
orgânico e espiritual. A magia natural renascentista, portanto,
configura-se como um núcleo de especulações e conhecimentos
esotéricos, misteriosos, capaz de conectar o espírito humano

56
História da Filosofia III

ao espírito universal. Essa concepção, ainda que se expresse


de maneira diversa, faz-se presente em indivíduos expoentes
do movimento, como Marcílio Ficino, Agripa de Nettesheim,
Pico della Mirandola e Giordano Bruno. Ela torna-se também
uma característica do trabalho de vários artistas, como Sandro
Botticelli e Leonardo da Vinci. Artistas como Botticelli não
apenas estudaram esta corrente e a compartilharam, como
transpuseram para seus quadros a temática pagã advinda da
Antiguidade. Isso fica claro em sua principal obra, o quadro
A Primavera, pintado por volta de 1478.

Figura 2.5 - A Primavera, de Sandro Botticelli (c. 1478)


Fonte: Eugene (2011).

O significado desse quadro não é totalmente evidente ainda hoje.


Uma das características da concepção mágica no Renascentismo
é justamente a presença de significados ocultos, carregados de
uma simbologia mística que se dispersa pela literatura e pelas
obras de arte. De acordo com estudos mais recentes, essa pintura
foi encontrada, em 1499, no palácio citadino que Lorenzo di
Pierfrancesco, um membro colateral dos Médici, ocupava em
Florença. É possível que Pierfrancesco tenha conhecido Botticelli
pessoalmente, e que esse tenha sido seu presente de casamento.

Unidade 2 57
Universidade do Sul de Santa Catarina

Acredita-se que essa cena misteriosa seja inspirada no festival


da primavera descrito nos Fastos, um calendário poético escrito
pelo romano Ovídio (43 a.C.-18 d.C.). Trata-se de uma das obras
inconclusas desse autor, por conta do exílio que sofrera. Tal
calendário apresenta os principais festivais da Roma Antiga, a
sua importância e a sua origem mitológica.

O poeta descreve, nesse texto, o princípio da primavera como


o momento em que a ninfa Clóris se transforma em Flora, a
deusa das flores: “Vós Flora me chamais; meu nome é Clóris
[...] transformou-me a seu uso a Lácia língua.” (OVÍDIO,
1862, p. 25). É assim que a ninfa começa a sua narrativa,
enquanto algumas flores escapam de sua boca. Conta a história
que, Zéfiro, o vento do oeste, foi arrebatado por uma paixão
selvagem ao ver Clóris. Assim, perseguiu-a e tomou-a à força
Na mitologia grega Zéfiro é o
vento do Oeste, filho de Aurora
como sua mulher. Porém, dando-se conta de seus atos brutais,
e Astreu. O mito do vento Zéfiro arrependeu-se e, para recompensá-la, transformou-a na deusa
diz que este fecundava as éguas das flores, rainha da primavera, a Flora.
de certa região da Lusitânia,
tornando os cavalos dessa região Esse aspecto místico do humanismo se coloca muitas
surpreendentemente velozes.
vezes como uma questão desafiadora à nossa compreensão
contemporânea. Em nosso mundo, as esferas científica,
religiosa e cotidiana estão devidamente separadas. Porém, para
esses indivíduos, que viveram no início da modernidade, não
havia a priori uma separação tão estanque entre tais formas de
compreensão do mundo. Magia, alquimia, filosofia, religião
e ciência se entrecruzavam, compondo um só campo de
conhecimento. Para estudiosos da revolução científica, como
John Henry (2005), o fato de a magia natural ter desaparecido
da nossa concepção de magia, deu-se porque os aspectos mais
fundamentais dessa tradição foram agregados e são parte da
visão científica do mundo.

A magia exercia um importante papel dentro do pensamento


renascentista e, para compreendê-lo, convém abordá-la à luz do
conceito de teurgia e goetéa. Segundo explica Silva (2009, p. 11), a
teurgia é a sabedoria e a arte da magia utilizada para finalidades
místico-religiosas:

58
História da Filosofia III

Esta visão positiva da magia era uma assimilação de


práticas religiosas e especulações filosóficas com uma base
mágica, conhecida como teurgia. Para os gregos e para
os latinos, os diferentes termos enumerados designavam
correntemente uma classe única de fenômenos e os
filósofos tendiam naturalmente a fazer prevalecer a
característica religiosa de suas práticas.

Como o próprio nome indica (teurgia significa “operar coisas que


pertencem aos deuses”), a teurgia se refere à alta magia, voltada
para a iluminação pessoal. Já a goetéa era vista como magia
vulgar. Sua prática tinha objetivos profanos, alcançados a partir
do uso de nomes e fórmulas mágicas, geralmente a serviço de
interesses particulares, do próprio mago ou de terceiros.
Contudo, essa autora adverte que, entre a teurgia e a goetéa, não
havia uma demarcação suficientemente nítida.

O florescimento da magia no Renascimento foi


impulsionado pela descoberta de antigos escritos e
fundava-se, sobretudo, na crença de que as coisas
possuíam poderes ocultos. Sobretudo, a divulgação
de manuscritos herméticos na Toscana, por volta
de 1460, causou um grande interesse, contribuindo
para fomentar muitas concepções mágicas. Trata-se
do chamado Corpus Hermeticum, texto composto
de 17 tratados, que se tornou muito popular na
Renascença, atribuído a Hermes Trismegisto.

Hoje, sabe-se que Hermes Trismegisto foi uma


figura mítica resultante da associação feita pelos
gregos entre as características do deus egípcio Toth
e a figura de Hermes, divindade do Olimpo. Nas
Figura 2.6 - Representação do profeta mítico
palavras de Reale e Antiseri (2004, p. 15): Hermes Trismegisto
Fonte: Silva e Gato (2004).

Quando tomaram conhecimento desse deus egípcio,


os gregos acharam que ele apresentava muitas
analogias com seus deus Hermes (= o deus Mercúrio
dos romanos), intérprete e mensageiro dos deuses,
qualificando-o então com o adjetivo “Trimegistro”, que
significa “três vezes grande”.

Unidade 2 59
Universidade do Sul de Santa Catarina

O Corpus hermeticum, portanto, provavelmente é o resultado


de escritos produzidos por diversos autores pagãos que, entre
os séculos II e III d.C., buscavam retomar sua cultura face à
expansão do cristianismo.

O conteúdo dos textos versa sobre ensinamentos de como


o homem é capaz de descobrir elementos divinos dentro de
si, defendendo uma afinidade mística entre o mundo e a
humanidade, entre o macrocosmo e o microcosmo. O filósofo
Michel Foucault (2007) explica que a ideia de microcosmo tem
dois pontos importantes no saber do século XVI:

„„ como categoria de pensamento - à medida que assegura


que, uma vez que há relações de semelhança entre o
grande e o pequeno (o universo e o homem), cada coisa
pode ser conhecida enquanto reflexo análogo de uma
ordem maior. Ou seja, é possível conhecer e reconhecer a
ordem universal do mundo no interior do homem e vice-
versa.

„„ como configuração geral da natureza - impondo um


limite ao conhecimento comum e demarcando assim
certa dimensão da realidade oculta em cada elemento
natural. Em outras palavras, sendo plena de inumeráveis
microcosmos ordenados segundo a mesma harmonia
universal, a natureza contém seus segredos; suas
correspondências “mágicas” entre o grande e o pequeno.

Em meio a seu misticismo, os textos herméticos estimulavam


justamente o conhecimento desses segredos, por meio da
observação científica e da matemática, dentro de uma concepção
pitagórica de descrição da natureza por meio de números.

Tido como autênticos e muito antigos, coube a Marcílio Ficino


(1433-1499) traduzi-los e apontar as muitas semelhanças que
julgou existirem entre esses textos e a Bíblia. O humanista
iniciou seu trabalho como tradutor, justamente com o Corpus
Hermeticum, seguido pelos Hinos Órficos, dos quais falaremos
mais adiante.

Ficino foi uma importante figura do Humanismo, especialmente


devido à sua abordagem peculiar da tradição platônica, com
a qual se ocupou logo após a tradução do Corpus Hermeticum.

60
História da Filosofia III

Ele traduziu, ainda, Plotino e Dionísio Aeropagita, além de


obras de neoplatônicos e neopitagóricos. Conforme explicam
Reale e Antiseri (2005, p. 39), suas ideias são uma síntese de um
neoplatonismo cristianizado.

Tradutor, pensador e mago, Ficino exerceu essas três atividades


de maneira inseparável. Dentro do conjunto de suas ideias,
destaca-se a crença de que tanto a filosofia quanto a religião
representavam uma iniciação aos sagrados mistérios. Para ele,
primeiramente Hermes, Orfeu, Zoroastro e, mais tarde, Platão
e Pitágoras, haviam captado a mesma verdade: a filosofia deve
conduzir à iluminação do intelecto pela revelação divina. Esses
grandes nomes do pensamento humano, cada um a seu modo,
teriam todos indicado o mesmo caminho de elevação espiritual,
posteriormente também revelado pela mensagem de Cristo.
Nesse ponto, Ficino encontrava um elemento de confluência
entre magia, a filosofia e a doutrina cristã: “a vinda de Cristo, o
Verbo fazendo-se carne, assinala o complemento dessa revelação.”
(REALE e ANTISERI, 2004, p. 40).

A magia defendida por Ficino advém do


neoplatonismo, cuja visão concebe a animação
universal das coisas e também introduz a noção de
um espírito, que está presente no homem e em todas
as outras formas.

Por isso, entende-se a razão pela qual ele usava talismãs, que
confeccionava a partir de diversos materiais – plantas, metais,
sementes etc. Albertini (2003, p. 110), ao se referir a Ficino,
afirma:

[…] para ele, a força motora que põe tudo em movimento


é a alma, que está localizada exatamente no centro, a
qual, dessa forma, também realiza a intermediação entre
o imortal (Deus, anjos) e o mortal (natureza, matéria).

No ano de 1614, o protestante Isaac Casaubon provou que os


textos herméticos (devido ao seu estilo e às suas citações) eram
posteriores ao advento do cristianismo, sendo escritos dentro da
tradição neoplatônica. Os textos divulgados atualmente
remontam provavelmente ao ano de 1050, que foi quando o

Unidade 2 61
Universidade do Sul de Santa Catarina

estudioso Michele Psello recolheu e colecionou a obra. Para não


polemizar com a igreja, acredita-se que ele tenha amenizado os
aspectos relacionados à magia e à alquimia, abundantes nas
versões originais.

Mas, como Marcílio Ficino, um renomado tradutor e


estudioso, pôde tomar como autêntico esse texto?

De fato, numa rápida observação pode parecer


estranho que humanistas experimentados no trato com
documentos antigos tenham tomado por verdadeiros
textos escritos no helenismo tardio, supondo serem
de autoria de antigos profetas magos. Essa questão
sobre o equívoco dos humanistas é colocada e também
respondida por Reale e Antiseri.

Segundo esses autores, “os humanistas estavam mais


Figura 2.7 - Túmulo de Marcílio Ficino na aptos a traduzir e compreender os textos latinos, de cuja
catedral Santa Maria del Fiore
pesquisa se ocuparam muito antes do que ocorreu com
Fonte: Cyron (2006).
os textos gregos.” (REALE e ANTISERI, 2005, p.
14). Dessa forma, seria explicado por que, de um lado,
houve denúncias quanto à falsificação de documentos
latinos no Renascimento; por outro, se reafirmou a
autenticidade de falsificações gregas tardias.

Contribui para tal equívoco o fato de que os gregos doutos, que


acorreram para a Itália com a queda de Bizâncio, avaliaram como
verdadeiros alguns documentos que, mais tarde, concluiu-se não
terem validade histórica. Em alguns casos, já remontava ao início
da época medieval o reconhecimento da suposta autenticidade
de certos textos, como o próprio Corpus Hermeticum, tido como
contemporâneo dos textos bíblicos mais antigos.

Além dos textos de Hermes Trismegisto, os Oráculos Caldeus,


atribuídos à figura de Zoroastro, contribuíram com a feição
mágica que caracteriza a mentalidade renascentista e, da mesma
forma, também foram tidos como autênticos. Por meio de seu
conteúdo, é possível distinguir uma religiosidade típica do
paganismo tardio com características revelatórias. Os oráculos
apresentam muitos elementos mágicos e estão relacionados à
sabedoria babilônica, cujo culto central era a adoração do sol
(heliolatria) e do fogo.
62
História da Filosofia III

Figura 2.8 - Parte de uma tabuleta babilônica de Sippar, feita em 870 a.C., Doutrina da transmigração
atualmente no Museu Britânico. Representa uma cerimônia de evocação do deus-Sol Shamash.
da alma; movimento cíclico
Fonte: Portal São Francisco [200-].
por meio do qual um mesmo
espírito, após a morte de
Os Hinos Órficos constituíram outra marcante influência seu antigo corpo, retorna
vinda do paganismo para a Renascença. Eles derivam, em sucessivamente à vida,
parte, do orfismo, tradição antiga que havia influenciado animando outra estrutura
Platão e Pitágoras, especialmente no que se refere à crença na viva, seja essa vegetal,
metempsicose. O Orfismo era uma religião de mistérios no mineral ou animal, não
necessariamente nessa ordem.
antigo mundo grego, difundido a partir dos séculos VII e VI
a.C. Seu fundador teria sido o poeta mítico Orfeu, que desceu
ao inferno e retornou.

Os órficos também reverenciavam Perséfone, (que descia ao


inferno a cada inverno e voltava a cada primavera) e Dionísio ou
Baco (que teria realizado o mesmo trajeto). Como os mistérios
de Elêusis, os mistérios órficos prometiam vantagens no além-
vida. Esses cultos de mistérios, que prometiam uma vida melhor
após a morte, parecem ter influenciado o início do cristianismo.
Os documentos referentes aos Hinos, tidos como autênticos
na Renascença, são reconhecidamente falsos e remontam – a
exemplo do Corpus Hermeticum e dos Oráculos – também ao
helenismo tardio.

Unidade 2 63
Universidade do Sul de Santa Catarina

Outro humanista a se deter no estudo dos textos pagãos foi


Agripa de Nettesheim, também chamado Henrique Cornélio
(1486-1535). Agripa ocupou cargos ligados à política e ao ensino,
tendo vivido em diferentes cidades da Europa como Paris,
Colônia e Londres. Por volta de 1512, ele iniciou estudos de
medicina, destacando-se mais tarde como médico, quando da
epidemia do suor inglês. Durante toda a sua vida, envolveu-se
em polêmicas com a igreja, sendo inclusive perseguido por ter
Doença que matou cerca de três
milhões de pessoas entre 1486 e 1551.
defendido uma mulher acusada de bruxaria pela inquisição.

Em 1510, Agripa publicou De occulta philosofia (Sobre a filosofia


oculta), reeditando a obra em 1533, supostamente em virtude das
falsificações. Tida por muitos como um compêndio de magia,
De occulta philosofia traz uma subdivisão da magia em três partes:
celestial, natural e cerimonial. Trata-se de uma elaboração de
neoplatonismo, hermetismo, cabala, astrologia e mística dos
números. Nessa obra está presente a ideia de que é possível, por
meio da magia, conhecer e dominar o mundo.

Agripa partilhava com Ficino e Giordano Bruno a noção de


que a totalidade do mundo pode ser reduzida a uma unidade na
qual o natural, o celestial e o espiritual estão entrelaçados. Essa
é a concepção da magia predominante no Renascentismo, que
direciona-se muito mais à evolução espiritual individual (teurgia)
do que à mera tentativa de controle dos aspectos relacionados à
vida particular e seus interesses (goetéa).

Conforme Agripa, a alma do mundo (anima mundi)


transporta as sementes dotadas de razão (semina
rationales) para dentro da matéria do mundo natural,
inclusive do homem, interligando dinamicamente o
mundo superior com o inferior (sublunar). As sementes
dotadas de razão se tornam atuantes na própria
matéria, visíveis na qualidade das forças (virtudes). Essa
perspectiva animista constitui a base ontológica da
magia natural no Renascimento.

Em outra afinidade com Marcílio Ficino, Agripa defende


que a magia natural poderia ajudar o homem a identificar os
atributos das coisas naturais e dos astros. E que por intermédio
do conhecimento da alma, todo o cosmo pode ser revelado ao
ser humano, de modo que as forças ocultas nas coisas poderiam

64
História da Filosofia III

ser conhecidas e controladas. Percebe-se aqui, como a concepção


mágica Renascentista se encontra em estreita ligação com o
nascimento da nova ciência: nesse momento não há limites claros
entre magia e observação; alquimia e experimentação; astrologia
e astronomia.

Para Agripa, a alma natural do homem tem um anseio também


natural de unir-se a Deus e pode elevar-se até Ele por meio do
autoconhecimento. Por essas noções, nas palavras de Müller-
Jahncke (1979, p. 153):

De occulta philosofia pode ser vista como uma concepção


filosófica da Renascença, para explicar, com o auxílio de
uma cosmologia coerente, todos os fenômenos naturais e
espirituais da magia e da astrologia a ela ligadas.

Os estudiosos da obra de Agripa de Nettesheim concordam que


há muitas lacunas no conjunto das suas ideias. Eles reconhecem,
todavia, indícios característicos do curso de ideias que resultaram
na ciência moderna. Ou seja, a tentativa de dotar a magia natural
de uma estrutura doutrinária e o fato de que esta mundivisão
requeria experimentação; elemento que aparecerá em muitos
outros pensadores da Renascença.

Seção 4 – As polêmicas entre aristotélicos e platônicos


A partir do século XV, um grande interesse pelos autores
clássicos surge na Itália, especialmente em relação ao pensamento
de Platão e dos neoplatonistas. Isso não significa dizer que,
durante a Idade Média, não houvesse semelhante interesse,
porém, de modo geral, os pensadores medievais, vinculados à
escolástica, leram os textos antigos (especialmente Aristóteles),
procurando, cada um a seu modo, conciliar a fé com a razão
e, com isso, fundamentar os dogmas cristãos. Nessa tentativa,
muitas obras clássicas foram interpretadas, de modo a preservar
os interesses da igreja, como mostramos no exemplo de Ginzburg

Unidade 2 65
Universidade do Sul de Santa Catarina

acerca da Vulgata. Já com o pensamento humanista, tanto a


filosofia platônica como a aristotélica serão reinterpretadas sob
outras luzes.

Esse interesse pelas obras clássicas foi acirrado com a crise da


escolástica, período em que se dinamizou e promoveu esse tipo
de estudo. O pensamento da Renascença vai ocupar-se, além
do platonismo e do aristotelismo, do estoicismo, do epicurismo
e do ceticismo. Para atender à essa demanda, destacou-se o
trabalho dos tradutores e intérpretes, cujo número se ampliou
com a chegada de especialistas bizantinos à Europa, em três
situações distintas:

„„ no século XIV, vieram para atuar como professores;

„„ em 1439, em decorrência do Concílio de Ferrara;

„„ depois de 1453, em virtude da tomada de


Constantinopla pelos turcos, os bizantinos se
estabeleceram principalmente na Itália.

Dois outros itens podem ser ainda destacados neste processo de


ampliação do interesse pelos clássicos:

„„ a difusão da língua grega pelo ensino, a partir do


século XV;

„„ a fundação da nova Academia de Florença (1459)


por Marcílio Ficino que, instalada numa grande
propriedade nas cercanias de Florença, recebeu homens
ilustres da época, como o arquiteto Alberti, Pico della
Mirandola e Maquiavel.

A Academia de Florença ficou conhecida como Academia


platônica, tornando-se a mais conhecida academia da Renascença
italiana. Escritores, filósofos e músicos dominavam o círculo
neoplatônico, mas também alguns escultores, pintores e
arquitetos, os quais mostravam especial interesse no mundo
antigo. O objetivo de Cosme de Médici, ao idealizar e fundar
a academia, era o aprimoramento da língua italiana e o
aprofundamento e a tradução da obra de Platão, tarefa que o
humanista Marcílio Ficino terminou em 1477.

66
História da Filosofia III

Amplie seus estudos pesquisando um pouco mais sobre


a Academia Platônica de Florença e seus fundadores.
Registre os resultados de sua pesquisa aqui.

Até aquela data não havia, além de umas poucas traduções livres,
nenhum conjunto adequado dos escritos de Platão em língua
latina. Essa observação foi feita pelo cardeal Bessarion em 1439,
mostrando que, antes mesmo do trabalho feito por Ficino, já se
discutia o significado da obra de Platão.

Na Grécia, Jorge Gemisto havia anteriormente fundado


Somente a partir dos
uma Academia próxima à Esparta, segundo o antigo modelo
estudos mais recentes
platônico (o que lhe rendeu o apelido de Pleton, ou Pletão). é que se tem feito uma
Nela, a retomada do pensamento de Platão ocorreu não somente distinção mais segura
pela interpretação dos seus escritos originais, mas foram entre os textos autênticos
considerados os textos neoplatônicos, cuja característica era de Platão e aqueles que
sofreram modificações da
uma forte oposição entre o espiritual (ideias) e o carnal (coisas
tradição neoplatônica.
materiais). Além do neoplatonismo, havia nos ensinamentos de
Pleton uma influência do zoroastrismo e de ideias estoicas. Essa
influência pagã, mais tarde, rendeu críticas à sua interpretação da
filosofia platônica.

Unidade 2 67
Universidade do Sul de Santa Catarina

Em 1439, Pleton participou do Concílio de Ferrara e escreveu


um texto intitulado De differentis Aristotelis et Platonis. Com
esse texto, ele pretendia restituir a importância de Platão,
recuperando o prestígio que este desfrutara no período da
patrística, isto é, na primeira fase da filosofia medieval. Pleton
objetivava, com a comparação entre os dois filósofos, mostrar
que as ideias de Platão eram bem mais adequadas ao conteúdo
teológico ligado à doutrina cristã.

Pleton julgava que Averróis e Aristóteles eram muito


valorizados no Ocidente, diferentemente da antiguidade,
onde Platão teve maior destaque. Com relação a Averróis, ele
criticava principalmente a noção da mortalidade da alma, e,
em Aristóteles, a falta de ideias plausíveis acerca de axiomas
fundamentais, como a criação.

Por volta de 1458, Jorge de Trebizonda publicou, em latim, o


Comparatio philosophorum Aristoteles et Platonis, em que atacava a
posição de Pleton por causa da crítica ao pensamento aristotélico.
Jorge de Trebizonda, inclusive, acusou-o de diletantismo,
afirmando que a ontologia platônica seria a causa da divergência
entre a igreja ocidental e grega acerca da Questão Filioque.

A chamada “Questão Filioque” se refere à procedência


do Espírito Santo. Ela foi um dos pontos de
discordância entre teólogos da igreja do oriente e do
ocidente, tendo contribuído com o Cisma. Consta que
os Concílios de Niceia e de Constantinopla doutrinavam
que o Espírito Santo procedia do Pai. Já a igreja do
Ocidente defendia que o Espírito Santo procedia do Pai
e do Filho, a Patre Filioque, na expressão latina.

A posição de Jorge de Trebizonda se situava muito mais numa


esfera política eclesial do que argumentativa e objetiva. Esse
é o motivo pelo qual ele foi bastante criticado, especialmente
em 1459, quando o cardeal Basílio Bessarion (1403-1472)
publicou In calumniatorem Platonis (Ao caluniador de Platão),
tido como um dos trabalhos de impacto mais duradouro nesse
período. Dos posicionamentos dos humanistas italianos sobre
essa obra, pode-se concluir que, com sua visão geral da filosofia

68
História da Filosofia III

platônica, Bessarion contribuiu para um conhecimento mais


aprofundado e uma recepção mais ampla dos escritos platônicos
no hemisfério latino.

Bessarion afirmou que nem Platão nem Aristóteles consideraram


a doutrina do cristianismo, o que não impedia que se admitisse
que Platão, com a concepção de tríade divina do uno, tivesse se
aproximado da doutrina cristã da trindade.

Dessa forma, a questão era ver em que medida a filosofia


de ambos se adequava ou não a questões como a existência
de Deus, a criação do mundo, a imortalidade da alma e a
predestinação, segundo as crenças mantidas pela doutrina cristã.
A interpretação de Platão feita por Bessarion estava alinhada à
tradição neoplatônica, que via os escritos de Aristóteles como um
complemento das questões científicas, às quais Platão não tinha
dado atenção nos seus diálogos.

Na sequência dos estudos sobre a obra de Platão, destaca-


se Nicolau de Cusa (1401-1464). Apesar de ter nascido na
Alemanha, sua formação se deu na Itália, onde se tornou cardeal
em 1448. Seu pensamento não pode ser reduzido ao humanismo,
dado o forte interesse teológico de suas investigações. Todavia,
também não é apropriado considerá-lo somente como um
integrante da escolástica, uma vez que suas ideias abarcam
plenamente o espírito renascentista.

Estimulado pelo cardeal Orsini, ele dedicou-se à busca de textos


literários antigos, capazes de ampliar o quadro de referências
dos homens cultos. Vivia-se, na época, a convicção humanista
de que a expressão cultural do passado, mesmo da cultura pagã,
precisava ser resgatada para revitalizar a consciência cristã.
Como cristão e como humanista, Nicolau acreditava que, por
ser verdadeira, a doutrina do cristianismo se fortaleceria com a
recuperação de preciosos elementos de verdade da cultura antiga,
eventualmente esquecidos.

Uma de suas teses mais difundidas foi a da douta ignorância. De


acordo com essa formulação, dentro do âmbito do finito tudo se
dá a conhecer, havendo uma relação de proporção entre o que se
quer conhecer e o ponto de que se parte. Essa relação, contudo,
não se aplica a Deus, pois, sendo Ele infinito e o homem finito,

Unidade 2 69
Universidade do Sul de Santa Catarina

não há entre ambos a proporção. A douta ignorância seria,


portanto, a consciência dessa desproporção. Ao intelecto humano,
que é finito, não seria possível alcançar plenamente a verdade
sobre Deus; mas apenas elevar-se a certos graus de aproximação.
“Douta Ignorância”, aqui, não é um termo de sentido pejorativo,
mas a imagem da humildade atingida pela sabedoria. Segundo
Reale e Antiseri (2004, p. 34), nesse caso “o adjetivo corrige o
substantivo de modo essencial.”

Figura 2.10 - Escultura em baixo-relevo de Andrea Bregno no túmulo de Nicolau


de Cusa (c. 1485). Na representação, estão Nicolau (à esquerda), São Pedro (ao
centro) e o Anjo Libertador (à direita)
Fonte: Lalupa (2006).

Mantendo a temática humanista do microcosmo enquanto


possibilidade de conhecimento analógico da realidade
universal, Nicolau de Cusa aborda a distinção platônica dos
três graus de conhecimento:

70
História da Filosofia III

„„ A percepção sensorial sempre fornece informações


positivas, ou, dados dos sentidos.

„„ A razão opera com o princípio da não contradição,


sempre reconhecendo os opostos e suas diferenças. Sua
função, portanto, é discursiva, distribuindo-se entre
afirmações e negações.

„„ O intelecto, por sua vez, seria capaz de elevar-se acima


de toda afirmação e negação propostas pela atividade
racional para se lançar à intuição analógica da verdade;
isto é, captar a coincidência superior presente nos
opostos, quando tomados na perspectiva do infinito.

Assim, Deus é compreendido como o infinito absoluto, em


que os conceitos opostos (o que tomamos pelo máximo e pelo
mínimo, por exemplo) se tornam coincidentes. Essa dimensão
ontológica escapa à capacidade racional do ser humano
justamente pela ausência de parâmetros de proporção. Para
Reale e Antiseri (2004, p. 34):

A consciência dessa desproporção estrutural entre a


mente humana (finita) e o infinito, ao qual porém ela
tende e pelo qual anseia, e a busca que se mantém
rigorosamente no âmbito dessa consciência crítica
constituem a douta ignorância.

Com essas reflexões, Nicolau de Cusa desenvolve uma coerente


abordagem das principais temáticas do neoplatonismo cristão:
Deus, concebido como o máximo de todos os máximos, contém
em si todas as coisas. Assim como o universo é a manifestação ou
“contração” de Deus, da mesma forma cada ser é a contração do
universo e, indiretamente, também de Deus. Como em Platão,
todas as coisas mantêm uma relação com o Uno.

É necessário reconhecer que o filósofo mais discutido e


influente no período renascentista foi Platão, mas também não
se pode deixar de considerar a posição de Kristeller (1976),
vista anteriormente. Segundo esse autor, isso ocorreu porque
Aristóteles foi associado às estruturas da Idade Média – que
passou a ser repudiada pelos humanistas. Além disso, as análises
feitas até então ainda não teriam sido suficientemente capazes de
delimitar o alcance total de sua influência.

Unidade 2 71
Universidade do Sul de Santa Catarina

Durante o Renascimento, a maior parte do trabalho em torno


de Aristóteles esteve relacionada à Escola de Pádua, a qual
constituiu uma espécie de movimento filosófico nos séculos XIV,
XV e XVI. De maneira sucinta, podemos afirmar que o interesse
da escola esteve voltado para assuntos ligados ao estudo e à
observação da natureza, ao método científico e à medicina.

De acordo com Ferrater Mora, os pensadores ligados à Escola


de Pádua tinham conexão mais estreita com o aristotelismo
naturalista do que com as reflexões metafísicas do estagirita,
que foram tradicionalmente apropriadas pela filosofia escolástica
e adaptadas à doutrina cristã. Graças ao trabalho desses
pensadores, Aristóteles foi tido como um precursor da ciência
moderna da natureza (FERRATER MORA, 2000, p. 1290).
Em geral, eles defendiam que o conhecimento provém do
raciocínio aplicado aos fatos e da experiência direta, assumindo
assim um realismo.

Pádua tornou-se um centro de estudos distante das preocupações


teológicas e muito mais inclinado à pesquisa da natureza. De
acordo com Kraye (2003, p. 120) “na Itália o aristotelismo
mundano encontrou um clima mais favorável para sua explicação
dos fenômenos naturais mediante princípios puramente
racionais.” Um dos seus mais destacados representantes foi Pedro
Pomponazzi (1462-1525). Entre suas ideias mais polêmicas está
o questionamento sobre a imortalidade da alma.

O ambiente intelectual que precede essa questão colocada por


Pomponazzi já havia sido delineado por Sieger de Brabante
(1240-1284). Mesmo reconhecendo haver em Aristóteles
questões que se opunham aos dogmas teológicos vigentes,
Brabante pretendia seguir com os estudos sobre a Física fazendo
uma distinção entre os diferentes campos de conhecimento. Não
se tratava de negar as questões religiosas; mas sim de mantê-las
em seu devido lugar, como coisas especificamente relacionadas à
fé. Os estudos da natureza, a seu turno, deveriam ser conduzidos
de forma independente. Essa posição antecipa, ainda no século
XIII, a perspectiva da revolução científica que começará a tomar
forma no final do século XVI. Evidentemente que Brabante e
outros pensadores, que partilhavam de suas convicções, sofreram
perseguições e reprimendas por parte da igreja.

72
História da Filosofia III

Siger de Brabante (c. 1235-1284). Teólogo e filósofo


contrário à escolástica oficial, originário de Brabante,
Bélgica. Ele era Cônego de São Martinho em Liège.
Estabeleceu-se em Paris, quando crescia a ação
repressora da igreja sobre a faculdade de artes, na qual
era professor. Globalmente apreciado, o Averroísmo
latino, de que Siger de Brabante é o principal
representante, significava um novo avanço nos
estudos aristotélicos em Paris, dada a importância dos
comentários de Averróes.

O posicionamento referente à existência de uma dupla verdade


envolvendo os domínios da fé e da razão foi resultante de um
amplo debate entre a teologia e o pensamento de Aristóteles,
iniciado na Idade Média, envolvendo Duns Escoto (810-877) e
Guilherme de Ockham (1285-1347), que haviam assinalado a
separação entre essas duas instâncias. A dupla verdade sustentava
que, sobre a base da razão, algo pode ser mais provável do que
afirma a fé e vice-versa. Em outras palavras, nem todos os
conhecimentos seriam igualmente acessíveis ao pensamento
racional e à contemplação religiosa.

A resistência da igreja a essas discussões foi menos severa na


Itália, onde o estudo da filosofia não era preparação para a
teologia (como em Oxford e Paris), mas para a medicina. Algum
tempo se passou sem que estas discrepâncias entre a fé e a razão
causassem maior impacto. Entretanto, a confirmação de que a
igreja não havia arrefecido na salvaguarda dos seus interesses foi a
publicação da bula Apostolici regiminis por Leão X, que condenou
qualquer afirmação filosófica referente à mortalidade da alma,
mesmo que fosse apenas como demonstração racional.

Seja como for, o livro de Pomponazzi Sobre a Imortalidade da


Alma (fruto das preleções nas universidades de Pádua e Ferrara)
é publicado em Bolonha em 1516. As ideias nele apresentadas
resultam da análise das três principais correntes que norteavam
os estudos e interpretações do pensamento de Aristóteles no
Renascimento. São elas:

Unidade 2 73
Universidade do Sul de Santa Catarina

„„ A chamada corrente Alexandrina, elaborada por um


integrante da escola peripatética tardia, conhecido
como Alexandre de Afrodísia (198 -209 d.C). Esta
interpretação assumia um caráter marcadamente
naturalista, ao postular a existência de um intelecto
supremo (Deus) responsável por tornar possível o
conhecimento do homem. Segundo esta linha, o espírito
humano será concebido como “intelecto potencial”;
mostrando-se, portanto, como um elemento mortal.

„„ A perspectiva Tomista, isto é, a interpretação da


filosofia aristotélica elaborada pelo maior expoente
da escolástica medieval, São Tomás de Aquino. Com
base na Metafísica aristotélica, Aquino compreendia o
ser humano como a unidade de uma matéria primeira
(potencialidade) e de uma forma substancial (o princípio
realizador), referentes à alma e o corpo, respectivamente.
A essência do homem abarcaria a matéria e a forma
juntas, sendo a alma a própria forma do corpo. Esta
concepção hilemórfica da natureza humana adequa-se ao
princípio cristão da eternidade da alma e da ressureição
do indivíduo em seu corpo para a vida eterna.

„„ A interpretação de Averróes, que defendia doutrinas


contrárias ao consenso da teologia cristã, causando certo
impacto na cultura renascentista. Nessa perspectiva,
conclui-se da teoria aristotélica do motor imóvel a
existência do mundo de forma independente de Deus,
bem como a vigência de um intelecto único e separado
de todos os homens; a partir do qual a alma individual
do ser humano seria mortal e corruptível.

