Fernando Carneiro - Dissertação
Fernando Carneiro - Dissertação
Fernando Carneiro - Dissertação
FACULDADE DE TEOLOGIA
O celibato sacerdotal
Uma reflexão em torno da encíclica Sacerdotalis
Caelibatus
Dissertação Final
sob orientação de:
Prof. Doutor Luís Miguel Figueiredo Rodrigues
Co-orientação:
Prof. Doutor José da Silva Lima
Braga
2017
SIGLAS
LG Conc. Ecum. Vaticano II. Constituição dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium (1964).
OT Conc. Ecum. Vaticano II. Decreto sobre A Formação Sacerdotal Optatam Totius (1965).
PO Conc. Ecum. Vaticano II. Decreto sobre o Ministério e vida dos Presbíteros Presbyterorum
Ordinis (1965).
2
RESUMO
Ao celebrar o seu cinquentenário, a carta encíclica Sacerdotalis Caelibatus,
promulgada pelo papa Paulo VI, continua a apresentar-se como o principal documento do
Magistério sobre o celibato sacerdotal. Com efeito, a presente reflexão tem por intento
compreender a pertinência e importância dos ensinamentos deste documento para os tempos
atuais. Para tal, optaremos por um percurso que nos permitirá compreender a Encíclica e o seu
tema numa dimensão bíblica e histórica, de modo, a apreender os diversos elementos,
bíblicos, históricos e teológicos que estão subjacentes à sua reflexão. Pois, estes elementos
ajudar-nos-ão a interpretar o profundo significado teológico do celibato numa dimensão
cristológica, eclesiológica e escatológica, sendo efetivamente este o principal objetivo deste
trabalho.
ABSTRACT
Celebrating its fiftieth anniversary, the encyclical Sacerdotalis Caelibatus
promulgated by the pope Paul VI continues to present itself as the main document of the
Magisterium on priestly celibacy. In fact, the present investigation is intended to understand
the pertinence and importance of the teachings of this document for the present times. For
this purpose, we will opt for a journey that will allow us to understand the Encyclical and its
theme in a biblical and historical dimension, in order, to grasp the biblical, historical, and
theological elements that underlie his reflection. Because, these elements will help us to
interpret the profound theological meaning of celibacy in an christological, ecclesiological
and eschatological dimension, being effectively the main objective of this work.
3
INTRODUÇÃO
deveras oportuna uma reflexão teológica sobre o celibato sacerdotal, com principal enfâse na
Magistério sobre o tema, expondo uma profunda reflexão sobre a sua essência e vivência. As
razões da sua redação remontam precisamente ao decorrer dos trabalhos conciliares, onde
Paulo VI, julgando inconveniente um debate público sobre a questão, promete aos Padres
imprimir futuramente um novo lustre e vigor ao celibato sacerdotal, face a um contexto social
sacerdócio, mas também uma profunda sensibilidade e preocupação com a formação e a vida
Tradição doutrinal da Igreja, sobretudo, com a reflexão resultante do Vaticano II, do qual
recolherá conceções fundamentais. Não se trata, todavia, de uma mera síntese ou repetição da
Tradição doutrinal e da disciplina, dado que não se detém numa simples apologia, mas orienta
a uma visão de amplos horizontes teológicos e abre caminho para um desenvolvimento futuro.
conveniência de uma vida célibe no exercício da missão sacerdotal. Neste sentido, o Pontífice
sacerdócio e celibato, de modo, que se compreenda claramente a lógica de uma entrega total a
4
Ora, é precisamente com este intento que nos propomos a desenvolver a nossa
nos tempos atuais e identificar a sua conveniência, através do seu profundo significado
recorrendo à reflexão de vários autores sobre o tema. Assim, começaremos por contextualizar
o celibato sacerdotal numa dimensão bíblica, histórica e doutrinal para culminarmos com uma
Testamento, bem como à nova significação que lhe advém pela novidade do mistério de
nosso trabalho uma abordagem mais profunda e detalhada, focando-nos então nos pontos
fulcrais, desde o Concílio de Elvira até ao Vaticano I. Deste modo, consideraremos a vivência
Tradição oral da Igreja, para que possamos identificar progressivamente no tempo as causas
resultantes.
celibato sacerdotal desde João XXIII até à Sacerdotalis Caelibatus. O pensamento de João
XXIII está presente na reflexão conciliar, daí a conveniência em iniciarmos neste Pontífice a
reflexão deste capítulo. Dado que a Encíclica encontra os principais motivos da sua redação
no decorrer do Vaticano II, e se desenvolve em perfeita harmonia com a reflexão teológica daí
procedente, seguiremos por atentar no contexto social envolto ao Concílio, quanto ao tema do
5
celibato sacerdotal, analisando os principais documentos conciliares que trataram diretamente
o tema, a saber, Lumen Gentium, Optatam Totius e Presbyterorum Ordinis. Após este
identificando os principais elementos que lhe são distintos, bem como alguns traços próprios
nas razões teológicas do mesmo frente a várias objeções, enquanto na segunda parte se
reflexivos.
implicando toda a existência da pessoa, por isso, é imprescindível que os sacerdotes e aqueles
que se preparam para o ser saibam aprofundadamente o significado da sua renúncia a uma
dimensão que é própria da natureza humana e expressamente querida por Deus, o matrimónio,
autêntica compreensão da opção pelo celibato como adesão a Cristo com o coração indiviso,
sacerdotal, é de tal modo importante que lhe dedicaremos constante e transversal atenção ao
6
1. PERSPETIVA BÍBLICA E HISTÓRICA DO CELIBATO
história do Povo de Deus, por isso, é pertinente que façamos um percurso bíblico e histórico
que nos permita entender os alicerces teológicos e históricos desta disciplina. No Antigo
Testamento percebemos que realmente Deus suscita nos homens, de modo gradual, o apreço
pela castidade, embora, o judaísmo não tenha compreendido esta virtude na sua plenitude,
preocupação para com a pureza ritual. Posteriormente, o NT, através da novidade de Cristo,
deu um novo significado à vida célibe, fundamentando-a na adesão a Cristo como valor
definitivo. Para além destes elementos basilares, os elementos históricos são também de
relevante importância para que possamos esclarecer alguns mal entendidos acerca do celibato,
O estudo sobre uma eventual vinculação do celibato com o Antigo Testamento sugere
figuras de maior relevância, verificamos que: «os juízes eram assistidos pelo “Espírito do
Senhor”. Moisés era tão ou mais sagrado que o Sumo sacerdote Aarão. Os reis de Judá até
7
governantes, a partir de Simão Macabeu, eram reis e sumos pontífices»1. No entanto,
vinculado à tribo de Levi. Trata-se de uma herança de sangue, onde se nasce sacerdote e se
característica de todo o povo (cf. Ex 19, 6), os levitas-sacerdotes são a «parte» do Senhor (Dt
18, 1, obrigados a uma pureza ritual superior à exigida dos leigos (Lv 21, 22)»2. Para além
disso, era-lhes reconhecida autoridade sagrada, eram beneficiados com direito a dízimos e
Deuteronómio se acentua que quando Deus decide comunicar com o seu povo de forma
especial suscita profetas no meio do povo, ao invés de se revelar através dos sacerdotes3. Os
profetas surgem realmente com uma personalidade carismática, com uma voz viva e
autorizada que lhes permite denunciar as próprias estruturas políticas e religiosas. Também, a
assumidas pelos escribas, destacando-se a figura de Esdras que assumiu a função de escriba,
Com efeito, podemos constatar que no povo judeu a figura dos profetas e
posteriormente dos escribas assumiu sempre uma primazia em relação aos sacerdotes. O
motivo de tal realidade parece assentar no facto de que à medida que o povo aprimorou o seu
sentido religioso foi optando pela dimensão carismática em detrimento da dimensão ritual5.
1
Mauro RODRÍGUEZ, El celibato: ¿Instrumento de gobierno? ¿Base de una estructura?, Herder, Barcelona,
1975, 18.
2
Ibidem, 19.
3
Ibidem.
4
Cf. Ibidem, 20.
5
Cf.Ibidem.
8
reduzidos a posições secundárias, também parece dever-se, em grande parte, à corrupção do
partido sacerdotal, no qual os sacerdotes, «afastados de ser o ideal dos valores espirituais,
O apreço pela castidade consagrada parece ter tido realmente uma valorização gradual
ao longo da Sagrada Escritura, sendo deduzível que «Deus foi educando o Seu Povo,
Levítico encontramos uma ideia clara desta realidade, onde se expõe a condenação da
adultério (cf. Lv 7). Nesta perspetiva, encontramos várias passagens no AT que atestam uma
adultério: «o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só
carne» (Gn 2, 24); «Se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o homem
adúltero e a mulher adúltera serão punidos com a morte» (Lv 20, 10); «não cometerás
castidade: «a alma casta não tem preço» (Ecl 26, 20); «quem poderá subir à montanha do
Senhor e apresentar-se no seu santuário? O que tem as mãos inocentes e o coração limpo» (Sl
23, 3-4). E para além desse reconhecimento, há ainda passagens que louvam explicitamente a
virtude da castidade: «amaste a castidade e não quiseste, depois da morte de teu marido,
conhecer outro homem; por isso o Senhor confortou-te, e serás eternamente bendita» (Jdt 15,
11); «mais vale uma vida sem filhos, mas rica de virtudes: a sua memória será imortal, porque
será conhecida de Deus e dos homens. Quando está presente, imitam-na; quando ausente,
desejam-na; no século vindouro triunfará coroada por ter vencido sem mancha nos combates»
(Sb 4, 1-2)8.
6
Ibidem, 21.
7
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total: O celibato na Igreja, Apostolado da Oração, Braga, 1999, 13.
8
Ibidem, 14.
9
Apesar de o povo judeu não ter compreendido o significado da castidade, na sua
peles, que trazia um cinto de couro em volta dos rins» (2 Rs 1, 8), remetendo também esta
expressão para uma figura posterior, João Batista (cf. Mc 1, 6)9; e o profeta Jeremias, ao qual
o Senhor indicou: «não tomarás mulher, nem filhos nem filhas nesta terra» (Jer 16, 1-4). No
Livro de Jeremias, podemos realmente constatar que o profeta demonstrou uma resignação
permanente, pois tinha inclinação à vida familiar e, por isso, a vida célibe impôs-se-lhe como
um grande sacrifício10.
judaísmo (cf. SaCae 19). O judaísmo possuía uma visão muito positiva do matrimónio e da
Criador proclama: «não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar
semelhante a ele» (Gn 2, 18), e ainda «crescei, multiplicai-vos, enchei e submetei a terra» (Gn
1, 28)11. Neste contexto, não nos é tão difícil perceber porque o estado celibatário era
continência dos sacerdotes judeus, pois para os cristãos «o ponto de referência era o exemplo
e missão de Cristo, não a pureza ritual do Antigo Testamento»13. O Livro do Levítico expõe
diversas considerações acerca da pureza ritual dos sacerdotes do AT, aos quais eram exigidas
para poderem comer dos dons sagrados e exercer as cerimónias rituais. Para além, das
infeções de pele, impurezas de natureza sexual e contato com cadáveres, salienta-se inclusive
9
Cf. B. RIGAUX, Le célibat et radicalisme évangelique, Casterman, Tournai, 1972, 158.
10
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 15.
11
Cf. José Antonio PAGOLA, Jesus: uma abordagem histórica, Gráfica de Coimbra, Coimbra, 2008, 57.
12
Cf. Franco MANZI, «¿El celibato sacerdotal, es una disciplina de la Iglesia latina o tiene orígenes bíblicos?», in
Arturo CATTANEO, ¿Curas casados?, RIALP, Madrid, 2011, 23.
13
Cf. Giorgio PAXIMADI, «El celibato sacerdotal: Un poco de historia», in Arturo CATTANEO, ¿Curas casados?,
RIALP, Madrid, 2011, 19.
10
a proibição de «derramamento de sémen», o qual era visto como causa de impureza mesmo
durante uma relação matrimonial (cf. Lv 15, 16-18)14. Os sacerdotes deviam «guardar
continência enquanto durava o seu serviço ao templo, porque “aproximar-se das coisas
santas” exigia a abstenção sexual (Lv 22, 3-10). […] O texto não qualifica a exigência como
“pureza” (tahot), mas como “santidade” (qadosh), situando-a assim na perspetiva do encontro
com Deus para participar na sua santidade»15. A continência sexual, como condição para o
exercício do culto, era de tal modo imprescindível que a tradição judia, como se verifica na
O motivo de tais exigências, para com a pureza ritual, parece fundamentar-se numa
razão geral de que todos os fluidos sexuais simbolizam uma perda de vida 17. Ora, «o Deus de
Israel é o Deus da vida (Dt 5, 26), o Deus que faz respirar o vivente (Nm 27, 16; os mortos
não o louvam (Sl 115, 17) e Ele não se interessa pelos mortos (Sl 88, 11). O que se refere à
morte vai, portanto, contra Deus e é impuro»18. Por outro lado, constatamos que no NT a
sentido, pois passa-se a entender esta dimensão num sentido mais ético do que ritual.
Portanto, podemos constatar que «o celibato do sacerdote do NT não pode conceber-se como
particular de conformação com Cristo, virgem e esposo da Igreja (cf. Ef 5, 31-32)»19. Neste
aspeto, a tradição judia não tem, de facto, continuação no cristianismo, pois a lei judaica
14
Cf. Ibidem, 20.
15
Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, Sígueme, Salamanca, 2015, 46.
16
Giorgio PAXIMADI, «El celibato sacerdotal: Un poco de historia», 20.
17
Cf. Ibidem.
18
Ibidem, 21.
19
Ibidem, 22.
11
prescrevia que o sacerdote evitasse o contato com a mulher, apenas no tempo de preparação e
judaísmo.
Mas, podemos, também verificar que, relativamente a esse costume, o judaísmo não se opõe
às antigas práticas das religiões naturais, está inclusive em perfeita consonância com elas,
remontando tal conformidade aos tempos em que os abraâmicos ainda não se haviam
exerciam o culto mecanicamente, sem pensamento nem sem uma verdadeira entrega de
Durante este profundo ambiente religioso parece muito difícil que o sacerdote se
recordasse de uma mulher, de modo, que a lei se limitava a impor exteriormente o que se
impunha pela realidade dos factos e do espírito do sacerdote22. Embora a lei se imponha de
uma forma negativa e externa, podemos compreender que ela comporta em si uma dimensão
espiritual interior: o sacerdote deixa o contato com a mulher para poder dedicar-se
inteiramente, com todo seu coração, ao Senhor. Evidentemente que o judaísmo não possuía
uma plena consciência desta realidade, pois centrava-se na pureza ritual, numa dimensão
20
Cf. Johann Adam MOHLER, El celibato sacerdotal, Encuentro, Madrid, 2012, 109.
21
Ibidem, 110.
22
Cf. Ibidem.
12
externa. Por conseguinte, a legislação judaica não parece ter tido influência na orientação
cristã pela perfeita continência, pois a eleição dos cristãos pelo celibato não se baseia «em
termos meramente funcionais»23, mas resulta de uma «renúncia a uma fecundidade, para
afirmar uma fecundidade radicada no carácter definitivo da união entre a Esposa eclesial e seu
Esposo divino»24.
passagem, «Cristo aproveita para esclarecer as implicações da pureza ritual no AT, que deram
lugar a uma falsa compreensão da pureza moral, entendida com frequência num sentido
exclusivamente externo e material, deixando ao mesmo tempo claro que os pecados contra a
castidade têm a sua origem no coração, na vontade do homem»25. «Do coração procedem os
blasfémias» (Mt 15, 18-20), portanto, para além de ser fonte de pureza, o coração pode
também ser fonte de impureza. Para S. Paulo a pureza de coração é a «vida segundo o
Espírito» (cf. Gal 5, 16-17), a qual é compreendida como uma contínua tensão, no coração
operada por Cristo, é dotado de uma liberdade que lhe permite optar pelo bem, pela pureza, a
qual «em qualquer estado de vida, é uma afirmação do amor; não é algo suspendido sobre
nada, é uma resposta à chamada que Cristo dirige ao coração de cada homem»26.
23
BENEDICTUS XVI, Adhortatio Apostolica postsynodalis «Sacramentum Caritatis», in AAS 99 (2007) 24.
24
Giorgio PAXIMADI, «El celibato sacerdotal: Un poco de historia», 22.
25
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal: Uma perspectiva actual, Cristiandad, Madrid, 2004, 182.
26
Ibidem, 183.
