Aprox Maçõe: Fe Na Do A. Novais

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

Fernando A.

Novais

Aproximações
estudos de história e historiografia

Apresentação de Pedro Puntoni

BlBl:lOTECAS
FESPSP

COSACNAIFY
de outra qualquer qualidade de Seda: De Belbutes, Chitas, Bombazinas, A extinção da escravatura africana em Portugal
Fustões, ou de outra qualquer qualidade de Fazenda de Algodão, ou de
Linho, branca, ou de cores: E de Pannos, Baetas, D roquetes, Saetas, ou no quadro da política pombalina
de outra qualquer qualidade de Tecidos de Lã, ou os ditos Tecidos sejão
fabricados de hum só dos referidos Generos, ou misturados, e tecidos Co-autoria de Francisco C. Falcon
huns com os outros; exceptuando tão somente aquelles dos ditos Teares,
e Manufacturas, em que se técem, ou manufacturão Fazendas grossas de
Algodão, que servem para o uso, e vestuário dos Negros, para enfardar,
e empacotar Fazendas, e para outros Ministerios semelhantes; todas as
mais sejão extinctas, e abolidas em qualquer parte onde se acharem nos
Meus Domínios do Brasil, debaixo da Pena do perdimento, em tresdobro,
do valor de cada huma das ditas Manufacturas, ou Teares, e das Fazendas, Na história de Portugal e do Brasil, nenhuma personagem terá tido a for-
que nellas, ou nelles houver, e que se acharem existentes, dous mezes tuna de inspirar tantas e tão apaixonadas polêmicas como Sebastião José
depois da publicação deste; repartindo-se a dita Condemnação metade a de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e marquês de Pombal, famoso minis-
favor do Denunciante, se o houver, e a outra metade pelos Officiaes, que tro de D. José 1. 1 Curiosamente, é a tradição da historiografia liberal que
fizerem a Diligencia; e não havendo Denunciante, tudo pertencerá aos tende a exaltar a figura do governante absolutista; e são os historiadores
mesmos Officiaes. tradicionalistas que apoucam o significado de sua atuação, desmanchan-
Pelo que: Mando ao Presidente, e Conselheiros do Conselho Ultra- do-se mesmo em ataques à própria personalidade do discutido homem de
marino; Presidente do Meu Real Erario; vice-rei do Estado do Brazíl; Estado. 2 Na corrente apologética, iniciada, aliás, por ele próprio, com fre-
Governadores, e Capitães Generaes, e mais Governadores, e Officiaes qüência menciona-se entre suas obras mais meritórias a extinção da escra-
Militares do mesmo Estado; Ministros das Relações do Rio de Janeiro, e vatura: assim, por exemplo, John Smith vê nesse ato "uma das mais claras
Bahia; Ouvidores, Provedores, e outros Ministros, Officiaes de Justiça, e notáveis provas de seu espírito liberal e humanitário" .3
e Fazenda, e mais Pessoas do referido Estado, cumprão, e guardem, e No centenário de Pombal, caberia a Latino Coelho, mais uma vez,
fação inteiramente cumprir, e guardar este Meu Alvará como nelle se encomiar a libertação dos escravos, em que id entifica o caráter ilustrado
contém, sem embargo de quaesquer Leis, ou Disposições em contrario, da governação pombalina,4 consoante assim com as Luzes que irradia-
as quaes Hei por derogadas, para este effeito sómente ficando aliás sem- vam por todo o Ocidente europeu. E no próprio pedestal da estátua, na
pre em seu vigor. Dado no Palacio de Nossa Senhora da Ajuda, em í de
Janeiro de I785 - Com a Assignatura da Rainha, e a do Ministro. 46
• Publicado originariamente em Anais do VI Simpósio Nacional dos Professores Universitários
de Hútória, São Paulo, 1973, pp. 405-31. Comunicação apresentada na VJ Sessão de Estudos,
9 se t. 1971.
, . Sobre essas polêmicas, ver Alfredo Duarte Rodrigues, O marquês de Pombal e seus t,iiJ.
grafos, 1947.
2 . Cf. João Ameai e Rodrigues Cavalheiro, Erratas à hútória de Ponugal: de D.joão V a /).

Miguel, 1939, pp. 49-ss.


3. "One of the clearest and mosc remarkable proofs of Pombal's liberal and humanc ml11tl"
(John Smith, Memoirs of the Mar'luis of Pombal..., 1848, v. 11, p. 100.
4. Cf. J. M. Latino Coelho, "O marquês de Pombal", 1851, pp. 268,403. João ele S11ltl,111hu
O liveira e Souza ( O marquês de Pombal e a repressão da escravatura: a oórn a() ltomdlll, 1\)401
v. v111) trata, em tom laudatório, da libertação dos indígenas do Grão-Puri\ e Mnranhno,
46. Antônio D elgado da Silva, op. cit., v. III (1771-1790), p. 370. limitando-se à sumária referência ao problema dos negros.
praça de seu nome em Lisboa, inscreveram-se os seus feitos e entre eles Ainda que a ideologia do colonialismo nascente para logo racionalizasse
a libertação dos escravos em Portugal. a escravização, não faltaram vozes dissonantes (Fernando de Oliveira,
Entre o elogio e a detração, haverá sempre lugar para o historiador Tomás de Mercado, Manuel Ribeiro da Rocha) para dar continuidade,
procurar as razões da supressão da escravatura na metrópole, e o seu posteriormente, às inquietações de Zurara.
significado na história luso-brasileira. Para tanto, teremos primeiramente Este renascer do escravismo, em oposição às tendências dominan-
de proceder a um balanço, naturalmente muito sumário, da presença tes da economia e da sociedade européia, encontrava contudo em Portu-
dos escravos5 no Portugal metropolitano na Época Moderna. gal condições específicas para a sua sustentação: a expansão ultramarina
Deixando de lado a persistência residual de mancípios na Península e o conseqüente desenvolvimento da economia escravista colonial; o
Ibérica,6 o tráfico africano remonta em Portugal às primeiras décadas do peso excessivo das áreas coloniais sobre a pequena Metrópole, além de
século xv. Numa passagem merecidamente famosa, descreveu Zurara a certas características da estrutura agrária do Portugal mediterrâneo. 9
chegada dos primeiros nativos africanos no Algarve: Difícil, senão impossível, no estado atual dos estudos, quantificar
o percentual dos escravos na população portuguesa durante a Época
Chegaram as caravelas a Lagos, donde antes partiram, havendo nobre Moderna. 10 O s dados são escassos, dispersos, e, ainda mais, propensos
tempo de viagem [...]. E no outro dia muito cedo mandou Lançarote à exageração. Até 1448, quando se interrompe a relação de Zurara, cal-
aos mestres das caravelas que os tirassem fora e que os levassem aquele cula-se que houvessem entrado em Portugal cerca de mil cativos; e em
campo, onde fizessem suas repartições [...].7 1455 , segundo avaliação de Cadamosto, era de setecentos ou oitocentos
o número de entradas anuais. 11 O tráfico parece que se desdobra para a
Mal descrita a partilha, já se inquieta a consciência do cronista, que Espanha, pois nas Cortes de 1472 solicitou-se ao rei que proibisse a re-
acrescenta: exportação, no que, aliás, não consentiu Sua Majestade. 12 Aos olhos dos
estrangeiros, sobretudo, devia causar intensa impressão o fenômeno;
Se as brutas animálias, com seu bestial sentir, por um natural instinto, co- assim é que o humanista Cleonardo, em 1535, referiu que "em Lisboa os
nhecem os danos de suas semelhantes, que queres que faça esta minha escravos e escravas são mais que os portugueses livres de condição".'3
humanal natureza, vendo assim ante meus olhos, aquesta miserável cam- Mas G. Luzzatto alerta-nos para o evidente exagero desta avaliação. 14
panha, lembrando-me de que são da geração dos filhos de Adão!8 No balanço mais recente sobre o assunto,15 ainda assim muito
lacunoso, conclui~se que no meado dos Quinhentos (1551), para uma
população de 100 mil alm as, haveria ro mil escravos negros em Lisboa.
í · Escravidão, e m sentido socioeconômico, não se confunde com servidão feudal. Esta se
define em termos de apropriação compulsória, pela camada senhorial, de parte do trabalho
(corvéia) e produtos (prestaçõe.s) dos produtores diretos - servos. O escravo, pelo contrá-
rio, pertence ele próprio ao senhor, e por conseqüência também o que produz (Cf. M. Dobb, 9. Cf. A . Silbert, Le Portugal médirerranéen à lafin de L'Ancien Régime, 1966, v. r, pp. 80-ss;
Studies inche Developmem of Capitalism, r954, pp. 35-ss.). A imprecisão conceirual apesar de v. 11, pp. 742-ss.
tudo ocorre em muitos trabalhos que tratam do assunto. Como o título indica, lidamos aqui ,o . Cf. V. Magalhães Godinho (org.), op. cit., v. 111, p. 21. Ver também o balanço do Vcr-
apenas com a supressão da escravatura africana em Portugal. linden em L 'Esclavage dans l'Europe médiévale, pp. 835-54.
6. Cf. C. Verlinden, Les Origines de la civilisation atla,uique, 1966. pp. 16-ss. Para um estudo l r. Cf. Maurício Goulan, Escravidão africana no Brasil: das origens à e:x1i11ç80 do rrdjico, 1950,

