Weber
Weber
Weber
58-81)
Vermelho: Antônio Flávio Pierucci (O Desencantamento
do Mundo) (P. 7-8, 150-166)
Como se entrelaçam, para Weber, as dimensões existencial e profissional do cientista no
exercício da sua vocação? Quais são as contribuições que a sociologia pode dar ao homem do
nosso tempo, às voltas com mecanismos de dominação e alienação tão perfeitos e sutis como
os que nos controlam? Que perspectivas oferece a sociologia compreensiva para que esse
homem reencontre aquilo que nossa época utilitária, desencantada e racionalizada, baniu para
o porão do inútil, a saber: a dimensão interior do nosso ser, a nossa capacidade para sermos
felizes nesta vida e neste mundo?
A perspectiva interpretativa do cientista é, por outra parte, necessariamente unilateral por sua
relação com seus valores. Dessa forma, afasta-se a pretensão de qualquer leitura do real que
se queira total, definitiva. A inesgotabilidade do real, sustentada com insistência por Weber,
estabelece o conhecimento científico da sociedade em uma postura humilde: a sua superação
permanente é uma condição da sua existência.
Como é concebida a lei (no plano do pensamento) frente à realidade (plano empírico) cujos
aspectos se pretende captar? Para Weber, um conceito é um “recipiente provisório [...] para
descrever provisoriamente uma pluralidade de fenômenos particulares [...] cujo status lógico
nem sempre é claro (Weber, 1985a: 14)”.
“Para o conhecimento dos fenômenos históricos em sua condição concreta, as leis mais gerais
são comumente também as menos valiosas, por serem as mais vazias de conteúdo. Quanto
mais amplo for o campo de validade de um conceito genérico – sua extensão –, tanto mais nos
desvia da riqueza da realidade, uma vez que para conter o comum ao maior número possível
de fenômenos deve ser o mais abstrato possível e, consequentemente, mais pobre em
conteúdo (Weber, 1973a: 68)”.
O autor formulou o seu conceito de “tipo ideal” como uma entidade situada entre a riqueza e
multiplicidade sempre irrepetível do empírico, e a abstração do universo conceitual próprio da
ciência social.
Para o autor existem três fronteiras do conhecimento discursivo. A primeira é traçada pelo
hiatus irrationalis que separa o conceito (obtido mediante a abstração do individual) do seu
referente empírico (realidade constantemente dada de modo concreto e individual). A
segunda está dada pelos limites da compreensão como fundamento da explicação sociológica.
O campo do comportamento humano acessível à compreensão resulta delimitado pelo
universo valorativo do investigador. Uma pessoa não pode compreender aquilo que, a partir
de seus pontos de vista, carece de sentido. Além disso, nossa maior ou menos sensibilidade
frente a condutas sociais baseadas em valores alheios à nossa cultura também limita a
compreensão.
O texto A ciência como vocação (de uma conferência em Munique, 1917) é um dos mais lidos
de Weber, e aquele em que o termo “desencantamento” mais aparece (seis vezes). A
expressão de sua autoria passou ao linguajar corrente e seu autor lembrado como o homem
que fez da ideia de desencantamento não meramente um tema importante para pensar a vida
moderna, mas talvez o mais essencial aspecto da modernidade. Em sentido estrito o termo
significa “desmagificação” (do alemão Entzauberung), literalmente quer dizer “quebrar o
feitiço”. Possui dois sentidos, ora simultâneos, ora alternados ou intercalados: o
desencantamento pela religião e o desencantamento pela ciência. O primeiro consiste na
ascensão da forma caracteristicamente ocidental de racionalismo no mundo moderno,
enquanto o segundo consiste em um diagnóstico de época (uma visão crítica, tensa, muito
menos otimista). Em outras palavras, o primeiro significado seria uma conceituação estrita, um
fato em si, sem juízo de valor, enquanto o segundo seria uma visão qualitativa que designa a
perda de sentido (o primeiro seria um conceito produtivo e o segundo um conceito crítico). Na
maioria de seus usos da palavra ainda há a ideia de desmagificação religiosa (Habermas 1987 -
destaque mais para a extinção do pensamento mágico do que das práticas mágicas), mas
nunca sozinho; sempre acompanhado da ideia mais ampla de perda de sentido.
A questão do sentido da ciência perde o seu chão, pois dele a mesma nada tem a dizer.Ela que
pretende tudo calcular, prever e dominar, não é capaz de definir nenhum valor, sequer mesmo
de dizer se vale a pena ser cientista e dedicar a vida à pesquisa. Tolstói faz tal indagação: “Qual
é, afinal, o sentido da ciência como vocação? [...] Ela não tem sentido, já que não consegue
responder à indagação que realmente nos importa: que devemos fazer? Como devemos
viver?” (Ciência e Política: duas vocações, 35-36).
Nos tempos modernos andam juntas a ciência e a falta de sentido. A primeira desvenda a
“objetiva” ausência de “sentido objetivo” do mundo natural e da existência humana,
ironicamente. De acordo com a ciência o “ser” tem precedência sobre o “deve ser” (a verdade
objetiva natural é mais importante do que preceitos éticos). Em Consideração intermediária
Weber já havia elucidado esse hiato: “O cosmos da causalidade natural e o pretendido cosmos
da causalidade ética compensatória mantiveram-se numa oposição irreconciliável. E embora a
ciência, que criou aquele cosmos, parecesse não conseguir dar uma explicação segura de seus
próprios pressupostos últimos, arvorou-se em nome da ‘honestidade intelectual’ com a
seguinte pretensão: ser a única forma possível de consideração pensante do mundo”.
Todas as visões de mundo são o que são porque não são científicas, dão sentido. Na
conferência de 1917 o autor pergunta-se “que os conhecimentos da astronomia, da biologia,
da física ou da química pudessem nos ensinar algo sobre o sentido do mundo, ou tão-somente
pudessem nos apontar as pegadas de tal sentido, se é que isso existe?”. Em dado momento o
autor chega a qualificar a ausência de sentido como “sempre mais aniquiladora”.
Para Weber o conhecimento científico em si se exercita sem confiar em qualquer fim último ou
valor transcendental, e mesmo assim progride sem parar, de forma inerente. Contudo, não
tem um paradeiro. Seu desenvolvimento é progresso no sentido técnico, a sua lógica interna a
arrasta de modo irresistível a acumular um estoque sempre maior e atualizado de
conhecimento sobre o mundo. O processo de investigação é aberto por sua própria natureza,
sendo a ciência ars inveniendi, a arte da descoberta. Seu percurso é revolucionário,
ascendente e unidirecional, mas não se consuma, não tem repouso; sendo provisório,
limitado, especializado, e por isso parcial. Nunca total ou definitivo. Nessa constante
autosuperação reside, para Weber, o problema de sentido da ciência.
