259 831 1 PB

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 19

119

LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL: gêneses,


desenvolvimentos e aplicações no ensino1

Studies on literacy and lettering in Brazil: gêneses, developments and applications in


teaching

Francisco Renato Lima 2

RESUMO: Este estudo traz algumas reflexões acerca dos processos de


alfabetização e letramento no Brasil, destacando aspectos de suas gêneses,
desenvolvimentos e aplicações no ensino, com foco em permanências e mudanças
paradigmáticas em suas práticas, advindas, principalmente, dos estudos da
psicogênese da aquisição da língua escrita – o construtivismo –, tratados por Emília
Ferreiro e Ana Teberosky, baseadas nas teorias de aprendizagem de Piaget; e
também, das pesquisas que tratam de letramento, enquanto prática social de
inserção no mundo por meio da leitura e da escrita, que ampliaram e deram novos
rumos às concepções teórico-práticas sobre o ato de alfabetizar. Trata-se de uma
pesquisa bibliográfica, de caráter qualitativo, no diálogo com autores, como: Barbosa
(2013), Cagliari (1998; 2008), Ferreiro; Teberosky (1996; 1999), Kleiman (1995;
2010), Mortatti (2006), Rojo (1998), Soares (2003a; 2003b; 2010; 2011), Tfouni
(2010), entre outros. Desde os anos 80, quando começou a figurar no cenário
epistemológico das pesquisas científicas de educação e linguagem, o termo
letramento alcunhou novas dimensões e perspectivas aplicadas, de modo que hoje é
utilizado para nomear práticas sociais e culturais, que se relacionam com a leitura e
a escrita, de forma crítica e participativa, dentre elas, a alfabetização, que representa
parte do processo de letramento do sujeito, mediado pela ação da escola.

Palavras-chave: Alfabetização. Teorias da aprendizagem. Mudanças e


permanências. Letramento.

ABSTRACT: This study brings some reflections about the processes of literacy and
literacy in Brazil, highlighting aspects of their genesis, developments and applications
in teaching, focusing on permanences and paradigmatic changes in their practices,
mainly coming from studies of the psychogenesis of language acquisition writing -
constructivism -, treated by Emília Ferreiro and Ana Teberosky, based on Piaget's

1
Este estudo é uma versão atualizada de um texto apresentado na modalidade
comunicação oral no Congresso Internacional Linguagem e Interação 3, que aconteceu de
17 a 19 de junho de 2015, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
2
Mestre em Letras – Estudos da Linguagem (UFPI). Professor Substituto (Auxiliar Nível – I)
da Universidade Federal do Piauí, lotado no Departamento de Métodos e Técnicas de
Ensino (DMTE). Coordenador de disciplinas do Centro de Educação Aberta e a Distância
(CEAD/UFPI). E-mail: [email protected]
Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916
120
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

theories of learning; and also of the researches dealing with literacy, as a social
practice of insertion in the world through reading and writing, which broadened and
gave new directions to theoretical-practical conceptions about the act of literacy. It is
a bibliographical research, of qualitative character, in the dialogue with authors, such
as: Barbosa (2013), Cagliari (1998; 2008), Ferreiro; Teberosky (1996, 1999),
Kleiman (1995, 2010), Mortatti (2006), Rojo (1998), Soares (2003a, 2003b, 2010,
2011), Tfouni (2010), among others. Since the 1980s, when it began to appear in the
epistemological scenario of scientific research on education and language, the term
literacy has new dimensions and applied perspectives, so today it is used to name
social and cultural practices that relate to reading and the writing, in a critical and
participative way, among them, literacy, which represents part of the literacy process
of the subject, mediated by the school action.

Keywords: Literacy. Theories of learning. Changes and permanencies. Literacy.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os processos e regras de alfabetização se entrelaçam ao próprio surgimento


da escrita, como tecnologia de comunicação humana, de modo que alfabetizar está
relacionado a capacidade de codificar e decodificar os signos da língua. Ampliando
essa noção, pesquisas oriundas do final do século XX, começaram a tratar sobre
letramento, enquanto prática social de inserção no mundo por meio da leitura e da
escrita. Com isso, reformulou-se as concepções sobre o ato de alfabetizar.
Alfabetização e letramento são tecnologias que caminham juntas, ou melhor,
se processam juntas, sendo que o letramento antecede a alfabetização, pois desde
que o indivíduo nasce, nas interações sociais que desenvolve com o meio e com
seus semelhantes já se torna letrado, condição que será desenvolvida com a
interferência da escola, principalmente representada pela ação do educador.
Falar de alfabetização, ora atrelada ou desatrelada ao letramento, recai
sobre um discurso corrente nas tendências mais atuais da educação. Muito se trata
da alfabetização e do letramento, como fatores isolados e diferentes, mas a ideia é
que esses processos sejam unificados e que, nem mesmo nas discussões teóricas,
eles ocupem lugares distintos, visto serem processos que se imbricam, se articulam
e se fundem na prática pedagógica e nas práticas socioculturais, ou seja, a
alfabetização faz parte do processo de letramento, em sentido mais amplo.

