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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

Pascal Dusapin

Cadeira de Criação artística


2006‐2007

COMPOR

Música, paradoxo, fluxo

Collège de France/Fayard
2007
trad. Port. Silvio Ferraz, 2009

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As aulas inaugurais do Collège de France

Desde sua fundação em 1530, o Collège de France, tem como


principal missão ensinar, não saberes constituídos, mas “o saber
enquanto se faz”: a pesquisa científica e intelectual. Os cursos são
abertos a todos, gratuitamente, sem inscrição nem entrega de
diplomas.

Conforme o seu lema (Docet omnia, ele ensina todas as coisas”), o


Collège de France está organizado em cinqüenta e duas cadeiras
cobrindo um vasto conjunto de disciplinas. Cada ano são
oferecidas, dentre outras, uma cadeira européia, uma cadeira
internacional, uma cadeira de criação artística e uma cadeira de
inovação tecnológica.

Os professores são escolhidos livremente por seus apres, em


função da evolução das ciências e do conhecimento. Ao ingresso
de um novo professor, uma nova cadeira é criada e pode tanto
retomar, ao menos parcialmente, a herança de uma cadeira
anterior, ou bem inaugurar uma nova linha de ensino.

O primeiro curso de um novo professor é sua Aula Inaugural.

Solenemente pronunciada na presença de seus colegas e de um


grande público, ele é para ele a ocasião de situar seus trabalhos e
sua linha de ensino com relação à de seus predecessores e aos
desenvolvimentos mais recentes da pesquisa.

Não apenas as aulas inaugurais tecem um quadro do estado de


nossos conhecimentos e contribuem também à história de cada
disciplina, mas elas nos introduzem ao ateliê do intelectual e do
pesquisador. Muitos dentre eles constituíram, em seus domínios e
seus tempos, eventos marcantes, ou mesmo sensacionais.

Elas foram destinadas a um grande público esclarecido, desejoso


de melhor compreender as evoluções da ciência e da vida
intelectual contemporânea.

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Aula inaugural
Pronunciada na segunda feira, 1º de fevereiro de 2007
Por Pascal Dusapin
Professor

Aula Inaugural nº 191

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Senhor Diretor,
Meus colegas,
Meus amigos,
Senhoras e senhores,

No ano passado, Christan de Portzamparc inaugurou


esta nova cadeira anual dedicada à criação artística.
Não é de surpreender o fato de terem escolhido num
primeiro momento um arquiteto, visto esta disciplina
simbolizar rigor e invenção. Existem ligações diversas
entre a música e a arquitetura. O mais importante é
sem dúvida a disposição natural destas duas arte de
focarem seus espaços respectivos sobre paradigmas
de formas e de proporções.

De 1974 a 1978, segui os cursos de Iannis Xenakis a


Universidade de Paris‐I. É conhecida a dupla
formação de Xenakis. Ele era engenheiro, tendo
colaborado com Le Corbusier por doze anos, antes de
tornar‐se o compositor tão singular que conhecemos.
Xenakis me foi muito importante. Ele falava sempre
de arquitetura e isto sem dúvida me levou a estudar
um pouco esta disciplina que ele amava bastante. É
também para mim uma história de família: dois de
meus irmãos são arquitetos. No departamento
pedagógico de arquitetura nas Belas Artes, me lembro
de ter me apaixonado por todas as questões afeitas ao
urbanismo. Por exemplo: como uma construção
moderna se ajustaria a um conjunto de imóveis mais
antigos? Como devemos fazer para escolher angulo e
esquadro desta mesma construção se a quina das
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paredes adjacentes tem de ser imperativamente


preservadas? Como mudar este espaço ao aumentá‐lo,
como reduzir aquele outro, como deslocar uma
simetria, como desemparelhar as linhas de um
volume, como compor outros, como recompô‐los ao
invertê‐los e depois os desfazendo de uma nova
maneira? Todas estas questões realçam uma
multiplicidade de técnicas de construção. Eu apenas
resvalava nas respostas a estas questões no domínio
da arquitetura: para mim, elas se davam
interrogações apropriadas à composição musical.
Como passar desta linha melódica aguda àquela mais
grave, como associar esta outra linha a este conjunto
de sons mais complexos, como isolar este
instrumento da massa sinfônica, como passar de um
andamento rítmico a um outro, como reduzir o
volume de uma orquestração apenas acelerando a sua
velocidade, como tornar mais adensar uma linha ao
reduzir o volume harmônico dos instrumentos que a
acompanham, como podemos bruscamente mudar o
“ângulo” de uma música (e, precisamente, no domínio
da música, o que vem a ser um “ângulo”, um “volume”,
ma “linha”, uma “massa”)?
Para alem de uma proximidade conceitual de ocasião,
sempre gostei de observar o modo como os arquitetos
abordam seus problemas de formas e de composição.
Isto sempre me ajudou a resolver um pouco os meus.
Senhor Diretor, meus caros colegas, tenho
indubitavelmente a honra de ter sido escolhido para
falar de criação musical a vocês. Mais do que tudo, é à
minha profissão que este convite dá a distinção, e os

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agradeço calorosamente pelo interesse que


demonstraram.
A música não é uma desconhecida do Collège de
France. A primeira vez que adentrei suas portar foi
em 10 de dezembro de 1976 pare assistir a uma aula
inaugural proferida por Pierre Boulez, Invention,
technique et langage. Esta aula e todas aquelas que se
seguiram impressionaram por muito tempo o mundo
da música. Lembremos apenas que seu objeto foi a
teoria musical. Ao longo de todos estes anos, Pierre
Boulez reconsiderou todos os princípios da linguagem
musical no seio do projeto teórico e estético
estruturado de modo extraordinário. A noção de
linguagem musical é uma das mais complexas e
controversas que existem. Designando a existência
subjacente de uma lógica, a concepção bouleziana da
linguagem supõe uma organização do material sonoro
em estratos claramente hierarquizados que nem
sempre é fácil de analisar em todas as expressões
musicais. Pierre Boulez se lançou a uma síntese de
grande envergadura e, hoje em dia, seus escritos não
deixam de ser lidos e pensados por aqueles que
sustentam estéticas musicais as mais diversas e por
vezes opostas. É neste sentido que os escritos de
Pierre Boulez, cuja presença eu agradeço nesta noite,
são obras de uma grande liberdade.