Esse pensamento dos limites da ciência é baseado em Kant. Segundo Pierucci Weber volta a
deixar clara a sua dívida com Kant na “verdadeira meditação filosófica” que é a conferência de
1917. Kantianamente falando os pressupostos das ciências naturais são vazios, sem sentido.
Em outras palavras, Weber sugere que o homem moderno busque o seu interior
(individualmente), sempre ofuscado pela tendência atual exteriorizante, objetivizante e
massificante. Neste caso o autor aproxima-se de Nietzche. Não se trata, porém, de considerar
a ciência indiferente com relação aos imperativos éticos da conduta humana, mas sim de
desejar para os atores sociais liberdade em suas escolhas. A sociologia compreensiva propõe-
se a ajudar o homem nessa escolha (para que perceba o significado de suas ações), mas não
deve decidir por ele.
“Uma ciência empírica não pode ensinar a ninguém o que se deve fazer, mas apenas o que se
pode fazer e, em certas circunstâncias, o que se quer (Weber, 1973a: 44)”.
No pensamento de Weber, a ênfase se opões à tradição de Hegel e Ranke. Esta tradição tenta
interpretar a pessoa individual, vendo-a como um documento de um todo subjacente; e tem
raízes no pensamento romântico e conservador alemão. Weber incorporou o problema da
compreensão em sua abordagem sociológica que, como ressaltava, era um tipo de Sociologia,
entre outros tipos possíveis. Portanto, chamou sua perspectiva de Sociologia “interpretativa”
ou “compreensiva”. É característico de sua posição racional e positivista o fato de ter ele
transformado o conceito de compreensão, que continuou sendo para Weber uma abordagem
excepcional das Ciências Morais ou Culturais que tratam do homem, e não dos outros animais
ou da natureza inanimada. O autor distingue diferentes tipos de ações motivados. Considera
como do tipo mais “compreensivo” as ações que estão na natureza da adequação racional, e
dos quais a conduta do “homem econômico constitui exemplo destacado.
As ações menos racionais são exemplificadas por Weber em termos da busca de “fins
absolutos”, fluindo de sentimentos afetivos ou dos elementos “tradicionais” (irrefletidos e
habituais, sancionados porque “sempre foi feito assim”). Tais tipos de ações são construídos
operacionalmente em termos de uma escala de racionalidade e irracionalidade. Um recurso
tipológico, uma abordagem nominalista. Dando destaque à incompreensibilidade da conduta
humana, em oposição à simples explicação causal dos “fatos sociais” como ocorre na Ciência
Natural, Weber traça uma linha entre sua Sociologia interpretativa e a physique sociale na
tradição de Condorcet, que Comte chamou de sociologie (Philosophie Positive, vol. IV, p. 132) e
Durkheim desenvolveu de modo tão destacado.
Sua preocupação com os problemas históricos específicos e seu interesse por uma Sociologia
comparada de natureza generalizante estão, assim, relacionados. A diferença entre ambos é
apenas de ênfase. Em suma, o respectivo interesse de pesquisa – na elaboração de um
conceito ou na construção de um objeto histórico – determina seu processo. De qualquer
modo, Weber se interessa pelo uso de concepções generalizadas a fim de compreender a
sociedade como sujeita a regularidades de lei. Para compreender uma sequência de
acontecimentos regulares causalmente, devemos examinar condições comparáveis.
Na Alemanha a carreira do jovem que se dedica à ciência começa com o posto de Privatdozent,
começa a lecionar como residente, sem receber qualquer salário, além das taxas pagas pelos
alunos que se inscreverem. Nos Estados Unidos a carreira começa pelo cargo de assistente
(remunerado). Na Alemanha é extremamente arriscado para um jovem professor sem recursos
expor-se às condições da carreira acadêmica. Nos EUA, onde existe o sistema burocrático, o
jovem acadêmico é remunerado desde o início. Na verdade, seu salário é modesto, mas
começa com uma posição aparentemente segura, por ter um salário fixo. Outra diferença é
que na Alemanha o Privatdozent geralmente ministra menor número de cursos do que deseja,
o professor catedrático ministra os “grandes” cursos e o docente se limita aos secundários.
Nos EUA, durante os primeiros anos de sua carreira, o assistente se vê sobrecarregado
exatamente porque é remunerado. A posição de assistente é, com freqüência, tão precária
quanto a de qualquer existência “quase-proletária”; e a vida universitária alemã está sendo
americanizada, como ocorre com a vida alemã em geral. A questão é que existe uma distância
extraordinária, externa e internamente, entre o chefe dessas grandes empresas capitalistas e
universitárias e o professor catedrático ao estilo antigo.
Todo jovem que se sente atraído pela erudição deve compreender claramente que a tarefa à
sua frente tem um aspecto duplo. Deve ter qualidades não só como erudito, mas também
como professor. E os dois aspectos não coincidem. Pode-se ser um intelectual de destaque e
ao mesmo tempo um professor abominavelmente ruim. A situação, porém, é que as
universidades alemãs estão empenhadas numa competição ridícula em busca de alunos. O
número de alunos matriculados em cada curso/matéria é uma prova de qualificação. A
questão de ele ser considerado um bom professor ou não é determinada pelo número de
alunos que condescendem em freqüentar-lhe o curso. A afluência ou não de alunos a um curso
é determinada em grande parte por elementos exclusivamente externos: temperamento e
mesmo a inflexão de voz do professor. Na verdade, é certo que apresentar os problemas
científicos de modo que uma mente não-instruída, mas receptiva, os possa compreender, seja
a tarefa pedagógica mais difícil de todas. Mas se essa tarefa é ou não realizada não será o
número de alunos que o demonstrará. Essa arte mesma é um dom pessoal e de modo algum
coincide com as qualificações científicas do universitário.
Devemos perguntar aos demais: “você acredita, em sã consciência, que pode ver mediocridade
atrás de mediocridade, ano após ano, passar à sua frente, sem se amargurar e sem sofrer?”.
Naturalmente, recebemos sempre a resposta: “É claro, vivo apenas para a minha vocação”.
Não obstante, comprovei que poucos homens podem suportar essa situação sem
ressentimento. A ciência entrou numa fase de especialização antes desconhecida e isto
continuará. Não só externamente, mas também interiormente, a questão está num ponto em
que o indivíduo só pode adquirir a consciência certa de realizar algo verdadeiramente perfeito
no caso de ser um especialista rigoroso. Sem a paixão, não haverá vocação para a ciência e
seria melhor que vos dedicásseis a qualquer outra coisa. É fato, porém, que nenhum volume
desse entusiasmo pode forçar um problema a produzir resultados científicos. Certamente o
entusiasmo é um pré-requisito da “inspiração”, que é decisiva. Hoje em dia, em círculos de
jovens, há uma noção generalizada de que a ciência se tornou um problema de cálculo, que
envolve apenas o intelecto frio e não o “coração e a alma”. O trabalho não pode substituir a
ideia, nem criá-la, tal como também não o pode o entusiasmo. Entusiasmo e trabalho, e acima
de tudo ambos em conjunto, é que criam a ideia. As ideias nos chegam quando lhes apraz, e
não quando queremos. As melhores ideias ocorrem “ao fumarmos um charuto no sofá”
(Ihering) ou “quando caminhamos por uma rua que sobe lentamente” (Helmholtz), não
quando estamos pensando e procurando em nossa mesa de trabalho. Não obstante, elas
certamente não nos ocorreriam se não tivéssemos pensado à mesa e buscado respostas com
dedicação apaixonada. O trabalhador científico tem de correr o risco existente em todo
trabalho científico: ocorre a “ideia” ou não ocorre? Ele pode ser um excelente trabalhador e
não obstante não ter qualquer ideia própria valiosa. A inspiração não tem um papel menor na
ciência do que na arte.