Dedicando-se a refletir sobre essas três linhas interpretativas,


Pomponazzi, que originalmente se mantivera mais próximo
do averroismo, conclui seus estudos aristotélicos em favor da
interpretação alexandrina; porém, modificando-a em parte.
Segundo Kraye (2003, p. 125):

Portanto, a interpretação mais satisfatória de Aristóteles


e, ao mesmo tempo, a solução mais satisfatória do
problema com meios filosóficos não era nem a fé de
Tomás de Aquino de que a alma, criada por Deus,
temporalmente fazia o papel de forma substancial de

74
História da Filosofia III

um ser humano individual e depois passava para uma


pós- vida imortal, nem a teoria de Averróis de um único
intelecto imortal, mas a visão de Alexandre de Afrodisia,
de que a alma seria material e mortal.

Levando ao extremo o Realismo de Aristóteles, Pomponazzi


compreenderá a alma como algo incapaz de subsistir sem o corpo;
sendo, portanto, uma forma que nasce e perece juntamente com
seu substrato material. Tal alma intelectiva, como em Platão,
constituiria o princípio do conhecimento humano. Todavia, seu
caráter seria imanente à matéria; e não transcendente. Segundo
Reale e Antiseri (2004, p. 58):

[Esta] tese desencadeou verdadeira tempestade, até


porque – é bom lembrar – o dogma da imortalidade da
alma era considerado absolutamente fundamental pelos
platônicos e, em geral, por todos os cristãos.
Para dizer a verdade, Pomponazzi não queria em absoluto
negar a imortalidade, pretendendo negá-la apenas como
“verdade demonstrável com segurança pela razão”. Diz
ele que a imortalidade da alma é artigo de fé, e que, como
tal, deve ser provado com os instrumentos da fé, ou seja,
“com a revelação e as escrituras canônicas”, já que os
outros argumentos não são apropriados para isso.

Podemos reconhecer aqui, a mesma perspectiva referente à tese


da dupla verdade, vista anteriormente.

Pomponazzi acreditava que a alma do homem diferia da alma


sensível dos animais. Por ser intelectiva, ela teria a capacidade de
conhecer o universal, assim como o suprassensível. Entretanto,
ela dependia dos sentidos para obter as imagens que necessitava
para processar o entendimento das coisas.

Como você acabou de ver, as polêmicas entre


platônicos e aristotélicos no Renascimento adentram
em complexos pormenores sobre a natureza da alma
e a origem do conhecimento humano. Para nosso
presente estudo, mais importante do que aprofundar
essas discussões é perceber como a apropriação
renascentista desses clássicos assume novos contornos,
deixando de submeter-se apenas à teologia e
prenunciando mudanças significativas no pensamento
que marca o início da filosofia moderna.

Unidade 2 75
Universidade do Sul de Santa Catarina

Seção 5 – A filosofia em transformação


Até agora você conheceu vários aspectos históricos e filosóficos
que caracterizaram o humanismo renascentista. Este contexto
múltiplo e conturbado, marcado pela revisitação da antiguidade
e, ao mesmo tempo, pela abertura ao novo, forneceu o ambiente
propício ao nascimento da filosofia moderna. Nesta última seção,
vejamos dois exemplos concretos dessa mudança de perspectiva
no pensamento filosófico.

As ideias políticas de Nicolau Maquiavel


Na política, o Humanismo se expressou a partir do emblemático
pensamento de Nicolau Maquiavel (1469-1527), cujo livro O
Príncipe se constitui numa das principais obras da ciência política
até os dias atuais. A importância de Maquiavel se deve, entre
outros aspectos, à materialização de um pensamento que há
algum tempo já se encontrava nas mentes dos renascentistas,
mas que até então não fora enunciado explicitamente, a saber, a
necessidade da separação entre o poder do cristianismo e o poder
temporal. Este último, até então, se via subordinado à teologia e
ao sistema social da Idade Média.

Maquiavel foi funcionário da república de Florença durante


quatorze anos. Além disso, ele foi diplomata, dramaturgo, teórico
militar e literato. Para a maior parte dos estudiosos, sua obra foi
fruto do universo ideológico do Renascimento, das contradições e
da instabilidade política daquele período.

De fato, ao longo de sua vida profissional Maquiavel


testemunhou uma grande luta política pelo comando dos
principados italianos. Essa luta acabou por enfraquecê-los,
fazendo com que os mesmos recorressem ao prestígio do poder
papal para não sucumbirem à ameaça de potências estrangeiras,
como a França. Por sua vez, o papado lutava para manter o
poder eclesiástico forte, ainda que não conseguisse igualá-lo ao
que possuía na Idade Média. Num período de surgimento das
grandes monarquias nacionais e de intensos questionamentos
religiosos, era fundamental para a igreja manter configurado o
seu domínio político. Como descreve Bandecchi (1981, p. 9):

76
História da Filosofia III

Em grande parte a Idade média vivia na contemplação,


enquanto a Idade moderna passou à época da técnica e
da ação. O homem redescobre-se. A situação da Itália
propiciava condições para um movimento renascentista
protegido pelo papado. Em torno de Roma, Florença,
Milão e Veneza, havia uma proliferação de pequenos
estados, “pululando, apodrecendo, fazendo-se,
desfazendo-se, refazendo-se”, quase sempre com auxílio
da Espanha e da França, que haviam invadido território
italiano. Roma oferecia um espetáculo pouco edificante,
principalmente na era de Alexandre VI (Rodrigo Bórgia),
que empregava exércitos estrangeiros para aumentar o
seu poder temporal e proteger sua parentela ambiciosa e
insaciável. Florença era a vítima maior desta situação.

Veja no mapa ao lado,


como a Itália, antes
de configurar-se como
um país unificado,
era composta de
inúmeros principados.

Figura 2.11 - Território italiano no século XV


Fonte: Pessoa (2010).

Unidade 2 77
Universidade do Sul de Santa Catarina

Ainda, no alvorecer do século XVI, cidades como Gênova


e Veneza enfrentaram, em consequência da descoberta de
novas rotas comerciais para o Oriente, a perda do monopólio
comercial, pilar da sua riqueza. Tal evento ocorreu
simultaneamente ao processo de centralização monárquica, que
Esse controle passava agora a
portugueses e espanhóis, pioneiros
fortaleceu Estados como a França e a Inglaterra.
nas Grandes Navegações.
Assim, as repúblicas italianas se viram comprimidas entre as
disputas internas, o enfraquecimento econômico, a ameaça
estrangeira e os interesses do papado. Junto a esse contexto, a
vida social refletiria uma forte crise de valores morais.

Diante da instabilidade desse quadro, é cabível que Maquiavel


almejasse um governo que conseguisse unificar, proteger e até
mesmo libertar as repúblicas dos invasores estrangeiros. Nesse
caso, seria necessário um príncipe que fosse capaz de não apenas
consolidar um poder forte, mas que pudesse ser capaz de mantê-
lo, empregando para isso quaisquer meios necessários. Sobre isso,
leia o seguinte trecho do capítulo XXVI de O Príncipe:

Consideradas, pois, todas as coisas acima referidas,


e pensando comigo mesmo se, na Itália, os tempos
presentes poderiam prometer honras a um príncipe novo
e se havia matéria que desse, a um que fosse prudente e
valoroso, oportunidade de introduzir uma nova ordem
que lhe trouxesse fama e prosperidade para o povo,
pareceu-me que há tantas coisas favoráveis a um príncipe
novo que não sei de época mais propícia para a realização
daqueles propósitos. (MAQUIAVEL, 1987, p. 113).

Foi desempenhando a função de segundo secretário da


chancelaria de Florença que Maquiavel conheceu os principais
personagens políticos de seu tempo, entre eles César Bórgia
(herdeiro do Papa Alexandre VI), com quem conviveu durante
quatro meses. Nas audiências que o governante lhe concedia,
Maquiavel tomava conhecimento de seu raciocínio e sua
astúcia política, que não excluíam arranjos, intrigas traições
e assassinatos. É muito provável que o chanceler florentino
tenha extraído desse aprendizado muitas ideias para O Príncipe,
entre elas a que se resume pela máxima que imortalizou seu
pensamento: “os fins justificam os meios.”

78
História da Filosofia III

Essa expressão acabou se tornando emblema de


um maquiavelismo, termo que frequentemente se
interpreta como sinônimo de imoralismo político.
Entretanto, essa é uma ideia do senso comum que foi
tomando feição ao longo dos séculos. Sua proposta
permanece apenas na superfície do pensamento
político de Maquiavel. Somente a partir dos estudos
mais atuais é que outras interpretações do significado
de suas ideias vêm se construindo.

Nessa nova forma de compreender Maquiavel, não se


exclui, como apontamos inicialmente, a abordagem
do momento histórico em que ele viveu, tampouco a
análise de seus outros livros, como: História Florentina,
a Arte da Guerra e os Discursos Sobre a Primeira
Década de Tito Lívio. Ao lado de O Príncipe, tais obras
oferecem uma visão mais completa do conjunto de suas
ideias. Em verdade, a análise de sua obra completa
revela uma tomada de posição bastante coerente com Figura 2.12 - Estátua de Maquiavel feita
por Lorenzo Bartolini, situada na Galleria
o perfil renascentista: Maquiavel não mais se interessa degli Uffizi
pelas discussões teóricas abstratas envolvendo a forma Fonte: Porto [2010?].
ideal de governo (como o fez Santo Agostinho em
A cidade de Deus), mas passa a abordar a realidade
dos fatos, perguntando-se pelos meios efetivos de ação
política disponíveis em sua sociedade.

De acordo com seus comentadores, a sabedoria política de


Maquiavel provinha de uma vasta leitura da história antiga e
da observação da conduta de seus contemporâneos, como César
Bórgia e o Duque de Urbino, que haviam lhe causado uma
forte impressão pela astúcia em conduzir os assuntos políticos
conforme seus respectivos interesses, mesmo valendo-se de
meios questionáveis.

As lições de O Príncipe não estariam, portanto, pautadas em


ideias utópicas, elaboradas a partir de princípios abstratos, mas,
sim, em conceitos realistas, obtidos em um intenso trabalho
empírico. A regra metodológica desse trabalho consistia em
ver e examinar a realidade como ela é, e não como se gostaria
que fosse. Vejamos mais de perto os elementos centrais desse
famoso escrito.

Unidade 2 79
Universidade do Sul de Santa Catarina

Basicamente, O príncipe é um pequeno tratado no qual Maquiavel


aponta, a partir de sua experiência política, vários conselhos para
a conduta adequada de um governante que pretendesse manter
seu principado seguro e unido no conturbado cenário político
da Renascença italiana. Lembre-se, estamos falando do final do
século XV.

Tomados em si mesmos, alguns desses conselhos apresentam-


se a nós como algo extremamente desumano. Ao príncipe, por
exemplo, caberia ser cruel quando necessário; para manter o
respeito dos cidadãos e de seus inimigos. Mais uma vez, é preciso
lembrar que o propósito de Maquiavel foi o de relatar aquilo que a
experiência prática o ensinou. Segundo Bandecchi (1981, p. 15):

Para ele [Maquiavel], o triunfo do mais forte é o fato


essencial da História. Desta forma, afasta qualquer
preocupação de direito na aquisição. Isso pode parecer
muito frio e bem pouco agradável de se ouvir, mas é uma
verdade que, exatamente por ser verdade, se torna, às
vezes, incômoda. Maquiavel constata-a e toma-a como
um elemento concreto, longe de qualquer divagação
idealista ou irreal.

Longe de demonstrar uma predileção pela má conduta dos


governantes ou pelas ações vis, como poderia sugerir o adjetivo
“maquiavélico”, Nicolau Maquiavel se limita a avaliar a virtude
política em termos de suas consequências práticas. Trata-se,
portanto, de uma perspectiva realista de seu contexto histórico.
Acompanhe um trecho do capítulo XVII de O Príncipe,
intitulado “Da crueldade e da piedade e se é melhor ser amado do
que temido ou vice-versa”:

Examinando o que está na epígrafe, tenho a dizer que


todo príncipe deve aspirar a ser considerado piedoso
e não cruel, mas a piedade deve ser convenientemente
empregada. César Bórgia, conhecido como cruel,
organizou e unificou a Romanha, deu-lhe fé e paz sob a
égide da crueldade. O que bem avaliado, veremos que foi
mais piedoso do que o povo florentino, que para evitar
a pecha de cruel, permitiu que história fosse arruinada.
Assim, o príncipe não deve preocupar-se se o julgarem
cruel para manter seus súditos unidos e fiéis, porque com
raríssimas exceções será mais piedoso do que aqueles

80
História da Filosofia III

que, por muita complacência, permitem desordens das


quais podem originar morticínios e rapinagens. Estas
prejudicam toda a sociedade e as condenações atingem a
um indivíduo apenas. [...] Não deve, portanto, o príncipe
ser ingênuo nem imprudente e tímido, mas proceder de
modo equilibrado, com prudência e humanidade, de tal
forma que a confiança exagerada não o faça incauto e a
muita desconfiança não o torne intolerável.
Surge, aqui, uma questão: “Se para o príncipe é melhor
ser amado ou ser temido, ou vice-versa”. O certo é que
o melhor seria ambas as coisas. Mas é difícil juntá-
las. Assim, entre uma e outra, é muito mais seguro
ser temido que amado. Isto porque os homens são,
geralmente, ingratos, volúveis, simuladores, covardes e
gananciosos e enquanto recebem favores de quem está no
poder lhe oferecem a vida, os filhos, o sangue e os bens,
mas quando a adversidade se avizinha, desaparecem. E
o príncipe, que acreditou neles e não se preparou para
enfrentar o infortúnio, está arruinado, porque os que
se tornam amigos do governo em busca de vantagens e
não por grandeza e nobreza d’alma são interesseiros e
fogem na hora incerta. E os homens têm mais facilidade
em trair os que se fazem amar do que os que se fazem
temer. O amor cria um vínculo de gratidão que se rompe
facilmente, porque o homem é de mau caráter, enquanto
o temor é seguro pelo liame do receio do castigo, que
traz o homem submetido. O príncipe deve, no entanto,
ser temido, de modo que não sendo amado também
não seja odiado. E ele pode ser temido e não ser odiado
desde que respeite os bens e as mulheres de seus súditos
e quando for preciso matar alguém, faça com justificação
e causa manifesta. Deve, sobretudo, não apropriar-se
dos bens alheios, porque os homens esquecem mais
facilmente a morte do pai do que a perda do patrimônio.
(MAQUIAVEL, 1981, p. 89-90).

Enfim, com essas ousadas reflexões, Maquiavel será o primeiro


a realizar uma abordagem propriamente humanista, isto
é, menos teologizada, das relações políticas no período do
Renascimento. Com a efetiva separação entre o campo da ética
individual e a esfera das ações públicas, o pensador florentino
inaugura um novo momento da reflexão política. O conceito
de virtu, para Maquiavel, não mais se refere à qualidade moral
e elevação do espírito; mas à destreza política e habilidade para
administrar forças contrárias. A análise realizada em
O Príncipe não desqualifica as virtudes pessoais, que continuam

Unidade 2 81
Universidade do Sul de Santa Catarina

mantidas como valores em si. Todavia, no campo do exercício


político tais virtudes não necessariamente conduzem ao sucesso
do governante.

Uma interpretação alternativa às ideias de Maquiavel seria a de


que, fingindo ensinar aos governantes, o florentino teria alertado
ao povo, revelando-lhe todos os ardis da realeza.

O Ceticismo
Durante a Idade Média, a tradição filosófica praticamente
desconsiderou qualquer corrente antiga que não contribuísse para
a tentativa de conciliação entre fé e razão. André Verdan (1998)
afirma, entretanto, que no século XIV filósofos como Guilherme
de Ockam e outros apresentaram uma atitude cética com relação
ao dogmatismo metafísico assumido pelas doutrinas oficiais
sustentadas pela igreja.

Mesmo que não tenham colocado à prova suas crenças nos


dogmas, eles defendiam que certas verdades não podem ser
demonstradas pela razão, atacando, com isso, o pensamento
escolástico do momento. É certo que esse passo não significa que
eles tenham sido céticos, mas leva a pensar que, mesmo durante
a Idade Média também houve certa desconfiança com relação às
formas de compreensão da realidade apresentadas.

Um pouco mais tarde, humanistas como Nicolau de Cusa e


Agripa de Nettesheim propuseram argumentos nessa direção.
Sexto Empírico foi um médico Nicolau de Cusa via entre a razão humana e a realidade
e filósofo grego que viveu entre infinita da existência divina uma ausência de proporção, apenas
os séculos II e III. Seus trabalhos solucionável pela elevação do espírito às intuições trazidas pela
filosóficos são um dos melhores
exemplos do ceticismo pirrônico e
fé. Para esses pensadores, somente pela revelação e pela fé, é que
fonte da maioria dos dados referentes os homens poderiam alcançar a sabedoria sobre as questões mais
a essa corrente filosófica, opondo-se elevadas da criação.
à astrologia e outras magias. Seus
escritos foram publicados em latim Em pleno Renascimento, junto à circulação de outras versões de
pela primeira vez em 1562, por textos antigos, o pensamento de Pirro de Élis cai no interesse dos
Henricus Stephanus.
humanistas a partir da tradução dos textos de Sexto Empírico,
no século XVI.

82
História da Filosofia III

Pirro de Élis (360-270 a.C) foi um filósofo grego, fundador do


ceticismo como escola filosófica. Sua doutrina, também conhecida
como pirronismo ou ceticismo pirrônico, caracterizava-se por negar
ao conhecimento humano a capacidade de encontrar certezas.
Filósofo de teorias complexas, Pirro acompanhou Alexandre,
o Grande (356-323 a. C.) na conquista do Oriente, ocasião
em que entrou em contato com os sábios da Índia e da Pérsia.
Durante e após esta expedição, ele estudou filosofia com o
atomista Anaxarco de Abdera (380-325 a.C.) e iniciou-se no
magistério por volta de 324 a.C. Ao meditar sobre os discursos
filosóficos de sua época, Pirro concluiu que todas as doutrinas
eram capazes de encontrar argumentos igualmente convincentes
para a razão, tornando-se impossível alcançar uma só verdade
definitiva, fixa e imutável.

Pirro desdobrou sua filosofia em três questões:

„„ Qual a natureza das coisas?

„„ Como devemos portar-nos diante delas?

„„ O que obtemos com esse comportamento?

Para ele, toda intenção de buscar uma “essência”, para além


das aparências, está condenada ao fracasso pelas deficiências
dos sentidos e pela fraqueza da razão. Essa impossibilidade de
conhecimento, entretanto, deveria conduzir o homem sábio a
uma atitude de desapego e equanimidade diante das aparentes
contradições (ataraxia). Enfim, esses ensinamentos voltaram à
atualidade em razão da tradução dos livros de Sexto Empírico
(150-220), que codificara as obras doutrinárias da escola cética no
século III da era cristã.

Danilo Marcondes (2001) apresenta uma relação entre essa


retomada do ceticismo e a vertente antiga, ao afirmar que sempre
houve céticos, mas, na filosofia pré-moderna, o ceticismo aparece
como uma condição da própria filosofia. Tal acontecimento
seria ocasionado pelas rivalidades entre diferentes doutrinas,

Unidade 2 83
Universidade do Sul de Santa Catarina

que ocorreram no início da modernidade, como o debate entre


aristotélicos e platônicos visto anteriormente.

Além disso, muitas verdades tidas como dogmáticas caíram por


terra a partir de ideias como o heliocentrismo, que colocava uma
nova hierarquia na forma com que o universo era reconhecido.
Após tamanha mudança de paradigma, é compreensível que os
humanistas tenham a desconfiança de que, se o geocentrismo
estava errado, outras coisas nas quais sempre se acreditou
poderiam ser igualmente questionadas.

Um dos principais questionamentos do ceticismo


retomado em parte pela filosofia pré-moderna
referia-se, portanto, à possibilidade dos sentidos
conhecerem a realidade suprassensível. Mas repare
que esse descrédito do conhecimento sensível afeta
principalmente a razão; e não necessariamente a fé.

Martinho Lutero, principal promotor da Reforma Protestante,


viria a adotar essa posição ao afirmar que o conhecimento
de Deus só pode ser alcançado pela fé. Lutero defendia que,
entre a fé e a razão, há oposição, uma vez que esta última foi
contaminada pelos sentidos. Isso colaborou com a crença na
superioridade do crer, tese que ficou conhecida por fideísmo.

De um modo geral, o florescimento do ceticismo no


Renascimento significa a necessidade de reafirmar a supremacia
da fé sobre a razão e tem como importante marco na
modernidade as formulações do humanista Michel de Montaigne
(1533-1592), em quem o ceticismo aparece como uma afirmação
da sua fé. Conforme Starobinsky (1993, p. 84), o ceticismo
de Montaigne, segundo sua intenção confessa, visa a fazer do
homem a página em branco em que o dedo de Deus escreve o
que Lhe aprouver escrever.

84
História da Filosofia III

A partir de 1563, Montaigne inicia a articulação de sua


obra mais conhecida, Os Ensaios. Pesquise em fontes
devidamente estabelecidas a respeito dessa obra de
Montaigne e elabore um pequeno texto, apontando
suas principais contribuições à história da filosofia.

De um modo geral, uma das grandes contribuições de Montaigne


ao clima cultural que precede o nascimento da filosofia moderna
é a adoção de um ceticismo moderado, caracterizado pela
“suspensão de juízo” (epokhé). Esse mesmo fundamento conceitual
será fundamental para que René Descartes, em suas Meditações
metafísicas chegue à célebre conclusão que abre oficialmente o
pensamento filosófico moderno, a saber, penso, logo existo.

Unidade 2 85
Universidade do Sul de Santa Catarina

Síntese

Nesta unidade, você estudou que não há um consenso, e,


sim, inúmeros pontos de vista sobre o significado tanto do
Humanismo quanto do Renascimento. Conheceu também
algumas ideias de pensadores expoentes do início do
Humanismo, como Petrarca, Alberti e Lorenzo Valla.

Você aprendeu que entre os aspectos do pensamento humanista


havia uma concepção mágica do mundo. Ela aparece de
maneira diversa em indivíduos como Marcílio Ficino, Agripa de
Nettesheim, Pico dela Mirandola e Giordano Bruno. Esta faceta
do pensamento humanista/renascentista foi desenvolvida a partir
da descoberta e da tradução de textos antigos, cujos intérpretes
tomaram como textos autênticos de antigos profetas. Mais tarde,
eles foram atribuídos ao helenismo tardio.

Analisamos brevemente algumas perspectivas lançadas sobre a


obra de Platão e de Aristóteles, bem como as polêmicas iniciais
que deram maior visibilidade ao pensamento de Platão no âmbito
do pensamento humanista.

Por fim, você conheceu a relação entre humanismo e política,


estudando que uma das suas maiores expressões se deu a
partir do pensamento de Nicolau Maquiavel e de sua mais
conhecida obra O Príncipe. Outro elemento de transformação
do pensamento filosófico pré-moderno foi o interesse pelo
ceticismo surgido no Renascimento, que influenciará o
nascimento da Filosofia Moderna, principalmente a partir da
obra de Michel Montaigne.

86
História da Filosofia III

Atividades de autoavaliação

Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação. O


gabarito está disponível no final do livro didático. Mas, esforce-se para
resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará
promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1) Nesta unidade, você estudou que os humanistas elaboraram uma


leitura diferenciada dos clássicos antigos. Explique em que consistiu
esta “nova leitura” proposta pelos humanistas.

2) “O homem é a medida de todas as coisas”. Essa afirmação foi feita


por Protágoras (485-411 a.C.), muitos séculos antes do Renascimento.
Contudo, ela indica o pensamento de valorização do homem e da sua
capacidade de realização típica do Renascimento. Pesquise e descreva,
pelo menos, quatro exemplos que ilustrem esse pensamento durante
o Renascimento.

Unidade 2 87
Universidade do Sul de Santa Catarina

3) Com base no que você estudou sobre a magia natural no


Renascimento e as polêmicas entre aristotélicos e platônicos, explique
o papel que os textos oriundos da cultura pagã tiveram na constituição
das concepções mágicas do pensamento renascentista.

4) A partir dos estudos que você realizou a respeito de Nicolau Maquiavel,


explique por que sua inovadora análise política é coerente com a
perspectiva humanista.

88
História da Filosofia III

Saiba mais
Para aprofundar seus estudos sobre o Renascimento e
Humanismo, sugerimos as seguintes leituras:

BLUM, Paul Richard (Org.) Filósofos da renascença.


São Leopoldo: Unsinos, 2003.
O livro organizado por Blum é uma leitura recomendada porque
oferece um bom quadro do pensamento humanista. A obra
foi escrita por diversos autores. Nela, cada autor apresentou
e discutiu as ideias dos principais expoentes do humanismo.
Os textos foram organizados obedecendo à cronologia de
nascimento desses humanistas.

MORGANTI, Bianca Fanelli. Invective contra medicum de


Francesco Petrarca: tradução, ensaio introdutório e notas. Tese
(Doutorado)-Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, 2008.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia


das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Para aprofundar seus conhecimentos sobre Giordano Bruno,


leia o quadro a seguir e conheça um pouco mais sobre a vida
desse teólogo, filósofo, escritor e frade dominicano italiano
que foi condenado à morte na fogueira pela inquisição
romana, por heresia.

Unidade 2 89
Universidade do Sul de Santa Catarina

Giordano Bruno foi outro grande expoente do pensamento renascentista,


dedicando-se profundamente a refletir sobre a magia natural. Nascido numa
família da nobreza de Nola (próximo ao Vesúvio), em 1548, inicialmente,
chamou-se Fellipo Bruno. Aos 13 anos, ele começou a estudar humanidades,
lógica e dialética em Nápoles, no mesmo convento em que São Tomás de
Aquino vivera e ensinara. Em 1565, aos 17 anos, recebeu o hábito de dominicano,
ocasião em que mudou o nome para Giordano. Ordenado sacerdote em 1572,
continuou seus estudos de teologia no convento, concluindo-os em 1575.
Dotado de espírito rebelde, em pouco tempo revoltou-se contra as imposições
eclesiásticas, vindo a rejeitar inclusive certos aspectos da própria doutrina cristã.
Ao contrário de Galileu Galilei (1564-1642), Bruno se negou a refutar a teoria
do astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), de que a Terra girava em
torno do Sol. Além disso, por ser padre e teólogo, suas heresias e dúvidas em
relação à Santíssima Trindade, por exemplo, partiam de dentro da igreja e foram
interpretadas como um ato de insubordinação ao Papa. Giordano Bruno foi
queimado vivo no Campo de Fiori, em Roma, sob a acusação de heresia e de
blasfêmia. “Posso ter sido qualquer coisa, menos blasfemador”. Essa frase teria
sido dita por ele no dia de sua execução, em 17 de fevereiro de 1600.

Figura 2.13 - Monumento erguido em 1889 por círculos maçônicos italianos, no local onde
Giordano Bruno foi executado. Campo de Fiori, Roma, Itália
Fonte: Bamman (2010).

90
História da Filosofia III

Acompanhe um trecho do diálogo Da Causa, Princípio e Uno, em que Giordano


Bruno se refere de forma mística ao tema do microcosmo e à relação entre o
homem e o universo:

O indivíduo [, isto é, o indiviso (o que não se divide),] não é diferente,


portanto, do divíduo [, isto é, o diviso (o que se divide)], o simplicíssimo
do infinito, o centro da circunferência. Daí por que o infinito é tudo
aquilo que pode ser, é imóvel; porque nele tudo é indiferente; é uno; e
porque tem toda a grandeza e perfeição que se possa ter além e além,
é máximo e ótimo intenso. Se o ponto não difere do corpo, o centro da
circunferência, o finito do infinito, o máximo do mínimo, seguramente
podemos afirmar que o universo é todo centro, ou que o centro do
universo está em todo lugar, e que a circunferência não está em parte
nenhuma por ser diferente do centro, ou então que a circunferência
está em todo lugar, mas o centro não se encontra enquanto é diferente
dela. Eis como não é impossível, mas necessário, que o ótimo, máximo,
incompreensível, é tudo, está para tudo, está em tudo, porque, como
simples e indivisível, pode ser tudo, ser para tudo, ser em tudo. E assim
não foi dito de forma vã que Júpiter enche todas as coisas, habita todas
as partes do universo, é centro daquilo que tem o ser, uno em tudo e
pelo qual uno é tudo. O qual, sendo todas as coisas e compreendendo
todo o ser em si, também faz com que toda coisa esteja em toda coisa.
(BRUNO apud REALE E ANTISERI, 2004, p. 130).

Unidade 2 91
3
UNIDADE 3

O prelúdio da filosofia moderna


– A Reforma Protestante e a
Revolução Científica
Cesar Augusto Jungblut e Lucésia Pereira

Objetivos de aprendizagem
„„ Estudar o contexto histórico que antecedeu
a Reforma Protestante
„„ Analisar as principais ideias que impulsionaram
a Reforma
„„ Entender aspectos da Contrarreforma

„„ Compreender o contexto histórico da


Revolução Científica
„„ Analisar as principais ideias que impulsionaram
o pensamento científico

Seções de estudo
Seção 1 A Reforma Protestante
Seção 2 A Revolução Científica
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo

No decorrer do século XVI, as condições iniciais do


Renascimento entraram em declínio, a partir de eventos como
a Reforma protestante, que mudou a feição da religião cristã
para sempre. A Reforma teve início nas regiões do norte da
Europa, onde o Renascimento assumira características próprias,
desenvolvendo um Humanismo menos apegado aos clássicos e
mais voltado para a vida prática.

A Reforma e a Contrarreforma foram os eventos sociais


mais marcantes do início da modernidade, alterando
significativamente não apenas a perspectiva religiosa, mas grande
parte das práticas sociais e instituições em geral. Ao longo da
Idade Média o poder de influência da igreja católica havia se
estendido indefinidamente, fazendo-se presente em todos os
setores da vida prática dos cidadãos europeus; do trabalho às leis
e mesmo nos aspectos íntimos da vida privada. Nesse sentido, o
questionamento desse poder absoluto pelo pensamento reformista
consistirá numa ruptura radical com o que restara da cultura
medieval. A partir daí, todas as instituições, num processo lento
e gradual, vão ganhando autonomia e assumindo um caráter cada
vez mais secular.

Não é exagero afirmar que a Reforma e a Contrarreforma católica


trouxeram grandes implicações para o pensamento filosófico. As
novas religiões, que se alastraram pela Europa, contestaram a
moralidade tradicional em questões nucleares, o que implicou a
busca de novos fundamentos para o pensamento humano.

Como um movimento concomitante ao Renascimento e à


Reforma, a Revolução Científica constitui o terceiro elemento
fundamental para a compreensão do nascimento da filosofia
moderna. Trata-se de um evento amplo e gradual, geralmente
demarcado pelos eventos ocorridos na Europa, no período
compreendido entre os séculos XVI e XVII. Entretanto, é
possível enxergar suas origens ainda no período da Renascença.
Foi por meio desse processo que o método experimental, hoje
tomado como a característica central da prática científica, veio a
ser progressivamente desenvolvido e aplicado.

94
História da Filosofia III

Neste sentido, tanto a Reforma Protestante quanto a magia


natural contribuíram de alguma forma para impulsionar o
desenvolvimento do espírito científico moderno. Esses são alguns
dos assuntos a serem estudados nesta unidade.

Seção 1 – A Reforma Protestante


Num olhar rápido, podemos dizer que a Reforma Protestante
foi uma revolta das nações do norte europeu contra o domínio
de Roma. Contudo, se olharmos mais atentamente, veremos
que a religião foi apenas um dos motivos desse evento. Além das
disputas regionais, questões econômicas, políticas e culturais já
esboçadas de longa data conjugaram-se para fortalecer a revolta
contra Roma e o papado.

Antecedentes da Reforma
Durante a Idade Média não faltaram exemplos de reformismos
dentro das próprias ordens religiosas, algumas delas fundadas
com um caráter completamente diverso ao da igreja. Exemplos
disso são os franciscanos e dominicanos, cuja dedicação à
doutrina, aos princípios menos hierárquicos e à simplicidade,
representava uma reação contra o abuso do poder e das riquezas
da maior parte do clero.

Como resultado de um processo amplo, portanto, a Reforma


não ocorreu do dia para a noite, mas proveio de uma crise
que vinha se desenvolvendo na sociedade europeia desde o
fim da Idade Média, quando se percebe já existir um notório O termo heresia não teve
descontentamento e até mesmo repúdio ao clero por parte de origem na igreja; ele vem do
latim haeresis, que significa
outros setores da sociedade. As contestações à igreja ganharam
“escolha” ou “opção”.
força por meio das heresias dos séculos XI e XII.

Unidade 3 95
Universidade do Sul de Santa Catarina

À medida que a igreja foi se fortalecendo e estruturando sua


hierarquia nos primeiros séculos da Idade Média, ela passou
a adotar a palavra “heresia”, identificando como hereges todos
aqueles que discordavam da doutrina dos apóstolos ou que se
posicionassem contrariamente aos princípios da fé oficial ou da
estrutura eclesiástica. A heresia significava para a igreja uma
cisão com a ordem espiritual estabelecida. Essa ruptura podia
ser pela especulação intelectual ou por uma reação popular.

Na Idade Média, em ambas as formas, as heresias


foram um meio de questionamento e de reivindicação.
Durante os séculos XII e XIII foram consideradas
heresias as especulações racionais sobre princípios ou
dogmas cristãos como, por exemplo, a Trindade.

Já na Baixa Idade Média, as heresias expandiram-se para os


movimentos populares, que passaram a ter uma visão
separada da igreja e do próprio cristianismo como religião.
A riqueza e a opulência da igreja, e a sua negligência diante
da pobreza da maior parte da população, despertaram
críticas e questionamentos. Nessa mesma época, obras
literárias, como O Decamerão, de Giovanni Boccaccio (1313-
1375), falaram da falsidade dos milagres e denunciaram a
vida devassa nos monastérios.

O escritor italiano Giovanni Boccaccio nasceu em Paris, no


ano de 1313. Ele era filho de um mercador da região italiana de
Toscana. Após cursar as primeiras letras em Florença, Boccaccio
foi enviado a Nápoles, por imposição do pai, para desempenhar
o trabalho mercantil. Em seguida, devido à sua má vontade
para dedicar-se a tal atividade, ele começou a estudar direito
canônico. Nessa época, leu os clássicos latinos, a literatura de
corte francesa e italiana e escreveu as suas primeiras obras:
Filoloco, L’Amorosa Visione, Elegia di Madonna Fiammetta, Ninfale
Fiesolano, e muitos poemas, obras essas que ainda expressavam
o romanesco, o fantástico e o bizarro da imaginação medieval.
Em 1348, Boccaccio voltou a Florença, onde assistiu ao surto da
peste, e, depois da morte do pai (c.1350), lá permaneceu para
administrar o pouco patrimônio que lhe restara.