13
Através do NT, compreendemos que Jesus levou uma vida célibe, sem contrair
matrimónio nem gerar filhos, justificando-se a Sua opção na Sua entrega total pela causa do
reino do Céu e, «sobretudo, pelo nexo intrínseco existente entre esta eleição e o conteúdo do
seu anúncio. Jesus Cristo não contraiu matrimónio nem gerou filhos para comunicar, também
de forma carnal, que a origem da vida eterna, que oferecia a todo homem, provinha
como irmãos (Mt 5, 22-24; 7, 3-5), subordinando inclusive os laços de sangue à sua relação
fraterna com os discípulos: «o que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus, esse é meu
irmão e minha irmã e minha mãe»28. Portanto, Jesus não teve filhos para estabelecer com os
seus discípulos uma verdadeira fraternidade universal através de uma vida comum, com um
propósito comum: o reino do Céu. O celibato de Jesus permitiu instaurar que a «comunicação
divina da vida eterna não é a da geração carnal (cf. Mt 3, 9), mas a da (re) generação
“espiritual” (cf. Mt 3, 11), “de cima”, “do Espírito de Deus” (Jo 3, 3; 5-8)»29. A Sua opção
por este estado de vida é uma manifestação de que «Deus Pai é a única fonte de vida
eterna»30, concretizando essa verdade num amor fraterno aos seus discípulos, os quais
Quanto à vida pessoal dos discípulos, não podemos afirmar, com certeza, se eram
casados ou solteiros. João e André, como eram discípulos de João Batista, pressupõe-se que
27
Franco MANZI, «¿El celibato sacerdotal, es una disciplina de la Iglesia latina o tiene orígenes bíblicos?», 24.
28
Cf. Ibidem, 26.
29
Ibidem, 27.
30
Ibidem.
31
Ibidem, 28.
14
provavelmente seriam solteiros. Também sabemos que Pedro tinha sogra, mas na verdade não
temos informações precisas acerca dos demais apóstolos32. Todavia, o certo é que todos foram
chamados a deixar tudo, inclusive as mulheres se é que as tinham, pois a missão a que foram
chamados consistia em «estar com Jesus e ser enviado a pregar (cf. Mc 3, 13-14); ora estar
com Jesus é partilhar com Ele o próprio estilo de vida, ficar ligado à sua pessoa, e para
satisfazer aquelas duas exigências era preciso deixar tudo, como Pedro diz claramente (cf. Mt
19, 27)»33.
família para o seguir (cf. Mt 19, 29), mas em Lucas há uma menção específica em deixar a
esposa (cf. Lc 18, 29), evidenciando-se um claro convite para o celibato, na vida apostólica.
Por conseguinte, «a decisão dos doze de “deixar tudo” - inclusive a família (cf. Mt 19, 27) –
para viver com Jesus de maneira fraterna e célibe – ou pelo menos continente, tendo em conta
que alguns já eram casados, como Pedro (cf. Mt 8, 14-15) – tinha um único objetivo:
testemunhar como Ele fazia (Jo 13, 34; 15, 12) a “Boa Notícia” do Deus-Abbá (Mc 14,
36)»34. Ora, os textos bíblicos nunca se referem à vida conjugal dos apóstolos, ou a problemas
inerentes à vida familiar, que seria muito provável se realmente essa situação existisse35.
no NT são Mt 19, 3-12 e Cor 736. A primeira passagem bíblica consiste na única intervenção
de Jesus a respeito do celibato: «há eunucos que nasceram assim do seio materno, há os que
se tornaram eunucos pela interferência dos homens e há aqueles que se fizeram eunucos a si
mesmos, por amor do reino do Céu» (Mt 19, 12). Esta expressão, em atenção ao contexto em
que se insere, parece pressupor o celibato dos apóstolos, pois os judeus criticavam Jesus e os
seus discípulos por não guardarem o sábado, por comerem com os pecadores, por não
32
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 15.
33
Ibidem, 15.
34
Franco MANZI, «¿El celibato sacerdotal, es una disciplina de la Iglesia latina o tiene orígenes bíblicos?», 28.
35
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 16.
36
Cf. Mauro RODRÍGUEZ, El celibato, 37.
15
pecadores”, “samaritano”, “endemoninhado”. Provavelmente riram-se dele chamando-lhe
“eunuco”»37. Perante semelhante insulto, que fere a própria virilidade e insinua uma ligação a
grupos marginais, podemos compreender que Jesus tenha aproveitado a ocasião para
esclarecer e defender a sua opção, e consequentemente dos seus discípulos, por uma vida
célibe. Todavia, é também deveras importante mencionar o versículo anterior: «nem todos
compreendem esta linguagem, mas apenas aqueles a quem lhes há sido dado» (Mt, 19,11).
«Mateus usa o verbo choréo, deixar espaço, dar lugar»38. Com efeito, as palavras de Jesus
manifestam o celibato como um dom que é compreendido e acolhido por alguns a quem lhes é
dado esse dom, tratando-se então de um acolhimento da graça de Deus. As palavras de Jesus
representaram certamente um grande escândalo para os judeus, os quais viam tal condição
como desprezível, e o Mestre demonstrava que há homens, escolhidos por Deus, a quem é
dado um dom especial de “dar lugar” a uma condição permanentemente célibe pelo reino do
Céu. Ora este “dar lugar” pressupõe que primeiramente se “deixe tudo”, para ingressar na
nova família de Jesus (cf. Mc 10, 29-30)39. Neste sentido, verificamos que «o serviço ao
Reino não requere somente o celibato, mas sobretudo todo o seguimento de Jesus, um
seguimento que é sempre comunhão de vida com Ele e com os condiscípulos, e que pode
levar até “fazerem-se eunucos”»40. Esta realidade surge então como «motivo apostólico, não
tanto para entrar no Reino, mas para trabalhar por Ele»41. Trata-se efetivamente de uma
Mt 13, 44-46). Por conseguinte, o celibato, entendido segundo uma perspetiva de entrega ao
serviço do Reino, não pode somente ser compreendido como amor exclusivo e total a Deus
37
José Antonio PAGOLA, Jesus, 59.
38
Cf. Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 49.
39
Cf. Ibidem, 50.
40
Ibidem.
41
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 17.
16
«formando parte de toda uma vida, não só da sexualidade, e de uma vida
humana plena, completa. A vida celibatária é vida que requere a renúncia ao amor
conjugal e familiar, mas em ordem a uma abertura à relação profunda com o Senhor e
à comunidade fraterna, num contexto humano da vida ditosa, autêntica, boa e bela,
como a vida vivida por Jesus de Nazaré»42.
primeiramente as palavras do apóstolo: «desejaria que todos os homens fossem como eu, mas
cada um recebe de Deus o seu próprio carisma» (1 Cor 7, 7). Para além, de se valorizar o
celibato como um carisma, dom de Deus concedido a alguns, compreende-se por estas
palavras que o apóstolo não era casado e via esse estado de vida de forma positiva43. O núcleo
que merece maior atenção, atendendo ao tema deste trabalho, encontra-se efetivamente entre
os versículos 17 a 40. O apóstolo aconselha que cada um continue a viver segundo o carisma
que o Senhor lhe atribuiu, mas a quem é solteiro aconselha a permanecer nesse estado,
atendendo às «angústias presentes», «porque este mundo de aparências está a terminar» (vv.
25-30). Na verdade, o apóstolo desenvolve a sua reflexão de acordo com a espera da Parusia,
a qual julgava iminente (cf. 1Tes 4, 15-17; 2 Tes 2, 1-2), a partir da qual, dada a iminência da
vinda do Senhor, de «um eminente cataclismo revolucionário de todo o existente e uma nova
prossegue afirmando
«32
Eu quisera que estivésseis livres de preocupações. Quem não tem esposa,
cuida das coisas do Senhor, como há-de agradar ao Senhor. 33Mas aquele que tem
esposa cuida das coisas do mundo, como há-de agradar à mulher, 34e fica dividido.
Também a mulher não casada, tal como a virgem, cuidam das coisas do Senhor, para
serem santas de corpo e de espírito. Mas a mulher casada cuida das coisas do mundo,
como há-de agradar ao marido. 35Digo-vos isto para vosso bem, não para vos armar
uma cilada, mas visando o que é mais nobre e favoreça uma dedicação ao Senhor, sem
42
Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 51.
43
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 16.
44
Mauro RODRÍGUEZ, El celibato, 41.
17
partilha. 38Portanto, aquele que desposa a sua noiva faz bem; e quem a não desposa
ainda faz melhor (1 Cor 7, 32-38).
resulta uma proeminência do estado célibe, «louvam-se como bons e santos ambos os estados,
mas aconselha-se a virgindade, para quem ela for possível. Para além disso, não se trata de um
celibato genérico, mas de castidade perfeita e perpétua para melhor servir as coisas de Cristo,
motivadas pelo serviço a Deus e pela brevidade terrena, apresentando-se, deste modo, como
um testemunho pessoal de que o célibe pode encarnar melhor uma condição sem
preocupações e sem distrações, expressando estes dois últimos elementos uma «urgência
escatológica»46.
Por conseguinte, «a forma célibe, continente e fraterna da vida de Jesus com os doze
para expressarem Deus como fonte de vida eterna e a Igreja como mediadora dessa
transmissão espiritual. Assim, o estado de vida célibe dos apóstolos situa-se numa co-
responsabilidade de todos membros da Igreja, mas sobretudo dos ministros ordenados, que
fazer irmãos, filhos do mesmo Pai48. Segundo esta perspetiva, também o celibato de Paulo, se
expressa numa caridade evangélica que lhe permitiu constituir-se «tudo para todos» (1 Cor 9,
22), num amor esponsal à Igreja, à semelhança de Cristo que a amou e Se entregou por Ela
(cf. Ef 5, 25).
45
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 16.
46
Cf. Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 52.
47
Franco MANZI, «¿El celibato sacerdotal, es una disciplina de la Iglesia latina o tiene orígenes bíblicos?», 29.
48
Cf. Ibidem.
18
ser esposos de «uma única mulher» (cf. 1 Tim 3, 12; Tit 1, 61; Tim 3, 12). Ora, esta
expressão, encontrada unicamente nestas três cartas, deve ser compreendida, à semelhança da
ao facto de que nessa altura a obrigação de continência relativamente aos bispos, presbíteros e
«os decretos Directa (385) e Cum in unum (386) traduzem que para o
pontífice – Papa Siríaco – o estar casado uma só vez, ou havê-lo estado, atesta a
capacidade por parte do candidato às ordens maiores – casado ou viúvo – de viver em
perfeita continência depois da ordenação. Portanto, disto se deduz que desde a redação
da primeira Carta a Timóteo e da Carta a Tito, os bispos, os sacerdotes e diáconos
estiveram obrigados a manter uma completa continência. Uma disposição desse
género, inclusive para clérigos casados, podia fundar-se no testemunho dos
Evangelhos na medida em que permitia a bispos, sacerdotes e diáconos fazer memória
– mais, “ser memorial” – de Cristo, o qual, através de uma vida célibe, continente e
fraterna com os doze, testemunhou a Deus Abbá, possibilitando engendrar
“espiritualmente” filhos para a vida eterna»50.
castidade, atribuindo-se, para além disso, um carácter apostólico à perfeita continência pelo
Reino. Todavia, Jesus não impôs esta condição aos apóstolos, os quais por seu lado também
não a impuseram àqueles que iam colocando à frente das primeiras comunidades cristãs, de
modo, que não existe qualquer conexão jurídica no NT inerente ao celibato sacerdotal, o qual
49
Cf. Ibidem, 31.
50
Ibidem, 32.
51
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 19.
19
1.3. Perspetiva histórica
histórica do celibato sacerdotal, segundo uma perspetiva teológica. Trata-se, portanto, de uma
síntese seletiva, desde o Concílio de Elvira até ao Concílio Vaticano I, que pretende ajudar a
não apresenta uma perceção consensual, há quem entenda que procede de origem divina, mas
também há outros, sobretudo quanto à disciplina da Igreja latina, que acreditam que se trata de
uma simples instituição eclesiástica, a qual para uns começou a desenvolver-se a partir do
século IV e para outros foi introduzida a partir do Concílio de Latrão52. O Concílio de Elvira,
como dois pontos fulcrais, pois é a partir deles que se estendeu o celibato sacerdotal a toda a
Igreja53. Mas, só no Direito Canónico de 1917 aparecerá uma legislação concreta acerca do
“celibato”, pois trata-se da primeira vez que há uma referência explícita ao tema, até então
denominado por “continência”. Ora, na verdade, os dois termos não são propriamente
idênticos na sua natureza, o «celibato é o estado de uma pessoa adulta de sexo masculino que
não está casada e que decidiu não casar-se; continência é a abstenção, temporal ou
O concílio de Elvira, decorrido em Granada entre o ano 300 e 313, apresenta-se como
um ponto essencial para esta reflexão, pois foi nele que pela primeira vez se transformou em
lei o que até então era apenas observado como costume, embora já generalizado na Igreja
52
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico: su historia y sus fundamentos teológicos», in Juan Luis
LORDA, El celibato sacerdotal: Espiritualidad, disciplina y formación de las vocaciones al sacerdocio, Eunsa,
Pamplona, 2009, 129.
53
Cf. Stefano GUARINELLI, ¿El celibato de los sacerdotes: Por qué elegirlo todavía?, Sígueme, Salamanca,
2015, 20.
54
Ibidem.
20
ocidental55. O período anterior ao século IV, marcado por uma severa perseguição aos
disciplina eclesiástica, de modo, que este Concílio surgiu com o intento de clarificar e renovar
«sobre os bispos e ministros (do altar), que devem ser continentes com suas
esposas, […] está-se de acordo quanto à completa proibição, válida para bispos,
sacerdotes e diáconos, ou seja, para todos os clérigos dedicados ao serviço do altar,
que devem abster-se de suas mulheres e não gerarem filhos; quem o tenha feito deve
ser excluído do estado clerical»57.
modo algum, de forma unânime por todos os clérigos. No entanto, era manifesto o vivo desejo
deduzimos, por este texto, é que a maioria dos clérigos da Igreja em Espanha eram viri
probati, ou seja, homens que eram casados antes de receberam a ordenação, mas que depois
tiveram de renunciar ao uso do matrimónio para viverem numa perfeita continência 59. Na
verdade, o cânone 33 não representa nenhuma novidade, não se trata de uma nova lei, mas de
uma reação ao não cumprimento de uma obrigação tradicional. Atestando esta reflexão,
também Pio XI expressou precisamente que «o rasto mais antigo de uma lei do celibato
do Concílio de Elvira. […] Esta lei não fazia outra coisa que dar força de obrigação ao que os
55
Cf. António-Luis PRIETO, Celibato pelo Reino de Deus: Formação e vivência, Paulus, Lisboa, 2013, 94, 80.
56
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 137.
57
Enrique DENZINGER, El Magistério de la Iglesia, Editorial Herder, Barcelona, 1963, 22.
58
António-Luis PRIETO, Celibato pelo Reino de Deus, 77.
59
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 138.
21
natural»60. A legislação de Elvira revelou-se bem acolhida em todo o Ocidente e, sendo
ano 325, o Concílio de Niceia pretendia efetivamente estabelecer uma nova lei a qual
ordenasse aos bispos sacerdotes e diáconos que se separassem das mulheres com quem tinham
casado, quando eram leigos. Todavia, destaca-se neste contexto o bispo Pafúncio, reconhecido
pela sua admirável piedade, o qual parece ter levantado a voz para dissuadir o Concílio de
sancionar uma obrigação geral de continência, uma vez que considerava a medida como
demasiado severa62. Na verdade, Pafúncio fora educado num mosteiro e era reconhecido por
observar admiravelmente a castidade, mas julgava que nem todos os clérigos seriam capazes
de levar adiante um jogo tão pesado. Por conseguinte, os Padres parecem ter atendido ao seu
Nos finais do século IV, são publicados três documentos pelo Magistério defendendo
altar63. Deste modo, os documentos são constituídos por dois decretos do papa Siríaco e pelas
disposições do Sínodo de Roma do ano de 386. No decreto Directa (385) Siríaco reage ao
facto de alguns clérigos ainda continuarem a viver com suas esposas e a terem filhos,
quebrando a lei eclesiástica e justificando tal atitude com a tradição do sacerdócio levítico do
AT. Ora, o Papa esclarece que «os sacerdotes levíticos estavam sujeitos à obrigação da
continência temporal durante o serviço no templo, mas com a vinda de Cristo o velho
sacerdócio alcançou a sua plenitude e, por esta razão, a obrigação da continência temporal se
60
Cf. PIUS XI, Litterae encyclicae «Ad catholic sacerdoti», in AAS 28 (1936), 25.
61
Cf. António-Luis PRIETO, Celibato pelo Reino de Deus, 81.
62
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 162.
63
Cf. Ibidem, 142.
22
há convertido numa obrigação de continência perpétua»64. Através do decreto Cum in unum
(386), o Papa serve-se de textos de S. Paulo (cf. Tit 1, 15; 1 Tim 3, 2; 1 Cor 7, 7; Rom 8, 8-9)
para fundamentar o celibato eclesiástico, segundo a perspetiva de que ser casado com uma
seus predecessores, envia uma carta ao Concílio de Cartago (390) a transmitir as importantes
Na verdade, depois de Elvira, o Concílio de Cartago não representa menor importância, pois
Africana67. Neste sentido, salienta-se o cânone 3 que determina uma total continência aos
disposições, segundo as quais todos os clérigos devem guardar perfeita continência, sendo que
todos os bispos presentes concordaram com tais disposições de forma unânime69. Portanto, as
declarações dos Concílios de Cartago demonstram que, na Igreja Africana, a maioria dos
clérigos eram casados antes da ordenação e deviam assumir uma perfeita continência.
pois foi transmitido «a todas as dioceses da Igreja romana e, no Oriente, o Concílio de Trullo
(691) referiu-se explicitamente a ele como um vínculo seguro com a Tradição. A lei
64
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 51.