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


121
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

Soares (2010, p. 72) reconhece a impropriedade de elaborar um conceito


preciso de letramento; a indissociabilidade entre o letramento e a alfabetização e a
indissociabilidade entre as dimensões individual e social do letramento; na medida
em que “letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades
individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os
indivíduos se envolvem em seu contexto social”.
Ler e escrever não são apenas atos mecânicos, mas ações sociais, que se
inscrevem na identidade dos sujeitos que as assumem, de forma crítica e autônoma.
Integram o quadro de práticas sociais, reconhecendo e valorizando o que o sujeito
traz para a escola, aquilo que vivencia em seu cotidiano, e, ao entrar em contato
com o conhecimento formal, amplia suas percepções de mundo e modifica suas
ações, e, por isso, “cabe à escola mais do que alfabetizar e possibilitar a seus
alunos o domínio de um código e, através desse, a convivência com a tradição
literária: dela se espera a formação do leitor” (SARAIVA, 2001, p. 23).
Conforme este entendimento, neste estudo apresenta-se algumas reflexões
acerca do processo de alfabetização no Brasil, por meio das leituras de Barbosa
(2013), Cagliari (1998a; 1998b; 2008), Castanheira (2009), Ferreiro (1996; 2013),
Mortatti (2006), Saraiva (2001), Smolka (2008), destacando algumas permanências
e mudanças paradigmáticas em suas práticas, advindas, principalmente, dos
estudos da psicogênese da aquisição da língua escrita (FERREIRO; TEBEROSKY,
1996; 1999) e dos estudos do letramento (KLEIMAN, 1995; 2010; ROJO, 1998;
SOARES, 2003a; 2003b; 2010; 2011; TFOUNI, 2010).

2. ALFABETIZAÇÃO: REFLETINDO SOBRE ALGUNS CONCEITOS

O percurso histórico da alfabetização a identifica como o aprendizado dos


códigos e ferramentas da escrita, ou seja, o conhecimento do sistema alfabético,
que significava apenas a capacidade de codificar, decodificar os signos linguísticos,
e reconhecê-los através de sons, o que se denomina fonemas; e reproduzi-los na
escrita, o grafema. O educando era considerado alfabetizado, se atendesse a essas
demandas básicas, mas, na maioria das vezes, não tinha embasamentos críticos
suficientes para entender aquilo que estava lendo ou escrevendo.
Um passeio pela história da alfabetização permite identificar que a
manutenção dos métodos de alfabetizar, muitas vezes, tão ultrapassados, opondo-

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


122
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

se entre métodos analíticos e sintéticos (MAGALHÃES, 2005), confunde-se com a


própria história do surgimento dos sistemas de escrita, instituídos pela humanidade.
A invenção da escrita e das regras de alfabetização deram-se juntas, de modo que a
alfabetização “é a atividade escolar mais antiga da humanidade” (CAGLIARI, 1998a,
p. 12). Neste sentido, Mortatti (2006, p. 01) aponta:

Em nosso país, a história da alfabetização tem sua face mais visível


na história dos métodos de alfabetização, em torno dos quais,
especialmente desde o final do século XIX, vêm-se gerando tensas
disputas relacionadas com "antigas" e "novas" explicações para um
mesmo problema: a dificuldade de nossas crianças em aprender a ler
e a escrever, especialmente na escola pública. Visando a enfrentar
esse problema e auxiliar "os novos" a adentrarem no mundo público
da cultura letrada, essas disputas em torno dos métodos de
alfabetização vêm engendrando uma multiplicidade de tematizações,
normatizações e concretizações, caracterizando-se como um
importante aspecto dentre os muitos outros envolvidos no complexo
movimento histórico de constituição da alfabetização como prática
escolar e como objeto de estudo/pesquisa.

Ao longo dessas discussões direcionadas às questões educativas, os


processos de alfabetização sempre ocuparam lugar de destaque, visto a importância
de uma base de aprendizagem sólida, que permita ao indivíduo, o desenvolvimento
com eficiência e qualidade, das habilidades cognitivas de leitura e escrita, de
maneira a superar os lastimáveis déficits, apontados pelos dados estatísticos do
censo escolar que denunciam que o Brasil ainda é um dos países do mundo com
mais altos índices de analfabetismo, o que torna justificável a importância do
investimento em práticas e ações desenvolvidas pelos educadores, proporcionando
aos educandos, as competências leitoras significativas, o letramento.
Identifica-se que o conceito de alfabetização sempre esteve ligado a
processos de ensino e aprendizado do sistema alfabético da leitura, ou seja, era
apenas ler, decodificar os sinais gráficos da língua, ampliando-os para sinais
sonoros; e, na escrita, se refletia na competência de codificar os sons da fala,
traduzindo-os em sinais gráficos.
Quanto às formas, os processos metodológicos, o sistema predominante era
o tradicional, em que o ensino se constituía de maneira que o professor era uma
figura máxima, detentora de um saber pronto, acabado, transmitido para os alunos,
que deveriam recebê-lo e respeitar o formato, apenas assimilando e transcrevendo,
seguindo as orientações de cartilhas, que se configuravam como elemento de

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


123
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

acesso aos códigos de alfabetização. Para Cagliari (1998b, p. 66), “as cartilhas
dirigem demais a vida do aluno na escola, ele tem que seguir apenas um caminho,
por onde todos passam; só pode pensar conforme o método manda e fazer apenas
o que está previsto no programa”. “Alfabetizar pelas cartilhas (isto é, pelo
BaBeBiBoBu) é desastroso” (1998b, p. 67), pois habituam o educando naquele
modelo de aprendizagem, no qual ele encontra sempre um conteúdo pronto para ser
decodificado. Sobre o tratamento dado a leitura, Mortatti (2006, p. 5) destaca que:

Para o ensino da leitura, utilizavam-se, nessa época, métodos de


marcha sintética (da "parte" para o "todo"): da soletração (alfabético),
partindo do nome das letras; fônico (partindo dos sons
correspondentes às letras); e da silabação (emissão de sons),
partindo das sílabas. Dever-se-ia, assim, iniciar o ensino da leitura
com a apresentação das letras e seus nomes (método da
soletração/alfabético), ou de seus sons (método fônico), ou das
famílias silábicas (método da silabação), sempre de acordo com
certa ordem crescente de dificuldade. Posteriormente, reunidas as
letras ou os sons em sílabas, ou conhecidas as famílias silábicas,
ensinava-se a ler palavras formadas com essas letras e/ou sons e/ou
sílabas e, por fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas.
Quanto à escrita, esta se restringia à caligrafia e ortografia, e seu
ensino, à cópia, ditados e formação de frases, enfatizando-se o
desenho correto das letras.