96
História da Filosofia III

A este quadro de instabilidade social, somaram-se (no


século XVI) os abusos eclesiásticos que levaram a igreja a
uma crise moral. Para os contestadores, a igreja não mais
servia de exemplo como deveria, tendo em vista que o
comportamento de parte do clero contrariava o conteúdo de
suas próprias pregações. Isso ficou claro em diversas
declarações, como nesta, de Leon Battista Alberti (1973, p.
40):

Figura 3.1 - Hilas e as ninfas (1896), de John William Waterhouse, que retrata um
dos contos de O Decamerão, de Boccaccio
Fonte: Frakturfreund (2009).

Ainda nessa época, Boccaccio começou a participar da vida


pública e cultural da sua cidade, e, por isso, lhe foram confiados
trabalhos e embaixadas. Em 1351, ele concluiu a sua maior
obra, O Decamerão, iniciada por volta de 1348.
Essa obra, escrita em prosa, relata em dez histórias curtas,
contadas por sete moças e três rapazes, que se refugiavam
no campo para escapar da peste negra, os conflitos entre
os valores cristãos e o espírito libertino da época, questões
ligadas à transição para o Renascimento. Apesar de ter sido
escrita há mais de seiscentos anos, O Decamerão ainda pode
ser lido como enorme prazer. Por isso, ele tornou-se um
clássico da prosa ocidental e um dos maiores livros eróticos
de todos os tempos.
Em seus últimos anos de vida, Boccaccio fortaleceu sua amizade
com Francesco Petrarca, que o ajudou a superar uma crise
religiosa, dirigindo a sua atividade para a cultura literária do tipo
“humanístico”. Nesse mesmo período, Boccaccio introduziu na
Itália a obra de diversos autores gregos clássicos. Ele também
estudou a obra de Dante, tornando-se, assim, o primeiro
biógrafo desse autor. Reconhecido por seus contemporâneos
como poeta, recebeu inúmeros postos diplomáticos. Boccaccio
morreu na cidade italiana de Certaldo, em 1375.

Unidade 3 97
Universidade do Sul de Santa Catarina

A este quadro de instabilidade social, somaram-se (no século


XVI) os abusos eclesiásticos que levaram a igreja a uma crise
moral. Para os contestadores, a igreja não mais servia de exemplo
como deveria, tendo em vista que o comportamento de parte
do clero contrariava o conteúdo de suas próprias pregações. Isso
ficou claro em diversas declarações, como nesta, de Leon Battista
Alberti (1973, p. 40):

Os padres são dos homens os mais cúpidos (ávidos por


dinheiro) do mundo. Eles rivalizam um e outro com
quem terá mais, não do que deveriam ter de virtudes
e letras, mas querem ultrapassar os outros pela pompa
e pela ostentação. Querem belos engastes, ricos e
ornamentados; querem mostrar-se em público como
um exército de comilões, e a cada dia, por causa da sua
preguiça e de sua ausência de virtude, suas inclinações se
fazem mais [...] temerárias e mais imprudentes.

Além disso, a partir do Humanismo, a igreja foi perdendo


crescentemente o controle sobre a produção do conhecimento,
num processo gradativo de separação entre a Filosofia e a
Teologia e entre a Ciência e a Religião. Ainda assim, em grande
parte o pensamento humanista foi mediador entre a tradição
clássica e os dogmas da igreja, sendo que nomes notáveis do
Humanismo, como Marcílio Ficino, Picco dela Mirandola e
Giordano Bruno, pertenciam ao clero.

Isso não significa dizer que a atmosfera era


totalmente liberal, mas que o humanismo
eclesiástico resultou como que num relaxamento
temporário do controle da igreja sobre o saber
científico. De fato, por cerca de 100 anos houve
até mesmo certo estímulo de alguns membros do
clero ao desenvolvimento da ciência. Esse período
ocorre durante os papados de Nicolau V, fundador
da biblioteca vaticana, Calixto III, Paulo II, Sixto VI
e outros, até Paulo III, quando a reação contra a
Reforma começou a comprometer a abertura dos
espíritos para com as novas hipóteses científicas,
alterando drasticamente as relações entre a igreja e
a Nova ciência.

98
História da Filosofia III

No entanto, o ambiente intelectual não era, por certo,


inteiramente liberal. Muitos inovadores eram levados a cultivar
segredo sobre suas descobertas ou opiniões, como no caso
de Leonardo, Fernel e Copérnico, o qual só publicou suas
conclusões muitos anos após tê-las formulado.

Do ponto de vista da economia, o capitalismo comercial que se


instalava na Europa chocava-se com os ideais católicos baseados
no tomismo, que preconizava o “justo preço”. Esse princípio
determinava que o preço do produto fosse aquele resultante
da soma da matéria-prima com o custo da mão de obra, indo,
assim, contra o lucro livre, mola propulsora do novo sistema
econômico que começava a se estabelecer. Somada a isso, havia
também a condenação da usura, ou seja, dos juros obtidos pelo
empréstimo de dinheiro. Essa oposição entre os dogmas da igreja
e as mudanças na economia certamente contribuiu para dividir
opiniões e abalar a posição do clero como autoridade absoluta em
todos os campos da atividade humana.

Cabe lembrar que a antiga ordem social, oriunda da Idade


Média, era pautada na negação do trabalho como atividade
lucrativa e no desapego aos bens materiais. De acordo com Max
Weber (1997, p. 128), “a ética medieval, não apenas tolerava
a mendicância, como a glorificou nas ordens mendicantes”.
Os teóricos reformistas, ao reinterpretar os textos sagrados,
formularam novas posições quanto a estas questões e, lentamente,
defenderam uma nova conduta, em que o trabalho como forma
de obtenção de lucro e, consequentemente, de riquezas, passou
não apenas a ser legalizado, mas valorizado e aceito por Deus.
Esse novo posicionamento atendeu plenamente aos anseios da
burguesia, que cada vez mais se fortalecia enquanto classe social
autônoma a partir dos lucros do trabalho.

Com relação à política, a volta do papado de Avignon para


a Itália e a crise que isso gerou, mostrou à própria igreja a
O papado foi transferido
necessidade de transformações, o que resultou na convocação de Roma para Avignon
do Concílio de Constança (1414-1418). Foi nesse concílio entre 1309 e 1377.
que se decidiu pela condenação de Jan Huss, sob a acusação
de heresia. O concílio, no entanto, pouco avançou no que se
refere às reformas, e as críticas à igreja foram se fortalecendo
cada vez mais.

Unidade 3 99
Universidade do Sul de Santa Catarina

O Concílio de Constança foi composto por importantes


autoridades eclesiásticas. Além de escribas, o concílio detinha
o poder em importantes decisões políticas e religiosas que
repercutiam em toda a Europa. A mais importante dessas
decisões foi a resolução do chamado Cisma do Ocidente. Na
época, três papas diferentes, apoiados por diferentes facções,
mantinham foro em cidades distintas.
Ninguém podia concordar num papa legítimo e cada um
dos papas já havia excomungado o outro. Desesperado para
resolver a crise, o Concílio de Constança pediu que os três papas
abdicassem de sua posição. Dois deles concordaram, enquanto
que o terceiro fugiu para uma ilha inacessível, onde morreu
reivindicando seu direito papal.
Outra decisão importante foi cuidar da ameaça do reformador
tcheco Jan (João) Huss, um livre pensador para quem a mistura
de novas ideias religiosas, criticismo contra a igreja Católica
e nacionalismo boêmio lhe valeu um grande número de
seguidores.
A igreja que ele criou (A igreja Hussita) era similar em muitas
características àquela que Martinho Lutero fundaria cem anos
depois. O Concílio julgou Huss e o condenou por heresia; ele foi
queimado numa fogueira. Sua morte o tornou um herói pátrio
e um mártir para muitos seguidores boêmios, que se negaram a
alterar suas práticas e opiniões. Os hussitas eram considerados
hereges e a igreja os excomungou. Várias campanhas militares,
conhecidas coletivamente como as guerras hussitas, foram
realizadas contra a igreja renegada, de 1420 a 1433.

O papado vivia envolvido em disputas pelo poder político. Essas


disputas vinham desde o governo de Gregório VII (c.1025-
1085), decorrentes da ideia de que o papa tinha poder absoluto,
inclusive na esfera temporal, isto é, nas questões da vida prática.
Esse poder desmedido, com maior ou menor força, sempre foi
uma razão de antagonismo entre a autoridade eclesiástica e as
demais instituições temporais, como a família, o comércio, e o
Estado como um todo. Mas, certamente, a crise se via acirrada
frente ao surgimento dos interesses do nacionalismo, que emergia
em várias regiões europeias, na esteira da unificação dos estados
nacionais, que ocorreu no Renascimento. Dessa forma, quanto
mais forte fossem os estados, mais eles demandavam controle por
parte da igreja.

100
História da Filosofia III

A arte também foi um instrumento ideológico eficaz da política


papal. Por meio dela a igreja buscou expressar o poder secular que
almejava para si por meio de modelos inspirados no Classicismo
monumental das construções imperiais romanas. É na esteira
destes interesses que o papa Julio II decidiu edificar, em 1506,
uma “grandiosa estrutura capaz de eclipsar as sete maravilhas do
mundo.” (GOMBRICH, 1993, p. 219).

Assim, decidiu-se que a nova basílica de São Pedro em Roma


seria erigida no lugar de uma antiga igreja construída por
ordem do imperador Constantino, em 319 d.C. Sua construção
reuniu nomes célebres, como o arquiteto Donato Bramante e
Michelangelo:

A enorme construção absorveu tanto dinheiro que,


na tentativa de angariar fundos suficientes, o papa
precipitou a crise que culminaria na Reforma. Foi a
prática de vender indulgências em troca de contribuições
para a construção dessa igreja que levou Lutero, na
Alemanha, a realizar o seu primeiro protesto público.
(GOMBRICH, 1996, p. 220).

Para alguns estudiosos, os escândalos relacionados à venda de


indulgências para pagar os vultosos gastos de sua construção,
especialmente durante o papado de Leão X, aumentaram
o ressentimento contra a igreja Católica e culminaram na
Reforma Protestante.

Figura 3.2 - Basílica de São Pedro


Fonte: Mendes (2009).

Unidade 3 101
Universidade do Sul de Santa Catarina

O pensamento reformista
Como você acabou de ver, a Reforma Protestante foi um
movimento resultante do inconformismo ante a atuação da
igreja e das novas condições sociais e econômicas da Europa. O
fato é que as questões trazidas pelo Renascimento propiciaram
o desenvolvimento de uma nova relação do homem com Deus.
Em certo sentido, pode-se dizer que os filósofos humanistas,
ao redescobrirem o homem no século XVI, estavam também
redescobrindo Deus.

No mundo cristão da Europa renascentista, gerou-se um


enorme conflito entre a doutrina agostiniana, retomada ao
gosto das releituras humanistas, e o tomismo, no qual a igreja
se baseava desde o final da Idade Média. O tomismo rompeu
com a ideia de predestinação, a qual seria recuperada mais tarde
pelos reformadores. Segundo a teoria da predestinação, caberia
somente a Deus escolher aqueles que iriam para o paraíso e
determinar aqueles que ficariam na perdição. Apenas a fé poderia
determinar a que grupo cada um pertencia. Essas ideias estavam
presentes durante o pensamento da patrística, isto é, o primeiro
período da filosofia medieval.

Entretanto, a partir das ideias de São Tomás de Aquino,


a igreja abandonou essa concepção fatalista e passou
a considerar o livre arbítrio, ou seja, a ideia de que o
homem poderia interferir no seu destino e obter a sua
salvação pela prática do bem e pela realização de boas
obras.

A ideia do livre arbítrio fora adotada pelo humanista Erasmo de


Roterdam (1465-1536):

[…] que acreditava integralmente nas possibilidades de


a razão humana distinguir claramente entre o bem e o
mal, e colocava no livre arbítrio de cada um a fonte de
todo autêntico pensamento religioso e da opção moral.
(OLIVEIRA, 1988, p. 15).

102
História da Filosofia III

Autor de uma das críticas mais fundamentadas à atuação da


igreja, Erasmo de Roterdam, desde o início de sua formação,
cultivara um espírito humanista crescente. Já em suas primeiras
obras, ele falava da decadência dos valores, desprezando as
doutrinas escolásticas.

Você sabia?
Por esta postura questionadora, algumas de suas obras
foram colocadas em um índice de livros proibidos pela
igreja, do qual falaremos adiante.

Com uma ampla formação erudita, Erasmo aprendeu grego


e concluiu, em 1516, uma tradução do Novo Testamento com
comentários críticos, na qual “corrigia” alguns pontos da Vulgata.
Em sua obra mais conhecida, O Elogio da Loucura, publicada
em 1511, ele fez uma crítica à sociedade de seu tempo, inclusive
ridicularizando a corrupção do clero católico. Para alguns
historiadores, este polêmico livro trazia a maior parte do que os
reformadores criticavam na conduta da igreja.

Nela, Erasmo concebeu o mundo como um lugar controlado


pela loucura, a qual, elogiando a si própria, revelou a
consciência de sua força. A loucura foi apresentada por Erasmo
de diferentes modos: ora se mostrava séria, ora irônica, ora
humorística, como no trecho citado a seguir, que faz referência
direta à venda de indulgências:

Persuadidos dos perdões e das indulgências, ao


negociante, ao militar, ao juiz, basta atirarem a uma
bandeja uma pequena moeda, para ficarem tão limpos
e tão puros dos seus numerosos roubos como quando
saíram da pia batismal. Tantos falsos juramentos, tantas
impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas, tantos
assassínios, tantas imposturas, tantas perfídias, tantas
traições, numa palavra, todos os delitos se redimem com
um pouco de dinheiro, e de tal maneira se redimem que
se julga poder voltar a cometer de novo toda a sorte de
más ações. (ROTERDAM, 1988, p. 67).

Unidade 3 103
Universidade do Sul de Santa Catarina

Personificada como uma entidade viva, a loucura faz seu próprio


elogio e se afirma como soberana da humanidade. Em tom
satírico, Erasmo transita agilmente da simples ironização dos
aspectos comuns da vida humana à denúncia e crítica dos atos
questionáveis cometidos pelo clero. Em suas diversas roupagens,
a loucura estaria presente tanto nos atos extremos de crueldade
humana, como nos mais elevados impulsos da fé, representados
pela “loucura da Cruz”. De todas essas possibilidades exploradas
por Erasmo, conclui-se que:

A “loucura” erasmiana arranca os véus, fazendo-nos ver


a comédia da vida e a verdadeira face daqueles que se
escondem sob máscaras; mas, ao mesmo tempo, mostra o
sentido do palco, das máscaras e dos atores, procurando
de certa forma fazer com que aceitem todas as coisas
como elas são. (REALE e ANTISERI, 2004, p. 69).

Erasmo, cujo nome de batismo era Geer Geertsz, havia


sido ordenado sacerdote em 1492, mas não tardou em
pedir seu desligamento da vida clerical. Apesar de
ter antecipado, de certa forma, algumas das ideias de
Lutero, ele nunca chegou a ter uma posição análoga à
dele. Para Erasmo, a Reforma consistia em limpar dos
textos sagrados tudo aquilo que “o poder eclesiástico e
as disputas dos escolásticos acrescentaram à simplicidade
das verdades evangélicas, confundindo-as e complicando-
Figura 3.3 - Ilustração de Hans Holbein para as.” (REALE e ANTISERI, 2004, p. 68). Assim,
a primeira edição de Elogio da Loucura,
1515, na qual a loucura é representada mostra-se evidente nas ideias erasmianas a postura
manipulando um fantoche humanista de retomada do sentido original dos clássicos,
Fonte: Schrever (2010). a partir de criteriosos estudos filológicos e doxográficos.

Em oposição aos complexos debates assumidos pela Escolástica,


a posição filosófica de Erasmo ia contra a especulação sobre
problemas metafísicos e dialéticos. Para ele, a filosofia deveria
ter um sentido de conhecimento da vida cristã e, para esta,
não haveria necessidade de grandes elaborações, bastando
poucos trechos dos livros sagrados. Erasmo se espelhava na
vida dos grandes santos cristãos, voltada para a simplicidade,
contemplação e a realização prática dos ensinamentos de Cristo.

Martinho Lutero (1483-1546) foi ordenado sacerdote em 1507,


dez anos antes de pregar as célebres noventa e cinco teses contra

104
História da Filosofia III

a indulgência na igreja de Wittenberg, onde sintetizava os pontos


fundamentais da sua oposição à doutrina cristã estabelecida
pela igreja Católica. Assim como Erasmo, ele também mostrou
preocupação quanto aos males morais presentes no meio
eclesiástico, mas sua posição foi bem menos tolerante. Assumindo
uma oposição radical, Lutero defendeu a instituição de um
novo modo de conceber e praticar os ensinamentos cristãos.
Entre as suas ideias mais polêmicas, está aquela que apregoa a
impossibilidade de a alma humana alcançar a salvação por seus
próprios méritos, sem a rendição completa por meio da fé.

Desde 1513, Lutero já mostrava aversão à Escolástica em


seus escritos. Ele minimizava o valor da investigação racional
autônoma na busca de Deus. O principal alvo de suas críticas
era a metafísica e a filosofia moral aristotélica. Lutero rejeitava
as especulações metafísicas por acreditar que elas representavam
uma tentativa de o ser humano se apoderar dos mistérios divinos.
Dito de outro modo: em termos de compreensão espiritual, a
concepção da filosofia enquanto busca racional e autônoma da
verdade (oriunda do espírito helênico) não representava, para
Lutero, mais do que um reflexo de uma atitude assoberbada do
ser humano, tentando assenhorear-se da criação divina.

Perceba que, nesse ponto, as ideias luteranas


assumiram uma direção francamente contrária ao
Humanismo. Rejeitando o ideal de exaltação do
homem, Lutero afirmou que a razão humana é nada
diante de Deus; somente fé poderia dar o verdadeiro
caminho da salvação.

Nesse sentido específico, é correto afirmar que o pensamento


luterano assume um caráter manifestamente pessimista em
relação à dimensão material da existência. Nas palavras do autor:

Tudo que está na nossa vontade é mal, tudo que está na


nossa inteligência é erro. É por isso que no que se refere
às coisas divinas, o homem não tem nada além do que
puras trevas, erros, malícia, perversidade da vontade e da
inteligência. (LUTERO, 1958, p. 186).

Unidade 3 105
Universidade do Sul de Santa Catarina

Obviamente, esta postura sustentada por Lutero deve ser


compreendida em seu próprio contexto. Uma das principais
motivações para o pensamento reformista foi a explícita
mundanização da classe clerical ao longo do período final da
Idade Média. Afastando-se dos ideais originais do sacerdócio
cristão, grande parte dos integrantes da igreja mantinha uma
vida luxuosa e cercada de excessos, garantida pelos benefícios
sociais concedidos ao clero. A situação se tornou insustentável
com a venda de indulgências, que tornou mais visível a enorme
quantidade de capital movimentada pela igreja. Aos olhos
de Lutero, esse desvirtuamento da doutrina cristã se devia
justamente à priorização da especulação filosófica em detrimento
dos ensinamentos das próprias escrituras.

Baseado em três pressupostos centrais, Lutero teve a pretensão de


distinguir-se da doutrina católica e encontrou um novo caminho
para a prática do cristianismo. São eles:

„„ A salvação humana por meio da religião se deve


exclusivamente à fé. Não está garantida pelas boas obras
nem depende da intermediação de uma classe sacerdotal.

„„ As escrituras reveladas são a única fonte absoluta de


verdade; estas devem ser constantemente estudadas e
interpretadas com rigor, sem a influência da especulação
filosófica.

„„ A cada cristão cabe o livre exame das escrituras e a


responsabilidade de sua trajetória pessoal para a salvação,
a qual não permanece na dependência dos sacramentos
da igreja.

Na perspectiva católica, a fé verdadeira se manifestava nas obras


ou atividades, tal como atestam as biografias dos principais
santos canonizados pela igreja. Entretanto, ao tempo da
Renascença essa noção de “boas obras” havia sido plenamente
identificada aos objetivos e projetos concretos assumidos pela
ordem eclesiástica, fossem eles qual fossem. Realizar boas obras,
portanto, significava contribuir, sobretudo financeiramente,
com as intenções do clero. Reagindo a esse contexto, Lutero
não enaltecia a importância das boas obras, da forma como
era defendida pela igreja. Ele acreditava que, vindo do nada,

106
História da Filosofia III

o homem não podia realizar obras que pudessem provocar a


sua salvação perante Deus. No Prefácio à Carta de São Paulo
aos Romanos, o autor deixou evidente a sua posição quanto à
necessidade das boas obras:

Por esta razão, fique de guarda contra suas próprias


falsas ideias e contra os tagareladores que pensam ser
inteligentes o suficiente para fazer julgamentos sobre
a fé e boas obras, mas que são na realidade os maiores
tolos. Então, da mesma forma que Deus criou o homem
a partir do nada, o homem depende exclusivamente dele
para promover a sua salvação. (LUTERO, 1958, p. 188).

Em outras palavras, Lutero não acreditava que o homem tivesse


livre arbítrio para interferir em seu destino após a morte, isto
é, para garantir ou não a sua salvação. Ele almejava que a igreja
retornasse à pureza doutrinária dos dias dos apóstolos e via em
Santo Agostinho o único intérprete autorizado de São Paulo.
Tudo o que deriva do homem, afirma o pensador reformista,
é perpassado pelo amor egoísta e interessado. Somente o
desprendimento dessa perspectiva egoica possibilitaria o ingresso
no reino de Deus.

Diferente do tom mais moderado de Erasmo, ele via com muitas


reservas toda a tradição cristã construída até então:

Só a Escritura constitui a autoridade infalível de


que necessitamos: o papa, os bispos, os concílios e
toda a tradição não somente não beneficiam, mas até
obstaculizam a compreensão do texto sagrado. (REALE
e ANTISERI, 2004, p. 73).

Defensor da ideia de que o fundamento da crença deveria


repousar apenas nas escrituras, Lutero concluiu, em 1531, a
tradução da primeira Bíblia em língua alemã. Nesse aspecto
podemos encontrar, ainda, um ponto de aproximação entre
o autor e o pensamento humanista: a proposta de ler os
clássicos sem a interferência dos comentadores. Contudo, esta
proximidade é apenas formal. Para Lutero , o “clássico” a ser
lido são os próprios escritos bíblicos e a tradição a ser evitada

Unidade 3 107
Universidade do Sul de Santa Catarina

corresponde à toda a tradição filosófica ocidental, mas sobretudo


à filosofia medieval representada pela escolástica.

Por fim, um último elemento a destacar nas ideias reformistas


de Martinho Lutero é o conceito de vocação; agora interpretado
como a valorização do cumprimento do dever nos afazeres
da vida prática, ou seja, o trabalho. Se na perspectiva católica
o trabalho representava tão somente um empecilho à vida
contemplativa, sendo inclusive tomado como o símbolo do jugo
aceito pelo homem ao deixar o paraíso, para os protestantes, o
trabalho assumirá uma nova conotação, indicando a possibilidade
da presença constante do sagrado no contexto do dia a dia.

Max Weber em A ética protestante e o espírito capitalista encontrará


nessa ressignificação do valor do trabalho um elemento chave
das transições sociais e econômicas que marcam a dissolução do
antigo regime feudal e a consolidação do capitalismo. Segundo
esse autor:

[Para Lutero] o único modo de vida aceitável por Deus


não estava na superação da moralidade mundana pelo
ascetismo monástico, mas unicamente no cumprimento
das obrigações impostas ao indivíduo pela sua posição no
mundo. Essa era a sua vocação. (WEBER, 2001, p. 70).

A Contrarreforma
Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu
sofreu constante influência da tensão estabelecida entre a
Reforma e a Contrarreforma Católica. Como estudamos,
tendo numerosas causas, a Reforma foi um movimento
complexo e multiforme que ocasionou a quebra da referência
única de cristandade, sua fé, dogmas e consagração e,
especialmente, o questionamento da autoridade do Papa,
essenciais à igreja medieval.

Questionava-se que Deus tivesse investido o papado do direito


de ungir e de coroar imperadores e reis, questionava-se dogmas
e cerimônias. Para os protestantes, não devia haver nenhum
intermediário na Terra entre a alma e Deus. Essa nova abertura
para uma relação pessoal e direta com o divino estava alinhada
com um dos principais valores renascentistas: o Individualismo.

108
História da Filosofia III

É importante que você tenha em mente, neste contexto,


que a noção de individualismo não havia assumido ainda
a conotação contemporânea de atitude egoísta, isto é, de
priorização absoluta dos desejos e inclinações pessoais.
Antes, trata-se de um movimento bastante compreensível
de libertação do aspecto individual do homem frente ao
cenário impositivo e padronizante mantido por longo
tempo pela cultura medieval. O resultado disso, tanto no
pensamento geral como na filosofia foi um subjetivismo
cada vez maior, compreendido como valorização da
experiência pessoal, tanto para as questões da fé, como
para as questões da razão.

O protestante passava a conversar, então, diretamente com


Deus, dispensando a figura de um padre ou de um santo, que
intercedesse num procedimento que já não lhe dizia respeito.
Homens e mulheres buscavam e encontravam em si próprios
um novo fundamento para a sua relação com o divino e para a
reflexão sobre as questões impostas pela vida. Segundo Reale e
Antiseri (2004, p.74), Lutero sustentava a ideia de que:

[...] um cristão isolado pode ter razão contra um concílio,


se estiver iluminado e inspirado diretamente por Deus,
não sendo portanto necessária uma casta sacerdotal, visto
que cada cristão é sacerdote em relação à comunidade que
vive. Todo homem pode pregar a palavra de Deus.

Enfim, essa ênfase no subjetivismo, ou seja, na autonomia do


indivíduo para encontrar suas próprias certezas sem precisar
recorrer a nada nem a ninguém, além de Deus, prepara as
bases para uma filosofia da subjetividade pensante; tal como
encontramos nas Meditações cartesianas, conforme veremos
mais adiante.

A partir da Reforma, o mundo cristão da Europa cindiu-


se em novas ortodoxias, tais como: luteranismo, calvinismo,
anglicanismo, puritanismo e em novas heterodoxias, como
anabatistas, menonitas e quakers (CHAUI, 2002). A
importância dessas mudanças foi enorme e seus efeitos muito
significativos em termos de reorganização social e mudança de
mentalidade em relação ao trabalho, à política, às leis e demais
assuntos da vida prática.

Unidade 3 109
Universidade do Sul de Santa Catarina

Mas qual foi a posição da igreja com relação a esses


acontecimentos que mudaram a religião cristã?

Comumente, atribui-se ao movimento da Contrarreforma


a efetivação da reação da igreja às oposições levantadas pela
Reforma Protestante. Contudo, para alguns estudiosos, essa
visão omite o fato de que a igreja Católica já estava, desde
algum tempo, envolvida num processo de reforma. Isso já vinha
ocorrendo muito antes, inclusive da contestação de Lutero.
Seja como for, na sequência da Contrarreforma, realizou-se o
Concílio de Trento (1545 a 1563), convocado por Paulo III. Seu
objetivo foi o de tentar assegurar a unidade da fé cristã e retomar
a disciplina eclesiástica.

Entre as principais deliberações do concílio, destacam-se a


reafirmação da autoridade papal, a criação do catecismo e a
proibição das indulgências. No âmbito da sua militância e
controle social, a igreja retomou o Tribunal do Santo Ofício,
que ganhou novo impulso. Nesse período, Giordano Bruno,
acusado pela Inquisição, foi queimado por ser considerado
herege, e Galileu foi questionado e censurado. Veja, a seguir, uma
comparação entre diferentes perspectivas assumidas por cada
denominação cristã no século XVI.

Igreja Católica Luterana Calvinista Anglicana


Livro sagrado Bíblia é a fonte de A Bíblia é a única A Bíblia é a única A Bíblia é a fonte
fé, mas devia ser fonte de fé. fonte de fé. principal de fé.
interpretada pelos Permitia-se o seu Permitia-se o seu Também devia
padres da igreja. livre exame. livre exame. ser interpretada
A tradição católica pela igreja
também é uma (tradição), mas
fonte de fé, assim permitia-se o
como o Magistério seu livre exame
da igreja. (razão).
Salvação Salvação pela fé e Salvação pela fé Salvação pela fé Salvação pela fé e
humana boas obras. apenas em Deus. e graça de Deus graça de Deus
(predestinação). (predestinação).
As boas obras As boas obras
eram vistas como eram vistas como
consequência da consequência da
salvação. salvação.
continua...

110
História da Filosofia III

Igreja Católica Luterana Calvinista Anglicana


Sacramentos São sete: Batismo, São dois: Batismo São dois: Batismo Para os
Crisma, Eucaristia, e Eucaristia. e Eucaristia. anglicanos,
Matrimônio, o Batismo e
Penitência, Ordem e a Eucaristia
Unção dos doentes. foram os dois
sacramentos
instituídos por
Jesus Cristo. Os
demais ritos
sacramentais da
igreja também
são aceitos,
apesar de não
terem sido
instituídos por
Cristo, mas são
reconhecidos
por serem, em
parte, estados de
vida aprovados
nas Escrituras:
a Confirmação,
Penitência,
Ordens,
Matrimônio e
a Unção dos
enfermos.
Rito religioso Missa solene em Culto bem simples Culto simples (com Culto
latim. (com liturgia) com liturgia) com o conservando a
o uso das línguas uso das línguas forma católica
nacionais. nacionais. (liturgia,
hierarquia da
igreja). Uso da
língua nacional
(inglês).
Principais áreas Espanha, Portugal, Norte da Suíça, Países Inglaterra.
de influência Itália, sul da Alemanha, Baixos, parte
europeia Alemanha, maioria Dinamarca, da França
da França, maioria Noruega, Suécia, (huguenotes),
da Irlanda. Finlândia. Inglaterra.
(puritanos),
Escócia
(presbiterianos).

Quadro 3.1 - Comparação entre o Catolicismo e o Protestantismo no século XVI


Fonte: Adaptado de Reforma... (2011).

Unidade 3 111
Universidade do Sul de Santa Catarina

Você sabia?
Ao contrário do que se pensa comumente, o Tribunal
do Santo Ofício era responsável apenas por interrogar
(ou inquirir, daí o termo “inquisição”) e julgar os
acusados de heresia, ou seja, os acusados de qualquer
contrassenso moral em relação às determinações da
igreja. A execução da pena, fosse ela a privação da
liberdade ou da vida, cabia aos mandatários do rei ou
do senhor feudal.

A criação do Index Librorum Prohibitorum, documento onde


deveria constar uma relação de livros proibidos pela igreja, foi
também produto da Contrarreforma, com o objetivo de conter a
disseminação do protestantismo e “prevenir a corrupção dos fiéis”.
Esse documento visava demarcar obras cujo conteúdo estivesse
em oposição à doutrina da igreja Católica. Muito do que era
escrito e publicado pelos filósofos e cientistas do século XVII
passava primeiro pelo Santo Oficio, antes de receber o direito à
publicação. As obras dos pensadores protestantes eram
sumariamente colocadas nessa lista de livros proibidos.

A Contrarreforma determinou também a criação de


ordens religiosas, objetivando a catequese dos povos do
Novo Mundo, como a Companhia de Jesus. O comando
desse processo ficou a cargo dos jesuítas. Com o intuito
de tentar amenizar o avanço crescente da escolaridade
protestante e fazer frente a ela, enfatizou-se a ação
pedagógico-educativa da igreja.

Também é fruto e consequência da Contrarreforma


Católica, levada a efeito pelo Concílio, a renovação da arte
sacra cristã, com o surgimento da estética barroca. Esta
representava a necessidade da igreja de recuperar os fiéis e
de fortalecer a fé em suas crenças. Com o barroco, as formas
racionais do Renascimento foram abandonadas em favor de
uma arte mais comovente, intensa e dramática.
Figura 3.4 - Folha de rosto do Index
Fonte: Index... (2005).

112
História da Filosofia III

Faça uma pesquisa em fontes devidamente


estabelecidas a fim de explicar, com exemplos, as
diferenças entre a arte renascentista e a arte barroca.
Registre o resultado aqui.

Seção 2 – A Revolução Científica


Em oposição à ciência contemplativa dos antigos, um dos
princípios renascentistas era o de que a investigação da natureza
deveria se construir fundamentalmente com base na experiência
e nos experimentos. Em outras palavras, a observação do
mundo natural deixa de ser livre para tornar-se mediada
pela antecipação racional. Tal princípio se refletiu na arte
desse período. Os elaborados esboços dos mestres da pintura
renascentista, a partir de cálculos matemáticos de proporção e
perspectiva, mostram como a natureza passou a ser representada
de forma diferenciada frente ao ser humano, como objeto, como
coisa cognoscível.

Unidade 3 113
Universidade do Sul de Santa Catarina

Figura 3.5 - Amor Sacro e Amor Observe a figura anterior. Nessa famosa obra do Renascimento,
Profano (1514), de Ticiano Ticiano representa as personagens mitológicas de Vênus e do
Fonte: Ronchetti (2005). Cupido. Perceba como a figura enigmática da jovem vestida
parece encarar o observador indiferente às outras personagens.
Acredita-se que essa indiferença esteja ligada ao rompimento
entre o homem e a natureza, motivado nesse período. Se na
cultura clássica o homem compreende-se como parte integrante
da Physis (natureza) e na cultura medieval como criatura ou
produto da obra divina (tal como o restante da natureza), a
partir do Renascimento a figura humana passa a ocupar um
lugar próprio; nem plenamente subordinado ao divino, nem
somente natural.

Com os primeiros desenvolvimentos da ciência


moderna, o homem passa a compreender que a
regularidade dos fenômenos naturais podia ser
interpretada e expressa matematicamente. A partir
desse ponto de vista, a natureza apresentava-se dotada
de uma ordem perfeita e regulada. O caráter objetivo
e independente da natureza face ao homem era então
a condição epistemológica para que ele pudesse
conhecê-la e moldá-la, para que colocasse sobre o
reino da natureza o selo de sua ordem.

Esse ímpeto para desvendar a ordem universal encontra-se


na base do método empírico,que valorizava a observação e os
experimentos sistemáticos. Guardadas as devidas reservas,
podemos afirmar que ele começa a ser esboçado em fins da Idade
Média, com Roger Bacon (1214-1294), Guilherme de Ockam
(1285-1347) e Robert Grosseteste (1168-1253).

114
História da Filosofia III

Nesse momento, filósofos, intelectuais e demais pensadores de


diversas áreas do conhecimento estavam inquietos e procuravam
avançar nas descobertas de leis que pudessem explicar
racionalmente os fenômenos naturais. De forma geral, eles
compartilhavam a crença de que a investigação da natureza e
a divulgação de novas ideias, que esclarecessem as superstições
de uma tradição ultrapassada, poderiam emancipar os seres
humanos e lhes trazer maior felicidade.

Porém, a consolidação desse novo método somente se efetivou a


partir de meados do século XVII. E para que tal se realizasse, foi
necessário um longo tempo de debates e especulações, aos quais
não faltaram contrariedades, como as perseguições, tanto da
igreja Católica quanto dos teólogos protestantes.