65
Cf. Ibidem, 52.
66
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 142.
67
Cf. Johann Adam MOHLER, El celibato sacerdotal, 141-144.
68
MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 49.
69
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 139.
23
Africana, o Codex canonum ecclesiae africanae, completado e promulgado em 419, sendo
assiste-se a uma quebrar dessa união devido à separação de várias Igrejas particulares,
ano 691, com o objetivo de recopilar toda a legislação disciplinar da Igreja bizantina e
bispos orientais sob a autoridade imperial, mas a Igreja Ocidental não enviou delegados, nem
reconheceu este Concílio como ecuménico, pois algumas disposições eram contrárias à praxis
declara que todos os que tenham contraíram segundo matrimónio, vivido em concubinato,
casado com uma viúva, divorciada, prostituta, escrava ou atriz não podem ser ordenados
contrair matrimónio depois da ordenação; o cânone 12 ordena que os bispos não podem
coabitar com suas mulheres nem usar do matrimónio depois da ordenação; o cânone 13
estabelece que os sacerdotes, diáconos e subdiáconos da Igreja oriental podem conviver com
suas esposas e usar do matrimónio; o cânone 26 decreta que o sacerdote, que por ignorância,
70
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 50.
71
Cf. Ibidem, 165.
72
Cf. Stefan HEID, «¿Por qué hay diferencias entre Oriente y Occidente respecto al celibato sacerdotal?», in
Arturo CATTANEO, ¿Curas casados?, RIALP, Madrid, 2011, 38.
73
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 167.
24
contrair um matrimónio ilícito deve conformar-se com a situação anterior; no cânone 30
permite-se que aqueles casais que reciprocamente desejem viver célibes não devem habitar
juntos; o cânone 48 dispõe que as mulheres dos bispos que, por reciproco consentimento com
Através destes decretos compreendemos que a Igreja bizantina concorda com a Igreja
latina em três pontos: só pode haver um matrimónio até há ordenação e com algumas
exigências quanto à esposa; os matrimónios depois da ordenação não são legítimos; os bispos
devem viver em continência total, sem poderem coabitar com suas esposas. A diferença
efeito, a Igreja bizantina não exige uma geral continência aos clérigos casados, assumindo
assim uma atitude contrária em relação à Igreja latina. No entanto, «ainda que a legislação de
Trullo tenha introduzido uma grande diferença entre Bizâncio e Roma na questão do celibato
sacerdotal, há que assinalar que ambos estão de acordo sobre a origem apostólica da
O Concílio de Trullo teve ainda grande influência sobre o Direito Canónico ocidental,
sobretudo, através do cânone 13 que originou uma rutura entre a proibição do matrimónio e a
sua causa, isto porque Graciano, ilustre canonista do século XII, aceitou o cânone 13 de
canonistas do século XII deixaram de ver uma imediata relação entre continência e
eclesiástica.
74
Cf. Ibidem, 168-169.
75
Cf. Ibidem, 171.
76
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 88.
77
Ibidem, 89.
78
Cf. Ibidem.
25
1.3.4. Reforma gregoriana e II Concílio de Latrão
Para além dos aspetos já mencionados, uma das crises que mais afetou a observância
toda a europa, dominava realmente a vida pública e privada da Igreja, onde a concessão do
beneficio-oficio, realizada maioritariamente por laicos poderosos, era atribuída muitas vezes a
clérigos mal preparados e até indignos do ministério79. Após o fracasso de várias reformas
regionais, os Papas enfrentam pessoalmente a luta contra tal situação que se propagou na
Igreja. O papa Gregório VII (1020-1085) procedeu a um reconhecimento das raízes do mal e
dos ofícios), e o nicolaísmo (a extensa violação do celibato clerical)80. Esta grande reforma,
que visava também afirmar a primazia do Papa sobre toda a Igreja, alcançou uma considerável
uma eleição e de uma melhor formação dos candidatos, limitando-se gradualmente o acesso
tradicional, através de sínodos regionais presididos por legados pontifícios e de várias cartas
que transmitiam novas disposições disciplinares81. Esta reforma teve uma importante
clérigos maiores e por consagrados como ilegítimos e, portanto, inválidos82. Na verdade, isto
eclesiástico foi introduzido só a partir do segundo Concílio de Latrão. Quando na verdade, ali
só se declarou inválido o que sempre havia estado proibido»83. Nos tempos posteriores ao
Papa Alexandre III (1159-1181) não era permitido aos homens casados terem benefícios
79
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 152.
80
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 61.
81
Ibidem, 63.
82
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 152.
83
Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 153.
26
eclesiásticos, bem como era proibido que os filhos dos sacerdotes herdassem o ofício do pai,
demonstrando-se, deste modo, certa eficácia na eliminação das principais desordens na Igreja.
Esta reforma focou-se em aplicar pesadas sanções contra as infrações inerentes à disciplina da
celibato84.
1.3.5. Trento
do celibato ainda se mostrava bem longe dos seus objetivos. Depois do grande cisma do
Oriente, afirmou-se a necessidade de uma nova reforma, porém, esta nova reforma teve
expressando grande aversão ao celibato eclesiástico, assumiram tal tema como ponto-chave
Na verdade, o tema do celibato sacerdotal fez desde o início parte dos trabalhos deste
Concílio, mas foi em 1563, na terceira sessão, que o tema foi abordado concretamente. O
84
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 64.
85
Cf. Ibidem, 65.
86
Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 157.
27
tema foi abordado segundo o método geral de Trento: estudou-se as afirmações protestantes e
matrimonio como um estado de vida superior ao celibato; em segundo afirmavam que, apesar
declarar a lei do celibato como meramente eclesiástica, mas também num renovamento de
87
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 69.
88
Ibidem,70.
89
Enrique DENZINGER, El Magistério de la Iglesia, Editorial Herder, Barcelona, 1963, 277.
28
Não obstante esta importantíssima formulação, a maior decisão do Concílio de Trento
Seminários para a educação de sacerdotes, imposta em todas as dioceses 90. Pois, na verdade,
«o Concílio tridentino viu claramente que não se trata de impor determinadas leis a partir de
fora, que correm o risco de não serem cumpridas, mas é necessário formar os candidatos ao
sacerdócio no espírito evangélico, desde a sua juventude e revelando-lhes, com toda a clareza,
das situações imorais, através de uma prudente selecção dos candidatos. Em segundo lugar,
proporcionou igualmente uma profunda formação ascética, moral e teológica dos candidatos.
Outra ação deveras importante para o celibato foi a «decisão tomada em Trento de
de Trento proporcionaram uma nova imagem e definição do sacerdócio, onde as suas funções
deixavam de ser restritas ao culto para se estender à missão de cuidar daqueles lhes são
confiados espiritualmente. Neste sentido, exortou-se os bispos a que sejam autênticos pais dos
1.3.6. Vaticano I
celibato eclesiástico, porém a Igreja consegui sempre salvaguardar a praxis desta disciplina
dos sacerdotes fiéis à Igreja sofreram o martírio. Também, nesta situação a praxis da Igreja foi
a mesma da época da reforma, estabelecida já como primeira lei no Concílio de Elvira (305):
90
Cf. Alfons M. STICKLER, «El celibato eclesiástico», 158.
91
António-Luis PRIETO, Celibato pelo Reino de Deus, 85.
92
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 71.
93
Cf. Ibidem.
29
aos sacerdotes que se casaram durante a Revolução era dada a oportunidade de renunciar ao
os Papas nunca deixaram esmorecer o zelo pela observância de tão antiga tradição.
conciliar, em fevereiro de 1870, um bispo arménio usou da palavra para declarar que «a
ausência de uma lei do celibato nas Igrejas orientais era uma verdadeira “ferida”, porque a
consequência»95. Apesar desta solicitação, o Concílio decidiu que «as Igrejas orientais ainda
não estavam suficientemente “maduras” para aceitar uma lei plena do celibato, publicou-se
então uma instrução que afirmava a proibição do matrimónio aos clérigos já ordenados e
recordava a disciplina anterior a Trullo de continência perpétua do clero naquelas Igrejas onde
se tinha mantido a efetiva autoridade episcopal»96. Assim, após o vaticano I vários concílios
das Igrejas católicas orientais utilizaram esta instrução para legislar o celibato, fazendo com
que a disciplina da continência do clero nas referidas Igrejas voltasse à praxis dos primeiros
sacerdote “na pessoa de Cristo” como servo da nova humanidade que tem a sua origem “não
94
Cf. Ibidem, 75.
95
Cf. Ibidem, 96.
96
Ibidem.
97
Cf. Ibidem.
30
no sangue, nem na vontade da carne, nem na vontade do homem, mas em Deus” (Jo 1, 13)»98.
98
António-Luis PRIETO, Celibato pelo Reino de Deus, 93.
31
2. DESENROLAR HISTÓRICO-TEOLÓGICO DESDE JOÃO XXIII ATÉ À
SACERDOTALIS CAELIBATUS
perfeita harmonia com a reflexão conciliar, revela uma profunda atenção ao seu contexto
social, daí resulta o método reflexivo de Paulo VI: não se limita a uma mera exposição
apologética, nem à imposição de uma norma, mas antes apresenta as razões do celibato
sacerdotal precisamente a partir das suas objeções, as quais considera com frontalidade e
XXIII.
Na sua encíclica, Sacerdotti Nostri Primordia99, dedicada a São João Maria Vianney,
sacerdotal, através de uma profunda reflexão sobre o sacerdócio ministerial. Com base no
algumas virtudes na vida sacerdotal: a ascese, a oração, o culto eucarístico e o zelo pastoral.
Nestes três pontos gerais da encíclica encontramos desenvolvido, como tema fundamental, o
celibato e a virgindade. Na verdade, João XXIII vê no Cura de Ars um evidente «nexo entre
99
IOANNES XXIII, «Sacerdotii nostri primordia», in AAS 51 (1959) 545-579.
32
eficácia ministerial e fidelidade à perfeita continência pelo reino do Céu, e que esta última não
está determinada pelas exigências do ministério, mas pelo contrário, contra toda a redução
apelo do próprio Jesus Cristo: «Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua
cruz e siga-me» (Mt 16,24) e situa-a na observância dos conselhos evangélicos. E, para
esclarecer possíveis deturpações relativamente às palavras do seu predecessor, Pio XII, que
assegurou que «o clérigo não está ligado, por direito divino, aos conselhos evangélicos de
pobreza, castidade e obediência»101, adverte que «seria deformar o genuíno pensamento deste
Pontífice, tão cioso da santidade dos padres, e do ensino constante da Igreja, acreditar que o
padre secular é menos chamado à perfeição do que o religioso […] porque o exercício das
funções sacerdotais requer uma maior santidade interior, do que aquela exigida pelo estado
religioso» (SNP 10). Deste modo, as virtudes da renúncia, do sacrifício, e da doação total de
si mesmo definem a «ascese necessária da castidade – que – longe de fechar o padre num
estéril egoísmo, torna o coração mais aberto e mais acessível a todas as necessidades dos seus
constância nas referidas virtudes, sobretudo, nas regiões onde se verifica maior secularização
e liberdade sexual. Pois, para além destas dificuldades, na maior parte das vezes os padres
estão «moralmente sós, pouco compreendidos, pouco amparados pelos fiéis a quem se
dedicam» (SNP 16). É precisamente neste contexto que muitos padres são chamados a dar
100
Mauro PIACENZA, «Enseñanzas pontificias sobre el celibato: De Pío XI a Benedicto XVI», in Cattaneo
ARTURO, ¿Curas casados?, RIALP, Madrid, 2011, 139.
101
PIUS XII, Delegatis Conventui generali ex- universis religiosis Ordinibus, Congregationibus
ac Societatibus Institutisque saecularibus, Romae habito «Annus sacer», in AAS 43 (1951) 29.
33
afastar as tentações da ociosidade ou os riscos do excesso de trabalho» (SNP 16). De facto, a
vivência da castidade no sacerdócio e a sua correta compreensão, por parte dos sacerdotes, era
uma das preocupações de João XXII, pois tal como afirmou mais tarde, em discurso no
João XXIII prossegue afirmando no mesmo discurso: «aflige-nos que para salvar
qualquer resto da própria dignidade perdida alguém possa delirar sobre a possibilidade ou
conveniência para a Igreja Católica de renunciar ao que durante séculos foi e segue sendo uma
das glórias mais nobres e puras do seu sacerdócio»103. Neste contexto, é de sublinhar a
fidelidade à doutrina da Igreja. Por isso, o Papa adverte expressamente para os «graves
perigos do espírito de independência no clero, tanto para o ensino da doutrina como para os
102
IOANNES XXIII, Summi Pontificis allocutio die XXVI ianuarii A.D. MCMLX habita insecunda synodi
sessione, in AAS 52 (1960) 226.
103
Ibidem.
104
Mauro PIACENZA, «Enseñanzas pontificias sobre el celibato», 140.
34
sua relação com a Celebração Eucarística»105. Inclusive, dirigiu-se diretamente aos sacerdotes
para pedir paternalmente que «se examinem periodicamente sobre a forma como celebram os
santos mistérios e, especialmente, sobre as disposições espirituais com que sobem ao altar e
os frutos que se esforçam por tirar» (SNP 37). A eucaristia apresenta-se como o sustentáculo
fundamental do celibato, onde o sacerdote deve participar de modo «não funcional mas
si mesmo, ou seja, de «um mesmo, que há-de ser íntegro e incluir, portanto, a própria carne na
virgindade»107.
conveniência da observância de tão nobre virtude na Tradição da Igreja latina. Pois, como o
prevaleça é sempre uma evocação das lutas dos tempos heróicos, quando a Igreja de Cristo
teve que lutar e venceu com o êxito de seu trinómio glorioso, que é sempre emblema de
105
Ibidem.
106
Ibidem.
107
Ibidem.
108
IOANNES XXIII, Summi Pontificis allocutio die XXVI ianuarii A.D. MCMLX habita insecunda synodi
sessione, in AAS 52 (1960) 226.
109
PAULUS VI, Litterae encyclicae «Sacerdotalis caelibatus», in AAS 59 (1967) 657-697.
35
primeiramente ao ambiente social e religioso que envolveu o Concílio, bem como às
O Concílio ocorreu num contexto marcado pelos avanços dos estudos nos âmbitos da
atribuíram grande importância ao valor do amor e da sexualidade na vida humana, por isso, é
ordem psicológica e científica fizeram parte de uma campanha pública contra a lei do
trabalhos conciliares. Aquando dos debates sobre a formação e a vida dos sacerdotes, foi
distribuído a grande número de Padres um libelo elaborado por 40 leigos eruditos, homens e
mulheres de diversas áreas de conhecimento, o qual defendia o casamento dos padres, como
possibilidade de uma «maturação sexual inter-humana»113, que afirmavam ser negada aos
padres célibes. De igual forma, alguns Padres conciliares tinham preparado intervenções a
favor de uma abertura ao casamento dos padres, tendo como justificação a vantagem da
110
Cf. António ARANDA, «La encíclica Sacerdotalis caelibatus, cincuenta años después», in Scripta Theologica
49 (2017) 407.
111
Cf. LEITE, António, «O celibato sacerdotal», in Brotéria 11 (1967) 498.
112
Ibidem.
113
WENGER, Antoine, A Igreja do presente e do futuro, História do Concílio Ecuménico Vaticano II, vol. II,
Editorial Estampa, Lisboa, 1965, 501.
114
Ibidem, 502.
36
motivo para os seus bispos pretenderem «pedir ao Concílio que fossem admitidos na Igreja
mencionar que, já nos debates conciliares sobre a abertura do diaconado a homens casados,
alguns jornais franceses haviam publicado vários artigos onde consideravam que a abertura do
diaconado a homens casados antecipava uma futura aprovação do casamento dos padres116.
Face a esta polémica, que se tornara uma discussão pública e mediática, Paulo VI
envia no dia 10 de outubro de 1965 uma carta ao Cardeal Tisserant, decano do Sacro Colégio
e Presidente da Presidência do Concílio, para que fosse lida ao Concílio. Com esta carta, o
Papa usa da sua autoridade suprema para retirar de discussão o tema do celibato eclesiástico:
«De maneira nenhuma é oportuno um debate público sobre esta questão, que
exige a maior prudência e que é de grande importância. É nossa intenção fazer tudo o
possível por conservar esta lei antiga, sagrada e providencial, e ainda reforçar a sua
observância, chamando os sacerdotes da Igreja latina à constância das causas e das
razões que justamente hoje, de maneira particular, fazem que deva ser considerada
como muito adaptada esta lei, graças à qual os sacerdotes podem consagrar
unicamente a Cristo todo o seu amor e entregar-se total e generosamente ao serviço da
Igreja e das almas».118
eclesiástico, vigente na Igreja Latina, e ainda, pelo contrário, enaltece-o e torna explícita a
vontade de reforçar a sua observância, deixando, contudo, para aqueles que desejavam
115
António LEITE, «O celibato sacerdotal», 501.