Nessa análise, percebe-se que as cartilhas de alfabetização eram os


instrumentos didáticos utilizados pelas escolas de modelo tradicional, para ensinar
as crianças aprenderem a ler e escrever. Eram livros esquematizados, que traziam o
alfabeto com palavras e ilustrações correspondentes, que o educando decorava as
letras e as chamadas “famílias silábicas”, e durante o curso das aulas eram
chamados a dar conta da leitura, sob forma de sabatina, em cumprimento às tarefas
escolares. Sobre isto, Castanheira (2009, p. 24) reflete:

A simples memorização das famílias silábicas não é suficiente para


levar o aluno a conhecer diferentes valores sonoros representados
pelos grafemas, bem como estruturas silábicas variadas. [...] esse
conhecimento/habilidade de reconhecer as diferentes famílias
silábicas é parte integrante do processo inicial da aprendizagem da
leitura e da escrita, ou seja, a memorização dessas famílias é um dos
componentes do processo de alfabetização, mas não é e nem pode
ser o único.

Esses métodos de ensino baseavam-se na rigidez do cumprimento de


normas, regulados por um sistema de autoritarismo predominante nas relações
Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916
124
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

professor x aluno. Os conteúdos apresentavam-se prontos, concebendo o educando


como um ser vazio, sem conhecimentos, que necessitava da interferência do
educador para desenvolver-se nos estudos. As atividades utilizadas eram baseadas
em práticas superficiais, que não garantiam uma aprendizagem eficaz. Eram
pautadas na junção de sílabas simples, memorização de sons, decifração e cópia.
Tais métodos e maneiras de conduzir o ensino só permitiam à criança se tornar um
espectador passivo ou receptor mecânico do conhecimento, sem uma participação
no próprio processo de construção da aprendizagem.
Assim, desconsideravam-se muitas possibilidades, caminhos e vias de
acesso ao saber, muitos dos educadores por falta de uma formação e capacitação
eficiente, não compreendiam algumas das dificuldades que a criança enfrentavam,
antes de entender o verdadeiro sentido da leitura e escrita. Sobre isso, Cagliari
(2008, p. 96) observa: “um dos objetivos mais importantes da alfabetização é ensinar
a escrever [...], e por isso mesmo requer um tratamento especial”.
Atualmente, há um entendimento de que a alfabetização deixou de ser
apenas uma absorção do código escrito e passou a ser uma atitude processual, que
possibilita a criança o contato com a representação da língua, agregar seus valores
históricos e culturais trazidos de suas experiências de mundo e a incorporar no seu
dia a dia, como importante instrumento nas relações sociais. É a etapa inicial do
processo de escolarização formal do indivíduo. Segundo Ferreiro (1996, p. 24), “o
desenvolvimento da alfabetização ocorre, sem dúvida, em um ambiente social. Mas
as práticas sociais assim como as informações sociais, não são recebidas
passivamente pelas crianças”.
De tal modo, não se pode mais entender a alfabetização apenas como a
aquisição prática do código da leitura e da escrita, manifestadas pela codificação,
que resulta da escrita; e a decodificação, resultante do ato de ler, de forma mecânica
e isolada. É preciso rever esse paradigma, “analisar o contexto, de pensar a
alfabetização” (SMOLKA, 2008, p. 29), e considerá-la como parte de um processo
social sistêmico mais amplo, no qual o sujeito se situa, uma vez que alfabetizar-se
consiste em reinventar a linguagem, a experiência, o vivido, e, através da
subjetividade, ir além das evidências, contextualizando e refletindo sobre o objeto
cognoscível, por meio de três aspectos da linguagem: a fala, a escrita e a leitura.
Esses três elementos funcionam de forma interdependente, necessitam
estar em perfeita harmonia para que não haja falha no sistema organizacional da

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


125
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

linguagem e na comunicação. A fala é a primeira das etapas e se manifesta nas


situações do dia a dia, fora da escola. É exatamente quando a criança adquire o
significado da palavra, entendendo que esta se relaciona com algo concreto que ela
observa ou experimenta, ou seja, a criança compreende a relação entre palavra e
objeto e os identifica separadamente.
Subjacente a essa etapa, ao entrar na escola, espera-se que a criança já
tenha entendimento sobre a compreensão e expressão da palavra falada, e durante
a sua fase de alfabetização, esteja apta a alcançar as etapas superiores da
linguagem: a leitura e a escrita. Estas atendem a um desenvolvimento diferenciado
do ocorrido na fala, pois, apesar de estarem ligados ao anterior, têm suas
especificidades e exigem uma proposta diferenciada para a sua apropriação e
desenvolvimento com eficiência.
O acesso à leitura e escrita nos anos iniciais escolares deve basear-se numa
perspectiva de alfabetizar e letrar, simultaneamente, através de ferramentas
pedagógicas envolventes e enriquecedoras que levem o educando a compreender
suas relações com o mundo da linguagem, seja oral ou escrita, ou seja, integrando o
processo de construção do saber, sentindo-se protagonista deste, através do
contato com a leitura e a escrita. Estas possuem papel fundamental no processo de
alfabetização, pois se constituem em fonte de descoberta e prazer, levando o
educando ao mundo da informação e da cultura erudita, satisfazendo as suas
necessidades de sujeito aprendente e tornando-o crítico em relação às experiências
que estabelece com o mundo. Para Saraiva (2001, p. 31), “a alfabetização constrói-
se, assim, através de atividades de uso, contextualizadas e significativas da
linguagem oral e escrita, bem como de atividades e análise e reflexão em condição
de interlocução, sem a evidência de preconceitos linguísticos”.

