Teoria Aula 1 - Notas de Aula

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 7

TEORIA LITERÁRIA I – NOTAS DE AULAS

Prof. Rodrigo Garcia Barbosa (UFLA)

SEMANA 1

1.1 O que é Teoria Literária?

Para responder a questão, vejamos o que dizem Roberto Acízelo de Souza 1 e


Antoine Compagnon 2 sobre o que é e como se desenvolveu a disciplina Teoria
Literária.

• Segundo Roberto Acízelo de Souza, a teoria da literatura3 se configura como um


desdobramento dos estudos literários, paralelamente a disciplinas como a
história da literatura e a crítica literária. Sobre sua origem, duas hipóteses são
apresentadas:

o A primeira remonta ao final do século XVIII e início do XIX, quando autores


4
como Schlegel , Goethe, Carlyle e Emerson desenvolveram uma
abordagem crítica da literatura que se concretizou como “uma espécie de
discurso que não é avaliação dos méritos relativos das produções
literárias, história intelectual, filosofia moral, epistemologia ou profecia
social, mas tudo isso amalgamado num novo gênero” (RORTY apud
SOUZA, 2006, p. 51); gênero que procurava compreender o fenômeno
literário em perspectiva ampla, considerando tanto aspectos constituintes
das obras quanto suas inter-relações com a história, a sociedade e a
cultura. Entretanto, tal iniciativa não vingou ao longo do século XIX,

1
SOUZA, Roberto Acízelo de. Iniciação aos estudos literários: objetos, disciplinas, instrumentos.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
2
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2001.
3
Apesar das potenciais diferenças entre as expressões “teoria da literatura” e “teoria literária” – em
que a primeira designaria “a reflexão sobre as condições da literatura, da crítica literária e da história
literária” e a segunda “uma crítica da teoria da literatura [...] [que] passa a existir quando a abordagem
dos textos literários não é mais fundada em considerações não linguísticas” (COMPAGNON, 2001, p.
24) – não exploraremos estas diferenças aqui, nos concentrando somente nos aspectos relacionados
a uma abordagem teórica dos fenômenos literários, presentes nos dois conceitos.
4
Como destaca Souza (2016, p. 52), no início do século XIX Friedrich Schlegel utiliza, ainda que de
forma isolada, a expressão “teoria da literatura”.
2

prevalecendo nele uma abordagem historicista e valorativa da literatura,


que interpretava as obras literárias por uma perspectiva determinista,
limitada a elementos exteriores a elas, como o contexto em que foram
produzidas ou a personalidade do autor, e que muitas vezes se baseava
em impressões e julgamentos subjetivos e pouco rigorosos.

o A segunda hipótese situa o aparecimento da teoria literária (um


reaparecimento, considerando a interrupção acima mencionada) no início
do século XX, em um contexto de contestação do historicismo, do
determinismo e do subjetivismo dominantes no século anterior, de
desenvolvimento de novas teorias linguísticas e de experiências radicais
com a linguagem empreendidas pelos movimentos artísticos de
vanguarda. Neste cenário, em que surgem novas concepções sobre
língua e linguagem, uma nova abordagem dos fenômenos literários
também se desenvolve, mais atenta aos elementos internos que
constituem e caracterizam as obras literárias e mais rigorosa no
estabelecimento de relações entre tais elementos e o meio em que as
obras são produzidas e circulam. Publicações como Notas para uma teoria
da literatura (1905), de Alexander Portebnia, e Teoria da literatura (1925),
de Boris Tomachevski, ambos autores ligados à corrente teórica
conhecida como formalismo russo, contribuíram não somente para o
estabelecimento do nome da disciplina, mas também de seus
fundamentos, apesar da diversidade de correntes teóricas que se
desenvolveram ao longo do século XX, baseadas em diferentes
pressupostos teóricos e concepções sobre a natureza dos objetos
literários5. Entretanto, a consolidação da disciplina e de seu nome se dará
a partir do prestígio acadêmico alcançado pelo tratado Theory of
Literature, publicado em 1949 por René Wellek e Austin Warren, obra que
“sistematizou e harmonizou uma série de contribuições que [...] tinham em
comum a rejeição tanto de uma história da literatura factualista quanto da
ideia de que as composições literárias, não se prestando a estudo

5
Dentre as diferentes correntes teóricas desenvolvidas ao longo do século XX podemos mencionar,
além do formalismo russo, o new criticism, a estilística, a crítica marxista, a crítica sociológica, o
estruturalismo, a semiótica, a estética da recepção e os estudos culturais, entre outros.
3

analítico, seriam passíveis apenas de fruição e julgamento explícito e


subjetivo” (SOUZA, 2006, p. 53).

