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Unidade II

Unidade II
5 STORYTELLING E NARRATIVA JORNALÍSTICA

5.1 Narrativa jornalística e narrativa literária

Até aqui, abordamos especialmente as narrativas literárias. Isso se justifica porque, em termos de
composição estética, elas têm destaque.

No entanto, no nosso dia a dia, predominam inúmeras narrativas não literárias: pessoais, institucionais
ou midiáticas. Nas narrativas midiáticas, incluem-se as narrativas jornalísticas e publicitárias.

Neste item, abordaremos a narrativa jornalística em seus diferentes formatos. No jornalismo, as


notícias e, especialmente, as reportagens apresentam estrutura narrativa.

Observação

Há textos jornalísticos que apresentam estrutura expositiva ou estrutura


argumentativa, como se vê em editoriais e artigos, por exemplo.

A narrativa é a essência do jornalismo. Nas palavras de Ricardo Kotscho (1990, p. 82), o “repórter, no
fundo, é isso, um contador de histórias da vida presente”.

Observação

Informar e comentar são duas funções básicas do jornalismo. Com base


nessas funções, são definidos os gêneros jornalísticos.

Assim, falar de storytelling nessa área deveria ser quase um pleonasmo. No entanto, isso não ocorre
porque o modo de produção industrial transformou o texto jornalístico em informação objetiva.

Nas palavras de Walter Benjamin (1994, p. 203),

cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto,


somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já
nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase
nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a
serviço da informação.
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STORYTELLING

Portanto, na visão do filósofo e crítico literário, o jornalismo, a serviço da informação, estaria


matando a narrativa. Repare que esse texto de Benjamin foi escrito em 1936.

Na sua perspectiva, a magia da narrativa tradicional estaria em queda porque a informação aspira a
uma verificação imediata e a arte de narrar consiste precisamente em evitar explicações.

De fato, no século XX, assistimos à padronização dos textos informativos da imprensa. A adoção de
manuais de redação, com a introdução do lead e da pirâmide invertida, padronizou a forma de se relatar
um acontecimento.

Observação

O lead, que ocupa o início da notícia, apresenta ao leitor os elementos


essenciais do fato: o quê, quem, quando, onde, como e por quê.

O formato de pirâmide invertida consiste em começar o texto pelo mais


importante. Trata-se de uma hierarquização que prevê que, mesmo se o leitor
parar de ler a notícia no meio, ele já terá as informações mais relevantes.

O Brasil aderiu aos manuais de redação e aos paradigmas norte-americanos


na década de 1950.

Essa padronização faz com que o texto noticioso não seja envolvente, não desperte no leitor o prazer
da leitura, mesmo que haja boas histórias para contar. Na verdade, podemos dizer que as histórias a que
o jornalismo tem acesso são inúmeras e ricas, mas o modo de contá-las tornou-se pobre. Em outros
termos, em muitos casos, temos a story, mas é necessário trabalhar o telling.

Palacios e Terenzzo (2016) comentam que o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, no posfácio
de A morte e a morte de Quincas Berros d’Água, de Jorge Amado, revelou que os fatos do livro eram
reais e que haviam sido noticiados pelos jornais. No entanto, como matéria jornalística, a história não
despertou interesse. Foi necessário o talento literário de Jorge Amado para dar vida a ela.

Observação

A notícia, enquanto formato padronizado do gênero informativo, não


pode ser entendida como uma narrativa no sentido que temos trabalhado
neste livro-texto. Ela conta um fato e apresenta todos os elementos como
pessoas, tempo e espaço, mas sua forma peculiar de relatar a distancia
da narrativa literária a que temos nos referido neste material. Trata-se
de um relato que não segue a estrutura clássica: apresentação, conflito,
clímax e desfecho.

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Na década de 1960, jornalistas e escritores norte-americanos, em reação ao texto objetivo e


padronizado, lançaram as bases do que ficou conhecido como new journalism.

Gay Talese, Tom Wolf, Norman Mailer e Truman Capote foram nomes de destaque nessa vertente.
A ideia era aliar técnicas de apuração jornalística com os recursos narrativos da literatura. O new
journalism alterou as rotinas produtivas, pois exigia apuração cuidadosa e demorada, com a observação
participante do repórter a fim de se extraírem os sentimentos dos personagens, descrever cenários e
reações e recriar diálogos. Além disso, pressuponha grande trabalho estilístico do texto.

São inegáveis as aproximações entre jornalismo e literatura, a tal ponto que se fala em jornalismo
literário. Como afirma Marcelo Bulhões, a narratividade está “intimamente vinculada à necessidade
humana de conhecimento e revelação do mundo ou da realidade” (BULHÕES, 2007, p. 40).

Lembrete

Narratividade é a qualidade de contar algo por meio de uma sucessão


de estados de transformação.

Saiba mais

Sobre o tema, leia:

PENA, F. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2006.

BULHÕES, M. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo:


Ática, 2007.

Como ressalta Antonio Candido (2011), a literatura é essencial para humanizar e desenvolver o
imaginário, a fantasia e os pensamentos. Ela permite que conheçamos melhor os outros, estimula a
empatia. Essas funções também podem, em certa medida, ser desempenhadas pelo jornalismo, se ele
não se limitar ao texto burocrático, meramente informativo.

Nas décadas de 1960 e 1970, José Hamilton Ribeiro ganhou sete vezes o Prêmio Esso, a maior
condecoração do jornalismo brasileiro, por contar histórias do dia a dia dos brasileiros comuns e,
paradoxalmente, praticamente desconhecidas.

Ribeiro também produziu inúmeras grandes reportagens relacionadas a acontecimentos mundiais.


Em 1968, na Revista Realidade, fez a cobertura da Guerra do Vietnã. Lá, pisou em uma mina e se feriu a
ponto de ter a perna amputada.

Leia um trecho de uma das reportagens produzidas por ele.

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Guerra é assim

A operação começa. Um vietnamita pequenino, com uniforme do Exército americano, é


o espião que diz ter descoberto o esconderijo vici. Leva-nos em fila indiana, pelos caminhos
mais difíceis. Passamos por baixo de imensas moitas espinhentas, atravessamos rios com
água pelo peito, rompendo quilômetros de brejo, empapando a roupa de lama. Caminhamos
sob tensão e suspense: se houver de fato subterrâneo vietcong, por certo haverá luta. Eles
não deixariam sem guarda uma posição tão preciosa. Sinto muito medo. Uma mina é
descoberta e o pavor aumenta: é sinal de presença do vici. Em todos os rostos a angústia
faz a sua marca.

A uma hora, depois de quatro de caminhada, o espiãozinho confessa que se confundiu


e errou o caminho. Está perdido: só pode orientar-se de novo se voltar ao ponto de partida.
A operação é adiada para outro dia e isso provoca grande alegria em todo mundo.

O capitão recebe pelo rádio aviso de que os helicópteros chegarão para levar, às pressas,
a Companhia D para a ponte de Quang Tri. Há informação de que o vietcong está minando.
Em cinco minutos, pousam dois helicópteros grandes, barrigudos, de duas hélices, e três dos
pequenos. A companhia inteira se acomoda – nós também – e vamos rapidamente para
a ponte ameaçada. O desembarque é febril, todo mundo de arma embalada e disposição
de combater. Quinze minutos depois tudo se acalma; a informação era falsa. Voltamos ao
acampamento e minha calma dura pouco: o Serviço de Inteligência informa que hoje os
morteiros cairão sobre nós. Recebo orientação para, ao primeiro aviso, correr para os abrigos
subterrâneos e ficar até que venha a ordem de sair.

Com tal notícia, dormir não é fácil. De madrugada, ouço um barulhão. Quero correr para
o subterrâneo, mas me mantenho; todo mundo dorme tranquilamente, não é possível ser
bombardeio. Ansioso, aguardo um pouco para acostumar bem os ouvidos. E fico sem graça:
o barulho era de trovão. Logo depois, a chuva cai sobre o acampamento. A informação sobre
os morteiros também era falsa.

Nota da Redação – No dia seguinte, Hamilton Ribeiro interrompia suas anotações


na linha de frente: uma mina vietcong arrancou-lhe a parte inferior da perna esquerda.
Realidade já publicou, no número de maio, o que foram as duas semanas de sofrimento
vividas por seu repórter no front vietnamita. Agora, Hamilton Ribeiro prepara-se para deixar
os Estados Unidos, onde esteve em tratamento antes de receber uma perna mecânica.

Fonte: Ribeiro (s.d.).

Repare que o narrador é em primeira pessoa, fato pouco comum em reportagens que procuram
criar efeito de objetividade. No caso, a escolha da perspectiva de quem narra é fundamental, pois a
experiência do repórter no campo de batalha é extremamente relevante para a matéria.

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Observação

O texto informativo do jornalismo tem como padrão o uso do narrador


observador (3ª pessoa).

Atualmente, Eliane Brum é um dos nomes de destaque na arte de revelar histórias de personagens
anônimas. Leia como exemplo o texto a seguir.

