Gramatização, Colonização e Resistência
Gramatização, Colonização e Resistência
Gramatização, Colonização e Resistência
Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é
somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao
mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto
de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o
exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a
linguagem é multiforme e heteróclita; o cavaleiro de diferentes domínios, ao
mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao
domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma
categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade. A
língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. Desde
que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos
uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra
classificação.1
1
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral, 28ª ed. São Paulo, Cultrix: 2012. p. 41.
2
Tudo isso nos leva a crer que, acima desses diversos órgãos, existe uma
faculdade mais geral, a que comanda os signos e que seria a faculdade
linguística por excelência. E somos assim conduzidos à mesma conclusão
que antes. Para atribuir à língua o primeiro lugar no estudo da linguagem,
pode-se, enfim, fazer valer o argumento de que a faculdade – natural ou
não – de articular palavras não se exerce senão com a ajuda de instrumento
criado e fornecido pela coletividade; não é, então, ilusório dizer que é a
língua que faz a unidade da linguagem.2
O leitor atento deve ter notado nossa intenção, com a ênfase que
colocamos na palavra uso. Queremos aqui fazer o que o materialismo sempre fez no
contexto epistemológico das ciências humanas, que é inverter a fórmula que coloca
o essencial como determinante do contingente ou, dito de outra forma: a fórmula que
lê o ideal como origem do material. Para isso, pedimos que o leitor releia essa
proposta Saussuriana como o que entendemos que ela é: mais uma das tecnologias
epistemológicas de colonização. Explicamos.
2
Ibidem, p. 42.
3
AUROUX, S. A Revolução Tecnológica da Gramatização, 3ª ed. Editora da Unicamp, 2015.
4
Ibidem, p. 35.
3
5
Ibidem, p. 23.
6
FISCHER, S. R. História da Escrita. Editora da Unesp: SP, 2009.
7
HAVELOCK, E. A Revolução da Escrita na Grécia: e suas consequências culturais. Paz e Terra: SP, 2007.
4
8
AUROUX, S. A Revolução Tecnológica da Gramatização, 3ª ed. Editora da Unicamp, 2015. p. 17.
9
ALTHUSSER L. Por Marx. Editora da Unicamp, Campinas: 2015. p. 187.
5
Segue-se que para você (leitor), como para mim, a categoria de sujeito é
uma “evidência” primeira (as evidências são sempre primeiras): é claro que
eu e você somos sujeitos (livres, normais, etc.). Como todas as evidências,
incluindo as que fazem com que uma palavra “designe uma coisa” ou
“possua uma significação” (portanto incluindo as evidências da
“transparência da linguagem”), esta “evidência” de que eu e você somos
sujeitos – e que esse fato não constitui um problema – é um efeito
ideológico, o efeito ideológico elementar.10
Então se nos sentimos livres para dizer que somos sujeitos e que isso é
evidente (não constitui um problema); e se podemos também afirmar que isso que
dissemos é uma relação de significação (uma relação direta ou empírica entre o
indivíduo e o mundo) e isso também nos parece evidente; ora, então o que
queremos apontar aqui é que as tecnologias da linguagem atravessam o mesmo tipo
de processo, que faz com que, por exemplo, a escrita pareça a representação da
fala e que faz com que a gramatização pareça como o descobrimento11 das
estruturas essenciais das línguas. A dizer: se toda prática ideológica é, também,
esquecimento, então nos colocamos na posição de declarar que toda prática técnica
linguageira (sendo simultaneamente prática ideológica), também o é. Reutilizo o
argumento em Auroux para exemplificar essa proposta:
10
ALTHUSSER L. Aparelhos Ideológicos do Estado. Editorial Presença / Martins Fontes. Lisboa, 1980. p. 95.
11
Esse termo aqui é bastante interessante pois ele espelha a prática pedagógica nas américas de ensino do
“descobrimento” do continente. Sabemos bem que não se trata de descobrimento o que aconteceu nas américas,
mas se entendemos o termo em toda sua ironia, percebemos um perfeito paralelo com a ideia do descobrimento
das estruturas das línguas, pois a gramatização é, também, um ato de colonização como pretendemos demonstrar.