“O saber enquanto ele se faz”, é o que expõe, a


princípio, o ensino no Collège de France. Eu escolherei
assim:”A criação enquanto ela se faz”. Tal é o modelo
explicito, o programa desta cadeira de criação
artística. Portanto, em sua aula inaugural, Christan de
Portzamparc perguntou se era possível “ensinar a
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criação”. O que será testemunhar uma criação musical


enquanto ela se faz? Será possível dar‐se conta de
uma composição em curso? Não acredito, tanto que o
exercício da composição me ensinou o fenômeno da
invenção dos sons parece irredutível à sua exposição.
Por outro lado, podemos revelar o contexto de uma
criação musical descrevendo a seqüência das decisões
que permitiram (ou autorizaram) sua escrita. mas
descrever um procedimento de progressão, em uma
obra musical, não é a criação enquanto se faz. Não
passa de uma descrição.
Se existe uma coisa para a qual minha vida de
compositor não me preparou, é – exatamente – me
colocar diante de todos vocês para tentar resolver
esta questão. Perdoem‐me esta impertinência mas,
para criar música, é necessário muitas vezes não
saber nada do que está “em vias de se fazer”. Falar
sobre ela é insensato. Então não se diz mais nada.
Jamais. Ao invés de poder dizê­la, apenas falamos.
Mas falar de música parece sempre mergulhar na
obscuridade tanto que seu assunto extrapola. A
música se fala mas condena todo comentário. Não se
vê nada. Nenhuma imagem objetiva certeira, nenhum
conteúdo, nenhum objeto. Não é por nada que ela não
designa nada mais, visto que se cala, a cada vez,
apenas subsistindo em nós um sentimento vivo, quase
incômodo, delicadamente doloroso. Como uma dor. A
música brilha e depois se dissipa, como uma ilusão.
Secretamente, ela ressoa. Mas seu eco vem sempre
depois. A música, é o luto incessante do instante.
Roland Barthes dizia: “A música, é o que não volta
nunca”... Ao que poderíamos acrescentar: está sempre
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adiantada. Em suma, ela está sempre acabada. A


ameaça de que “já tenha acabado”. Então, nos
obstinamos. escutamos mais uma vez. E ainda amis
uma vez, ela não está lá. E ainda menos do que antes.
E tudo recomeça. Antes da música, há o silêncio. Logo
apos, tudo não passa de uma lembrança. Uma
“lembrança do silêncio” que a antecedia. A
ambigüidade da escuta reside toda nestes fragmentos
de instantes que não estão mais. Aquele que escuta
presume captar o tempo. No entanto, o tempo, não há.
Pode‐se até saber‐se que isto designa algo. Então, a
tentação nos toma. Escutamos mais uma vez. E tudo
recomeça. Como fazer para dizer este tempo que “não
para de não se deixar dizer”?

Observemos que a natureza do tempo que se passa a


escutar consiste sobretudo em uma retomada de
ordem topográfica. A escuta se desfaz dela mesma,
por assim dizer. Qualquer coisa conduz nosso cérebro
a analisar extremamente rápido os encadeamentos e
os limites enunciados pelo fluxo. Escutar, é localizar
as bordas de uma forma. De fato, trata‐se de uma
mecanismo de reconhecimento das bordas mais do
que de limites reais, pois não podemos ainda
conceber a forma/tempo da música que estamos a
ouvir. Assim que ela se acaba, acreditamos então ter
atingido uma totalidade, uma demonstração deste
tempo específico. Gosto de pensar que estamos
enganados. Toda obra musical, penso eu, nos convoca,
pelo contrario, a uma errância. Pode até mesmo fugir
ao sentido, ao menos daquele do qual nosso mundo
está saturado. A música, é um outro sentido, uma
outra lógica. Eis porque é irredutivelmente paradoxal.

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E meus propósitos como compositor, acredito, serão


sempre paradoxais à mesma proporção.
esta escuta caminhante é a experiência do tempo que
pensamos real enquanto trata‐se apenas de uma
intenção. Corresponder‐se com o tempo de uma obra,
apreender sua existência, é um “caminho que não leva
a lugar nenhum”. Estamos cansados de constatar que
a música escapa a toda apreensão material. De fato, a
música não deixa nenhum traço. Sua aparição se
confunde com sua desaparição. A música se desfaz tão
rápido que é impossível de segurar o que se ouviu.
Visto seu caráter interpretado, a música foge do
mundo das definições concretas e reencontra uma
pura intencionalidade. Escutar nos leva às portas de
um mundo infinitamente sutil: aquele das emoções.
Não nutrimos nenhuma desconfiança quanto a este
termo. A emoção é uma condição mental da qual não
escapamos. O que recebemos de uma música é uma
emoção. De fato, emoções se combinam e se
confundem em conjuntos confusos, mas elas nos
transformam. A emoção é um movimento e é pela
emoção que o espírito e o corpo se recompõem.
Escutar, é provar a consciência de um fato psíquico e
um fato físico. Onde nasce esta experiência? Ou antes,
de onde nasce uma música? Talvez uma obra não
tenha origem bem definida pois sua proveniência se
perde e é esquecida na profusão de suas
interpretações. Escuta, é reencontrar esta perda do
sentido. Escuta a música, é inventar as exigências
deste abandono. Mas compor não é escutar. Aquele

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que compõe entende, mas ele não escuta.1 Quando


adolescente, eu acreditava que tudo isto vinha do
mesmo lugar e, por muito tempo, confundi compor e
escutar. Acreditava que estava compondo, pois
ignorava todo o resto. (“O ouvindo, órgão da crença”,
nos lembra Nietzsche). Eu não tinha nenhum ideia
sobre o que era a composição. Escutar era o único
meio que tinha disponível para esta impensável
transgressão. A escuta era como uma sombra. Sombra
do compositor.