O Exílio

Elas vivem uma ao lado da outra. Uma em cada cama. Duas ilhas que não se tocam. Há
algum tempo Vany nem mesmo enxerga Celina. A artrite que lhe devora as articulações não
permite que mova o pescoço para a esquerda. Celina vislumbra o perfil de Vany, mas tem o
olhar eclipsado pela janela da rua.

Duas mulheres em uma geriatria. Exiladas.

Duas náufragas que decidiram expor suas almas na antessala do esquecimento.

Antes de Vany Pontes chegar à geriatria, quatro anos atrás, Celina Costa teve outras três
vizinhas de cama. Uma morreu e as outras se mudaram.

Então Vany chegou. Desde o primeiro segundo, compreendeu a vista que teria pelo resto
dos dias. A porta entreaberta da sala. Foi isso que aterrorizou Vany. Aquele mundo de velhos.
Um sentado ao lado do outro. Mas sem se tocarem, sem conversarem. Exilados do outro,
exilados de si mesmos. A TV ligada o dia inteiro, mas sem perceberem. Esperando pelo café,
pelo almoço, pelo jantar. Pelo lanche.

Um dia perguntaram a cada um o nome dos colegas de sofá. Nenhum sabia. Consumiam
os dias um ao lado do outro, mas desconheciam o nome um do outro.

Foi isso que massacrou Vany desde o princípio. O futuro à espreita. Estagnado na mesma
cena. A última cena da sua vida exatamente ali, do outro lado da porta.

A doença havia começado a penetrar no corpo de Vany quando ela tinha 40 anos.
Professora de História, sempre havia desejado entender o mundo. Então a dor começou.
Pelas mãos. Depois pelas pernas. Penetrando pela espinha. A cada dia lhe comendo as horas,
o fôlego. Doença de fazer louco, um dia disseram.

Os pais morreram. Sobrou Vany. Que começou a cair. Como se os ossos se liquefizessem.
E então a geriatria apareceu como a estrada que não se bifurca.

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Da cama, Vany começou a reparar que os velhos não chegavam prostrados. Quando
chegavam, ainda havia um elo entre eles e o mundo, entre eles e a vida. Então, as horas
mortas iam lhes solapando a consciência e a vontade. Iam lhes roubando o sentimento e o
sentido. Um dia se exilavam. Primeiro, morria a mente. Depois, o corpo. A dona da geriatria
ocultava a morte, inventava uma desculpa, e o velho sumia da poltrona. No dia seguinte
outro tomava seu lugar. A espiral do esquecimento se repetia.

Foram tantas e tantas vezes que Vany assistiu a esse mesmo filme. Rebobinado e
rebobinado repetidamente.

Celina, não. Celina escolheu a janela da rua como mundo. Ela sabe quem chega, quem
sai, onde o cachorro do vizinho faz cocô, qual é o carro que estaciona em lugar proibido
e sempre, invariavelmente, se intriga com a mendiga velhinha, cheia de sacolas, que sobe e
desce a calçada sem horário definido. Onde será que ela dorme? Será que ela lava as
roupas? Ontem ela usava uma saia bonita.

Apenas um vidro a separá-la do mundo de lá. Do lado, na cama, ao alcance da mão,


uma caixa de sapatos contém toda a sua vida. Um batom, um cartão de Natal não enviado
porque não coube no envelope, um elástico para arrumar as calcinhas, uma medalha de
Nossa Senhora. Um radinho de pilhas com o telefone de um pronto-socorro grudado. E as
cartas. Celina escreve para o presidente da República, escreve para outros governantes. Para
um antigo pretendente, que parou de responder. Será que morreu?

Cartas iniciadas em um caderno e jamais remetidas. Como a escrita em 24 de junho,


quando fez 73 anos: “Hoje eu estou completando meus 18 anos...”

Aos 65 anos, Vany decidiu lutar contra a cena emoldurada pela porta da sala. A distância
diminuindo dia a dia, o corpo artrítico arrastado para lá como que atraído por um buraco
negro. Aterrorizada, Vany pediu a uma amiga, uma artista plástica chamada Dilva Lima, que
lhe ensinasse a terapia da arte. Foi quando começou. Carregadas pela voz da professora,
Vany e Celina trilharam florestas e mergulharam as pernas mortas em rios imaginários.
Sentiram a textura de folhas e flores. Atravessaram tempestades e assistiram a um pôr do
sol. Nesses intervalos entre a dor e a porta da sala as duas escapavam, quase se tocavam.
Apenas seus corpos permaneciam estirados sobre a cama. A mente ia longe. Nessas horas, os
dedos retorcidos de uma, as mãos esquecidas de outra desenhavam o movimento perdido.
Aprisionavam o movimento imaginado, como se assim pudessem contê-lo. Conter algo em
si mesmas de movimento e de possibilidade.

Primeiro, Vany cobriu páginas e páginas de peixes que nadavam. Depois, os peixes
viraram borboletas que voavam. A evolução encerrou-se com um ser humano em posição
fetal. Um dia Vany desenhou um grande coração, vários corações em camadas, em cores
diferentes, um dentro do outro. Nesse dia o coração entrou em colapso e ela teve de ser
internada às pressas no hospital. Celina desenhou a si mesma, em cinza e negro, de pé sobre
pernas antigas, debaixo de uma tempestade.
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Enquanto a pilha de desenhos da alma crescia ao redor da cama, a angústia foi


aumentando dentro de Vany. Suas pinturas eram seu legado. Sua tentativa última de explicar
o inexplicável. Vany temeu que, quando a dor finalmente a vencesse, no dia seguinte mesmo,
quando outra ocupasse a sua cama no redemoinho amnésico da geriatria, seu mundo fosse
sepultado com ela. Desfeito ao lixo, como se nunca houvesse existido uma Vany tentando
buscar o mundo sem pernas que a carreguem. Nem uma Celina escapando todos os dias
pela janela da rua.

Foi quando Vany inventou a exposição. Sonhou que seus desenhos poderiam viajar no
lugar de suas pernas. Imaginou vendê-los e reverter a renda em benefício de uma creche de
crianças exiladas. Acalentou a utopia de que seus anseios sobrevivessem a ela. Fossem livres.

Com a ajuda da amiga, as pinturas atravessaram o quarto, a soleira da porta, e


alcançaram a sala. Cobriram as paredes. Mas era previsível. E aconteceu. Os velhos não
perceberam a subversão do morredouro. Tô bem surda, tô bem cega, desculpa-se Adélia,
79 anos, que ainda cuida da irmã Josephina, de 87. Augusto desconhece onde está. Pensa
que está casado com a dona da casa e que o neto da mulher é seu filho. E Elza, 78, não
consegue vislumbrar a possibilidade de virar-se de frente para a parede e enxergar. Elza
é incapaz de adivinhar a possibilidade de mudar a posição da cadeira. Eu sento de costas
para a parede, não vejo nada, murmura, surpreendida que falem com ela. Vany e Celina
perceberam que travavam uma luta desigual contra o exílio. Celina voltou os olhos para
a janela da rua. E Vany continuou sua busca pela chave do mundo. Não desistiram. Sem
pernas para correr do destino, Vany e Celina resistem. Seguem seu combate silencioso
contra o naufrágio da vida.

Poucos foram ver a exposição. Não faz mal. Agora, sempre que Vany e Celina avistam
o outro lado da porta, vislumbram mais do que o exílio. Chegaram lá. Com nadadeiras,
cores e asas.

Ninguém percebeu, mas Vany e Celina conseguiram o que poucos conseguem. Mudaram
a última cena de suas vidas.

Fonte: Brum (2012, p. 63).

Repare que não se trata de uma notícia. O foco não é o factual. No entanto, isso não quer dizer que
não recebemos informações. A narrativa humanizada nos permite olhar para o cotidiano de duas idosas
em uma clínica, tentando vencer o tédio e a solidão. Com a narrativa, entramos no mundo de Vany e
Celina e conhecemos um pouco das suas vidas.

O resgate de personagens anônimas sem que haja um fato surpreendente as envolvendo como
pauta é algo que vai contra a corrente da padronização e da objetividade do texto jornalístico.

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Saiba mais

Leia as histórias produzidas pela repórter Rebeca Kritsch no livro


Redescobrindo o Brasil, publicado em 2002 pela Editora Panda. A jornalista,
a pedido do diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo, viajou
sozinha, de carro, pelo país e chegou a lugares que nem estavam no mapa
para coletar narrativas.

KRITSCH, R. Redescobrindo o Brasil. São Paulo: Panda, 2002.

A jornalista e professora Cremilda Medina há anos defende que o repórter deve se encantar pelas
histórias humanas, deve exercitar a escuta solidária e o olhar atento.

Leia o início do perfil “A dama das miudezas”, produzido por Cremilda Medina.

Conhece dona Arminda? A grega da lojinha de miudezas da praça Buenos Aires? Sim, já
comprei linhas lá; aquela senhora é grega? É sim, e tem essa loja na praça há muitos anos,
você deve procurá-la.

Outros me recomendaram dona Arminda, a judia dos armarinhos. Dizem que a farmácia
e a loja dela são os estabelecimentos mais antigos no miolo de Higienópolis. Os imóveis
testemunham décadas de conservação.