3. AS CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DA PSICOGÊNESE DA AQUISIÇÃO DA


LÍNGUA ESCRITA: ALGUMAS PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS
PARADIGMÁTICAS

No Brasil, a mudança paradigmática que trouxe contribuições significativas


no processo de alfabetização, surge nas décadas de 70 e 80 do século XX, que
configuram-se como momentos de grande importância para a melhoria e ampliação
da qualidade das propostas educacionais de alfabetização, que ganha um novo

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


126
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

conceito a partir das contribuições dos estudos da psicogênese da aquisição da


língua escrita, tratados por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, que, baseadas nas
teorias de aprendizagem, desenvolvidas por Piaget (1896-1980), trazem questões
de relevantes para o trabalho docente, no que se refere à tarefa de ensinar a ler e
escrever, levando em consideração que um significativo número de crianças
fracassa nessas tarefas: os primeiros passos no caminho da alfabetização.
Essa concepção trouxe novos conceitos e referenciais sobre os métodos e
formas de alfabetizar, principalmente, sobre as funções sociais do ato de ler. Suas
teorias enfatizam que é preciso considerar as diferentes possibilidades que
circundam o sujeito que aprende. A ação do educador deve voltar-se para “como se
aprende a ler e escrever”, e não apenas modos de “como se ensina”. Essa
concepção ficou conhecida no meio educativo como Construtivismo3.
Ferreiro; Teberosky (1999) apontam que as crianças passam por diferentes
hipóteses – espontâneas e provisórias -, até elaborar conhecimentos sobre a leitura
e escrita e se apropriar de toda a complexidade da língua. Tais hipóteses são
baseadas em conhecimentos prévios, assimilações e generalizações e dependem
das interações com os pares e com os materiais escritos que circulam socialmente.
Os anos 80, ainda significaram um marco na ampliação dos conceitos, que
posteriormente mudaram os rumos da alfabetização. Os estudos das autoras,
contribuíram na medida em que, a proposta aponta que o aprendizado do sistema
escrito não se reduz apenas ao domínio da leitura e escrita, representados pela
correspondência entre grafemas e fonemas. Isso limita apenas a decodificação e
codificação dos signos linguísticos. Em contrapartida, deve-se considerar a dinâmica
social do processo, por meio do qual, a criança, a partir dos primeiros contatos com
a escrita, constrói e reconstrói hipóteses sobre a natureza e funcionamento da
língua. Esta, por sua vez, entendida como um sistema de representação organizado
e que, portanto, necessita de um olhar cuidadoso e particular, estabelecendo uma
relação direta com o objeto conhecível.
Em análise sobre a importância das teorias e métodos decorrentes desse
modo de organização teórico-conceitual do processo de alfabetização, Soares
(2011, p. 89) reflete:
3
Concepção Piagetiana, que considera que o sujeito é o protagonista na aquisição do
conhecimento. A intervenção do indivíduo na realidade que o envolve constitui o fator
preponderante da acepção do autor sobre o “ato de conhecer”, explicitado reiteradamente
em suas obras (COLL, 2000).
Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916
127
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

A concepção psicogenética, deslocando o eixo de compreensão e


interpretação do processo pelo qual a criança aprende a ler e a
escrever, trouxe uma severa crítica à importância que vinha sendo
atribuída ao método de alfabetização. [...] [Ela] alterou
profundamente a concepção do processo de aquisição da língua
escrita, em aspectos fundamentais: a criança, de aprendiz
dependente de estímulos externos para produzir respostas que,
reforçadas, conduziriam à aquisição da língua escrita – concepção
básica dos métodos tradicionais de alfabetização – passa a sujeito
ativo capaz de construir o conhecimento da língua escrita,
interagindo com esse objeto do conhecimento [...]. (Grifos no
Original)

Em 1990, ocorreu na Tailândia, a Conferência Mundial sobre Educação para


Todos, a qual, trouxe uma compreensão sobre alfabetização, que passa a ser
“entendida como instrumento eficaz para a aprendizagem, para o acesso e para a
elaboração da informação, para criação de novos conhecimentos e para a
participação na própria cultura e na cultura mundial nascente” (CASTANHEIRA,
2009, p. 14).
A partir dessa definição, passou-se a entender que a aquisição dos
processos cognitivos de leitura e escrita devem acontecer com sentido e eficácia,
tornando o indivíduo alfabetizado, dentro de uma perspectiva de letramento. Isso
resulta de uma correlação de habilidades e comportamentos, que se saem do
simples ato de decodificar sílabas ou palavras e alcança a leitura destas, com
significado e significância social.
A alfabetização constitui-se, portanto, como fase de grande relevância no
processo de formação do indivíduo, é onde a criança assimila formalmente os
conhecimentos sobre o sistema alfabético da escrita, com domínio do código
linguístico e das habilidades necessárias para desempenhar uma importante função
social: ler e escrever. Para que essa etapa seja alcançada com êxito é necessário o
desenvolvimento de competências (atitudes, habilidades, conhecimentos) de uso
efetivo e significativo da língua em práticas sociais que envolvam a escrita, como
interpretar e produzir textos de diferentes tipos e gêneros, o que se chama de
letramento, conceito fundamental neste estudo, e sobre o qual trata-se a seguir.