• Em resumo, segundo Roberto Acízelo de Souza, a teoria da literatura se


consolidou, ao longo do século XX, como uma disciplina que postula uma nova
abordagem das produções literárias, distinta da história e da crítica literárias
predominantes no século XIX. Tal abordagem se caracteriza por:

o Privilegiar a “natureza verbal” e o “caráter linguístico” da literatura, ou seja,


buscar compreender os elementos e estruturas que compõem os textos
literários, concebidos como formas particulares e especiais de
organização da linguagem. Daí a prevalência, pelo menos numa primeira
etapa de desenvolvimento da disciplina, de um tipo de análise imanente
das obras, mais atenta aos seus elementos internos (a seleção e
organização das palavras, frases, imagens, cenas etc.) que aos externos
(as condições sociais e históricas de produção ou as experiências vividas
pelo autor e seus pares, por exemplo).

o Conceber que a linguagem literária não possui um sentido evidente, que


se pode simplesmente constatar, mas que seu significado, mesmo nos
casos em que se apresenta de forma obscura ou hermética, aparentando
ausência de sentido, pode e deve ser alcançado a partir da análise
criteriosa de seus componentes e da demonstração precisa de sua
coerência, diferenciando-se assim de uma leitura de fruição (não teórica,
que visa apenas o prazer estético da leitura) e de impressões pessoais
sobre os textos (sem os critérios e as exigências metodológicas de uma
abordagem teórica).

• Complementando o que foi apresentado acima, Antoine Compagnon destaca


certos aspectos relacionados à teoria literária que ajudam na compreensão inicial
da disciplina e de seus pressupostos. Dentre esses aspectos, podemos destacar
os seguintes:
4

o Segundo o autor, a relevância da teoria literária se deve principalmente


pelo “combate feroz e vivificante que empreende contra as ideias
preconcebidas dos estudos literários, e pela resistência igualmente
determinada que as ideias preconcebidas lhe opõem” (COMPAGNON,
2001, p. 16). Ou seja, a abordagem teórica da literatura se distingue por
ser uma abordagem crítica, cética, que desconfia dos discursos
circulantes sobre o seu objeto de análise e os põe a prova, identificando e
avaliando seus fundamentos a partir de elementos minimamente
demonstráveis. Ou seja, “A teoria se opõe ao senso comum”
(COMPAGNON, 2001, p. 21). Com isso ela se diferencia da mera opinião
ou das impressões subjetivas e convencionais sobre a literatura; e
também por isso sofre a resistência das ideias estabelecidas sobre seu
objeto, consolidadas historicamente e geralmente refratárias aos
questionamentos críticos e às elaborações teóricas.

o Se a teoria literária se opõe ao senso comum sobre a linguagem e os


objetos literários, o mesmo pode-se dizer em relação às correntes
teóricas. Segundo Compagnon (2001, p. 18): “Há teoria quando as
premissas do discurso corrente sobre a literatura não são mais aceitas
como evidentes, quando são questionadas, expostas como construções
históricas, como convenções.” Ou seja, o mesmo caráter crítico e cético
que opõe o discurso teórico ao senso comum também pode opor
discursos teóricos a discursos teóricos – umas correntes teóricas a
outras6. Isso se explica pela permeabilidade da matéria que constitui os
objetos literários: a linguagem. Como meio de inserção do homem no
mundo, já que através dela interpretamos e explicamos tudo e todos a
nossa volta, além de nós mesmos, a linguagem se constitui como um
objeto atravessado pelos diversos fatores que compõem a complexa
realidade em que vivemos, coletiva e individualmente, e que nos são
apresentados isoladamente pela arte, pela linguística, pela história, pela
filosofia, pela física, pela economia, pela psicologia, pela biologia, pela
antropologia, pela teologia, pela sociologia, pela matemática e por tantas

6
As diferenças entre tais correntes, como as mencionadas na nota anterior, serão abordadas na
disciplina Teoria Literária II.
5

outras ciências ou áreas de conhecimento que buscam compreender, a


partir de perspectivas específicas, a vida e o mundo em que ela se
desenvolve. Por isso, novas e diferentes concepções sobre a natureza e
as implicações da linguagem, particularmente aquelas relacionadas à
literatura, alimentam novas e diferentes correntes teóricas que buscam
compreendê-la e explicá-la a partir de diferentes pressupostos, às vezes
opondo-se umas às outras. Ainda assim, ambas compartilham o caráter
crítico e metódico que diferencia uma abordagem teórica das opiniões e
impressões em geral, ou do senso comum, como destaca Compagnon.

1.2 O que é Literatura?

O título deste tópico possibilita diferentes abordagens que certamente não esgotam
a questão. Mesmo assim, alguns pontos permitem introduzir o problema de forma a
lançar as bases para reflexões mais profundas e matizadas.