Dona Arminda, a grega, ou a judia, corre num pé só para atender a clientela. À volta dos
60 anos, inteira, de calças compridas, modernas no corte, cabelos pintados, unhas também,
despacha com eficiência: a senhora que busca uma lã para acabar o tricô para o neto; o
menino que quer caderno e cola Pritt; mãe e filha que vêm comprar um tipo especial de linha
brilhante, para bordar; o senhor que procura um presentinho, brinquedo de preferência,
para o neto que vai lá em casa hoje; a velha dama que escolhe outro presente, pode ser
roupa, bijuteria, uma coisinha qualquer, a sobrinha não é muito exigente... Os tamanquinhos
ortopédicos de dona Arminda, toc-toc, atravessam o Bazar Buenos Aires Ltda.

Não é grega. Nem judia. O sotaque a trai: é portuguesa.

Fonte: Medina (2008, p. 10).

Com esse início, temos uma descrição do ambiente que, na verdade, reflete as características da
protagonista. Também ficamos conhecendo sua origem estrangeira. A jornalista opta por um narrador
em primeira pessoa, que dá voz aos personagens por meio do discurso direto e indireto. Em algumas

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passagens, isso ocorre sem a indicação gráfica de quem se pronuncia, pois o fluxo do texto nos permite
identificar quem fala.

Com esses exemplos, vemos que, apesar da tendência da chamada grande imprensa em adotar
paradigmas objetivos, com textos formatados segundo padrões de manuais, muitos profissionais
permaneceram alimentando o jornalismo com narrativas.

Saiba mais

Aprofunde-se sobre o assunto com o livro de Cremilda Medina:

MEDINA, C. A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. São


Paulo: 2008.

Observação

As chamadas matérias de interesse humano, como a apresentada, são


classificadas como textos do jornalismo diversional, pois elas permitem o
prazer da leitura para além da informação. Nessas matérias, é necessário que
o redator tenha sensibilidade para não descambar para o sentimentalismo
ou para o pieguismo. Também se deve ter cuidado para não se apelar ao
sensacionalismo, como se verá na sequência.

5.2 Histórias e sensacionalismo

É necessário mencionar que, muitas vezes, uma notícia ou reportagem, para chamar a atenção, vale-se
da exacerbação das emoções ou mesmo da propagação de mentiras que podem atrair o leitor. Essa
conduta antiética é incompatível com a boa práxis jornalística. A possibilidade de divulgação rápida e
abrangente com as redes sociais atualmente faz com que a proliferação de notícias falsas seja muito
grande. No entanto, esse fenômeno não é novo.

Muitas histórias são distorcidas, exageradas ou mesmo inventadas de forma a atrair o público.
O jornalismo sensacionalista utiliza muito esse artifício.

Segundo Marcondes Filho (1986), o sensacionalismo atua como nutriente psíquico, desviante
ideológico e descarga de pulsões instintivas. Trata-se, no seu entender, do grau mais radical da
mercantilização da informação.

Em 1975, o jornal Notícias Populares, um dos grandes títulos do jornalismo sensacionalista nacional,
fez história ao narrar o nascimento do bebê-diabo.

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Roosevelt Garcia (2017) narra o fato da forma reproduzida a seguir.

O dia 11 de maio de 1975, dia das mães, seria um domingo sem grandes novidades, como
qualquer outro dia das mães naquela época. Mas a edição daquele dia de um jornal mudaria
tudo. Desde as primeiras horas da manhã, as bancas estavam lotadas de pessoas comprando
o jornal Notícias Populares, já famoso naquela época por suas histórias exageradamente
sensacionalistas, e que trazia estampada em letras garrafais a manchete “Nasceu o Diabo
em São Paulo”. Eles acertaram em cheio no imaginário popular! Todo mundo queria saber a
história do bebê que tinha nascido num hospital de São Bernardo do Campo, com chifres,
rabo e ameaçando todo mundo assim que nasceu.

Fonte: Garcia (2017).

Observação

Repare que o relato anterior é, também, um exemplo de storytelling,


uma vez que o texto reconstrói a cena do dia em que a notícia foi publicada.

De acordo com Angrimani Sobrinho (1995), que entrevistou o então secretário de planejamento do
jornal, a história foi inventada para preencher a lacuna de um plantão de sábado. Um repórter do jornal
havia ido ao ABC para checar uma pauta, que era infundada. Ele fez uma crônica, que foi transformada
em manchete do dia seguinte.

Leia, a seguir, o início da matéria.

Durante um parto incrivelmente fantástico e cheio de mistérios, correria e pânico por


parte de enfermeiros e médicos, uma senhora deu à luz num hospital de São Bernardo do
Campo a uma estranha criatura, com aparência sobrenatural, que tem todas as características
do diabo, em carne e osso. O bebezinho, que já nasceu falando e ameaçou sua mãe de morte,
tem o corpo totalmente coberto de pelos, dois chifres pontiagudos na cabeça e um rabo de
aproximadamente cinco centímetros, além do olhar feroz, que causa medo e arrepios.

Parece que tudo começou na Semana Santa, quando o marido da mulher, que é muito
religioso, convidou-a para ir à igreja ver a procissão. A mulher, grávida, bateu a mão na
barriga e respondeu indignada:

— Não vou enquanto este diabo não nascer!

E foi o que aconteceu. A mulher acabou tendo como filho um monstrinho horripilante,
peludo, que, ao falar, mais parece que está mugindo. […].

Fonte: Agrimani Sobrinho (1995, p. 146).

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Apesar de tantos indícios de não plausibilidade, os leitores sentiram-se atraídos pela história.
O tema do bebê-diabo ocupou 22 edições do jornal. Segundo Angrimani Sobrinho (1995, p. 140),

dia após dia, “Notícias Populares” conseguiu encontrar assunto para


manter o diabo na manchete e destacar o assunto em longas reportagens
especiais nas páginas internas, tendo como “fonte de alimentação” o
próprio imaginário dos leitores que, com sua atitude ingênua, crédula ou
egocêntrica, se predispunham a se compactuar com a farsa.

O autor ainda destaca que relatos semelhantes remontam aos séculos XII e XIII e atravessam as
épocas seguintes. Trata-se de narrativas que mexem com as crenças e a imaginação das pessoas de
diferentes épocas e lugares e, por isso, mesmo com elementos que apontam para a falta de verdade,
despertam o interesse do público.

Veja, na figura a seguir, a chamada para o assunto.

Figura 27 – Capa do Notícias Populares sobre o caso

Observação

Quando uma notícia apresenta desdobramentos sequenciais,


denominamos, no jargão jornalístico, de suíte.

Saiba mais

Conheça esse e outros casos no livro Danilo Angrimani Sobrinho:

ANGRIMANI SOBRINHO, D. Espreme que sai sangue. São Paulo:


Summus, 1995.

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5.3 Storytelling no jornalismo contemporâneo

Como já dissemos, o storytelling é uma técnica, ou uma arte, para narrar fatos, com uma construção
textual envolvente, seja ela impressa, seja ela audiovisual. Ao enfatizar a narração e a descrição,
recriam-se cenas e personagens, com a intenção de despertar sensações no público, para que ele se
identifique com a história e aprecie o texto jornalístico.

Devemos destacar que storytelling não se confunde com jornalismo literário, embora haja relação
entre eles. Vamos explicar melhor: as matérias classificadas como jornalismo literário são histórias
bem contadas, assim, essas narrativas sempre encantaram e envolveram os leitores. Podemos dizer,
atualmente, que elas se valem do storytelling, ainda que não se usasse essa nomenclatura até um tempo
atrás. Entretanto, nem todas as matérias que utilizam a ferramenta storytelling constroem, de fato, um
texto com características da narrativa literária. Muitas só procuram criar um começo mais atrativo, por
exemplo, ou destacar elementos que despertam o interesse do leitor.

Nas palavras de Karenine Cunha e Paulo Mantello (2014, p. 60),

A técnica do storytelling não necessariamente está atrelada à reportagem


densa e literária dos veículos impressos, que hoje precisam adaptar-se à
convergência de plataformas, à profusão de informações disponíveis e ao
enxugamento das redações. Portanto, storytelling está mais próximo de
uma técnica de redação do que de ser outra nomenclatura para o Novo
Jornalismo, visto que pode ser aplicado em qualquer meio de comunicação
e em qualquer natureza de texto.

Os autores ainda destacam que o storytelling não tem como objetivo transpor os relatos jornalísticos
do campo noticioso e reclassificá-los na literatura. Trata-se de uma possibilidade de condução do texto
que mantém a preocupação na informação, e não apenas na estética da linguagem.

Assim, vale a definição de Antonio Núñez (2007): storytelling é uma ferramenta de comunicação
estruturada em uma sequência de acontecimentos que apelam a nossos sentidos e emoções.

Ana Estela de Sousa Pinto (2009) explicita a estrutura básica para contar histórias jornalísticas de
forma envolvente, essa estrutura é dividida em quatro partes, indicadas a seguir.