6
12
AUROUX, S. A Filosofia da Linguagem. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1998. p. 73-74
13
PEQUENO, V. Tecnologia e Esquecimento: uma crítica a representações universais de linguagem. Campinas:
Pontes Editores, 2020. p. 113.
14
Ibidem, p. 114.
7
reproduz (na forma do discurso), mas é, por si mesma, uma forma da ideologia e da
interpelação, reprodução da ideologia na forma-sujeito e, agora;
2. que esse processo ideológico de interpelação se engendra, como toda
interpelação, pelo esquecimento, fazendo com que as práticas linguageiras
produzam, até mesmo, e talvez principalmente nos contextos das ciências da
linguagem, o efeito de “veículo da língua”, representações de uma estrutura ou
operação universal oriunda das faculdades humanas.
Se o discurso pode analisado, no sentido de que o discurso é um efeito
produzido por causa e como consequência da interpelação do indivíduo em sujeito,
então a prática técnica também deve poder ser analisada na medida em que
também é parte dos mecanismos de produção e reprodução da forma histórica de
uma sociedade dada. No nosso entendimento, isso é se propor a estudar tecnologia
no contexto do materialismo histórico e da análise de discurso. A saber: significa
olhar para a materialidade técnica da prática linguageira com suficiente
conhecimento técnico para poder interpretar as consequências do fato de que os
mecanismos de circulação são parte constitutiva do sentido de qualquer enunciado.
Nos resta somente, portanto, reformular nossa pergunta inicial para caber
tanto na demanda de nosso artigo como na trilha dessas descobertas: como pensar
as consequências políticas produzidas pela ideia (pelo pressuposto epistemológico)
de língua? Mais ainda: como pensar as consequências políticas produzidas pelo
pressuposto epistemológico de gramatização, de lógica e língua lógica e de
programação?
8
15
AUROUX, S. A Revolução Tecnológica da Gramatização, 3ª ed. Editora da Unicamp, 2015. p. 36
9
16
Ibidem, p. 37.
17
HERBERT, T. Reflexões Sobre A Situação Teórica das Ciências Sociais e, Especialmente, da Psicologia
Social. In: PÊCHEUX, M. Análise de Discurso. Campinas: Pontes Editores, 2012. p. 30.
10
O Latim não seria também aquilo que precisa morrer para que a
gramática nasça verdadeiramente? Na sua forma mais “pura”, ele desaparece
inteiramente, e vemos, como a história tão bem nos demonstra, o nascimento dos
dicionários monolíngues, das gramáticas individuais das línguas vernáculas etc.21
Quer dizer: o Latim deixa de ser uma das línguas, mas passa a ser o princípio
epistemológico de descrição, organização e ensino de qualquer língua. Está aí o
aspecto mais absoluto e imperial do processo de colonização: a transformação da
própria prática linguageira regional local, com todos os seus funcionamentos íntimos
e comunitários, em mais uma das estruturas universais que fazem parte da rede
total, da máquina de mundo que é a gramática.
18
BAUDRILLARD, J. Simulacro e Simulação. Relógio d’Água, Lisboa, 1991. p. 14.
19
Ibidem, p. 15.
20
Ibidem, p. 15.
21
Em Totem e Tabu (1916) Freud conta a mesma história. O pai da horda reina pela força, até que é assassinado
e, internalizado pela tribo, se torna a lei.
11
22
É claro que pervertemos essa citação. Auroux a usa para descrever um desenvolvimento epistemológico
enquanto nós, de uma posição que se pretende materialista, o lemos como prática de dominação histórica. P. 35
12
Não faltam boas almas se dando como missão livrar o discurso de suas
ambiguidades, por um tipo de “terapêutica da linguagem” que fixaria enfim o
sentido legítimo das palavras, das expressões e dos enunciados. É uma das
significações políticas do desígnio neopositivista, esta de visar construir
logicamente, com a bênção de certos linguistas, uma semântica universal
suscetível de regulamentar não somente a produção e a interpretação dos
23
DAVIS, M. The Universal Computer: the road from Leibniz to Turing. New York: CRC Press, 2012. Capítulo
1, [tradução nossa].