116
WENGER, Antoine, A Igreja do presente e do futuro,300.
117
Cf. Ibidem, 504.
118
Ibidem, 505.
119
Cf. Ibidem.
37
2.3. Documentos Conciliares
sempre numa perspetiva apologética que visa fundamentar e recomendar a sua observância. O
tema surge expressamente nos decretos Optatam Totius e Presbyterorum Ordinis. Por seu
lado, estes dois decretos conciliares recorrem à constituição dogmática Lumen Gentium para
desenvolver e fundamentar o celibato, daí a conveniência de tratar, para além dos decretos, a
Constituição dogmática sobre a Igreja. Com efeito, um aspeto substancial na Lumen Gentium
à relação conjugal “pelo reino do céu” que facilita uma doação a Cristo com um coração
estabelecido como lei na Igreja latina, e também recomendado à Igreja Oriental, pois
efetivamente «para o Concílio, o celibato dos presbíteros é um vivo testemunho perante todos
os homens do matrimónio místico de Cristo com a Sua Igreja e do futuro Reino escatológico
da Ressurreição»121.
expõe, como referido no ponto anterior, uma conceção substancial que será posteriormente
Deus à santidade. Todos os cristãos são chamados a dar testemunho da santidade da Igreja,
que se exprime de distintos modos, mas o alcance desta santidade «aparece dum modo
120
Damiano MARZOTTO, «Sulla natura del celibato sacerdotale. Analisi degli ultimi documenti del Magistero
(1964-1974)», in La Scuola Cattolica, 107 (1979) 591.
121
António-Luis PRIETO, Celibato pelo Reino de Deus, 94.
122
SACROSANCTUM CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II, Constitutio Dogmatica de Ecclesia
«Lumen Gentium», in AAS 57 (1965) 5-75.
38
especial na prática dos conselhos chamados evangélicos» (LG 49), os quais se apresentam
como meios vitais para o crescimento na caridade e na perfeição cristã, e é justamente nessa
portanto, tal «como Jesus, Filho de Deus, manifestou o seu amor, dando a vida por nós, assim
ninguém dá maior prova de amor do que aquele que oferece a vida por Ele por seus irmãos
(cf. 1 Jo. 3,16; Jo. 15, 13)» (LG 42). Este testemunho de santidade é realmente «evidente, em
alguns comportamentos cristãos, como o martírio e a prática dos conselhos evangélicos por
também a prática dos conselhos que o Senhor sugere no Evangelho aos seus discípulos
celibato, dom da graça divina que o Pai concede a alguns» (LG 42).
despropositada, pois a prática dos conselhos evangélicos é sempre feita «numa perspectiva de
renúncia: renúncia aos bens (pobreza); à própria vontade (obediência) e à relação matrimonial
Assim, se evidencia o fundamento do dom do celibato que, sendo realmente uma «renúncia
perfeita, abraçada pelo reino do Céu, foi sempre tida em grande estima pela Igreja, como sinal
(LG 42). Esta renúncia, como perfeita adesão a Deus, com um coração indiviso, apresenta-se
como sinal e estimulo à santidade, sendo o seu valor reconhecido e deveras valorizado pela
Igreja.
123
Cf. Damiano MARZOTTO, «Sulla natura del celibato sacerdotale», 592.
124
Ibidem.
125
Ibidem.
39
Da mesma forma, o capítulo VI, dedicado aos religiosos, refere a «castidade
consagrada a Deus» no contexto dos conselhos evangélicos, que «fundados sobre a palavra e
Igreja, são um dom divino, que a Igreja recebeu do seu Senhor e com a Sua graça sempre
fundando-a numa consagração batismal»126. Logo pelo batismo todo o cristão é consagrado a
Deus, morrendo para o pecado e renascendo para uma vida nova em Cristo. Porém, pela
serviço divino» (LG 44). Esta abordagem dos conselhos evangélicos, sempre feita
que a primeira impressão que sobressai dos conselhos evangélicos é o sentido de renúncia,
renovação de toda a Igreja depende, em grande parte, do ministério sacerdotal» (OT Proémio)
e, por isso, constata a necessidade de adaptar a formação dos futuros sacerdotes às exigências
126
Ibidem, 593.
127
Ibidem, 594.
128
SACROSANCTUM CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II, Decretum de institutione sacerdotal
«Optatam Totius», in AAS 58 (1966) 713-727.
40
Uma formação integral para os futuros sacerdotes inclui necessariamente uma boa
preparação para o celibato e, por isso, o decreto dedica-lhe especificamente o número 10.
Este, dedicado à formação dos seminaristas, pode ser dividido em três partes, as quais
correspondem precisamente aos seus três parágrafos: «perspetiva bíblica do celibato; opção
«os alunos que, segundo as santas e constantes leis do próprio rito, seguem a
veneranda tradição do celibato sacerdotal, sejam preparados com diligente cuidado
para este estado, no qual por amor do reino do Céu, renunciando à união da família
(cf. Mt. 19, 12), aderem com amor indiviso ao Senhor muito em conformidade com a
nova Aliança, dão testemunho da ressurreição da vida futura (cf. Lc. 20,36)» (OT
10).
realidade do reino do Céu, que de qualquer modo determinou esta renúncia; em segundo lugar
pela possibilidade de aderir ao Senhor “com um amor indiviso”; e em terceiro lugar pela
possibilidade de receber uma ajuda para uma generosa doação ao ministério pastoral»131.
renúncia aos bens terrenos aparece como um pressuposto para uma verdadeira adesão a Jesus
na vida futura, pois «o celibato anuncia o tempo em que o homem será libertado da carne e da
129
Agostino MAYER, «La formazione al celibato nel Decreto ”Optatam totius”», in Seminarium, 7 (1967) 681.
130
Cf. Ibidem, 692.
131
Damiano MARZOTTO, «Sulla natura del celibato sacerdotale», 595.
132
Agostino MAYER, «La formazione al celibato nel Decreto “Optatam totius”», 692.
41
morte para viver do Espírito na glória. Consequentemente, o celibato apresenta-se não apenas
amor entre Cristo e a Sua Igreja (cf. Ef. 5, 32 ). Compreendam, porém, a excelência maior da
virgindade consagrada a Cristo» (OT 10). Neste contexto, é importante mencionar que,
aquando da aprovação do presente decreto pelo Concílio, estava também a ser ultimada a
constituição Gaudium et Spes134, sobre a Igreja no mundo atual, a qual no seu primeiro
nova conceção da sexualidade como valor humano positivo, o celibato eclesiástico não pode
ser apresentado com os mesmos argumentos tradicionais», por isso, o Concílio reconhece a
sacerdotal. No entanto, o celibato sacerdotal apresenta-se como uma «excelência maior» pela
Senhor por uma inteira doação de corpo e alma» (OT 10). É pertinente observar a
futuramente, «quanto mais o clérigo seja física, psíquica e afetivamente maduro tanto mais
133
Ibidem, 694.
134
SACROSANCTUM CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II, Constitutio Pastoralis de Ecclesia
in mundus huius temporis «Gaudium et Spes», in AAS 58 (1966) 1025-1115.
135
Cf. António-Luis PRIETO, Celibato pelo Reino de Deus, 94.
42
poderá efetuar seguramente a opção livre do celibato no confronto com a vida matrimonial e
ser «prevenidos para os perigos que ameaçam a sua castidade, sobretudo na sociedade do
nosso tempo» (OT 10). Estes perigos parecem facilmente percetíveis, atendendo à crescente
seu progressivo aumento se justifica «não só por causa da acentuada vida hedonista, mas
também pela falsa ideologia que circula contra o valor do celibato sacerdotal»137. Portanto,
face a esta realidade, que pode dificultar uma opção segura e perseverante pela castidade
formação sólida e integral que, para além dos auxílios divinos, inclua também os auxílios
humanos, os quais devem ser assistidos pelos contributos fundamentais das ciências
conciliares, evidenciaram na redação deste parágrafo a sua preocupação com dois problemas
significativos: «um concerne à objeção difusa de que o celibato possa constituir um dano para
social; o outro refere-se à constatação, não rara, da ausência no Seminário de uma adequada
136
Agostino MAYER, «La formazione al celibato nel Decreto ”Optatam totius”», 703.
137
Ibidem, 706.
138
Ibidem, 705.
43
matrimónio implica realmente verdadeira compreensão da sexualidade humana, que
compromete também a sua valorização como parte constituinte da pessoa. Por isso, a
autêntica integração da renúncia, pelo célibe, passa por uma auto-educação que deve envolver
«uma educação do coração, dos afetos, dos sentimentos, da abertura aos outros, numa palavra,
a vida dos sacerdotes, as bases da identidade, missão e vida dos presbíteros. Pela sua
configuração com Jesus Cristo, o presbítero participa na missão pastoral que Cristo confiou
aos apóstolos, cooperando com o seu bispo e trabalhando pela edificação da Igreja 142. Por
isso, o Concílio reconhece que o modo mais conveniente de servir esta missão é em estado
por explicitar que «a continência perfeita e perpétua por amor ao reino do Céu, recomendada
por Cristo Senhor, generosamente aceite e louvavelmente observada através dos séculos e
mesmo em nossos dias por não poucos fiéis, foi sempre tida em grande estima pela Igreja,
especialmente na vida sacerdotal» (PO 16). Neste número, à semelhança dos documentos
19, 12, ou seja, como uma perfeita continência por amor ao reino do Céu. Esta continência
139
Ibidem, 708.
140
Ibidem, 710.
141
SACROSANCTUM CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II, Decretum de Presbyterorum
ministério et vita «Presbyterorum Ordinis», in AAS 58 (1966) 991-1024.
142
Cf. WENGER, Antoine, A Igreja do presente e do futuro, 508.
44
consagrada, para além de favorecer a «perfeição da caridade para com Deus e o próximo»
(LG 45), é também «sinal e estímulo da caridade pastoral e fonte singular de fecundidade
espiritual no mundo» (PO 16). No entanto, o próprio Concílio reconhece, também, que a
continência perfeita, apesar do seu valor sublime, em si «não é exigida pela própria natureza
do sacerdócio, como se deixa ver pela prática da Igreja primitiva e pela tradição das Igrejas
orientais» (PO 16). A lei do celibato aplica-se, de facto, apenas à Igreja latina, pois o Concílio
manifesta claramente no presente decreto que «de forma alguma deseja mudar a disciplina
contrária, legitimamente vigente nas Igrejas orientais» (PO 16), reconhecendo inclusive o zelo
Tendo em conta que, realmente, o celibato não é exigido pela natureza do sacerdócio e
que, inclusivamente, os presbíteros das Igrejas orientais dão um bom testemunho da vivência
sua ligação com o sacerdócio acentua-se. Face a esta questão, o Concílio salienta que o
celibato se «harmoniza por muitos títulos com o sacerdócio», porque «toda a missão
morte, suscita no mundo pelo seu Espírito e tem a sua origem, “não no sangue, nem na
vontade da carne, nem na vontade do homem, mas em Deus” (Jo 1, 13)» (PO 16). Ora,
seguindo esta linha de reflexão, «se o sacerdócio está ao serviço da regeneração do alto, tanto
que
143
Damiano MARZOTTO, «Sulla natura del celibato sacerdotale», 597.
144
Ibidem.
45
«pela virgindade ou pelo celibato observado pelo reino do Céu, os presbíteros
consagram-se por um novo e excelente título a Cristo, aderem a Ele mais facilmente
com um coração indiviso, n´Ele e por Ele mais livremente se dedicam ao serviço de
Deus e dos homens, com mais facilidade servem o Seu Reino e a obra da regeneração
sobrenatural, e tornam-se mais aptos para receberem, de forma mais ampla, a
paternidade em Cristo. Deste modo, manifestam ainda aos homens que desejam
dedicar-se indivisamente ao múnus que lhes foi confiado, isto é, de desposar os fiéis
como um só esposo e apresenta-los como virgem casta a Cristo» (PO 16).
Estas razões confirmam que a perfeita continência facilita a adesão dos sacerdotes,
com um amor indiviso, a Jesus Cristo e ao serviço da perfeita caridade para com o seu Corpo
místico, a Igreja, pois os sacerdotes, «fazendo as vezes do Bom Pastor, encontrarão no próprio
exercício da caridade pastoral o vínculo da perfeição sacerdotal, que conduz à unidade da vida
e ação». (PO 14) Mas, para além desta fundamentação cristológica e eclesiológica, é ainda
perfeita continência «tornam-se sinal vivo do mundo futuro, já presente pela fé e pela
caridade, em que os filhos da ressurreição não se casam nem se dão em casamento» (PO 16).
Concílio «aprova e confirma novamente» a lei do celibato, imposta e em vigor na Igreja latina
(cf. PO 16). Aos sacerdotes que aderem livre e generosamente ao celibato é proposto que
reconheçam «tão insigne dom que lhes foi dado pelo Pai e tão claramente é exaltado pelo
Senhor», pois quanto mais difícil se apresenta a observância da perfeita continência por amor
com toda a Igreja a graça da fidelidade, que nunca é negada aos que a suplicam» (PO 16).
experiência da Igreja e não menos necessárias no mundo de hoje» (PO 16), como meio para
os sacerdotes perseverarem fiéis na observância da sua consagração a Deus, que parece tão
46
2.4. Sacerdotalis Caelibatus
A encíclica Sacerdotalis Caelibatus, promulgada pelo papa Paulo VI, na festa de São
celibato sacerdotal, sendo para além disso, a única que se dedica exclusivamente ao tema.
Paulo VI revelou sempre uma «conceção austera do sacerdócio, entendido como sacrifício,
obediência, fidelidade, inclusivamente heroísmo, aos olhos do mundo»145. Pois, para este
Pontífice, ao aceitar a opção pelo celibato, o sacerdote une-se mais perfeitamente a Cristo,
oferecendo a sua vida, «marcada com sinais de holocausto» (SaCae 29). Nos inícios do seu
mas, após o Concílio, vai-se notando uma progressiva adaptação do seu discurso à realidade
vivida no seio da Igreja, onde o aumento de defeções no sacerdócio e na vida religiosa atingia
salientará que as duas conceções não se excluem uma à outra, antes se complementam149, e
do sacerdócio»150.
145
, Giselda ADORNATO, Pablo VI El coraje de la modernidad, San Pablo, Madrid, 2010, 209.
146
Cf. Ibidem.
147
Ibidem, 208.
148
Cf. Mauro PIACENZA, «Enseñanzas pontificias sobre el celibato», 154.
149
Cf. Giselda ADORNATO, Pablo VI El coraje de la modernidad, 210.
150
Ibidem.
47
A presente Encíclica surge como cumprimento da promessa feita por Paulo VI aos
Padres conciliares: «imprimir novo lustre e novo vigor ao celibato sacerdotal nas
circunstâncias atuais» (SaCae 2). A sua finalidade é realmente apresentar uma fundamentação
constituído por 99 números e apresenta duas partes gerais, precedidas por alguns pontos
na vida da Igreja; e o celibato e os valores humanos. A segunda parte expõe uma reflexão
apologia da disciplina secular, mas oferece uma visão de amplos horizontes teológicos, aberta
ao desenvolvimento futuro»151.
fundamentais valores humanos e a dimensão relacional da pessoa. Com efeito, a opção pelo
celibato é apresentada como «escolha duma relação pessoal mais íntima e completa com o
mistério de Cristo e da Igreja, em prol da humanidade inteira» (SaCae 54), que não exclui os
valores humanos, pelo contrário, tem-nos como pressuposto para o serviço a Deus e à
151
Krzystof CHARAMSA, “EL principal texto del Magisterio sobre el celibato sacerdotal es una encíclica de Pablo
VI. ¿Cuáles son sus enseñanzas más importantes?”, in Arturo CATTANEO, ¿Curas casados?, RIALP, Madrid,
2011, 56.
152
Cf. Ibidem.
48
homem e contribui para a sua madurez e perfeição com a compreensão e controle de si
ordem ao celibato «deve ser, antes de tudo, a formação de uma personalidade equilibrada,
forte e madura»154, que não nega o recurso ao contributo das novas ciências, mas que recorre
primeiramente a meios sobrenaturais. Pois, «não se pode separar o celibato de uma ascese
A pretensão de Paulo VI não foi impor uma palavra definitiva e normativa, mas abrir
horizontes à reflexão, pois ele reconhece que «nunca como hoje o tema do celibato sacerdotal
foi com tanta agudeza examinado, sob todos os aspectos – no plano doutrinal, histórico,
se bem que as palavras, de quando em quando, as tenham traído» (SaCae 5). Neste sentido,
para se alcançar uma profunda e verdadeira compreensão do celibato sacerdotal, que vincule o
celibato sacerdotal à participação na missão sacerdotal de Cristo, o papa deixa um convite aos
2.4.1. Objeções
«conserva todo o seu valor mesmo nos nossos tempos, caracterizados por uma
profunda transformação na mentalidade e nas estruturas. Mas, no clima atual de novos
fermentos manifestou-se a tendência, e até vontade expressa, de pedir à Igreja que
torne a examinar esta instituição característica, cuja observância, segundo alguns, se
153
Ibidem, 59.