• Anzol: o anzol ocupa o primeiro parágrafo e apresenta um mistério, um problema, uma


característica marcante de um personagem, capaz de fisgar o leitor.

• Foco: o foco, apresentado na sequência do anzol, oferece explicações para a história, mantendo a
retórica e fazendo com que o leitor continue a acompanhar o relato.

• Provas: as provas buscam dar veracidade ao relato, apropriando-se de técnicas da objetividade


jornalística, como dados estatísticos ou explicações de fontes técnicas.

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• Resgate: o resgate ocorre em um final tão elaborado quanto o começo, muitas vezes fazendo
remissão ao início do texto, caracterizando uma estrutura circular.

Observação

Em inglês, chama-se de story qualquer matéria – terminologia técnica


que designa todos os formatos jornalísticos do gênero informativo (nota,
notícia, entrevista, perfil ou reportagem).

Dessa forma, uma narrativa jornalística envolvente deve combinar personagens e contextos, de
modo a oferecer para o leitor uma leitura da realidade.

Vejamos, como exemplo, uma notícia sobre a morte de Jaime Dias Sabino, conhecido “papagaio de
pirata” que frequentava enterros de celebridades. Ele ficou conhecido por acompanhar, durante anos,
velórios e sepultamentos de pessoas famosas. O texto foi também mencionado por Cunha e Mantello
(2014) como exemplo de storytelling no jornalismo diário.

A notícia elaborada pelo jornalista Fabio Brisolla foi publicada em 26 de outubro de 2013 no caderno
Cotidiano da Folha de S. Paulo.

‘Papagaio de pirata’ de funerais morre no Rio

FABIO BRISOLLA

DO RIO – 26/10/2013

Em uma tarde nublada, ontem, Jaime Dias Sabino, 87, chegou para ficar em um de seus
locais preferidos: o cemitério São Francisco Xavier, na zona portuária do Rio.

Desta vez, Sabino morreu. Nas anteriores, ele aparecia como “figurante” de velórios
e sepultamentos. Mesmo sem conhecer o falecido, caminhava até os familiares com ar
consternado, manifestava seu pesar e permanecia postado próximo ao morto.

Não raras vezes, garantia a oportunidade de segurar em uma das alças do caixão até a
cova. Comovidos, familiares nem se davam conta de fazer a pergunta óbvia: afinal, quem
era aquele sujeito?

No jargão popular, Sabino era “papagaio de pirata”, termo normalmente usado para
designar pessoas que ficam atrás de jornalistas e fotógrafos com o objetivo de aparecer
para as câmeras. Foi assim que ele se colocou em situações curiosas.

Sabino conduziu, por exemplo, os caixões do ex-jogador Didi (2001), da cantora


Emilinha Borba (2005) e do ex-senador Artur da Távola (2008). Passou três dias na Bahia,
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onde acompanhou de perto a movimentação no velório de Irmã Dulce (1992). Acabou


fotografado ao lado dos políticos Antônio Carlos Magalhães, ex-governador e senador pela
Bahia, e José Sarney (PMDB-AL), hoje presidente do Senado.

Em entrevista a Jô Soares, Sabino disse ter comparecido às cerimônias fúnebres de


Tim Maia, Cazuza e Chacrinha. Citou com satisfação o adeus à Hebe Camargo, a que teria
assistido de perto.

Sabino, mais conhecido como Jaiminho, era por vezes tachado de inconveniente.

A reportagem da Folha chegou a encontrá-lo em fevereiro de 2013, quando um incêndio


no apartamento do marchand Jean Boghici, em Copacabana, destruiu preciosidades
de seu acervo.

Boghici saiu do local abatido. Ao se aproximar do carro para ir embora, eis que surgiu
Sabino fazendo pose.

Uma repórter protestou: “Até aqui? Você não respeita ninguém?”

Sempre vestia ternos. Dizia ter mais de 200 modelos em sua casa no bairro do Rocha, na
zona norte. “Eu uso terno e gravata até para dormir. Se eu morrer, não vou dar trabalho para
ninguém. É só pegar e empurrar para dentro do caixão. Já tô prontinho, prontinho”, disse.

Funcionário público aposentado, ele teve um infarto.

De terno branco, Sabino foi enterrado às 15h em uma sepultura na ala de gavetas do
cemitério. Cerca de 80 pessoas estiveram na cerimônia.

Fonte: Brisolla (2013, p. C5).

Observe que o texto segue o esquema apontado anteriormente. O início aborda o fato de forma
a fisgar a atenção do leitor (“anzol”). Apresenta-se o personagem e atiça-se a curiosidade do leitor
com a afirmação de que o lugar de que ele mais gostava era um cemitério. Na sequência, citam-se os
fatos, com um breve histórico das “façanhas” de Sabino, com suas comprovações. Por fim, retorna-se
ao cenário inicial, com mais dados sobre sua morte e seu enterro. No caso, temos a estrutura circular
apontada por Ana Estela Pinto.

Compare o texto lido com o lead da notícia a seguir, sobre o mesmo fato, publicada em
outro veículo.

107
Unidade II

Jaime Sabino, o mais famoso “papagaio de pirata” do Brasil, faleceu nesta quinta-feira,
aos 83 anos, no Hospital de Ipanema, após sofrer um infarto. O corpo de Jaiminho, como era
carinhosamente chamado, foi sepultado na tarde desta sexta-feira, no Cemitério do Caju,
na Zona Portuária.

Fonte: Bruno (2013).

Note que, na notícia do jornal O Dia, temos o esquema clássico do lead: o fato, com seus elementos
essenciais, está no primeiro parágrafo do texto. Sabemos quem morreu, quando e o motivo e, também,
onde ele foi sepultado. Há sensível diferença entre os dois começos das notícias. Perceba que, no
segundo exemplo, o leitor não se sente estimulado a seguir a leitura, uma vez que ele já teve acesso às
informações factuais necessárias. Na matéria de Brisolla, a estrutura conduz o leitor até o fim do texto.

Leia, agora, a reportagem a seguir, publicada na Revista Época.

Isolada na pandemia, aposentada viraliza ao imitar memes, famosos e pinturas

Jane Moretto, de 77 anos, começou a reinterpretar imagens como passatempo durante


quarentena, mas logo suas fotos foram parar na internet e fizeram sucesso

Rodrigo Castro – 16/01/2021

Figura 28 – Jane Moretto começou a reinterpretar fotos e pinturas. Na imagem, Maria Luiza Castilho
faz releitura de um retrato de Frida Kahlo. Foto: Arquivo pessoal

Bastaram um chapéu com laço, um cardigã branco adornado com um broche e um colar
para que a aposentada Jane Moretto, de 77 anos, se transformasse na rainha Elizabeth II.
Isolada durante a pandemia, ela começou a imitar personalidades, pinturas e memes para se
distrair. O que era para ser apenas uma brincadeira entre família viralizou depois que uma
de suas filhas publicou as reinterpretações das imagens em suas redes sociais.

108
STORYTELLING

Figura 29 – Jane Moretto imitando a rainha Elizabeth II. Foto: Arquivo pessoal

Desde a última quarta (13), quando teve a ideia e a colocou em prática, Jane tem recebido
ligações de amigos e mensagens, algumas até com sugestões. Entre suas reproduções, estão,
por exemplo, a famosa pintura “O Grito”, do norueguês Edvard Munch, a obra “Después del
Baile”, do espanhol Ramón Casas, e “A dama com o véu”, do sueco Alexander Roslin.

Figura 30 – Jane Moretto imitou pinturas como ‘O Grito’ e ‘Después del Baile’. Foto: Arquivo pessoal

“Resolvi fazer uma brincadeira com minhas filhas Ana e Mariana e comecei a mandar as
fotos. Mas aí viralizou. Todo mundo me ligando e querendo compartilhar comigo, mandando
novas ideias. É muito engraçado. Fiz mais para me distrair, não pensei que ia ter tanta
repercussão”, afirmou Jane.

109
Unidade II

A aposentada revira o guarda-roupas atrás dos figurinos mais verossímeis e de bijuterias


ou ornamentos que componham a imitação. Os cliques ficam por conta da amiga e xará
Jane, que mora no mesmo prédio e às vezes lhe faz companhia. É ela também quem ajuda
nas montagens, inclusive com fotos antigas, como uma ao lado do falecido marido José
Roberto, na qual posavam como o principal casal da família real britânica.

Figura 31 – O casal Jane e José Roberto posa como a rainha Elizabeth e o príncipe Philip. Foto: Arquivo pessoal

“O importante é a ideia. Não dá para fazer às vezes tão igual. Eu pesquiso e vejo o que
dá para fazer o mais parecido possível. A gente improvisa as roupas, e ela (Jane) tira as fotos,
porque sozinha eu não consigo. É a minha figurinista (risos)”, disse com bom humor.
À espera da vacina, a aposentada raramente sai de casa durante a pandemia. Ela diz contar
nos dedos quantas vezes visitou familiares – sempre com máscara, distanciamento social
e todos os cuidados preconizados por autoridades de saúde. Solitária, a solução foi ocupar
seu tempo com leitura, quebra-cabeça, TV e piano. Ao menos até surgir o novo passatempo.
Mãe de três filhos, uma delas médica, Jane optou por ficar sozinha com o isolamento.
A aposentada ficou viúva em 2018, meses após completar bodas de ouro. Seu marido, que
sofria de esclerose múltipla, foi acometido por uma obstrução intestinal fatal aos 76 anos.