O aparecimento da nova ciência ganha visibilidade quando


pensadores do século XVII divulgam suas descobertas. A
partir daí, a ciência começa a se separar da filosofia e ganha
uma nova estruturação. Mas antes disso, podemos reconhecer
a pedra fundamental da revolução científica em um evento
bem determinado. Trata-se do ano de 1543, quando Nicolau
Copérnico (1473-1543) anunciou a hipótese de que o Sol é que se
encontraria no centro do Universo, e não a Terra. Esta tampouco
seria imóvel, mas giraria em torno do Sol. Tal tese se opunha
radicalmente ao sistema astronômico aristotélico-ptolomaico
vigente até então. Negando o geocentrismo, esse novo modelo
proposto pelo autor ficou conhecido como “sistema heliocêntrico”
ou copernicano.

Para a ciência e para a filosofia, Copérnico inaugurou


uma reviravolta essencial, uma vez que libertava a
astronomia da problemática ideia de imobilidade
da Terra e substituía o conhecimento antigo e
tradicional pela aceitação dos fatos como fonte do
conhecimento. Assim, a chamada inversão copernicana
teve profundos efeitos não apenas no paradigma
astronômico, mas na própria concepção de mundo
vigente até o século XV.

Unidade 3 115
Universidade do Sul de Santa Catarina

Figura 3.6 - Copérnico e a descoberta do sistema heliocêntrico


Fonte: Ferreira (2005).

Copérnico passou vários anos estudando em universidades


italianas, procurando levar a cabo seu projeto de reforma da
astronomia planetária. A conhecida obra De revolutionibus,
publicada em 1543, apresentou uma revisão dos modelos
matemáticos de Ptolomeu (90-168 d.C.). Entregue ao teólogo
luterano Andreas Osiander (1498-1552) para ser prefaciada, este
aconselhou Copérnico a apresentá-la apenas como uma hipótese
e não como uma verdade matemática. Copérnico, entretanto,
morreu antes de ter que enfrentar essa polêmica.

A situação em torno da obra De revolutionibus mostrava


claramente que o ambiente cultural do século XVI ainda não era
aberto ao livre desenvolvimento do espírito científico, que passava
agora a colocar em xeque alguns dogmas fundamentais, como
a hierarquia da criação. Isso levou o teólogo jesuíta, Cristovão
Clávio (1538-1612), a afirmar que o modelo de Copérnico não
passava de uma demonstração de axiomas falsos e que o modelo
ptolomaico era muito mais adequado e verídico, tanto para a
física como para os preceitos da igreja. Essa posição, entretanto,
logo se mostrou insustentável. O modelo aristotélico-ptolomaico
mantinha-se em crise há quase um século. Segundo Reale e
Antiseri (2004, p. 141):

116
História da Filosofia III

[...] desde o início do século XVI, os melhores


astrônomos da Europa em número crescente reconheciam
que o paradigma da astronomia não conseguira resolver
seus problemas tradicionais.

A proposta heliocêntrica, por sua vez, projetava uma imagem


muito mais simples e precisa da ordem universal, proporcionando
à astronomia um desenvolvimento e capacidade de predição
nunca antes imaginados.

O desfecho em torno dessa polêmica ficou reservado para


o século seguinte, quando, em 1615, o cardeal Bellarmine,
inquisidor no processo de Giordano Bruno, informou a Galileu
que seria perigoso defender as ideias de Copérnico e que estas
somente poderiam ser demonstradas como modelos.

Figura 3.7 - O sistema copernicano


Fonte: Borrero (2010).

Unidade 3 117
Universidade do Sul de Santa Catarina

Você sabia?
A confirmação do sistema copernicano por Galileu
deixou a igreja Católica enfurecida. O Papa Urbano VIII
chegou a colocá-lo em prisão domiciliar em sua casa
na Itália, em 1633. Ele não foi aprisionado em função
da idade avançada e da saúde debilitada. Nessa época
da vida, ele estava cego e quase imóvel. Galileu morreu
em sua casa, em 1642.

Galileu e a matematização da natureza


O fato é que Galileu não somente havia defendido, como
avançado muito com relação às propostas de Copérnico. Era
evidente que a sua defesa dessas propostas ia além de uma mera
demonstração. Ele encontrava-se maravilhado com a ordem
perfeita da natureza, agora revelada pela nova astronomia. Seu
pensamento estava voltado para a ideia de que o universo era
como um livro aberto, porém, escrito em caracteres matemáticos.
Caberia somente ao homem, por meio da investigação racional,
compreender e interpretar adequadamente os fenômenos naturais.
Com essas afirmações, Galileu excluía as explicações teleológicas
do âmbito do conhecimento físico. Ao contrário da Física
aristotélica, não se tratava de perguntar pela finalidade de certo
fenômeno para conhecê-lo cientificamente. Bastava conhecer as
suas causas diretas (eficientes).

Uma de suas contribuições foi ter unido dois campos do


saber que até então se encontravam totalmente separados:
a metodologia de trabalho dos técnicos-artesãos (a
experimentação) e o raciocínio lógico e abstrato, próprio da
filosofia e da matemática. Dessa junção começou a nascer o
método que caracteriza a Ciência Moderna.

A partir de Galileu, a tese heliocêntrica ganha mais sustentação


teórica e a ciência começa a se estabelecer como descrição
verdadeira da realidade, em oposição à percepção direta do
mundo por meio dos sentidos. Na base desta mudança de
perspectiva encontra-se a valorização da matemática como
expressão do conhecimento científico.

118
História da Filosofia III

Influenciado pelo neoplatonismo pitagórico, Copérnico já


havia concebido a natureza como ordem geométrica. Nesse
sentido, a nova ciência passa a recusar a noção clássica de forma
substancial (utilizada por Aristóteles e pelos medievais para
pensar a natureza intrínseca de cada coisa) para compreender
os fenômenos naturais enquanto relações de forças. Assim,
Galileu fará a distinção entre as qualidades primárias do
universo, que consistem nos caracteres quantificáveis, como
tamanho, peso e movimento; e as qualidades secundárias,
isto é, as características subjetivas dos seres, que não podem ser
tratadas matematicamente. Ora, as qualidades primárias são
independentes da percepção humana; toda a natureza segue
um curso objetivo, acessível ao homem somente por meio do
conhecimento teórico fornecido pela ciência. Nem a percepção
direta nem a autoridade da tradição poderiam revelar esta
“linguagem matemática” do universo. A ciência, portanto, não
mais poderia subsistir como um saber a serviço da fé.

Existem três razões principais que fizeram de Galileu o pai de


uma nova forma de encarar a natureza:

„„ num primeiro momento, ele deu autonomia à ciência,


fazendo-a sair da sombra da teologia e do domínio
livresco da tradição aristotélica;

„„ num segundo momento, ele aplicou pela primeira vez


o novo método, o método experimental, defendendo-o
como maneira adequada para se chegar ao conhecimento;

„„ por último, ele produziu uma nova linguagem


para a ciência, que é a linguagem do rigor, a
linguagem matemática.

Nascido em Pisa, na Itália, em 1564, Galileu Galilei foi


educado em um dos principais mosteiros da cidade. Quando
É interessante
jovem, ele quis entrar para a igreja, porém, seus pais, Vincenzo registrar que Galileu
Galilei (professor de música) e Giulia Ammannati, tinham ficou universalmente
anseios diferentes para o filho. Eles esperavam que Galileu se conhecido somente pelo
tornasse médico. Em seus estudos universitários, todavia, Galileu seu prenome. O caso foi
apaixonou-se pela Matemática e pela Ciência, tornando-se devido ao modo toscano
de usá-lo em relação ao
professor de matemática nas universidades de Pádua e Pisa. filho mais velho, ou seja,
um prenome que é uma
variação do sobrenome.

Unidade 3 119
Universidade do Sul de Santa Catarina

Em sua obra, Galileu esforçou-se por recusar tanto o recurso


à autoridade da tradição, quanto a fundamentação do
conhecimento simplesmente por meio da observação empírica.
Ele tinha plena consciência de que a elaboração de uma teoria
exigia que experiências, práticas, relatos e observações dos fatos
empíricos fossem colocados em outro plano. Galileu reconheceu a
ilimitada distância entre o saber obtido pela experiência imediata
e o conhecimento científico, alcançável com base em critérios
precisos de caráter teórico. (MORAES, 2000). Em seus estudos,
ele não se contentava em observar; procurava sempre desenvolver
a experiência fundamental que pudesse comprovar suas teorias.
Media e reduzia as coisas em quantidades, na tentativa de
conseguir alguma relação matemática que apresentasse o
fenômeno detalhadamente e com simplicidade. Distinguem-se,
portanto, a mera experiência empírica, isto é, o olhar para o
mundo descrevendo e copiando aquilo que se vê, e a noção de
experimentação, no sentido de aprender a ver na natureza um
modelo predeterminado.

Foi em Pádua que Galileu construiu seus telescópios, com base


em informações sobre instrumentos semelhantes, inventados
na Holanda, mas que eram utilizados apenas para a observação
terrestre, ampliando algumas vezes o tamanho de objetos que
se encontravam a distância. Ao utilizá-los para observar o céu,
Galileu faria constatações irreversíveis sobre a própria ordem do
universo: a Lua mostrava ter a superfície rugosa, com montanhas
e crateras, o que contrariava a perfeição que tradicionalmente se
atribuía aos corpos celestes; o Sol apresentava manchas e girava,
conforme o deslocamento dessas manchas permitia ver; a Via
Láctea, até então vista apenas como uma região mais luminosa
no céu, revelava conter milhares de estrelas; Vênus tinha fases
variáveis, como a Lua; e Júpiter apresentava quatros outros corpos
que giravam ao seu redor (e não em torno da Terra!). Era a prova
de que o Universo não estava organizado conforme a versão da
física aristotélica aceita pela igreja. Ao que se via, ele podia até
mesmo ser infinito.

120
História da Filosofia III

A originalidade do método de Galileu e seu mérito na criação


da Ciência Moderna, de acordo com Moraes (2000), estão na
articulação de alguns aspectos que podem ser resumidos nos
quatro momentos abaixo descritos:

„„ observação imediata do fenômeno na sua complexidade –


as observações cuidadosas;

„„ a resolução desse enredamento nos elementos mais


simples, traduzíveis em relações quantitativas, ou em
linguagem matemática;

„„ a formulação de uma hipótese explicativa;

„„ a averiguação da hipótese como cálculo e experimento


– a experimentação.

A partir desse método, Galileu definiu o sentido da


aplicabilidade das leis matemáticas à experiência. Para
ele, a regularidade do funcionamento da natureza
correspondia à própria regularidade da matemática. A
ciência, portanto, configurava-se como conhecimento
objetivo justamente por ser capaz de encontrar as
qualidades primárias do universo, as quais poderiam ser
medidas, comparadas, e relacionadas matematicamente.
Mas esse padrão de objetividade, cabe lembrar, vale apenas
para as relações consideradas em sua pureza geométrico-
matemática. Ficam excluídas desse domínio as qualidades
secundárias que dizem respeito ao homem e à dimensão
subjetiva de sua experiência sensível, como as percepções,
os sentimentos, as virtudes e outros aspectos. Figura 3.8 - As duas primeiras lunetas
de Galileu, que reformularam o
Galileu, como um pensador marcado pelas determinações pensamento, estão no Museu de
História da Ciência de Florença
do seu tempo, nasceu sob o signo da igreja Católica, que,
naquele momento, acionou o mecanismo da Inquisição, Fonte: Capozzoli (2007).
revitalizado pela Contrarreforma, para preservar a
ortodoxia católica, por meio da defesa da fé incondicional
às verdades bíblicas. Por esse motivo, ele tentou, no
decurso de sua história, estabelecer uma relação de concordância
entre suas teorias e a revelação bíblica, interpretada dentro da
tradição católica no contexto do século XVII.

Unidade 3 121
Universidade do Sul de Santa Catarina

É neste contexto que, no ano de 1632, a publicação de seu


Diálogo Sobre os Dois Principais Sistemas de Mundo o levaria,
finalmente, à Inquisição. Nessa obra, Galileu confronta
diretamente as duas teses opostas, ou seja, a tese geocêntrica
de Ptolomeu e a tese heliocêntrica de Copérnico. Galileu foi
obrigado a renegar publicamente suas teorias e passou a ficar
mantido sob constante vigilância. Todavia, este ato brutal contra
o próprio conhecimento humano teria consequências inesperadas,
conforme relata José Trindade Santos:

Toda a composição do Diálogo, o seu tom polêmico,


o fato de ter sido escrito em vernáculo, portanto para
um público não circunscrito ao aparelho do saber
universitário (embora sacrificando aparentemente o
leitorado estrangeiro), o modo sistemático como vai
demolindo a oposição, ditou o veredito. Conquistando,
por um momento, uma nova audiência para a
comunicação científica, pisando, como filósofo, um
terreno reservado à ortodoxia, ditando a sua verdade às
massas, Galileu constitui-se culpado do crime de traição.
Pessoalmente, perante Urbano VIII, que parece sentir-se
atingido pela (nunca cruel) ridicularização de Simplício;
profissionalmente, perante toda a classe intelectual,
que protesta a sua fidelidade à Igreja. O julgamento e a
condenação, mesmo perante a recusa da assinatura de três
dos juízes, seriam resultado normal de todo o conflito. E,
ironicamente, um dos que melhor serviu a finalidade de
Galileu “Um mês depois de ter partido de Roma, já uma
cópia do Diálogo estava a caminho de Mathias Bernegger,
em Estrasburgo, de tal modo que uma tradução em latim
estava pronta para o público europeu em 1637” [...].

O sistema não lhe pôde perdoar a ofensa. Mas se, com


a condenação, esperava fazê-lo recolher aos bastidores
da cena intelectual, equivocou-se, pois produziu o efeito
contrário. Depois de ter inventado uma nova linguagem
para o discurso científico, uma nova estratégia para a
observação, de ter confundido o próprio conceito de
evidência sensível, de ter adulado um novo patronato
para a empresa científica, de ter conquistado um novo
público para a reflexão filosófica, supera todos os
anteriores movimentos, repondo a comunicação com a
‘inteligência europeia’. E a sua mensagem adquire um
sentido até aí insuspeitado.

Torna-se evidente a necessidade de organização das


elites científicas e culturais, pela criação de canais
adequados à circulação da informação científica

122
História da Filosofia III

especializada. A continuação do assalto ao conceito


medieval de universidade exige que outras instituições
assumam o seu papel. Coroando a sua genial cadeia de
inovações, Galileu desperta o conceito de comunidade
de praticantes da atividade científica e deixa apontadas
as condições para uma definição rigorosa dos currículos
e áreas de investigação nas ciências. [...] Eis a eclosão
da estrutura designada como ‘ciência moderna’ e
a implantação de civilização tecnocentrada, que o
capitalismo irá perpetuar até a atualidade. Muito disso
tem a ver com Galileu e o seu Diálogo sobre os principais
sistemas. (SANTOS, 1992, p. 9-10).

Assim, Galileu entrou para a História como um marco do


início da separação entre o domínio da fé e o domínio da razão,
inaugurando o espírito de confiança na razão humana que
permanecerá presente no pensamento filosófico dos próximos
dois séculos. Seu pensamento e suas descobertas, que fizeram
progredir a ciência, ainda continuam vivos no século XXI.

Suas conquistas permaneceram muito além da religião,


da igreja, dos tolos e dos falsos sábios e doutos – de fé
cega – que lhe caçaram a palavra, mas nunca a riqueza
de sua mente. E, apesar de tudo, a Terra continua em
movimento. (MORAES, 2000, p. 15).

Isaac Newton e o rigor filosófico


No outro extremo do desenvolvimento histórico atribuído
à revolução científica, encontra-se a brilhante figura de Sir
Isaac Newton (1643-1727). Certamente, ao longo destes quase
150 anos que o separam de Copérnico, muitas contribuições
fundamentais à composição do método científico foram dadas
por grandes pensadores. Entre elas, a concepção da aplicação
prática dos resultados da ciência para o bem da vida humana e
as elaborações metodológicas de Francis Bacon (1561-1626); e o
desenvolvimento da geometria analítica por René Descartes.

Contudo, todos esses elementos encontram-se plenamente


representados e desenvolvidos pelo pensamento de Newton,
que sintetizou o conhecimento científico de sua época em uma

Unidade 3 123
Universidade do Sul de Santa Catarina

surpreendente descrição da natureza física a partir de firmes


pressupostos metodológicos e novas teorias, como a da gravitação
universal e as três leis gerais da dinâmica.

Para que você complete o seu aprendizado sobre a revolução


científica, daremos um breve salto cronológico a fim de
compreender as ideias newtonianas e o sentido filosófico da
revolução científica como um todo.

Certamente você já deve ter ouvido falar ou até estudado algo


sobre Isaac Newton. Ele é, talvez, um dos personagens mais
extraordinários na história da ciência, especialmente pelas
contribuições que deixou para a física e a matemática. Com
algumas características próprias de sua época, ele foi considerado
um filósofo natural, o que seria hoje um equivalente ao que
chamamos de cientista.

Além da matemática, física, filosofia e astronomia, Newton se


dedicou também à alquimia, astrologia, cabala, magia e teologia,
e foi um grande conhecedor da Bíblia. Como já assinalado,
naquele período, ele e muitos outros filósofos naturais do século
XVII consideravam que todos esses campos do conhecimento
poderiam colaborar para o estudo dos fenômenos naturais.

Sempre com suas investigações experimentais, acompanhadas de


rigorosa descrição matemática, sua metodologia de investigação
dos eventos físicos serviu de base para as outras ciências nos
séculos seguintes. Pode se dividir a vida de Newton em três
momentos:

„„ O primeiro, de sua juventude, desde 1643 até a sua


graduação em 1669.

„„ O segundo, de 1669 a 1687, foi o período altamente fértil


em que ele era o professor lucasiano, em Cambridge.

„„ No terceiro período, temos Newton como um alto


funcionário do governo em Londres, tendo muito pouco
interesse pela matemática.

124
História da Filosofia III

Professor lucasiano é o nome que se dá a uma cátedra de


matemática da Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
A cadeira foi criada por Henry Lucas, que foi membro do
Parlamento pela Universidade de Cambridge em 1663, e foi
oficialmente estabelecida pelo rei Carlos II, em 1664.

Isaac Newton nasceu em 4 de janeiro de 1643,


na Inglaterra, numa família de agricultores.
Foi criado por sua avó, pois seu pai morreu
antes de seu nascimento. Enviado por um tio
para o Trinity College (Cambridge) em junho
de 1661, ele tinha como objetivo inicial estudar
Direito. No entanto, em Cambridge, ele acabou
estudando a filosofia de Aristóteles e Descartes,
a mecânica da astronomia de Copérnico e
Galileu, e a ótica de Kepler.

Sua obstinação científica despertou quando uma


epidemia de peste fechou a Universidade no
verão de 1665, e ele retornou para sua casa em
Lincolnshire. Lá, numa temporada de menos Figura 3.9 - Sir Isaac Newton (1643-1727)
de dois anos, Newton, que ainda não tinha Fonte: Gun (2009).
completado 25 anos, iniciou uma verdadeira
revolução da matemática, óptica, física e astronomia.
Também, durante sua estada em casa, ele lançou a base do
cálculo diferencial e integral, alguns anos antes da descoberta
independente de Leibniz.

Entretanto, seu trabalho mais formidável nessa área foi em


mecânica celeste, o qual culminou com a Teoria da Gravitação
Universal. Em 1666, Newton já tinha versões preliminares de
suas três leis do movimento.

Unidade 3 125
Universidade do Sul de Santa Catarina

Newton é o autor da teoria da gravitação, desenvolvida a partir


de deduções das leis de Kepler por meio de cálculos matemáticos.
Para tanto, Newton dispunha de um instrumento matemático
novo: o cálculo diferencial, que ele próprio inventou. Ele
dispunha também de uma teoria física: a Mecânica, que ele
próprio também criou, e que explicava o movimento observado
na Terra, e, em particular, as leis empíricas de Galileu, com base
nos conceitos de força, de massa e nas três leis da Dinâmica, que
ficaram conhecidas como as leis de Newton. São elas:
1ª Lei de Newton
Um corpo livre, sobre o qual não atua nenhuma força, executa
um movimento uniforme e retilíneo, isto é, com velocidade
constante. O repouso é considerado como um movimento com
velocidade nula, e, portanto, é um estado possível para um corpo
livre.
2ª Lei de Newton
A força F, que atua sobre um corpo, e a aceleração do seu
movimento (a) estão relacionadas pela equação F = m.a, onde m
é a massa do corpo. A 2ª lei nos diz precisamente como responde
um corpo à aplicação de uma força. Se observarmos a aceleração
de um corpo, ou seja, como a sua velocidade varia no tempo,
sabendo a sua massa, conseguimos calcular a força responsável
pelo movimento. Por outro lado, se conhecermos a força a que
está sujeito um corpo de massa conhecida, sabemos qual será a
aceleração do seu movimento, e podemos, em princípio, calcular
esse movimento.
3ª Lei de Newton
As forças de interação entre dois corpos são iguais em
magnitude e direção, com sentido oposto. Nas palavras do autor:
“A toda ação sempre se opõe uma reação igual, ou seja, as ações
de dois corpos um sobre o outro sempre são iguais e se dirigem
a partes contrárias.” (NEWTON, 1979, p. 14).

Newton concebia os mecanismos da natureza como algo


extremamente simples, agindo sempre pelas causas mais diretas.
Essa noção está plenamente representada em sua teoria da
gravitação universal. Raciocinando sobre a regularidade da
atração entre os corpos segundo sua quantidade de massa
(provadas pela astronomia a respeito da órbita da Lua e outros
planetas), Newton a generaliza para todos os corpos físicos, dado

126
História da Filosofia III

que aos efeitos naturais da mesma espécie supõe-se terem as


mesmas causas. Assim, com uma lei extremamente simples e
geral, o cientista pôde abranger uma grande quantidade de
fenômenos, como as quedas dos corpos e as marés oceânicas.

Apesar dessas grandiosas descobertas, faltava


algo para o cientista inglês ser plenamente
reconhecido. Foi quando, em 1687, Newton
lançou os seus Principia (os Princípios matemáticos
da filosofia natural), tido como um dos maiores
livros científicos já escritos. Nessa obra, ele
analisou o movimento dos corpos em meios
resistentes e não resistentes, sob a ação de forças
centrípetas. Os resultados eram aplicados a
corpos em órbita e em queda-livre perto da
Terra. Ele também demonstrou que os planetas Figura 3.10 - Telescópio
projetado por Newton
são atraídos pelo Sol pela Lei da Gravitação
Fonte: Leal (2008).
Universal, e generalizou que todos os corpos
celestes atraem-se mutuamente.

Em sua atitude, podemos reconhecer importantes pressupostos


assumidos pela nascente ciência moderna:

„„ Em oposição à ciência antiga, não se trata mais de


indagar pela substância de cada coisa, mas pela sua razão
matemática ou função. Os fenômenos físicos deixam de
ser vistos como uma interação de qualidades substanciais
para serem interpretados a partir de parâmetros
relacionais extrínsecos aos corpos, isto é, às próprias leis
naturais.

„„ O processo indutivo deve fixar-se em experiências


e demonstrações, e não em dogmas religiosos ou
filosóficos. A partir da física newtoniana, está bem
demarcada a delimitação entre o campo da ciência e o
domínio da metafísica.

„„ A mecânica clássica de Newton, além de uma teoria,


permaneceu como um projeto de pesquisa, orientando
a prática científica por um grande período de tempo
adiante. Trata-se do primeiro paradigma científico.

Unidade 3 127
Universidade do Sul de Santa Catarina

Newton foi ainda capaz de explicar acontecimentos


aparentemente não relacionados, tais como: a excentricidade
da órbita dos cometas, as marés, a precessão do eixo terrestre
e os movimentos da lua perturbados pelo Sol. Depois de um
segundo colapso nervoso em 1693, Newton aposentou-se
da pesquisa. Acabou falecendo em 31 de março de 1727, em
Londres, Inglaterra.

Além dos grandes desenvolvimentos no campo da ciência,


Newton também se dedicou a refletir sobre questões teológicas
e filosóficas. A descoberta do sistema do universo como uma
imensa máquina de funcionamento perfeito o levou a defender a
existência de uma fonte superior para a criação. Em suas palavras:

Esta elegantíssima conjunção do Sol, dos planetas e dos


cometas não pôde surgir sem o projeto e o poder de um
ente inteligente e poderoso [...] Ele rege todas as coisas
não como alma do mundo, mas como senhor de todos
os universos e pelo seu domínio costuma ser chamado
de Senhor Deus Pantochrátor [dominador universal].
(NEWTON apud REALE e ANTISERI, 2004, p. 247).

Embora as ideias filosóficas de Newton mereçam um capítulo à


parte, para o nosso presente estudo convém apenas ressaltar que
o pensamento desse autor e suas inovações são representativas
da posição fundamental ocupada pela revolução científica no
nascimento do pensamento moderno. Trata-se da culminação de
um movimento lento e gradual de afirmação da autonomia da
razão humana para conhecer o mundo e, consequentemente, de
libertação do jugo da tradição metafísica. Sua base se estabelece
sobre o rigor filosófico e metodológico da análise objetiva da
realidade natural. Nas palavras de Dijksterhuis (apud REALE e
ANTISERI, 2004, p. 233):

[...] podemos dizer que, com Isaac Newton, acabava um


período da atitude dos filósofos em relação à natureza
e começava outro, inteiramente novo. Em sua obra, a
ciência clássica [...] alcançou existência independente e,
daí em diante, começou a exercer toda a sua influência
sobre a sociedade humana.

128
História da Filosofia III

Há quem afirme que o Iluminismo do século XVIII tenha sido


o resultado final dessa empreitada. Outros vão mais longe,
e reconhecem no Positivismo lógico do início do século XX a
expressão máxima do espírito científico, cuja influência ainda
permanece diluída em nossa sociedade tecnológica. Mas basta,
aqui, ter em consideração a presença da “nova ciência” na
mentalidade que marca o nascimento da filosofia moderna.

Para saber mais sobre esse grande personagem da história da


filosofia moderna, leia o que João Marcos Rainho (2001, p. 1)
escreveu a seu respeito:

O pai da ciência moderna, Isaac Newton, tinha um


pé no racionalismo e outro no misticismo e deixou um
legado revolucionário no campo da astronomia, da física
e da matemática. Seus trabalhos conduziram à moderna
física óptica e à formulação das três leis do movimento
que geraram a lei da gravitação universal e lançaram
os fundamentos do cálculo infinitesimal. Pelo menos é
isso que está nos livros escolares. E não é pouca coisa.
O princípio da gravitação universal, por exemplo, que
explica toda a mecânica celeste e a dança dos planetas
em torno do Sol, colocou abaixo o pensamento filosófico
vigente até o século XVII, eliminando a dependência
da ação divina. Tal ousadia já valeria uma investigação
do poder inquisitorial da Igreja, mas Newton não foi
queimado na fogueira. Isso porque poucos sabiam que ele
era uma figura muito mais ousada: também pesquisava
metodicamente a alquimia e a astrologia.

Unidade 3 129
Universidade do Sul de Santa Catarina

Síntese

Nesta unidade, você estudou como, a partir da Reforma


Protestante, o poder da igreja Católica foi fortemente questionado
por Martinho Lutero e Erasmo de Roterdam.

Você viu que a Reforma suscitou alguns dos problemas que


transformaram completamente a religião desde então. As
novas religiões, que se alastraram pela Europa, contestaram a
moralidade tradicional em questões centrais, o que implicou a
busca de novos fundamentos para o pensamento humano.

Também foi possível identificar os elementos decisivos para


a transformação da ciência, cujo marco de destaque foi as
descobertas do século XVII, principalmente quando Nicolau
Copérnico apresenta a tese heliocentrista. A partir daí, houve
uma gradual separação da ciência em relação à religião e, mais
tarde, à própria filosofia.

Você leu também sobre outros filósofos que marcaram


efetivamente o pensamento moderno, como Galileu Galilei e
Isaac Newton. Deste último, conheceu algumas de suas ideias na
área de física e matemática. Viu que, com algumas características
próprias de sua época, ele foi considerado um filósofo natural, o
que seria hoje o que chamamos de cientista.

130
História da Filosofia III

Atividades de autoavaliação

Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação. O


gabarito está disponível no final do livro didático. Mas, esforce-se para
resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará
promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1) A escolástica defendia que o homem, por suas boas obras, podia


contribuir para a sua salvação. A partir disso, explique a posição de
Martinho Lutero em relação ao livre arbítrio, defendido pela igreja.

Unidade 3 131
Universidade do Sul de Santa Catarina

2) Com base no conteúdo estudado nesta unidade, explique por que


Galileu Galilei pode ser considerado o fundador da Ciência Moderna?
Que rupturas foram por ele promovidas para surgir essa nova forma de
conhecimento?

3) Explique por que as noções de razão matemática (função), experiência,


demonstração e mecânica, legadas por Newton, foram fundamentais
para a constituição da Ciência.

132
História da Filosofia III

Saiba mais

Para saber mais sobre a Reforma e a Contrarreforma Católica,


sugerimos as seguintes leituras:

CONANT, J. B. Como compreender a ciência. Tradução


Aldo Della Nina. São Paulo: Cultrix, 1964.

HENRY, John. A revolução científica e as origens da


ciência moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

MONTEIRO, Rodrigo Bentes. As reformas religiosas na


Europa moderna: notas para um debate historiográfico.
Varia Historia, Belo Horizonte, v. 23, n. 37: p. 130-150,
jan/jun 2007.

PONDÉ, Luiz Felipe. Do humanismo ridículo: a crítica


da perfectibilidade humana em Pascal e Lutero. Kriterion,
Belo Horizonte, n. 114, dez/2006, p. 347- 366.

Sugerimos, também, que você assista ao filme Elizabeth (1998).


Dirigido por Shekhar Kapur e protagonizado por Cate Blanchett,
Geoffrey Rush e Christopher Eccleston, este longa-metragem
narra a subida ao trono de Elizabeth I, rainha protestante, que
abalou a hegemonia católica na Inglaterra do século XVI.

Unidade 3 133
4
UNIDADE 4

Descartes e o Racionalismo
Moderno
Dante Carvalho Targa

Objetivos de aprendizagem
„„ Conhecer o pensamento de René Descartes
e o contexto cultural a partir do qual emerge
sua filosofia.
„„ Acompanhar a argumentação das
Meditações Metafísicas de René Descartes
e compreender a nova concepção de
racionalidade que marca o início da
Filosofia Moderna.
„„ Conhecer o Racionalismo, uma das principais
correntes da filosofia moderna e alguns de
seus expoentes, além do próprio Descartes,
como Spinoza e Leibniz.

Seções de estudo
Seção 1 Descartes e o nascimento da
filosofia moderna
Seção 2 As Meditações e o surgimento de uma
metafísica da subjetividade pensante
Seção 3 Os cartesianos e outros racionalistas
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo

Nessa unidade você adentrará nos principais aspectos do


nascimento da filosofia moderna. Assim como a revolução
científica, que tem seu marco inicial bem determinado, a
partir das ideias de Copérnico, também se convencionou que
o pensamento filosófico moderno inicia em um momento
específico, marcado pela publicação das Meditações Metafísicas,
escritas pelo filósofo e matemático francês René Descartes.

A partir das ideias de Descartes, finda o humanismo


renascentista e tem início o Racionalismo, uma das principais
correntes filosóficas que se estenderá por boa parte do
pensamento moderno, influenciando diversos pensadores e
opondo-se ao empirismo.

Feita uma contextualização inicial, nas páginas a seguir você


terá a oportunidade de acompanhar os principais passos de
Descartes nas Meditações, compreendendo o significado filosófico
de sua famosa expressão Cogito ergo sum (Eu penso, logo existo).
Você também conhecerá, de forma introdutória, outros filósofos
racionalistas que sucederam o pensamento cartesiano, como
Malebranche, Spinoza e Leibniz.

Seção 1 – Descartes e o nascimento da filosofia


moderna
Como filho de família francesa nobre, René Descartes
(1596-1650) foi enviado bem jovem ao renomado colégio
jesuíta de La Flèche, onde recebeu uma sólida formação
filosófica e científica conforme os princípios da educação
escolástica. Prosseguiu com seus estudos, formando-
se em direito na Universidade de Poitiers e, a seguir,
dedicando-se a compreender as ciências físicas. Porém,
tendo estudado a fundo a teologia e filosofia tradicionais,
além de desenvolver grande interesse pela matemática,
Figura 4.1 – René Descartes
Fonte: Amaral (2004).
136
História da Filosofia III

Descartes não ficou satisfeito com o abismo que se formava entre


os saberes ensinados pelas instituições eclesiásticas formais e os
novos conhecimentos científicos e filosóficos produzidos pelo
paradigma heliocentrista e pelo humanismo renascentista.

Era o final do século XVI e o universo cultural permanecia


extremamente conturbado pelas instabilidades políticas,
religiosas, e pela tensão entre os desenvolvimentos da nova
ciência e a severa perseguição da igreja em defesa de seus dogmas
institucionais. Além disso, o Humanismo renascentista havia
gerado uma enorme multiplicidade de perspectivas filosóficas,
cada uma delas desenhando uma imagem diferente do homem e
do universo. Segundo Reale e Antiseri (2004, p. 287):

Em uma época em que se haviam afirmado e se


desenvolviam com vigor novas perspectivas científicas e Galileu Galilei
se abriam novos horizontes filosóficos, Descartes percebia (1564-1642) foi um dos
a falta de um método que ordenasse o pensamento e, primeiros astrônomos
ao mesmo tempo, fosse instrumento heurístico e de a aderir ao sistema
fundamentação verdadeiramente eficaz. copernicano, fazendo
importantes correções
No século XVII, durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), na teoria heliocentrista.
Como físico, matemático,
da qual Descartes participou combatendo os espanhóis em defesa
astrônomo e filósofo, seu
da Holanda, toda a Europa encontrava-se em ebulição. Enquanto papel foi preponderante na
cidades eram destruídas e populações inteiras se empobreciam, chamada revolução científica.
o Estado Moderno consolidava suas bases. Nesse contexto, Johannes Kepler
modificava-se também toda a escala dos valores consagrados pelo (1571-1630) foi astrônomo,
homem renascentista. O ímpeto inicial de exaltação da natureza matemático e astrólogo
alemão, responsável por
humana sofre alguns abalos em face das instabilidades religiosas, desenvolver as três leis
políticas e sociais presentes nesse momento. fundamentais da mecânica
celeste.
No campo da nova ciência, sobretudo após Galileu e Kepler, o
rápido progresso da astronomia em desvendar as leis universais
do movimento dos corpos celestes trouxe para a imagem do
homem uma interrogação:

Em um mundo natural perfeitamente ordenado


segundo as leis matemáticas, cujo funcionamento
mostrava-se totalmente afastado da evidência do
conhecimento sensível e alheio à presença do homem
(ao fato deste perceber ou não esta regularidade),
qual seria o lugar do ser humano? Onde caberiam seus
pensamentos, suas ideias, ações e paixões, irredutíveis
à objetividade das ciências físicas?
Unidade 4 137
Universidade do Sul de Santa Catarina

Precisamente, a aliança entre a busca cartesiana por um método


para o conhecimento e a necessidade de reinserção do homem
no “sistema do universo” caracteriza a temática do nascimento
da filosofia moderna e faz das Meditações a pedra fundamental
desse desenvolvimento. Vejamos mais de perto o significado
filosófico de cada um desses elementos.

