Gramatização, Colonização e Resistência

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GRAMATIZAÇÃO, COLONIZAÇÃO E RESISTÊNCIA.

Prof. Dr. Vitor Pequeno


Universidade São Francisco
[email protected]

Resumo: Esse artigo, se sustentando nos pressupostos epistêmicos do materialismo


histórico e da análise de discurso, pretende demonstrar a relação entre
esquecimento, tecnologia e discurso. Se trata, em primeiro lugar, de uma retomada
dos resultados de pesquisa de nosso doutorado e de sua publicação: Tecnologia e
Esquecimento (2019), mas é também uma extensão desses achados em direção a
um reconhecimento da problemática chamada anticolonial, pelo menos na medida
em que ela pode ser expressa em termos materialistas. Nosso objetivo é primeiro
esboçar onde as tecnologias de linguagem se localizam na organização das
estruturas materiais das civilizações ocidentais europeias e suas colônias.
Posteriormente, tentamos demonstrar como esses processos se organizam nas
sociedades contemporâneas em sua relação com as tecnologias digitais.
1

GRAMATIZAÇÃO, OU, TECNOLOGIA E LUTA DE CLASSE

Se nossa demanda aqui é demonstrar a relação entre tecnologia, política


e discurso, somos remetidos a um momento precioso de nossa defesa de mestrado
(agora, já distante), na qual nossa querida Dra. Verli Petri declarou ser hora da
análise de discurso se ver com a prática técnica. Como Freud não deixa de nos
lembrar, o sujeito do inconsciente obedece a sua própria relação com o desenrolar
dos eventos que não é exatamente cronológica, e não deixa, agora, de ser o
momento para mais uma vez nos fazermos as perguntas que seguem, dessas que
foram abertas nos últimos anos, na análise de discurso.
Uma pergunta que nos parece axial, e que a convocação dessa
publicação demanda, é aquela já muito bem conhecida pergunta que questiona as
bases estruturais de um campo (a linguística), para poder se ver com as premissas
estruturais de outro (o materialismo). Essa pergunta poderia ser formulada, aqui
para nossos propósitos, como: como pensar a relação entre língua e política?
Se falamos sobre língua, falamos sobre o problema que funda e anima
todos os campos ligados à linguística e, também, ao estruturalismo, que é a
problemática desse corte, dessa divisão entre a língua e seu acontecimento por
excelência: a linguagem. Para retomar:

Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é
somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao
mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto
de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o
exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a
linguagem é multiforme e heteróclita; o cavaleiro de diferentes domínios, ao
mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao
domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma
categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade. A
língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. Desde
que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos
uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra
classificação.1

1
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral, 28ª ed. São Paulo, Cultrix: 2012. p. 41.
2

A língua é, a partir desse momento fundador, tomada por Saussure como


o ponto primário de estudo da linguística e simultaneamente entendida como ponto
de origem da linguagem, que seria seu uso. Isso aparece tanto no uso que Saussure
faz da ideia de faculdades (sejam elas neurológicas, ontológicas etc.), quanto em
seu argumento de que os usos particulares da língua são secundários em relação ao
universal que os produz. No fim desse trecho ele ainda o enfatiza:

Tudo isso nos leva a crer que, acima desses diversos órgãos, existe uma
faculdade mais geral, a que comanda os signos e que seria a faculdade
linguística por excelência. E somos assim conduzidos à mesma conclusão
que antes. Para atribuir à língua o primeiro lugar no estudo da linguagem,
pode-se, enfim, fazer valer o argumento de que a faculdade – natural ou
não – de articular palavras não se exerce senão com a ajuda de instrumento
criado e fornecido pela coletividade; não é, então, ilusório dizer que é a
língua que faz a unidade da linguagem.2

O leitor atento deve ter notado nossa intenção, com a ênfase que
colocamos na palavra uso. Queremos aqui fazer o que o materialismo sempre fez no
contexto epistemológico das ciências humanas, que é inverter a fórmula que coloca
o essencial como determinante do contingente ou, dito de outra forma: a fórmula que
lê o ideal como origem do material. Para isso, pedimos que o leitor releia essa
proposta Saussuriana como o que entendemos que ela é: mais uma das tecnologias
epistemológicas de colonização. Explicamos.

A gramatização entre outras revoluções

Quando Auroux coloca o processo histórico que chama de gramatização3


na trilha das “revoluções tecnológicas” relacionadas com as práticas linguageiras,
ele nos remete a um problema bastante produtivo para nossos objetivos. No texto,
Auroux chama a gramatização de “a segunda revolução técnico-linguística”4, e as