Figura 32 – Jane revira o guarda-roupas para ficar o mais próximo possível de sua inspiração. Foto: Arquivo pessoal

110
STORYTELLING

“Procuro enfrentar tudo o que aparece. Eu me considero uma mulher muito feliz. Meu
marido foi meu primeiro namorado, casamos, vivemos 50 anos juntos. Quando fiquei sem
ele, fiquei muito arrasada. Mas procurei enfrentar a situação. O que não tem remédio a
gente tem que enfrentar da melhor maneira possível”, disse.

Com idade que lhe credencia ao grupo prioritário conforme o plano de vacinação no
Brasil, a aposentada conta as horas para receber o imunizante e poder retomar a rotina e
seus hobbies, principalmente viajar. Cansada de ficar presa em casa, ela quer voltar a ser
simplesmente a Jane. As semelhanças com a rainha Elizabeth não vão muito além.

Fonte: Castro (2021).

Na matéria da Revista Época, os elementos que mais chamam a atenção, no primeiro momento, são
as fotografias. Há, ainda, as características peculiares da personagem, como a idade, e o modo como ela
ganhou destaque a ponto de se tornar pauta para o veículo. Esses fatores despertam a curiosidade do
leitor, que decide dedicar alguns minutos à leitura do texto.

Neste ponto, devemos mencionar, ainda que de forma breve, o impacto que o desenvolvimento da
internet teve na práxis jornalística. Tito Eugênio Santos Souza (2018, p. 1) aponta que

a diversidade de linguagens, gêneros discursivos e formatos existentes na


contemporaneidade, no entanto, sinaliza muito mais que uma simples
mudança nas rotinas de produção da notícia envolvendo os diferentes
veículos de comunicação: as próprias formas de narrar os fatos, tais como
estes são reconstruídos discursivamente pelo jornalismo, ressignificam-se e
engendram outras novas, como sintoma do espírito de um tempo marcado
por constantes e vertiginosas transformações.

Em um cenário marcado pelo excesso de informações, em que a atenção do indivíduo é disputada


por vários emissores, o jornalismo contemporâneo tem como desafio representar o real, informar e
possibilitar ao leitor a interpretação do mundo em que vive com um formato atraente.

Esse contexto estimula, portanto, a adoção da técnica storytelling no meio jornalístico a tal ponto
que ela tem sido abordada em cursos e oficinas direcionados a profissionais e estudantes da área.

Devemos ainda destacar que o uso de storytelling é diferente dependendo da mídia utilizada. Os
textos de revista, em geral, tendem a apresentar maior extensão e maior aprofundamento, além de mais
imagens. Além disso, historicamente, gozam de maior liberdade estilística em comparação às matérias
de jornais. No ambiente digital, podem ser explorados recursos adicionais, com outras linguagens, como
vídeo e áudio. As histórias passam a ser contadas pela combinação de características herdadas do
impresso com as possibilidades de uso dos suportes digitais.

111
Unidade II

Um bom exemplo do uso de storytelling em uma narrativa multimídia é a matéria “Snow fall”,
produzida pelo repórter John Branch e equipe para o The New York Times em 2012. Além de Branch,
a reportagem contou com a colaboração de 11 especialistas em gráficos e design, um fotógrafo, três
pessoas responsáveis pelos vídeos e uma colaboradora de pesquisa.

O projeto foi composto por seis blocos, com textos, gráficos interativos, fotos, animações e vídeos, e
recebeu o Prêmio Pulitzer em 2013.

A reportagem aborda, de forma inovadora, uma avalanche de neve que aconteceu no estado de
Washington em fevereiro de 2012 e que matou três dos 16 atletas que praticavam snowboard nas
encostas do vale Tunnel Creek, nas montanhas Cascade. O destaque se deu não apenas pelo formato,
que permitiu a interatividade dos leitores, mas também pela intensidade da apuração, que promoveu a
contextualização do acontecimento.

Leia o início da matéria.

A neve explodiu por entre as árvores sem nenhum aviso, a não ser um ruído de
último segundo, uma parede branca de dois andares e o grito agudo de Chris Rudolph:
“Avalanche! Elyse!”

Exatamente o que os 16 esquiadores e snowboarders procuravam – neve fresca e fofa –


instantaneamente se tornou o inimigo. Em algum lugar acima, um prado intocado rachou
na forma de um raio, cortando uma laje de quase 60 metros de largura e 90 centímetros de
profundidade. A gravidade fez o resto.

A neve se espatifou e se espalhou pela encosta. Em segundos, a avalanche tinha o


tamanho de mais de mil carros descendo a montanha e pesava milhões de libras.
Movendo-se a cerca de 11 quilômetros por hora, ele se chocou contra as árvores antigas e
robustas, quebrando seus galhos e rasgando a casca de seus troncos.

A avalanche, em Washington’s Cascades, em fevereiro, passou por algumas árvores e


rochas, como as ondas do oceano ao redor da proa de um navio. Outros ele capturou
e aumentou sua carga violenta.

Em algum lugar lá dentro, também carregava pessoas. Quantos, ninguém sabia.

Fonte: Branch (2012).

O projeto é apontado por diversos autores, entre eles Palacios e Terenzzo (2016), como um bom
exemplo do futuro do jornalismo e do uso do storytelling.

112
STORYTELLING

“Snow fall” cumpre o que Cunha e Mantello apontam como característica do storytelling:

a técnica do storytelling resulta em um texto sinestésico: atinge os cinco


sentidos, não deixando que o sujeito fuja da mensagem. Pode ser visto,
ouvido, trazer a lembrança de um aroma, de um sabor ou de um toque.
A sinestesia ocorre mesmo que o texto seja de um jornal impresso, a priori
focado na leitura e no sentido da visão. O propósito da técnica do storytelling
é, a partir de um sentido preponderante, acionar os outros, graças à forma
de estruturar o relato jornalístico (CUNHA; MANTELLO, 2014, p. 59).

Observação

Sinestesia é o cruzamento de sensações geradas pelos sentidos.


Quando dizemos que temos um perfume doce, por exemplo, estamos
usando referência do olfato e do paladar. Um texto provoca sinestesia
quando afeta nossos sentidos.

Outro exemplo bastante emblemático é uma reportagem de fôlego, conduzida pela repórter Ângela
Bastos e pelo fotógrafo Charles Guerra: “As quatro estações de Iracema e Dirceu”. A matéria foi elaborada
para o Diário Catarinense com a intenção de retratar a vida de pessoas que compõem as estatísticas
daqueles que vivem abaixo da linha da pobreza. Durante dois anos e sete meses, eles acompanharam
a rotina de Iracema e Dirceu, agricultores, e seus 14 filhos, que sobrevivem com uma renda menor que
54 reais por pessoa.

Veja, na figura, o menu interativo da página inicial do projeto.

Figura 33 – Home da matéria, com menu interativo

113
Unidade II

A reportagem ganhou o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos em 2015.

A questão da narrativa transmídia será mais detalhada adiante.

6 STORYTELLING COMO ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO NO MARKETING

6.1 Marcas e seus significados

Não tenho tempo a perder


Só quero saber do que pode dar certo.

(BRITTO; NETO, 1984)

Como vimos, a contação de história acompanha o ser humano desde sua origem com as mais
diversas funções. Recentemente, a técnica de envolver as pessoas por meio de narrativas ganhou status
de eficiente ferramenta de marketing. Dessa forma, tornou-se uma prática valorizada pelas empresas.

Segundo Adilson Xavier (2015, p. 15), o

clique deflagrador da revitalização do storytelling acontece no momento


em que o mundo digital se estabelece definitivamente entre nós, trazendo
novas conexões, novas oportunidades de expressão, novos poderes, novas
incertezas: uma realidade em que todos se tornam geradores de conteúdo e
unidades de mídia ao mesmo tempo.

O excesso de informações e de opções de consumo veio, paradoxalmente, acompanhado da falta da


capacidade de concentração e do tempo disponível.

Segundo Hebert Simon (apud PALACIOS; TERENZZO, 2016, p. 7),

em um mundo rico de informações, a riqueza de informações significa a


escassez de algo mais: a escassez do que quer que seja que a informação
consome. O que ela consome é bem óbvio: a atenção de seus recipientes.
Assim, uma riqueza de informação cria uma pobreza de atenção e a
necessidade de alocar a atenção eficientemente entre uma superabundância
de fontes de informação que podem consumi-la.

Dessa forma, a necessidade de despertar a atenção tornou-se um grande desafio para os profissionais
de comunicação.