O conceito de homem depois de Galileu


Além das inovações no campo da astronomia, Galileu
contribuiu imensamente para o desenvolvimento inicial da
física moderna. Contrariando a noção aristotélica de que os
entes supralunares (os astros) e os entes sublunares eram regidos
por leis distintas, o astrônomo aplica a mesma interpretação
relacional do movimento dos corpos celestes para a observação
dos corpos em geral. O movimento passa a ser visto como algo
partilhado pelos diferentes corpos, independentemente de sua
constituição particular.

Assim, ao tentar compreender o movimento tão somente como


uma relação estabelecida entre corpos num espaço homogêneo,
a física moderna rompe com a ideia aristotélica do deslocamento
enquanto uma tendência intrínseca dada a partir da natureza
de cada corpo particular a buscar seu lugar originário. Os
fenômenos físicos deixam de ser vistos como uma interação de
tais qualidades (qualidades substanciais) para serem interpretados
a partir de parâmetros relacionais extrínsecos aos corpos, isto é,
às leis naturais.

Esse novo modelo de descrição da natureza,


caracterizado pela matematização do movimento e
pela rejeição das qualidades essenciais dos corpos (as
formas substanciais), estabelece as bases da chamada
filosofia mecanicista, que ganha muitos adeptos no
início do século XVII, inclusive o próprio Descartes.

Mas perceba que, afastando-se da noção clássica de Physis, a


interpretação galileana da natureza como ordem matemática
trará uma série de implicações filosóficas. Afinal, ao conceber

138
História da Filosofia III

o universo a partir de suas chamadas qualidades primárias, a


nova física revelará um abismo entre a objetividade das verdades
matemáticas reveladas na própria natureza e, por outro lado, a
subjetividade da existência humana. Veja por quais motivos:

„„ As qualidades primárias dos corpos, como a grandeza,


a figura, a posição e o movimento seriam as únicas
capazes de proporcionar o conhecimento matemático,
que em nada depende das percepções humanas e deve
ser buscado pela via das representações racionais. Todas
as demais qualidades se tornam então secundárias,
figurando apenas como efeitos subordinados das
propriedades mais fundamentais. Em outras palavras, o
calor e o frio, a cor, o aspecto, o odor conservariam algo
de subjetivo, pois são efeitos relativos produzidos nos
órgãos sensórios pelas qualidades primárias, e, portanto,
dependem das particularidades do aparato sensório
de cada um. Tais características sensíveis presentes
nos corpos não mais dizem respeito à sua “essência”,
mas a traços particulares somente relevantes para o
conhecimento do senso comum.

„„ Dada a realidade geométrica do universo, os nossos


sentidos, como a visão e a audição, somente são capazes
de apresentá-la sob uma perspectiva limitada. Não lhes é
possível fornecer a ordem racional que abarca a essência
dos fenômenos físicos.

Pense em nossa percepção direta do Sol e de seu


movimento: todos os dias, pela manhã, vemos o sol
“nascer” no leste e “movimentar-se” pelo céu até o
poente. A tomar unicamente pela informação que
recebemos desses sentidos, é muito natural que
suponhamos que é o astro que se move, enquanto
estamos em repouso em nosso planeta. Apenas
sabemos que a realidade equivale justamente ao
contrário (a Terra é que se move ao redor do Sol) pelas
evidências científicas fornecidas pela astronomia.

Nesse sentido, após Galileu, a interpretação da natureza


como ordem matemática transferiu a primazia na aquisição
do conhecimento acerca das leis naturais do plano sensível

Unidade 4 139
Universidade do Sul de Santa Catarina

para o inteligível. Diferente da noção clássica, conhecer não é


mais coincidir com a natureza (enquanto sua parte integrante).
Conhecer, agora, significar ir além da natureza por meio da
razão, para explicar os fenômenos a partir de suas leis.

Ainda que a regularidade física da natureza possa ser encontrada


até mesmo no próprio corpo humano (em termos fisiológicos),
a variedade e complexidade dos demais elementos que compõe
a existência humana, (como a noção de consciência e outros
aspectos psicológicos) mostra-se incompatível com o tratamento
matemático próprio às qualidades primárias. Para Galileu, a
natureza humana pertencia ao plano das qualidades secundárias,
cuja importância é declaradamente inferior e “menos real” em
relação ao caráter objetivo e linear da estrutura universal.

Figura 4.2 – Gravura de Flamarion


Fonte: Silva [200-].

Assim, sendo obrigado a reconhecer leis que contrariavam a


própria evidência dos sentidos e, por conseguinte, perdendo
seu papel determinante em relação ao conhecimento, após
Galileu, o homem se vê apartado de sua originária comunidade
natural, permanecendo livre para controlar a natureza, mas, em
contrapartida, desafiado pela tarefa de conferir um novo sentido à
sua existência. Segundo Burtt (1991, p. 71):

140
História da Filosofia III

A forma dada por Galileu à doutrina das qualidades


primárias e secundárias (...) foi um passo fundamental
no rumo da expulsão do homem do grande mundo da
natureza. (...) Ora, no processo de transferência dessa
distinção entre o primário e o secundário em termos
adequados à nova interpretação matemática da natureza,
encontramos o primeiro estágio da visão do homem como
algo claramente separado do reino real e primário.

Para Galileu, a subjetividade humana e a natureza não


compartilhavam das mesmas características. A subjetividade seria
o lugar das qualidades secundárias, das percepções individuais e
parciais da realidade. A natureza, por sua vez, correspondia ao
lugar das qualidades primárias; universais e objetivas. O homem,
portanto, estaria dividido em dois: aquele que sente e aquele que
conhece mediante à abstração racional.

A necessidade da fundação de um novo método para o


conhecimento
Ao contrário da postura humanista de exaltação da cultura
clássica, o nascimento da filosofia moderna se caracterizará
pela rejeição das matrizes do conhecimento tradicional, tanto
do pensamento antigo como do pensamento medieval.

Acompanhe o relato autobiográfico de Descartes (1999, p. 37) em


seu Discurso do método:

Fui instruído nas letras desde a infância, e por me haver


convencido de que, por intermédio delas, poder-se-ia
adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que
é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las.
Porém, assim que terminei estes estudos, ao cabo do qual
costuma-se ser recebido na classe dos eruditos, mudei
totalmente de opinião. Pois me encontrava embaraçado
com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver
conseguido outro proveito, procurando instruir-me, senão
o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância.
E, contudo, estudara numa das mais célebres escolas da
Europa, onde imaginava que devia haver homens sábios,
se é que havia em algum lugar da Terra.

Unidade 4 141
Universidade do Sul de Santa Catarina

As palavras de Descartes refletem o clima de incerteza que


marca o ambiente cultural do início do século XVII. Ao
lado da separação entre homem e natureza promovida pelo
desenvolvimento da nova ciência, o ceticismo ganha terreno por
meio das ideias de Montaigne e Francisco Sanchez (1522-1632),
passando a contestar a validade dos studia humanitatis. Segundo
Pessanha (1999, p. 8), em face das mais variadas perspectivas
filosóficas legadas pelos humanistas da Renascença,

Sanchez havia concluído que o homem não pode


conhecer nada com segurança, nem o mundo, nem a si
mesmo, Montaigne vai adiante e proclama que o homem
nada sabe porque o homem não é nada.

Alheias a estas inquietações, as universidades e demais


instituições de ensino (todas mantidas pelas ordens
eclesiásticas) permaneciam aferradas ao ensino da filosofia
escolástica, ocupando-se da defesa do sistema tomista e
rejeitando as inovações impostas pela ciência moderna.
Segundo Thonnard (1968, p. 447), “os escolásticos da
decadência defenderam o aristotelismo em bloco, considerando
como inseparáveis a sua metafísica sempre viva e a sua
astronomia ou a sua física já fora de uso.”

Não era, portanto, somente da escolástica que a filosofia


O próprio Descartes, ao saber da moderna sentia a necessidade de libertar-se, mas principalmente
condenação de Galileu, cancelou dos ditames da igreja. No ímpeto conservador gerado pela
a publicação de seu Tratado de Contrarreforma, o Santo Ofício perseguiu implacavelmente
física, onde defendia as teses
aqueles que ousaram propor quaisquer teorias que fossem de
heliocentristas de Copérnico.
encontro à instituição da doutrina cristã. Contudo, uma vez
rompidos os laços com a matriz sagrada, à filosofia moderna
restava o desafio de fundar-se a si mesma.

A filosofia, portanto, encontrava-se sem um


fundamento determinado: as antigas bases aristotélicas
— a partir das quais o homem compartilhava do
mesmo princípio ontológico vigente em toda a
natureza — ruíram frente ao complexo de eventos
que fundaram a ciência moderna. Perdendo seu papel

142
História da Filosofia III

determinante em relação ao conhecimento, o homem


moderno se vê apartado de sua originária comunidade
natural. Por outro lado, o ceticismo apenas fornecia a
crítica ao saber da época, sem oferecer a possibilidade
de um novo caminho positivo para o conhecimento.
Conforme explica Brown (1995, p. 43):
“A pressão exercida pela autoridade da tradição
levou alguns a um sectarismo intelectual, outros a
uma eclética mistura de doutrinas, e outros ainda ao
ceticismo. O que se fazia necessário era um método, ou
métodos para decidir com certeza o que é verdadeiro,
sem referência às autoridades.”

Uma vez invalidado o recurso à sabedoria dos antigos e ao


veredicto das escrituras, somente a razão poderia assumir
o controle, fornecendo as bases para o conhecimento. Já
com Galileu, os cálculos matemáticos e as hipóteses se
mostravam mais confiáveis do que a observação empírica em
condições naturais, mas essa aplicação prática da matemática
se restringia às descobertas da ciência. Nesse ponto entra em
cena a genial inspiração cartesiana: a rigorosidade do método
matemático talvez pudesse servir de modelo às demais áreas
do conhecimento.

Descartes considerava a matemática como uma ciência exemplar,


pois ela era capaz de gerar conhecimento objetivo, fornecer
soluções simples a problemas complexos e simplificar a descrição
das ciências naturais. Contudo, a principal característica que
torna a matemática uma ciência exemplar é a capacidade de
estabelecer relações entre entidades abstratas, utilizando-se de
ordem e medida. Ora, as relações que compõem a aritmética
e a geometria são dotadas de ordem em medida nas suas
demonstrações justamente em função do método utilizado.

Unidade 4 143
Universidade do Sul de Santa Catarina

Assim, raciocinou Descartes: se é o método que confere ordem


e medida às demonstrações, tornando a matemática uma ciência
universal, devemos cobrar o mesmo rigor metódico da filosofia.
Toda e qualquer ideia, representação ou teoria tem de ser provada
da mesma forma que os teoremas matemáticos, ou seja, a partir
da demonstração de suas partes. É preciso, portanto, um método
para a reflexão filosófica; condição sem a qual o conhecimento
não pode alcançar o ideal de simplicidade, clareza e distinção.

Descartes trouxe a rigorosidade metódica e o modo


teorético de proceder da matemática para o interior da
filosofia, marcando o pensamento filosófico do início
da modernidade pelo racionalismo e pela influência
das ciências positivas.

É no Discurso do método (1637) onde o filósofo aborda


diretamente essa questão, propondo que, uma vez que a
matemática é uma das manifestações da razão, a ordem e o rigor
presentes nas demonstrações geométricas seriam um reflexo da
própria essência do pensamento racional.
Lembre-se que Descartes
Para Descartes, o método correto de proceder para encontrar
também foi o fundador da
geometria analítica e do o conhecimento seguro seria análogo ao trabalho de um
chamado plano cartesiano, matemático. Assim como em uma equação, partimos do valor
que permitem a tradução dos de alguns termos conhecidos para chegar ao valor de uma
problemas geométricos em incógnita (x), da mesma forma, estabelecidas algumas regras
equações algébricas. Com essa
básicas de inferência e operando por meio de intuição e análise, o
inovação, a matemática se
tornou extremamente clara raciocínio teria a capacidade de encontrar em si as representações
em seus processos, capaz de verdadeiras sobre o mundo. Para isso, seria preciso precaver-se
explicar e demonstrar situações contra as ilusões provocadas pelos sentidos e os julgamentos
relacionadas ao espaço e ao equivocados, fruto de pressupostos mal fundamentados.
movimento dos corpos.

Buscando um modelo de reflexão aplicável a todas as áreas do


conhecimento, Descartes expõe as quatro regras descritas no
quadro a seguir:

144
História da Filosofia III

O Discurso do Método

Regra da evidência
Não se deve tomar por verdadeira nenhuma proposição que não seja
diretamente evidente. “Evidente”, aqui, significa aquilo que se apresenta
ao pensamento de forma clara e distinta. “Claro” é aquilo que se deixa
conhecer nele próprio. “Distinto” corresponde ao que mostra em si
mesmo as suas diferenças em relação aos demais, não se deixando
confundir.

Regra da análise
Nem sempre nossas ideias se apresentam com clareza e distinção. Uma
vez que as proposições de conhecimento só podem ser aceitas quando
se mostrarem evidentes ao intelecto, é preciso dividir os problemas
complexos em partes menores, para então compreendê-las melhor e
resolver a questão.

Regra da síntese
Uma vez feita a análise, tem-se um conjunto de reflexões dispersas,
relativas a cada parte do objeto ou problema em questão. O próximo
passo consiste então na recomposição dos elementos antes separados,
agora mediante a organização das reflexões e descobertas realizadas
sobre cada um deles. O processo de síntese exige que se inicie dos
raciocínios mais simples chegando aos mais complexos, segundo uma
ordem de coerência lógica.

Regra da enumeração
Finalmente, é preciso rever todo o processo a fim de garantir a
certeza do conhecimento obtido. Trata-se de enumerar todos os
elementos analisados e refletir sobre a validade das sínteses realizadas,
considerando a coerência do resultado.

Com esses procedimentos, Descartes pretendia


engendrar um modelo aplicável a todas as ciências,
contribuindo substancialmente, junto com Francis
Bacon, para o desenvolvimento inicial da revolução
científica. Mas, lembre-se, aqui estamos interessados
na filosofia!

Unidade 4 145
Universidade do Sul de Santa Catarina

Repare que a determinação de um método para o conhecimento


terá um profundo significado filosófico no pensamento
cartesiano: Embora Descartes se aproxime de Galileu quanto
à valorização da matemática como ideal de conhecimento, ele
não compartilhava do objetivismo sugerido por essa atitude,
responsável por apartar radicalmente homem e natureza,
relegando a particularidade da existência humana ao plano do
saber relativo e da opinião.

Em vez de aderir à tentativa de uma descrição


matematizada da realidade, Descartes procurou extrair
apenas a metodologia que permitisse alcançar uma
metafísica capaz de encontrar a justa medida entre a
natureza geométrica e uma ideia de subjetividade mais
atuante nessa realidade.

Ainda que se conceba uma exterioridade entre a natureza e


o homem, pondera o pai da filosofia moderna, o acesso às
verdades universais somente pode ser alcançado no âmbito
das representações racionais. Em outras palavras, justamente
porque as regras da natureza estão dadas para além dela mesma,
é somente na racionalidade humana que se encontra o próprio
critério a partir do qual se pode apreender a regularidade presente
nas leis universais.

Eis que o pensamento, tomado como o lugar das


representações claras e distintas, desloca o objeto do
conhecimento da exterioridade das leis matemáticas
meramente observáveis para a imanência do sujeito, ao
qual a ciência de tais leis pode efetivamente se dar.

Para Descartes, é na subjetividade pensante, portanto, que se


deve procurar o fundamento para o conhecimento. Assim nasce a
perspectiva racionalista que marca o início da filosofia moderna.

— Na próxima seção, você verá como as Meditações Metafísicas


seguem estritamente o método acima descrito, cumprindo uma a
uma todas as suas etapas, e consolidam a noção racionalista da
verdade como algo imanente ao sujeito.

146
História da Filosofia III

Seção 2 – As Meditações e o surgimento de uma


metafísica da subjetividade pensante
A primeira versão das Meditationes de prima filosofia (Meditações
de filosofia primeira) foi enviada por Descartes ao influente padre
e intelectual Marino Mersenne, para que este a levasse ao
conhecimento dos principais pensadores da Europa. A obra
causou muitas polêmicas, e recebeu comentários e objeções de
filósofos reconhecidos, como Thomas Hobbes, Pierre Gassendi e
Antonie Arnauld.

O texto foi publicado somente em 1647, sob o título:


Meditações metafísicas onde se demonstra a existência de
Deus e a imortalidade da alma, contendo também as
respostas de Descartes àqueles pensadores. Ainda que
dividindo opiniões, as ideias cartesianas rapidamente
fundam um intenso debate filosófico, estabelecendo
o início das discussões que compõem o cenário do
nascimento da filosofia moderna.

Escrito originalmente em latim, o tratado é composto


por seis capítulos ou meditações, em que Descartes
procura aplicar estritamente o seu método às reflexões
sobre o conhecimento, cumprindo cada uma das etapas Figura 4.3 – Primeira publicação das
Meditações
propostas. Veja de que modo o autor procede:
Fonte: University of Notre Dame, [200-].

— Nas 1ª e 2ª meditações, Descartes aplica a regra de evidência,


rejeitando todos os conhecimentos anteriormente adquiridos
e procurando uma certeza indubitável, a partir do critério da
clareza e distinção.
— A partir da 3ª meditação o autor aplicará a análise. Primeiro
passando em revista as representações mais simples, das quais
não possa duvidar. A partir delas, estendendo a análise às demais
representações. Esse processo se prolonga pelas meditações
seguintes.
— Nas 5ª e 6ª meditações, Descartes ordena seus pensamentos,
aplicando a regra da síntese.
— No final da 6ª meditação e das respostas às objeções,
Descartes enumera as ideias e conclusões a que chegou.

Unidade 4 147
Universidade do Sul de Santa Catarina

Como você pode ver, Descartes põe radicalmente em prática o


seu método, procurando um conhecimento que possa ser, por
si, claro e distinto. Essa busca, entretanto, não se realiza por
meio de observações da natureza, experimentos científicos,
nem por meio do recurso a alguma literatura ou conhecimento
da tradição. Coerente com a proposta racionalista, o autor das
Meditações se afastará de tudo e de todos, buscando apenas em
seu próprio intelecto as respostas que procura.

E então, pronto para acompanhar a profunda reflexão


filosófica das Meditações?
A seguir você encontra um resumo da argumentação
cartesiana ao longo das seis Meditações, acompanhada
de algumas citações. Nossa recomendação é que,
juntamente com este estudo, você tente ler o texto
original completo, pois se trata de uma das principais
obras da história da filosofia, indispensável à sua
formação acadêmica. As indicações para o texto
completo estão disponíveis no Saiba Mais, ao final
desta unidade.

1ª Meditação — A dúvida hiperbólica


Descartes inicia o texto das Meditações fazendo um balanço de
sua trajetória intelectual. De todos os conhecimentos que até
aquele momento havia adquirido, nenhum se mostrava como
uma verdade totalmente segura; da qual não pudesse duvidar.
Nas palavras do autor:

Já faz bastante tempo que eu me dei conta de que,


a partir de minha infância, considerara verdadeiras
muitas opiniões equivocadas, e de aquilo que, mais
tarde, estabeleci em princípios tão mal fundamentados
só podia ser deveras suspeito e impreciso; de maneira
que era preciso que eu tentasse com seriedade, uma
vez em minha vida, livrar-me de todas as opiniões
nas quais até aquele momento acreditara, e começar
novamente a partir dos fundamentos, se pretendesse
estabelecer algo sólido e duradouro nas ciências.
(DESCARTES, 1999, p. 249).

148
História da Filosofia III

O intuito do filósofo fica claramente definido logo de início:


Trata-se de encontrar os fundamentos para o conhecimento;
uma base sólida a partir da qual se possa estabelecer uma
referência capaz de sustentar o desenvolvimento dos saberes
particulares. Também fica sinalizado o método a ser utilizado
para essa empreitada, a saber, o processo de duvidar.

Mas por que Descartes serviu-se da dúvida como um


caminho para conquistar as certezas que procurava?

Na perspectiva cartesiana, o conhecimento será concebido como


representação da verdade. Ou seja, temos conhecimento de algo
justamente quando a ideia que fazemos do ser ou objeto em
questão corresponde plenamente ao modo como ele é. Ora, a
questão central, aqui, é a de como garantir que as representações
subjetivas que temos da verdade sobre algo (as nossas ideias)
equivalham à verdade propriamente dita. Pergunta-se pela
possibilidade de objetividade de nossas representações.

Resumidamente, a resposta sustentada por Descartes é a


de que uma representação será correspondente da verdade
quando for clara e distinta, isto é, quando se apresentar ao
nosso pensamento de forma indubitável, sem nenhum traço
de confusão. Mas para chegar a esse tipo de conclusão, faz-
se necessário uma diligente investigação interior que permita
“separar o joio do trigo” no domínio de nossa mente. Assim,
perguntar pela clareza e distinção de algo é justamente duvidar.
Segundo Pessanha (1999, p. 18):

Descartes percebe que existe apenas um caminho que


supera a dúvida: o que a atravessa toda, esgotando-lhe
todas as dimensões. Ou seja: parece-lhe impossível
vencer a dúvida evitando-a ou pretendendo instalar-se
desde logo numa frágil certeza – e frágil justamente
porque ainda não submetida aos testes da dúvida.
Descartes aceita o desafio da dúvida que transpassa
a atmosfera cultural de sua época; aceita-a para
combatê-la com suas próprias armas. Eis porque duvida
metodicamente de tudo. Adota em princípio a sugestão
de Montaigne: o decisivo campo de batalha entre a
certeza e a incerteza é o próprio eu.

Unidade 4 149
Universidade do Sul de Santa Catarina

Na primeira meditação, portanto, Descartes vai utilizar a


dúvida como método de investigação para todas as suas ideias
(representações). Mas repare que, visando os fundamentos do
conhecimento, não é necessário que o filósofo refute, um a um,
todos os seus pensamentos. Tal processo recairia em um ciclo
infinito, sem oferecer um resultado conclusivo. Uma estratégia
mais eficaz, conclui o filósofo, é a de analisar e tentar pôr em
questão as bases a partir das quais construímos as diferentes
espécies de conhecimentos sobre as coisas. Pois, como ele afirma,
“visto que a destruição dos alicerces provoca inevitavelmente o
desmoronamento de todo o edifício, no início irei me aplicar nos
princípios sobre os quais as minhas antigas opiniões estavam
assentadas.” (DESCARTES, 1999, p. 250).

Um erro comum na leitura das Meditações consiste


em concluir apressadamente que Descartes rejeita
todos seus conhecimentos e adota uma posição
completamente cética, julgando que não pode ter
certeza sobre a existência de nada. Mas não é bem
assim. É preciso ter em mente que o filósofo aceita
temporariamente um ceticismo metodológico, que
inclusive admite ser difícil de levar adiante, pois, as
antigas e habituais opiniões tendem sempre a retornar
ao pensamento. Trata-se de suspender o juízo sobre
o mundo, até que se tenha algum elemento objetivo
capaz de fundamentá-lo.

Utilizando-se, pois, da norma da dúvida, Descartes (1999, p.


250) decide passar em revista algumas de suas principais ideias,
de modo que “o menor indício de dúvida que eu nelas encontrar
será suficiente para impelir-me a repelir todas.” Ao longo da
primeira meditação, sua dúvida se estenderá dos níveis mais
comuns da percepção (dúvida natural), a um nível extremo de
questionamento sobre a existência de toda a realidade enquanto
tal, conhecido como a dúvida hiperbólica. Acompanhe o
esquema sobre os diferentes graus da dúvida em Descartes:

1ª Etapa – Dúvida natural


„„ Em relação aos sentidos – Os sentidos são nossa fonte
mais direta de conhecimento sobre o mundo. Antes
de qualquer tipo de educação ou aprendizado formal,

150
História da Filosofia III

nos familiarizamos com o mundo que nos cerca por


meio da visão, do olfato, do tato, do paladar e da
audição. Todavia, argumenta Descartes, por diversas
vezes os sentidos nos traem: julgamos ver ao longe
um determinado objeto, que de perto se mostra outro;
atribuímos a um som determinada causa, que mais
tarde se mostra não ser o caso. Enfim, quem já não
se confundiu ao menos uma vez com as informações
fornecidas por cada um desses órgãos dos sentidos? As
informações fornecidas pelos sentidos, portanto, são úteis
para a atuação na vida prática, mas não podem servir
como o fundamento para um saber plenamente seguro;
como a ciência nos mostra.

„„ Em relação aos hábitos – Do fato de os sentidos


nos enganarem em determinados momentos, não se
pode concluir que eles são sempre falsos, uma vez que
habitualmente nos orientamos com sucesso a partir deles.
Nesse, ponto Descartes lança mão de um argumento
mais elaborado, capaz de relativizar essa autoridade
habitual do conhecimento sensível. Trata-se do
argumento do sonho.

Certamente, em circunstâncias normais não duvidamos


das informações sensíveis mais básicas, como o fato de
percebermos estar aqui e agora, lendo este livro. Contudo,
você já não teve algum sonho bastante realista, onde as
percepções ou ações ali representadas foram fortes o suficiente
a ponto de confundi-lo temporariamente acerca de sua
existência real? E quem poderá dizer que exatamente nesse
momento você não está sonhando ler o livro de História da
Filosofia III? Acompanhe a reflexão cartesiana:

Quantas vezes me aconteceu sonhar, durante a noite,


que me encontrava neste lugar, vestido e próximo do
fogo, apesar de me achar totalmente nu em minha
cama? Afigura-se-me agora que não é com olhos
adormecidos que olho este papel; que esta cabeça
que eu movo não se encontra adormecida; que é com
intento deliberado que estendo esta mão e que a sinto:
o que sucede no sono não parece ser tão claro nem
tão inconfundível quanto tudo isso. Porém, mediando
diligentemente sobre isso, recordo-me haver sido muitas
vezes enganado, quando dormia, por ilusões análogas.

Unidade 4 151
Universidade do Sul de Santa Catarina

E, persistindo nesta meditação, percebo tão claramente


que não existem quaisquer indícios categóricos nem
sinais bastante seguros por meio dos quais se possa
fazer uma nítida distinção entre a vigília e o sono, que
me sinto completamente assombrado: e meu assombro
é tanto que quase me convence de que estou dormindo.
(DESCARTES, 1999, p. 251).

Com o argumento do sonho, Descartes chega a um segundo


nível da dúvida natural, isto é, a dúvida sobre a falibilidade do
conhecimento sensível. A impossibilidade de poder decidir com
certeza entre o estado de vigília e o sonho, seria mais um indício
de que não é adequado confiar às percepções sensoriais o papel de
fundadoras de uma ciência rigorosa. Sua argumentação se elevará
agora a outro nível de dúvida.

2ª Etapa – Dúvida metafísica


„„ Em relação às verdades matemáticas – Com o
argumento do sonho Descartes elimina a certeza
dos hábitos e a validade do senso comum enquanto
referências para um conhecimento absolutamente
seguro. Entretanto, argumenta o filósofo, mesmo que
nossos sonhos nos enganem quanto à existência efetiva
daquilo que representam, é necessário admitir que as
representações do sonho precisam ter uma matriz real.
Em outras palavras, se sonhamos com pessoas e coisas,
é porque já temos alguma experiência da existência real
desses elementos. Essa “matriz” fica mais clara quando
pensamos em algo mais abstrato, como nossos juízos
sobre a ordem e medida das coisas. Ainda que possamos
duvidar da existência dos corpos físicos, por estes serem
percebidos por meio dos sentidos, não é tão fácil duvidar
das relações de ordem e medida que percebemos neles.

Assim, há outro tipo de “coisas” que encontramos em nossas


ideias, que não dependem da realidade sensível. Trata-se das
razões matemáticas e as propriedades abstratas que elas nos
fornecem para analisar os corpos, tal como os conceitos de figura,
massa, tamanho e movimento. Estamos agora lidando com algo
metafísico; mas em um sentido especial.

152
História da Filosofia III

Veja como Descartes agora deixa para trás o âmbito


físico da realidade dos objetos externos e passa a
refletir sobre algo interno, ou melhor, imanente ao
sujeito. A soma de uma adição, ou as relações de
proporção entre duas grandezas não dependem
de qualquer elemento concreto no mundo que nos
cerca; todos esses conteúdos podem se desenvolver
apenas no domínio de nossa mente. “Portanto”,
conclui o filósofo, “quer eu esteja acordado, quer eu
esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o
número cinco e o quadrado jamais terá mais do que
quatro lados; e não parece possível que verdades tão
evidentes possam ser suspeitas de alguma falsidade ou
dúvida”. (1999, p. 253).

Descartes parece então ter chegado a uma fonte de certeza


indubitável, atingindo seus objetivos de encontrar um
fundamento para o saber, certo? Afinal, se as verdades
matemáticas estão acima da percepção dos sentidos e independem
do fato de estarmos sonhando ou não, elas superam as dúvidas
inicialmente postuladas pelo autor.

Contudo, nesse momento Descartes levanta uma engenhosa


hipótese cuja repercussão assumirá grandes proporções em toda a
história da filosofia. Nas palavras do autor:

Faz muito tempo que conservo em meu espírito a opinião


de que existe um Deus que tudo pode e por quem fui
criado e produzido tal como sou. Mas quem me poderá
garantir que esse Deus não haja feito com que não exista
terra alguma, céu algum, corpo extenso algum, figura
alguma, grandeza alguma, lugar algum e que, apesar
disso, eu possua os sentimentos de todas essas coisas e
que tudo isso não me pareça existir de forma diferente
daquela que vejo? [...] pode suceder que Deus tenha
desejado que eu me equivoque todas as vezes em que
realizo a adição de dois mais três, ou em que enumero os
lados de um quadrado. (DESCARTES, 1999, p. 253).

A conjectura do Deus enganador cumpre na argumentação


cartesiana um papel auxiliar; uma preparação para o último
grau da dúvida presente nas Meditações. Pela força de um ser
todo poderoso talvez, pudéssemos nos enganar até mesmo com
relação às verdades matemáticas, alega Descartes. A rigorosidade

Unidade 4 153
Universidade do Sul de Santa Catarina

irrefutável das representações matemáticas encontraria aí um


limite de credibilidade, de modo que se Deus agisse com
o propósito de nos enganar sistematicamente toda vez que
somamos dois mais três, nunca poderíamos ter qualquer certeza
sobre a verdade dessa operação.

Essa conjectura, entretanto, esbarra em uma contradição:


A ideia de um “deus embusteiro” não pode ser verdadeira,
uma vez que não se encontra entre os atributos do divino a
enganação. Descartes conclui que, sendo Deus sumamente
bom e verdadeiro, nunca agiria de tal forma a nos induzir a
tamanho engano acerca das certezas matemáticas. De qualquer
modo, está aberto o caminho para uma tentativa de submissão
das representações matemáticas à norma da dúvida. Trata-
se do argumento cético do gênio maligno, que resultará no
estágio final das dúvidas cartesianas, conhecido como a dúvida
hiperbólica. Esse argumento não se limitará a pôr em dúvida a
validade do conhecimento matemático, senão que se estenderá
ao questionamento da existência de toda a realidade exterior à
consciência individual.

Em relação à existência do mundo exterior – Ainda no final da


primeira meditação, Descartes constrói o argumento do gênio
maligno, que será retomado ao início do capítulo seguinte.
Acompanhe as palavras do autor:

Presumirei, então, que existe não um verdadeiro


Deus, que é a suprema fonte da verdade, mas um certo
gênio maligno, não menos astucioso e enganador do
que poderoso, que dedicou todo o seu empenho em
enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores,
as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos
não passam de ilusões e fraudes que Ele utilizava para
surpreender minha credulidade. Considerei a mim
mesmo totalmente desprovido de mãos, de olhos, de
carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos,
mas dotado da falsa crença de possuir todas essas coisas.
(DESCARTES, 1999, p. 255).

Com este argumento, Descartes chega ao grau máximo


de dúvida, ultrapassando o questionamento apenas das
verdades matemáticas e estendendo-o a todos os domínios do
conhecimento relacionado ao mundo exterior.

154
História da Filosofia III

Ao conceber hipoteticamente a existência de um gênio maligno,


que plenamente ocupado em nos enganar fosse capaz de
fabricar todas as nossas percepções sobre o mundo, Descartes
consegue pôr em dúvida todas as classes de conhecimentos
preestabelecidos. Mas atenção: trata-se de um artifício metódico.
É importante que você perceba que o filósofo assume uma
perspectiva temporariamente cética a fim de levar adiante seu
método; mas em nenhum momento ele se encontra convencido,
ou pretende debater a existência efetiva de tal entidade
superpoderosa. Reale e Antiseri (2004, p. 292) esclarecem bem
esse ponto:

É evidente que não nos encontramos aqui diante da


dúvida dos céticos. Neste caso a dúvida quer levar à
verdade. Por isso é chamada de dúvida metódica, enquanto
é passagem obrigatória, ainda que provisória, para chegar
à verdade. Descartes quer pôr em crise o dogmatismo dos
filósofos tradicionais, ao mesmo tempo que também quer
combater a atitude cética, que se comprazia em pôr tudo
em dúvida sem oferecer nada em troca. E, em Descartes,
é evidente o anseio pela verdade. A negação aqui remete à
afirmação, a dúvida leva à certeza.

Enfim, com o argumento do gênio maligno, Descartes efetiva a


destruição de todas as certezas prévias de seu entendimento. Ao
final da primeira meditação o cenário é desolador; nada parece
restar em seu lugar. Somente a partir da segunda meditação o
filósofo começa a encontrar uma saída para esse questionamento
extremo sobre os limites do conhecimento.