1 NT [as noções de écouter e entendre não possuem tradução

direta em português. Entendre corresponde à escuta musical (to


listen, em inglês), écouter à escuta do som].

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ESCUTA DO EXCERTO Nº 1

O tempo do filósofo, aquele do físico, não são aqueles


do músico. Nenhuma das demonstrações espacio‐
temporais da filosofia ou das ciências são
convenientes à música. Os músicos prejulgam que o
tempo é sua matéria principal mas podem ter uma
consciência rudimentar. É a famosa síndrome da
centopéia: este pequeno inseto rastejante deixaria de
andar se ele se interrogasse do funcionamento de

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suas patas. Os compositores conhecem bem este


paradoxo: não se escreve música com o tempo mas
com durações. Compor, é reunir blocos de durações.
Compor, é fragmentar ainda mais estes blocos, depois
dilatá‐los até esgotar escondendo os traços de sua
incessante metamorfose.

Compor não é ordenar no tempo. Quando se compõe,


não se ordena as coisas com o tempo mas ao lado do
tempo. O que pensamos como um evento anterior não
é mais ou menos importante daquele que virá depois.
Compor não é demonstrar. Compor, é inventar
impulsos e fluxos. É como a água de um córrego. Vem
do alto, passa, sabemos onde vai, mas não é isto que
nos preocupa. A verdadeira questão, é como fazer
para compor aquilo que atravessa. Compor, é inventar
caminhos que atravessem, afastamentos, e distâncias.
É como estar sempre fugindo. Mas compor é
demorado. É lento. Muito lento. Muito, muito lento...
Não avança nunca. É porque não sabemos no que isto
vai dar. A questão paradoxal não é como começar mas
como não terminar. Compor é não acabar nunca. Vai
tomar muito tempo para acabar, todo o nosso tempo.
E mesmo assim, nunca teremos acabado.
Para compor é preferível esperar. É neste tempo
longo, quase perdido (e que se perde nos detalhes de
escrita) que se dá a espera. Esperar é encontrar. Para
encontrar é preciso perder tempo. Esta perda é a
espera. Me surpreendo sempre ao constatar como
aquilo que era um objeto de minha busca aparece
quando estou esperando. Mas esta espera não é
inativa, pelo contrário. A escrita de uma partitura é
tão complexa (e aqui eu quero dizer, “complicada”),
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tão generosa na perda de tempo, que ela produz


naturalmente, quase que de si mesma, o espaço desta
espera.
Quando um pássaro voa, o ar se divide ao seu redor
em finas linhas. Cada um desses traços infinitos
produz outros, e ainda outros que se dividem ao
infinito, engendrando finas cadeias de turbilhões. O ar
é sulcado por inúmeras superfícies vibrantes cujos
períodos não deixam nunca de tornar‐se outros. Tal
qual todos estes turbilhões de ar, assim é compor, é se
confraternizar com todo este movimento infinito. É
um ato vitalista. O desafio da música, sua verdadeira
beleza, é vir a ser. Vir a ser outra. A música é um puro
mundo de vir a ser em que tudo é movimento e
retorno ao movimento que a engendra. Compor é não
começar nunca, nem recomeçar, nem acabar. Compor
é continuar. Na verdade, a música não precisa de
tempo. Ela é o tempo. Mas um outro tempo que passa,
ao lado, sem jamais acabar, seria ele o verdadeiro
continente dos eventos musicais por vir, já que não
podemos conhecer jamais o desenvolvimento daquilo
que nosso ouvido descobre pela primeira vez?
Quando dizemos: “é preciso escutar [entend] de
novo”, isto acontece pois nosso cérebro não assimilou
a separação de tempo entre o silêncio de antes e a
lembrança do depois. Escutar [entendre] é assim
reconhecer o caminho. Portanto, escutar, é antes de
mais nada procurar este caminho. As músicas que
podemos qualificar de criativas, aquelas que preferem
ser re‐ouvidas antes mesmo que sejam escutadas,
estas que reconhecemos já antes que retornem ao
silêncio, são aquelas que substituem, à escuta, as
conveniências da memória. Esta memória é a
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quebranto do compor. A memória que conta não é


aquela não é a intuição daquele que reencontra um
caminho já percorrido, mas a experiência daquele que
procura ao atravessar o caminho. A memória é fazer
surgir um campo de coincidências vivas e radiantes. É
sob esta condição que a memória pode tornar‐se a
verdadeira substância da música. Sabemos que o
princípio de repetição é um dos fundamentos os mais
potentes do pensamento musical. Compor é assim
voltar. Minha música é quase sempre construída
sobre a repetição de pequenos motivos. Como a
imagem das ondas, ele articula numerosas rotações
harmônicas, melódicas e rítmicas. Esses ciclos se
tocam, se cortam e se recortam sem interromper seus
respectivos crescimentos. Pode até acontecer de o
ouvinte se envolver de conexões mentais parasitas
(ele se encarrega de ligar todos motivos) e que se
cérebro, finalmente, custe a se recordar dos eventos
antecedentes. É melhor assim. Escutar não é uma
atividade reacional. Sempre prestei atenção de
compreender e de assumir este embaraço. Compor
não é convencer. Pelo contrario, espero sempre que
aquele que escuta não espere nem pressuponha nada
do que ele procura.