114
STORYTELLING

Saiba mais

Thomas Davenport e Michael Goldhaber popularizaram, com seu


livro lançado em 2001, o conceito de “economia da atenção”. Trata-se da
constatação de que a atenção das pessoas é finita e de que o tempo é um
recurso escasso. Atenção e tempo são disputados por mídias e marcas.

DAVENPORT, T.; BECK, J. The attention economy: understanding the new


currency of business. Cambridge, MA: Harvard Business School Press, 2001.

Assim, as narrativas são essenciais, no atual contexto, para despertar a atenção do público. Além
disso, as histórias têm papel importante na formação e na consolidação da cultura organizacional, entre
os colaboradores da marca.

A figura a seguir estabelece um paralelo entre a necessidade das narrativas primitivas e a necessidade
das narrativas do meio corporativo atualmente.

Figura 34 – Benefícios da contação de histórias

Lembrete

No atual cenário competitivo e saturado de informações, as empresas


buscam formas de conquistar a atenção do consumidor.
115
Unidade II

Outro elemento em crise na atualidade é a afetividade, e ela é reavivada quando temos uma boa
narrativa. As pessoas prestam atenção em uma estória porque se envolvem com ela. Quantas vezes você
relutou em largar um livro no meio ou parar de ver um filme e uma série antes do fim? Dessa forma, uma
boa estória/história, bem contada, mexe com nossos sentimentos, ou, em outros termos, ela nos afeta.

Além disso, as narrativas trabalham com figuras, ou seja, com elementos concretos, que são, em
geral, mais bem absorvidos pelas pessoas. Por isso, conseguem transmitir valores mais facilmente.

Pense em uma fábula, por exemplo, “A raposa e as uvas”. A moral da estória é a lição de que “quem
não consegue o que deseja desdenha”. Parece abstrato, não? Com os elementos concretos da estória, no
entanto, a apreensão da ideia é mais fácil. Comprove isso com a leitura da fábula.

A raposa e as uvas

Chegando uma raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas maduras e formosas e
cobiçou-as. Começou a fazer tentativas para subir; porém, como as uvas estavam altas e a
subida era íngreme, por muito que tentasse não as conseguiu alcançar. Então disse:

— Estas uvas estão muito azedas, e podem manchar-me os dentes; não quero colhê-las
verdes, pois não gosto delas assim.

E, dito isto, foi-se embora.

Fonte: Esopo apud Fuks (s.d.).

Com as figuras (elementos concretos), entendemos que a raposa só passa a falar mal das uvas
porque não consegue pegá-las. Assim, a ideia de que a frustração pode nos levar a desvalorizar o objeto
de desejo fica clara.

Lembrete

Conceitos, abstratos por natureza, quando materializados em figuras


(elementos concretos), são mais facilmente compreendidos.

Dessa forma, por meio de narrativas, consolidamos valores e crenças e somos capazes de persuadir.

Nas palavras de Adilson Xavier (2015, p. 20):

histórias dão sentido à vida. Sustentam nossos valores básicos, as religiões,


a ética, os costumes, as leis, os múltiplos aspectos culturais que nos cercam.
Histórias nos dão segurança, estabilidade grupal, erguem celebridades,
empresas e nações.

116
STORYTELLING

Por isso, muitas marcas têm decidido construir ou fortalecer sua imagem com a narrativa de sua história.
É comum, nesses casos, enaltecer o caráter batalhador do fundador, a sua capacidade de superação, a
sua ética, o seu esforço. Com isso, procura-se estabelecer um vínculo entre o consumidor e a marca.

Lembrete

Edgar Allan Poe recomendava a quem fosse iniciar o processo de


escrever estórias pensar em qual efeito se pretendia criar no leitor.

Imaginemos, então, a seguinte história: um empreendedor investe o que economizou com anos de
trabalho para abrir uma lanchonete de comidas árabes na Saúde, bairro de São Paulo. Mal ele inaugura,
com sucesso, o estabelecimento, aparece uma pandemia que faz com que as pessoas fiquem isoladas e
sua lanchonete seja fechada. Um amigo sugere uma parceria para que eles passem a entregar os produtos
em domicílios. Quando tudo indicava que os negócios iriam melhorar, o amigo avisa que deve voltar
para sua cidade natal, pois a mãe está doente. Sozinho, nosso protagonista entrega o estabelecimento,
mas continua, com sua esposa, a produzir os quitutes e passa a vendê-los em uma van que percorre
as ruas do bairro. A vizinhança aprova a qualidade dos produtos, e o empreendimento dá certo. Nosso
personagem agora já tem mais três veículos em circulação pela cidade, com funcionários trabalhando
para ele, e sua marca já é reconhecida pelos consumidores.

Você notou que a estrutura da história lembra o esquema tradicional de um conto? Temos uma
situação inicial estável, então algo acontece que quebra a estabilidade; por fim, ocorre a superação
dos obstáculos. No meio da narrativa, aparece a figura do “doador”, que ajuda o herói, mas essa ajuda
depois é retirada e ele deve enfrentar sozinho o problema. No caso, o “agressor” não é uma pessoa, mas
a conjuntura provocada pela pandemia.

Lembrete

Recorde a estrutura dos contos de fadas proposta por Vladimir Propp.

Isso significa que um bom storyteller deve conhecer muitas estórias, ler muitos contos e romances,
assistir a muitos filmes e peças teatrais. Esse repertório lhe permite desenvolver a arte de contar bem
uma história.

Observação

Rafael Rez (2017) expõe seis elementos que constituem uma


boa storytelling:

1) Quem (o protagonista).

117
Unidade II

2) Onde (o cenário da estória).

3) Acontecimento emocional.

4) Acontecimento improvável.

5) Conflito.

6) Desfecho.

O autor estabelece, como exemplo, um paralelo entre a estrutura de um


conto de fadas e a história de um empresário bem-sucedido.

Voltemos ao nosso empreendedor do exemplo anterior. Caso sua marca resolvesse usar sua história
de superação como ferramenta de marketing, poderia haver bons resultados, pois as pessoas tendem a
criar empatia com a personagem batalhadora e bem-sucedida.

No entanto, e se a história fosse falsa? E se, na verdade, o empreendedor construiu a marca com a
herança de família e nunca, de fato, tenha se empenhado na administração do estabelecimento? A farsa
seria descoberta e isso teria impacto na marca.

Esse impacto ocorre porque, no caso de histórias de marcas, a verdade é um elemento importante.
O público espera que aquilo que é narrado sobre a trajetória das empresas tenha correspondência no
real. Essa expectativa só não ocorre quando a marca deixa claro ao público que a história é ficcional.

Lembrete

Plausibilidade e verossimilhança são conceitos distintos. A história da


marca, além de verossímil, deve ser plausível e verdadeira.

A marca de sorvetes Diletto, por exemplo, enfrentou problemas devido à promoção de imagem com
base em uma história falsa. A empresa divulgou que sua origem remontava ao ano de 1922, quando
um senhor italiano, Vittorio Scabin, que tinha paixão por sorvetes, criou uma receita à base de frutas
frescas e neve. Isso teria ocorrido na região de Vêneto. Com a Segunda Guerra Mundial, sua família teria
migrado para o Brasil e abandonado o ramo. Então, dez anos após a morte de Vittorio, seus netos teriam
resolvido reinaugurar aqui a marca Diletto, com o mesmo slogan do avô: “la felicitá é um gelato”.

No entanto, em 2014, uma repórter investigou a história, conversando até com moradores da cidade
italiana. Ela descobriu que o senhor Vittorio nem sequer havia existido. O avô do fundador da empresa
era, de fato, da Itália, mas nunca fabricou sorvetes.

118
STORYTELLING

Observação

Repare no importante papel do jornalismo em checar histórias.


A credibilidade da profissão depende da apuração correta das informações.

Foi feita uma denúncia ao Conar, que recomendou a alteração da comunicação, com a sinalização
de que se tratava de uma história ficcional. A empresa resolveu retirar o nonno do logo da empresa e
substituiu-o pelo urso polar.

Saiba mais

Para saber mais sobre o case, leia a monografia:

KASTELIC, P. H. F. Era uma vez uma marca: storytelling e ficção na


construção identitária da Diletto. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso
(Bacharelado em Comunicação Social) – Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM), São Paulo, 2013.

Outro caso de marca que teve problemas com dados falsos foi a Hollister. Ela havia divulgado que
sua fundação se dera em 1922, mas Dave Eaggers, no The New Yorker, desmentiu a empresa, afirmando
que sua origem era bem mais recente: no ano 2000. Não se trata de apenas uma questão de datas, mas,
sim, de tradição e credibilidade.

As empresas não precisam somente se voltar aos seus históricos, podem, também, optar por
contar histórias de consumidores com seus produtos ou, ainda, inventar estórias que construam o
significado desejado.

Em qualquer caso, é importante que as imagens criadas nas narrativas correspondam às ações
da empresa. Não é possível, por exemplo, que uma marca construa uma história de responsabilidade
socioambiental e, na realidade, danifique o meio ambiente ou não respeite os direitos humanos. Essa
incoerência fatalmente será percebida pelo público.

Nas palavras de Palacios e Terenzzo (2016, p. 33):

a ética do storytelling está intimamente ligada à ética do autor e narrador.