154
Ibidem, 60.
155
Ibidem.
49
tornou problemática e quase impossível no nosso tempo e no nosso mundo» (SaCae
1).
Muitos dos argumentos contra o celibato procedem da ideia hedonista que vê a pessoa
célibe como alguém diminuído nas suas faculdades psico-afetivas156. Ora, Paulo VI reconhece
as interrogações características dos novos tempos e decide abordar o tema de forma frontal,
encarando as dificuldades diretamente e dando-lhe uma resposta. Não se trata, portanto, como
já referido, de impor uma palavra normativa, mas de propor uma doutrina teologicamente bem
fundamentada.
que essa implica […] à luz da verdade que é Cristo – e a identificar consequentemente – as
principais objeções contra a lei do celibato eclesiástico unido ao sacerdócio» (SaCae 1 e 5).
Por meio destas palavras, verificamos a atenção e importância dadas ao tema bem como a
pretensão de frontalidade, lealdade e verdade na sua abordagem. Neste sentido, o Papa segue
enunciando sete objeções ao celibato sacerdotal, as quais expõem que: o celibato não é
exigido no NT o, pois o NT não exige o celibato dos ministros sagrados, apenas o propõe
como carisma particular; a opção dos Padres da Igreja pelo celibato pode ser associada a um
ministerial e celibato aparece questionável, dado o facto de que nem todos os que são
realização da vontade de Deus; o celibato pode ser causa de infidelidade, a qual poderia ser
colmatada pelo testemunho matrimonial; o estado célibe pode violentar a natureza humana,
assentando esta objeção na ideia de que a vida célibe é nociva à personalidade humana do
156
Cf. José H. Barros de OLIVEIRA, Tesouros em vasos de barro, 175-201.
50
padre; por fim, a sétima objeção salienta a inadequada formação dos candidatos ao
sacerdócio, que se pode traduzir numa opção pouco madura e consciente (Cf. 5-11).
mais no nível doutrinal, o que pode ser prejudicial para os outros dois, pois logicamente só
depois de se resolver a questão a nível doutrinal é que se poderá proceder ao nível jurídico-
humanos, a Encíclica revela que a sua finalidade primeira passa por «repropor uma imagem
harmonia com a reflexão resultante do Vaticano II, enraizando similarmente o seu discurso no
objeções, de forma positiva, evidenciando que o problema não se resolve de forma simplista,
pois, se por um lado, a abolição do celibato evitaria alguns escândalos, surgiriam outros com a
realidade do divórcio dos padres casados. De igual modo, a escassez do clero é um tema
complexo, não se devendo focar apenas os motivos no carisma do celibato, mas também na
redução do número de filhos nas famílias hodiernas. Para o Papa, o problema fulcral nas
Igreja, numa dimensão de amor pleno, alimentado pela Palavra de Deus e pelos sacramentos,
sobretudo na Eucaristia161. É, de facto, segundo esta perspetiva, que o Papa responde a estas
teológica do celibato.
157
Cf. Damiano MARZOTTO, «Sulla natura del celibato sacerdotale», 599.
158
Cf. Ibidem.
159
Ibidem.
160
Cf. Salvatore GAROFALO, «Introduzione alla lettura dell´Enciclica “Sacerdotalis caelibatus”», in Seminarium
49 (1967), 767.
161
Cf. José H. Barros de OLIVEIRA, Tesouros em vasos de barro, Seminário do Coração de Maria, V.N. Gaia,
1999,176.
51
Apesar de todas estas objeções que parecem asfixiar o testemunho fiel e alegre de
tantos sacerdotes através dos séculos, este testemunho persiste ainda no presente, onde muitos
clérigos vivem o celibato consagrado de modo voluntário, «não por desprezo do dom divino
da vida, mas por amor superior à vida nova que brota do mistério pascal» (SaCae 13). Por
isso, atendendo a esta realidade, o Sumo pontífice confirma, nesta Encíclica, que «a lei
para uma maior participação na sua missão aparece como conveniente que os seus seguidores
regeneração da humanidade para uma vida nova, onde o estado virginal é um dom resultante
dignidade primitiva do matrimónio, mas abriu também um novo caminho para que o ser
humano se possa entregar a Ele e ao Seu Reino de um modo especial (cf. SaCae 20). Portanto,
virgindade e sacerdócio remete àqueles que pretendem participar na sua missão, para uma
doação total de si mesmo que se deve manifestar num contexto histórico concreto. Esta
vontade de Cristo dá-se dentro da história e garante ao celibato não uma «colocação fora da
162
Damiano MARZOTTO, «Sulla natura del celibato sacerdotale», 601.
163
Cf. Ibidem.
52
história, tendencionalmente existencialista, mas um contexto profundamente dinâmico e intra-
histórico»164. Estabelecendo-se, deste modo, a opção pela perfeita continência como uma
resposta à caridade para com Deus e com os irmãos. Por seu lado, a fundamentação
entrega do sacerdote ao serviço de Cristo e do seu Corpo místico165. Tal como Cristo se
apresenta como ideia geral a dom do celibato pelo reino do Céu como sinal, antecipação da
vida futura166.
porque «o celibato ministerial é um facto com profundas raízes teológicas, cujo pleno
Igreja in terris, Esposa Sua e sacramento universal de salvação»168. Portanto, a profunda razão
do celibato sacerdotal não se centra numa mera disciplina eclesial, mas aparece sobretudo
Neste ponto, o papa faz uma breve observação sobre o problema do celibato na
história da Igreja. Despois de recordar o antigo testemunho dos Padres orientais e ocidentais,
quanto à livre vivência do dom da perfeita continência, é salientado que a Igreja aceitou e
difundiu esta prática a partir do século IV, a qual foi sancionada solenemente pelo Concílio
164
Ibidem, 603.
165
Cf. Ibidem, 603.
166
H. Barros de OLIVEIRA, Tesouros em vasos de barro, 159.
167
Cf. António ARANDA, «La encíclica Sacerdotalis caelibatus, cincuenta años después», 413.
168
Ibidem.
53
Ecuménico de Trento e só por fim inserida no Direito Canónico. O Pontífice relembra o
recente magistério dos seus predecessores, os quais confirmaram a lei do celibato, mas
liberalmente pelo Pai, desde que os participantes do sacerdócio de Cristo pelo sacramento da
Ordem, e toda a Igreja, humilde e insistentemente o peçam» (SaCae 44). Com efeito, verifica-
se uma implicação de toda a Igreja para o alcance deste precioso dom, dirigido ao mundo,
pois se é dever de toda a Igreja ser sinal do dom de Deus é também Seu dever trabalhar pela
presença desse sinal170. Apesar das aparentes dificuldades da vigência da perfeita continência
nas circunstâncias atuais, Paulo VI afirma que precisamente «o mundo em que vivemos,
valores e das conquistas humanas, tem neste momento, necessidade urgente do testemunho de
vidas consagradas aos mais altos e sagrados valores espirituais» (SaCae 46). De facto, o
na força do reino do Céu, afirma que a raiz do problema não está na obrigação da lei do
Deus e do que é sacro nos indivíduos e nas famílias, e na perda da estima pela Igreja como
da Encíclica indica que o problema de fundo inerente à escassez das vocações sacerdotais é
bem mais amplo e merece uma reflexão mais profunda, porque as dificuldades não se
169
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal: Uma perspectiva actual, Cristiandad, Madrid, 2004, 81-88.
170
Cf. Juan María URIARTE, El celibato: Apuntes antropológicos, espirituales y pedagógicos, Sal Terrae,
Maliaño, 2015, 103-107.
54
problema na dificuldade em viver os ideais cristãos no meio de uma atmosfera social onde tais
qual sublinha a falta de experiência conjugal dos sacerdotes como causa de lesões físicas e
aportam obstáculos e problemas, mas tais renúncias são verdadeiramente respeitadoras dos
valores humanos. Mais, o próprio «sacrifício do amor humano, tal como é vivido na família,
feito pelo sacerdote por amor de Cristo, é na realidade homenagem singular prestada a esse
amor» (SaCae 50). Com efeito, o dom do celibato é dom da graça divina, e «a graça não
destrói nem violenta a natureza - pelo contrário- eleva-a e dá-lhe capacidade e vigor
o celibato é também uma maneira de viver a sexualidade172. Portanto, não é correto que a
ciência afirme que o celibato, por razões afetivas, físicas e psíquicas é nocivo à maturidade
madura, é uma clara expressão de liberdade humana173. Por seu lado, a eleição de um estado
de vida célibe por amor a Deus, de forma totalmente livre, comporta naturalmente a
volitiva como conjunto unitário da pessoa»174. Pois, a maturidade afetiva da pessoa traduz-se
numa madura abertura a um amor oblativo até à doação total de si mesmo, em perfeita
171
Walter KASPER, El sacerdote, servidor de la alegría, Sígueme, Salamanca, 2009, 75.
172
Juan María URIARTE, El celibato, 69.
173
André-Marie JERUMANIS, «¿La perfecta continencia que se pide en el celibato, no es nociva para el equilibrio
psicofísico e la madurez de la personalidad humana?», in Arturo CATTANEO, ¿Curas casados?, RIALP, Madrid,
2011, 69.
174
Ibidem.
55
liberdade interior, exercida no domínio de si e em plena disponibilidade para a missão 175. De
facto, pela sua criação à imagem e semelhança de Deus, «o homem não é somente carne, e o
instinto sexual não é tudo nele. O homem é também e sobretudo inteligência, vontade,
liberdade e, graças a estas faculdades, é e deve ter-se como superior ao universo: elas tornam-
no senhor dos próprios apetites físicos, psicológicos e afetivos» (SaCae 53). A dimensão
sexual não pode ser reduzida à genitalidade, aos instintos, deve antes ser compreendida nos
sexuais, pode conduzir à maturidade afetiva e unificar a pessoa, libertando ao mesmo tempo o
coração para causas mais nobres e universais177. A opção pelo celibato é a opção por uma vida
de maior intimidade com Jesus Cristo e essa relação não exclui a expressão dos valores
humanos. Trata-se de eleger uma adesão a Cristo com todo o seu ser e «que uma pessoa tenha
uma orientação, uma opção, em sua vida e que as demais dimensões de seu ser sejam
convergentes com ela é uma componente importante da sua maturidade e, portanto, da sua
riqueza178. A dimensão de uma vida em perfeita continência pode então, segundo esta
perspetiva, facilitar a maturidade humana da pessoa bem como ajudá-la a viver a própria
solidão.
Outro aspeto acentuado pela Encíclica é precisamente a solidão dos sacerdotes. A vida
sacerdotal é também marcada pela solidão, todavia, esta «não é solidão vazia, porque está
plena de Deus e da superabundante riqueza do Seu Reino» (SaCae 58). Neste sentido,
podemos entender que «a solidão sexual do célibe cristão não é uma solidão eleita por si
mesma nem somente para construir-se uma personalidade autónoma e harmónica, constitui,
antes, a solidão necessária para viver um encontro privilegiado, o encontro com o Senhor»179.
E, realmente «uma adequada dose de solidão não pode ser vista como fonte de dificuldades
175
Ibidem.
176
Ibidem.
177
José H. Barros de OLIVEIRA, Tesouros em vasos de barro, 219.
178
Juan María URIARTE, El celibato, 77.
179
Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 57.
56
para o sacerdote, mas como valiosa oportunidade para o recolhimento e para a oração, a
exemplo de Jesus, que com frequência sabia retirar-se sozinho para orar»180. A solidão pode
então ser positiva e fecunda, na medida em que está inserida numa verdadeira espiritualidade,
na relação íntima com Deus, mas para tal, pressupõe-se que o sacerdote possua uma boa
formação em ordem a viver e a compreender a sua solidão de forma salutar, superando-a pelo
exercício da perfeita caridade. Através desta perspetiva, vemos que, na verdade, o sacerdote
não está só, mas unido intimamente a Cristo, que suportou também dolorosamente a solidão e
o abandono, e conta também com a «solicitude de seu pai em Cristo, o Bispo, com a
fraternidade íntima dos irmãos no sacerdócio e com o conforto de todo Povo de Deus» (SaCae
59).
primeira parte se verifica um tratamento teórico, na segunda parte sobressai uma abordagem
de ordem prática. Mais do que expor um conjunto de conselhos teóricos, a Encíclica apresenta
podemos identificar, nesta segunda parte, dois problemas de ordem prática: a inadequada
formação sacerdotal e a infidelidade ao celibato. Por seu lado, os meios apresentados para a
perseverança são de ordem tradicional: oração, zelo pastoral, ascese e a prudência nas
relações apostólicas181.
Paulo VI relembra que o Concílio Vaticano II deixou normas e critérios para uma
adequada formação dos futuros sacerdotes, os quais incluem «uma harmonia com o progresso
180
Arturo CATTANEO, «¿No tiende el celibato a causar soledad y frustración en la vida de un sacerdote», in
Arturo CATTANEO, ¿Curas casados?, RIALP, Madrid, 2011,105.
181
Cf. Damiano MARZOTTO, «Sulla natura del celibato sacerdotale.», 606.
57
exatamente como objetivo «formar uma personalidade digna de um homem de Deus», de
modo, que os ajude a alcançar uma «personalidade equilibrada, forte e madura, síntese de
com cristo» (SaCae 60-70). De facto, para o alcance desta sã personalidade, não é de admirar
harmonicamente o plano da graça com o da natureza». (SaCae 64). A perseverança numa vida
celibatária evidencia realmente certas dificuldades, por isso, apenas uma autêntica
sacerdote – com a ajuda de Deus – viver o celibato com relativa facilidade e com profunda
alegria de espírito»182.
(SaCae 67) e uma opção madura e consciente por uma vida célibe. Efetivamente, a formação
«ascese particular e própria, superior à que se pede aos demais fiéis […]
humildade e obediência como expressão de verdade interior e de liberdade ordenada;
prudência e justiça; fortaleza e temperança, virtudes sem as quais não pode existir vida
religiosa verdadeira e fecunda; sentido de responsabilidade; de fidelidade e de
lealdade; no assumir das próprias obrigações; despreendimento e espírito de pobreza
que dão tom e vigor à liberdade evangélica; e castidade conquistada com perseverança
e de harmonia com todas as outras virtudes naturais e sobrenaturais; contacto sereno e
182
Krzystof CHARAMSA, «EL principal texto del Magisterio sobre el celibato sacerdotal es una encíclica de Pablo
VI», 60.
183
Cf. José H. Barros de OLIVEIRA, Tesouros em vasos de barro, 203.
58
seguro com o mundo a cujo serviço o candidato se irá dedicar por Cristo e ao Seu
Reino» (SaCae 70).
com formação procedente das ciências humanas, não visa somente os candidatos ao
sacerdócio, mas também os sacerdotes, pois trata-se de uma dimensão que exige formação
O sacerdote deve estar realmente consciente de que uma boa formação, nas diversas
dimensões, resultará sempre num bem para o Povo de Deus. Por isso, como sublinha a
mesmo, a qual implica em grande parte mortificação, ou seja, “morrer” para si mesmo para
renascer para uma vida nova com Cristo184. Esta abnegação é um despojamento ascético, no
entanto, a verdadeira ascese não é mais que «colocar todo nosso afeto na relação com Cristo,
num trato de familiaridade com Deus e de paixão com Ele»185. Ora, este amor a Deus não se
fecha em si mas reflete-se sempre num amor esponsal ao Seu Corpo místico, de forma, que a
autêntica ascese espiritual há-de converter num grande espaço afetivo, numa capacidade de
O mundo moderno deu realmente grande importância «ao valor positivo nas relações
humanas, mas multiplicou também as dificuldades e riscos nesta matéria» (SaCae 73). Com
184
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 131.
185
Juan María URIARTE, El celibato, 128.
186
Cf. Stefano GUARINELLI, ¿El celibato de los sacerdotes: Por qué elegirlo todavía?, 2015, 104.
59
efeito, as dificuldades inerentes à observância da perfeita continência, sendo transversais a
todos os tempos, exigem uma contínua vigilância contra as seduções. Face a estas tentações, a
Encíclica demonstra a necessidade de recurso a «normas ascéticas, que estão garantidas pela
experiência da Igreja e que não são menos necessárias nas circunstâncias atuais do que o
foram noutros tempos» (SaCae 74). Aconselha-se ao sacerdote o cultivo de uma intensa vida
Santíssima Eucaristia, vivida no drama da Sagrada Liturgia, animada por terna e esclarecida
devoção à Virgem, Mãe do Sumo e eterno sacerdote e Rainha dos Apóstolos» (SaCae 75). O
vida espiritual, conforme ao espírito de Cristo, e a vigência desta vida espiritual comporta
aos discípulos um modelo de vida espiritual, retirando-se para orar em silêncio, ensinando-
lhes a orar, sem muitas palavras, mas em todas as ocasiões e sem desfalecer. Com efeito, é
fundamental que o padre cultive a sua vida interior através da oração, a qual não é separável
da escuta189. Pois, «a escuta constitui, o primeiro exercício da oração cristã; se, pelo contrário,
se reza unicamente falando a Deus, acaba-se por viver a oração com sentimento de frustração
e chega-se a acusar a Deus de se manter em silêncio diante de nós»190. A escuta orante é, por,
187
Walter KASPER, El sacerdote, servidor de la alegría, 75.