• Ao discorrer sobre o que é literatura, Roberto Acízelo de Souza (2006) refaz um


percurso histórico que engloba tanto a palavra quanto o conceito, ou seja, a
trajetória histórica do vocábulo através de diferentes línguas e os pressupostos e
valores que definiram sua atribuição ou não a diferentes textos durante este
percurso. Entretanto, apesar de didática e útil para o esclarecimento da questão,
tal separação entre palavra e conceito não ocorre na prática, no uso concreto e
cotidiano do termo, já que o nome sempre estará associado a certos atributos, às
vezes mais, às vezes menos rigorosos. Mesmo assim, o recorte se justifica como
introdução ao tema.

o Partindo do vocábulo grego γραμμα (grámma) e de sua tradução latina


littera, ambos significando “letra do alfabeto, caráter da escrita”, Souza
(2006, p. 26) percorre suas variações vocabulares (grammata; litterae) e
de significado, que passam por “carta”, “obra escrita”, “instrução” e
“cultura” até chegar ao vocábulo litteratura, associado no século II a.C. a
arte ou habilidade de ler e escrever, ou ainda cultura obtida mediante o
domínio desta arte.
6

o Cerca de três séculos depois, o vocábulo litterae é utilizado para nomear o


estudo das artes e das letras gregas em sua vertente escrita – em
oposição à tradição oral que, no entanto, dá origem a essa produção.
Neste contexto, o caráter representativo de uma “ideia geral de homem”,
atribuído pelos romanos à cultura helênica, associa litterae a humanitas
(humanidade), parceria que será retomada em outros momentos da
história (literatura e humanidades).

o Nos séculos II e III d.C., com a institucionalização do cristianismo em


Roma, a expressão litteratura saecular será empregada para designar um
conjunto de escritos distintos dos escritos cristãos, designados por
scriptura. Mas ao longo do período medieval, o vocábulo littera e seus
derivados cairão em desuso até o Renascimento.

o A partir do Renascimento, com a retomada da cultura clássica humanista,


de tradição greco-latina, e a afirmação das chamadas “letras seculares”,
distintas dos textos eclesiásticos, os vocábulos derivados de littera voltam
a circular, tanto na expressão latina litterae humanae quanto nos seus
derivados em línguas vernáculas, como o francês e o inglês – lettres
humaines e bonnes lettres (século XVI), good letters (século XVII), belles
lettres (século XVII), littérature e literature (século XVIII) – reforçando o
caráter secular e a ligação com a cultura clássica e humanista.

o Em língua portuguesa, o vocábulo seguirá o mesmo percurso histórico,


passando do latim litteratura à variante vernácula letradura (séculos XIV
ou XV) – ainda conservando o significado de “habilidade de ler e escrever,
gramática, erudição, ciência [...], incorporando ainda duas acepções
derivadas: caligrafia e alfabeto” (SOUZA, 2006, p. 28) – e, a partir do
século XVIII, à forma literatura, quando, como outros vocábulos
vernáculos derivados da mesma fonte latina, deixará de significar a
habilidade de ler e escrever para designar um corpo específico de textos,
vinculados às ideias de erudição e conhecimento das letras e a um
7

conjunto de saberes considerados universais, “relevantes para todos os


homens, por isso chamado humanidades” (SOUZA, 2006, p. 30).

o Contemporaneamente, o sentido da palavra literatura se restringe


progressivamente a partir do século XVII, acompanhando a tendência de
especificação dos discursos e separação entre as ciências e áreas de
conhecimento. Assim, de: a) “literatura como um corpo de escritos [que]
corresponde a um conceito amplo de humanidades, abrangendo pois a
produção escrita em geral (menos a eclesiástica): filosofia, eloquência,
história, ciência, carta, prosa ficcional, poesia”; passa-se a: b) “um
conceito mais restrito de humanidades, isto é, o conjunto de escritos não
científicos”, que também se fragmentará em filosofia, ciências do espírito
(morais, políticas, históricas, culturais, humanas, sociais etc.) e finalmente:
c) “literatura stricto sensu (abrangendo a prosa ficcional e a poesia, ou, em
termos talvez mais aceitáveis, os gêneros chamados lírico, narrativo e
dramático)” (SOUZA, 2006, p. 30).

LEITURAS INDICADAS:

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo


Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
o “Introdução: O que restou de nossos amores?” (p. 11-28).

SOUZA, Roberto Acízelo de. Iniciação aos estudos literários: objetos, disciplinas,
instrumentos. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
o Capítulos “Literatura” (p. 22-39) e “Teoria da Literatura” (p. 47-62).

Você também pode gostar