Mas uma coisa é certa: o próprio storytelling pune. Empresas que queiram
forjar e esconder informações ou mentir devem saber que correm grande
risco de reputação. Quanto mais generalizar ou esconder, menos autêntico
vai ser e mais vulnerável vai ficar.

119
Unidade II

Observação

Nas palavras de Palacios e Terenzzo (2016, p. 62), “storytelling significa


ter a habilidade de encontrar ou criar histórias fortes, com propósito
estratégico, narradas com excelência”.

6.2 Marcas e arquétipos

Esperamos que tenha ficado claro que as marcas carregam consigo, além das características de seus
produtos, significados. O consumidor é permeado de ideias e impressões sobre os produtos e suas marcas.
McDonald’s, por exemplo, é uma marca que representa a cultura norte-americana. Em muitos casos, a
presença de uma loja sua em uma região é tomada como símbolo da influência dos Estados Unidos.

A carga simbólica de uma marca, portanto, atua no imaginário dos consumidores e influencia
nas decisões de compra. Por isso, o significado construído pode ser entendido como parte do ativo
de uma marca.

Lembrete

Quando se vende um produto, não se comercializam apenas seus


atributos, mas também os benefícios que eles carregam. Ao comprar um
iPhone, por exemplo, a pessoa adquire não só um aparelho que lhe permite
falar com outras pessoas e acessar a internet, mas também o status e a
modernidade que a marca representa.

Assim, a imagem que a marca constrói é de extrema importância para os negócios da empresa.

Margaret Mark e Carol Pearson, na obra O Herói e o Fora da lei, abordam como as marcas se valem
do poder dos arquétipos na sua construção. As autoras identificam 12 arquétipos a que geralmente as
marcas se associam e os relacionam com as motivações dos consumidores. São eles:

• Criador;

• Prestativo;

• Governante;

• Bobo da corte;

• Cara comum;

120
STORYTELLING

• Amante;

• Herói;

• Fora da lei;

• Mago;

• Inocente;

• Explorador;

• Sábio.

Mas o que seriam os arquétipos? Carl Jung, que em seus estudos trabalhou bastante essa questão,
define-os como “formas ou imagens de natureza coletiva, que ocorrem em praticamente toda a Terra
como componentes de mitos e, ao mesmo tempo, como produtos individuais de origem inconsciente”
(apud MARK; PEARSON, 2019, p. 18).

Jung observou que as fantasias humanas seguem padrões narrativos bem conhecidos porque
compartilhamos uma herança psíquica que subverte as diferenças de tempo, espaço e cultura. Os
arquétipos remetem, dessa forma, a modelos universais e atemporais.

Segundo Joseph Campbell (apud MARK; PEARSON, 2019, p. 18):

Jung tomou emprestado o conceito de arquétipos das fontes clássicas,


incluindo Cícero, Plínio e Santo Agostinho. Adolf Bastian lhes deu o nome de
“ideias elementares”. Na Austrália, eram denominados “os Eternos do Sonho”.

Para Campbell, mitos e arquétipos são expressões do eterno impulso humano de encontrar um
significado para a criação.

Há, portanto, figuras que permeiam o imaginário (ou o inconsciente) coletivo e que se manifestam
nas narrativas.

Repare, por exemplo, na imagem arquetípica presente em Cinderela. Temos a ideia do amor ideal,
entre a moça pobre e o príncipe, que, até hoje, sustenta tantas outras estórias em filmes e romances,
apesar das mudanças culturais e ideológicas.

Segundo Mark e Pearson (2019), algumas marcas, sabidamente, procuram se associar a uma dessas
figuras. Para elas, alcançar o significado arquetípico é um pré-requisito para a eficácia do marketing.

As autoras apresentam, no quadro a seguir, uma lista dos arquétipos, com as respectivas funções
na vida das pessoas e com exemplos de marcas que associam sua imagem a eles. Segundo elas, “os
121
Unidade II

arquétipos proporcionam o elo perdido entre a motivação do cliente e as vendas dos produtos” (MARK;
PEARSON, 2019, p. 27).

Quadro 1 – Os arquétipos e suas funções básicas na vida das pessoas

Arquétipo Ajuda as pessoas a Exemplo de marcas


Criador Criar algo novo Williams-Sonoma
Prestativo Ajudar os outros AT&T (Ma Bell)
Governante Exercer o controle American Express
Bobo da corte Se divertirem Miller Lite
Cara comum Estarem bem assim como são Wendy’s
Amante Encontrar e dar amor Hallmark
Herói Agir corajosamente Nike
Fora da lei Quebrar as regras Harley-Davidson
Mago Influir na transformação Calgon
Inocente Manter ou renovar a fé Ivory
Explorador Manter a independência Levi’s
Sábio Compreender o mundo em que vivem Oprah’s Book Club

Fonte: Mark; Pearson (2019, p. 27).

As imagens arquetípicas sugerem a realização de desejos humanos, dando vazão a emoções e a


anseios profundos. E, na sociedade pós-moderna, marcada pelo consumismo, pelo individualismo e pela
ausência de utopias, entre outras características, a mercadoria desempenha uma função mediadora
entre o indivíduo e sua satisfação.

E como essas imagens arquetípicas são trabalhadas? Por meio de narrativas. As narrativas criam
significados, e isso é fundamental para as pessoas.

Palacios e Terenzzo (2016, p. 256) destacam que vivemos em uma sociedade em que a funcionalidade
de um produto é um pré-requisito, ou seja, não se considera a possibilidade de que ele não funcione
e, nesse cenário, as decisões de compra são baseadas nas expectativas de que a compra promova
experiências positivas. Para Mark e Pearson (2019, p. 31), “os arquétipos fazem a intermediação entre
os produtos e a motivação do consumidor porque oferecem uma experiência intangível do significado”.

Lembrete

Lembre-se de que, quando mencionamos os mitos, falamos de ideias


comuns a diferentes povos em diferentes épocas. Mudam-se os elementos
concretos dos mitos, mas permanecem as ideias subjacentes. Os arquétipos
estão presentes nas narrativas míticas.

122
STORYTELLING

O esquema a seguir posiciona, em eixos ortogonais, os principais impulsos humanos. Todos nós
tendemos a um ou a outro ponto conforme o momento de nossas vidas. Em algumas fases, queremos
ter mais independência, não desejamos nos encaixar em nenhum grupo. Em outras palavras, aspiramos
nos sentir integrados, valorizamos o sentimento de pertencimento.
Estabilidade

Pertença Independência

Mestria

Figura 35 – Eixos da teoria motivacional

O quadro a seguir mostra a divisão em grupos dos doze arquétipos muito explorados pelas marcas
de acordo com os impulsos humanos, descrevendo, também, os medos e os anseios com os quais
eles trabalham.

Quadro 2 – Relação entre os arquétipos e a motivação do consumidor

Estabilidade & Pertença & Risco & Independência &


Motivação controle prazer mestria satisfação
Criador Bobo da corte Herói Inocente
Prestativo Cara comum Fora da lei Explorador
Governante Amante Mago Sábio
Ruína financeira, Exílio, orfandade, Ineficácia,
Medo do Cair na armadilha,
doença, caos abandono, ser impotência,
consumidor ser traído, vazio
incontrolável esmagado desamparo
Ajuda o Ter amor/ Encontrar a
Sentir-se seguro Realizar-se
consumidor a: comunidade felicidade

Fonte: Mark; Pearson (2019, p. 31).

Observe que as figuras do Criador, do Prestativo e do Governante atraem as pessoas que valorizam
a estabilidade e desejam se sentir seguras. Embora as figuras apresentem características diferentes
(criar algo novo, ajudar as pessoas e exercer o controle, respectivamente), elas encontram-se sob o
mesmo impulso.

No segundo grupo, temos as figuras do Bobo da corte, do Cara comum e do Amante, que têm
em comum a valorização do sentimento de pertença, de ser bem aceito. Os tradicionais comerciais
de marcas de cerveja costumam trabalhar esses arquétipos, apresentando a bebida como forma de se
pertencer a um grupo e de se divertir.

O Herói, o Fora da lei e o Mago, por sua vez, valorizam a mestria, a capacidade de arriscar-se a algo
excepcional.

123
Unidade II

Por fim, o Inocente, o Explorador e o Sábio estão relacionados à independência, à autonomia.

As marcas, de acordo com seus produtos e seu público-alvo, procuram associar-se preferencialmente
a um arquétipo.

Segundo Margaret Mark e Carol Pearson (2019), parte da responsabilidade de a marca Levi’s ter
perdido prestígio e participação no mercado deve-se ao fato de que ela não se manteve fiel a um
arquétipo. Antes, associava-se ao Explorador, depois passou para o Cara comum e, na sequência, mudou
para o Bobo da corte. Formou uma colcha de retalhos arquetípica, o que comprometeu sua imagem.