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ESCUTA DO EXCERPTO Nº 2

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Os dois fragmentos de música para piano que vocês


escutaram (tocados pela pianista Vanessa Wagner)
não permitem ainda que vocês apreendam a peça no
seu conjunto. Com certeza, os ouvidos de vocês já se
deram conta de algumas recorrências harmônicas ou
rítmicas que permitem discernir um caminho. No
começo, não há quase nada. Dois acordes de três ou
quatro notas que giram em torno de um si natural,
depois subitamente recaem sobre um dó #, etc. Isso
gira, volta‐se sobre si mesmo, vai no sentido oposto,
retorna, recomeça, se apresenta invertido, depois um
pouco de através. Sobre esses acordes a mão direita
propõe uma linha melódica impávida que gira
levemente sobre si mesma. A mão esquerda, como se
não estivesse certa do que quer, parece tropeçar
sobre um ritmo um tanto quanto manco. Esta mão
pulsão tempo mas um pouco ao largo, nunca
exatamente em um primeiro plano. Como se ela
estivesse sempre um pouco em retardo. Uma
passagem bastante difícil porém delicada de se tocar.
Assim que me dediquei a compor uma pequena peça
musical para esta aula, me fixei uma regra bastante
simples: simplesmente fazer. Reduzi assim ao máximo
os elementos com os quais desejava jogar. Minha
ambição é não apenas fazer simples, mas pensar que
alguma coisa busca se busca simplesmente: como fazer
para que esta música tão curta, quase sem ambição,
de um só lance se estire e cresça um pouco. Mas –
para o momento – espero que compreendam que não
é difícil já pressentir um futuro a estas notas tomando
seu passado como hipótese. Escutar uma obra musical
não é um trabalho de especialistas em previsão. É
uma incessante conversão mental que renova os
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elementos passados por uma complexificação


instantânea dos momentos presentes.

O ESCUTA/COMPOR

Será que o futuro de uma obra toma sua significação


em vista de um sentido que lhe liga ao passado? (por
exemplo, como é que esta pequena peça para piano
vai terminar?) Para compor, ou seja vislumbrar um
certo tempo, é preciso saber mudar as concepções
com as quais pensamos o eixo
presente/passado/futuro. De modo que prever um
futuro seja de antemão condenado pela simples
proposição. De mesmo modo que pensar o passado
por um fato que qualificamos sempre mais
rapidamente (ou seja, já tarde demais!) do presente.
Nos é difícil pensar antecipando os eventos por vir.
Notamos que as condições de previsibilidade de uma
obra possam constituir verdadeiros desafios musicais.
É uma estética. É também um meio de
reconhecimento estilístico, portanto social. Mas é
preciso evitar corromper a qualidade da escuta e do
compor convocando velhos protótipos impessoais.
Compor é como insinuar uma quebra no interior de
modelos anteriores, como se tratasse de inocular um
forte dose de infidelidade. Este incessante
deslocamento do pensamento se constrói por
acumulação, recobrimentos, reuniões e desvios
sucessivos, logo desmentidos por uma configuração
inesperada É preciso sempre se perguntar quais as
resoluções este movimento revela. Trata‐se de
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intuições confusas ou de uma aptidão para inventar


sem cessar técnicas de diferença? Compor, não seria
como decompor e recompor sem cessar esta
oscilação, entre o modelo de uma forma preexistente
e a ideia de uma outra?
É preciso verificar que duas ou mais ideias se
mesclem em uma só, visto que seus porvires são
previsivelmente concebidos segundo mecanismos
autônomos. Poderíamos ficar com a hipótese
paradoxal de que esta semelhança é assim produzida
por antagonismos. Muitas vezes uma ideia muda de
ideia e se torna a Idéia. Quero dizer que toda ideia
evolui e cresce ao elaborar um dispositivo animado de
intenções antinômicas ao seu impulso inicial. E que
para além desta contradição perpetuamente
renovada, novos objetos se determinam, implicando
novas estratégias de aquisição de território. Assim
poderemos imaginar compor “pelo” contrario. Pelo
avesso. Em um outro sentido. Claro que é apenas um
exemplo, mas é também uma ideia.
Nós dissemos “ideia”. Quando então se fundem as
“boas ideias”, um dia o pintor Degas fez uma
observação a Mallarmé: “Não consigo escrever
poemas, mas não me faltam ideias”, com o que
Mallarmé lhe respondeu: “Degas, a poesia não faz com
ideias mas com palavras”. É bom lembrar que a
música se faz com os sons e não com as ideias. Ouvir o
menor som pode ter mais conseqüências para um
compositor. O desejo de música se constitui muitas
vezes de modo tão simples que é quase temerário
confessá‐lo. A cada instante o ouvido do compositor
capta sons e as vozes do mundo, por vezes os mais
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incongruentes, vindo de fontes as mais diversas, as