2
Ibidem, p. 42.
3
AUROUX, S. A Revolução Tecnológica da Gramatização, 3ª ed. Editora da Unicamp, 2015.
4
Ibidem, p. 35.
3

relações entre esses dois acontecimentos (o invento da escrita e a prática da


gramatização) devem ser sublinhadas aqui.
Em primeiro lugar, o que exatamente constitui o invento da escrita no
ocidente é um problema mais complexo do que aparenta ser. O próprio Auroux
ressalta essa questão: “Quando falamos de origem, não se trata evidentemente de
um acontecimento, mas de um processo que podemos delimitar num intervalo
temporal aberto, às vezes consideravelmente longo”5. Fischer6 defende que ela
aparece em sua completude (no que ele chama de escrita plena) a partir das bases
do foneticismo sistêmico sumério que seria, de acordo com o autor, a origem a partir
da qual todos os outros sistemas ocidentais de escrita derivam. Mas para Havelock7,
por exemplo, a escrita que é, hoje, parte constitutiva de nossas formas de produção
de conhecimento não aparece até as modificações gregas do alfabeto fenício que os
gregos importam ao longo das rotas de comércio no Mediterrâneo. Além de quase
dois milênios de distância entre eventos, eles representam práticas sociais e
materiais resultantes de demandas radicalmente diferentes no contexto da
contabilidade, do comércio, da constituição dos primeiros grandes centros urbanos
das respectivas regiões, do governo e da historiografia. A gramatização é um
processo igualmente heterogêneo. O que pretendo demonstrar aqui é que as noções
de “escrita” e de “gramatização” não descrevem um simples e claro
desenvolvimento, mas uma série, heterogênea e histórica e geograficamente difícil
de localizar. Está posto aí o primeiro empecilho para aquele que se propõe estudar
“a tecnologia”!
Mais importante ainda é a distinção entre o que Auroux chama de epi e
metalinguístico.

O saber linguístico é múltiplo e principia naturalmente na consciência do


homem falante. Ele é epilinguístico, não colocado por si na representação,
antes de ser metalinguístico, isto é, representado construído e manipulado
enquanto tal com a ajuda de uma metalinguagem (elementos autonímicos e
nomes para os signos; cf. Rey-Debove, 1978; Auroux, 1979). A
continuidade entre o epilinguístico e metalinguístico pode ser comparada

5
Ibidem, p. 23.
6
FISCHER, S. R. História da Escrita. Editora da Unesp: SP, 2009.
7
HAVELOCK, E. A Revolução da Escrita na Grécia: e suas consequências culturais. Paz e Terra: SP, 2007.
4

com a continuidade entre a percepção e a representação física nas ciências


da natureza.8

Dada essa proposta, organizamos a questão da seguinte forma: tanto o


desenvolvimento da escrita quanto as práticas de gramatização das línguas são
práticas compostas. Por um lado, são práticas sociais, políticas, discursivas sobre as
formas materiais de vida e de manutenção da vida (as formas produtivas).
Concomitantemente, são práticas epistemológicas (já que são metalinguisticas). A
dizer: são práticas derivadas de uma realidade social e (portanto) ideológica
transformada em conhecimento, e cuja definição material já foi, há muito, produzida:

Contrariamente à ilusão ideológica [...] do empirismo e do sensualismo, uma


ciência nunca trabalha sobre um existente, que teria por essência a
imediatez e a singularidade puras (“sensações” ou “indivíduos”). Ela
trabalha sobre o “geral”, mesmo que ele tenha a forma do “fato”. Quando
uma ciência se constitui – por exemplo, a física com Galileu, ou a ciência da
evolução das formações sociais (materialismo histórico) com Marx -, ela
trabalha sempre sobre conceitos existentes, Vorstellungen, ou seja, uma
Generalidade I, de natureza ideológica, prévia. Ela não “trabalha” sobre um
puro “dado” objetivo, que seria aquele de “fatos” puros e absolutos. Seu
trabalho consiste, ao contrário, em elaborar seus próprios fatos científicos,
mediante uma crítica dos “fatos” ideológicos elaborados pela prática teórica
ideológica anterior9.

Esperamos que fique claro então que o desenvolvimento tecnológico


tanto da escrita, mas nesse caso principalmente da gramatização, constitui não só
novas práticas linguageiras (como se a técnica fosse desvinculada da prática social
como um todo), mas também a organização de certos pressupostos teóricos
derivados da forma histórica e da ideologia dominante, como por exemplo o
pressuposto da universalidade das estruturas das línguas no contexto da
gramatização, ou o pressuposto da representações dos sons no contexto do
desenvolvimento da escrita. Chegamos na possibilidade de afirmar que a prática
técnica é também sempre prática ideológica.

Tecnologias da linguagem vs. tecnologias de linguagem?

8
AUROUX, S. A Revolução Tecnológica da Gramatização, 3ª ed. Editora da Unicamp, 2015. p. 17.
9
ALTHUSSER L. Por Marx. Editora da Unicamp, Campinas: 2015. p. 187.
5

Ademais o que vale retomar é que a prática ideológica produz


simultaneamente esquecimento, que vamos pormenorizar aqui como o efeito de que
o que é não poderia ser de outra forma ou por outros motivos. Esse efeito já é tão
bem documentado que não vale retomá-lo por inteiro; mas citamos aqui Althusser,
pois nos vale como paralelo para nossa demonstração mais a frente.