As autoras também citam a postura da Nike, que durante muito tempo adotou a figura do Herói e

tornou-se estereotipada e insegura naquele papel. Demonstrou publicamente


sua perda de autoconfiança, trocando de agências de publicidade e gerentes
de produto – quando a verdadeira solução estava em aproveitar com
mais profundidade e segurança a Jornada do Herói, inesgotável fonte de
inspiração para o arquétipo do Herói (MARK; PEARSON, 2019, p. 24).

No caso da Nike, devemos também lembrar as várias denúncias, que circularam na imprensa e nas
redes sociais, sobre a exploração de mão de obra na fabricação de seus produtos. Em um contexto
de rápida profusão de informações e de uma formação ideológica que preza as atitudes éticas de
responsabilidade socioambiental, tais acusações tiveram impacto na marca.

Mark e Pearson (2019) citam a ação da Coca-Cola como um exemplar caso do arquétipo do Inocente,
com a promessa do paraíso. A felicidade tem sido tema frequente nas campanhas da marca, ainda
que com variações nas figuras que a cobrem.

Há alguns anos, uma campanha veiculada no país apresentava um comercial em que o personagem,
um menino, orgulhava-se de seu pai, motorista da empresa, que levava alegria aos consumidores,
envasada nas garrafas do refrigerante. Um erro, porém, na frase final da peça prejudicou a mensagem,
pois dizia: “Meu pai é motorista da Coca-Cola, mas também leva alegria a muita gente”. O uso da
conjunção adversativa (“mas”) deu sentido negativo à profissão do pai e, consequentemente, à marca.
O erro foi posteriormente corrigido.

Saiba mais

Para se aprofundar nos arquétipos propostos por Margaret Mark e Carol


Pearson, leia:

MARK, M.; PEARSON, C. O Herói e o Fora da lei: como construir marcas


extraordinárias usando o poder dos arquétipos. São Paulo: Cultrix, 2019.

124
STORYTELLING

Resumo

Nesta unidade, iniciamos a apresentação do storytelling como


ferramenta de comunicação.

Expusemos que, apesar de a narrativa ser a essência do jornalismo, a


padronização do relato jornalístico segundo os moldes norte-americanos
de produção da notícia retirou da profissão a capacidade de construir
histórias envolventes. Por isso, o storytelling tem se mostrado uma técnica
capaz de quebrar o tom monocórdico e burocrático dos textos formatados
pelos manuais de redação.

Além disso, a construção de narrativas sobre a história das marcas ou


sobre experiências de consumidores tem se mostrado eficiente instrumento
na consolidação da imagem das marcas.

Vimos, também, que as marcas utilizam arquétipos na construção


de sua imagem. Apresentamos, em linhas gerais, o estudo de Mark e
Pearson, segundo o qual há 12 arquétipos – divididos em quatro grupos
de acordo com o impulso humano predominante – os mais comumente
explorados pelas empresas.

Exercícios

Questão 1. Leia o texto a seguir.

Pacientes são presenteados com concerto dentro de hospital

JAIRO MARQUES
DE SÃO PAULO – 18/12/2013

Quando os acordes de “Como é Grande o meu Amor por Você”, de Roberto Carlos, começaram
a tomar conta de um dos quartos da enfermaria da Santa Casa de São Paulo, na manhã de ontem
(17), as pacientes Janete Aparecida dos Santos, 60, e Rosa Vanzo, 67, deixaram as dores de lado e se
emocionaram às lágrimas.

E não foram apenas as duas que puderam receber “flores” representadas por obras de Vivaldi ou de
Mozart, como diz o maestro e médico Samir Wady Rahme, que comandou o concerto.

Durante toda a manhã de ontem, em comemoração aos dez anos do projeto “Música nos Hospitais”,
internos, visitantes e funcionários foram presenteados com obras clássicas entoadas no local por 14
instrumentistas.
125
Unidade II

“Entrei na igreja para me casar ao som dessa música. Que momento mais lindo”, diz Janete enquanto
ouve “Jesus, Alegria dos Homens”, de Johann Sebastian Bach.

Internada desde o começo do mês para combater uma hepatite, ela tirou várias vezes a máscara de
respiração durante a apresentação para vibrar e sorrir.

Alma

“Música tem um poder enorme de agir positivamente nas pessoas. Grandes mestres trabalharam
muitos anos para adquirir uma fórmula em suas composições que transmitisse valores universais e uma
força de pensamento. A música é linguagem da alma”, afirma Rahme.

A iniciativa, que é bancada pelo Ministério da Cultura, pela Associação Paulista de Medicina e pela
multinacional farmacêutica Sanofi, já percorreu 53 hospitais em 19 cidades do país.

“Estamos lisonjeados em receber esse concerto aqui na Santa Casa. O som leva alegria e tranquilidade
para todos os que estão no ambiente”, declarou o médico Raimundo Rafaeli Filho, diretor clínico da
instituição.

Em tratamento contra um câncer no pulmão, dona Rosa recebeu a notícia de que teria alta
médica e iria para casa, depois de mais de um mês de internação, no mesmo momento em que
acompanhava o concerto.

“Que dia maravilhoso, meu Deus, que momento gostoso estou vivendo agora.”

A apresentação ainda deu direito aos presentes se encantarem também com “Fascinação”, eternizada
na voz de Elis Regina, “Smile”, de Charlie Chaplin, “Sampa”, de Caetano Veloso, e “Trem das Onze”, de
Adorinan Barbosa.

Disponível em: https://bit.ly/3ciKnyW. Acesso em: 18 jan. 2021.

Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas.

I – O início do texto serve como um “anzol” para fisgar o leitor, pois já esgota o fato em si mesmo ao
apresentar os seis elementos básicos do lead.

II – O texto esclarece, para o leitor, o que é o projeto “Música nos Hospitais” no primeiro parágrafo,
valendo-se do formato da pirâmide invertida.

III – O texto utiliza a técnica do storytelling, pois apresenta uma cena inicial fictícia, sem
referencialidade.

126
STORYTELLING

Assinale a alternativa correta.

A) Nenhuma afirmativa é correta.

B) Somente a afirmativa I é correta.

C) Somente a afirmativa III é correta.

D) Somente as afirmativas I e II são corretas.

E) Somente as afirmativas II e III são corretas.

Resposta correta: alternativa A.

Análise da questão

O texto vale-se do storytelling, mas o discurso jornalístico não pode ser ficcional. Ele apoia-se na
referencialidade dos acontecimentos. O texto não segue o padrão da notícia, em que temos lead e
formato de pirâmide invertida. O leitor, só com o primeiro parágrafo, não tem as informações básicas
sobre o que aconteceu. A estrutura textual apresenta as fases apontadas por Ana Estela Pinto para uma
narrativa jornalística mais envolvente.

Questão 2. Leia o texto a seguir.

A cada 6 horas, uma pessoa morrerá de melanoma na Austrália. Como esse dado virou um dos
exemplos de storytelling no marketing?

Essa percepção estimulou a missão da empresa global de tecnologia IBM a usar a inteligência
artificial para “superar o melanoma” e defender a detecção precoce do câncer mais letal.

O Watson, a IA de ponta da empresa, pode detectar melanoma com 31% mais precisão do que o olho
nu – algo que pode fazer toda a diferença para a sobrevivência.

Lançado em Bondi Beach durante a alta temporada, os australianos todos os dias ficaram diante
de um espelho e foram analisados pela Watson, que determinou e examinou elementos diversos, como
idade, sexo e cobertura de proteção solar.

Se quaisquer riscos ou irregularidades fossem detectados, o participante iria direto para um


especialista no local para tratamento adicional.

Durante um único fim de semana, mais de 800 pessoas foram ajudadas, com 22% sendo encaminhadas
para uma consulta de acompanhamento.

127
Unidade II

Com o Watson, a IBM conseguiu se mostrar não apenas como uma marca de tecnologia de primeira
linha, mas também como uma empresa que se preocupa ativamente com a saúde de seus consumidores.

HAYFAZ, A. Exemplos de storytelling geniais de marcas que você precisa conhecer.


Vooozer, [s.d.]. Disponível em: http://bit.ly/38sGoyC. Acesso em: 29 jan. 2021 (adaptada).

Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas e a relação proposta entre elas.

I – No caso relatado, a empresa valeu-se do arquétipo do Prestativo, que trabalha com as necessidades
humanas de estabilidade e controle.

PORQUE

II – As empresas têm utilizado a técnica do storytelling para chamar a atenção dos consumidores e
construir sua imagem.

Assinale a alternativa correta.

A) As afirmativas I e II são proposições verdadeiras, e a II justifica a I.

B) As afirmativas I e II são proposições verdadeiras, e a II não justifica a I.

C) A afirmativa I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.

D) A afirmativa I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.

E) As afirmativas I e II são proposições falsas.

Resposta correta: alternativa B.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: a IBM mostrou-se uma empresa preocupada com a saúde das pessoas, o que se
relaciona com o arquétipo do Prestativo. Esse arquétipo liga-se ao desejo que as pessoas têm por
estabilidade e controle.

II – Afirmativa correta.

Justificativa: o storytelling tem sido uma importante ferramenta para a construção das imagens
das marcas.

As duas afirmativas não têm entre si uma relação de causa e consequência.

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