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


128
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

4. PERSPECTIVAS DE LETRAMENTO: AMPLIANDO OS SENTIDOS DA


ALFABETIZAÇÃO E REPENSANDO O PAPEL DO PROFESSOR NO
DESENVOLVIMENTO DA LEITURA E DA ESCRITA

O surgimento do termo letramento está diretamente relacionado à


alfabetização, por isso, foi necessária a ampliação dos estudos sobre as relações de
semelhança e distinção entre esses processos, muitas vezes, conflituosos de
compreensão. O termo é corrente nos ambientes escolares, porém, a questão
semântica ainda gera dúvidas, o que resulta numa dicotomia entre teoria e prática,
conforme evidenciam as experiências advindas dos cursos de formação docente, e
da prática docente, em que os educadores apresentam constantes dúvidas sobre
alfabetizar e letrar (CASTANHEIRA, 2009).
O entendimento de que a alfabetização deixou de ser apenas uma absorção
do código escrito e passou a ser uma atitude processual, que possibilita ao
educando, ter contato com a representação da língua, agregar seus valores
históricos e culturais (TFOUNI, 2010) trazidos de suas experiências de mundo e
incorporar as relações sociais cotidianas, tem sido uma das principais questões que
permeia o discurso de estudiosos da educação e da linguagem.
Razões como essa, fazem com que até mesmo, trazer conceitos e
definições do que seja letramento apresente-se como uma tarefa muito complexa,
visto que é difícil estabelecer uma formulação sem correr o risco de deixar alguma
lacuna ou restrição quanto ao entendimento. Para defini-lo é recomendável que
comece por colocá-lo por níveis e, assim, estabelecer critérios de condição de
letrado. Não se pode falar em um conceito único, pois seu sentido não é unânime,
mesmo entre os principais estudiosos do assunto.

[...] alfabetização e letramento são conceitos frequentemente


confundidos ou sobrepostos, é importante distingui-los, ao mesmo
tempo que é importante também aproximá-los: a distinção se faz
necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito
de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do
processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é
necessária porque não só o processo de alfabetização, embora
distinto e específico, altera-se e reconfigura-se no quadro do conceito
de letramento, como também este é dependente daquele. (SOARES,
2003a, p. 90)

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


129
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

Letramento e alfabetização são, portanto, processos que devem ser


indissociáveis na aprendizagem do educando. O primeiro inicia-se logo que o
indivíduo nasce, nas primeiras relações que estabelece socialmente, nas relações
interpessoais e com os objetos informativos e da escrita e que o rodeia; e o segundo
é introduzido no repertório cultural da criança, por meio da entrada na escola.
O letramento constitui-se da construção social da língua falada e escrita,
através da elaboração de formas e contextos diferenciados. “Enquanto a
alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de
indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um
sistema escrito por uma sociedade” (TFOUNI, 2010, p. 22). A condição de letrado
pressupõe o entendimento mais amplo que o processo da alfabetização, tomando-a
como fenômeno isolado. Soares (2003b, p. 92) define:

Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-


se letramento que implica habilidades várias, tais como: capacidade
de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos – para informar-se,
para interagir com outros, para imergir no imaginário, no estético,
para ampliar conhecimentos, para seduzir ou induzir, para divertir-se,
para orientar-se, para apoio à memória, para catarse...; habilidades
de interpretar e produzir diferentes tipos e gêneros de textos,
habilidades de orientar-se pelos protocolos de leitura que marcam o
texto ou de lançar mão desses protocolos, ao escrever, atitudes de
inserção efetiva no mundo da escrita, tendo interesse e prazer em ler
e escrever, sabendo utilizar a escrita para encontrar para ou fornecer
informações e conhecimentos, escrevendo ou lendo de forma
diferenciada, segundo as circunstâncias, os objetivos, o interlocutor.

Esse entendimento traz a dimensão da importância do letramento nos


modelos educativos da atualidade, para que o ensino se firme como elemento
essencial à formação humana e “[...] para que as pessoas que vivem numa cultura
que conhece as letras não continuem roubadas de um direito - o de somar à „leitura‟
que já fazem do mundo a leitura da palavra, que ainda não fazem” (FREIRE apud
BARRETO, 1998, p. 77).
Nesse sentido, letramento é um estado ou condição humana adquirida pelas
relações sociais formais ou informais do meio em que o indivíduo vive, e através da
leitura, passa a interpretar e transformar o mundo, de maneira a inserir-se como
sujeito autêntico de sua história e da sua sociedade. A pessoa letrada é um ser
pensante sobre o mundo, que organiza seus espaços de convivência social e

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


130
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

política, por meio da interlocução com a palavra 4 e com os sentidos e significados


que ela transmite.
Promover uma alfabetização que leve ao letramento é criar dentro da
relação de ensino e aprendizagem, na sala de aula, propostas de ensino dinâmicas,
inovadoras, que levem a situações de interpretação e interação com a língua
materna. Sobre isso, Kleiman (1995, p. 19; 2010, p. 379), traz algumas
considerações acerca das relações entre escolarização, alfabetização e letramento:

As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de


prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a
qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia
alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa
definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que
desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que
determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita.

A alfabetização é uma prática de letramento que pode envolver


diferentes estratégias (reconhecimento global da palavra,
reconhecimento de sílabas, leitura em voz alta, leitura silenciosa),
diversos gêneros (cartilhas, exercícios, imagens, notícias, relatos,
contos, verbetes, famílias de palavras), diferentes tecnologias (lápis,
caneta, papel, quadro negro, giz, lousa branca, pincel atômico, livro,
tela e teclado).