quais se metamorfoseiam em música, sua música.
Desde que não se confunda a ideia de que falamos
com sua definição comum como “objeto de uma
representação ou coisa do espírito”, é preciso no
entanto salientar que em música uma ideia é quase
nada. Em música a ideia é um auxiliar do pensamento,
mas não e o que torna audível (eu ia dizer visível) a
forma. Para mim, o fundamento de uma obra musical
é principalmente dado por uma vontade dinâmica de
fazer (ou agir). É deste “vitalismo” que falo. E pouco
importa a Ideia.
Aprender a música me foi muito difícil. Não apenas a
aquisição das ferramentas fundamentais da técnica.
Isto é muito simples e no fundo não é mais do que
uma estocagem de dados. O que quero dizer é de
“aprender” no sentido de “ter acesso a”. Alguma coisa
resistia ao ponto de constantemente me manter em
um estado de imobilidade total. Nós sabemos, o
aprendizado musical é o triunfo absoluto do
pragmatismo. O ato de aprender música é –como
compreendem os militares – uma instrução. A
aquisição forçada (quase sempre mesmo dada pela
força) de uma técnica prejulgada ideal. O refinamento
está no centro deste processo de aquisição. Aprender
não é apenas adquirir uma habilidade. Aprender é
tornar‐se outro. Um outro, livre e soberano. A
dificuldade estava em metamorfosear meu desejo em
uma experiência. Minhas motivações continuavam
intactas, mas a emerg6encia improvável. Para emergir
era preciso forçar esta conjuntura (que era bem uma
conjuntura) ao revertê‐la. Visto que a música não
podia vir a mim, era preciso encontrar um meio de ir
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

até ela. Então aprender passou a ser compor. E neste


ponto, compor era reconstituir um itinerário cujo
destino eu desconhecia. Minha ignorância estava no
centro deste dispositivo. De fato, eu não sabia mais
nada. Enfim, quase que por “acaso”, me tornei
“autodidata por vontade própria”. Foi difícil acreditar.
Fazer o que? E tudo isto antes mesmo de saber o
suficiente.

COMPOR, SIM, MAS COMO?

Compor é formar. Mas como se forma uma forma?


Como formar uma forma? Formar o que? Criar uma
música, compor, é criar uma forma. Formas é inventar
bordas. Mas não é preciso se enganar sobre o sentido
da palavra “forma”. A forma é antes de mais nada um
conceito. É a estrutura temporal de uma obra. A
história da música está cheia de palavras como
sinfonia, sonata, cantata, oratório, ópera, rondó, fuga,
passacalia, etc. Na verdade, são apenas gêneros mais
sempre supõe‐se que sejam ideia de uma forma
específica. Nunca tive para mim um ponto de vista
muito “histórico” sobre este debate tão importante
para os músicos e muitas vezes me achei mal
preparado quanto tinha de responder sobre este tema
tão delicado. Duramente a questão colocada, uma
litania de definições pré‐pensadas, se impunha diante
da menor tentativa de buscar uma resposta em outro
lugar. Longe de mim querer contestar toda reflexão
que diz respeito a esta questão, mas podemos atribuir
à forma musical um sentido bem mais geral.
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Apaixonado pelo mundo das artes plásticas e pela


arquitetura, para mim a palavra forma quer dizer
“forma”. Deste modo não se trata mais apenas de uma
estrutura temporal mas de uma estrutura espacial.
Vale dizer que, ao imaginar uma música eu vejo
formas. Poderia até detalhar mais, eu “escuto” formas
e este deslocamento entre visão e ouvido interior me
é familiar. Uma parte de meu trabalho se articula em
torno desta representação alegórica. Como se a
invenção musical passasse pelo filtro mental de uma
produção de formas geométricas muito flexíveis,
como a imagem de uma dança de figuras abstratas
entrelaçando linhas, massas, ângulos, turbilhões,
blocos, volumes... Esses movimentos interiores
emanam de uma essência sem dúvida quimérica, mas
tomam realidade nas formas acústicas como o uso dos
instrumentos, sobretudo aqueles da orquestra
sinfônica. Assim, pode acontecer de o primeiro
projeto de uma nova composição nasça de puras
relações de formas desenhadas antes mesmo de
existir como notas. Não esqueçamos jamais que a
música escrita repousa sobre um estranho paradoxo.
Ainda um paradoxo. A coisa não é a coisa. Uma
partitura ao é a música, ela é apenas o meio. A música
não é a partitura, mas a que escrevo não pode
aparecer sem ela. Me é impossível construir uma
música sem escrevê‐la. O “corpo” de meu trabalho
está no papel, e é por esta estranha transferência da
escrita que eu posso transcrever minhas intenções
para o mundo incorporal dos sons. Muitas vezes gosto
de pensar que a música não é uma arte precisa.
Assombrada por uma lógica de possessão, a escrita da
música nos faz adotar técnicas de desvios e
distanciamentos entre diversos gestos antinômicos. O
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

que se escuta não pode ser sempre anotado, o que se


escuta não corresponde sempre ao que está escrito.
Não é sempre que o que escrevemos pode ser ouvido
e o que tocamos não pode ser sempre escrito. Compor
é aceitar ter de deixar com que pequenos equívocos
migrem para zonas e bordas dissimuladas à nossa
capacidade de consciência. Compor é aceitar o fato
que este desejo de equivalência perfeita entre
partitura e música seja perpetuamente inalcançável.

Para melhor dizer, é preciso também observar os


movimentos contínuos da mão que folheia o papel de
música. Cada um desses movimentos é breve mas
determina numerosas dessemelhanças instrumentais.
Ir para o alto da folha, descer, depois ir para a
esquerda, para a direita, voltar ao alto, não, à direita,
etc. Esses movimentos da mão transplantam e
fecundam por estacas os ritmos e os timbre entre eles.
A vitalidade de um engendra a substância de um
outro e reciprocamente. É por este incessante
movimento que nasce a música. Teria mais a dizer
sobre esta pequena dança da mão e o modo como ela
participa da fabricação de uma obra. Me lembro aqui
de Franco Donatoni que se divertia me dizendo que
não escrevemos a mesma música no alto ou no pé da
página. Eu era muito novo e fiquei surpreso com esta
declaração tão pouco ortodoxa, mas ele tinha razão
pois acontece de as dimensões da página travam ou
desorientam o curso de uma composição. Aqui o
ponto decisivo não é o estatuto do tempo nem da
duração nem do espaço, mas os fatores inertes dos
meios empregados: formato da página, qualidade do
papel, lápis, borracha, régua, tinta, etc.