exaustivo do tema, cf. C. Verlinden, L'Esclavage da,,., l'Europe médiévale, 196~. P· 2 5·


7. Gomes Eanes de Zurara, Crônicas dos feitos da Guiné, 1949, cap. xxrv, pp. I22-23. 12. Cf. A. de Sousa Silva Costa Lobo, História da sociedade em Portugal ,w Jéc1'ÍO XP, 1903,
Corn~ntando este trecho, observa V. Magalhães Godinho que "a vinda dos primeiros cativos p. 588.
do litoral saariano data de 1441 ", o que significa que a partilha descri1;a não foi a primeira (cf. 13. Carta de Évora, 26 de março de r531, in M. GonçaJves Ccrejcirn, O Rena..icimento em
Magalhães Godinho (org.), Documentos sobre a expa11.>ão portuguesa, 1956, v. m, p. 21). O Portugal: Cleonardo e a sociedade portuguesa do seu ttmpo, 1949, pp. 276-92.
texto de Zurara mantém, contudo, caráter simbólico por ser a primeira descri',ão do evento. 14. Cf. Gino Luzzatto, Sron·a economica dell'età moderna e comemporanea, l9íí, t. 1, p. 1í6.

8. Zurara, op. c it., cap. xxv, p. 124. 11. Cf. C. F. M. de Sousa Miguel, "Escravatura" (verbete).
Segundo Lúcio de Azevedo,16 por volta de 1620, para uma população lis- remover os entraves de toda ordem que obstaculiiavam esse desenvol-
boeta de c65 mil habitantes, o número de escravos mantinha-se nos ro vimento. Integrado nesse contexto é que procuramos compreender a
mil antes referidos, ou pouco acima disso. Na segunda metade do século extinção da escravatura em Portugal pela legislação pombalina.
XVIII, à época pombalina, havia no Alentejo cerca de 4 mil a 5 mil escravos, De fato, a política econômica industrialista posta cm prática pelo
segundo referência de Francisco Antônio Correia. 17 Ora, a população marquês de Pombal nos últimos anos da década de 1760 nno constitui, a
total do reino evolui, segundo as mais seguras e recentes avaliações glo- nosso ver, apenas uma espécie de resposta mais ou menos cmp!ricll1 des-
bais/8 de r.008.280 habitantes em r417, para r.124.000 em 1527, 2.321.447 ligada de qualquer visão mais ampla, às exigências de umo conjwuurn
em 1767, 2.931.840 em 1801. Em 1767, a população do Alentejo era de tornada dia a dia mais difícil pela contração econômica? Tui ccnwnçl.'lo,
3 I r.or8 pessoas. Apesar, pois, da precariedade dos dados sobre escravos, ligada fundamentalmente no declínio dos rendimentos colonlult1, 21 nl.'lo
eles parecem indicar, confrontados com a evolução demográfica por- representou o fator determinante da política manufaturcirn. Acclcrudu
tuguesa, que os cativos nunca chegaram a constituir uma porcentagem pela crise, ela se integra no conjunto das mais diversos medidtlll l1UC1 no
muito significativa no conjunto; parecem concentrar-se mais nas cidades verdade, constituem aquilo que poderíamos denominar o uni ven10 pôlí•
( exceção talvez do Alentejo), numa economia essencialmente agrária. tico-econômico do pombalismo, fundamentalmente merc:.mtlllllll, NISRO,
Não se pode, portanto, em absoluto, falar de sociedade escravista, realmente, consiste a sua principal diferença em relação às c11uerl<1rcs lílll•
referindo-se ao Portugal do Antigo Regime, como o fazem alguns auto- tativas de industrialização, como, por exemplo, a do conde d<i fülci!iro.
res menos rigorosos em conceitos; o sistema produtivo nunca chegou a se Na segunda metade do século xvm, pela primeiro vez m l)om 1-
basear na produção escrava. A verdade é que o escravismo não foi mais gal, foi posto em andamento, de forma sistemática e coo1·drnt1clt11 wdo
que um setor marginal da economia e da sociedade portuguesa na Época o arsenal mercantilista de fomento às manufaturas: finnnclam<.'nlo dll:e•
Moderna. Isto, por outro lado, não significa que a sua presença tenha deixa- to, subvenções, privilégios, monopólios, além da proccçlfo todfório; cm
do de exercer influência negativa no desenvolvimento econômico de Portu- certos casos, como já o notou Acúrsio das Neves,23 o Estado IOH1tlV,I u 111
gal neste período: o escravismo, como se sabe, dificultando a generalização os grandes empreendimentos fabris, até poderem se sus1cnH1r cm m O!I
da economia mercantil,19 não se ajusta ou mesmo se constitui em óbice ao de particulares. E tais empresas "depois continuaram sem 0 11 Hl)t;()rl'OR
desenvolvimento capitalista. O retardamento dos países ibéricos em rela- pecuniários dos cofres públicos", atesta nas suas mem6rit111 J, llu1wn, :◄
ção aos mais avançados da Europa ocidental a partir do século xvn é fruto empresário francês radicado em Portugal e que, aliás, participou oliva~
de múltiplos e complexos fatores, entre os quais convém não esquecer a mente de todo esse processo. Toda essa política de fomento lndu11tdal
presença de um segmento escravista no corpo da sociedade peninsular. vem sendo estudada na historiografia econômica pol'lll(.l;llt111u: dtmle os
Daí o esforço por acelerar o progresso econômico e atualizar o indicações de Lúcio de Azevedo2; e a tentativa de síntese de Frunelsco
país no nível europeu - que foi, essencialmente, o nervo de toda a polí- Antônio Correia26 até as mais recentes investigações e unáll~CH de Jorge
tica pombalina20 - constituir-se naturalmente de medidas tendentes a