A dúvida hiperbólica criada por Descartes cumpriu


seu papel metodológico nas Meditações, mas
também teve outros efeitos na história da filosofia,
convertendo-se num problema cético que até hoje
permanece em discussão no campo da teoria do
conhecimento. Embora o filósofo francês tenha
fornecido a sua resposta ao problema, considerando
tê-lo resolvido, mais tarde diversos pensadores
irão discordar da filosofia cartesiana retomando
apenas esta dúvida extrema à existência do mundo
exterior e propondo-lhe outras soluções. Para que
você compreenda a dimensão desse problema,
acompanhe as célebres palavras de Immanuel Kant no

Unidade 4 155
Universidade do Sul de Santa Catarina

século XVIII: “permanece um escândalo da filosofia e


da razão humana em geral ter que admitir a existência
das coisas fora de nós [...] com base apenas na fé e, ao
ocorrer a alguém colocar essa existência em dúvida,
não lhe poder contrapor nenhuma prova satisfatória.”
(KANT, 1980, p. 20)

2ª Meditação — O Ego cogito


Descartes inicia a segunda meditação retomando a dúvida
hiperbólica e dispondo-se a buscar, entre os escombros do “antigo
edifício do conhecimento”, alguma certeza restante que possa
lhe servir de fundamento para reestruturar seus saberes. O autor
se propõe a refazer o caminho que o levou à dúvida sobre a
existência do mundo exterior, mantendo a conjectura do gênio
maligno e levando adiante sua reflexão.

Justamente ao aprofundar o argumento do gênio maligno e rever


as condições que o permitiram duvidar da realidade externa com
o um todo, Descartes se aproxima de uma certeza fundamental.
Acompanhe atentamente seu raciocínio:

Mas que sei eu, se não existe nenhuma outra coisa


diferente das que acabo de considerar incertas, da qual
não se possa ter a menor dúvida? Não existirá algum
Deus, ou alguma outra potência, que me infunda tais
pensamentos no espírito? Isso não é necessário, pois
talvez eu tenha a capacidade de produzi-los por mim
mesmo. Eu, então, ao menos não serei alguma coisa? Mas
já neguei que possuísse qualquer sentido ou qualquer
corpo. Contudo, titubeio, pois o que resulta daí? Serei
de tal maneira dependente do corpo e dos sentidos
que não possa existir sem eles? Mas eu me convenci de
que nada existia no mundo, que não havia céu algum,
terra alguma, espíritos alguns, nem corpos alguns;
logo, não me convenci também de que eu não existia?
Com certeza, não; sem dúvida eu existia, se é que me
convenci ou só pensei alguma coisa. Mas existe alguém,
não sei quem, enganador muito poderoso e astucioso,
que dedica todo o seu empenho em enganar-me sempre.
Não há então, dúvida alguma de que existo, se ele me
engana; e por mais que me engane, nunca poderá fazer
com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma
coisa. De maneira que, depois de haver pensado bastante

156
História da Filosofia III

nisto e analisado cuidadosamente todas as coisas, se


faz necessário concluir e ter por inalterável que esta
proposição, eu sou, eu existo é obrigatoriamente verdadeira
todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu
espírito. (DESCARTES, 1999, p. 258).

Enfim, chegando ao “fundo do poço” de suas crenças de


conhecimento, Descartes agora afirma ter encontrado uma
primeira certeza realmente indubitável; capaz de sobreviver a
todos os níveis da dúvida postulados até então. Seu argumento
pode ser resumido nas seguintes premissas:

— Eu duvido.
— Posso duvidar de tudo, menos do fato de que estou duvidando.
— Ora, duvidar é pensar.
— Logo, penso.
—————————————————————————————
E se penso, logo existo.

Ao contrário do conhecimento advindo dos sentidos, e mesmo


da simples atividade do pensamento, ao julgar e operar com
diferentes representações cuja fonte é a experiência sensível,
Descartes considerou a conclusão acima como um pensamento
superior; uma intuição intelectual. Assim, raciocina o filósofo:
embora ainda não possa saber nada sobre a existência das coisas
exteriores, é certo que eu ao menos existo enquanto pensamento!
O pensamento é uma das minhas essências; corresponde àquilo
que eu mesmo sou.

No original em latim, essa célebre conclusão cartesiana foi


expressa nas seguintes palavras: Dubito, ergo cogito, ergo sum
(duvido, logo penso, logo existo). Desse modo, em filosofia
utilizamos as expressões “cógito cartesiano” ou “ego cogito” para
designar essa “coisa pensante” que Descartes encontra como sua
primeira certeza indubitável.

Unidade 4 157
Universidade do Sul de Santa Catarina

Dando sequência à segunda meditação, o filósofo passa a


investigar com mais rigorosidade sua intuição intelectual. Afinal,
mantendo a hipótese do gênio maligno e a dúvida sobre a
existência do mundo exterior, o que se pode realmente afirmar a
partir da conclusão de que eu penso, logo existo?

Em outras palavras, o que é isto que pensa e


que existe?

De um modo geral, a ideia que fazemos de nós mesmos, isto é,


a maneira como nos representamos, envolve diferentes aspectos:
alguns ligados ao nosso corpo, outros apenas ligados à nossa
mente. Descartes, porém, suspendeu o juízo acerca de todas as
nossas ideias adquiridas a partir dos sentidos, não é mesmo?
Portanto, provisoriamente, o “eu penso” apenas fornece a certeza
da existência de uma coisa pensante (res cogitans), mas daí ainda
não se pode inferir a validade de outras ideias que compõem a
noção de eu, tal como as representações ligadas à corporeidade.
Acompanhe a reflexão do autor:

Considerava-me, inicialmente, provido de rosto, mãos,


braços e toda essa máquina composta de ossos e carne,
tal qual ela aparece em um cadáver, à qual dava o nome
de corpo. Considerava, além disso, que me alimentava,
que caminhava, que sentia e que pensava e relacionava
todas essas ações à alma [...] No que dizia respeito ao
corpo, não duvidava de forma alguma de sua natureza;
pois pensava conhecê-la com muita clareza [...] Mas o
que sou eu, agora que presumo que existe alguém que
é espantosamente poderoso [...] que emprega todas as
suas forças e todo o seu empenho em enganar-me? Posso
ter certeza de possuir a menor de todas as coisas que
atribuí há pouco à natureza corpórea? Demoro-me em
pensar nisto com atenção, passo e repasso todas essas
coisas em meu espírito, e não encontro nenhuma que eu
possa afirmar que exista em mim. Passemos, então, aos
atributos da alma e vejamos se há alguns que existam em
mim. Os primeiros são alimentar-me a caminhar; porém,
se é verdade que não possuo corpo algum, é verdade
também que não posso nem caminhar nem alimentar-
me. Um outro é sentir; mas não se pode também sentir
sem o corpo, além do que, pensei sentir outrora muitas
coisas, durante o sono, as quais reconheço, ao acordar,

158
História da Filosofia III

não haver de fato sentido. Um outro é pensar, e verifico


aqui que o pensamento é um atributo que me pertence;
somente ele não pode ser separado de mim. Eu sou,
eu existo: isto é certo [...] Nada admito agora que não
seja obrigatoriamente verdadeiro. Nada sou, então,
a não ser uma coisa que pensa, ou seja, um espírito,
um entendimento ou uma razão, que são palavras
cujo significado me era anteriormente desconhecido.
(DESCARTES, 1999, p. 259-261).

O corpo nos é conhecido por meio das sensações. Mas como os


sentidos podem enganar, Descartes conclui que, no que concerne
ao conhecimento seguro sobre as coisas, nosso corpo não consiste
na melhor fonte de acesso ao mundo.

Conhecer, para Descartes, nada mais é que representar, ou seja,


ter na mente um tipo de imagem ou concepção de um objeto ou
conceito. E ao representar algo, estamos pensando. Mas quando
pensamos sobre nosso próprio pensamento, nos deparamos com
este eu que pensa; na linguagem cartesiana, com a subjetividade
pensante. Veja que há, então, uma grande diferença entre a
representação da própria subjetividade pensante (o ego cogito) e as
demais representações.

Quando pensamos em uma coisa qualquer, como uma


bola, podemos distinguir com clareza a representação
(ou ideia que fazemos sobre a bola) da coisa que ela
representa (a bola, ela mesma). Entretanto, na estrutura
do cogito cartesiano, a representação e o representado
coincidem. Ou seja, quando penso sobre meu
pensamento retorno a mim mesmo, e concluo que sou
um eu pensante.

Ao me conceber como ser pensante, eu mesmo apareço como


causa desta “representação de mim”. Pelo simples fato de ter esse
pensamento, está garantida a certeza de minha existência. Para
Descartes, o eu que existe é uma entidade singular, revelada por
meio do próprio pensamento de forma transparente. Desse modo,
o filósofo conclui que é mais fácil conhecer meus pensamentos
do que conhecer meu próprio corpo; tarefa para a qual
dependo dos sentidos.

Unidade 4 159
Universidade do Sul de Santa Catarina

Mas se estamos no domínio dos pensamentos, como


ficam as representações sensíveis? No plano mental,
as representações geradas pelos sentidos (como a
imagem que fazemos de nossas mãos ou nosso rosto)
não são, igualmente, ideias?

Ao contrário do ego cogito, quando penso sobre meu corpo,


não necessariamente coincido com ele. As representações
sobre o corpo dependem das sensações e, visto que os sentidos
podem enganar, não há como sabermos com certeza se tais
representações coincidem com o objeto em questão (o corpo, ele
mesmo). A certeza da existência do cogito, por outro lado, é
autoevidente, uma vez que possui clareza e distinção.

Assim, Descartes vê a subjetividade pensante como representativa


da alma e do próprio eu. É o espírito racional o princípio
primordial no ser humano. O pensamento, por sua vez, é tomado
como uma luz natural capaz de iluminar o próprio sujeito e todas
as outras coisas que se apresentam à mente. Comparando as
representações sensíveis e as representações advindas da análise
da alma racional, Descartes encontra então uma segunda certeza,
por meio do célebre exemplo da cera. Acompanhe:

Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba


de ser tirado da colmeia [...] sua cor, sua figura, sua
grandeza, são patentes; é duro, é frio, tocámo-lo e, se
nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as
coisas que se podem distintamente fazer conhecer um
corpo encontram-se neste.
Mas eis que, ao mesmo tempo que falo, é aproximado
do fogo: o que restava de sabor desprende-se, o odor
se dissipa, sua cor se altera, sua figura se modifica, sua
grandeza aumenta, ele torna-se líquido, fica quente,
mal o podemos tocar e, apesar de batermos nele,
não produzirá som algum. A mesma cera permanece
depois dessa modificação? É necessário confessar
que permanece: e ninguém pode refutá-lo. O que é,
portanto, que se conhecia deste pedaço de cera com
tanta evidência? Com certeza não pode ser nada de tudo
o que percebi através dos sentidos [...] Com certeza,
nada fica a não ser algo de extenso, flexível e mutável.
[...] É necessário, portanto, que eu concorde que não
poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa
cera e que é apenas o meu entendimento que o concebe.
(DESCARTES, 1999, p. 264-265).

160
História da Filosofia III

No exemplo acima, Descartes conclui que a cera não é nem o


que os sentidos atestam (percepções da cor, do odor etc.), nem
apenas aquilo que sua imaginação pode alcançar. O que se pode
conhecer com absoluta certeza da cera corresponde ao conceito
abstrato de extensão, isto é, a noção de que a cera é um corpo
mutável, flexível e pode assumir diferentes formas materiais
conforme as condições a que é submetida. Ora, tal conhecimento
é totalmente analítico, e provém diretamente das reflexões do
espírito racional. Portanto:

Após a certeza do cogito, a segunda certeza encontrada


por Descartes é a de que, dentre tudo o que se pode
conhecer, o que se encontra mais próximo do homem é
o seu próprio pensamento (sobre si mesmo e também
sobre as outras coisas). O conhecimento, portanto,
é uma “pesquisa do espírito”. É mais fácil conhecer
os pensamentos relativos às coisas que existem e
investigá-los racionalmente, do que conhecer as
coisas mesmas.

Aqui se encontra a base de uma nova maneira de pensar que


ocupará o centro da reflexão filosófica no início da modernidade,
a saber, o Racionalismo. Em termos gerais, trata-se da
priorização da razão como instrumento para a construção
do conhecimento humano. A atividade racional, entretanto,
será concebida por Descartes como principal atividade da
alma, fornecendo ao saber (e à realidade como um todo) um
fundamento metafísico.

Segundo Ferrater Mora (2000, p. 2442), a corrente racionalista


fundada por Descartes associa o racionalismo epistemológico,
ou seja, “a doutrina para a qual o único órgão completo do
conhecimento é a razão”, a um racionalismo metafísico,
que afirma que “a realidade é, em último termo, de caráter
racional”. De fato, nas Meditações, o pensamento aparece como
o fio condutor que nos permite encontrar em nós mesmos as
representações claras e distintas acerca da realidade. Uma vez que
a percepção sensível somente pode oferecer conhecimento parcial
e confuso, é na atividade do espírito racional que se deve buscar
os critérios para um conhecimento seguro. Veja como Descartes
(1999, p. 268) encerra a sua segunda meditação:

Unidade 4 161
Universidade do Sul de Santa Catarina

Por fim, eis que cheguei aonde queria; porque, por ser
coisa atualmente conhecida por mim que só concebemos
os corpos por intermédio da capacidade de entender que
há em nós e não por intermédio da imaginação nem dos
sentidos, e que não os reconhecemos pelo fato de os ver
ou tocá-los, mas apenas por concebê-los por meio do
pensamento, reconheço com clareza que nada existe que
me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito.

É importante assinalar que, embora Descartes encontre na alma


racional o caminho para o desenvolvimento de um saber seguro,
daí não se segue que os racionalistas acreditem que a alma
tenha total clareza para conhecer imediatamente todas as coisas.
A partir da terceira meditação, o autor passa a buscar outros
conhecimentos, mas sempre mantendo a norma da dúvida e
buscando apenas por representações claras e distintas.

3ª Meditação — A representação de Deus


Descartes terminou a segunda meditação de posse de apenas
duas certezas:

„„ A certeza do ego cogito (eu penso, logo existo).

„„ A certeza de que conhecemos mais seguramente pela


análise do espírito do que por meio das sensações
(exemplo da cera).

Mantida a hipótese do gênio maligno, continuam em suspenso


os juízos sobre os dados dos sentidos e, portanto, todo o
conhecimento que se refere aos corpos e à realidade exterior à
subjetividade pensante. Perceba que Descartes não está tomando
suas impressões sensíveis como necessariamente falsas; muito
menos afirmando que elas não existem. Apenas não se pode
considerá-las totalmente seguras pela falta de clareza e distinção.
Assim, embora tenha conquistado um fundamento seguro para
o ato de conhecer, por hora, a reflexão cartesiana ainda não havia
conseguido ultrapassar os limites da alma ou da mente, isto é, do
sujeito concebido única e exclusivamente como coisa pensante.
Ao início da terceira meditação, o autor não encontrara um meio
de sair da imanência do cogito em direção à realidade externa; a
começar por seu próprio corpo.

162
História da Filosofia III

Mas afinal, como fica, na reflexão cartesiana, esta


distinção entre alma e corpo?

Para Descartes, os espíritos (almas racionais) e os corpos


(a natureza física em geral) consistem em substâncias
completamente distintas. O termo res cogitans (coisa pensante)
designa a alma, entendida como o vasto domínio interior do
sujeito, cuja essência é o pensamento, fonte das representações.
O termo res extensa (coisa extensa) indica o plano corpóreo, cuja
essência consiste nas qualidades da extensão (grandeza, figura e
movimento), e que é regido pelas leis mecânicas da física.

Com essa distinção, Descartes traz para a filosofia a tendência


mecanicista presente no nascimento da ciência moderna.
Segundo essa perspectiva, não somente os fenômenos físicos
deveriam ser compreendidos exclusivamente a partir de sua
causalidade direta, como também a própria noção de substância
corpórea (res extensa) deveria ser estudada por meio das noções
de cunho matemático advindas da própria extensão. O corpo
passa a ser considerado como uma complexa máquina natural,
cujo funcionamento é independente da alma e deve ser explicado
unicamente a partir das noções de movimento, grandeza, peso e
outros aspectos físicos.

Na prática, o racionalismo cartesiano assume uma concepção


materialista da natureza, reservando a perspectiva metafísica
apenas para a reflexão sobre a subjetividade pensante. A
compreensão da natureza corpórea caberia à “filosofia
mecanicista” (correspondente à física, como disciplina científica)
e a compreensão do pensamento e das outras qualidades da alma
caberia à filosofia primeira ou Metafísica.

Descartes concebe Deus como a substância suprema,


compreendida como puro espírito racional, sem corpo. No outro
extremo, a natureza será entendida como pura corporeidade,
ou seja, simples interação causal das leis físicas do movimento.
Apenas no ser humano ocorreria, então, o encontro entre essas
duas substâncias. O homem, portanto, é a união entre corpo e
alma, isto é, uma res cogitans e uma res extensa.

Unidade 4 163
Universidade do Sul de Santa Catarina

Retornando agora às Meditações, lembre-se como as duas


certezas encontradas anteriormente por Descartes ainda não
são capazes de superar o domínio da res cogitans em direção ao
campo da res extensa. É preciso, pois, que o filósofo encontre um
modo de estender seu conhecimento, do interior do pensamento,
à realidade do mundo exterior, sem recair na percepção sensível
como fonte deste empreendimento. Na terceira meditação esse
passo será dado a partir da reflexão sobre a natureza das ideias e a
origem da representação de Deus na subjetividade pensante.

Invalidada temporariamente a evidência dos sentidos, Descartes


conclui que apenas pode ter certeza absoluta da existência de
seus pensamentos sobre as coisas, mas não da realidade dessas
coisas, tomadas em si mesmas. Como provar então que existe
uma realidade exterior ao pensamento? Como avaliar se tais
As ideias são as “imagens das
pensamentos são de fato verdadeiros, isto é, se correspondem
coisas”; as representações que objetivamente às coisas que representam?
conservamos em nossa mente.
Trata-se de pensamentos relativos
a coisas que não são pensamentos; Ora, perguntar pela verdade de um pensamento
como a representação de uma significa perguntar pela sua realidade objetiva;
bola. Mas além das ideias procurar pela causa e pelos critérios que conduziram o
simples, existem “pensamentos espírito a tal representação.
de pensamentos”, ou seja,
representações que atribuem um
predicado às coisas, acrescentando
Ao início da terceira meditação, Descartes passa a investigar
à ideia uma certa ação do espírito;
uma intenção. Para Descartes, quais dentre os seus pensamentos podem ser considerados
os juízos fazem parte deste objetivos. Em suas palavras: “É necessário que eu separe aqui
grupo, pois sempre agregam às todos os meus pensamentos em certos gêneros e avalie em quais
ideias algum tipo de ação racional; deles existe verdade ou equívoco.” (DESCARTES, 1999, p.
seja uma comparação, relação ou
272). Executando essa operação, o filósofo admite encontrar
julgamento.
em si várias espécies de juízos, como os pensamentos sobre as
coisas, sobre o próprio corpo, sobre as propriedades formais
dos corpos (os conceitos abstratos da extensão) e também sobre
Deus. Porém, mantendo a norma da dúvida, quase todos estes
juízos serão descartados, enquanto candidatos a fundamento do
conhecimento em geral. Acompanhe a tabela a seguir:

164
História da Filosofia III

Juízos Exemplo Comentário


Sobre as coisas “A bola é vermelha” Eliminados pela dúvida natural
Sobre o próprio corpo “Tenho duas mãos” (falibilidade dos sentidos)
Sobre as propriedades “O peso de um corpo é o produto Eliminados pela dúvida metafísica
formais dos corpos (verdades entre sua massa e a aceleração da (Gênio maligno)
matemáticas) gravidade”. (P= mg)
“Há um ser divino; infinito, A origem desta representação não
imutável, e cujas demais pode ser explicada recorrendo-se
Sobre Deus qualidades superam em todos os aos sentidos, à imaginação ou
aspectos a natureza humana.” mesmo ao gênio maligno

Quadro 4.1 - As diferentes representações da dúvida do mundo exterior


Fonte: Elaboração do autor (2011).

Como você pode ver na relação acima, dentre todas as suas


representações Descartes pensa ter encontrado na ideia de Deus
uma possibilidade de avançar com sua tarefa de fundamentação
do conhecimento, uma vez que ela não parece ser ameaçada pelas
dúvidas postuladas na primeira meditação. Vejamos de que modo
o autor define essa representação:

Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita,


eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente
e pela qual eu próprio e todas as coisas que existem
(se é verdade que há coisas que existem) foram criados
e produzidos. [...] A ideia desse ser perfeitíssimo é
totalmente verdadeira; porque, mesmo que talvez se
possa fingir que um tal ser não existe, não se pode
fingir que sua ideia não me representa nada de real.
(DESCARTES, 1999, p. 280).

Não se trata, aqui, de iniciar uma reflexão teológica para


avaliar a concepção cartesiana do divino. O que nos interessa
é a relação entre o eu pensante e a ideia de Deus na construção
do saber.

Com a reflexão sobre a representação de Deus,


Descartes dá um passo muito importante em sua
investigação: se o juízo sobre Deus não tiver como
fonte os sentidos, nem a imaginação, nem a possível
intervenção de um gênio maligno, talvez esta fonte
seja o próprio Ser Divino! Está sinalizada, portanto, a
possibilidade da existência de uma realidade externa à
subjetividade pensante.

Unidade 4 165
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O caminho encontrado pelo filósofo para chegar a uma


representação clara e distinta sobre algo externo ao pensamento
pode, então, ser expresso pelo seguinte raciocínio: Se eu não puder
ser a causa da realidade objetiva das minhas ideias, então é forçoso
admitir que tal causa esteja fora de mim. No que se refere às ideias
sobre o mundo sensível, permanece o impedimento da dúvida
natural, sendo impossível realizar tal julgamento. Mas em
relação à ideia de Deus, abre-se uma nova via de reflexão, agora
orientada pelas noções de causa e efeito, aplicadas ao domínio
das representações.

Na afirmação “eu penso, logo existo”, o sujeito que emite


este juízo é considerado a causa ou realidade formal desse
pensamento, isto é, a fonte de onde proveio tal ideia. Do mesmo
modo, o sujeito é a causa de suas demais representações, as quais
podem ser consideradas um efeito da subjetividade pensante.
Conforme escreve o autor das Meditações:

Por ser toda ideia uma obra do espírito, sua natureza é


tal que não exige de si nenhuma outra realidade formal,
salvo a que recebe e toma de empréstimo do pensamento
ou do espírito, do qual ela é apenas uma maneira ou
forma de pensar. (DESCARTES, 1999, p. 277).

Entretanto, com a representação de Deus parece ocorrer algo


diferente. Para Descartes (1999, p. 276), todo efeito deve
conservar o mesmo grau de realidade daquilo que o causou,
de modo que “o que é mais perfeito, ou seja, o que contém
em si mais realidade não pode ser uma consequência e uma
dependência do menos perfeito.”

Mas no que se refere à ideia de Deus, todos os seus atributos


parecem superar os limites do sujeito que detém essa
representação. Afinal, como é possível que um sujeito finito seja a
causa da representação de uma substância infinita? Poderá um ser
que admite ter um conhecimento manifestamente limitado ser a
fonte da representação de um ser onisciente?

166
História da Filosofia III

Partindo do pressuposto de que o efeito não


ultrapassa a realidade formal de sua causa, e
verificando que a representação de Deus como uma
substância infinita, eterna, imutável, onisciente e
onipotente não tem como princípio nada que possa
ser extraído da existência do eu pensante, Descartes
conclui: o próprio Deus é a realidade formal das
representações dele que encontro em mim. Em
outras palavras: a causa do juízo sobre Deus é a
própria realidade formal de Deus.

Há, portanto, uma causa da ideia de Deus que é necessariamente


exterior à subjetividade pensante (o cogito). Tal causa é a própria
existência de Deus, que será tomada como a realidade formal,
não apenas da representação do divino, mas também de outras
representações objetivas, derrotando gradualmente a hipótese do
gênio maligno. Segundo Rodrigues (2009, p. 76):

Para salvar o eu racional do poder enganador do malin


génie [gênio maligno], [Descartes] tenta provar a
existência de Deus, com base no princípio de causalidade;
como, por exemplo, quando afirma que só existindo
realmente Deus (causa) pode-se explicar a existência de
um ser finito e imperfeito (o eu pensante), porém dotado
de ideia de infinito e de perfeição (efeito). Assim, o malin
génie é substituído pelo bom Dieu (bom Deus). De tal
modo que a passagem da certeza sobre a existência do
pensamento (res cogitans) para a certeza da existência do
mundo físico (res extensa) pressupõe um apoio em Deus
(res infinita), intermediário entre duas certezas. A de que
sou uma coisa que pensa e a de que tenho um corpo.

Essa retomada dos juízos sobre o mundo exterior, fundados na


objetividade das representações do cogito e de Deus, depende
ainda de uma longa reflexão sobre as provas da existência de
Deus e sobre a validação das representações matemáticas,
realizada no final da 3ª e na 5ª meditação. Mas, por hora, basta
que você perceba que:

Unidade 4 167
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Após a certeza do eu penso e a certeza da autonomia


do pensamento, Descartes conquista uma terceira
certeza, a saber, a da existência de Deus. Com estes três
saberes o filósofo pretenderá reconstruir todo o edifício
do conhecimento, eliminando as dúvidas com as quais
iniciara as Meditações Metafísicas.

As provas da existência de Deus e a retomada das


representações sobre o mundo exterior
Para Descartes, a ideia de Deus possui um grande privilégio
em relação às demais representações: sua essência coincide
com a existência. Em outras palavras, o filósofo pretende
demonstrar que, pelo simples fato de encontrar no eu pensante a
representação de Deus, dada a perfeição deste ser, está garantida
sua existência como realidade objetiva.

Ainda na terceira meditação, Descartes empreenderá uma longa


análise crítica sobre a representação de Deus, a fim de provar a
sua clareza e distinção. E como, nesse caso, essência e existência
andam juntas, ao refletir sobre a ideia de Deus o filósofo
simultaneamente formula argumentos em favor da existência
do ente divino; as célebres provas cartesianas da existência
de Deus. Esse tema se estende até a quinta meditação, uma
vez que é por meio da certeza sobre a existência de Deus e
seus atributos que o filósofo pretenderá restituir a validade das
verdades matemáticas e, por último, das representações sobre a
substância corpórea.

Não é possível, aqui, retomar todos os passos do percurso


argumentativo desenvolvido pelo autor. Mas veja no quadro
a seguir um resumo dessas reflexões, sob a forma de breves
perguntas e respostas.

168
História da Filosofia III

Pergunta Resposta
A ideia de Deus não poderia ter sua origem no A substância finita não é capaz de produzir
próprio eu pensante? Não seria fruto de sua uma representação de algo infinito.
imaginação?
Há mais realidade na substância infinita.
Mas a noção de infinito não pode surgir “De alguma forma, tenho em mim a noção
simplesmente como o conceito inverso de do infinito anteriormente à noção do finito”.
nossa experiência da finitude? (DESCARTES, 1999, p. 282).
Esta representação possui realidade objetiva
A ideia de Deus não poderia ser gerada a partir maior do que qualquer coisa; portanto é clara
do nada? e distinta, não podendo originar-se da noção
de privação.
É possível supor inicialmente que o objeto
representado por ela (Deus) não existe.
Entretanto, não é possível negar que a própria
De que modo eu posso ter certeza de que a representação de Deus não exista no eu
ideia de Deus é verdadeira? pensante. (afinal, Descartes a está analisando!)
E como, neste caso específico, a essência supõe
a existência, somente o próprio Deus pode ser
a fonte de tal representação.
Por que tudo o que o espírito concebe como
E por que a ideia de Deus é clara e distinta? claro e distinto encontra-se, de antemão,
contido na ideia de Deus.
E não poderá o próprio eu pensante ter essas De fato o eu pensante tem a qualidade de se
perfeições atribuídas a Deus, sem que ele aperfeiçoar gradualmente em conhecimento.
saiba? Nesse caso, o eu pensante poderia ser Mas Deus deve ter a perfeição completa
a causa da representação de Deus; ainda que atualmente, isto é, de uma só vez. Isso não é
desconheça que detém tais qualidades. possível ao sujeito finito.
A representação de Deus não veio de fora, nem
se impôs ao sujeito por meio dos sentidos. Não
é também fruto da imaginação, “porque não
possuo o poder de lhe diminuir ou acrescentar
Como a subjetividade pensante adquiriu essa coisa alguma”.
ideia de Deus?
Portanto: “Ela nasceu e foi produzida comigo
desde o instante em que fui criado”. (1999,
p. 288). Em outras palavras, trata-se de uma
ideia inata.

Quadro 4.2 - Analisando a representação de Deus


Fonte: Elaboração do autor (2011).

Partindo dessas reflexões, Descartes inicia a quarta meditação


elaborando um resumo bastante esclarecedor de seu itinerário ao
longo das meditações anteriores. Acompanhe:

A noção que possuo do espírito humano, enquanto é uma


coisa pensante e não extensa, em comprimento, largura
e profundidade, e que não participa de nada que faz
parte do corpo, é incomparavelmente mais clara do que

Unidade 4 169
Universidade do Sul de Santa Catarina

a ideia de qualquer coisa corporal. E quando considero


que duvido, ou seja, que sou uma coisa incompleta e
dependente, a ideia de um ser completo e independente,
isto é, de Deus, apresenta-se a meu espírito com igual
distinção; e do simples fato de que essa ideia se encontra
em mim, ou que sou ou que existo, eu que possuo esta
ideia, concluo tão claramente a existência de Deus e que a
minha depende inteiramente dele em todos os momentos
da minha vida que não reputo que o espírito humano
possa conhecer algo com maior evidência e clareza. E
creio estar descobrindo um caminho que nos conduzirá
desta contemplação do verdadeiro Deus (no qual todos
os tesouros da ciência e da sabedoria estão encerrados) ao
conhecimento dos outros aspectos do universo.
Em primeiro lugar, reconheço que é impossível que
ele me engane, visto que em todo embuste há alguma
imperfeição. E embora pareça que poder enganar seja
um sinal de esperteza ou de poder, querer enganar
testemunha, sem dúvida alguma, fraqueza ou malícia.
E, logo, isso não pode existir em Deus. (DESCARTES,
1999, p. 291).

Como você deve estar percebendo, Descartes encontra uma


“ponte” entre o domínio interior da subjetividade pensante e um
objeto que deve existir fora do sujeito, a saber, Deus. Além disso,
este “objeto” é também a causa não apenas de sua ideia no eu
pensante, mas da existência do próprio sujeito enquanto tal. A
partir desta íntima ligação, o filósofo passa a pensar não somente
sobre a ideia de Deus; mas sobre a própria existência concreta da
divindade e seus atributos.

Assim, as provas cartesianas da existência de Deus encontram-


se totalmente entrelaçadas com as condições do conhecimento
racional da subjetividade pensante. Por um lado, é por meio da
análise racional que Descartes determinará o caminho adequado
para demonstrar a existência de Deus. Por outro lado, é a própria
existência de Deus que permite que a subjetividade pensante
possa encontrar representações claras e distintas. Segundo Silva
(2004, p. 10), “a convicção racionalista de Descartes encontra na
existência de Deus, simultaneamente, seu maior prêmio e sua
condição de possibilidade.”

170
História da Filosofia III

São três os argumentos fornecidos por Descartes como provas


da existência de Deus. Você já se deparou com eles de forma
implícita ao ler as reflexões cartesianas expostas no quadro acima.
Vamos, agora, determiná-los com mais precisão:

1º argumento

A primeira prova da existência de Deus pode ser chamada de


cosmológica, pois se baseia na inferência da realidade infinita
do ente divino. Trata-se do argumento central da terceira
meditação, que parte dos juízos de infinitude e perfeição,
Não se deve confundir
tentando mostrar como eles não podem ter sua origem na este argumento com
subjetividade pensante. O argumento pode ser resumido no a prova cosmológica
seguinte enunciado: tomista utilizada pelos
filósofos escolásticos,
segundo a qual se parte
dos objetos sensíveis até
Deus tem de existir, pois se não existisse eu não seria capaz de
Deus pela série infinita de
explicar a existência da ideia de Deus que reconheço em mim.
causalidades eficientes
que exigiriam uma causa
primeira. Descartes não
aceitaria este argumento,
O eu pensante é finito e só se torna uma representação clara
pois rejeita a autoridade
e distinta quando pensamos em nosso próprio pensamento. dos sentidos para fundar
Em outras palavras, apenas quando o pensamento se ocupa um conhecimento seguro.
especificamente dele mesmo é que se mantém a certeza sobre si. Convém lembrar que a
Desse modo, o eu pensante é finito no ato de representar-se; está escolástica reporta-se à
linha filosófica adotada
limitado às suas representações.
pela Igreja na Idade
Média. Esta modalidade
Ao representar-se à ideia de Deus, o cogito exprime as noções
de pensamento era
de algo infinito e perfeito. Mas se o eu pensante é finito em essencialmente cristã
suas representações e, ainda assim, conserva esse juízo sobre as e procurava respostas
qualidades de Deus, é necessário reconhecer que tais juízos não que justificassem a fé
partem dele mesmo, senão que são infundidos pelo próprio Deus. na doutrina ensinada
pelo clero, guardião das
verdades espirituais.
Assim, Deus é a origem de nossa ideia do infinito, da perfeição (SANTANA, 2008).
e da noção um ente originário. E sendo a causa de tais
representações, Ele necessariamente deve existir. Afinal, se
detemos a representação de uma essência infinita, primeira e
perfeita, tal essência é necessariamente existente (caso contrário,
não seria perfeita).

Unidade 4 171
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2º argumento

A segunda prova da existência de Deus pode ser chamada de


teleológica, pois apresenta Deus como causa final e fundamento
objetivo de toda e qualquer representação. Ou seja, como a
condição formal das ideias do cogito. Esse argumento aparece no
final da terceira meditação, quando Descartes se pergunta se não
poderia existir de forma independente da existência de Deus. Sua
conclusão é negativa, pois o autor reconhece que, não somente a
sua geração, mas também a conservação de sua existência atual
está além de sua capacidade enquanto substância finita. Segundo
Silva, o argumento pode ser resumido na estrutura apresentada
no quadro a seguir.

1- Se não posso me conservar ou me criar, devo minha existência


atual a outro, pois do nada, nada se origina.
2- Deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto no seu
efeito.
3- Logo, tenho que ser causado, no mínimo, por uma substância
pensante que tenha a ideia de Deus; contudo, uma tal substância
sendo finita como eu, não pode me conservar, pois se ela
pudesse conservar uma outra substância pensante, ele também
poderia se conservar, e assim, ela seria Deus.
Com isso, sempre que pergunto pela causa da conservação
de minha existência acabo por evitar uma série que vá até o
infinito, desembocando sempre num ser que tem o poder de se
conservar: Deus. (2004, p. 55).

Segundo esse argumento, se Deus é infinito ele deve ser a sua


própria causa; nenhuma substância pode criá-lo. Sendo Deus
infinito, ele deve, também, ser a causa de tudo o que há, inclusive
de todos os meus juízos.