O trabalho científico está preso ao curso do progresso. Na ciência, sabemos que as nossas
realizações se tornarão antiquadas em dez, vinte, cinqüenta anos. Toda “realização” científica
suscita novas “perguntas”: pede para ser “ultrapassada” e superada. Quem desejar servir à
ciência tem de resignar-se a tal fato. Não podemos trabalhar sem a esperança de que outros
avançarão mais do que nós, e com isso chegamos à indagação da significação da ciência. Por
que alguém se dedica a alguma coisa que na realidade jamais chega, e jamais pode chegar, ao
fim?
A questão é o que a ciência, como vocação, significa para os seus discípulos dedicados. Suscitar
essa questão é indagar a vocação da ciência dentro da vida total da humanidade. Qual é o
valor da ciência?
Bem, quem, hoje, vê a ciência desse modo? Hoje, os jovens pensam exatamente o inverso: as
construções intelectuais da ciência constituem um campo irreal de abstrações artificiais. Aqui
na vida, naquilo que para Platão era o jogo de sombras nas paredes da caverna, pulsa a
realidade genuína; o resto são derivativos da vida, fantasmas sem vida e nada mais. Como
ocorreu essa mudança?
Na Grécia, pela primeira vez, surgiu uma forma prática pela qual era possível colocar os
parafusos lógicos em alguém, de modo que não pudesse expressar-se sem admitir que nada
sabia ou que isto, e nada mais, era a verdade, a verdade eterna que jamais desaparecerá, ao
contrário dos feitos dos homens cegos, que desaparecem. Foi essa a tremenda experiência que
se abriu para os discípulos de Sócrates. E disso parece seguir-se que bastaria descobrir-se o
conceito adequado do belo, do bom ou, por exemplo, da coragem, da alma – ou qualquer
outro – então para se aprender também o verdadeiro ser. E isso, por sua vez, parecia abrir o
caminho para o conhecimento e o ensino de como agir acertadamente na vida e, acima de
tudo, como agir como cidadão do Estado; pois esta questão era tudo para o homem helênico,
cujo pensamento era totalmente político. E por essas razões as pessoas se dedicavam à
ciência.
O que significava a ciência para esses homens? Para os experimentadores artísticos do tipo de
Leonardo e dos inovadores musicais, a ciência significava o caminho para a verdadeira arte, e
isto significava para eles o caminho para a verdadeira natureza. E hoje? A ciência como o
caminho para a natureza e para a arte soaria aos ouvidos dos jovens como uma blasfêmia. O
trabalhador científico, influenciado indiretamente pelo protestantismo e puritanismo,
considerava como sua tarefa mostrar o caminho para Deus. Spener sabia que Deus não se
encontrava no caminho onde a Idade Média o havia procurado. Deus está oculto, Seus
caminhos não são os nossos caminhos, Seus pensamentos não são os nossos pensamentos.
Quem ainda acredita que as descobertas da Astronomia, Biologia, Física ou Química nos
poderão ensinar qualquer coisa sobre o significado do mundo? E finalmente, a ciência como
caminho para Deus? A ciência, essa força especificamente irreligiosa? Depois da devastadora
crítica feita por Nietzsche aos “últimos homens” que “inventaram a felicidade”, posso deixar
totalmente de lado o otimismo ingênuo no qual a ciência – isto é, a técnica de dominar a vida
que depende da ciência – foi celebrada como o caminho para a felicidade. Quem acredita
nisso?
Sob essas pressuposições interiores, qual o significado da ciência como vocação, depois de
desaparecidas todas essas ilusões antigas, o “caminho para o verdadeiro Deus”, o “caminho
para a verdadeira felicidade”? Tolstói deu a resposta mais simples, com as palavras: “A ciência
não tem sentido porque não responde à nossa pergunta, a única pergunta importante para
nós: o que devemos fazer e como devemos viver? É inegável que a ciência não dá tal resposta.
Hoje, as rotinas da vida cotidiana desafiam a religião. O que é difícil para o homem moderno, e
especialmente para a geração mais nova, é estar à altura da existência do trabalho cotidiano. A
busca onipresente de “experiência” nasce dessa fraqueza; pois é uma fraqueza não ser capaz
de aprovar a inexorável seriedade de nossos tempos fatídicos.
O erro dos jovens estudantes é que eles buscam no professor algo diferente daquilo que está à
sua frente. Anseiam por um líder, e não um professor. E são duas coisas diferentes, como se
pode ver imediatamente. Seja-me permitido levar-vos novamente à América. O rapaz
americano aprende muito menos do que o rapaz alemão, apesar de um número incrível de
exames. Na América, a burocracia, que pressupõe o diploma de exame como o bilhete de
entrada para o reino das prebendas, está apenas em seus primórdios. O jovem americano não
tem respeito por coisa alguma, nem por ninguém, pela tradição ou pelo cargo público – a
menos que seja pela realização pessoal dos homens individualmente. É a isso que o americano
chama de “democracia”. A concepção que o americano tem do professor que o enfrenta é: ele
me vende seu conhecimento e seus métodos em troca do dinheiro do meu pai, tal como o
verdureiro vende repolhos à minha mãe. E nenhum jovem americano pensaria que o professor
lhe possa vender uma Weltanschauung ou um código de conduta. Quando o pensamento é
formulado dessa maneira devemos rejeitá-lo.
Amigos estudantes! Vinde às nossas aulas e exigi de nós as qualidades de liderança, sem
compreender que de cem professores pelo menos 99 não pretendem ser líderes em questões
de conduta/nos problemas vitais da vida. Vêde, por favor, que o valor de um homem não
depende de ter ou não qualidades de liderança. O professor que se sente chamado a intervir
nas lutas das opiniões mundiais e posições partidárias, poderá fazê-lo fora da aula. Afinal de
contas, é muito cômodo demonstrar coragem tomando uma posição quando a audiência e os
possíveis adversários estão condenados ao silêncio.
Finalmente, pode-se levantar a questão: “Se assim é, que contribuição real e positiva traz a
ciência para a vida prática e pessoal?”. Com isso estamos novamente de volta ao problema da
ciência como “vocação”.
Felizmente, porém, a contribuição da ciência não alcança seu limite, com isso. Estamos em
condições de levar-vos a um terceiro objetivo: a clareza. Na prática, podeis tomar esta ou
aquela posição em relação a um problema de valor – simplificando, pensai, por favor, nos
fenômenos sociais como exemplos. Se tomardes esta ou aquela posição, então, segundo a
experiência científica, tereis de usar tais e tais meios para colocar em prática vossa convicção.