21. Cf. Jorge de Macedo, A situação econômica no tempo de Pombal: a/gun.r 1llfldCWJ, 1911, PP·
164, 242-49, 258-59.
16. Cf. J. Lúcio de Azevedo, Eúmenws para a história econ8mica de Portugal (séculos XJI a 22. Cf. H. E. S. Fischer, The Portugal Trade: A Swdy of A11glo•Pl)rtl/.l/lldJe Cr1morcf, 1700-
XVII), 1967, p. 159. 1770, J971, pp. 13-ss.
17. Cf. Francisco Antônio Correia, História econômi<:a de Portugal, 1930, v. 11, p. 95. 23. Cf. José Acúrsio das Neves, Variedades sobre objetos rtlativ()J ds artas, comdrclo, e manujà-
18. Cf. José Genti l da Silva, "Au Portugal: srructure démographique et développement éco- ruras, consideradas segundo os princípios da economia polttica, 181,1, v. 1, p. 10,
nomique", 1962, p. 509. 24. Cf. J. Ratton, Recordações de jacome Rauon sohre as ocorr8nclru do ,reu w 1,p0 (1747-1910),
19- Cf. Eric Williams, Capitaíism & Slavery, 1961, pp. j-Ss. i 9 20, P· 97·
20. Cf. Keneth Maxwell, "Pombal and tbe Nationalization of the Luso- Brazilian Economy", 25. Cf. J. Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal eco,wmico: esboços de !ti.s1ória, 1943, PP· 432-ss.
1968, pp. 629-ss. 26. Cf. Francisco Antônio Correia, op. cit., pp. 128-ss.

86
de Macedo.27 Os estudos deste último, conduzidos criticamente, com a de 2/5/r768, mandando anular e destruir as listas dos cristãos-novos que
reconstituição minuciosa da sólida estrutura artesanal, extremamente dis- 1·inham contribuído para o preço dos perdões gerais e outros benefícios
persa, voltada para o mercado local, da tradicional indústria portuguesa, comprados ao rei31 é logo seguido pelo de 5/ro/r768 (secretíssimo), que
permitiram afastar a idéia até então prevalecente do "deserto industrial", liquida com a "seita dos puritanos", cujo texto, apesar de incríveis con-
em que Pombal se teria esforçado por criar uma indústria ab-initio; isto fusões históricas, ataca o problema da discriminação racial-religiosa no
o conduz, por outro lado, a ressaltar na política pombalina mais o cará- dmbit0 da aristocracia dominante;32 completa-se, finalmente, com a lei de
ter de continuidade, de reorganização da base anterior, caracterizando-a 25 /5 /r773, em que se oferecem providências definitivas ao problema.33
enfim como circunstancial (resposta à crise) e assistemática. 2ª Ora, o ter Muita embora toda a argumentação do texto da citada lei esteja centrada
sido estimulada ou mesmo sugerida pela crise e assentar sobre a estrutura em temas como a culpa dos jesuítas pelo estabelecimento daquela discrimi-
pré-existente não lhe tira, quanto a nós, o caráter de programa sistemá- nação em terras lusitanas e a necessidade de extirpá-la em nome da tran-
tico, que transparece na simultaneidade e na coordenação das medidas, e qüilidade pública e imperiosa exigência da unidade da sociedade civil sob a
na sua continuidade para além do próprio período pombalino, bem como égide do poder monárquico, o fato é que, na prática, entravam em linha de
nos seus resultados altamente positivos. Mais ainda, apenas essa visão do conta considerações relativas à capacidade empresarial dos cristãos-novos
mercantilismo porruguês da época possibilita-nos entender sob nova luz e aos seus recursos econômicos, não raro, é verdade, superestimados. Atra-
outros setores da governação pombalina, aparentemente alheios ao pro- tivos decisivos, quando se pensa nas dificuldades da política industrialista
jeto industrialista, e entre eles as leis sobre os escravos. Procuremos, pois, diante da escassa disponibilidade de capitais, quase tradicional no reino. Já
situar a extinção da escravidão em Portugal, relacionando-a com o esque- D. Luís da Cunha, aliás, que no seu famoso Testamento polúico34 aconse-
ma global da política industrialista, que, além dos elementos de incentivo lhara a medida, chamara a atenção para este lado do problema.
direto já referidos, envolve ainda outros aspectos: mobilização de capitais, Tomada em seu contexto mercantilista, a política manufaturei-
integração e expansão de mercados, liberação de mão-de-obra. ra da governação pombalina far-se-á acompanhar, evidentemente, d e
No que se refere à mobilização de capitais, indispensável à expansão toda uma série de providências de ordem administrativa, voltadas para
do comércio e ao fomento das manufaturas, é significativa a progressiva a imprescindível expansão e integração de mercados, tanto o interno ou
eliminação das diferenças entre cristãos-novos e cristãos-velhos. Aten- metropolitano, como os externos ou coloniais.
dendo aos argumentos de uma longa galeria de vozes eminentes, tais Em relação ao mercado metropolitano, essa política se expressa
como as do pe. Antônio Vieira, D . Luís da Cunha, Ribeiro Sanches e não apenas em termos de sua ampliação geográfica, mas, principalmente,
outros, o término daquela distinção, a par com a reforma do Santo Ofício pela superação de toda uma variada gama de obstáculos que, dificultan-
e sua submissão ao poder real absolutista,29 criava condições atraentes do a circulação de mercadorias, limitavam a potencialidade aquisitiva de
para o engajamento da "gente de nação" (categoria que na realidade quase determinadas parcelas da população e criavam óbices específicos com rela-
se confundia com os "homens de negócio") no próprio processo de cres- ção ao abastecimento dos núcleos urbanos maiores - Lisboa à frente dos
cimento econômico levado a cabo pelo governo pombalino.30 O alvará demais. Impunha-se a unificação econômica do território metropolitano,