Frente às tantas exigências do meio social, com significativas implicações no


contexto educacional, é necessário que os sujeitos da aprendizagem adquiram um
conjunto de habilidades diversas, para que possam ter uma atuação coerente e
participativa nas questões de ordem sociais e políticas, de maneira a construir uma
sociedade mais democrática e justa, na qual possam exercer seus direitos e deveres
e sejam vias de comunicação humana, elevando assim, as condições de
desenvolvimento social e diminuição dos alarmantes casos de analfabetismo.
Rojo (1998) compreende o letramento como prática social, explicitando as
funções e impactos sociais da escrita na vida do sujeito, desde as relações
familiares de ordem primária às relações secundárias estabelecidas na escola:

4
Do zelo com os significados e significação da palavra, enquanto instrumento crítico de
participação no mundo, como se propõe neste texto, Bakhtin; Volochinov (2004, p. 41),
apontam que: “[...] tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a
todas as relações sociais, em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será
sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que
apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para
sistemas ideológicos estruturados e bem formados”.
Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916
131
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

[...] o desenvolvimento da linguagem escrita ou do processo de


letramento da criança é dependente, por um lado, do grau de
letramento da instituição familiar a que pertence – isto é, da maior ou
menor presença, em seu cotidiano, de práticas de leitura e de escrita
– e, por outro, como ressalta Lemos (1988:11), dos ... diferentes
modos de participação da criança nas práticas discursivas orais em
que estas atividades ganham sentido. [...] é o modo de participação
da criança, ainda na oralidade, nestas práticas de leitura/escritura,
dependentes do grau de letramento familiar (e, acrescentaríamos, da
instituição escolar e/ou pré-escolar em que a criança está inserida),
que lhe permite construir uma relação com a escrita enquanto prática
discursiva e enquanto objeto. (ROJO, 1998, p. 123) (Grifos do autor)

Desse modo, realça-se a relevância dos processos de leitura mediatizados


pela escola, como via de acesso ao letramento, de modo que “as pessoas procuram
descobrir, cultivar e empregar seus supostos recursos interiores e transformar sua
subjetividade” (RUDIGER, 1996, p. 11). Ler não é apenas uma decodificação dos
signos linguísticos, mas o estabelecimento de uma ponte de sentidos e significados
entre o simbólico e os fatos reais. A compreensão do objeto lido é alcançada pelo
desejo de decifrar e interpretar o sentido das coisas e dos fenômenos sociais e de
ampliar as percepções de mundo, de forma heterogênea, por isso, a leitura deve ser
a etapa inicial para o desenvolvimento da escrita e para a construção de sentidos.
Soares (2010, p. 18) aponta que “o letramento é o resultado da ação de ensinar ou
de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou
um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita”.
Os conceitos postulados sobre letramento, sempre o associam ao domínio
das competências de ler e escrever transmitidas pela escola, mas é urgente o
pensar em uma definição mais ampla, que respeite a diversidade cultural de cada
indivíduo, considerando que o sujeito nasce e cresce interagindo com veículos de
informação e comunicação (placas, jornais, rádios, televisão, entre outros) presentes
no meio em que vive e que já o tornam, de certa forma, letrados. Desse modo,
compreende-se o letramento como um percurso de inserção e participação do
indivíduo no mundo da escrita, que acontece em diferentes instâncias sociais em
que o sujeito vive, desde o seu nascimento e se estende durante toda a vida,
envolvendo-se com as práticas de leitura e escrita formais ou não formais.
Quanto à leitura, esta é um processo pelo qual se compreende a linguagem
escrita; e a partir disso, intervém, tanto o texto (sua forma e conteúdo) quanto o leitor
(suas expectativas e conhecimentos prévios) e, portanto, para ler, é necessário, ao

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


132
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

mesmo tempo, manejar com destreza as habilidades de decodificação e distinguir,


no texto, os objetivos, as ideias, as experiências prévias e mesmo a motivação 5; ler
é um processo de (re) construção dos próprios sentidos do texto (SOLÉ, 1998).
É fundamental o investimento em práticas significativas de leitura, que levem
o educando a interagir com diversos gêneros textuais, pois a leitura apresenta-se
como uma ferramenta facilitadora do processo de formação do sujeito, nos aspectos
sociais, cognitivo e culturais, visto que é através dela que se chega a uma situação
concreta de aprendizagem. Para Hoffmann (2009, p. 02), “através da leitura todos se
tornam iguais, com as mesmas oportunidades. A leitura, além de tornar o homem
mais livre, possibilita que ele vá a muitos lugares que sem a leitura jamais iria”.

Por isso, é de fundamental importância que, desde o início, a


alfabetização se dê num contexto de interação pela [leitura e] escrita.
Por razões idênticas, deveria ser banido da prática alfabetizadora
todo e qualquer discurso (texto, frase, palavra, “exercício”) que não
esteja relacionado com a vida real ou o imaginário das crianças, ou
em outras palavras, que não esteja por elas carregado de sentido
(OLIVEIRA, 1998, p. 70-71).

A leitura é de fundamental importância no processo de ensino e


aprendizagem da criança. Tanto aquela apresentada pela família, quanto pela
escola, têm um caráter formativo e dialógico. Nesse entremeio, tanto as obras de
ficção (da literatura), como os estudos científicos, culturais e históricos transmitidos
pelas disciplinas que compõem o currículo das escolas, devem estar vinculados às
práticas intencionais de leitura.
Um processo eficiente de alfabetização deve propiciar ao educando o
entendimento de que aprender a ler e escrever requer não apenas o conhecimento
de uma variedade de conteúdos, mas o domínio e interação com estes, de maneira
ampla e intencional, transformando as informações abstratas, encontradas em
diferentes veículos informativos, em conhecimentos próprios, construídos pela
análise, síntese e reflexão de ideias. Para Cagliari (1998b, p. 66), “um método de
alfabetização que leve em conta o processo de aprendizagem deve deixar um
espaço para que o aluno exponha suas ideias a respeito do que aprende”.