188
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 234.
189
Cf. Enzo BIANCHI, A los presbíteros, Sígueme, Salamanca, 2012, 32.
190
Ibidem.
60
conseguinte, a atitude daquele que se disponibiliza para ser servidor da Palavra e se
Homem for capaz de escutar a Deus no seu coração é que poderá escutar verdadeiramente os
lectio divina surge com vital para a meditação espiritual do sacerdote, pois ela é na verdade «o
lugar de celebração da aliança, porque na lectio Deus fala ao Homem e na oração é o crente
celebração dos sacramentos, para além de um serviço à comunidade, são igualmente um ponto
das horas na vida espiritual do sacerdote, pois esta é de vital importância para ordenar o
evitando deixar-se dominar pelo tempo e pelo ativismo195. A liturgia das horas é na verdade
observância do celibato do sacerdote, explicitando claramente dois aspetos que devem estar
uma caridade para com os irmãos em perigo (cf. SaCae 79-81). O celibato proporciona
medida em que contribui para a vida comunitária do clero, que permite maior espírito de
191
Walter KASPER, El sacerdote, servidor de la alegría, 31.
192
Enzo BIANCHI, A los presbíteros, 33.
193
Cf. SACROSANCTUM CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II, Constitutio de Sacra Liturgia
«Sacrosanctum Concilium», in AAS 56 (1964) 97-139.
194
Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 37.
195
Ibidem, 34.
196
Ibidem, 36.
61
equipa e mais acrisolada caridade pastoral»197. Mas, por seu lado, a observância do celibato é
Ordem, de modo que se pressupõe uma «perfeita comunhão de espírito entre os sacerdotes, e
79), pois todos participam na mesma missão: a «edificação do Corpo de Cristo» (PO 8). A
comunhão fraterna deve ser exatamente reflexo de uma profunda contemplação da comunhão
entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, de tal modo, que o sacerdote possa «ver o outro como
“dom de Deus para mim”, dom precioso que me concede viver em plenitude; não é em vão
efetivamente uma dimensão comunitária, por isso, o presbítero só vive realmente a sua missão
Nesta família fraterna, há o dever de uma responsabilidade reciproca entre todos, na qual «os
sacerdotes têm a obrigação de ajudar os que possam estar a passar por dificuldades na sua
vocação. E uma forma de mostrar afeto humano e sobrenatural pelos irmãos, que correm
caridade ardente entre eles, uma vez que têm mais necessidade de amor, de compreensão, de
para a Igreja. Só entre 1964 e 1969 foram apartados do ministério sacerdotal mais de 13 000
197
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 63.
198
Enzo BIANCHI, A los presbíteros, 53.
199
Gisbert GRESHAKE, Ser sacerdote hoy: Teología, praxis pastoral e espiritualidad, Sígueme, Salamanca, 2006,
458.
200
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 247.
62
padres, isto é, mais de 2 000 por ano201. Todavia, os números não abalaram a confiança de
Paulo VI numa conceção exigente e austera do sacerdócio, não cedeu quanto à lei do celibato,
pois acreditava que a qualidade espiritual dos sacerdotes se traduziria num aumento em
número (cf. SaCae 99). Quanto ao grande número de sacerdotes que deixaram o ministério, o
sobre o próprio celibato, mas sobre o facto de se não terem avaliado a tempo, de modo
como os ministros sagrados vivem a sua consagração total» (SaCae 83). Tendo em conta estas
levou-o a determinar que «a investigação das causas que tem por objeto a ordenação
sacerdotal fosse ampliada a outros motivos gravíssimos» (SaCae 84). Na verdade, muitos
daqueles que se apartaram do ministério já estão tão psiquicamente marcados que não é digno
julgá-los, por isso, a Igreja como Mãe misericordiosa reconhece a necessidade de fazer de
tudo para os reconciliar com Deus202. Foi com este sentimento que o Papa pediu
paternalmente aos bispos: «não percais nunca de vista os sacerdotes que abandonarem a casa
de Deus, que é a sua própria casa, pois eles serão sempre vossos filhos, seja qual for o
fundamentais para a perseverança dos sacerdotes no seu ministério. A relação do bispo com
colegialidade entre todos os bispos, dirigida pelo Papa, na qual todo sacerdócio participa, em
201
Cf. José H. Barros de OLIVEIRA, Tesouros em vasos de barro, 91.
202
Cf. Bernhard HARING, O Concílio começa agora, Paulistas, Lisboa, 1966, 188.
63
certa medida, como princípio estrutural e eucarístico203. Os bispos estão efetivamente
vinculados aos sacerdotes, e a imposição das mãos feitas aos neo-sacerdotes, pelo bispo e
pelos demais sacerdotes presentes, significa exatamente o motivo da comunhão a ser vivida
intimamente entre o bispo e o presbitério (cf. SaCae 91). Na verdade, a Encíclica desenvolve
esta união em paralelo com a relação de Cristo com os seus apóstolos, pois tal como Cristo
permaneceu unido aos apóstolos, também os bispos estão intimamente unidos aos presbíteros
e servem para eles de exemplo, como especial responsabilidade de estarem atentos à solidão
humana do sacerdote, principal origem de tentação e desânimo, a qual deve ser preenchida
sobretudo pela presença ativa, fraterna e amiga do bispo (cf. SaCae 93). A união do bispo com
o presbitério é a forma mais eficaz da Igreja realizar a missão a que é chamada pela Sua
própria natureza204. Por isso, os bispos devem ser para os presbíteros «mestres, pais, amigos e
ajudar» (SaCae 93), de tal modo, que os sacerdotes «reverenciem neles a autoridade de Cristo
pastor supremo – e – adiram ao seu Bispo com caridade e obediência sinceras» (PO 7). Nesta
«não quebreis a cana fendida e não apagueis a mecha que fumega (Mt 12, 20).
Curai, como Jesus, as chagas (cf. Mt 9, 12), salvai o que se tenha perdido (cf. Mt 18,
11), buscai com ânsia e amor a ovelha desgarrada e trazei-a ao calor do redil (cf. Lc
15, 4.), procurai, como Ele, até ao fim, chamar uma vez mais o amigo infiel (cf. Lc 22,
48)» (SaCae 94).
Por outro lado, também todo o Povo de Deus é evidenciado com responsável pelo
bem-estar dos seus pastores. A virtude sacerdotal é um bem dirigido a toda a Igreja, um
serviço em ordem à salvação, por isso, todos os fiéis devem sentir-se responsáveis pela
203
Ibidem, 177.
204
Cf. Jose Antonio ABAD, Juan Pablo II al sacerdocio, Eunsa, Pamplona, 1982, 248.
205
Damiano MARZOTTO, «Sulla natura del celibato sacerdotale», 608.
64
virtude dos sacerdotes (cf. SaCae 96). O Vaticano II desenrolou-se segundo o sentimento de
conciliar206. O Papa vê os bispos como irmãos e os bispos convidam também os fiéis a que,
com aquela «liberdade e confiança que convém a filhos de Deus e a irmãos em Cristo,
mesmo corpo de Cristo cuja edificação a todos pertence» (PO 9). Consequentemente, os
sacerdotes foram eleitos e separados dos leigos não para formar uma classe mais elevada, mas
para se unirem mais perfeitamente a Cristo e para ficarem mais livres para o serviço aos
irmãos, no meio do mundo207. Ao longo da história, os fiéis vão reconhecendo sempre nos
sacerdotes célibes o profundo amor que estes lhes manifestavam208. Mas, por seu lado,
também os féis são chamados a manifestarem um amor fraternal e filial para com os seus
pastores, através de uma postura ativa, pelo trabalho e pela oração, animando-os e ajudando-
virtude sacerdotal. Estas três dimensões são realmente três pilares fundamentais na vida do
206
Cf. Bernhard HARING, O Concílio começa agora, 180.
207
Cf. Ibidem.
208
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 278.
209
Enzo BIANCHI, A los presbíteros, 51.
65
3. TEOLOGIA DO CELIBATO
Jesus optou por viver em estado célibe, para dedicar-se totalmente à Sua grande causa,
o reino do Céu. Este profundo vínculo entre virgindade e sacerdócio, na vida Jesus Cristo,
leva os Seus discípulos a imitá-Lo na opção pela perfeita continência pelo Reino, sendo
sempre implícita nas demais, apresentando-se as três em estrita relação, pois só a adesão a
Cristo com o coração indiviso pode ser apresentada como razão fundamental para o sacerdote
convenientemente assumida pelo sacerdote, num autêntico sinal escatológico para o mundo.
Todo o celibato cristão encontra o seu mais profundo significado no amor a Jesus
Cristo. Jesus assumiu uma vida célibe por amor ao Pai e à realização do Seu plano salvífico e,
configurar toda sua existência com Cristo, imitando em tudo o Seu exemplo, para de igual
modo se consagrarem à vontade salvífica de Deus Pai 210. Este amor a Deus aparece facilitado
pela observância da perfeita continência, na medida em permite uma maior adesão a Cristo
com o coração indiviso, que se traduz num amor serviçal ao reino do Céu. O exemplo de vida
de Jesus é realmente o ponto de referência dos seus discípulos, que associam essa doação total
sacrifícios e, Jesus deixa o convite em termos claros, não impõe o celibato, mas previne que
210
Juan María URIARTE, El celibato, 103.
66
existência humana. Todavia, o seguimento a Jesus, em estado célibe, não pode ser visto como
iniciativa humana porque é dom de Deus, nem como uma obrigação porque o próprio Cristo
coloca o chamamento numa dimensão de encontro pessoal com Deus, resultando assim a
pública, pois tudo aponta para uma boa integração na cultura judaica, não se evidenciando
estranho e escandaloso ao seu povo: Jesus era solteiro212. Na verdade, o estado celibatário de
Jesus era certamente motivo de escândalo e incompreensão, dado que se compreendia, como
ideal judaico, o estado matrimonial, viver acompanhado por uma esposa fecunda e rodeado de
filhos (cf. Sl 128, 3). Por isso, também, neste contexto, Jesus aparece como sinal de
tradição religiosa e cultural do povo judeu213. É certo que o celibato já era observado por
alguns dos Seus contemporâneos, nomeadamente «grupos marginais como dos essénicos de
Qumran ou dos terapeutas do Egito»214. A opção celibatária destes grupos era alicerçada em
fundamentos espirituais e teológicos, mas acentuava-se numa «pureza ritual extrema – como é
o caso dos monges de Qumran – e na prática do domínio das paixões, no caso dos terapeutas
do Egito»215. Mas, a renúncia de Jesus mostra-se bem distante destas conceções, não se centra
no escrúpulo pela pureza ritual, pelo contrário, Ele comia e bebia com os pecadores e
211
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 113.
212
Cf. José Antonio PAGOLA, Jesus: uma abordagem histórica, 57.
213
Cf. Gianfranco RAVASI, Quem és tu Senhor? Encontros e desencontros com o homem que mudou a história,
Paulinas, Milão, 2011, 87.
214
José Antonio PAGOLA, Jesus: uma abordagem histórica, 57.
215
Cf. Ibidem, 57.
67
A vida célibe de Jesus também não pode ser vista em continuidade com o celibato de
Jeremias ou de João Batista216. A renúncia de Jeremias é resposta ao pedido de Deus para que
renunciasse a uma esposa e aos banquetes de modo que se constituísse sinal de advertência
para a situação de pecado em que vivia o povo judeu. Porém, Jesus segue por outra
perspetiva, reconhece o valor do matrimónio, participa nas bodas e compartilha a mesa com
os pecadores, remetendo sempre para o banquete celeste. Também a renúncia de João Batista
a uma esposa e à continuidade da linha sacerdotal da sua família não é identificável com a
renúncia de Jesus, pois embora tenha passado pelo deserto dedicou a Sua vida pública a
pregar pelas aldeias e cidades a chegada do reino de Deus217. De igual modo, a observância do
celibato não era estimada pelos fariseus, embora, posteriormente a Jesus, um rabino de nome
Simeão ben Azzai tenha optado por uma vida célibe, dedicando a sua vida ao estudo e
observância da Torá218. Esta opção era naturalmente uma contradição aos seus ensinamentos
entrega incondicional à Torá. Todavia, o celibato de Jesus também não pode ser estritamente
entendido segundo esta perspetiva. Pois, Jesus não dedicou a sua vida ao estudo da Torá, mas
consagrou-se inteiramente ao anúncio de uma realidade nova, reino do Céu219. Todas as ações
de Jesus convergiram para esta realidade, ajudando o seu povo a acolher o Reino e dedicando-
se à Sua missão sacerdotal e, por isso, «renuncia à família, porque ela está nos que fazem a
vontade do Pai; abandona a profissão, depois de haver trabalhado durante muitos anos, e
justificação do seu celibato: o amor ao reino do Céu (cf. Mt 19, 12). De facto,
«se Jesus não conviveu com nenhuma mulher não foi porque desprezasse o
sexo ou desvalorizasse a família. Não quis casar para não se distrair da Sua missão ao
serviço do Reino. Não abraçou uma esposa, para se deixar abraçar pelas prostitutas
que iam entrando na dinâmica do Reino, depois de recuperarem, ao pé dele, a sua
216
Cf. Gianfranco RAVASI, Quem és tu Senhor?, 89.
217
Cf. José Antonio PAGOLA, Jesus: uma abordagem histórica, 58.
218
Cf. Ibidem, 59.
219
Ibidem.
220
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 41.
68
dignidade. Não quis beijar filhos que fossem dele, mas abraçou e abençoou as crianças
que vinham a ele, pois via-os como “parábola viva” de como se devia acolher a Deus.
Não criou uma família própria, mas esforçou-se por suscitar uma família mais
universal»221.
A renúncia de Jesus a uma esposa e a uma família de laços de sangue é, portanto, uma
entrega a uma família mais universal que congrega todos os homens e mulheres que fazem a
vontade do Pai. Porém, a imagem do celibato «como a de alguém que se castra pelo reino do
instituiu o sacerdócio ministerial como participação do seu sacerdócio único» (SaCae 19).
Este novo sacerdócio brota do mistério pascal de Jesus Cristo, modelo e protótipo do
explicitando:
221
Ibidem, 60.
222
Gianfranco RAVASI, Quem és tu Senhor?, 92.
223
Ibidem, 92.
69
profundo em Cristo, entre virgindade e sacerdócio, reflete-se também naqueles que
têm a sorte de participar da dignidade e da missão do Mediador e Sacerdote eterno, e
essa participação será tanto mais perfeita quanto o ministro sagrado estiver mais livre
dos vínculos da carne e do sangue» (SaCae 21).
Esta reflexão esclarece alguns pontos basilares para a reflexão cristológica do celibato:
o Verbo encarnou para exercer uma missão sacerdotal de mediação entre o Pai e o Filho; em
harmonia com essa missão Jesus assume uma permanente condição célibe que significa uma
plena doação pessoal; há portanto uma profunda conexão entre a virgindade e o ministério de
ungidos por outros homens. Todavia, em Cristo, surge uma nova realidade onde o próprio
Deus se fez sacerdote e «só Ele se tornava sacerdote por direito próprio, por essência, graças à
cristológica no seu próprio ser sacerdotal, na qual é Ele o modelo e protótipo do sacerdócio226.
Cristo «realiza a Sua missão sacerdotal, não só como Deus, mas também como Homem: é
uma consequência da realidade ontológica da Encarnação, pois todo o Seu agir é ação do
Homem-Deus»227. Por seu lado, a missão sacerdotal de Jesus implicou uma renúncia à
entrega de Jesus é efetivamente «uma oblação contínua»228, pois Ele não ofereceu a Sua vida
tudo a vontade do Pai que pedia uma entrega plena. Na verdade, «Deus fez com a humanidade
224
Cf. António ARANDA, «La encíclica Sacerdotalis caelibatus, cincuenta años después», 415.
225
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 40.
226
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 140.
227
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 40.
228
Ibidem, 41.