27. Cf. Jorge de Macedo, op. cit., 195', pp. 210, 242, 2í7-ss., e Problemas de histórÚl da indús- 31. Cf. A. Delgado da Silva, Collecção da legislação portuguesa, 1830, v. ll ( .1 763 a 1774),
tria portuguesa no século XVIII, 1963, pp. ,89-ss. PP· 339-41.
28. Cf. Jorge de Macedo, op. cit., 19íl, pp. 250, 258. 32. Cf. Alvará de lei secretíssimo, í/10/ 1768 (manuscrito), in Francisco Manuel Trigoso de
29. Cf. J. Lúcio de Azevedo, História dos cristãos-noYosportugueses, 1921, pp. 346-ss.; Antônio Aragão Morato, Coleção da !egi,.,lação impressa e manuscrita, v. xvrn, doe. !í8; e A. J. Saraiva
José Saraiva, Inquisição e cristãos-novos, 1969, pp. 308,319. (op. cit., p. 311), que se engana em relação à data.
30. Sobre o influxo economicamente negativo da ação inquisitorial contra os cristãos-novos, 33. Cf. A. Delgado da Silva, op. cit., v. 11 , pp. 672-78.
ver Sônia A. Siqueira, "A inquisição portuguesa e os confiscas", 1970. 34. Cf. Testamento político de D. Luir da Cunha (circa t748), 1943, PP· 6o, 71-ss.

88
pela eliminação das barreiras e nivelamento das tarifas internas, a fim de Estabelecendo os referidos alvarás a livre circulação de mercado-
que fossem abertas novas oportunidades ao comércio de manufaturas e, 1lu~ entre o Algarve e as demais regiões metropolitanas, traduzem na

ao mesmo tempo, debeladas as dificuldades com que se viam a braços pl'ótica o que se poderia denominar uma faceta unificadora do mercan-
os produtos agrícolas do país. Explica-se, assim, que, em meio a política t lllsmo,39 que amplia o mercado e, ao mesmo tempo, elimina os resíduos
industrialista, tenha havido uma constante preocupação com os obstá- de origem feudal que impedem essa unificação.
culos ao trânsito interno dos frutos do trabalho metropolitano, mere- O esforço por integrar o mercado metropolitano envolvia ainda e
cendo, neste particular, uin destaque especial as medidas tomadas entre l'Oncomitantemente a defesa da capacidade de consumo de seus habitan-
1773 e 1774 com a finalidade de implementar a integração das regiões do 11.JS, o que significava o abrandamento ou a eliminação de certas formas

Alentejo e, particularmente, do Algarve ao espaço econômico lusitano, /'i;udais de exploração, responsáveis pela limitação daquela capacidade.
em consonância com a meta de unificação e constituição de uma econo- Nessa linha, citam-se os alvarás de 16/r/J773 e 4/8/r773,40 que busca-
mia nacional inerente ao próprio mercantilismo.35 vum eliminar "os censos e fôros usuários do Reino no Algarve" .
Verifica-se, portanto, com relação ao Alentejo em geral e, no nosso Com isso, tentava a administração pombalina ampliar o poder
caso específico, com relação ao Algarve, que, por intermédio da Carta uquisitivo de uma população agrícola esmagada em seus rendimentos
de lei de 4/z/i773,36 foram desenvolvidas e aprofundadas as medidas pelas exigências dos donatários. Dentro ainda da mesma política, loca-
do Alvará com força de Lei de 18/J/J773,37 em que se buscara facilitar lizar-se-ia o Alvará de Lei de 20/6h774,41 cujo objetivo precípuo "era
o comércio "dos frutos de primeira necessidade para a indispensável coibir os abusos dos senhores de terra do Alemtejo" - "donos de herda-
subsistência dos povos", facilitando-se ao máximo a sua entrada no des", que provocavam o empobrecimento das gentes do campo e, desse
Algarve, à qual se opunham até então "os abusos dos diferentes Forais" modo, reduziam em números absolutos e relativos as possibilidades
e "dos muitos exatores dos contratos estabelecidos para as arrecadações consumidoras do mercado interno.
dos diversos impostos pertencentes aos grandes e pequenos donatá- O exemplo do Algrave é evidentemente apenas um elemento, embo-
rios"; e para tanto elimina-se o pagamento de "muitos pesados direitos ra importante, no conjunto da política unificadora levada a efeito pelo
nas alfândegas, e casas de portagens e sisas" . mercantilismo na esfera metropolitana. Já com relação às áreas coloniais,
A introdução da Carta de Lei de 4/z/r773 é uma apologia da livre torna-se claro que a política mercantilista assume aí proporções muito
circulação dos produtos agrícolas e industriais, cujo exame mais acura- mais amplas e complexas, principalmente se lembrarmos a sua inclusão
do revela, contudo, tratar-se apenas de uma preocupação do legislador no próprio Sistema Colonial. Acreditamos porém que, na época pom-
com os benefícios que se supõem inerentes ao aumento da circulação balina, as companhias de comércio ofereciam um exemplo dos mais
mercantil;38 daí sua hostilidade a toda e qualquer sorte de obstáculos representativos da política de expansão e integração de mercados apli-
à entrada e saída das produções agrícolas e manufatureiras, invocan- cada ao Ultramar. Estimulando o desenvolvimento de certas áreas, decn-
do mesmo, nessa passagem, o exemplo da "bem regulada economia de dentes ou inexploradas, essas companhias receberam o direito exclusivo
todas as nações civilizadas". de comércio, incluindo-se aí o tráfico de escravos, e, em contrapartida,
coube-lhes reunir e canalizar os recursos financeiros indispensáveis à
política de fomento que deveriam empreender nas suas respectivas ireas.
35. Cf. P ierre Deyon, Le Mercantilisme, 1969, p. 21; e A. Fanfani, Storia economica, 1916,
O monopólio mercantil concedido aos membros das companhias era
pp. 366-ss.
36. Cf. A. Delgado da Silva, op. cit., v. n, pp. 641-48.
37· ld., PP· 644-41.
38. Visa a fazer com que "os frutos naturais, e industriais, que, sobejando em uns lugares, 39. Cf. E. F. Heckscher, La época mercantilista, 1943, pp. 17-ss.
constituem neles um cabedal inútil, e morto, possam renascer, e fazer-se lucrosos pela expor- 40. Cf. A. Delgado da Silva, op-. cir., v. u, pp. 640-43, 700-2.
tação para outros lugares, que deles necessitam" (A. De lgado da Silva, op. cit., v. n, p. 641). 41. !d., PP· 781-93.