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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

“Mas como você faz?” É como perguntam sempre aos


compositores. É verdade que escutar [entendre] os
sons interiormente é um grande mistério para
aqueles que praticam a escrita musical. Mas nem
todos compositores possuem esta técnica. Muitos são
aqueles que podem se valer de um piano para
compor. Precisam escutar [entendre](no sentido
mesmo da palavra) sua música antes de transcrevê‐la.
Hoje as extraordinárias possibilidades de simulação
sonora que oferecem os computadores tentem a
tomar o lugar desta escuta interior da qual falei
acima. Devemos negá‐lo? Sim, quando o meio
informático impõe suas soluções próprias. Mas já não
é necessário negá‐lo assim quando um pensamento é
anterior à realização. Michel Foucault dizia que “o
pensamento é a liberdade com relação ao que se faz, o
movimento pelo qual nos desligamos, nos o
constituímos como objeto e o refletimos como um
problema”. Se temos necessidade de um piano, de um
computador, nenhum meio de escrever sua música
não deve prejulgar a qualidade da obra. De minha
parte (e mesmo eu não deixando de gostar de
verificar ao piano), considero como um grande
privilégio a aptidão de imaginar a música só com
papel e um lápis. É importante ressaltar esta
particularidade pois é neste espaço que pratico meu
ofício. Sou um “músico de mesa”e é a partir deste
lugar que se desdobra o ouvido­pensamento.

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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

ESCUTA DA PEÇA INTEIRA

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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

“Nossa” pequena peça para piano termina aqui.


Deslocando levemente seus acentos, os acordes são
progressivamente alterados, um pouco por cima , um
pouco por “dentro”. A linha melódica se estendeu

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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

mais amplamente, depois foi docemente quebrada,


então “por baixo”, levemente pulsada por um ritmo
interrogativo, uma outra linha (mas de onde ela
vem?..) obstinou‐se a repetir duas só notas (si/sl#)
enquanto, “por de baixo, a linha que pensávamos
principal volta enfiam a reafirmar a nota ré natural,
sua nota, aquela para a qual ela exigia voltar...
Nas verdade esta peça não passa de um pequeno
capítulo de um grande ciclo ainda inacabado, dividido
e coordenado em numerosas seções. A composição
deste ciclo me acompanha há dois ou três anos pois
sempre gostei, de loin en loin, de escrever peças nas
beiradas de uma outra partitura de maior
envergadura. Para além de sua simplicidade e sua
pouca ambição formal, esta peque música se expões e
se desdobra em muitas partes cada uma sendo o
palimpsesto da seguinte. Mas não é essencial saber
disto, nem saber que cada um dos elementos sonoros
que acabaram de ouvir provêm de fato de uma outra
composição que tem muito pouca relação com este
projeto para piano. É como um enxerto ou, mais
exatamente um “rizoma”, como diria Deleuze.
“Qualquer coisa” escapa de um projeto mais
importante que, “este”, me ocupa a cada dia, e se
dispersa‐se em uma miniatura para piano. É como
que inventar fissuras, os interstícios e as fendas de
onde escaparão outras músicas. Muitas de minhas
peças de música de câmara foram assim compostas
“entre”, ou mais exatamente “por entre”a matéria de
uma outra mais importante. No fundo é como se
compor revelasse uma outra escuta no interior da
“entrecoisa”. Como se certas músicas revelassem um
gesto de escrita cujo movimento deveria encobrir o
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

movimento de um outro. Muitas vezes me dou conta


de que meu trabalho se articula desarticulando as
partituras já concluídas: entro no interior, escavo,
afasto, e descubro conexões que (naturalmente...) eu
sinto como novas. Vou procurar no mais profundo da
matéria, a extirpo, volto à sua superfície e, com
poucos elementos, produzo uma “outra” música. Uma
outra música “entre”... Cada música é assim ligada às
outras de modo implícito ou explícito, e todas
permanecem conjugadas pela rede secreta que
asseguram a coerência estrutural do conjunto e do
fluxo que as anima.
Pois a música, como a compreendemos, é tudo menos
um objeto inerte. No sentido da biologia, ela é vivente.
Uma forma musical é como um organismo animado
pela vida em que cada parte se elabora e se
desenvolve em função de um dinamismo global. As
forças que modelam esta forma agem como
empurrões de energia que emerge do próprio coração
da matéria. Como é como esculpir vindo do interior ao
invés de esboçar do exterior como o faria um escultor.
Assim, o vitalismo de uma obra musical é sustentado
sobretudo por sua capacidade de inventar em
permanência seus próprios critérios de vontade. Uma
forma não é apenas uma configuração dependente de
um contexto, é também um conjunto de energias
dedutivas, formuladas pela imaginação. Compor uma
forma é determinar e afirmar uma proposição por
modalidades de sua construção.