70
as núpcias já anunciadas pelos profetas, em que o esposo é Cristo. Por estas núpcias, que são
o celibato, Ele desposa toda a humanidade, num amor dado e recebido, ao nível da dimensão
resultado de uma estima especial de Deus por esta virtude que significa uma especial doação
ao Pai, à causa do Reino e aos irmãos. Por conseguinte, «esta profunda conexão entre o
encontra dos laços da carne e do sangue, mais perfeita é a sua participação na dignidade da
missão de Cristo»230. Esta participação não depende do homem, mas do próprio Deus que
toma a iniciativa e chama a alguns para continuarem a Sua missão sacerdotal, pois «Cristo,
por intermédio dos apóstolos, fez participantes da Sua missão os seus sucessores, os Bispos,
cuja função ministerial foi confiada aos sacerdotes» (PO 2). Os sacerdotes, pela ordenação
forma tão íntima que atuam in persona Christi. Nesta identificação com Cristo, o sacerdote
apesar do carácter sacerdotal se tratar de uma realidade interna implica uma adesão externa
família, mulher e filhos pelo reino de Deus (cf. Lc 18, 29-30). E até recomendou, com
palavras densas de mistério e de promessas, uma consagração mais perfeita ainda, ao reino do
Céu, com a virgindade, em consequência dum dom especial» (SaCae 24). Efetivamente,
«Jesus permaneceu célibe e considerou o celibato pelo reino do Céu como um carisma que
deve existir e ser assumido voluntariamente (Mt 19, 11)»232, não impôs o celibato como
pressuposto para participar no Seu sacerdócio, mas deixou a proposta de uma doação mais
plena. De facto, o sacerdote ao imitar o seu Mestre, configurando-se tão intimamente a Ele, é
229
Ibidem, 43.
230
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 141.
231
Ibidem, 142.
232
Walter KASPER, El sacerdote, servidor de la alegría, 72.
71
imagem do próprio Cristo e, assim o «padre torna-se ontologicamente consagrado para
transmitir ao mundo, na sua pessoa, a imagem de Cristo sacerdote, e quanto mais efetivo for
esse testemunho, quanto mais o padre se configurar a Cristo pelo seu estilo de vida, tanto mais
eficaz será o seu sacerdócio»233. Trata-se, de uma «assunção ontológica da pessoa humana, a
ponto de ficar transformada segundo o modelo divino»234, para desse modo desempenhar a
perfeita caridade para com Deus e os irmãos. Este testemunho de Cristo, Sacerdote eterno, só
mistério Pascal, que incute nos corações dos crentes o desejo de seguir e de imitar Jesus,
numa consagração plena ao serviço do Reino. Por isso, «a escolha do celibato consagrado foi
sempre considerada pela Igreja como sinal e estímulo da caridade: sinal de amor sem reservas,
estímulo de caridade que a todos abraça» (SaCae 24). Na verdade, esta consagração afeta
sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser
no sincero dom de si mesmo» (GS 24), então, só depois da assunção da própria pessoa na
configuração com Cristo, na doação plena de si mesmo, é que o sacerdote se torna dom para o
233
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 44.
234
Ibidem.
235
Ibidem.
72
3.1.3. Configuração a Cristo na renúncia e no sacrifício
não se reduz a uma função, mas é algo que compreende a inteira existência do homem»236,
por isso, o celibato «segundo o exemplo de Cristo» (PO 16) é uma oblação de vida a Deus e
aos irmãos em estado permanente, com um amor pleno e sem reservas. Evidentemente que
esta generosidade exige uma «abnegação de si mesmo no mais alto grau, condição essencial
para o seguimento de Cristo (Mt 16, 24; Jo 12, 25)» (SaCae 70), a qual é em si mesma um
vínculo ontológico que une mais intimamente o sacerdote a Cristo e facilita a sua integração
causa do Reino implica, consequentemente, uma doação da pessoa em toda a sua existência,
pois «Cristo é sacerdote e vítima; configurado a Ele, o padre há-de ser vítima também.
Implica uma imolação total, de conjunto, onde entram sacrifícios permanentes»237. Deste
modo, «o célibe testemunha em sua própria carne a carne do Senhor»238, imitando com a sua
própria vida a entrega oblativa de Jesus à Sua missão Sacerdotal, através da doação e do
sacrifício.
Ao imitar Jesus como uma vida celibatária, o sacerdote constitui-se sinal do próprio
Cristo, onde «para além de manifestar com clareza a superioridade do reino de Deus sobre
tudo o que é terreno, perpetua na Igreja aquela forma perfeita de vida que Cristo escolheu para
si […]. Ele não é apenas um modelo de virgindade, por tê-la vivido de modo exemplar, é
sobretudo, para nós, a sua fonte, a sua razão de ser, o seu princípio e a sua força matriz»239.
consagração total e perfeita a Ele e ao Seu Reino, numa «primazia desse amor que chega a
motivar a condição de não casado, mediante uma renúncia a algo que é bom, santo, bendito,
236
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 143.
237
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 45.
238
Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 54.
239
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 47.
73
como o matrimónio, e ao que, no entanto, se pode renunciar para viver sem distrações nem
preocupação»240. Esta «renúncia perfeita, abraçada pelo reino do Céu» (LG 42) é
tratando-o na dimensão da fé, mas também como renúncia ao matrimónio, para os sacerdotes
mais facilmente aderirem a Cristo «com um coração indiviso» (PO 16). A renúncia do
assimilação interna do ser sacerdotal de Cristo e no dom de si mesmo, pois só assim é que o
sacerdote pode ser imagem do próprio Cristo, dom para o outro. O dom de si mesmo é já por
construção da relação com Cristo, pois o «amor humano reconhece como intrinsecamente
mesmo»241. Todavia, este descentramento de si mesmo, esta renúncia não visa a mortificação
e o sacrifício como valores em si mesmos, mas como meios para uma maior adesão a Cristo.
partir dos pontos teológicos da dimensão cristológica, porque de facto a opção pelo celibato
de forma livre e permanente só pode ser compreendida no contexto cristológico, numa adesão
total a Jesus Cristo. No entanto, verificamos que se junta a esta abordagem uma nova
perspetiva: o amor esponsal de Cristo pela Sua Igreja conforme a doutrina paulina
desenvolvida na carta aos efésios242. Pois, o sacerdote, quando configurado com Cristo, sente-
dimensão eclesial, para além de uma verdadeira disponibilidade para o serviço eclesial, a
240
Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 54.
241
Stefano GUARINELLI, ¿El celibato de los sacerdotes, 101.
242
António ARANDA, «La encíclica Sacerdotalis caelibatus, cincuenta años después», 416.
74
motivação do celibato sacerdotal aparece realmente motivada, sobretudo, pelo amor esponsal
de Cristo pela Sua Igreja. Neste sentido, o celibato dos sacerdotes manifesta-se como uma
onde cada cristão é chamado a ser sinal e testemunho do reino do Céu, mas é particularmente
aos sacerdotes que é pedida a missão apostólica de congregar toda a comunidade na Palavra e
na eucaristia243.
mas junta-a à perspetiva do amor esponsal de Cristo pela Sua Igreja. A Encíclica, desenvolve
assim, a sua reflexão alicerçando-se na doutrina paulina desenvolvida na Carta aos Efésios
«conquistado por Cristo Jesus (Fl 3, 12) até ao abandono total de si mesmo a
Ele, o sacerdote configura-se mais perfeitamente a Cristo, também no amor com que o
eterno Sacerdote amou a Igreja Seu Corpo, oferecendo-se inteiramente por ela, para
tornar Esposa Sua, gloriosa, santa e imaculada (cf. Ef 5, 25-27). A virgindade
consagrada dos sacerdotes manifesta, de fato, o amor virginal de Cristo para com a
Igreja e a fecundidade virginal e sobrenatural desta união em que os filhos de Deus
não são gerados pela carne e pelo sangue (Jo 1, 13)» (SaCae 26).
De facto, «as considerações sobre o vínculo teológico que põe em relação o celibato
ministerial (“a virgindade consagrada dos sagrados ministros”) com o “estado de virgindade”
de Cristo Sacerdote, se estende agora ao que o põe em relação com o mistério da Igreja, como
esposa amada e mãe fecunda»244. Nesta consideração esponsal do mistério da Igreja, a doação
243
Juan María URIARTE, El celibato, 104.
244
António ARANDA, «La encíclica Sacerdotalis caelibatus, cincuenta años después», 417.
75
plena de Cristo-Esposo à Igreja-Esposa é verdadeiramente modelo para que os sacerdotes se
conselho do apóstolo (1 Cor 7, 25) e reconheceu que o celibato como serviço indiviso pelo
reino do Céu e pelas “coisas do Senhor” (1 Cor 7, 33) é muito adequado para o sacerdote»246.
pressupõe inclusive que os bispos e presbíteros sejam homens casados, chefes de família
apostólica deu-se então, primeiramente como experiencia de amor pelo Reino, nos discípulos
e, posteriormente pela Tradição viva da Igreja que reconheceu igualmente essa conveniência.
De facto,
«a opção do celibato para toda a vida veio a ser na experiência dos discípulos
e dos seguidores de Cristo o ato de uma resposta particular ao amor do Esposo divino,
e, por isso, adquiriu o significado de um ato de amor esponsalício: isto é, de uma
doação esponsalícia de si, para corresponder de modo especial ao amor esponsalício
do Redentor: uma doação de si entendida como renúncia, mas feita, sobretudo, por
amor»248.
Para queles que elegem a opção pelo celibato, o reino do Céu tem realmente como
significado especial a revelação da relação esponsalícia de Cristo com a Igreja, a qual é sinal e
a Jesus Cristo corresponde a um dos vários carismas que Deus concede em ordem ao bem
comum (cf. 1 Cor 12), e «confere uma liberdade interior e exterior para o serviço total ao
245
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 52.
246
Walter KASPER, El sacerdote, servidor de la alegría, 73.
247
Cf. Ibidem, 72.
248
JUAN PABLO II, El celibato apostólico, y la resurrección de la carne. Teología del Cuerpo (III), Palabra,
Madrid, 2003, 114.
249
Cf. Ibidem, 112.
76
Evangelho, porque preserva de muitas preocupações quotidianas e de atenções à família (1
Cor 7, 28-35). É uma maneira de “deixar tudo” (Mc 10, 28), para viver plenamente em
comunhão e amizade com Jesus, e deixar-se enviar para onde Ele quiser que seja»250. Neste
sentido, a renúncia ao matrimónio surge como ideal de uma maior consagração a Cristo e ao
reino do Céu, numa relação esponsalícia com a Igreja, não se trata evidentemente de um
desprezo ou negação do valor matrimonial, mas sim de uma maior disponibilidade para servir
uma família universal, por um ideal que justiça essa renúncia: o reino do Céu. Trata-se de
uma resposta ao chamamento de Cristo: «Se quiseres ser perfeito…» (Mt 19, 21), e como «a
perfeição da vida cristã se mede, acima de tudo, com o metro da caridade»252 o exercício da
250
Walter KASPER, El sacerdote, servidor de la alegría, 73.
251
Juan J. BARTOLOMÉ, «“Eunucos a causa del Reino” Mt 19, 12: El celibato, en cuestión», in Salesianum 68
(2006) 287.
252
JUAN PABLO II, El celibato apostólico, y la resurrección de la carne, 105.
77
perfeita caridade pelo reino do Céu é uma forma de maior aptidão para o anúncio do Reino,
pois mesmo «o dinamismo sexual e afetivo que não se centra na relação conjugal, pode ser
empregado no benefício de uma ampla rede de relações, pode ser um dinamismo mais extenso
virginal de Cristo pela Sua Igreja, é sinal visível da graça sobrenatural dessa relação esponsal
e virginal entre Cristo-Esposo e a Igreja-Esposa, pela qual podemos ser chamados filhos de
Deus (cf. LG 2). Pois, «se o Verbo Encarnado se despojou de toda a atadura humana, por
nobre que esta possa ser, para ter uma disponibilidade completa para o ministério que lhe
livremente a algo que é bom e santo em si mesmo, para unir-se dessa forma mais facilmente a
Deus»254.
dedicando-se ao serviço de Cristo e do Seu Corpo místico, em plena liberdade, facilitada pela
sua oferta total, realiza, de modo mais completo, a unidade e a harmonia da vida sacerdotal,
torna-se mais capaz de ouvir a palavra de Deus e de se entregar à oração» (SaCae 27). Esta
evidentemente mais facilitada pela adesão a Cristo com o coração indiviso, numa entrega total
253
Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 55.
254
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 144.
78
«aplicado total e exclusivamente às coisas de Deus e da Igreja» (cf. Lc
2, 49; 1 Cor 7, 32-33), o ministro do Senhor […] encontra na recitação do
Oficio divino, na qual empresta a sua voz à Igreja que ora em união com o seu
Esposo, alegria e impulso incessantes e sente necessidade de ser mais assíduo
na oração, dever eminentemente sacerdotal (cf. At 6, 2)» (SaCae 27).
espiritual: o dom da graça oferecido à Igreja torna-se princípio e apelo de santificação» (PDV
Deus Pai a vítima divina no sacrifício da missa, e a fazer, como ela, a oblação de vida» (PO
5), na qual «o sacerdote se une mais intimamente à oferta, colocando sobre o altar a sua vida
inteira, marcada com sinais de holocausto» (SaCae 29). Pois, «o facto de o próprio Cristo,
eterno Sacerdote, ter vivido a Sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade
constitui o ponto seguro de referência para perceber o sentido da Tradição da Igreja Latina a
tal respeito» (Sac 24), onde se compreende que o sacerdote se une realmente de modo mais
íntimo a Cristo através de uma configuração plena que implique uma doação total da sua
«sacerdote é Cristo presente, daqui a suma conveniência de que ele reproduza em tudo a
imagem de Cristo e lhe siga o exemplo, tanto na vida íntima como na vida do próprio
interpretado sobretudo numa perspetiva eclesial Nesta perspetiva, o papa João Paulo II parece
ser aquele que mais desenvolveu o tema do celibato como relação nupcial entre Cristo e a Sua
79
Igreja255. Para João Paulo II, o sacerdote é verdadeiramente a imagem do amor nupcial de
a Cristo e à Igreja, como expressão de um amor nupcial em que o sacerdote desposa a Igreja,
Corpo místico de Cristo, e lhe dedica o seu amor e serviço. Ao agir in persona Christi o
sacerdote revive o amor sacrificial de Cristo pela sua Esposa, representando na Eucaristia, «o
dom total de Cristo à Sua Igreja, o dom do seu Corpo entregue e do seu sangue derramado,
qual testemunho supremo de ser Cabeça e Pastor, Servo e Esposo da Igreja» (PDV 23), tendo
total de si mesmo, oferecendo toda a sua existência sobre o altar e unindo-se, deste modo,
consequentemente ao Corpo místico de Cristo, a Igreja, instituída por Cristo como sacramento
255
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 146.
80
consagração-missão de todos os membros da Igreja, pois a consagração orienta para a missão,
na sua adesão a Cristo, renúncias e sacrifícios para poder ficar «reservado exclusivamente
para Deus, para o Seu amor e serviço. Mas esta consagração é, no fim de contas, para a pessoa
uma fuga ao mundo, mas, pelo contrário, uma incarnação no mundo como sinal e imagem do
próprio Deus. Todavia, o mundo hodierno, depositando mais confiança na ciência e na técnica
precisa de sinais de Cristo que sejam palpáveis e esta realidade carece consequentemente de
«testemunho para crer, exige vida e não tanto uma ideologia ou uma doutrina. Por isso, a
evangelização deve ser para o sacerdote um serviço quanto possível exclusivo, só assim é que
ele poderá constituir-se verdadeiro sinal. A esta missão com tais características, convém a
A entrega total do sacerdote a Deus e à Igreja é a medida de amor com que o sacerdote
é chamado a servir. Ora, tanto o matrimónio como o ministério sacerdotal exigem um elevado
grau de compromisso, empenho e entrega o que torna difícil a sua conjugação. Se para o
sacerdote casado a principal mediação está na vida matrimonial, para o sacerdote célibe a
256
Cf. Amedeo CENCINI, et al., El presbítero hoy, Benzal, Madrid, 1994, 151.
257
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 52.
258
Ibidem, 56.
259
Cf. Ibidem, 57.
260
Ibidem, 57.
81
O celibato consagrado por amor ao reino do Céu assume-se, assim, como o estado que
permite maior disponibilidade para o serviço a Deus, não quer dizer que o sacerdote não se
realize no matrimónio, mas o estado célibe apresenta-se realmente como o ideal para uma
plena imitação do exemplo de Cristo, onde «o sacerdote na morte cotidiana a toda a sua
pessoa, na renúncia ao amor legítimo de uma família própria, por amor de Jesus e do Seu
Reino, encontrará a glória duma vida em Cristo pleníssima e fecunda, porque como Ele e
Nele, ama e se entrega a todos os filhos de Deus» (SaCae 30). Segundo esta perspetiva, o
disponibilidade para o serviço a Deus, segundo uma plena doação do dom de si ao próximo,
com possibilidade de maior compreensão da diferença do outro, pois «o célibe casto tem a
relação na liberdade, aceitando a alteridade do outro porque é capaz de aceitar inclusive a sua
ausência»261.
pastoral», através do qual os sacerdotes «se dedicam ao serviço de Deus e dos homens, com
mais facilidade servem o Seu Reino e a obra da regeneração sobrenatural, e se tornam mais
aptos para receberem, de forma mais ampla, a paternidade em Cristo» (PO 16). Assim, o
celibato apresenta-se como uma dimensão que facilita uma «singular participação na
paternidade de Deus e na fecundidade da Igreja» (PDV 29), através da qual o sacerdote pode
realizar a perfeita caridade, porque efetivamente na «entrega total que abraça e na renúncia à
transformação total da pessoa humana, implica “deixar tudo”, inclusive o direito de constituir
família para se dedicar exclusivamente a uma família mais universal, à semelhança do que fez
261
Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 55.