Ora, tais meios talvez sejam de tal ordem que sua rejeição vos pareça imperiosa. Tendes,
então, simplesmente de escolher entre o fim e os meios inevitáveis. Justificará o “fim” os
meios? Ou não? O professor pode apresentar-vos a necessidade de tal escolha. Não pode fazer
mais do que isso, enquanto quiser continuar como professor, e não tornar-se um demagogo.
Com isso, finalmente, chegamos ao serviço final que a ciência, como tal, pode prestar ao
objetivo da clareza, e ao mesmo tempo chegamos aos limites da ciência.
Para quem não pode enfrentar como homem o destino da época, devemos dizer: possa ele
voltar silenciosamente, sem a publicidade habitual dos renegados, mas simples e quietamente.
Os braços das velhas igrejas estão abertos para eles. De uma forma ou de outra, ele tem de
fazer o seu “sacrifício intelectual” – isso é inevitável. Se ele puder realmente fazê-lo, não o
criticaremos. Pois tal sacrifício intelectual em favor de uma dedicação religiosa é éticamente
diferente da evasão do dever claro de integridade intelectual.
Nada se ganha ansiando e querendo apenas, e agiremos de modo diferente. Procuraremos
trabalhar e atender às “exigências do momento”, nas relações humanas e em nossa vocação.
Isto, porém, é claro e simples, se cada um de nós encontrar e obedecer ao demônio que
controla os cordões de nossa própria vida.
Para Weber, uma vez que aquilo que originalmente constitui um simples meio (para um fim
valioso) se transforma em fim em si, aquilo que funcionava como meio se autonomiza,
passando a funcionar como fim e perdendo seu sentido original. Esta inversão caracteriza toda
a cultura moderna. É aí que reside o verdadeiro problema cultural da racionalização em
direção ao irracional e é aí que se colocam a identidade da análise e a diferença na avaliação
desta problemática, dadas por Weber e por Marx.
O título sob o qual Weber apresentou em 1918 suas pesquisas sobre sociologia das religiões é
Crítica positiva da concepção materialista de História. A concepção materialista de História
pressuposta na crítica de Weber não se encontra nem no que tange ao seu sentido nem no
que tange à terminologia no próprio Marx; em especial no jovem Marx, que ainda não fizera o
acerto de contas com sua “consciência filosófica”. Ela constitui um produto do marxismo
vulgar econômico, que tem sua origem em Engels e no velho Marx. O conteúdo original e
pleno da análise crítica do homem da sociedade econômica burguesa feita por Marx
praticamente se perdeu com isto. À falsa crítica de Weber a Marx que daí se originou
corresponde um erro análogo na identificação dos temas originais e abrangentes da pesquisa
na sociologia weberiana por parte de sociólogos profissionais burgueses.
Weber ofuscou (em conluio com o marxismo vulgar) a perspectiva orientadora original de
Marx (o fenômeno humano-histórico da alienação), através de argumentos antimarxistas.
Apesar disso, mesmo na forma lacunosa da crítica de Weber manifesta-se o verdadeiro tema
que o diferencia de Marx. Cabe resgatar este tema real do cerne da sua formulação agressiva e
falhada, para reconduzir a diferença entre Weber e Marx ao seu nível inicial.
Dez anos antes, Weber fizera a sua crítica à “assim chamada” superação da concepção
materialista da História por Stammler. A colocação em relação a Stammler deixa transparecer
simultaneamente uma colocação em relação ao próprio Marx. O segundo parágrafo da crítica
nos fornece o seguinte sobre a auto-interpretação científica de Weber e sobre a respectiva
crítica a Marx: a tese espiritualista de que em “última análise” a História humana, incluindo os
acontecimentos políticos e econômicos, não reflete outra cosia senão lutas religiosas, de que
com isto ela deve ser explicada unitária e inequivocamente. Esta tese, para Weber, é
“empiricamente” tão incomprovável e irrefutável quanto a tese materialista – que lhe é oposta
quanto ao conteúdo, mas não quanto ao método -, que afirma serem as lutas econômicas o
agente, em última instância, decisivo na História humana. Em relação a ambas as teses, o
empirista sociológico Weber afirma que quanto ao significado causal do fator religioso em si,
para a vida social em si, cientificamente não se pode afirmar nada. A visão total
cientificamente possível não consiste na ampliação dogmática de um componente individual
para uma fórmula universal do todo que só existe na cabeça de dogmáticos, mas sim no
avanço baseado em uma unilateralidade, necessária para qualquer observação científica, que
se realiza sob determinadas perspectivas que delimitam unilateralmente o objeto, em direção
à multiplicidade dos modos de observação.
O assim chamado espírito do capitalismo não é entendido por Weber nem de forma marxista-
vulgar, como simples espírito ideológico das relações capitalistas de produção, nem como um
espírito religioso independente e autônomo. Um espírito do capitalismo, segundo Weber, só
existe porque uma tendência geral para o modo de vida racional, sustentada pela camada
burguesa da sociedade, fornece motivos para o estabelecimento de uma relação interna entre
economia capitalista de um lado e ethos protestante de outro. Ele mesmo classifica a diferença
entre o seu método e o do marxismo conforme a diferenciação entre um método empírico e
um método dogmático. O verdadeiro sentido de seu procedimento “empírico” só
aparentemente se localiza no progredir de uma unilateralidade necessária na investigação
científica para a multiplicidade científica, em oposição à inequivocidade dogmática de uma
fórmula universal. O verdadeiro sentido disto está em que Weber, ao abdicar de uma
“humanidade universal” e de uma “fórmula universal” abrangente, queria desautorizar
qualquer fixação em quaisquer realidades determinadas e sua consequente ampliação para
um “todo” ilusório. O que ele efetivamente combate não é a totalidade da existência e da
observação, mas a possível cristalização de uma particularidade para um todo, ou seja, um
determinado tipo de totalidade.
Pode-se afirmar que sociologia que Weber pratica é uma “ciência da realidade”. Todavia, não
pelo fato de ter apreendido a realidade de forma puramente científica, mas pelo fato de que,
sabedor do caráter duvidoso de nossos ideais e realidades contemporâneas, Weber
comportava-se em relação a esta realdiade de forma livre no que tange ao fim, mas
comprometido no que tange aos meios, comportando-se tecnicamente. Assim a peculiaridade
de seu método empírico especialziado também decorre do fato de que ele não se deixava
determinar por nenhuma especialização da vida ou do conhecimento e combatia qualquer
método dogmático como forma científica de uma postura do homem diante do mundo com
raízes no transcendente, como uma fixação muito rápida em instâncias supostamente últimas,
de tipo religioso, social ou econômico.