5
Acerca de leitura e motivação, Yunes (1984, p. 53) aponta que “o estímulo sistemático à
leitura deveria ser meta prioritária em países em via de desenvolvimento. Constata-se no
Brasil que o hábito de ler não representa uma tradição e, por isso, a motivação através de
técnicas específicas deve ser encarada como um campo de estudo e pesquisa de novas
modalidades que visem à aproximação do livro com o leitor”.
Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916
133
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

É urgente o investimento em atividades de leitura e escrita sob diversos


gêneros e situações no contexto escolar, levando os educandos a refletir sobre as
possibilidades do mundo da fantasia, do imaginário e do real. A escola deve
promover encontros e relações diversas entre o educando e a leitura, através de
desenvolvimento de projetos pedagógicos, rodas e oficinas de leitura, trazendo uma
nova concepção de ensino e aprendizagem, refletida na formação de jovens leitores.
Os educandos precisam ser levados a desenvolverem estratégias de leitura, como
antecipação, checagem de hipóteses, seleção, inferência, comparação e verificação
(SOLÉ, 1998), entre outros modos de como se apropriar da mensagem do texto,
adotando um posicionamento crítico e ampliando o vocabulário e o raciocínio lógico.
É importante um repensar sobre essa situação, pois o que se percebe na
prática escolar é que, muitas vezes, o insucesso na fase de alfabetização se deve à
falta de investimento em práticas efetivas de leitura, o que traz a urgência em refletir
sobre as práticas docentes, com vistas à mudanças que possam conferir um novo
sentido aos modelos de ensino, uma vez que, “o que chamamos hoje de processo
de alfabetização comporta, então, a aprendizagem coletiva e simultânea dos
rudimentos da leitura e da escrita” (BARBOSA, 2013, p. 16).
Assim, cabe à escola, como instituição por excelência em sistematização e
organização do saber, oportunizar ao educando situações de acesso à leitura e
escrita de maneira formal e crítica, ampliando seus referenciais de cidadania,
dignidade e criticidade em leitura de mundo.
Na heterogeneidade de situações de aprendizagem e ensino da língua, o
profissional educador deve procurar estratégias que envolvam as possibilidades de
aprendizagem de cada indivíduo, intervindo não apenas com métodos prontos, mas
proporcionando situações que atendam todas as crianças, e, nesse percurso, deve
buscar conhecer seu aluno para que saiba como cada um aprende e compreende a
leitura e a escrita. Sobre isso, Saraiva (2001, p. 33), complementa:

O grande desafio proposto ao professor é alfabetizar crianças tendo


o texto como unidade básica e ensinar a ler e escrever a partir da
reflexão sobre o processo envolvido na alfabetização. A autonomia
na leitura desenvolve-se com o aumento da experiência, na medida
em que ocorre a ampliação de conhecimentos que servem de apoio
à identificação das palavras, de frases e de modalidades de texto.

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


134
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

O papel do educador é de mediador e estimulador de condições que levem a


aprendizagem, direcionando o educando ao senso crítico, tornando-o um ser
investigativo e questionador, frente à realidade que se insere. Ele é o responsável
por orientá-lo às funções sociais da leitura e da escrita, e, para isso, deve lançar
mão de recursos variados, como diferentes gêneros textuais, vídeos, revistas, livros
infantis, entre outros recursos que aproximem educando e conhecimento.
“Encarando o processo de aprendizagem como fruto de sua interação com os
alunos, tendo cada parte um papel, age naturalmente, sem usar chavões, como se
essa atitude fluísse de seu papel profissional”, declara Kramer (2010, p. 54), a
respeito do compromisso que o professor deve assumir com a aprendizagem.
Cabe, portanto, levar a maior variedade e diversidade textual possível para o
espaço da sala de aula, permitindo assim, que o educando interaja com diferentes
mídias de leitura e formação letrada e educativa, promovendo, ao mesmo tempo, a
alfabetização e o letramento, através de situações articuladas com a realidade,
permitindo o desenvolvimento da aprendizagem, de forma criativa e reflexiva sobre a
língua como prática social, na qual os sujeitos se constroem na e sobre ela.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos aspectos teóricos da alfabetização, com proposta de


letramento, baseadas nos fundamentos da pedagogia crítica e nas concepções
contemporâneas dos processos de ensino e aprendizagem, destacam a importância
do investimento em ações, reflexões, discussões e, principalmente, revisão e
reformulação de práticas tradicionais de alfabetização. Esta refere-se às condições
de ler e escrever, através do uso dos recursos da língua escrita; enquanto o
letramento amplia esse processo, ao exigir do indivíduo a capacidade de ler e
escrever, inferindo sentido e reformulando o objeto da leitura e da escrita.
A parceria alfabetizar letrando precisa ser estreitada e construída
diariamente nas práticas pedagógicas, com o objetivo de promover um diálogo entre
o mundo abstrato da leitura e o mundo real do indivíduo em processo de
aprendizagem. Letrar vai além do alfabetizar e exige do educando a capacidade de
encontrar sentido naquilo que lê e escreve.
As reflexões apresentadas neste estudo ressaltam alguns aspectos
relacionados à questão da alfabetização no Brasil, destacando algumas