Nesse ponto entra em cena outra característica do ser divino:


a bondade suprema. Segundo Descartes, sendo Deus um ser
perfeito e generoso, seus próprios juízos são igualmente perfeitos;
livres de contradições. E uma vez que Deus é a origem de nossas
ideias, estas guardam algo da perfeição de Deus, mostrando-se
boas e verdadeiras.

172
História da Filosofia III

Com este segundo argumento, Descartes consegue


dar um grande passo: a validação da objetividade das
verdades matemáticas.

Lembre-se de que ao início das Meditações, Descartes reconhece


que as verdades matemáticas são algo totalmente claro ao espírito,
mostrando-se como padrão de conhecimento perfeito. Ora, a
validade das verdades matemáticas somente pôde ser posta em
dúvida a partir da hipótese da existência de um gênio maligno,
que sistematicamente nos enganasse sobre tais conhecimentos,
não é mesmo? Mas, agora, provada a existência de Deus, cujos
atributos são a perfeição, a bondade, a justiça (entre outros), está
automaticamente descartada a hipótese do gênio maligno, e a
certeza racional das verdades matemáticas será restituída.

Se não há um gênio maligno que me engane, raciocina


Descartes, e se existe um Deus, cuja ideia que conservo em mim
é a garantia de um critério de verdade (pois é clara e distinta),
então não posso duvidar das verdades matemáticas quando
penso nelas, porque estas me aparecem com uma clareza e uma
distinção inquestionáveis.

3º argumento

A terceira prova da existência de Deus pode ser chamada de


ontológica, pois pretende inferir a existência de Deus a priori,
ou seja, pela necessidade lógica de sua própria definição. Ela
aparece na quinta meditação e se apoia na noção de perfeição,
presente na ideia de Deus. O argumento pode ser resumido no
seguinte enunciado:

Se Deus criou em mim a ideia de perfeição, o perfeito tem que existir.


Deus é perfeito e, portanto, existe, pois sem o predicado da existência
não se caracterizaria a perfeição.

Embora Descartes não faça nenhuma menção nas Meditações,


esse argumento consiste em uma retomada da célebre
prova ontológica de Santo Anselmo em seu Proslógio, texto
extensamente estudado e discutido durante a filosofia medieval.
Segundo Jolivet (1990), tanto Anselmo quanto Descartes:

Unidade 4 173
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[...] se limitam a sustentar que a existência de Deus é


evidente “a priori”, pelo simples fato de compreender
o que significa a palavra Deus. Com efeito, dizem
eles, a palavra Deus significa “o Ser que tem todas as
perfeições”. Ora, a existência é uma perfeição (impossível
pensar, sem cair no absurdo, num “Ser perfeito que não
existisse”!). Logo, Deus existe. Seria, então, impossível
conceber Deus sem apreender ao mesmo tempo sua
existência.

Entretanto, essa retomada do argumento cumpre uma função


específica no projeto das Meditações, tendo seu sentido alterado.
Segundo Gilson (1984), Descartes transforma o argumento
de Santo Anselmo, aplicando-o em uma relação dinâmica de
causalidade, em que a potência infinita de Deus é intercalada
entre sua essência e sua existência.

Repare que com o argumento ontológico, as verdades


matemáticas existem por analogia à existência de
Deus: Assim como a divindade, a matemática tem
certo grau de perfeição, pois contém uma ideia de
infinito, igualmente representada pela subjetividade
pensante. Novamente, se as verdades matemáticas
são representações claras e distintas para o cogito, elas
devem existir, tendo como causa a perfeição de Deus.

A partir dessas provas da existência de Deus, Descartes foi


capaz de reaver mais um importante domínio do conhecimento.
Acompanhe sua descrição ao final da quinta meditação:

Porém, depois de haver reconhecido existir um Deus,


porque ao mesmo tempo me convenci também de que
todas as coisas dependem dele e que Ele não é um
embusteiro, e que, em seguida a isso, considerei que
tudo quanto concebo clara e distintamente não pode
deixar de ser verdadeiro: embora não pense mais nas
razões pelas quais julguei ser verdadeiro, desde que me
recorde de havê-lo compreendido clara e distintamente,
ninguém pode apresentar-me razão contrária alguma
que faça com que eu duvide dele; e desse modo tenho
dele um conhecimento certo e verdadeiro. E este mesmo
conhecimento se estende também a todas as outras coisas
que me recordo ter demonstrado em tempos passados,
como as verdades da geometria e outras parecidas, pois,

174
História da Filosofia III

que me poderão objetar, para obrigar-me a duvidar delas?


Poderão dizer-me que minha natureza é de tal maneira
que me sou muito sujeito a enganar-me? Mas já sei que
não posso me enganar nos juízos cujas razões conheço
claramente. [...] Que talvez eu durma (como eu mesmo
objetei acima) ou que todos os pensamentos que tenho
no presente não são mais verdadeiros do que os sonhos
que imaginamos ao dormir? Porém, mesmo que estivesse
dormindo, tudo o que se apresenta ao meu espírito com
evidência é totalmente verdadeiro. E, portanto, reconheço
muito claramente que a certeza e a verdade de toda
ciência dependem apenas do conhecimento verdadeiro de
Deus: de maneira que, antes que eu O conhecesse, não
podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E agora
que O conheço, tenho o meio de adquirir uma ciência
perfeita no que diz respeito a uma infinidade de coisas,
não apenas das que existem nele, mas também das que
pertencem à natureza corpórea, na medida em que ela
pode servir de objeto às demonstrações dos geômetras,
os quais não se preocupam, de forma alguma, com sua
existência. (DESCARTES, 1999, p. 311).

Por fim, tendo provado a existência das verdades matemáticas


por analogia à existência de Deus, estão abertas as portas para
o passo final das Meditações. Falta ao autor provar a existência
do mundo exterior. Esse desafio, porém, requer uma estratégia
especial, uma vez que, ao contrário da ideia de Deus e da
matemática, no caso do mundo externo (o domínio dos objetos
físicos), essência e existência não necessariamente coincidem.

Para encerrar nosso estudo sobre as Meditações, acompanhe um


breve esboço dos passos da argumentação cartesiana em relação
à validação da representação do mundo exterior, presente na
sexta meditação:

„„ As entidades matemáticas existem como realidade


objetiva. O mundo físico é constituído basicamente pela
extensão, isto é, as qualidades abstratas de grandeza,
figura e movimento. Ora, a extensão é representada
matematicamente. Portanto, se é possível aplicar
relações matemáticas para descrever o mundo, então
o mundo possivelmente existe (na medida em que é
matematicamente representado).

Unidade 4 175
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„„ Nossas representações do mundo implicam o uso


da memória e também da imaginação, relacionando
elementos que advém da experiência sensível. Ora, a
matemática, que é objetiva, pode ser aplicada ao mundo;
mas isso requer justamente o uso da imaginação; a qual
depende dos sentidos. Assim, é provável que haja o
objeto de tais sentidos, ou seja, o mundo exterior.

„„ A sensibilidade é uma faculdade passiva, isto é, sempre


recebe as impressões de algo (sons, imagens etc.). Ora,
deve haver então uma causa ativa da sensibilidade, uma
vez que a sensibilidade não pode ser causa dela própria.
Portanto, a causa das minhas percepções sensíveis é o
próprio mundo sensível, de modo que este deve existir.

Assim, o mundo exterior ao cogito se apresenta como


o correlativo possível de suas representações, como o
correlativo provável de sua imaginação e, diretamente,
como a causa de sua sensibilidade.

Perceba que, com essas reflexões, Descartes acredita ter provado


a existência do mundo exterior. Entretanto, nem por isso está
provada a objetividade das representações do mundo. Desse
modo, podemos dizer que na filosofia cartesiana os juízos
naturais (baseados nos sentidos) de fato não se apresentam como
verdades totalmente claras e distintas, mostrando-se inadequados
como fundamentos para a constituição de uma ciência rigorosa.
Nas sexta meditação as percepções sensíveis serão consideradas
como crenças baseadas em nossos pensamentos.

Seção 3 – Os cartesianos e outros expoentes da


corrente racionalista
O pensamento cartesiano logo ficou conhecido em toda a
Europa, principalmente na Holanda e na França, ganhando
muitos adeptos e também opositores. Os temas levantados pelas
Meditações tornaram-se o centro da discussão filosófica que
marca o início da filosofia moderna. Acompanhe algumas das
principais implicações das ideias de Descartes para a filosofia do
século XVII.

176
História da Filosofia III

As provas da existência de Deus cumprem múltiplas funções


na argumentação das Meditações. Elas comprovam o grau de
objetividade da representação do cogito, mostram que de fato
existe algo exterior ao eu pensante (o próprio Deus) e, por fim,
servem como base para a determinação da objetividade das outras
representações; tal como as que se referem à matemática. Mas,
embora Deus ocupe uma função central no processo de retomada
das certezas inicialmente postas em dúvida, podemos dizer que
Descartes efetua uma mudança radical nas relações entre filosofia
e teologia, em comparação com o pensamento medieval.

As Meditações de fato apontam a Deus como a causa formal das


representações do sujeito pensante, e como a causa da própria
existência do cogito e do mundo exterior. Entretanto, o juízo
do sujeito (a sua capacidade de pensar e julgar racionalmente
sobre as coisas) é autônomo; em nada depende da intervenção
da substância divina. Assim, Descartes “liberta” a filosofia
da teologia, na medida em que a reflexão racional depende
unicamente do eu pensante e Deus permanece como
a condição passiva que garante a possibilidade desta
reflexão. Uma vez reconhecida a posição de Deus como
origem fundamental, a filosofia pode seguir em frente com
suas especulações, sem a necessidade de reportar-se a um
conhecimento teológico.

Esta ênfase na capacidade do eu pensante para conhecer


permanecerá na base do pensamento filosófico moderno.
Podemos chamá-la de subjetivismo intelectualista cartesiano.
Afinal, Descartes reconhece Deus como a causa formal
das representações, mas é somente na esfera do cogito (da
investigação racional do espírito) que se pode encontrar as
essências; inclusive a de Deus. O filósofo soluciona a questão
da separação homem-natureza reinserindo o ser humano no
mundo natural por meio da prioridade do pensamento racional
para conhecer o mundo como ele realmente é. Uma tarefa para a
ciência, e não para o conhecimento sensível.

Enquanto as filosofias antiga e medieval se ocuparam


prioritariamente de uma metafísica, no sentido aristotélico
da tentativa de elaboração de uma ciência do ser enquanto
ser, a partir das Meditações é a teoria do conhecimento ou
epistemologia, que gradualmente ocupará o centro da reflexão

Unidade 4 177
Universidade do Sul de Santa Catarina

filosófica moderna. Obviamente, continuam em discussão


os temas sobre Deus, a natureza da alma e outros. Também
não se pode afirmar que a nascente filosofia moderna deixa
de ser metafísica. Todavia, todas estas questões passam agora
pela imanência do pensamento humano, em que as ideias
ou representações constituem-se como um elemento chave
para compreender o homem e o mundo. Pode-se dizer que
esse movimento do pensamento filosófico moderno terá sua
culminação com Immanuel Kant, no século XVIII.

Além dos elementos pontuados acima, o pensamento de


Descartes deixou em aberto uma questão bem específica, da qual
se ocuparam os filósofos do início do século XVII. Trata-se do
dualismo assumido entre alma e corpo. Para encerramos nosso
estudo, vejamos de forma resumida esse problema e as tentativas
de solucioná-lo por parte dos seguidores de Descartes e de outros
grandes nomes da corrente racionalista; Spinoza e Leibniz.

O dualismo dos cartesianos e a filosofia ocasionalista


de Malebranche
Como você viu anteriormente, Descartes compreendia a
realidade como a interação entre duas naturezas ou substâncias
distintas: A substância corpórea, a res extensa, e a substância
pensante, a res cogitans. O mundo físico, no qual vivemos, seria
como uma imensa máquina regida unicamente pelas leis da
física. Os espíritos, por outro lado, nada teriam de físico, sendo
considerados essências imateriais cujas qualidades não podem ser
explicadas pelos conceitos inerentes à matéria extensa.

Para a filosofia cartesiana, tal como nos fenômenos puramente


físicos, também o funcionamento dos corpos vivos em geral
deveria encontrar explicação suficiente por meio da mecânica,
sem recorrer a quaisquer razões metafísicas. Já as questões
sobre a alma ou espírito são direcionadas exclusivamente ao
domínio da subjetividade pensante, como ocorre nas Meditações.
Certamente, os espíritos racionais permanecem ligados a um
corpo orgânico, de modo que, dentre todos os seres, apenas o

178
História da Filosofia III

homem será considerado como o ponto médio entre o mundo


físico e a natureza divina; o encontro entre uma res cogitans e
uma res extensa.

Mas se a res cogitans, em nada deveria relacionar-se às


propriedades da extensão, como explicar a inegável
interação recíproca entre corpo e alma? Ou seja,
como explicar que, ao menos aparentemente, nossos
pensamentos são capazes de gerar movimentos, e
vice-versa?

No tratado intitulado As paixões da alma (1637), Descartes


procura fornecer uma explicação a esse impasse:

Consideremos, então, que a alma tem sua sede principal


na diminuta glândula localizada no meio do cérebro, de
onde irradia para todo o corpo, por meio dos espíritos,
dos nervos e também do sangue, que, participando das
impressões dos espíritos, podem carregá-los pelas artérias
para todos os membros. (DESCARTES, 1999, p. 126).

A explicação acima consiste no célebre argumento cartesiano


da glândula pineal, supostamente situada em algum lugar no
interior do cérebro humano, onde a alma exerceria diretamente
(fisicamente) suas funções. Também no Tratado do Homem, o
autor levanta a mesma hipótese, afirmando que o próprio sangue,
ao nutrir o cérebro, produziria um elemento sutil, os “espíritos
animais”, que deveriam interagir diretamente com a alma junto à
glândula pineal e, em seguida, transportar estas informações aos
demais tecidos do corpo.

Com esse obscuro argumento pretendia justificar a interação


entre as ações do corpo e da alma, isto é, o movimento e
pensamento. Contudo, esta “união substancial” entre algo
metafísico e algo físico não foi suficientemente explicada.
Segundo Reale e Antiseri (2005), trata-se de uma pseudo-
solução, que se configura como uma flagrante batida em retirada
para um asylum ignorantiae (refúgio da ignorância). Desse modo,
o tema da interação corpo-alma foi um dos maiores problemas
deixados por Descartes aos seus seguidores.

Unidade 4 179
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para o próprio Descartes, res cogitans e res extensa, ainda


que distintas, não consistiam em substâncias absolutamente
separadas. Em suas palavras:

Não basta que ela [a alma] seja inserida no corpo


como um piloto em seu navio, senão, talvez, que
para mover seus membros, mas é necessário que ela
seja conjugada e unida mais estreitamente com ele,
para, ademais, experimentar sentimentos e apetites
semelhantes aos nossos, compondo assim um
verdadeiro homem. (DESCARTES, apud REALE e
ANTISERI, 2004, p. 302).

Contudo, em vista das dificuldades geradas pelo argumento da


glândula pineal, seus sucessores radicalizaram a oposição entre
substância corpórea e substância pensante, passando a supor
o total dualismo entre pensamento e extensão, negando assim
qualquer possibilidade de ação de um sobre o outro.

Embora Descartes não tenha defendido diretamente


um dualismo radical entre corpo e alma; também não
foi capaz de explicar claramente como poderia ser
possível essa união.
Desse modo, a tarefa de explicar a conformação
entre essas duas substâncias distintas tornou-se um
problema teoricamente insolúvel em seu sistema.
A maioria de seus seguidores, os cartesianos, assumiu
este dualismo, considerando que de fato não poderia
haver interação direta entre a alma e o corpo. Por isso,
é comum a afirmação de que Descartes instaura o
dualismo corpo-alma na filosofia moderna.

Essa transição encontra sua maior expressão no


Ocasionalismo, teoria que teve como seu principal
representante, o padre Nicolas Malebranche (1638-1715).

A doutrina do ocasionalismo consistia em sustentar


o dualismo radical entre substância pensante e
substância corpórea, a ponto de negar totalmente a
relação recíproca entre o pensamento (ação da alma) e
os movimentos do corpo.
Figura 4.4 – Nicolas Malebranche
Fonte: Barbosa (2011).

180
História da Filosofia III

Uma vez que a alma não pode agir sobre o corpo e vice-versa,
somente Deus possibilitará essa interação. Para os ocasionalistas,
a alma somente tem contato com Deus e a partir dessa relação
é que ela pode conhecer todas as coisas. No lugar da obscura
hipótese cartesiana da interação da alma nas atividades
corpóreas por meio da glândula pineal, Malebranche recorre
a Deus como a única causa da relação recíproca entre as duas
classes de substância.

Assim, as mudanças que o corpo aparentemente causa na alma


ao produzir as sensações, e que a alma parece causar no corpo
por meio de uma ação voluntária, bem com as mudanças que um
corpo possa aparentar causar em outro por impacto; todas essas
se devem diretamente a Deus e não constituem senão “ocasiões”
para a sua intervenção na natureza finita. Portanto, segundo os
ocasionalistas, nada atua sobre nós a não ser Deus. Tudo o que
podemos vir a conhecer, o conhecemos em Deus. E, por último,
só Deus é a origem de toda a atividade causal no mundo.

Embora tenham apresentado uma solução alternativa ao


problema cartesiano da interação corpo-alma, em relação ao
movimento os ocasionalistas foram obrigados a supor uma
total coincidência das ações e vontades de Deus com as ações
particulares de cada criatura. Essa posição radical foi registrada
por Malebranche, em seus Pensamentos Metafísicos (apud Reale e
Antiseri, 2005, p. 10): “Deus quis que o meu braço se mova no
instante em que eu próprio quero.”

A doutrina ocasionalista assumiu sérias implicações teológicas,


pois necessita da constante intervenção divina para a mediação
entre os pensamentos da alma e as ações do corpo. Entram em
cena extensas discussões sobre a liberdade e a distinção das ações
de Deus e das criaturas.

Pode-se dizer que, Malebranche se apropria do conjunto das


ideias cartesianas, mas conduz suas consequências para a
retomada de um sistema teocêntrico, deixando em segundo
plano a subjetividade pensante e os problemas do conhecimento.
Tanto Spinoza quanto Leibniz não concordaram com a teoria
ocasionalista, procurando oferecer respostas alternativas ao
problema da conformação entre corpo e alma.

Unidade 4 181
Universidade do Sul de Santa Catarina

O monismo panteísta de Baruch Spinoza


Baruch (ou Bento) Spinoza (1632-1677) nasceu em Amsterdã,
em família de judeus de origem hispânica convertidos ao
catolicismo por imposição da inquisição. Sua família refugiou-
se na Holanda, onde após seus estudos tradicionais na escola
judaica, ele teve a oportunidade de aprender latim, conhecendo a
cultura clássica, o pensamento moderno de Hobbes e Descartes.

Manifestando desde cedo grande aptidão intelectual,


Spinoza desenvolveu ideias que gradualmente se
mostraram contrárias aos dogmas do judaísmo,
entrando em conflito com os teólogos e doutores
da Sinagoga. Mantendo-se irredutível em suas
opiniões, o filósofo foi excomungado e banido da
comunidade judaica, dedicando-se, em seguida, a uma
vida extremamente simples, voltada para a reflexão
intelectual. Spinoza mantinha-se com gastos mínimos,
trabalhando como polidor de lentes óticas e chegando
a recusar uma cátedra universitária em Heidelberg, por
recear que esta posição pudesse limitar sua liberdade
de pensamento.
Figura 4.5 – Baruch Spinoza
Fonte: Contreras (2011). Spinoza assume a perspectiva racionalista cartesiana, mas
distancia-se do pensamento ocasionalista por rejeitar a afirmação
de que o corpo e a alma sejam, propriamente, substâncias. Em
sua principal obra, a Ética, ele procura abordar a filosofia à
maneira das demonstrações geométricas, partindo da reflexão
sobre o conceito de substância e identificando-o especificamente
a Deus. Para o filósofo, dessa verdade primeira todas as demais
devem ser deduzidas, assim como, da noção geométrica de um
triângulo é possível determinar todas as suas propriedades.

O pensamento de Spinoza será caracterizado pelo monismo, isto


é, pela afirmação de que toda a realidade resume-se na existência
de apenas uma substância, e por um imanentismo panteísta, ou
seja, pela noção de que esta substância primordial (Deus) está
presente em todas as coisas. Mais ainda, que todas as coisas nada
mais são do que modificações e atributos desta única substância.

182
História da Filosofia III

Mas como, a partir da filosofia cartesiana, Spinoza


chega a esta inusitada conclusão?

De forma um pouco ambígua, Descartes utilizou em seus


escritos dois sentidos diferentes para o conceito de substância.
Nas Meditações, são consideradas “substâncias” a alma, o corpo
e Deus (tomado enquanto substância infinita e causa formal das
demais). Por outro lado, nos Princípios de filosofia (1644) o autor se
vale da definição de substância como “aquilo que existe de forma
independente, sem necessitar de mais nada além de si mesma”.
Ora, em sentido estrito, apenas Deus preenche esse requisito, de
modo que as demais realidades criadas (a natureza corpórea e os
espíritos racionais) permanecem como uma espécie de “substância
secundária”, às quais dependeriam apenas de Deus para existir.
Esse ponto é comentado por Russell (1968, p. 42):

Portanto, embora os cartesianos tenham praticamente


admitido duas substâncias, espírito e matéria, sempre,
entretanto, que consideraram Deus seriamente, foram
obrigados a negar a substancialidade de tudo exceto
Deus. Esta inconsistência foi remediada por Spinoza,
para quem a substância era uma causa sui, a causa de si,
ou o que é em si mesmo e é por si mesmo concebido. Para
ele, portanto, a substância era apenas Deus.

Em resumo, Spinoza leva às últimas consequências a definição


do conceito de substância como “existência independente”.
Concluindo que apenas Deus poderia ser a causa de si, o filósofo
holandês constrói um grandioso sistema filosófico, onde tudo
que existe, existe em Deus, a única substância primordial. A
variedade da natureza criada, portanto, consiste em infinitas
modificações da substância divina, seja enquanto seus diferentes
atributos, seja como os infindáveis modos desses atributos.
Segundo Thonnard (1969, p. 510):

Efetivamente Spinoza cria na filosofia moderna uma


primeira forma bem caracterizada do panteísmo, que
se pode chamar de “intelectualista”, isto é, objetivo ou
realista, que pretende provar-se, perante a razão, por uma
demonstração rigorosa. Esta demonstração desenvolve-
se em três fases: a primeira estabelece que Deus é a

Unidade 4 183
Universidade do Sul de Santa Catarina

substância única, conhecida pelos seus atributos; a


segunda explica como Deus infinito e o mundo finito
podem coexistir, idênticos como ser, distintos como
naturezas; a terceira deduz daí uma moral, mas dando-
lhe uma significação inteiramente nova.

Segundo o sistema spinozista, o pensamento (res cogitans) e a


extensão (res extensa) são dois atributos da substância divina.
As ações singulares dos espíritos e dos corpos, isto é, as
representações do sujeito pensante e os movimentos, por sua vez,
constituem-se como diferentes modos presentes nesses atributos.

Assim como na filosofia cartesiana, pensamento e movimento


(como qualidade da matéria extensa) continuarão sendo
concebidos como elementos diferentes entre si. Entretanto,
ambos pertencem à substância infinita como seus atributos, e
não devem ser considerados como naturezas completamente
separadas. Sendo partes de Deus, tais atributos são igualmente
infinitos, e cada um deles expressa uma essência eterna e infinita.

Mas, e quanto ao mundo e ao homem, como se


encaixam nesse sistema?

Os atributos de Deus manifestam-se de diversos modos.


Spinoza os divide entre infinitos e finitos. Do atributo do
pensamento se segue diretamente a inteligência infinita como
modo imediato. Desta provém as almas racionais, consideradas
modos finitos da substância suprema. Da mesma forma, do
atributo da extensão se segue o movimento em geral e deste
a natureza considerada como um todo individual, contendo a
totalidade das entidades corporais.

Assim, o mundo se apresenta como a totalidade dos modos,


finitos e infinitos da substância divina. Tais modos se desdobram
numa cadeia causal, de maneira que, de cada indivíduo pensante
decorrem seus respectivos pensamentos ou representações.
De cada corpo, por outro lado, decorrem seus respectivos
movimentos e ações. Embora se trate, em última instância, de
uma única realidade substancial, esta pode ser dividida em:

184
História da Filosofia III

„„ Natura naturans (natureza divina) – Deus e seus


atributos diretos, considerados absolutamente simples
e imutáveis.
„„ Natura naturata (natureza criada) – Os infindáveis
modos dos atributos de Deus; que não podem existir
em si, mas somente em Deus e por Deus.

Repare que a natureza criada é considerada por Spinoza como o


efeito diretamente causado pela natureza divina. Dessa forma,
Deus é causa imanente do mundo (e não transcendente). Nas
palavras de Reale e Antiseri (2005, p. 21): “Deus não cria de
modo algum o mundo no significado tradicional, dado que este
‘procede’ necessariamente dele.”

Podemos dizer então que Deus não cria o mundo,


senão que é o próprio mundo, uma vez que este é
considerado um desdobramento necessário de seus
atributos. Eis o sentido do panteísmo de Spinoza.

A filosofia spinozista levanta questões complexas, deixando


em aberto alguns pontos importantes. Spinoza não explicou
claramente, por exemplo, como se dá a passagem dos modos
infinitos (mais próximos aos atributos de Deus) aos modos
finitos, a natureza criada propriamente dita. Ao contrário da
filosofia cartesiana, seu sistema também nega a ação autônoma
do pensamento humano, já que as ideias singulares de cada
indivíduo são modos do atributo do pensamento divino. Essas
teses peculiares deixam grandes polêmicas para a nascente
filosofia moderna, principalmente envolvendo o problema da
liberdade das ações humanas e das próprias ações de Deus.

Por fim, é importante destacar que Spinoza oferece uma


engenhosa solução para o problema cartesiano da conformação
entre corpo e alma. Trata-se da teoria do paralelismo, entre as
ações da alma e as ações do corpo.

Spinoza afirmava que, assim como os atributos de Deus


(pensamento e extensão) provinham necessariamente da sua
definição enquanto substância infinita e causa sui, também os
modos infinitos se seguem como consequência desses atributos.
Os modos finitos, por sua vez, se seguem como consequência um

Unidade 4 185
Universidade do Sul de Santa Catarina

do outro, de maneira que a alma racional gera um pensamento,


que conduz a outro, que conduz a outro, e assim por diante.
Com o elemento corpóreo ocorre o mesmo: cada movimento ou
ação encontra-se em uma série causal que pode ser remetida, em
última instância, à própria substância infinita.

Assim, como a res cogitans e a res extensa já não são consideradas


substâncias distintas, mas apenas dois modos indiretamente
provenientes da mesma realidade divina, no mundo (natureza
criada) a série de todos os pensamentos e de todos os movimentos
corporais correspondem-se identicamente entre si. E em cada
criatura individual se manifesta o mesmo impulso, de forma que
há um paralelismo perfeito entre as ações do corpo e as ações da
alma. Nas palavras de Reale e Antiseri (2005, p. 22):

Visto que cada atributo, como sabemos, expressa


a essência divina de igual modo, então a série dos
modos de cada atributo deverá necessária e perfeitamente
corresponder à série dos modos de cada um dos outros
atributos. Em particular, a ordem e a série das ideias
deverão corresponder necessária e perfeitamente à ordem
dos modos e das coisas corpóreas, por que tento em um
como no outro caso se expressa inteiramente a essência de
Deus vista sob diversos aspectos.

Leibniz e a filosofia das mônadas


O nome de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) é
frequentemente lembrado não apenas por sua filosofia das
mônadas, mas também por grandes descobertas no campo das
ciências matemáticas e da lógica. Simultaneamente e de forma
independente de Newton, Leibniz descobriu o cálculo diferencial
integrado, uma das mais aclamadas contribuições à ciência de
seu tempo.

Nascido na cidade alemã de Leipzig, o filósofo teve um


desenvolvimento intelectual impressionante. Aos 12 anos
Figura 4.6 – G. W. Leibniz dominava o latim e o grego, dedicando-se a ler todos os livros
Fonte: Silva (2010). da biblioteca de seu pai, conhecendo assim os principais autores
clássicos, poetas e historiadores. Aos 13 interessou-se por lógica
estudando-a profundamente. Aos 14 anos, ingressou para a
Universidade de Leipzig e, aos 21, formou-se doutor em direito e
filosofia na Universidade de Nuremberg.
186
História da Filosofia III

Aderindo ao espírito racionalista moderno, o jovem Leibniz


também fora um partidário da filosofia mecanicista proposta
por Descartes, mas bem cedo se opôs a ela por discordar da
concepção materialista da substância corpórea sustentada pelos
cartesianos. Leibniz admirava a nova física criada a partir das
ideias de Galileu e Descartes, mas não aceitava a teoria de que
os corpos (res extensa) fossem como meras máquinas materiais,
sem a presença de uma alma, ou um elemento metafísico
capaz de mover a matéria. Em carta a um intelectual francês,
o filósofo revela seu desejo de conciliar a nova ciência e o
pensamento metafísico:

Deve-se explicar sempre a natureza matemática e


mecanicamente, com tanto que se saiba que os princípios
mesmos ou leis da mecânica ou da força não dependem
só da extensão matemática senão de algumas razões
metafísicas. (LEIBNIZ, 2004, p. 70).

Essa oposição de Leibniz ao conceito de res extensa se origina


a partir da própria física, com a discussão sobre tese cartesiana
da conservação da quantidade de movimento no universo. A
filosofia mecanicista de Descartes se propunha a explicar o
movimento dos corpos físicos exclusivamente em termos de
suas chamadas qualidades primárias, a saber, as propriedades
advindas da extensão, tais como tamanho, figura e movimento.
Assim, os cartesianos foram levados a supor que a mesma
quantidade de movimento encontrava-se distribuída na natureza,
apenas sendo comunicada ou transmitida de um corpo ao
outro. Qualquer movimento de um corpo, portanto, deveria ser
compreendido somente como resultado da transmissão desse
movimento por outro corpo; como no choque entre duas bolas de
gude, por exemplo.

Em seu Discurso de metafísica (1686), Leibniz apresenta uma


demonstração geométrica a fim de provar que não é a quantidade
do movimento (mv), mas sim a de força (mv²) que permanece
como uma constante nos fenômenos mecânicos. Devido ao
atrito ou à resistência dos corpos no choque, a quantidade do
movimento não permanece a mesma, senão que tende a dissipar-
se. Somente a força (conceito equivalente ao de energia cinética na
ciência contemporânea) pode ser a verdadeira responsável pela
origem do movimento no universo. Nas palavras do autor:

Unidade 4 187
Universidade do Sul de Santa Catarina

Pois o movimento, se não se lhe considera o que


compreende precisamente e formalmente, isto é, uma
mudança de lugar, não é coisa inteiramente real [...] É,
porém, algo mais real a força ou causa próxima destas
mudanças e existe bastante fundamento para atribuí-la
a um corpo de preferência a outro. [...] Ora, esta força é
algo diferente do tamanho, da figura e do movimento,
e por aí pode-se julgar não consistir apenas na extensão
e suas modificações tudo o que se concebe no corpo,
como se persuadem os nossos modernos. (LEIBNIZ,
1979, p. 134).

Voltando agora ao conceito cartesiano de substância corpórea,


restam apenas duas alternativas:

„„ Ou a própria noção de força presente nos corpos deve


ainda reduzir-se às propriedades da extensão.

„„ Ou é necessário admitir que somente tais propriedades


não sejam suficientes para explicar o princípio que
“anima” os corpos, tornando-os uma fonte autônoma de
força e, portanto, de movimento.

Após muito refletir e estudar a fundo a geometria e outras


disciplinas matemáticas, Leibniz se decide pela segunda
opção, sustentando a necessidade da presença de um princípio
metafísico na base da natureza e compreendendo a noção
de substância corpórea como um centro de força autônomo,
responsável pelo próprio movimento e capaz de permanecer
como uma unidade a partir de si mesmo. Em outras palavras,
apenas as características do tamanho, da figura e do movimento
(propriedades extensas) não são suficientes para fazer de um
corpo uma substância. Antes, é necessário haver aí um princípio
de força, capaz de torná-lo fonte do próprio movimento e de
manter seus elementos unificados.

Tal princípio deve necessariamente ser metafísico e não pode ser


reduzido à extensão. Até 1686, Leibniz defenderá a retomada
e reformulação do conceito escolástico de forma substancial
como o princípio de ação nos corpos, responsável por manter
a unidade de seus elementos materiais. No estado final de sua
filosofia, porém, o conceito de mônada ou substância simples
assumirá esse posto.

188
História da Filosofia III

A oposição de Leibniz à filosofia cartesiana parte da questão


física da origem do movimento nas substâncias corpóreas,
mas acaba por retomar a disputa pela determinação da própria
noção de substância. A definição do conceito de substância
como “existência independente” aceita por Descartes mostrou-
se problemática por atrelar demasiadamente o conceito à
intervenção divina. Ou bem se devia contar com a atuação
direta e contínua de Deus em relação à interação de cada res
cogitans e res extensa existente, como queria Malebranche com
o ocasionalismo, ou então somente Deus pode ser considerado
substância e toda extensão e pensamento existentes não seriam
nada mais do que seus próprios atributos, como queria Spinoza.

Contudo, Leibniz vai apresentar uma solução alternativa: ainda


que Deus seja a condição absoluta de existência das substâncias,
daí não se deve inferir necessariamente a sua intervenção
constante na criação. Ao contrário, é absolutamente conforme à
perfeição divina que, uma vez criadas, as substâncias possam agir
a partir de si mesmas constituindo uma unidade autônoma, capaz
de manter por si mesmas a própria existência.

Assim, é por meio da noção de uma substância


corpórea autossuficiente que Leibniz começa a
distinguir sua metafísica do pensamento que o
precede. Para o filósofo, tanto a alma como o corpo
devem agir cada qual sob suas próprias leis. Tal ação
independente de ambas as partes não necessitaria da
constante intervenção divina para conformar-se, mas
somente de uma regulação inicial, de uma harmonia
que a sabedoria de Deus soube transmitir a cada
substância criada.

O conceito leibniziano de forma substancial, retomado da


filosofia escolástica e compreendido em um sentido dinâmico,
será inicialmente utilizado para indicar o princípio metafísico
de ação nos corpos, capaz de sustentá-los como substâncias
autossuficientes. Nessa primeira etapa do pensamento de Leibniz,
surgem importantes teorias como a da harmonia preestabelecida,
esboçada acima, e a da entreexpressão das substâncias. Tais
princípios permanecerão como a base de sua filosofia. Entretanto,
a retomada da metafísica na imanência dos corpos levará o filósofo
a abandonar o modelo ontológico dualista proposto por Descartes

Unidade 4 189
Universidade do Sul de Santa Catarina

(corpo e alma como substâncias distintas) e formular o conceito de


substância simples ou mônada, que passará a compor o centro de
seu sistema filosófico a partir de 1695.