Como Marx e Weber, ao analisar a realidade que nos determina, pensavam saber o que é
efetivamente real e humano, sua ciência se referia a um todo. Este todo não é a soma de tudo
aquilo que existe, mas o resumo de o que é significativo no todo de um princípio, com base no
qual ele então pode ser investigado em seus detalhes. O todo que ambos reconheceram em
sua importância primária e transformaram no objeto de suas investigações é a problemática
do mundo humano moderno, o qual é capitalista (ponto de vista econômico) e burguês
(político). Weber possui a dúvida em relação à expectativa do marxismo de que a eliminação
da economia privada daria fim ao domínio do homem sobre o homem.
As referências diretas de Weber ao próprio Marx são extremamente raras e espalhadas por
toda a sua obra. Uma delas é a crítica a Rudolf Stammler [já citada no texto de Löwith]. Weber
sugere (ao citar um texto de Max Adler) que o termo marxiano “materialista” está cada vez
mais distorcido dentro do marxismo, transformando-se na metafísica do materialismo das
ciências naturais que predominou no século XVII e que continou forte até meados do XIX.
Contudo, neste sentido das ciências naturais Marx não teria sido um materialista. O erro seria
justamente da concepção de Stammler, o que significa que Weber faz uma distinção entre
Marx e marxismo [Jürgen Zander já discorda da interpretação de Löwith].
Uma outra prova está nos Debates: “Mas está escrito em Marx, onde está escrita muita coisa
que, se a gente for analisar de forma exata e pedante como nós o devemos fazer, não só
parece contraditória mas efetivamente é contraditória [...]”, raríssima vez em que Weber faz
citação direta a Marx (e de forma crítica). Ela indica que Weber estava plenamente consciente
da utilização do método dialético em Marx. Nesse texto de Weber, logo no início aparece seu
interesse lógico pela dialética de Hegel. Jürgen Zander observa o quão grande era a
importância que Weber atribuía a Hegel; que ele via aplicado no Capital de Marx o método
dialético; que a dialética sofreu em Marx uma mudança em relação a Hegel. Não há dúvida de
que Weber se referia ao próprio Marx e enxergava nele o dialético que merecia o seu respeito.
Na conferência sobre O Socialismo, Weber procura defender Marx do marxismo vulgar com as
seguintes palavras: “O assim chamado materialismo histórico é defendido atualmente com um
obscurecimento total de seu sentido verdadeiro. Criou-se, por exemplo, uma tal confusão
desesperadora na discussão em torno da concepção materialista da história [...]”. Em uma
outra análise sobre as interpretações de Marx, na Wissenschaftslehre, Weber mostra que o
que dá unidade à abordagem weberiana do marxismo é o fato de que ele o analisa
perguntando se este lida, e como, com a pretensão manifesta de constituir um método
universal de interpretação da realdiade. Mas esta pretensão estabelecida pelo próprio
marxismo, segundo Weber, só é cumprida através do recurso a “hipóteses extremamente
gastas” e à “fraseologia mais chã”. Contudo, nesta descrição (que se entende por diversas
páginas) o nome de Marx não é citado.
A importância desta distinção se deve ao fato de Löwith ter partido do pressuposto inverso. É
necessário que se faça uma crítica a esse trabalho com base nisso. Löwith afirma que Weber,
em sua crítica a Stammler, também apresentou uma crítica do marxismo, com ênfase no seu
método, mas como no marxismo vulgar “se perdera o conteúdo original e pleno da análise
crítica de Marx”, teria ocorrido “uma crítica errada de Weber a Marx”. Weber teria, “em
conluio com o marxismo vulgar, obscurecido a perspectiva que orientava o Marx original, o
fenômeno histórico-humano da alienação, e tapado com argumentos antimarxistas”.
Isto está errado. A crítica de Weber a Stammler pretende justamente não ser uma crítica ao
marxismo vulgar e muito menos ao próprio Marx, a intenção é exclusivamente testar as
capacidades metodológicas de Stammler, já que este pretendia corrigir Marx. Na verdade,
Weber no mínimo defendeu Marx contra Stammler.
Segundo Kocka “Weber praticamente não se confronta com Marx, de forma explícita ao
menos. Quando se refere ao marxismo, volta-se primordialmente contra um determinado
desdobramento da teoria marxiana, mas deixa de levar em consideração a posição central do
próprio Marx [...]”. Segundo Giddens há um claro antagonismo entre a avaliação que Weber
fazia do “cientista” Marx e aquela que ele fazia dos marxistas que encontrava no contexto
político de seu tempo. Löwith não levou em conta a exigência weberiana por exatidão e por
isso enxergou Weber “em conluio com o marxismo vulgar”, uma afirmação insuportável para a
natureza weberiana.
Quando Weber fala do próprio Marx, se tem a impressão de que não pretende entrar no
assunto, de que pretende deixar como está. A obra de Weber não apresenta uma discussão
aberta com Marx na forma acabada de uma crítica explícita, como a que ele não deixou de
fazer a Roscher, Knies ou Stammler.
É interessante que Weber, em vez de permitir que o classifiquem como opositor a Marx,
prefere solidarizar-se com este. Mas, no conjunto, sua oposição é esquiva e reservada. Nunca
se manifestou de forma inequívoca sobre sua postura diante de Marx. Assim, apesar de que
uma confrontação de Weber com Marx estivesse na ordem do dia, ela nunca ocorreu. Esta
ausência de uma crítica direta, mais aprofundada e fundamental de Marx na obra de Weber,
consitui a questão que nos deverá guiar no nosso interesse em aprofundar a relação de Weber
com Marx.
Resultados da investigação sobre o problema da relação de Max Weber com Karl Marx
Uma vez que Weber via, com razão, em Marx o dialético na forma da dialética hegeliana, mas
como ele próprio também reivindica para si uma apreensão própria do “todo”, assim ocorre
entre os dois, uma separação. Weber, que tinha consciência de sua separação de Marx, a
considerava – o que se manifestava no seu amplo silêncio em relação a Marx.
Soa paradoxal que aquilo que separava Weber de Marx era a mesma pretensão radical de
apreender a realidade.
Weber conhecia muito bem a prática epistemológica dialética de Marx, assim como dominava
muito bem a sua lógica (refutando-se em definitivo Löwith, ao afirmar que Weber interpretou
Marx erroneamente com base no marxismo vulgar).
Pretendo citar dois textos com manifestações de Weber sobre Marx, propositalmente ainda
não utilizados:
1 - Discussão na Associação para Política Social: “Quanto sei, Marx não fornece uma definição
do conceito de técnica. Mas está escrito em Marx, onde está escrita muita coisa, que, se a
gente for analisar de forma exata e pedante como nós o devemos fazer, não só parece
contraditória, mas efetivamente é contraditória; entre outras passagens isto atinge uma muito
citada que diz: moinho manual condiciona feudalismo, moinho a vapor condiciona capitalismo.