Segue-se que para você (leitor), como para mim, a categoria de sujeito é
uma “evidência” primeira (as evidências são sempre primeiras): é claro que
eu e você somos sujeitos (livres, normais, etc.). Como todas as evidências,
incluindo as que fazem com que uma palavra “designe uma coisa” ou
“possua uma significação” (portanto incluindo as evidências da
“transparência da linguagem”), esta “evidência” de que eu e você somos
sujeitos – e que esse fato não constitui um problema – é um efeito
ideológico, o efeito ideológico elementar.10

Então se nos sentimos livres para dizer que somos sujeitos e que isso é
evidente (não constitui um problema); e se podemos também afirmar que isso que
dissemos é uma relação de significação (uma relação direta ou empírica entre o
indivíduo e o mundo) e isso também nos parece evidente; ora, então o que
queremos apontar aqui é que as tecnologias da linguagem atravessam o mesmo tipo
de processo, que faz com que, por exemplo, a escrita pareça a representação da
fala e que faz com que a gramatização pareça como o descobrimento11 das
estruturas essenciais das línguas. A dizer: se toda prática ideológica é, também,
esquecimento, então nos colocamos na posição de declarar que toda prática técnica
linguageira (sendo simultaneamente prática ideológica), também o é. Reutilizo o
argumento em Auroux para exemplificar essa proposta:

Não conhecemos civilização oral que tenha desenvolvido técnicas


calculatórias, mesmo elementares como nossas operações de adição ou
subtração. A maior parte das línguas unicamente orais e sem contatos com
civilização grafenizadas dispõe somente de um sistema de numeração
muito restrito. O cálculo só se tornou possível através do recurso a
elementos externos (lat. Cauculus – calhau), e até a objetos técnicos como
os bouliers ou os abaques. De maneira geral, a escrita parece ser a
condição de seu desenvolvimento. Isso aparece de modo relativamente fácil
se reconhecemos simplesmente o papel que desempenha a posição em

10
ALTHUSSER L. Aparelhos Ideológicos do Estado. Editorial Presença / Martins Fontes. Lisboa, 1980. p. 95.
11
Esse termo aqui é bastante interessante pois ele espelha a prática pedagógica nas américas de ensino do
“descobrimento” do continente. Sabemos bem que não se trata de descobrimento o que aconteceu nas américas,
mas se entendemos o termo em toda sua ironia, percebemos um perfeito paralelo com a ideia do descobrimento
das estruturas das línguas, pois a gramatização é, também, um ato de colonização como pretendemos demonstrar.
6

nosso sistema de numeração ou a disposição gráfica que nos permite


efetuar nossas operações. É preciso sem dúvida ir extremamente longe
nesse reconhecimento. 12

Quão longe podemos de fato ir? Bom, em Tecnologia e Esquecimento


(2019) defendemos que:

O que nos é sugerido aqui é que ao invés de pensarmos, por exemplo, na


matemática, como sendo representada no papel, ou sendo facilitada pelo
papel, a pensemos como uma invenção do papel. Quer dizer: a ordem dos
números e dos sinais operantes, o fato que eles duram e permanecem, a
possibilidade que a folha abre de grafar em linha (ou, dito de outra forma:
online) e sem interrupções, isso tudo é a substância da matemática. Se nos
propormos a pensar dessa forma, e mais uma vez subjugar o necessário ao
contingente, então não temos relutância em dizer que um certo tipo de
matemática é invenção do papel, da grafia linear, e assim por diante. Isso
nos ajudaria a pensar como nenhuma pessoa ou grupo de pessoas guia,
portanto, um desenvolvimento dessa espécie, mas ao invés disso, sugere
que na relação comanda/demanda que impulsiona o sistema infra e
superestrutural, algo das práticas de conhecimento e técnicas – como diria
Althusser – pega, quer dizer, produz um campo prático que a partir de então
se torna indispensável para o funcionamento social. O apagamento está
justamente em olhar para o conteúdo da matemática, por exemplo, como
substantivo, e suas formas de existência como representações. 13

E continuamos, lembrando que:

A escrita é, Auroux afirma, “uma etapa tão importante quanto o


aparecimento da linguagem articulada”. Ora, como interpretar isso a não ser
pela via de afirmar que a escrita é outra coisa que a linguagem articulada.
Não sua representação, mas seu outro: uma outra instância do exercício
linguageiro, ligada, mas não espelhada à primeira pela via das exigências
econômicas e históricas de seu tempo.14

Retomamos então o que desenvolvemos até agora na forma de dois


pontos centrais:
1: que a prática técnica linguageira (por exemplo, da gramatização, das
tecnologias da escrita, e mais tarde da tipografia, da imprensa, do código Morse, das
tecnologias digitais, etc.) não é somente a forma pela qual o processo ideológico se