91
a principal garantia dos investimentos realizados.42 Completando essa 11hia para abranger as áreas da Bahia e do Rio de Janeiro,48 não sendo de
política e constituindo, ao mesmo tempo, um de seus mais fortes pontos Nt' excluir a hipótese de uma retomada do antigo projeto de uma compa-
de apoio, encontramos o monopólio do fornecimento de escravos, a par- nhia para o comércio oriental. Tudo isso parece, portanto, indicar que
tir do qual se estruturou todo um complexo de relacionamento com as u concepção pombalina visava a enquadrar todo o comércio colonial
áreas fornecedoras situadas na costa ocidental da África.43 português nas órbitas das companhias monopolistas de comércio.
Exemplo marcante do que afirmamos é oferecido pela Companhia Conclui-se assim que, por meio das companhias, se promovia a
Geral do Grão Pará e Maranhão, em cuja estrutura e atuação encon- t•xpansão das atividades mercantis, em íntima conexão com o aumento
tramos os aspecros básicos da política mercantilista aplicada ao comér- du produção e do consum o essenciais ao escoamento de uma enorme
cio colonial. 44 Atuando em outra área, tradicionalmente rica por sinal, vuriedade de artigos da indústria metropolitana e, em menor escala, de
embora sofresse nesse período os efeitos da conjuntura internacional Hua agricultura, para as áreas coloniais. Parece certo que coube às com-
desfavorável, a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba empenhou- panhias pombalinas complementar nas suas respectivas áreas de atua-
se na execução de uma política que, em suas grandes linhas, tentava ção a política mercantilista de fomento industrial, posta em prática na
reproduzir o padrão geral da sua congênere do Norte. Todavia, a diver- Metrópole, mediante o exclusivo imposto aos mercados coloniais.
sidade das estruturas socioeconômicas entre uma e outra região fez com Mobilização de capitais, expansão e integração de mercados: libe-
que, no Nordeste, o monopólio das importações e exportações e do trá- ração de mão-de-obra para a oferta de trabalho nacional insere-se nesse
fico negreiro assumisse dimensões bem mais consideráveis, tornando quadro e é em tal contexto que pensamos se deva analisar a legislação
evidente a disparidade entre os recursos disponíveis e a magnitude dos pombalina relativa aos escravos na Metrópole e no Ultramar.
problemas a enfrentar e dos objetivos colimados. 45 Apenas iniciado o período pombalino, já em 1751 um Alvará em
Não resta dúvida, pois, de que, na política pombalina, a idéia de forma de lei proíbe, com penalidades severas, a extração de negros do
criação de companhias privilegiadas de comércio, no melhor estilo das Brasil para outras colônias, ou melhor, colônias de outras metrópoles:49
potências marítimas mais prósperas da Europa,46 era uma preocupação tendo conhecimento, diz o texto legal, da
constante, bastando lembrar o projeto de uma "Companhia da Índia
Oriental", encaminhado e recomendado por Sebastião José de Carvalho [...) grande desordem com que no Brasil se estão extraindo, e passando
e Melo, ainda na década de 1740. 47 Além das do Grão Pará e Maranhão e negros para os Domínios que me não pertencem, de que resulta um no-
Pernambuco-Paraíba, cogitou ainda Pombal criar uma terceira campa- tório prejuízo ao bem público e à minha real fazenda (determina que] se
não levem negros dos portos do mar para terras, que não sejam dos Meus
Reinos Domínios; e constando o contrário se perderá o valor do Escravo
42. Cf. Anhur César Ferreira Reis, "O comércio colonial e as companhias privilegiadas", em tresdobro, a metade para o denunciante, e a outra para a Fazenda Real,
196o, pp. 327-ss. e os réus de contrabando serão degradados por dez anos em Angola.
43. Cf. Antônio Carreira, As companhias pombalinas de navegação, comlrcio e tráfico de escra-
vos entre a Costa Africana e o Nordeste hrasileiro, 1969. O objetivo da medida parece claro, e se enquadra nas linhas da política
44. Sobre a ação da Companhia no None brasileiro, ver Manuel unes Dias, A Companhia
do Grão-Pará e Maranhão, 1971.
mercantilista que se ia cristalizando em Portugal: visava-se a preservar
4 5. Cf. José Ribeiro Júnior, Política económica para o Brasil: a legislação pomóalina, 1969, pp. o bom abastecimento da Colônia em escravos, condição de funciona-
72-4. Sobre a companhia de Pernambuco e Paraíba, prepara tese o professor José Ribeiro mento do Sistema Colonial; dificultava-se, ao mesmo tempo, o aprovi-
Júnior, a quem devemos as observações acima.
46. Cf. E. L. J. Coornaert, "European Economic lnstitutions and the New World: The
Chartered Companbies", 1967, PP· 220-74. 48. Cf. J. Lúcio de Azevedo, op. cit., 1943, p. 435.
47. Cf. Biblioteca Nacional de Lisboa, Reservados, coleção Pombalina, côd. 73l, fls. 3-8; J. 49. Alvará em forma de lei de 19/ 10/ 17;1 (cf. A. Delgado da Silva, Suplememo à Collecçâo
Lúcio de Azevedo, op. ci r., 1922, p. 13. da Legislação Portugu&a (17So-r820), 1842, v. 1 ( 1750-1762), pp. 111-2.

9z 93
r

sionamento das alheias colônias, o que se ajusta à aguda concorrência outra alguma carta de manumissão, ou alforria, nem de outro algum des-
colonial do século XVIII. pacho, além das certidões dos administradores e oficiais das alffindegas dos
Em Macau, entreposto comercial encravado na China, o problema lugares onde portarem.51
apresentava-se de forma inteiramente diversa. Ali, a escravização dos
nativos não só não tinha nenhum significado econômico para a Metrópole ( )8 " referidos termos" eram os prazos estabelecidos para o cumprimen-
(seria escravidão doméstica), como também poderia criar dificuldades to da lei: seis meses para os portos da América e da África, um ano para
diplomáticas com o Celeste Império, então sob o domínio dos mandchus. o M portos da China. Os emolumentos das certidões corriam por conta
Em 1758, por isso, uma carta régia50 inibe o cativeiro dos chins. Tal cati- ''tios donos dos referidos pretos, ou das pessoas, que os trouxeram na sua
veiro, diz, "não podia deixar fazer a Religião Cristã odiosa naquelas co mpanhia". E se por acaso se burlasse a lei dilatando-se o prazo dus
regiõ es", e isto seria "absurdo abominável". certidões, "recorrerão os que se acharem gravados aos Juízes, o Justiça
Se a religião cristã ficaria odiosa na África de onde se tiravam os das respectiv as terras, que nelas tiveram jurisdição ordinário, puro que
negros, ou na América Portuguesa para onde eram levados, não cogi- qualquer deles passe as ditas certidões". Mais ainda csrnbclccia (!Ué
tam os textos setecentistas da legislação. O que mostra, aliás, que n ão
eram princípios éticos, mas a razão do Estado, que orientava a política [...] a todas e quaisquer pessoas:, de qualquer estudo, e condlçDo que se-
ultramarina. D omínios de diferente natureza, nos extremo s do impé- jam, que venderem, comprarem, ou retiverem na suu sujclç, o, e Hcrvlço,
rio - uma extensa plantation tropical de exploração, um entreposto de contra suas vontades, como escravos, os pretos, ou pretos, qu(• clw~ltl'Cm
comércio - exigiam soluções divergentes. a estes Reinos, depois de serem passados os referidos termo~, NC lmpo•
Com o mesmo realismo, foi encarada a presença de escravos na nham às penas, que por direito se acham estabelecidas, contra o~ que fu.
Metrópole. E aqui nos reencontramos com a política industrialista, zem cárceres privados, e sujeitam a cativeiro homens, que silo livre~.
pedra angular do mercantilismo pombalino: ao mesmo tempo em que
importava incentivar a economia colonial, e para tan to prover o abas- No texto legal, a justi.ncativa da medida expressa-se como 8CI-Çt1C:
tecimento de escravos à colônia americana, era importante extinguir a
escravidão, ainda que marginal, na Metrópole. O fomento da exploração (...] sendo informado dos muitos, e grandes inconvenientes que 1•cfft1liorn
colonial, empreendido por meio das companhias de comércio, ampliava do excesso, e devassidão, com que contra as Leis, e cosrum t•11 du outrus
o mercado consumidor p ara as renascentes manufaturas portuguesas; a Cortes polidas se transportam anualmente da África, Amél'icn e Áal11, purti
libertação dos escravos em Po rtugal tendia a dar flexibilidade ao merca- estes Reinos um tão extraordinário número de Escravos prew~, JIUC fa-
do de trabalho, indisp ensável ao incremento industrialista. zendo nos Meus Domínios Ultramarinos uma sensível folrn pu1•011 culrurn
Assim, o primeiro ato da legislação pombalina referente à escrav i- das Terras, e das Minas, só vem a este Continente ocupor o~ lugure8 dos
dão no Portugal metropolitano (Alvará com força de lei de 19 de setem- moços de servir, que ficando sem cômodo, se entregnm ~ ociosldncle, e se
bro de 1761) proíbe o transporte, dos portos da América, d a Ásia e d a precipitam nos vícios, que dela são naturais conseqU0ncio~ 1... J.
África para Portugal e Algarves, de pretos e pretas,
São, portanto, três os argumentos invocados p e lo lcgislndor: primeiro,
[...] ordenando que todos os que chegarem aos sobreditos Reinos, depois o exemplo da Europa Ilustrada; segundo, o desfalque que o lranspo rte
de haverem passado os referidos Termos, contados do dia da publicação de escravos para Portugal impunha à lavoura e à minernçflo cio Brasil;
desta, fiquem pelo benefício dela libertos, e forros, sem necessitarem de