Mas esta não é uma construção econômica, mas sim tecnológica da História - e, sobre a
afirmação, simplesmente se constata que ela está errada. Pois a era do moinho manual, que
vem até o limiar da era moderna, conheceu ‘superestruturas’ culturais de todos os tipos
imagináveis em todos os campos. Aí o dr. Quarck naturalmente tem toda a razão, ao afirmar
que a concepção materialista de História parte da distribuição da propriedade como elemento
constitutivo do processo de produção, e não só da pergunta se, por exemplo, são empregadas
máquinas ou não. Mas, ao lado de outras imprecisões”.
Pode ser-nos muito útil caracterizar Weber como um “espírito inquiridor”, indagador, que tem
como máxima a exatidão pedante, enquanto os dialéticos Hegel e Marx podem ser descritos
como “viajantes” em meio a um terreno em aclive e que se voltam para trás para olhar o
panorama que se descortina atrás deles. Se a maneira de ver e de formular destes dois era
sobretudo descritiva e narrativa, a do espírito inquiridor é sobretudo de definição.
Esta peculiaridade de Marx e Weber, no sentido de que um tende sobretudo para a definição,
enquanto o outro (Marx) a evita, não constitui apenas uma peculiaridade estilística de ambos,
mas está fundamentada naquilo que acima foi caracterizado como o tipo do espírito
inquiridor, por um lado, e como o tipo do “panoramista”, por outro. As afirmações de Weber
recém-citadas mostram claramente que vantagens e que desvantagens para o conhecimento
ele enxergava no modo de pensar de Marx. Como desvantagens, ele aponta a falta de precisão
na definição (impreciso, “falta de clareza”, perigo de surgimento de um “erro”). Como
vantagem do método de Marx, Weber aponta os dons da fantasia e a força criadora (“erro
espirituoso” com “consequências mais frutíferas” para a ciência do que uma “correção sem
espirituosidade”).
Weber, como disse na sua conferência, enxergava no marxismo sobretudo “a fé jubilosa das
massas” em uma “profecia patética”. Esta profecia apresentava seu vaticínio na forma de uma
explicação da realidade que era racionalmente irrefutável e totalmente independente do
acaso. Para Marx, o absoluto (cujo conteúdo não conhecia) se transformou numa realidade
efetivamente existente através da relativamente satisfatória conceptibilidade dialética do
mundo. Para a fé dos adeptos, dos discípulos desta figura especificamente profética, bastava a
convicção da irrefutabilidade racional e da infalibilidade (não há acaso) do vaticínio; acredita-
se em Marx porque e na medida em que seu vaticínio é cientificamente irrefutável. O sacrifício
do intelecto do adepto de Marx processa-se na forma certamente inovadora de que o
intelecto se transforma em instrumento de coação da fé e, com isto, assume a função inversa
do intelecto no “espírito inquiridor”.
O fato de que Weber enxergava em Marx o profeta que conseguiu levar seus adeptos à fé no
vaticínio, usando seu intelecto da forma como foi descrita, colocou o primeiro numa relação
profundamente complexa com o segundo. Pelo fato de Marx ter apresentado sua profecia na
forma daquela racionalização infalível e logicamente inatacável, sem conhecer diretamente o
absoluto que se lhe revelava aí, ele deve ter parecido a Weber como a inovadora e talvez única
figura de profeta que falava através da ciência sem ter sido enviado por um Deus. Este
relacionamento complexo com Marx foi o motivo pelo qual Weber evitou o confronto direto,
público ou publicado. Ele sabia que a forma lógica da teoria marxiana era inatacável,
justamente porque a partir da lógica pura é irrefutável, não havia um antídoto racional contra
um instrumento de fé. Weber compreendeu que não se pode cair nos braços de um profeta,
que se deve deixá-lo em paz. Apesar de o reconhecer como profeta, não era discípulo, não
acreditava nele, não pensava em sacrificar o intelecto. Se Weber não estava disposto a
enfrentar o profeta Marx, por outro lado, julgava que o compromisso consigo mesmo e com o
profeta consistia em não apoiá-lo. Weber sabia que a única força contra Marx e o marxismo
era o questionamento, inquietação do intelecto. Sabia que o questionamento feito a partir de
fora podia ser rechaçado, mas não o de dentro, através da inquietação do intelecto. Weber
sabia que este seria o momento no qual a ação profética de Marx estaria no fim e sua obra
missionária cumprida, quando dentro do marxismo a convicção da racionalidade logicamente
irrefutável da evolução predita não fosse mais suficiente para forçar a fé no absoluto sob a
forma da ideia da inevitabilidade, então a força do questionamento a partir de dentro teria
uma nova chance. Sabendo disto, Weber podia silenciar.
À época de Max Weber, travava-se na Alemanha um acirrado debate entre a corrente até
então dominante no pensamento social e filosófico, o positivismo, e seus críticos. O objeto da
polêmica eram as especificidades das ciências da natureza e do espírito e, no interior destas, o
papel dos valores e a possibilidade da formulação de leis. Wilhelm Dilthey (1833-1911), um dos
mais importantes representantes da ala antipositivista, contrapôs à razão científica dos
positivistas a razão histórica, isto é, a idéia de que a compreensão do fenômeno social
pressupõe a recuperação do sentido, sempre arraigado temporalmente e adscrito a uma
weltanschauung (relativismo) e a um ponto de vista (perspectivismo). Obra humana, a
experiência histórica é também uma realidade múltipla se inesgotável.
Mas foram Marx e Nietzsche, reconhecidos pelo próprio Weber como os pensadores decisivos
de seu tempo, aqueles que, segundo alguns biógrafos, tiveram maior impacto sobre a obra do
sociólogo alemão. A influência de Marx evidencia-se no fato de ambos terem compartilhado o
grande tema - o capitalismo ocidental - e dedicado a ele boa parte de suas energias
intelectuais, estudando-o da perspectiva histórica, econômica, ideológica e sociológica. Weber
propôs-se a verificar a capacidade que teria o materialismo histórico de encontrar explicações
adequadas à história social, especialmente sobre as relações entre a estrutura e a
superestrutura. Em suma, procurou compreender como as idéias, tanto quanto os fatores de
ordem material, cobravam força na explicação sociológica, sem deixar de criticar o monismo
causal que caracteriza o materialismo marxista nas suas formas vulgares.
Enfim, cabe lembrar a originalidade de Weber no refinamento dessas e de outras idéias que
estavam presentes nos debates da época. Os conceitos com os quais interpretou a complexa
luta que tem lugar em todas as arenas da vida coletiva e o desenvolvimento histórico do
Ocidente como a marcha da racionalidade representam um avanço em termos de precisão
metodológica.