12
AUROUX, S. A Filosofia da Linguagem. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1998. p. 73-74
13
PEQUENO, V. Tecnologia e Esquecimento: uma crítica a representações universais de linguagem. Campinas:
Pontes Editores, 2020. p. 113.
14
Ibidem, p. 114.
7

reproduz (na forma do discurso), mas é, por si mesma, uma forma da ideologia e da
interpelação, reprodução da ideologia na forma-sujeito e, agora;
2. que esse processo ideológico de interpelação se engendra, como toda
interpelação, pelo esquecimento, fazendo com que as práticas linguageiras
produzam, até mesmo, e talvez principalmente nos contextos das ciências da
linguagem, o efeito de “veículo da língua”, representações de uma estrutura ou
operação universal oriunda das faculdades humanas.
Se o discurso pode analisado, no sentido de que o discurso é um efeito
produzido por causa e como consequência da interpelação do indivíduo em sujeito,
então a prática técnica também deve poder ser analisada na medida em que
também é parte dos mecanismos de produção e reprodução da forma histórica de
uma sociedade dada. No nosso entendimento, isso é se propor a estudar tecnologia
no contexto do materialismo histórico e da análise de discurso. A saber: significa
olhar para a materialidade técnica da prática linguageira com suficiente
conhecimento técnico para poder interpretar as consequências do fato de que os
mecanismos de circulação são parte constitutiva do sentido de qualquer enunciado.
Nos resta somente, portanto, reformular nossa pergunta inicial para caber
tanto na demanda de nosso artigo como na trilha dessas descobertas: como pensar
as consequências políticas produzidas pela ideia (pelo pressuposto epistemológico)
de língua? Mais ainda: como pensar as consequências políticas produzidas pelo
pressuposto epistemológico de gramatização, de lógica e língua lógica e de
programação?
8

COLONIZAÇÃO, LÓGICA, IDEOLOGIA

Obviamente, a série de perguntas acima descreve todo um projeto de


pesquisa que não cabe em um, ou dez artigos, tentar condensar. Os princípios
dessa investigação já foram produzidos em Tecnologia e Esquecimento (2019), mas
arriscamos aqui algumas notas que podem descrever a direção de nossa
investigação e interesse presente.
Nos interessa, para descrever mais a frente a questão das tecnologias
digitais, começar descrevendo seu paralelo; que é, ainda, a questão da
gramatização no contexto da história de colonização da Europa ocidental.

A historicidade do universal moderno

Extraímos aqui um trecho longo de A Revolução Tecnológica da


Gramatização, para localizar historicamente nosso argumento. Auroux fala sobre o
período do século XV e XVI:

O interesse prático da gramática se estende da filologia (no sentido lato do


acesso ao texto escrito), que é seu lugar de origem em direção ao domínio
das línguas, inclusive das línguas maternas. A gramática torna-se
simultaneamente uma técnica pedagógica de aprendizagem das línguas e
um meio de descrevê-las. [...] Paralelamente, aparece o dicionário
monolíngue sob a forma que ainda conhecemos. Enfim, avança largamente
o empreendimento de localização das línguas faladas e da construção de
modelos que resumam suas relações estruturais e filiações [...] 15

Na sequência o próprio Auroux admite a importância marginal do Latim no


período anterior ao século XV e como o processo de gramatização recebe
verdadeiro impulso, na verdade, durante o período que, queremos lembrar, coincide

15
AUROUX, S. A Revolução Tecnológica da Gramatização, 3ª ed. Editora da Unicamp, 2015. p. 36
9

com o período das expansões imperialistas das novas nações-Estado da Europa.


“Não há, entretanto, nada de comparável, quantitativa ou qualitativamente, ao
processo que se dá no final do século XV, a partir das línguas que vão daí pra frente
dominar a história da Europa”16, diz Auroux.
Atribuímos com confiança esse desenvolvimento tecnológico súbito e
“revolucionário” ao processo material de comanda/demanda, que Pêcheux descreve
em Reflexões, no qual um campo prático de organização das relações e práticas
sociais é organizado sempre na relação entre demandas estruturais e soluções
engendradas a partir dos pressupostos ideológicos/epistemológicos de uma forma-
histórica dada. Em outras palavras, um pressuposto epistemológico que organiza a
“essência estrutural” de uma língua a partir, inclusive, de um modelo inofensivo (pois
o Latim está morto), só começa a se fazer necessário quando a alteridade das
línguas colonizadas é tão radical a ponto de ameaçar a “estrutura” das línguas
centrais dos colonizadores. Dizemos: da mesma forma que o pai em Totem e Tabu
(1913), o Latim também precisa morrer para produzir seu efeito. O latim é, até um
certo momento da Idade Média na Europa, uma prática linguageira marginal
circulando ainda, principalmente, por causa de sua relação com a instituição
religiosa regional da época. É morrendo, quer dizer: é transformando os sentidos
atribuídos a prática linguageira do Latim, que se transforma essa língua num
modelo. Pêcheux descreve a questão da seguinte forma:

O babilônio não pretende uma explicação geométrica dos movimentos


aparentes dos astros, ele busca uma chave que lhe permitia encontrar
quase mecanicamente a posição de uma constelação em um dado
momento. Seriam necessárias, então, máquinas para calcular o curso dos
astros, mais que de instrumentos de observação: o “polos” mesopotâmico,
já citado, constitui um dos primeiros instrumentos sintéticos deste gênero
[...] assim surgiu o que nós chamaremos de um “instrumento-modelo”, quer
dizer, um aparelho técnico cuja função é de produzir por si mesmo o real
sob uma forma pertinente à técnica em questão17

O Latim é, portanto, esse mesmo tipo de máquina, uma chave, que


produz o real da linguagem, sob uma forma pertinente à técnica em questão: a

16
Ibidem, p. 37.
17
HERBERT, T. Reflexões Sobre A Situação Teórica das Ciências Sociais e, Especialmente, da Psicologia
Social. In: PÊCHEUX, M. Análise de Discurso. Campinas: Pontes Editores, 2012. p. 30.
10

técnica epistemológica pedagógica e analítica que faz parte dos avanços de


colonização das Américas, da África, de partes do oriente médio e da Índia.
Podemos pensar no Latim da mesma forma que os Tasaday, da ilustre
história que conta Baudrillard. A tribo, recém-descoberta e imediatamente entrando
em colapso como consequência do contato com a civilização – “como uma múmia
ao ar livre”18, diz o autor – foi isolada pelo Governo das Filipinas de qualquer contato
com os antropólogos que os estudavam. Mas “para que a etnologia viva é preciso
que seu objeto morra”19, diz Baudrillard.

Foi contra esse inferno do paradoxo que os etnólogos quiseram premunir-se


ao voltarem a fechar o cordão de segurança da floresta virgem em redor
dos Tasaday. [...] Não se trata de um sacrifício (a ciência nunca se sacrifica,
é sempre assassina), mas do sacrifício simulado do seu objeto a fim de
salvar o seu princípio de realidade. O Tasaday congelado na sua essência
natural vai servir-lhe de álibi perfeito, de caução eterno. Em todo caso, a
evolução lógica de uma ciência é de se distanciar cada vez mais do seu
objeto, até passar sem ele: a sua autonomia não pode ser mais fantástica,
atinge a sua forma pura.20

O Latim não seria também aquilo que precisa morrer para que a
gramática nasça verdadeiramente? Na sua forma mais “pura”, ele desaparece
inteiramente, e vemos, como a história tão bem nos demonstra, o nascimento dos
dicionários monolíngues, das gramáticas individuais das línguas vernáculas etc.21
Quer dizer: o Latim deixa de ser uma das línguas, mas passa a ser o princípio
epistemológico de descrição, organização e ensino de qualquer língua. Está aí o
aspecto mais absoluto e imperial do processo de colonização: a transformação da
própria prática linguageira regional local, com todos os seus funcionamentos íntimos
e comunitários, em mais uma das estruturas universais que fazem parte da rede
total, da máquina de mundo que é a gramática.

Essa revolução – que só termina no século XX – vai criar uma rede


homogênea de comunicação centrada inicialmente na Europa. Cada nova
língua integrada à rede dos conhecimentos linguísticos, da mesma maneira
que cada região representada pelos cartógrafos europeus, vai aumentar a

18
BAUDRILLARD, J. Simulacro e Simulação. Relógio d’Água, Lisboa, 1991. p. 14.
19
Ibidem, p. 15.
20
Ibidem, p. 15.
21
Em Totem e Tabu (1916) Freud conta a mesma história. O pai da horda reina pela força, até que é assassinado
e, internalizado pela tribo, se torna a lei.
11

eficácia dessa rede e de seu desequilíbrio em proveito de uma só região do


mundo.22

Podemos afirmar dessa perspectiva que os séculos de violência, tortura e


terrorismo incitados por colonizadores contra populações originárias podem com
certeza ser chamados de guerra, genocídio, holocausto e assim por diante, mas
ainda não de colonização. Propomos que esse sentido seja reservado para o
processo de transformação das formas de interpelação dos sujeitos. São essas
transformações, (como por exemplo) as consequências da gramatização para os
povos vítimas de tais violências, que podemos chamar de colonização, já que não se
trata mais de uma invasão, mas da eliminação progressiva das capacidades de
reconhecimento da diferença entre o invasor e o habitante originário. Mais uma vez
aqui a guerra não é ganha pelo domínio repressivo, mas quando as práticas sociais
do invasor se tornam as do invadido; no apagamento; no silêncio.
Podemos pensar mais alguns elementos nessa mesma trilha de
pressupostos epistemológicos da colonização. Principalmente o desenvolvimento da
lógica no contexto da filosofia moderna. Mas isso estenderia nosso trabalho a limites
desinteressantes, então basta afirmar que algumas dessas questões já foram
trabalhadas desde 2019 e que agora passamos às conclusões que esses achados
podem nos apresentar sobre as tecnologias digitais e suas consequências políticas.