11. Alvará com força de lei de 19/9/1761. Cf. A. Delgado dn Silvo, op. cic., 1830, v. 1, PP·
50. Carta Régia de 20/3/1758. Cf. A. Delgado da Silva, op. cit., 1842, v. 1, pp. 507-8. 811-12.

94 9í
t •reci ro, o desemprego que a presença de escravos provocava na Metró- Mantinham-se, pois, os escravos já existentes, mas se proibia a
pole, e a ociosidade e os vícios. vl11du de novos contingentes.
A primeira razão envolve nítida incidência das Luzes, a atestar o Algumas dificuldades causariam, é certo, à navegação luso-brasi-
esforço de modernização que já indicamos característico do consula- lt,l ru, essas determinações de 1761. Tanto assim que se procurou burlá-
do de Pombal. O segundo motivo parece pouco convincente: o tráfico 111~ com especiosa casuística: como a Lei referia-se a "pretos e pretas",
negreiro era via de regra movimentado por mercadores metropolitanos, passaram a utilizar escravos mestiços, mulatos e mulatas. Com o que se
e provocava boa margem de acumulação de capitais; se a colônia care- lum introduzindo de novo no Reino os cativos. Atestam-nos dois avisos
cesse de escravos, ampliava-se por conseqüência a margem de ação desse tlc 1.767, um dirigido à Casa da Índia, outro à Alfândega de Lisboa.53
setor do comércio português. Nesse caso, proibir-se-ia o transporte de Explicita-se e ntão que o determinado se aplicava a quaisquer cativos,
escravos do Brasil, mas não da África, para Portugal. Tomar, pois, esta uté porque não seria justo "que ficando os pais e mães, sendo pretos,
alegação como a razão explicativa do ato, como o fez Lúcio de Azevedo,52 livres e forros por benefício do mesmo Alvará, fiquem os filhos escra-
afigura-se-nos leitura porventura menos crítica do texto de lei, em que vos". Assim nenhuma dúvida poderia deveras pairar sobre a vontade
tal justificativa ocorre talvez mais com vistas a atrair simpatias dos colo- soberana do legislador.
nos luso-brasileiros empenhados na grande lavoura e na mineração. O O passo final do programa pombalino de libertação foi dado em
último considerando parece, portanto, essencial, e aponta para a cone- 1773. O Alvará de 16 de janeiro deste ano54 encaminha a extinção total
xão que estamos estabelecendo com a política industrialista. Os escravos da escravatura, naturalmente com a costumeira mode ração. Começa
vinham ocupar o lugar de trabalhadores livres, que ficavam desemprega- por constatar a incômoda persistência dos cativos, descendentes dos
dos, promovendo o ócio. Ora, isso contrariava o esforço manufatureiro africanos, muito deles mestiços claros:
em vários sentidos: desempregados, os portugueses livres não ganhavam
salários, o que restringia o mercado interno; no seu lugar, os escravos, [...] em todo o Reino do Algarve, e em algumas Províncias de Portugal,
sem poder aquisitivo, eram neutros com relação à procura interna. Além existem ainda Pessoas tão faltas de sentimento de Humanidade e de Reli-
disso, o ambiente viciado pela ociosidade acentuava o desprezo pelo tra- gião, que guardando nas suas casas Escravas, umas mais brancas do que
balho manual, outro entrave ao fomento industrialista. eles, com os nomes de Pretas, e de Negras; outras Mestiças; e outras verda-
Ilustrada, porém mercantilista, nada tinha de radical a legislação deiramente Negras; para pela repreensível propagação delas perpetuarem
pombalina; e essa moderação expressa-se no Alvará de 1761: os Cativeiros por um abominável comércio de pecados, e de usurpações
das liberdades dos miseráveis nascidos daqueles sucessivos, e lucrosos
(...] não é, porém da Minha Real intenção, nem que a respeito dos Pretos, concubinatos, debaixo do pretexto de que os ventres das Mães Escravas
e Pretas; que já se acham nestes Reinos; e a eles vierem dentro dos re- não podem produzir Filhos livres conforme o Direito Civil [...]
feridos Termos, se inove cousa alguma, com o motivo desta Lei; nem
que com 'o pretexto dela desertem dos Meus Domínios Ultramarinos os o que indica que, cortad a a fonte de suprimentos, tratavam os possuido-
Escravos, que nele se acham, ou acharem; antes pelo contrário Ordeno, res da mercadoria humana de prover a sua reprodução, com as misérias
que todos os Pretos, e Pretas livres, que vierem para Estes Reinos vi- decorrentes.
ver, negociar, ou servir, usando da plena liberdade, que para isso lhes
compete, tragam indispensavelmente Guias das respectivas Câmaras dos
lugares donde saírem[...].

í3• Avisos de 2h/i767 (cf. A. Delgado da Silva, op. cit., , 830, v. II [ 1763-1790), pp. 1a8•a~),
í4- Al vará com força de lei de 16/ 1/1 773 ( cf. A. Delgado da Silva, op. cit., 1830, v. 11 [ 1711 1
12. Cf. J. Lúcio de Azevedo, Novas epanáforas: estudos de histón"a e lit.eratura, 1932, p. 46. 1774], pp. 639-40 ).