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


135
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

permanências e mudanças paradigmáticas em suas práticas, advindas


principalmente, dos estudos da psicogênese da aquisição da língua escrita, de
Emília Ferreiro e Ana Teberosky; acrescidos dos estudos do letramento, enquanto
prática social de inserção no mundo por meio da leitura e da escrita, que ampliaram
e deram novos rumos às concepções teóricas-práticas sobre o ato de alfabetizar.
O processo de alfabetização deve estar integrado ao letramento, como ação
social que extrapola os limites da escola, sendo apenas reforçado por ela, uma vez
que ele se inicia nas atividades de convívio familiar, desde que o indivíduo nasce. Ao
entrar na escola, ele ampliará seu nível de letramento, na medida em que se
apropriará dos mecanismos da língua materna, sendo capaz de exprimir-se com
mais fluência e capacidade de articulação linguística, pelo domínio da fala e escrita e
agindo com senso crítico, nas diversas situações a que for submetido socialmente.
Esses apontamentos teóricos apontam enfim, que o aprendizado do sistema
escrito não se reduz apenas ao domínio da leitura e escrita, representado pela
correspondência entre grafemas e fonemas, mas é preciso considerar as diferentes
possibilidades que circundam o sujeito que aprende e preocupar-se em “como se
aprende a ler e escrever”, e não apenas modos de “como se ensina”. Daí, o
investimento em práticas pedagógicas voltadas para o desenvolvimento dessas
habilidades, por meio de diferentes agências e mídias de acesso à leitura, de forma
que promova o educando nas habilidades de alfabetizado em uma perspectiva de
letramento, respondendo a contento as demandas sociais da contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV, Valentin Nikolaevich). Marxismo e filosofia da


linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

BARBOSA, José Juvêncio. Alfabetização e leitura. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2013.

BARRETO, Vera. Paulo Freire para educadores. São Paulo: Arte & Ciência, 1998.

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu. São Paulo: Scipione,


1998a.

______. A respeito de alguns fatos do ensino e da aprendizagem da leitura e da


escrita pelas crianças na alfabetização. In: ROJO, Roxane (Org.). Alfabetização e

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


136
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

letramento: perspectivas linguísticas. Campinas: Mercado das Letras, 1998b. p. 61-


86.

______. Alfabetização & linguística. 10. ed. São Paulo: Scipione, 2008.

CASTANHEIRA, Maria Lúcia; MACIEL; Francisca Izabel Pereira; MARTINS; Raquel


Márcia Fontes. Alfabetização e letramento na sala de aula. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2009.

COLL, C. A teoria genética da educação. In: ______. Psicologia do ensino. Porto


Alegre: Artmed, 2000.

FERREIRO, Emília. Alfabetização em processo. São Paulo: Cortez, 1996.

______. O ingresso na escrita e nas culturas do escrito: seleção de textos de


pesquisa. Tradução Rosana Malerba. São Paulo: Cortez, 2013.

______; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed,


1999.

KLEIMAN, Ângela B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na


escola. In: KLEIMAN, Ângela B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova
perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.
p. 15-61.

______. Trajetórias de acesso ao mundo da escrita: relevância das práticas não


escolares de letramento para o letramento escolar. Perspectiva, Florianópolis, v. 28,
n. 2, 375-400, jul./dez. 2010. Disponível em: < http://www.perspectiva.ufsc.br >.
Acesso em: 12 mar. 2017.

KRAMER, Sonia. Alfabetização, leitura e escrita: formação de professores em


foco. São Paulo: Ática, 2010.

HOFFMANN, Jussara. Texto de Hoffmann relacionado à Leitura. 2009. Disponível


em: < http://doidoeusodeperto.blogspot.com/2009/05/texto-de-hoffmann-relacionado-
leitura.html >. Acesso em: 04 nov. 2017.

MAGALHÃES, N. Conhecer a história dos métodos de ensino para alfabetizar no


presente. Letra A – O jornal do Alfabetizador. Centro de Alfabetização, Leitura e
Escrita. Faculdade de Educação/UFMG, Belo Horizonte, ago/set., 2005, p. 6-9.

MORTATTI, Maria Rosário Longo. História dos métodos de alfabetização no


Brasil. Conferência proferida durante o Seminário “Alfabetização e letramento em
debate”, promovido pelo Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino
Fundamental da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação,
realizado em Brasília, em 27/04/2006. Disponível em: <
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/alf_mortattihisttextalfbbr.pdf >.
Acesso em: 12 mai. 2017.

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916


137
LIMA. ESTUDOS SOBRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO BRASIL

OLIVEIRA, Anne Marie M. A formação de professores alfabetizadores: lições da


prática. In: GARCIA, Regina L. Alfabetização dos alunos das classes populares.
São Paulo: Cortez, 1998.

ROJO, Roxane (Org.). Alfabetização e letramento: perspectivas linguísticas.


Campinas: Mercado das Letras, 1998.

RUDIGER, F. R. Literatura de autoajuda e individualismo: contribuições ao


estudo da subjetividade na cultura de massa contemporânea. Porto Alegre: Ed.
UFRGS, 1996.

SARAIVA, Juracy Assmann (Org.). Literatura e alfabetização: do plano do choro ao


plano da ação. Porto Alegre: Artmed, 2001.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 4. ed. Belo Horizonte:


Autentica, 2010.

SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2003a.

______. Alfabetização e letramento. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

______. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, Vera Masagão (Org.).


Letramento no Brasil: reflexões a partir do INAF 2001. São Paulo: Global, 2003b.
p.89-115.

SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita: a


alfabetização como processo discursivo. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 2010.

YUNES, E. A leitura e a formação do leitor: questões culturais e pedagógicas. Rio


de Janeiro: Antares, 1984.

Cadernos Cajuína, V. 4, N. 1, 2019, p.119 – 137. ISSN: 2448-0916

Você também pode gostar