A OBJETIVIDADE DO CONHECIMENTO
Na investigação de um tema, um cientista é inspirado por seus próprios valores e ideais, que
têm um caráter sagrado para ele, nos quais está disposto a lutar. Por isso, deve estar
capacitado a estabelecer uma “distinção entre reconhecer e julgar, e a cumprir tanto o dever
científico de ver a verdade dos fatos, como o dever prático de defender” os próprios valores,
que devem ser obrigatoriamente expostos e jamais disfarçados de “ciência social” ou da
“ordem racional dos fatos”. É essencial distinguir a política e a ciência e considerar que esta
tampouco está isenta de valores. Enquanto a ciência é um produto da reflexão do cientista, a
política o é do homem de vontade e de ação, ou do membro de uma classe que compartilha
com outras ideologias e interesses. Segundo Weber, “a ciência é hoje uma vocação organizada
em disciplinas especiais a serviço do auto-esclarecimento e conhecimento de fatos inter-
relacionados”. (A Ciência como Vocação, p. 180) Ela não dá resposta à pergunta: a qual dos
deuses devemos servir? Essa é uma questão que tem a ver com a ética. Em outras palavras, é
preciso distinguir entre os julgamentos de valor e o saber empírico. Este nasce de necessidades
e considerações práticas historicamente colocadas, na forma de problemas, ao cientista cujo
propósito deve ser o de procurar selecionar e sugerir a adoção de medidas que tenham a
finalidade de solucioná-los. Já os julgamentos de valor dizem respeito à definição do
significado que se dá aos objetos ou aos problemas. O saber empírico tem como objetivo
procurar respostas através do uso dos instrumentos mais adequados (os meios, os métodos).
Mas o cientista nunca deve propor-se a estabelecer normas, ideais e receitas para a praxis,
nem dizer o que deve, mas o que pode ser feito. A ciência é, portanto, um procedimento
altamente racional que procura explicar as conseqüências de determinados atos, enquanto a
posição política prática vincula-se a convicções e deveres. A relação entre ciência e valores é,
ainda assim, mais complexa do que possa parecer. Segundo Weber:
Hoje falamos habitualmente da ciência como “livre de todas as pressuposições”. Haverá tal
coisa? Depende do que entendemos por isso. Todo trabalho científico pressupõe que as regras
da lógica do método são válidas; são as bases gerais de nossa orientação no mundo; e, pelo
menos para nossa questão especial, essas pressuposições são o aspecto menos problemático
da ciência. A ciência pressupõe, ainda, que o produto do trabalho científico é importante no
sentido de que “vale a pena conhecê-lo”. Nisto estão encerrados todos os nossos problemas,
evidentemente, pois esta pressuposição não pode ser provada por meios científicos - só pode
ser interpretada com referência ao seu significado último, que devemos rejeitar ou aceitar,
segundo a nossa posição última em relação à vida. (...) A “ressuposição” geral da Medicina é
apresentada trivialmente na afirmação de que a Ciência Médica tem a tarefa de manter a vida
como tal e diminuir o sofrimento na medida máxima de suas possibilidades. Se a vida vale a
pena ser vivida e quando - esta questão não é indaga da pela Medicina. (WEBER. A Ciência
como vocação, p.170-171)
Mas como é possível, apesar da existência desses valores, alcançar a objetividade nas ciências
sociais? A resposta de Weber é que os valores devem ser incorporados conscientemente à
pesquisa e controlados através de procedimentos rigorosos de análise, caracterizados como
“esquemas de explicação condicional”. A ação do cientista é seletiva. Os valores são um guia
para a escolha de um certo objeto pelo cientista. A partir daí, ele definirá uma certa direção
para a sua explicação e os limites da cadeia causal que ela é capaz de estabelecer, ambos
orientados por valores. As relações de causalidade, por ele construídas na forma de hipóteses,
constituirão um esquema lógico-explicativo cuja objetividade é garantida pelo rigor e
obediência aos cânones do pensamento científico. O ponto essencial a ser salientado é que o
próprio cientista é quem atribui aos aspectos do real e da história que examina uma ordem
através da qual procura estabelecer uma relação causal entre certos fenômenos. Assim produz
o que se chama tipo ideal.
Conclui-se que a atividade científica é, simultaneamente, racional com relação às suas
finalidades - a verdade científica - e racional com relação a valores - a busca da verdade. A
obrigação de dizer a verdade é, enfim, parte de uma ética absoluta que se impõe, sem
qualquer condição, aos cientistas.
Dada a sua complexidade, a discussão realizada por Weber sobre a objetividade das ciências
sociais merece uma consideração cuidadosa. Segundo o autor, para chegar ao conhecimento
que pretende, o cientista social efetua quatro operações: 1) estabelece leis e fatores
hipotéticos que servirão como meios para seu estudo; 2) analisa e expõe ordenadamente “o
agrupamento individual desses fatores historicamente dados e sua combinação concreta e
significativa”, procurando tornar inteligível a causa e natureza dessa significação; 3) remonta
ao passado para observar como se desenvolveram as diferentes características individuais
daqueles agrupamentos que possuem importância para o presente e procura fornecer uma
explicação histórica a partir de tais constelações individuais anteriores, e 4) avalia as
constelações possíveis no futuro. (A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais, p. 91).
Weber endossa o ponto de vista segundo o qual as ciências sociais visam a compreensão de
eventos culturais enquanto singularidades. O alvo é, portanto, captar a especificidade dos
fenômenos estudados e seus significados. Mas sendo a realidade cultural infinita, uma
investigação exaustiva, que considerasse todas as circunstâncias ou variáveis envolvidas num
determinado acontecimento, torna-se uma pretensão inatingível. Por isso, o cientista precisa
isolar, da “imensidade absoluta, um fragmento ínfimo”: que considera relevante. O critério de
seleção operante nesse processo está dado pelo significado que certos fenômenos possuem,
tanto para ele como para a cultura e a época em que se inserem. É a partir da consideração de
ambos os registros que será possível o ideal de objetividade e inteligibilidade nas ciências
sociais. Pode-se dizer, então, que o particular ou específico não é aquilo que vem dado pela
experiência, nem muito menos o ponto de partida do conhecimento, mas o resultado de um
esforço cognitivo que discrimina, organiza e, enfim, abstrai certos aspectos da realidade na
tentativa de explicar as causas associadas à produção de determinados fenômenos. Mas o
método de estudo de que se utiliza baseia-se no estado de desenvolvimento dos
conhecimentos, nas estruturas conceituais de que dispõe e nas normas de pensamento
vigentes, o que lhe permite obter resultados válidos não apenas para si próprio.
Existe uma grande diferença entre conferir significado à realidade histórica por meio de idéias
de valor e conhecer suas leis e ordená-la de acordo com conceitos gerais e princípios lógicos,
genéricos. Mas a explicação do fato significativo em sua especificidade nunca estará livre de
pressupostos porque ele próprio foi escolhido em função de valores. Com isso, Weber rejeita a
possibilidade de uma ciência social que reduza a realidade empírica a leis. Para explicar um
acontecimento concreto, o cientista agrupa uma certa constelação de fatores que lhe
permitam dar sentido a esta realidade particular.