22
É claro que pervertemos essa citação. Auroux a usa para descrever um desenvolvimento epistemológico
enquanto nós, de uma posição que se pretende materialista, o lemos como prática de dominação histórica. P. 35
12

A TÉCNICA DA DOMINAÇÃO, A TÉCNICA DA RESISTÊNCIA

A gramatização não foi o único dispositivo epistemológico que a Europa


produziu desde o século XV. Ora, em Characteristica Universalis, Leibniz descreve
esse projeto epistemológico com mais ou menos as mesmas palavras que usamos
aqui. Davis nos lembra:

Ele sonhava com uma compilação enciclopédica, com uma linguagem


matemática artificial na qual todas as facetas do conhecimento poderiam ser
expressas, sonhava com regras de cálculo que poderiam revelar as inter-
relações lógicas entre propostas. Finalmente, ele sonhava com máquinas
capazes de realizar cálculos, libertando a mente para o pensamento
criativo.23

Essas redes, “puramente epistemológicas, inócuas e inocentes de


qualquer violência humana”, na qual todo o conhecimento produzido faria parte de
uma mesma lógica de organização, “a” lógica de organização, se assemelha ao
projeto de um império, no qual tudo é permitido e pode ser dito, desde que seja
passível de ser processado, organizado, editado, revisado e colocado no interior da
lógica do todo, ocupando o seu lugar no projeto de aumento da eficácia, estabilidade
e inevitabilidade dessa mesma rede, até que ela recubra todo o mundo e cada gesto
de fala e pensamento de cada indivíduo capaz de se integrar ao sistema.
Pêcheux já tinha nos avisado:

Não faltam boas almas se dando como missão livrar o discurso de suas
ambiguidades, por um tipo de “terapêutica da linguagem” que fixaria enfim o
sentido legítimo das palavras, das expressões e dos enunciados. É uma das
significações políticas do desígnio neopositivista, esta de visar construir
logicamente, com a bênção de certos linguistas, uma semântica universal
suscetível de regulamentar não somente a produção e a interpretação dos

23
DAVIS, M. The Universal Computer: the road from Leibniz to Turing. New York: CRC Press, 2012. Capítulo
1, [tradução nossa].
13

enunciados científicos, tecnológicos, administrativos, mas também (um dia,


por que não?) dos enunciados políticos.24

Esse é o registro da circulação do qual falamos em Análise de Discurso.


Não se trata de discutir “por onde o discurso anda”, mas qual princípio ideológico
(que atravessado pelo corte epistemológico e pela transformação em prática técnica,
é esquecido), coloca quais discursos como partes de quais “todos”. Uma só língua,
uma só forma de produção de conhecimento, e agora uma só forma de
estabelecimento das relações produtivas.

A historicidade do universal contemporâneo

Se Auroux afirma que o processo de gramatização se estende até os


limites do século XX, não é difícil ver que outras práticas de colonização produzem
seus efeitos hoje. Historiograficamente falando, os sistemas digitais de comunicação
e arquivamento demonstram suas primeiras aplicações práticas no século XX em
contexto bastante heterogêneos: na quebra de cifras criptográficas durante a guerra;
na comunicação entre grupos de pesquisa universitárias; na contagem, organização
e categorização dos presos, escravizados e mortos nos campos de concentração
alemães; no sistema de inteligência norte americana (até que ponto é obviamente
difícil dizer), e assim por diante. Até então, talvez não estivesse claro como que os
pressupostos epistemológicos da lógica computacional seriam uma nova forma de
colonização, quer dizer: uma nova forma de transformação dos dispositivos de
interpelação de tal maneira a eliminar a possibilidade de reconhecimento da
diferença entre aquele que propõe o dispositivo, e aquele que é subjugado por ele.
Mas para que esse ponto fique claro, basta olharmos para as consequências antes
das causas: basta olhar para a digitalização ubíqua dos recursos e práticas de
trabalho, para os campos que essa digitalização eliminou e fez nascer. Basta olhar
para as consequências geopolíticas dos sistemas de digitais de vigilância. Basta,

24
PÊCHEUX, M. Ler o Arquivo Hoje. In: ORLANDI, E (org.). Gestos de Leitura, 3ª ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 2010. p. 55.
14

ora, olhar para os aplicativos de paquera, de entrega de comida, de transporte de