97
O governo pombalino, entretanto, vê aí um abuso que impendia são mais uma vez chamados a chancelar a determinação legal. Igual-
atalhar: mente, a crítica ao direito romano indica nesse m esmo sentido, pois
corre na linha aberta pela famosa Lei da Boa Razão,55 umas das peças
[...] não permitindo, nem ainda o mesmo Direito, de que se tem feito um fundamentais do iluminismo pombalino.
tão grande abuso, que aos Descendentes dos Escravos, em que não há Por outro lado, não se deixa de considerar, além da
mais culpa, que a da sua infeliz condição de Cativos, se estenda a infâ-
mia do Cativeiro, além do termo, que as Leis determinam, contra os que [...] grande indecência, que as ditas Escravidões inferem. aos Meus
descendem dos mais abomináveis Réus, dos atrocíssimos crimes de lesa Vassalos [...] os prejuízos, que resultam ao Estado, de ter tantos Vassalos
Majestade Divina ou Humana[...] lesos, baldados, e inúteis, quantos são aqueles miseráveis que a sua infeliz
condição faz incapazes para os Oficios públicos; para o Comércio; pora a
configurava ilegalidade a atuação dos procriadores. Princípios jurídicos, Agricultura; e para os tratos, e contratos de todas as espécies.
diga-se de passagem, que nem de leve se imaginava aplicar na Colônia,
o que mostra mais uma vez que as normas éticas eram manipuladas em Por onde se vê mais uma vez a preocupação de engajar a população pro-
função de razões outras, de natureza econômica e política. Para a Amé- dutiva em trabalho remunerado, o que indica a correlação com a política
rica Portuguesa deviam ir, e não sair, os escravos: a lavoura e as minas o de fomento à indústria, como já indicamos. Realme nte, para uma eco-
exigiam. Para a Metrópole, porém, de que trata o texto, ordenava-se nomia que abria caminho na rota capitalista, os escravos eram um entra-
ve; não dispondo de remuneração monetária, não entram diretame nte
[...] quanto ao pretérito, que todos aqueles Escravos, ou Escravas, ou na procura interna, e impedem que outros o façam; e sua condição os
sejam nascidos dos sobreditos concubinatos, ou ainda de legítimos Matri- impede, além disso, de quaisquer "tratos e contratos": não participam
mônios, cujas Mães e Avós são, ou houverem sido Escravas, fiquem no também da oferta de mão-de-obra para as novas tarefas exigidas pelo
Cativeiro, em que se acham, durante a sua vida somente: Que, porém desenvolvimento ecohômico. Apesar da pequena expressão numérica,
aqueles, cuja escravidão vier das Bisavós, fiquem livres, e desembar- sua libertação era, pois, uma exigência da política industrialista.
gados, posto que as mães e avós, tenham vivido em cativeiro: Que Consentânea; portanto, com o conjunto da política industrialista do
quanto ao futuro, todos os que nascerem do dia da publicação desta Lei mercantilismo pombalino, a libertação da escravatura foi levada a efeito
em diante, nasçam por benefício dela inteiramente livres, posto que as em Portugal de forma gradual, mas persistente. Seus resultados devem-
Mães e Avós hajam sido escravas: e que todos os sobretidos por efeito se medir, também, no andamento do surto manufatureiro, que prospe-
desta minha paternal e pia providência libertados, fiquem hábeis para to- rou a partir de então até o :final do Antigo Regime, ou pelo menos até as
dos os Ofícios, honras e dignidades, sem a Nota de libertos, que a supers- invasões napoleônicas. Cumpre ainda chamar a atenção para um último
tição dos Romanos estabeleceu nos seus costumes, e que a União Cristã, aspecto. O fomento industrialista é mais característico da última fase
e a Sociedade Civil faz hoje intolerável no Meu Reino, como tem sido em da governação pombalina56 e a legislação anti-escravista começa, como
todos os outros da Europa. vimos, em 1761. Todavia, convém notar que essa mesma caracterização
das fases do consulado do conde de Oeiras faz-se em termos de acentua-
Era, pois, uma espécie de "lei do ventre Livre" a que se decretava então, ção de tendências e não de sua exclusividade. Assim, no final dos anos
bem como a de 1761 configurava uma "supressão do tráfico", e foi por 1760 aceleram-se as medidas de estímulo manufatureiro, mas a política
meio delas que enfim se extinguiu em Portugal a escravatura.
A mentalidade ilustrada reponta mais uma vez neste texto de 1773, , 55. Cf. José Homem Correa Telles, Comentário crítico à Lei da Boa R a1_iw, 1865.
pois é a "sociedade civil", são os foros da civilização que fizeram into- 56. Cf. Jorge de Macedo, " Portugal e economia pombalina: temas e hipóteses", 1954,
lerável no reino a presença dos escravos; e os outros Estados da Europa pp. 8 1-100.