13
24
PÊCHEUX, M. Ler o Arquivo Hoje. In: ORLANDI, E (org.). Gestos de Leitura, 3ª ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 2010. p. 55.
14
25
Nesse sentido, poderíamos defender que essas tecnologias são o contrário de “revoluções”, se pensarmos
revolução no sentido material-histórico de “reorganização das formas de produção e de reprodução dos sistemas
produtivos”. Mas essa é uma questão de nomenclatura que não nos interessa desenvolver nesse momento.
15
propõe não é uma plataforma neutra para que todos possam se encontrar, mas um
espaço enunciativo de acordo com suas próprias experiências e exigências do
mundo. A distância que Pêcheux propôs ainda vale:
Desde a Idade Média a divisão começou no meio dos clérigos, entre alguns
deles, autorizados a ler, falar e escrever em seus nomes (logo, os
portadores de uma leitura e de uma obra própria) e o conjunto do todos os
outros, cujos gesto incansavelmente repetidos (de cópia, transcrição,
extração, classificação, indexação, codificação etc.) constituem também
uma leitura, mas uma leitura impondo ao sujeito-leitor seu apagamento
atrás da instituição que o emprega.26
Mal sabíamos nós que é justamente nessa segunda forma de leitura que residiria
todo o poder das práticas políticas do século XXI.
Como Baudrillard tão bem exprime, a plataforma se torna pura justamente
porque some, passa a existir como um pressuposto em cada foto que se tira na
praia, em cada assunto que se interessa, objeto que se deseja, e assim por diante.
Isso é circulação e isso é o poder político do arquivo. E Pêcheux já tinha nos
avisado.
E continua:
26
Ibidem, p. 52.
27
Ibidem, p. 55.
28
Ibidem, p. 55.
16
Se começa por lhes roubar a memória. E o que precisa ficar claro, nesse
caso, é que não falamos só do mito, mas da roda de crianças e da fogueira na qual
o mito é contado. A memória é também o jeito que cada povo transmite o que é
intrínseco a si. Baudrillard nos conta:
O uso e o mal-uso
29
BAUDRILLARD, J. Simulacro e Simulação. Relógio d’Água, Lisboa, 1991. p. 19.
30
GALLO, S. e SILVEIRA, J. - Forma discurso de escritoralidade: processos de normatização e legitimação. In.
Flores, G, Gallo, S., Lagazzi, S., Neckel,N., Pfeiffer, C., Zoppi-Fontana (Orgs) - Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia. Vol.3., Campinas: Ed. Pontes, 2017.
17
31
Vale lembrar paralelamente aqui que Pêcheux explica isso muito bem em Delimitações, Inversões e
Deslocamentos (1990) quando diz que: “Esse duplo caráter dos processos ideológicos (caráter regional e caráter
de classe) permite compreender como as formações ideológicas e discursivas nas quais eles se inscrevem se
referem necessariamente a “objetos” (como a Liberdade, a Ordem, a Igualdade, a Justiça, a Ciência, o Poder etc.)
que são ao mesmo tempo idênticos e antagonistas em relação a si mesmo, quer dizer, cuja unidade é submetida a
uma divisão: o próprio da luta ideológica sob a dominação burguesa consiste em desenrolar-se em um mundo
que não acaba nunca de se dividir em dois”.
32
GALLO, S. – Sobre a normatização vigilante dos discursos midiatizados. in. ANAIS do 5º SIMPÓSIO
INTERNACIONAL LAVITS: “Vigilância, Democracia e Privacidade na América Latina: vulnerabilidades e
resistências”. ISSN 2175-9596, 2018 p. 426. 2017. Acesso: http://lavits.org/wp-content/uploads/2018/04/74-
Solange-Leda-Gallo.pdf
18
33
PÊCHEUX, M. Delimitações, Inversões, Deslocamentos. In: Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas,
(19): 7-24, jul/dez. 1990. p. 17.
34
Ibidem, p. 20.