Todavia, a composição musical pode livrar‐se das


induções e este não é o menor de seus privilégios.
Compor não é agenciar em cadeias causais de dados
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

empíricos para oferecer um racionalismo que a


música não solicita. A música não se submete a uma
lógica de auto‐regulação.
Deixemos por um instante o mundo das
determinações puramente musicais e vejamos a
seguinte afirmação: “uma forma é o que se deforma”.
Imagine. Uma linha. Sinuosa e ondulante, muito
docemente ela se inclina um pouco, depois sobressai,
rascunhando curvas irregulares. Isto poderia ser uma
linha musical. Algumas notas que cantam. Guardemos
a imagem da linha. Cada um de vocês pode então
imaginar uma linha que possuiria este simples
aspecto. Ela é como que a metáfora de um impulso.
Ela é algo que – subitamente – inventamos, quase que
fechando os olhos. Se assim quisermos ela pode ser
um espectro visual, o traço fugidio de uma
inspiração”. É como que a aparição de algum
movimento misterioso da vida. Esta linha deve sua
forma apenas ao encadeamento de decisões quase
que arbitrárias. Como um mecanismo cujas
engrenagens são animadas por intuições ocultas em
nossa consciência. Mas é possível “alegrar com”, como
se prolonga uma brincadeira de criança. Vou então
brincar com esta inspiração simples, esta “visão
inicial”, por exemplo brincando de segmentá‐la e
depois reconstruí‐la em algo diferente. Procurar
diferentes harmonias nas proporções. Vou trabalhar
este impulso primeiro, reordená‐lo, como se trabalha
com um quebra‐cabeça. Posso também brincar de
“deixar intacto” meu primeiro impulso, para
reencontrar mais pura ainda, mais intensa, sua
inspiração inicial, intensificá‐la ao comprimi‐la ou
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

dilatá‐la para – subitamente – lhe conferindo um


fulgor vertical, etc. Compor pode ser mais ou menos
isto.
Compor é confundir o fenômeno e o princípio vital
que cria e agencia uma forma. Todavia, criar uma
música não nasce sempre de uma inspiração
exclusivamente musical. A música é evidentemente a
matéria na qual o compositor tem necessidade para
exprimir o universo de seus desejos, para viver e
irradiar, a música tem necessidade de confrontar‐se
com a complexidade dos diferentes modos de
pensamento artístico. Em arte, o solipsismo não é
desejável. Nenhuma expressão pode permanecer
autônoma, e acredito que para alem dos materiais
escolhidos ao criar, existem universais e invariantes
de pensamento que se lhe assemelham. Em meus
cursos insistirei sobre o cruzamento dos saberes
artísticos. Falei antes quanto à arquitetura, mas
muitas vezes, para resolver um problema de
composição busco uma solução no estudo de uma
fotografia, lendo um livro, vendo um filme ou
contemplando uma pintura. Por esta razão (como
anterior a qualquer realização) gosto de pensar de um
modo o mais geral possível. O imaginário, sem
distinguir suas razões profundas na sua menor
presença. Ele é todo bem vindo. O que lhe importa é
construir. Construir uma forma, é inventar as
condições de um desenvolvimento. O desdobramento
deve ser incansavelmente enriquecido por novos
princípios de crescimento.
A escutar tudo isto que expus, vocês devem estar se
perguntando em que consiste um método hoje em dia.
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

A resposta pertence àqueles que enfrentam a


composição musical. Aos compositores. Em todos
épocas eles refletira sobre tal questão. Um método é
um conjunto de relações que mantém e transforma as
coisas que reúne. Nós sabemos disto pois a teoria
esteve no centro da história da música do século XX,
mas é difícil encontrar hoje em dia um compositor
que se interesse por definir uma metodologia
universal da composição musical. Não me cabe – eu
também não sou um musicólogo ou historiador‐
lamentar este fato, mesmo acreditando ter
definitivamente compreendido que é vão tratar
racionalmente uma questão tão irracional como esta
que diz respeito à organização dos sons entre eles.
Além do que o mundo, nosso mundo, se tornou muito
complexo para tentar qualquer totalidade. No entanto
tentei imaginar a música, assombrada por esta
questão quase faustiana. De fato é um pouco
tranqüilizante. Como outras pessoas, eu pensava ser
possível descobrir uma linguagem que nos permitisse
construir um mundo musical insólito e novo.

Por muito tempo acreditei que as ciências proporiam


uma resposta a uma pergunta que repousava no
fundo da filosofia. Mas qual ciência, vocês me diriam?
E para qual música? Desde os anos 50, a história da
música sustenta a dignidade dos paradigmas que
impôs. Um deles foi o desafiar, de afrontar, os velhos
trilhos do pensamento musical. Arriscando‐se cair em
excessos, excessos aos quais não faltava estilo ou
grandeza, numerosos compositores não admitiam
qualquer coisa de novo. A ciência (tomemos o termo
em sua acepção comum e que os cientistas me
perdoem...) oferecia à imaginação destes artistas
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

musical múltiplos campos de interpretação e de


pesquisas formais, muitas vezes tingida, é claro, de
um forte lirismo. Edgard Varèse, Iannis Xenakis foram
alguns deles, e a eles devo o entusiasmo dos meus
anos de aprendizagem. Pertenço assim a uma geração
de compositores que esperou muito da ciência, pois
sua ambição foi a de um mundo voltado para o futuro.
Este mundo era para nós uma promessa. Em porvir a
vir, como um sonho que, no horizonte de nossas
certezas, se apresentava sem dúvidas. Fomos todos
mais ou menos inclinados a acreditar que a ciência
poderia nos ajudar sem dúvida por que a
confundíamos com a tecnologia que é uma coisa bem
diferente. A ci6encia forneceu os códigos, as regras, os
sistemas e mesmo os princípios. Muitos compositores
precisam reunir teorias de origens diversas
(sobretudo matemáticas) afim de estruturas suas
obras, e eu mesmo não o deixei de fazer. É rápida e
tem lá sua elegância conceitual. Cruzar um capítulo da
teoria de grupos sobre um quadro de acordes ou de
escalas de alturas e ritmos é um exercício
extremamente prazeroso, mesmo se se trata de um
uso que para mim está em segundo plano. Se
assegurar de proporções por analogias ou
transferências de um modelo retirado da física ou da
biologia permite um vertigem bem particular: aquela
de acreditar que a estrutura de uma obra pode ser
garantida por princípios de um mundo que nós
concebemos mais ordenado que o nosso.