99
industrialista pode-se dizer que cobre todo o período e mesmo remonta " requerimento de Mário Freitas Antunes, homem preto", discutido em
à época de D. João v. Há pois uma continuidade no esforço, como aliás consulta de 26/6/J795.59
o demonstrou o próprio Jorge de Macedo, sendo que na última fase se Este escravo fora enviado a Portugal em 1786, e ali declarado forro e
acentua o estímulo à indústria. Trata-se, portanto, de uma política por livre de toda escravidão, recebendo carta de liberdade. De volta ao Brasil,
etapas. Assim também a supressão do escravismo acompanhou essas dirigindo-se a Pernambuco, a sumaca em que viajava passa pelo Maranhã?,
etapas; no primeiro momento, quando o esforço em prol das manufatu- onde o antigo senhor - Feliciano dos Santos - o põe de novo a ferros. E
ras ainda não era a nota dominante, corta-se o t ráfico para Portugal; em denunciado, porém absolvido por ignorância. O ex-escravo requer então
1773, em pleno auge do fomento industrial, completa-se a extinção da que a rainha reforme a sentença, e mande à prisão o atrabiliário Feliciano.
escravatura. Parece-nos, pois, legítima a correlação que apresentamos, O parecer entretanto considera "vingativa" a pretensão, opinando pela
e que indica o significado da eliminação dos escravos em Portugal. manutenção do julgado. Aliás, três anos depois, reencontramos o mesmo
É claro, porém, que tais medidas teriam de provocar alguns desequi- Feliciano dos Santos envolvido em idêntico delito, como se vê da consulta
líbrios. Eles foram mais sensíveis no Alentejo, cuja estrutura agrária com ele 10/9/r798.60
base na grande propriedade devia atrair mais do que qualquer outra pro- Exemplo ainda mais significativo é o ofício do Intendente Pina
víncia portuguesa a presença de cativos. Já vimos que, segundo Francisco Manique ao ministro do Ultramar, Martinho de Mello e Castro, datado
Antônio Correia, ali existiam, na segunda metade do século xvm, cerca ele 26h/r79r. Ali se narra que "dous pretos, que tinham vindo ao porto
de quatro ou cinco mil escravos. Refere-se esse mesmo historiador a uma desta Corte com a tripulação de um navio francês" foram embriagados e
"crise nos trabalhos rurais", o que talvez seja exagerar os efeitos da supres- "surreticiamente" embarcados num navio de Pedro Nolasco para serem
são do cativeiro. De qualquer forma, no reinado de D. Maria 1, fez-se des- vendidos como escravos no Pará - tudo obra de "um tendeiro com loja
viar para aquela província a emigração que antes se dirigia para a América, de mercearia a São Roque". No Pará, "exclamando eles os miseráveis o
e mesmo se canalizou para lá a fixação de 450 famílias de açoreanos. 57 terem-lhes praticado esta violência, se acham por autoridade da justiça
Quanto à aplicação das determinações relativas ao alforriamento em casa de Domingos José Frazão".
dos escravos chegados ao Portugal metropolitano, algumas consultas Requer, pois, que o ministro providencie ordens ao governador para
do Conselho Ultramarino atestam-nos que elas não ficaram letra mo rta. remeter de volta os pretos, e no primeiro navio,
Assim, por exemplo, em 1795,58 quando um certo Marçal José de Araújo,
morador em Vila Rica na Capitania de Minas Gerais, solicitou licença a fim de resgatar estes miseráveis das opressões que se lhes tem feito, e
"para se transportar a esta Corte, ou à cidade do Porto, com sua mulher, poder indenizá-los dos jornais que tenha a tenção de lhes fazer pagar [...]
duas filhas, e duas criadas pretas", o procurador da Fazenda, chamado e arbitrar-lhes mais, a título de ajuda de custo, cousa com que os mesmos
a opinar, foi de parecer que, quanto à mulher e filhas, bastava à licença escravos possam ser satisfeitos da injúria e dano.
do governador, no que dizia respeito às escravas devia-se observar o
Alvará de 19/9/r761. O conselho, encaminhando a consulta, explicita Quanto ao tendeiro, mandara-o prender o inflexível intendente: "e não
que, em Portugal, elas deveriam gozar de liberdade; e a decisão régia faço tenção de soltá-lo, sem que cheguem os mesmos escravos a Lisboa,
("como parece") ratifica esses preceitos. para dar um bom exemplo por este modo.
Ao contrário do que à primeira vista fora de supor, parece que Com relativa presteza, juntando cópia do oficio, dirigiu-se o ministro (car-
os escravos, por seu turno, tomavam conhecimento das novas leis, e ta de 2/3 li 71 1) ao governador do Pará, determinando aquelas providências.61
reivindicavam sua aplicação. É o que transparece, de certo modo, no

!9· Consulta de 20/6/ t795, in A.H.u ., Lisboa, cód. 70, fls. 107-10.
57. Cf. Francisco Antônio Correia, op. cit., p. 95. 60. Consulta de 10/9/1973, in A.H.u., Lisboa, cód. 7 1, fls. 88-89 v.
58. Consulta d e 8h/i795, in A.H.u., Lisboa, cód. 70, fl. 113 v. ~ 1. Cf. A.H.u ., Lisboa, cód. 588, fls. 52-3.

100 101
O empresário Ratton, entretanto, o considerava vagaroso no expediente.62 seqüência, que não se aplique o alvará de libertação aos escravos que
Difícil apurar se a rapidez de Martinho de Mello e Castro deveu-se à vontade "sejam matriculados nas listas das equipagens", contando que voltem
de desagravar os negros ou ao desejo de ver solto o lojista. para os portos de origem, "sem que por título algum se estabeleçam, e
Fortuna parecida tiveram Domingos Joaquim, Manuel Dias, José íiquem demorando no Reino em estado de escravidão".
Dias e Ventura José da Cunha, "homens pretos da Vila de Parnaíba": A partir do fomento industrial do mercantilismo pombalino, devi-
enviados como marinheiros para Portugal, foi o navio apresado por damente interpretado, pode-se compreender a extinção da escravatura
corsários franceses, que os levou para Caiena, onde foram libertados. no Portugal metropolitano, ao mesmo tempo em que se incentiva o
Voltando ao Pará, quis o antigo senhor reduzi-los de novo à situação abastecimento de escravos ao Brasil-colônia. O ajustamento das duas
escrava, ao que se opôs o governador, que os enviou à Metrópole; soli- diretrizes criava certas dificuldades, pois, ao decretar-se a libertação de
citaram então licença para viverem livres na América.63 Um aviso de negros aportados na Metrópole, dificultava-se a navegação e portanto o
25/J/J799 de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro do Ultramar, comércio entre Brasil e Portugal. Por outro lado, sem aquela deliberação
informa-nos que Sua Majestade resolvera "usar com eles da sua Real seria difícil impedir a presença dos cativos no próprio reino. A legislação
benignidade", mandando, outrossim, que "se pagasse pela sua Real Fa- pombalina procurou equacionar em função de sua polí.tica industrialista
zenda aos antigos senhores dos ditos pretos o seu justo valor" .64 e colonialista esses aspectos, harmonizando-os. Iniciou-se em 1751 por
Tais exemplos mostram como essas leis foram de fato aplicadas garantir o abastecimento de escravos à Colônia - as leis de 1761 e 1773
- o poder monárquico procurava conter e equilibrar os interesses e as declararam livres os escravos aportados no reino, suprimindo a escra-
forças em choque. O que também se pode ver nesses poucos casos que vidão; finalmente, o Alvará de 1800, para além do período pombalino,
localizamos é que os escravos eram utilizados nos ofícios de marinheiro, procurou estabelecer o equilíbrio, autorizando a presença de negros
parece que com muita freqüência, apesar dos riscos que corriam os pro- escravos apenas quando matriculados nos navios de carreira.
prietários. Desse modo, criava-se um autêntico círculo vicioso para a
política econômica portuguesa: já vimos que, centrada no esforço indus-
trialista, ela postulava ao mesmo tempo a extinção de escravos em Por-
tugal e a expansão da exploração colonial e, portanto, a intensificação
do comércio colônia-metrópole. Ora, declarar a libertação de quaisquer
escravos chegados aos portos metropolitanos acabava por dificultar a
navegação entre Portugal e Brasil. Entende-se que o equilíbrio se tenha
restabelecido enfim com o Alvará de 10/3/J802,65 no qual se consta:
"os embaraços, que desde a publicação do Alvará de r9/9/i761 se tem
posto nos portos dos Meus Domínios Ultramarinos a virem escravos a
estes Reinos, no exercício de marinheiros"; e se observa que "dos refe-
ridos escravos se podem tirar marinheiros hábeis, e peritos, com que se
facilite a navegação, e promova o comércio", determinando, em con-

62. Cf. J. Ratton, op. ciL, p. 244.


63. Consulta de 22/11 /J798, in A.H.u., Lisboa, cód. 71, fls. 101 v. - 103 v.
64. Cf. A.H.u., Lisboa, cód. 10, fl. 72.
65. Alvará de Declaração de 10/3/,800 (cf. A. Delgado da Silva, op. cit., 1830, v. 1v [179 1-
18ot], p. 611).

'!02 103

Você também pode gostar