pessoas e cargas, de aluguel e estadia, de viagem, de beleza, de organização e
agenda, de... E ainda temos as redes sociais. Enfim. Se é corriqueiro notar o quanto
todas essas tecnologias transformaram nossas vidas, talvez seja (consequência do
esquecimento do qual falamos acima) mais difícil discernir o princípio a partir do qual
todas essas tecnologias organizam nossas vidas. Dito de outra forma: parte de qual
rede essas tecnologias nos tornam? Nossa libido, nosso consumo, nossos
interesses, o luto, o mal-estar, tudo produzido, organizado, selecionado, editado e
colocado em seu respectivo lugar da rede, da mesma forma que as línguas no
processo de gramatização.
Se nosso objetivo, como em análise, é uma medida mínima de liberdade,
então nossa primeira tarefa é reconhecer o princípio de organização que faz essas
práticas tecnológicas tão bem-sucedidas.
O peso da evidência histórica nos mostra que as tecnologias mais bem
sucedidas em qualquer determinada forma-histórica está sempre aprofundando e
expandindo o sistema econômico vigente25. Então, se falamos sobre tecnologias
digitais e capitalismo, falamos sobre as primeiras aprofundando o funcionamento do
segundo, isto é: capilarizando e intensificando as práticas de consumo, não
simplesmente no sentido de troca de mercadoria e giro de capital, mas do dispositivo
mesmo de interpelação dos sujeitos como sujeitos consumidores. As redes sociais,
por exemplo, muito mais do que espaços de compra e venda de mercadorias, são
espaços de compra e venda de atenção no qual nos identificamos como sujeitos na
medida em que nos identificamos com o todo do que consumimos e por quem
somos consumidos (quantos likes, quem clicou, qual nicho etc.). E o que é
importante notar aqui, algo que só funcionaria por meio do projeto capitalista de
globalização dos recursos econômicos e naturais do planeta, é que essa lógica de
identificação (entre tantas outras propostas pelas tecnologias digitais) é justamente
tão poderosa por propor para cada país, região, cultura, povo, tribo e temporalidade
uma mesma forma de se relacionar: a do dispositivo. O “programador” (no sentido de
a empresa, a instituição etc.) escreve do seu lugar, sem nunca imaginar que o que

25
Nesse sentido, poderíamos defender que essas tecnologias são o contrário de “revoluções”, se pensarmos
revolução no sentido material-histórico de “reorganização das formas de produção e de reprodução dos sistemas
produtivos”. Mas essa é uma questão de nomenclatura que não nos interessa desenvolver nesse momento.
15

propõe não é uma plataforma neutra para que todos possam se encontrar, mas um
espaço enunciativo de acordo com suas próprias experiências e exigências do
mundo. A distância que Pêcheux propôs ainda vale:

Desde a Idade Média a divisão começou no meio dos clérigos, entre alguns
deles, autorizados a ler, falar e escrever em seus nomes (logo, os
portadores de uma leitura e de uma obra própria) e o conjunto do todos os
outros, cujos gesto incansavelmente repetidos (de cópia, transcrição,
extração, classificação, indexação, codificação etc.) constituem também
uma leitura, mas uma leitura impondo ao sujeito-leitor seu apagamento
atrás da instituição que o emprega.26

Mal sabíamos nós que é justamente nessa segunda forma de leitura que residiria
todo o poder das práticas políticas do século XXI.
Como Baudrillard tão bem exprime, a plataforma se torna pura justamente
porque some, passa a existir como um pressuposto em cada foto que se tira na
praia, em cada assunto que se interessa, objeto que se deseja, e assim por diante.
Isso é circulação e isso é o poder político do arquivo. E Pêcheux já tinha nos
avisado.

[...] é também grande, pelo menos, a ameaça de assistir a uma restrição


política dos privilégios da leitura interpretativa (no quadro da
“reprofissionalização” do trabalho intelectual e cultural), sobretudo se o
essencial do debate informático desse ponto de vista é silenciado: não
considerar os procedimentos de interrogação de arquivo como um
instrumento neutro e independente (um aperfeiçoamento das técnicas
documentais) é se iludir sobre o efeito político e cultural que não pode
deixar de resultar de uma expansão da influência das línguas lógicas de
referente unívoco, inscritos em novas práticas intelectuais de massa.27

E continua:

Nesta medida, o risco é simplesmente o de um policiamento dos


enunciados, de uma normalização asséptica da leitura e do pensamento, e
de um apagamento seletivo da memória histórica: “quando se quer liquidar
um povo”, escreve Milan Kundera, “se começa a lhes roubar a memória”.28

26
Ibidem, p. 52.
27
Ibidem, p. 55.
28
Ibidem, p. 55.
16

Se começa por lhes roubar a memória. E o que precisa ficar claro, nesse
caso, é que não falamos só do mito, mas da roda de crianças e da fogueira na qual
o mito é contado. A memória é também o jeito que cada povo transmite o que é
intrínseco a si. Baudrillard nos conta:

Assim se gabam os Americanos de ter conseguido voltar a igualar o número


de índios existentes antes da Conquista. Apaga-se tudo e recomeça-se.
Gabam-se mesmo de fazer melhor e de ultrapassar o número original. Será
a prova da superioridade da civilização: ela produzirá mais índios que estes
eram capazes de produzir. Com uma irrisão sinistra, esta superprodução é
ainda ela uma forma de os destruir: é que a cultura índia, como toda cultura
tribal, baseia-se na limitação do grupo e na recusa de todo crescimento
“livre”, como se vê em Ishi. Há aí, pois, na sua “promoção” demográfica,
mais um passo para sua exterminação simbólica.29

Seguimos para um fechamento dessa nossa leitura sobre a questão do


funcionamento material/discursivo/tecnológico da colonização.

O uso e o mal-uso

Frente a esse panorama, ressaltamos duas questões.