Mas a música não trata de um sistema ideal de


pensamento. As relações e as interdependências de
seus agenciamentos não são sincronizadas pela razão
(ou mais exatamente por este “racional”do qual
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

estava falando). Assim, me cabe lamentar que a


ciência (ou mais exatamente a ideia que nós fazemos
dela) tenha sido esta “qualquer coisa acima”que
colocávamos antes da música, como uma muralha à
intuição. De certo modo, o empirismo não é a única
saída para compor, mas é necessário constatar que
criar música nunca edificou a menor axiomática
temporal apta a rivalizar‐se com a ciência. Portanto a
música não é “menos importante”que qualquer
ciência. Por conseguinte ela está em outro lugar. As
ci6encias não parecem demorar‐se no estudo da
noção de devir e se lançam a localizar as mudanças no
curso do tempo por procedimentos de exame mais
complexos, mas estes dificilmente podem ajudar um
compositor a antecipar o porvir do qual estivemos
falando antes.
Um devir subjetivamente composto supõe uma tática
de transformação dos contornos. Compor é fazer
derivar tais contornos e distendê‐los por mutações
graduais, segundo agenciamentos turvos e
irreversíveis. Compor é liberar esta distensão dos
contornos. Para compor é preciso a imaginação e o
desejo de agir e pensar o tempo porvir, e fazer não um
prognostico por uma convicção formalista. Compor é,
a todo tempo, inventar e reinventar uma fuga do
presente para o futuro, depois transpor um pouco
deste futuro para o passado, voltar ao presente, e
conjugar sem parar os tempos de um verbo
imaginário. A motivação de uma forma musical é a
confirmação e a sustentação de um desenvolvimento
de sua essência, não o fato de convencer‐se de um
pressuposto doutrinal. Em música não se demonstra
nada e uma música não prova nada.
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

É hora de acabar. Digamos então que criar é


decididamente inventar paradoxos. Por exemplo, não
respeitar seus próprios procedimentos, inventar
outros, depois novamente fazer o contrario, começar
e recomeçar ao contrário, trais as regras, mudar
arbitrariamente suas escolhas subjetivas, atrapalhá‐
las com uma afirmação antagônica, e renunciar
brutalmente ao escolher ainda mais uma vez um
outra, duvidar, recomeçar, etc. Criar é aceitar e se
mesmos e fazer espelho, se assim quiser, dês conflitos
e paradoxos fundamentais do ser vivo, por meio do
desejo que é, ele mesmo, também conflituoso e
paradoxal. Criar é separar e depois reunir, rasgar e
depois reescrever a mesma coisa, muda r de escalar,
reduzir, comprimir depois dilatar, hesitar mais uma
vez, retomar a todo tempo, seguir sempre. O
importante é atravessar, evitar jamais. Enunciar
paradoxos, é como denunciar os conceitos
preestabelecidos sobre a verdade do mundo, pois
nosso olhar sobre o mundo nunca é a verdade do
mundo. Mas os paradoxos não são contradições.
“Quando enuncio uma asserção, dizia Raymond
Queneau, seu estrito contrário é quase sempre
interessante”. Esta frase tão enigmática e no entanto
tão simples de compreender, não visa nada além de
um princípio de equivalências: cada coisa não tem
necessariamente (e se assim podemos dizer) seu
antônimo. Mas as forças as mais vivas de minhas
criações, eu as tenho encontrado muitas vezes na
encontrando um objeto musical através de seu
oposto. Por exemplo (de modo bastante metafórico),
quando penso em um som agudo sempre busco
encontrar seu equivalente grave. Se penso um som em
uma dinâmica muito forte, experimento escrevê‐lo
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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

muito fraco, etc. Portanto um grave não é o contrario


do agudo, nem um fortíssimo o inverso de um
pianíssimo. Mas pouco importa as razões da dialética!
Compor é um ato. Um ato de vida. É também uma
experiência humana. Convidando os músicos para
esta sala ao longo deste curso, terei a oportunidade de
sustentar esta concepção dinâmica da composição de
modo mais concreto. Como um diário pronunciado
em voz alta, terei o prazer de fazê‐los participar das
pesquisas que tenho feito, desdobrando nota a nota
algumas de minhas partituras para música de câmara.
Tentarei desenhar suas cartografias e seus princípios
de transformação, mas não só isso, pois não me guio
pela análise pura. Me interessará mais fazê‐los
compreender (e talvez mesmo ver...) minhas idas e
vindas, as hesitações e imprecisões com as quais
trabalho. Eis porque, desnudar os mecanismos
estilísticos ou gramaticais de minhas partituras só
têm sentido se formularem interrogações, pois não sei
(não mesmo) se é possível encontrar um caminho que
leve à criação musical. De fato, isto não é assim tão
consciente. Mesmo tendo clara que tomar um de
decisão sem perceber nitidamente todas as fases
indutivas já é um ato consciente. Mesmo que isto
pareça revelar uma ignorância das situações e
motivações que a fizeram agir, gosto de falar de “in‐
consciência”. É ainda uma zona sombria... E no tanto,
um artista não precisa saber sempre o que se passe,
mesmo que ele saiba como fazer. Mas “como
fazer”não quer dizer porque ele sabe fazer, nem como
ele vai fazer. Ele faz. E é sempre bem mais tarde que
ele compreender porque ele fez.

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tradução provisória, sem revisão, de silvio ferraz, 2009

Aqui, acolá, neste momento, exatamente neste


momento, precisamente este momento.
É neste sentido que espero me ser possível falar de
uma “criação enquanto se faz”.2

2 O autor agradece calorosamente Jacques Amblard e Pierre

Enrevé por suas atentas revisões.

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