Weber procura demonstrar que conceitos muito genéricos, extensos, abrangentes ou
abstratos, são menos proveitosos para o cientista social por serem pobres em conteúdo, logo,
afastados da riqueza da realidade histórica. Portanto, a tentativa de explicar tais fenômenos
por meio de “leis” que expressem regularidades quantificáveis que se repetem não passa de
um trabalho preliminar, possivelmente útil. Os fenômenos individuais são um conjunto infinito
e caótico de elementos cuja ordenação é realizada a partir da significação que representam e
por meio da imputação causal que lhe é feita. Logo,
OS TIPOS IDEAIS
Por meio das ciências sociais “queremos compreender a peculiaridade da vida que nos rodeia”
composta de uma diversidade quase infinita de elementos. Ao tomar um objeto, apenas um
fragmento finito dessa realidade, o cientista social empreende uma tarefa muito distinta
daquela que se propõe o cientista da natureza. O que procura é compreender uma
individualidade sociocultural formada de componentes historicamente agrupados, nem
sempre quantificáveis, a cujo passado se remonta para explicar o presente, partindo então
deste para avaliar as perspectivas futuras.
Sendo uma ciência generalizadora, a Sociologia constrói conceitos - tipo, “vazios frente à
realidade concreta do histórico” e distanciados desta, mas unívocos porque pretendem ser
fórmulas interpretativas através das quais se apresenta uma explicação racional para a
realidade empírica que organiza. Esta adequação entre o conceito e a realidade é tanto mais
completa quanto maior a racionalidade da conduta a ser interpretada, o que não impede a
Sociologia de procurar explicar fenômenos irracionais (místicos, proféticos, espirituais,
afetivos). O que dá valor a uma construção teórica é a concordância entre a adequação de
sentido que propõe e a prova dos fatos, caso contrário, ela se torna inútil, seja do ponto de
vista explicativo ou do conhecimento da ação real. Quando é impossível realizar a prova
empírica, a evidência racional serve apenas como uma hipótese dotada de plausibilidade. Uma
construção teórica que pretende ser uma explicação causal baseia-se em probabilidades de
que um certo processo “A” siga-se, na forma esperada, a um outro determinado processo “B”.
Somente as ações compreensíveis são objeto da Sociologia. E para que regularidades da vida
social possam ser chamadas de leis sociológicas é necessário que se comprove a probabilidade
estatística de que ocorram na forma que foi definida como adequada significativamente.
Na medida em que não é possível a explicação de uma realidade social particular, única e
infinita, por meio de uma análise exaustiva das relações causais que a constituem, escolhem-se
algumas destas por meio da avaliação das influências ou efeitos que delas se pode esperar. O
cientista atribui a esses fragmentos selecionados da realidade um sentido, destaca certos
aspectos cujo exame lhe parece importante - segundo seu princípio de seleção - baseando-se,
portanto, em seus próprios valores. Mas, enquanto “o objeto de estudo e a profundidade do
estudo na infinidade das conexões causais são determinados somente pelas idéias de valor
que dominam o investigador e sua época”, o método e os conceitos de que ele lança mão
ligam-se às normas de validez científica referidos a uma teoria. A elaboração de um
instrumento que oriente o cientista social em sua busca de conexões causais é muito valiosa
do ponto de vista heurístico. Esse modelo de interpretação-investigação é o tipo ideal, e é dele
que se vale o cientista para guiar-se na infinitude do real.
Suas possibilidades e limites devem-se: 1) à unilateralidade, 2) à racionalidade e 3) ao caráter
utópico. Ao elaborar o tipo ideal, parte-se da escolha, numa realidade infinita, de alguns
elementos do objeto a ser interpretado que são considerados pelo investigador os mais
relevantes para a explicação. Esse processo de seleção acentua - necessariamente – certos
traços e deixa de lado outros, o que confere unilateralidade ao modelo puro. Os elementos
causais são relacionados pelo cientista de modo racional, embora não haja dúvida sobre a
influência, de fato, de incontáveis fatores irracionais no desenvolvimento do fenômeno real.
No relativo à ênfase na racionalidade, o tipo ideal só existe como utopia e não é, nem
pretende ser, um reflexo da realidade complexa, muito menos um modelo do que ela deveria
ser. Um conceito típico-ideal é um modelo simplificado do real, elaborado com base em traços
considerados essenciais para a determinação da causalidade, segundo os critérios de quem
pretende explicar um fenômeno.
É possível, por exemplo, construir tipos ideais da economia urbana da Idade Média, do Estado,
de uma seita religiosa, de interesses de classe e de outros fenômenos sociais de maior ou
menor amplitude e complexidade, e também organizar qualquer dessas realidades a partir de
um ou de diversos de seus elementos. Na medida em que o cientista procede a uma seleção,
esta vem a corresponder às suas próprias concepções do que é essencial no objeto examinado,
e sua construção típico-ideal não corresponde necessariamente às de outros cientistas. Ele
procederá, a partir daí, a uma comparação entre o seu modelo e a dinâmica da realidade
empírica que examina.
Tais construções (...) permitem-nos ver se, em traços particulares ou em seu caráter total, os
fenômenos se aproximam de uma de nossas construções, determinar o grau de aproximação
do fenômeno histórico e o tipo construido teoricamente. Sob esse aspecto, a construção é
simplesmente um recurso técnico que facilita uma disposição e terminologia mais lúcidas.
(WEBER. Rejeições religiosas do mundo e suas direções, p. 372.).
[...] Deve-se entender por sociologia (no sentido aqui aceito desta palavra, empregada com tão
diversos significados): uma ciência que pretende entender, interpretando-a, a ação social para,
desta maneira, explicá-la causalmente em seu desenvolvimento e efeitos. Por “ação” deve-se
entender uma conduta humana (que pode consistir num ato externo ou interno; numa
condição ou numa permissão) sempre que o sujeito ou os sujeitos da ação envolvam-na de um
sentido subjetivo. A “ação social”, portanto, é uma ação em que o sentido indicado por seu
sujeito, ou sujeitos, refere-se à conduta de outros, orientando-se por esta em seu
desenvolvimento. (W. 1969, I, 5).
Por “sentido” entendemos o sentido subjetivo indicado pelos sujeitos da ação, seja a) existente
de fato: 1 num caso historicamente dado, 2 como média e como aproximação numa
determinada massa de casos: ou b) construído num tipo ideal, com atores deste caráter. Não
se trata, de forma alguma, de um sentido objetivamente justo ou de um sentido verdadeiro,
fundado metafisicamente. Aqui, precisamente, é que se enraíza a diferença entre as ciências
empíricas da ação (a sociologia, a história) face a todas as ciências dogmáticas (jurisprudência,
lógica, ética, estética), as quais pretendem investigar em seu objetos o sentido “justo” e
“válido”. (W. 1969, I, 6).
Os limites entre uma ação com sentido e um modo de conduta simplesmente reativo (como
aqui o denominaremos), que não está unido a um sentido subjetivamente indicado, são
inteiramente elásticos. Uma parte muito importante dos modos de conduta de interesse para
a sociologia, especialmente a ação puramente tradicional, acham-se na fronteira entre ambos.
[...] Frequentemente, os elementos compreensíveis e os não compreensíveis de um processo
estão unidos e misturados entre si. (W. 1969, I, 6)