A primeira já foi uma alerta de Pêcheux no artigo que citamos e pode ser
formulada afirmando que é dever de todo cientista no campo das chamadas ciências
humanas se familiarizar com o código, a engenharia e a burocracia dos processos,
ferramentas e práticas envolvidas na produção e uso das tecnologias digitais. Tentar
ler um enunciado num espaço enunciativo informatizado30 sem, concomitantemente
saber ler esse próprio espaço e arquivo é efetivamente trabalhar contra o próprio
propósito de análise e desconstrução, na medida em que se reforça e naturaliza o
esquecimento que produz a possibilidade efetiva de colonização das formas
contemporâneas de interpelação. Acreditamos que depois do que foi desenvolvido
acima, esse ponto esteja suficientemente claro.

29
BAUDRILLARD, J. Simulacro e Simulação. Relógio d’Água, Lisboa, 1991. p. 19.
30
GALLO, S. e SILVEIRA, J. - Forma discurso de escritoralidade: processos de normatização e legitimação. In.
Flores, G, Gallo, S., Lagazzi, S., Neckel,N., Pfeiffer, C., Zoppi-Fontana (Orgs) - Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia. Vol.3., Campinas: Ed. Pontes, 2017.
17

O segundo ponto é lembrar que nunca se estabelece dominação sem,


simultaneamente, se estabelecer resistência. Isso é consequência do próprio
problema que discutimos aqui, a saber: que apesar das pretensões epistemológicas
de existência universal da experiência humana, a realidade material dos sujeitos é
sempre regional e temporalizada. Ela nunca se integra, total e efetivamente, à rede,
nem mesmo da posição do próprio dominador, pois esta é também sempre
heterogênea. A técnica, a tecnologia, a ferramenta, não pode mais ser pensada
como neutra, como passível de ser utilizada por qualquer lado, mas ela própria
também não é unívoca e funciona sob as mesmas leis de contradição que outros
processos ideológicos/discursivos31. O que precisa ser pensado, repensado e
insistido é que se utilizar das ferramentas tecnológicas para desfazer seus efeitos é
se esquecer de que não é o conteúdo do que se diz que alimenta essa máquina de
mundo particular, mas o próprio ato de dizer (na forma da identificação com um
lado), fazendo a substituição (que Gallo32 tão bem descreveu) da contradição pela
controvérsia.
Como escapar da controvérsia, e produzir contradição nas tecnologias
digitais? Bom, não temos todas as respostas, mas Pêcheux já sugeriu um bom
começo:

As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens;


não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige
silêncio; falar sua língua como uma língua estrangeira que se domina mal;
mudar, desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; tomar os

31
Vale lembrar paralelamente aqui que Pêcheux explica isso muito bem em Delimitações, Inversões e
Deslocamentos (1990) quando diz que: “Esse duplo caráter dos processos ideológicos (caráter regional e caráter
de classe) permite compreender como as formações ideológicas e discursivas nas quais eles se inscrevem se
referem necessariamente a “objetos” (como a Liberdade, a Ordem, a Igualdade, a Justiça, a Ciência, o Poder etc.)
que são ao mesmo tempo idênticos e antagonistas em relação a si mesmo, quer dizer, cuja unidade é submetida a
uma divisão: o próprio da luta ideológica sob a dominação burguesa consiste em desenrolar-se em um mundo
que não acaba nunca de se dividir em dois”.
32
GALLO, S. – Sobre a normatização vigilante dos discursos midiatizados. in. ANAIS do 5º SIMPÓSIO
INTERNACIONAL LAVITS: “Vigilância, Democracia e Privacidade na América Latina: vulnerabilidades e
resistências”. ISSN 2175-9596, 2018 p. 426. 2017. Acesso: http://lavits.org/wp-content/uploads/2018/04/74-
Solange-Leda-Gallo.pdf
18

enunciados ao pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o


léxico jogando com as palavras...33

Essa distinção entre controvérsia e contradição também já está instalada


em Pêcheux quando ele nos pergunta:

[...] não seria esta a ocasião, para os discursos com pretensão


revolucionária, de empreender sua própria revolução? Aceitar questionar a
lógica paranoica dos efeitos de fronteira para discernir os elementos de
resistência e de revolta que se deslocam sob as lógicas estratégicas da
inversão: aceitar heterogeneizar o campo das contradição para esquivar as
simetrias que aí se instalam; aceitar abalar a religião do sentido que separa
o sério (o útil, o eficaz, o operatório) do “sem sentido”, reputado perigoso e
irresponsável; aceitar, enfim, desvizualizar os espectros do discurso
revolucionário para começar a devolver o que se deve ao invisível, isto é, ao
“movimento real” (Marx), que trabalha neste mundo para a abolição da
ordem existente...34

A pergunta que nos segue na luta contra a colonização do pensamento,


num espaço como, por exemplo, o das redes sociais é “como devolver o que se
deve ao invisível”? A pergunta ecoa ainda, e nos convida...

33
PÊCHEUX, M. Delimitações, Inversões, Deslocamentos. In: Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas,
(19): 7-24, jul/dez. 1990. p. 17.
34
Ibidem, p. 20.

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