Em sua principal obra, a Monadologia (1714), Leibniz expõe


todo seu sistema filosófico em 90 parágrafos numerados.
Trata-se de um texto bastante abstrato e abrangente. Sua
reflexão parte da definição do conceito de mônada como
substância simples em direção à reflexão sobre Deus (mônada
suprema) e sobre o universo (agregado de todas as mônadas).
Todos esses elementos encontram-se entrelaçados em seu
sistema pela ideia da substância simples como um “espelho
do universo”, capaz de refletir toda a criação a partir de sua
perspectiva singular por meio das percepções. Vejamos, a
seguir, uma breve argumentação leibniziana na Monadologia:

As Mônadas
Tudo o que existe, da natureza ao homem e Deus, são substâncias
simples ou compostos de substâncias simples; as mônadas.
A realidade que percebemos, como os corpos e as coisas, são
compostos ou agregações de mônadas, que são consideradas por
Leibniz como “os verdadeiros átomos da natureza” ou elementos
das coisas. Tais “átomos”, entretanto, não são materiais. Trata-se
de unidades metafísicas que se compõem em agregação formando
todas as coisas. Acompanhe as primeiras palavras do autor na
Monadologia:

1 - A Mônada de que falaremos aqui, é apenas uma


substância simples que entra nos compostos. Simples quer
dizer: sem partes.
2 - Visto que há compostos, é necessário que haja
substâncias simples, pois o composto é apenas a reunião
ou aggregatum dos simples.
3 – Ora, onde não há partes não há extensão, nem figura,
nem divisibilidade possíveis e, assim, as Mônadas são os
verdadeiros átomos da natureza, e, em uma palavra, os
Elementos das coisas.
4 – Delas também não há a temer qualquer dissolução:
é inconcebível que uma substância simples possa
perecer naturalmente.

190
História da Filosofia III

5- Pela mesma razão, é inconcebível que uma substância


simples possa começar naturalmente, pois não poderia
formar-se por composição.
6 – Assim, pode dizer-se que as Mônadas só podem
começar ou acabar instantaneamente ou, por outras
palavras, só lhes é possível começar por criação e acabar
por aniquilamento, ao passo que todo o composto
começa e acaba por partes.
7 – Não há meio também de explicar como a Mônada
possa ser alterada ou modificada em seu íntimo por outra
criatura qualquer, pois nada se lhe pode transpor, nem
se pode conceber nela algum movimento interno que, de
fora, seja excitado, dirigido, aumentado ou diminuído lá
dentro, como nos compostos, onde há mudança entre as
partes. As Mônadas não têm janelas por onde qualquer
coisa possa entrar ou sair. [...] Assim, nem substância
nem acidente pode vir de fora para uma mônada.
(LEIBNIZ, 1979, p. 105).

Como você pode ver, todas as proposições que definem o conceito


de mônada seguem-se logicamente de sua definição fundamental,
a saber, “mônada é substância simples”. Valendo-se da inferência
lógica de que, dada uma proposição, no sujeito devem estar
contidos todos os seus predicados, Leibniz “desdobra” cada uma
das características inerentes à mônada a partir de seu conceito.

Percepções
As mônadas não podem ser mudadas em seu interior por
qualquer agente externo, nem é concebível que algo diferente
delas mesmas lhe possa desencadear algum movimento interno.
Entretanto, como substância autossuficiente, cada mônada
experimenta um tipo de mudança a partir da ação de dois
princípios internos: as percepções e a apetição.

Todas as mônadas são perceptivas, no sentido em que


representam todas as demais mônadas, isto é, o universo que as
envolve. A apetição significa a tendência que conduz a mônada
de uma percepção à outra. As percepções, portanto, são estados
passageiros da mônada que, guiadas pela apetição, consistem
em uma atividade contínua e ininterrupta de representação
do universo. Desse modo, a mônada, mesmo não tendo partes,

Unidade 4 191
Universidade do Sul de Santa Catarina

abriga um movimento e uma mudança constante por meio da


variação de seus estados passageiros, as percepções.

Toda substância simples, portanto, é dotada de natureza


expressiva. Justamente por constituírem uma representação do
todo a partir de uma perspectiva própria, as percepções de cada
mônada lhe garantem uma singularidade, fazendo com que ela
seja uma substância única em todo o universo. Esse é o chamado
Princípio dos indiscerníveis, enunciado por Leibniz: “não existe
nunca na natureza dois seres que sejam perfeitamente um como o
outro e onde não seja possível encontrar uma diferença interna ou
fundada sobre uma determinação intrínseca.” (1979, p. 105).

Os graus monádicos
Ainda que todas as mônadas sejam expressivas, Leibniz
argumenta que tais percepções podem ter maior ou menor
clareza. A partir dos diferentes graus de percepção nas mônadas
o filósofo elabora uma hierarquia entre as substâncias criadas.
Quando perdemos a consciência em um desmaio, por exemplo,
apenas temos percepções confusas; sem nenhuma clareza. Tal
seria o estado primordial das mônadas, que se faz constante nas
“mônadas nuas” ou enteléquias.

Todas as mônadas podem ser denominadas enteléquias, pois tem


em comum o princípio ativo que mantém “em funcionamento”
a sua natureza representativa. Entretanto, algumas possuem
uma percepção um pouco mais definida, no sentido em que
certas impressões mostram-se mais fortes do que outras,
desenvolvendo-se então alguns sentimentos. A esse tipo de
mônada Leibniz chamará de almas. As enteléquias se encontram
no estado de constante atordoamento, permanecendo imersas
no fluxo contínuo das percepções, em que não há qualquer
predomínio de alguma percepção sob as demais. As almas,
por outro lado, possuem certa distinção em suas percepções e
desenvolvem também alguma memória. Acompanhe a explicação
de Leibniz (1979, p. 107):

192
História da Filosofia III

26 – A memória dá uma espécie de consecução que


imita a razão, mas que deve distinguir-se dela. É o que
observamos quando os animais, ao perceberem algo
que os incomoda no momento e de que anteriormente
tiveram percepção parecida, se reportam por meio da
representação da memória ao que nela esteve associado
na percepção precedente e experienciam sentimentos
semelhantes aos de então. Por exemplo: quando se mostra
um pau aos cães, eles, recordados da dor que lhes causou,
ganem e fogem.

O conceito de mônada-alma, portanto, aplica-se aos animais


e demais seres vivos com percepções mais destacadas da
sensibilidade. Ao contrário de Descartes, que negava aos seres
animais a presença de uma alma por identificar a este conceito o
aspecto racional, Leibniz sustenta que todos os animais ou seres
vivos devem possuir uma alma; ainda que se deva distinguir de
algum modo, entre estas almas e os espíritos racionais.

Por último, os espíritos, ou almas racionais constituem o terceiro


grupo de mônadas, no qual além da percepção constantemente
clara, desenvolve-se a apercepção, ou seja, a capacidade de
destacar uma ou mais percepções de seu fluxo constante,
tomando-a isoladamente e podendo refletir sobre ela. A
apercepção constitui a base da racionalidade humana. Além do
homem, também Deus é compreendido como mônada. Trata-se
da substância simples suprema, de onde se origina a criação e da
qual todas as demais mônadas emanam.

As enteléquias permanecem constantemente


atordoadas pelo fluxo contínuo das percepções.
As almas encontram-se nesse estado com menos
frequência. Já os espíritos, em virtude do grau e da
quantidade de suas percepções distintas, somente
ficam atordoados em casos especiais. Enquanto o
atordoamento é o estado natural das enteléquias, a
consciência, ou o estado contrário, no qual a maioria
das percepções ganha distinção, é o estado natural dos
espíritos; e somente quando estes, por algum motivo,
encontram-se sem percepções distintas, diz-se que
estão inconscientes.

Unidade 4 193
Universidade do Sul de Santa Catarina

Teoria da entreexpressão
A perspectiva cosmológica presente na Monadologia apresenta
um universo pleno, cheio de vida até a mínima porção de
matéria. Leibniz concebe as mônadas como os verdadeiros
átomos da natureza, substâncias imateriais e indivisíveis. Nesse
sentido, as substâncias simples se encontram além da nossa
percepção sensível. Tudo o que podemos perceber são compostos
de mônadas, mesmo no que se refere ao nosso próprio corpo.

Como os compostos são agregações de substâncias simples, e


como o universo é um imenso “composto de compostos”, as
mônadas estão por toda a parte e permanecem conectadas umas
às outras. Tal conexão, entretanto, ocorre apenas idealmente,
pelo fato de cada mônada representar todas as outras por meio de
suas percepções.

Quando cada mônada representa o universo para si, todas


as demais substâncias estão contidas nessa representação de
forma expressa. As percepções de cada substância simples
abrangem todo o universo, exprimindo-o. E como tal tendência
representativa está presente em cada ser criado, há uma
entreexpressão, ou expressão mútua entre as mônadas. Todavia, o
fato de que a mônada contenha representações de todo o universo
em si mesma não significa que ela “saiba” ou conheça com clareza
tudo o que existe. As representações do todo são confusas na
mônada finita. Apenas em Deus, tais representações encontram-
se presentes de forma atual.

Com essa teoria da entreexpressão, Leibniz


pretende justificar sua polêmica ideia de que “nada
vem de fora para uma mônada”: justamente pela
presença expressa da totalidade do universo em
cada mônada, os objetos exteriores não podem ser
a causa direta das percepções, senão que apenas
podem impelir a substância simples a encontrar em
si mesma as representações que sempre possuiu,
mas que se encontravam confusamente misturadas
a todas as outras. Esta capacidade de buscar em si o
conhecimento das coisas é o que faz da mônada a
unidade mais elementar do saber.

194
História da Filosofia III

Corpo e Alma
Com a teoria das mônadas Leibniz altera drasticamente a
concepção cartesiana de corpo e alma. Em lugar de um dualismo,
o filósofo propõe um domínio ontológico unificado, cuja
diversidade se deve à variação dos graus perceptivos, mas não
à existência de diversos tipos de substância. Assim, não mais
se trata de duas substâncias distintas (res cogitans e res extensa),
coexistindo de forma dual no ser humano. Antes, é preciso
compreender o homem como uma mônada (espírito racional)
presente em um corpo, que, por sua vez, é também um agregado
de mônadas.

Mas de que forma, então, o indivíduo, sendo uma


mônada, se distingue das demais mônadas que
compõe seu corpo? Como sustentar a permanência de
um eu?

Para resolver essa questão, Leibniz concebe a noção de mônada


dominante, segundo a qual cada mônada com percepções mais
distintas reúne em torno de si um agregado de enteléquias ou
mônadas nuas.

Assim, cada corpo orgânico de [um ser] vivente é uma


espécie de Máquina divina ou de autômato natural [...]
As máquinas da natureza, porém, ou seja, os corpos
vivos, são ainda máquinas nas suas menores partes, até o
infinito. (LEIBNIZ, 1979, p. 112).

As relações entre alma e corpo, portanto, serão compreendidas


a partir da teoria da entreexpressão. Mesmo que as percepções
sejam confusas no detalhe do universo, argumenta Leibniz,
elas devem ser distintas em alguma parte das coisas que se lhe
encontram mais próximas. Desse modo, as mônadas representam
mais distintamente o corpo no qual residem, e suas percepções
mais próximas e determinadas provém da interação deste
composto com o meio em que se encontra.

A alma representa seu corpo, assim como todas as partes


deste corpo representam a própria alma. Mas para que todas

Unidade 4 195
Universidade do Sul de Santa Catarina

séries de representações permaneçam em sincronia, entra em


cena outra teoria fundamental para o sistema leibniziano; a da
harmonia preestabelecida.

Teoria da harmonia preestabelecida


As percepções nas mônadas são contínuas e ininterruptas,
formando uma série representativa infinita. Leibniz pretendeu
explicar a interação recíproca entre alma e corpo pela teoria da
entreexpressão, ou seja, pela ideia de que a mônada-alma percebe
as alterações em seu corpo, assim como cada célula de seu corpo
(que ainda devem ser “máquinas da natureza” ou agregados de
mônadas) percebe as alterações na mônada alma.

Essa “percepção”, entretanto, não pode se dar diretamente, pois


nada pode vir de fora para uma mônada. Ao contrário, ela deve
ser interna e estar incluída na própria série representativa da
mônada em questão. Assim, para que seja possível essa aparente
“comunicação”entre corpo e alma, é necessário que haja, tal
como em Spinoza, uma espécie de paralelismo entre as séries
perceptivas de cada mônada envolvida nesse agregado que
compõe um indivíduo. Contudo, se no pensamento spinozista
esta ligação se dava apenas entre os atributos de
Deus, Leibniz vai mais longe e supõe que a perfeição da criação
divina é plenamente capaz de ajustar de antemão todas as séries
perceptivas de cada mônada no universo, de modo que uma
vez criadas, todas atuem em completa sincronia com as demais.
Segundo Reale e Antiseri (2005, p. 52), trata-se de

[...] conceber as substâncias (as várias mônadas em geral,


assim como as mônadas-alma e as que constituem o
corpo) estruturadas de tal modo que extraiam tudo do seu
interior, e de tal modo que aquilo que cada uma extrai
do seu interior coincida com aquilo que todas as outras
extraem do seu próprio interior com correspondência e
harmonia perfeitas, considerando que isso faz parte de
sua própria natureza, desejada por seu criador.

A teoria da harmonia preestebelecida é a tese metafísica que


sustenta toda a teoria leibniziana das mônadas. Segundo
Leibniz, Deus atua na criação do universo como um exímio

196
História da Filosofia III

relojoeiro, capaz de construir infinitos relógios com seus pêndulos


perfeitamente sincronizados. Todas as mônadas, portanto,
teriam as suas percepções em plena sincronia com as demais
substâncias simples e, ainda, com as transformações objetivas do
mundo; dado que tudo se encontra interligado e cada substância
se “ressente” em suas próprias representações de cada mudança
ocorrida no universo.

Muitas outras implicações da filosofia leibniziana poderiam ser


deduzidas a partir da teoria da harmonia preestabelecida. Mas,
para que encerremos nosso estudo, fica como um desafio (e
um convite para conhecer melhor a Monadologia) a leitura das
próprias palavras do autor ao descrever sua engenhosa teoria:

56 – Ora, este enlace ou esta acomodação de todas as


coisas criadas a cada uma e de cada uma a todas as outras
faz cada sunstância simples ter relações que exprimem
todas as outras e ser, portanto, um espelho vivo e
perpétuo do universo.
57 – E assim como a mesma cidade parece outra e
se multiplica perspectivamente sendo observada de
diversos lados, o mesmo sucede quando, pela infinita
quantidade de substância simples, parece haver outros
tantos universos diferentes, que, no entanto, são apenas
as perspectivas de um só, segundo os diferentes pontos de
vista de cada Mônada. [...]
60 – Pelo que acabo de dizer, veem-se as razões a priori
para as coisas não poderem suceder de outro modo.
Porque Deus, ao regular o todo, atendeu a cada parte
e muito em especial a cada mônada, cuja natureza
representativa nada conseguiria limitar à representação
de uma só parte das coisas, muito embora, na verdade,
esta representação seja confusa apenas nos pormenores
de todo o universo, e distinta apenas em pequena parte
das coisas [...] As mônadas são limitadas não no objeto,
mas na modificação do conhecimento do objeto. Todas
tendem confusamente para o infinito, para o todo, mas os
graus das percepções distintas as limitam e distinguem.
61 – Neste ponto, os compostos simbolizam com os
simples, pois como tudo é pleno (o que torna toda a
matéria ligada) e como no pleno qualquer movimento
exerce algum efeito sobre os corpos distantes
proporcional a distância, de sorte a ser cada corpo
afetado não só pelos que o tocam e a ressentir-se de certo
modo de tudo quanto lhes acontece, mas também por

Unidade 4 197
Universidade do Sul de Santa Catarina

intermédio deles se ressente dos que tocam os primeiros


pelos quais é imediatamente tocado; segue-se que esta
comunicação pode atingir qualquer distância. E, por
conseguinte, todo corpo se ressente de [tudo] quanto se
faz no universo, de modo que o onividente poderia ler
em cada um o que se faz em toda a parte, e até mesmo
quanto se fez ou fará [...] Mas uma alma só pode ler em si
mesma o que nela está distintamente representado, e não
poderia desenvolver duma só vez todos os seus recônditos,
pois estes vão até o infinito. (LEIBNIZ, 1979, p. 110).
Como você pôde observar, a filosofia leibniziana assume certos
aspectos da nascente filosofia moderna, mas vai estruturar-se
de uma forma bem diferente do pensamento de Descartes. Em
primeiro lugar, não se pode dizer que Leibniz é um racionalista
nos mesmos moldes do pensamento cartesiano. De fato, o
conhecimento continua a ser uma aspecto imanente ao sujeito.
Mas nem o sujeito será considerado única e exclusivamente
como eu pensante, nem o conhecimento será limitado apenas às
representações claras e distintas dos espíritos racionais.

Podemos dizer, também, que Leibniz apresenta uma nova teoria


da representação, esforçando-se por retomar a validade dos juízos
sensíveis como parte do conhecimento humano. Descartes havia
concluído as Meditações afirmando que os dados dos sentidos
apenas poderiam orientar as ações práticas do cógito, mas seriam
incapazes de servir como fundamento para o conhecimento.
Contudo, para Leibniz as percepções (tomadas no sentido amplo
de representação de todas as mônadas) também se configuram
como um tipo de saber objetivo, pois são representações
verdadeiras do universo. Embora sua natureza seja confusa, isto
não as invalida como a base e possibilidade de qualquer forma
mais complexa de conhecimento. Valendo-se da apercepção,
o espírito racional, é capaz de elevar-se ao conhecimento das
verdades necessárias e eternas, alcançando a razão e as ciências.

198
História da Filosofia III

Síntese

Nesta unidade você teve a oportunidade de analisar a fundo


alguns dos principais aspectos da reflexão filosófica que marca o
nascimento da filosofia moderna.

Com René Descartes e as Meditações você pôde compreender


como o pensamento moderno se volta para a imanência do sujeito
pensante, encontrando na racionalidade a forma adequada de
construir um conhecimento seguro sobre si mesmo, sobre Deus e
sobre o mundo exterior.

Afastando-se do conhecimento sensível, Descartes desenvolverá


uma teoria da representação, tentando mostrar que encontramos
no próprio pensamento um meio mais adequado de conhecer o
mundo que nos circunda. A partir daí, a discussão epistemológica
assume o posto central na reflexão filosófica da modernidade.
Uma grande questão legada pela filosofia cartesiana foi a da
dificuldade da conformação entre alma e corpo, considerados em
uma perspectiva dualista.

Segue-se imediatamente ao pensamento cartesiano a teoria


do ocasionalismo, que assumirá o dualismo radical entre res
cogitans e res extensa, negando a possibilidade de relação recíproca
entre o pensamento (ação da alma) e os movimentos do corpo.
Malebranche, principal autor da teoria, propõe que a alma apenas
seria capaz de conhecer todas as coisas unicamente a partir de
seu contato direto com Deus. Assim, para os ocasionalistas
a coincidência das ações entre o corpo e a alma se devem à
intervenção constante de Deus. A sincronia entre um pensamento
e um movimento do corpo seriam a ocasião da ação de Deus.

Baruch Spinoza se tornou partidário do cartesianismo, mas


rejeitou completamente a teoria ocasionalista. Sua filosofia
evoluiu para um sistema monista e panteísta, que acaba por
afastar-se das ideias de Descartes quanto a um ponto central:
dada a definição do conceito de substância, apenas Deus pode
ser considerado como uma substância. Pensamento e extensão (as
qualidades da alma e do corpo) são apenas atributos da substância
divina e toda a natureza criada consiste em diferentes modos

Unidade 4 199
Universidade do Sul de Santa Catarina

destes atributos. Para Spinoza, toda a realidade consiste no


próprio Deus, que é substância infinita, desdobrando-se em seus
infinitos atributos e nos infinitos modos destes atributos.

Por fim, você conheceu nesta unidade como surge a teoria de


Leibniz que se apropria de algumas ideias de Spinoza, mas
discorda de ambas as soluções para o problema da interação entre
corpo e alma (a ocasionalista e a spinozista). Desenvolvendo
profundos estudos de física, matemática e lógica, o filósofo
rejeita a noção materialista de substância corpórea sustentada
por Descartes. A noção de que também a natureza física deve
ser sustentada por uma base metafísica o levará a desenvolver sua
filosofia das mônadas e uma nova teoria da representação.

Como unidades autônomas e expressivas, as substâncias simples


serão regidas pela teoria da harmonia preestabelecida. Desse
modo, tudo se encontra conectado e cada ser traz em si marcas
de tudo o que ocorre no universo, ainda que de forma confusa.
Deus figura como a mônada suprema, cuja sabedoria e poder foi
capaz de construir a plena regulação entre todas as substâncias.
O homem constitui-se como um espírito racional (uma mônada)
presente em um corpo (um agregado de mônadas), plenamente
regulados pela harmonia universal. O conhecimento racional será
considerado como a capacidade de elevar-se às verdades eternas
por meio da reflexão; mas terá como base as próprias percepções
inerentes a todas as mônadas.

200
História da Filosofia III

Atividades de autoavaliação

Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação. O


gabarito está disponível no final do livro didático. Mas, esforce-se para
resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará
promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1) No início das Meditações, Descartes põe em dúvida todos os tipos


de conhecimento por meio dos argumentos da falibilidade dos
sentidos, do sonho e do gênio maligno. Entretanto, a partir da
segunda meditação, gradualmente aparecerão algumas certezas e
o conhecimento sobre o mundo exterior será retomado. Dadas as
proposições abaixo, utilize os números de 1 a 5 para organizar a ordem
na qual Descartes retoma cada uma de suas certezas.
( ) Conheço mais seguramente o pensamento do que as coisas
exteriores.
( ) Eu penso, logo existo.
( ) Retomada da certeza sobre o mundo exterior.
( ) Certeza da representação de Deus.
( ) Retomada da objetividade das representações matemáticas.

2) A partir da terceira meditação, Descartes fornece três argumentos em


favor da existência de Deus. Escreva um breve texto apontando quais
são esses argumentos e explicando cada um deles.

Unidade 4 201
Universidade do Sul de Santa Catarina

3) Um dos legados do pensamento cartesiano para filosofia moderna é


o problema da união entre corpo e alma. Dadas as possíveis soluções
abaixo, indique a qual filósofo elas pertencem.
( ) Alma e corpo não são substâncias, e, portanto,
não há problemas quanto a sua interação. Pensamento e extensão
constituem, na verdade, diferentes atributos de Deus. Cada corpo e
cada alma particular, por sua vez, são apenas variados modos desses
atributos. A relação entre corpo e alma, portanto, decorre de um
paralelismo natural entre os diferentes atributos divinos.
( ) Alma e corpo não podem ter nenhuma relação
direta. Aliás, a alma não tem relação direta com coisa alguma, a não ser
com o seu Criador. Assim, a aparente interação entre os pensamentos
da alma e os movimentos do corpo é, na verdade, uma ilusão. Trata-se
apenas coincidência da ação divina em ambas estas substâncias.
( ) Alma e corpo somente permanecem juntos
enquanto unidade e agregação sustentada pela relação de expressão
que perpassa todas as substâncias simples. A princípio, a série das
percepções da alma está previamente sincronizada com a série
das percepções de todas as outras substâncias criadas. Entretanto,
essa relação se dá mais diretamente no que toca à alma e às demais
substância simples que compõem o agregado de seu próprio corpo.

Saiba mais

Para saber mais sobre os conteúdos abordados nesta unidade,


sugerimos que você leia diretamente as obras dos filósofos,
que podem ser encontradas em várias traduções para a língua
portuguesa:

DESCARTES, R. Meditações. São Paulo: Nova Cultural,


1999. (os Pensadores).

LEIBNIZ, G. W. Monadologia. São Paulo: Abril Cultural,


1979. (os Pensadores).

MALEBRANCHE, N. A busca da verdade: textos escolhidos.


São Paulo: Discurso Editoria, 2004.

SPINOZA, B. Ética. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (os


Pensadores).

202
Para concluir o estudo

Esta disciplina de História da Filosofia III pretendeu


analisar o período situado entre o início do Humanismo,
no século XV, quando acontecem diferentes e renovadas
leituras do pensamento clássico, e o século XVII, marcado
pelo nascimento da filosofia moderna a partir da discussão
originada pelas ideias de René Descartes.

Aristotelismo, platonismo, ceticismo e resquícios do


paganismo estão entre as influências que circularam
naquele momento inicial, compondo um amplo mosaico
de ideias que caracteriza a filosofia do Renascimento.

Procuramos mostrar que eventos como a Reforma


Protestante e a Revolução Científica são ilustrativos da
transição para a sociedade moderna propriamente dita.
Trabalhamos a noção de modernidade como um amplo
movimento da cultura ocorrido na Europa renascentista,
cenário histórico onde se deram as elaborações filosóficas
dos pensadores discutidos neste livro.

Como você certamente constatou, o pensamento filosófico


caminhou a par e passo com todo esse movimento, ainda
que não numa única direção, mas por meio de diferentes
caminhos. A filosofia cartesiana, de algum modo, sintetiza
esta grande carga de influências e transformações: a
contestação do saber tradicional, a busca por um novo
método para o saber, a tentativa de reinserir o homem
como um elemento relevante no processo de conhecimento
da natureza e o uso da dúvida cética como meio para
a aquisição de um novo modo de pensar são resultados
explícitos das grandes transformações que marcam o início
da modernidade.
Universidade do Sul de Santa Catarina

Com as Meditações, Descartes inaugura uma nova agenda de


temas e discussões que irão compor o cenário da nascente
filosofia moderna. Sobretudo, as discussões sobre sua teoria da
representação e sobre o problema da união substancial entre alma
e corpo serão responsáveis pelos desenvolvimentos de outros
sistemas filosóficos racionalistas.

Spinoza, com seu imanentismo panteísta, e Leibniz, com sua


teoria das mônadas, pretenderam apresentar alternativas à
filosofia cartesiana. Cada um desses sistemas, entretanto, resultou
em novas propostas filosóficas, trazendo ainda outras questões
relevantes para o pensamento moderno.

Por fim, esperamos que você tenha adquirido os conhecimentos


que lhe serão indispensáveis para a compreensão do pensamento
filosófico subsequente.

Um abraço,
Professores Cesar Augusto Jungblut,
Lucésia Pereira e Dante Targa.

204
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212
Sobre os professores conteudistas

Cesar Augusto Jungblut


Licenciado e bacharel em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (1992 e 1995), com
mestrado em História Latin-Americana (1998).
Sua experiência em sala de aula é bastante ampla.
Atuou em diversas escolas públicas e particulares no
ensino fundamental e médio, bem como na Udesc –
Universidade do Estado de Santa Catarina – e na UFSC
– Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente,
ele é professor em cursos de pós-graduação. Mesmo
tendo formação na área de História, dedica-se também
às questões de metodologia de ensino (Superior, História
e Geografia), na área de formação de professores, em
Políticas Públicas Educacionais e na Gestão e Legislação
Educacional, entre outros. É autor de vários trabalhos
e artigos, apresentados e publicados, tanto na área de
História como de Educação.

Lucésia Pereira
Graduada em História, pela Udesc – Universidade do
Estado de Santa Catarina. Fez mestrado na UFSC –
Universidade Federal de Santa Catarina –, onde, desde
março de 2009, cursa o doutorado na área de “Políticas
da escrita, da imagem e da memória”. Durante seis anos,
atuou em cursos de graduação nas áreas de Arte, Cultura
e Estética. Atuou também em cursos de pós-graduação
nas áreas de História e Pedagogia. Atualmente trabalha
como designer instrucional e como professora das
disciplinas Filosofia e Ciência Política na UnisulVirtual.
Universidade do Sul de Santa Catarina

Dante Carvalho Targa (3ª edição)


Graduou-se como bacharel e licenciado em Filosofia pela UFSC
– Universidade Federal de Santa Catarina – em dezembro de
2005, apresentando o trabalho de conclusão de curso Distinções
entre os seres em Leibniz. Seguindo adiante na área da ontologia,
iniciou em 2006 a pós-graduação em nível de mestrado, também
na UFSC. Em 2009, defendeu a dissertação Leibniz, o individual
e suas fissuras – Reflexões sobre o Discurso de metafísica e a filosofia
pré-monádica. Em janeiro de 2010, ingressou como professor de
Filosofia na UnisulVirtual, onde atualmente dedica-se ao ensino,
pesquisa e extensão. Atuou também como professor de Filosofia
para os cursos de Pedagogia e Ciências da Religião do USJ –
Centro Universitário Municipal de São José, SC.

214
Respostas e comentários das
atividades de autoavaliação
Unidade 1

1) Você deve apontar que, para os artistas, o mundo era agora


uma realidade a ser compreendida cientificamente, e
não apenas admirada. A proximidade entre arte e ciência
resulta em que cada parte, de um quadro ou de uma obra
arquitetônica, seja precisamente calculada e articulada.
2) A região da Itália era um conjunto de cidades, algumas
delas economicamente prósperas, como Gênova e Veneza,
as quais comandaram o comércio na Europa até o século
XVI. Ali havia sido o centro do Império Romano e, portanto,
possuía e guardava muitos resquícios da tradição clássica
(documentos, livros, monumentos, obras de arte). As cidades
italianas tinham ainda uma maior autonomia relativa no que
se refere à igreja.
3) É possível apontar vários sintomas. Dentre eles: no período
medieval, grande parte das obras de arte permaneceram
anônimas, uma vez que o artista era compreendido como o
mero instrumento para a representação do divino por meio
da arte. Com o Renascimento, os artistas serão vistos como
grandes gênios e elementos centrais na concepção das
obras de artes. A criação de elaborados esboços e estudos
para a composição de quadros não deixa de ser um primeiro
exemplo da noção filosófica de representação.

Unidade 2
1) Você deve ter indicado que os humanistas fizeram uma leitura
renovada dos clássicos antigos, porque eles estavam imbuídos
de uma atitude renovadora e crítica se comparada à maior
parte das interpretações feitas na Idade Média.
2) Foi no Humanismo que o homem e seu potencial criador
ganharam destaque, como ilustram as muitas pesquisas sobre
o corpo humano e o mundo natural, visando a compreender o
seu funcionamento, a exemplo do que fez Leonardo da Vinci.
A civilização do Renascimento é, portanto, voltada para a
capacidade realizadora do homem e, especialmente no século
XVI, essas realizações foram canalizadas para a vida prática.
Universidade do Sul de Santa Catarina

3) A publicação desses textos (tidos como autênticos) forneceram


fundamentos para uma mudança com relação ao mundo natural
que podia, por meio de uma série de práticas mágicas, ser objeto da
intervenção humana.
4) A análise política desenvolvida por Nicolau Maquiavel é coerente com
a perspectiva humanista porque afasta-se da especulação teórica
sobre a ação política para concentrar-se na realidade concreta, por
mais inconveniente que ele possa ser. Em outras palavras, o autor
pretende permanecer mais próximo ao aspecto humano; sem se deixar
influenciar por um ideal político pré-concebido a partir de valores
transcendentes (como no caso do pensamento medieval).

Unidade 3
1) Martinho Lutero crítica a ideia de livre arbítrio e defende a
predestinação. Para ele, a salvação dependia exclusivamente
da vontade de Deus. As boas obras não poderiam constituir um
caminho garantido para a salvação. Apenas pela fé o homem
poderia chegar a Deus.
2) Galileu radicalizou o uso da observação para a obtenção do
conhecimento, algo que não era comum na filosofia, e conferiu rigor
extremo a esse método, o que não havia na magia e em outras formas
vulgares de conhecimento. Entre suas inovações, podemos destacar:
„„ observação imediata do fenômeno na sua complexidade – as
observações cuidadosas;
„„ a resolução desse enredamento nos elementos mais simples,
traduzíveis em relações quantitativas, ou em linguagem matemática;
„„ a formulação de uma hipótese explicativa;
„„ a averiguação da hipótese como cálculo e experimento –
a experimentação.

3) Em oposição à ciência antiga, a partir das proposições de Newton,


não se trata mais de indagar pela substância de cada coisa, mas pela
sua razão matemática ou função. Os fenômenos físicos deixam de ser
vistos como uma interação de qualidades substanciais para serem
interpretados a partir de parâmetros relacionais extrínsecos aos corpos,
isto é, às próprias leis naturais.
O processo indutivo deve se fixar em experiências e demonstrações, e
não em dogmas religiosos ou filosóficos. A partir da física newtoniana,
está bem demarcada a delimitação entre o campo da ciência e o
domínio da metafísica. A mecânica clássica de Newton, além de uma
teoria, permaneceu como um projeto de pesquisa, orientando a prática
científica por um grande período de tempo adiante. Tratava-se do
primeiro paradigma científico.

216
História da Filosofia III

Unidade 4

1) Gabarito: 2 ; 1 ; 5 ; 3 ; 4.

2) Trata-se dos seguintes argumentos:


„„ Sobre a impossibilidade de o eu pensante finito ser a origem da
representação de Deus, com suas qualidades infinitas (argumento
cosmológico). Ou seja, Deus tem de existir, pois se não existisse,
eu não seria capaz de explicar a existência da ideia de Deus que
reconheço em mim.
„„ Argumento teleológico: se não sou capaz de criar e conservar
minha própria existência, deve haver um ser infinito que o possa
fazê-lo. Se Deus é infinito, ele deve ser a sua própria causa; nenhuma
substância pode criá-lo. Sendo Deus infinito, ele deve, também, ser a
causa de tudo o que há, inclusive de todos os meus juízos.
„„ Argumento ontológico: fundamenta a existência de Deus a partir
de sua própria definição e qualidades. Se Deus criou em mim
a ideia de perfeição, o perfeito tem que existir. Deus é perfeito
e, portanto, existe, pois sem o predicado da existência não se
caracterizaria a perfeição.

3) Spinoza; Malebranche/ ocasionalismo; Leibniz

217
Biblioteca Virtual

Veja a seguir os serviços oferecidos pela Biblioteca Virtual aos


alunos a distância:

„„ Pesquisa a publicações on-line


<www.unisul.br/textocompleto>
„„ Acesso a bases de dados assinadas
<www.unisul.br/bdassinadas>
„„ Acesso a bases de dados gratuitas selecionadas
<www.unisul.br/bdgratuitas >
„„ Acesso a jornais e revistas on-line
<www.unisul.br/periodicos>
„„ Empréstimo de livros
<www.unisul.br/emprestimos>
„„ Escaneamento de parte de obra*
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