262
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 155.
82
Pois, a Igreja torna-se para o sacerdote a sua família, na qual é chamado a exercer a sua
esteriliza o coração do sacerdote, proporciona, pelo contrário, uma entrega vital para o
exercício contínuo da caridade perfeita, que lhe permite fazer-se todo para todos»263.
vertente, como libertação das coisas do mundo para melhor servir a Deus e ao próximo, ou
seja, para o exercício da perfeita caridade. Contudo, é importante recapitular que «não é
apenas libertação pessoal, em benefício da própria união com Deus, ela põe, também, a
263
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 59.
264
PIUS XII, Litterae encyclicae «Sacra virginitas», in AAS 46 (1954) 19-20.
265
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 63.
83
A caridade pastoral, facilitada pela observância do celibato, assume-se, portanto, como
o estado ideal para uma total dedicação ao serviço da comunidade de fiéis, na qual o sacerdote
é chamado a exercer uma a paternidade espiritual com amor universal266. Pois, a renúncia do
com um coração indiviso. E o estado de perfeita continência pelo reino do Céu apresenta-se,
deste modo, como o ideal para o exercício da paternidade espiritual, dado que concede ao
contrário, antes a beneficiou, por isso, beneficia também o sacerdote com a aptidão para um
plena267. De facto, missão a que o sacerdote é chamado consiste essencialmente em ser dom
para os outros, segundo uma paternidade espiritual, a qual parece facilitada pela perfeita
continência, pois na vivência do «celibato o coração é livre para amar a Cristo e aos demais
266
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 156
267
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 66.
268
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 156.
84
3.3. Significado escatológico
estas três dimensões estão realmente vinculadas entre si, de modo, que a abordagem de uma
implica uma íntima correlação entre ambas269. Na verdade, o significado de cada dimensão é
mais facilmente enriquecido e compreendido numa visão de conjunto entre as três dimensões,
onde a adesão a Cristo e ao Serviço do seu Corpo místico se apresenta segundo uma tensão
escatológica.
desenvolve a sua fundamentação segundo dois pontos: a aspiração do povo de Deus pelo
reino celeste e o celibato como sinal dos bens celestes (cf. SaCae 33-34). Efetivamente, tal
como desenvolve a Encíclica, «o reino de Deus, que “não é deste mundo” (Jo 18, 36), está
nele presente, aqui na terra, em mistério e atingirá a sua perfeição com a vinda gloriosa do
Senhor Jesus. A Igreja constitui, aqui na terra, o germe e o início deste Reino […] aspira pelo
Reino perfeito e ambiciona, com todas as forças, unir-se com o seu Rei na glória» (SaCae 33).
Na verdade, toda a missão eclesial se apresenta direcionada para a escatologia, pois a Igreja
está consagrada à missão de ser germe, ou seja, testemunho que chama os homens para a vida
no Espírito270. Esta foi precisamente a perspetiva com que o concílio Vaticano II definiu a
Igreja, em peregrinação para a sua perfeita realização na Pátria celeste, mas constituindo-se
como germe e início do reino de Deus já neste mundo, numa dimensão salvífica e
escatológica271.
credível das realidades celestes. E, o celibato sacerdotal surge como testemunho e antecipação
da vida definitiva em Cristo, na qual quando ressuscitarem dos mortos, nem os homens nem
269
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 69.
270
Cf. Ibidem, 67.
271
Cf. LG 4-9; 48; GS 40.
85
as mulheres contrairão matrimónio, mas serão como os anjos no Céu (cf. Mt 22, 30)272. Nesta
referência bíblica, verificamos que Jesus se refere a uma «condição de vida, sem matrimónio,
união perene com Deus»273. Com efeito, a vivência da perfeita continência pelo reino do Céu
“estado”, isto é, o modo próprio e fundamental da existência dos seres humanos, homens e
orientação para o futuro estado escatológico dos filhos de Deus, é uma recordação da
peregrinação para essa vida futura, onde se gozará de afetos espirituais resultantes da eterna
Caridade, sem mediação da carne275. Por isso, o celibato sacerdotal «recorda aos presbíteros
que a castidade perfeita constitui um inestimável dom de Deus à Igreja e representa um valor
profético para o mundo atual» (PDV 29). O celibato é, então, anúncio da chegada do reino de
Deus e profecia do retorno de Jesus, testemunho de que este mundo não é a pátria definitiva,
compreender a orientação escatológica da vida humana e a realidade da vida futura que Deus
nos promete, de modo que se torna difícil atribuir um significado escatológico a toda a nossa
futura plenitude dos filhos de Deus, na vida eterna. Todavia, apresenta-se como difícil, para o
Esta realidade apresenta muitas causas, sendo de destacar duas delas: o ambiente
272
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 68.
273
Juan Pablo II, El celibato apostólico, y la resurrección de la carne, 73.
274
Ibidem, 76.
275
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 71.
276
Cf. Juan María URIARTE, El celibato, 97.
86
estímulos sexuais e eróticos, que se verifica e que progressivamente se acentua na sociedade
atual, exige, para além de uma profunda preparação dos sacerdotes para uma vida célibe, um
enquanto sinal escatológico, num ambiente que idolatra os prazeres carnais em detrimento das
humana, bem como das realidades celestes277. Paulo VI, consciente desta realidade, salienta
que
um «sinal profético para o mundo moderno, um sinal do Reino que há-de vir […] dando
testemunho disso como seu próprio estilo de vida, levando esperança, em igual medida a
crentes e não crentes, na ressurreição a uma vida futura na glória»278. Cristo testemunhou de
modo perfeito, com a Sua morte e ressurreição, a existência da vida futura em Deus e a
realidade dos bens celestes, os sacerdotes participando na Sua missão ministerial são também
chamados a continuar esse testemunho. É, por conseguinte, com esta finalidade que o celibato
«transforma o sacerdote em testemunho profético daquela vida futura onde reina a paz e a
justiça e em que os eleitos se tornarão conformes ao Corpo glorioso de Cristo, faz entrar o
277
Cf. Walter KASPER, El sacerdote, servidor de la alegría, 74.
278
Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 156.
87
sacerdote de um modo mais específico na missão da Igreja, que é chamar e conduzir os
qual os sacerdotes participam e perpetuam, sendo então delegada aos sacerdotes a missão de
serem sinal do reino de Deus no mundo, trabalhando pela realização escatológica de todos os
filhos de Deus. Para tal missão, é importante que o sacerdote empenhe toda a sua existência
na causa do Reino, a partir da qual, «a disponibilidade para ser enviado a qualquer parte sem
ter que olhar pela própria família, responde a uma Igreja que se prepara para um novo
europeu, envolto num ambiente hedonista e materialista, onde o Homem anda distraído com
tantos afazeres, assume-se uma grande necessidade de reevangelização281. E para que «esta
nova evangelização seja efetiva, é preciso o compromisso radical do Evangelho. […] E, desde
o ponto de vista histórico, um dos elementos mais importantes nesta obra de evangelização foi
propulsor de disponibilidade pastoral para a evangelização, pois embora não seja fundamental
para adesão a Cristo e para o serviço apostólico, facilita a disponibilidade para a missão.
sacerdotal considerando-o como testemunho e sinal vivo da vida futura283. Então, através
desta perspetiva, o sacerdote é chamado a dar testemunho da vida futura, «já presente, pela fé
e pela caridade» (PO 16), constituindo-se, assim, o celibato sacerdotal, como uma
279
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 68.
280
Walter KASPER, El sacerdote, servidor de la alegría, 74.
281
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 158.
282
Ibidem.
283
Cf. OT 10; PO 16.
284
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 71.
88
caridade para com o próximo, pois a construção da comunidade celeste começa já no
esperando que Deus transformará este mundo num mundo melhor, o sacerdote não só
antecipa, para si mesmo, a realidade da vida futura, como constitui-se sinal escatológico para
os demais285.
dos dons celestes, na sua caminhada terrena, e ao mesmo tempo, “ainda não” os possuir na
plenitude. Esta tensão entre o “já” e “ainda não” como esperança pela vida futura expressa a
natureza escatológica da Igreja, na qual o sacerdote tem a missão de anunciar o reino de Deus,
testemunhar, em si, a parusia»286. Este testemunho é mais do que uma renúncia aos bens
terrenos, é sobretudo o esforço de dar, quanto possível, a dimensão da vida futura a este
futuro em que se dará a consumação do presente. Desta forma, o «celibato afirma o “ainda
não”, como disposição interior que se visibiliza na continência sexual e que o celibato
possibilidade de anunciar visivelmente, com a sua própria existência, Aquele que vem e
universal, no Céu, é conveniente que o padre procure trilhar, desde já, esse caminho e
proclamar o Reino futuro com o exemplo da sua vida que é sem dúvida o melhor
demais, de modo que possa realmente ser sinal escatológico, profecia do reino de Deus e, para
285
Ibidem.
286
Ibidem.
287
Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 53.
288
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 71.
89
tal missão, verificamos que o celibato sacerdotal facilita a adesão a Cristo e concede maior
reino do Céu, pois apenas esta dimensão escatológica permite ao Homem compreender o
mas antes como um testemunho de que Deus basta para a realização da felicidade humana.
Para além disso, o celibato sacerdotal testemunha também ao mundo que o significado mais
profundo do Homem não se encontra nos bens passageiros, a morte não é o fim, mas o início
da vida futura, recordando, assim, aos cristãos a sua vocação baptismal e a sua identidade
cristã289.
homem de grande fé e esperança, capaz de assumir os seus valores deste mundo e de lhes dar
realidades futuras, que o sacerdote já vive em si mesmo, é testemunho de que o valor absoluto
e definitivo reside somente em Deus. Deste modo, «o presbítero sente e testemunha a pobreza
de quem, por Ele e pelo Seu Reino, renuncia aos apoios humanos tão “normais” e tão vitais.
289
Cf. Thomas MCGOVERN, El celibato sacerdotal, 158.
290
Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 73.
90
Assume uma situação vital “anormal” como sinal da sua confissão do absoluto de Deus e da
urgência do Seu Reino291. Através desta “vida anormal”, o sinal escatológico do celibato
como sinal eloquente a expressão bíblica: «o reino de Deus está entre vós» (Lc 17, 21). Pois,
o célibe pelo reino do Céu, entrega-se plenamente a Deus como corpo oferecido em sacrifício
vivo (cf. Rm 12, 1), despojando-se de qualquer apego aos bens terrenos que o distraia da sua
missão sacerdotal, assumindo a solidão e a pobreza sentenciada pelo próprio Cristo: «o Filho
do homem não tem onde reclinar a cabeça» (Mt 8, 20) como dimensão existencial própria
daquele que se doa inteiramente ao serviço do reino de Deus292. Esta condição, só pode
realmente ser compreendida por um amor pleno ao Reino, no qual o sacerdote «na sua forma
de vida “anormal”, mantém visível como sinal o estímulo de que é possível edificar sobre
uma “promessa”, a saber, sobre a promessa do Reino, na qual encontrará satisfação todo o
realiza-se mediante a livre aceitação daquele que recebe esse dom294. Efetivamente, o dom do
celibato não fecha o sacerdote à realização pessoal ou ao amor, pelo contrário, a graça de
Deus concede ao sacerdote a plenitude da sua realização humana, através da sua paternidade
liberdade para amar a Cristo, em corpo e alma 295. Consequentemente, é através do amor pleno
a Cristo que o sacerdote procede a uma aposta absoluta na causa do Reino, mediante uma
consagração voluntária em estado célibe, expressando, deste modo, ao mundo a sua própria
experiencia interior do Reino, e mais que revelando um ato íntimo de fé testemunha uma
291
Juan María URIARTE, El celibato, 107.
292
Cf. Enzo BIANCHI, Ser presbítero hoy, 59.
293
Gisbert GRESHAKE, Ser sacerdote hoy, 379.
294
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 73.
295
Cf. Thomas McGovern, «La teología del celibato», in Juan Luis Lorda, El celibato sacerdotal:
Espiritualidad, disciplina e formación de las vocaciones al sacerdocio, Eunsa, Pamplona, 2009, 34.
91
realidade que ele próprio vive em toda a sua existência296. Deste modo, a perfeita continência
esperança na vida futura em Deus não é abstrata ou uma mera ilusão, mas sim uma opção
segura por uma realidade, que existe já entre nós e se consumará em plenitude na vida futura.
Esta fé é realmente uma segurança espiritual que possibilita um eloquente zelo pastoral ao
serviço do Reino, porque aquele que a possui «edifica sobre uma promessa e vive dessa
promessa»297.
Jesus coloca o convite à opção voluntária pela perfeita continência numa perspetiva
escatológica, mas esse convite tem implicações já na realidade presente. Assim, o convite de
Jesus torna-se um chamamento a uma doação plena, ou seja, ao «amor como disponibilidade
e a realidade da vida eterna. Neste sentido, o sacerdote célibe apresenta-se efetivamente como
Ora, este “aguilhão na carne”, ao longo de toda a vida, torna-se precisamente uma
Deus, de recordar a consagração na fé e na esperança Àquele que chama e que guarda até à
realização plena dos filhos de Deus (cf. 2 Tm 1, 12). Segundo esta perspetiva, o celibato
296
Gisbert GRESHAKE, Ser sacerdote hoy, 380.
297
Ibidem, 379.
298
Juan Pablo II, El celibato apostólico, y la resurrección de la carne, 113.
299
Gisbert GRESHAKE, Ser sacerdote hoy, 382.
92
sacerdotal apresenta-se efetivamente como um sinal profético do Reino escatológico, já
iniciado neste mundo. É certo que o sacerdote já é sinal escatológico, pela natureza do
300
Cf. Silvério GUIMARÃES, Opção de amor total, 77.
93
CONCLUSÃO
sacerdotal, no AT, parece ter tido grande influência na desvalorização da figura dos
sacerdotes em detrimento dos profetas e dos escribas, devendo-se esta realidade a uma
valorização gradual da castidade, onde Deus foi educando o Seu Povo numa linha progressiva
embora de uma maneira muito própria, pela castidade. É certo que o judaísmo não conseguiu
simples condição inerente à pureza ritual. Mas, percebemos, através destes elementos, que a
legislação judaica parece não ter tido influência no apreço cristão pela perfeita continência,
pois tal eleição nos cristãos fundamenta-se numa opção de amor por Cristo e não em questões
meramente funcionais.
A missão sacerdotal de Jesus levou-O a assumir uma vida célibe, sem esposa nem
filhos, numa entrega total à Sua grande causa, o reino do Céu. Compreendemos, por isso, que
Jesus estabeleceu uma verdadeira fraternidade com os seus discípulos, afirmando-se esta
dimensão como motivo principal para os discípulos viverem também em perfeita continência,
à semelhança do seu Mestre. Não obstante alguns pormenores fornecidos pelo NT, não temos
realmente certezas quanto ao estado dos apóstolos, se eram casados ou solteiros, mas o que
constatamos neste trabalho e que importa denotar é que os discípulos parecem ter vivido em
perfeita continência após o encontro com Jesus. Consequentemente, o apreço pela castidade
assume um caráter apostólico pelo Reino. De facto, concluímos neste capítulo que tal
94
Atentando em alguns pontos-chave, na evolução histórica da disciplina do celibato,
Outro aspeto que comprovamos refere-se à sintonia entre Ocidente e Oriente até ao século V,
generalização da continência a todo o clero demasiado severa, optando então por impô-la
Igrejas. Mas, o Concilio não acedeu ao seu pedido, por considerar que as Igrejas orientais não
possuíam ainda uma maturidade suficiente para receberem a plena lei do celibato. Este
Concílio, ao publicar uma instrução que afirmava a proibição do matrimónio aos clérigos já
clero, sendo consequentemente interessante denotar que, através desta instrução, as Igrejas
católicas orientais fizeram com que a disciplina da continência do clero, nas referidas Igrejas,
voltasse à praxis dos primeiros séculos da Igreja ocidental, comprovando-se assim que o
apreço pela perfeita continência no Oriente parece ter-se revigorado ao longo dos séculos.
celibato, na Lumen Gentium, apresenta inclusive conceitos que serão posteriormente alicerces
95
para os demais documentos, os quais demonstram conjuntamente uma grande preocupação
antropológica, através da qual, podemos perceber que o celibato não é, de forma alguma,
contra os valores humanos, pois a graça não destrói a natureza, apenas lhe dá capacidade e
vigor, mas claro que tal opção exige sempre uma opção livre por uma entrega total a Deus.
Pois, embora os meios sobrenaturais sejam a base para uma personalidade madura, não se
pode igualmente prescindir de uma harmonização da graça com o contributo das várias
ciências.
A vida sacerdotal exige uma permanente vigilância e renovação, para tal vigilância, o
recurso às normas de ascese aprovadas pela experiência eclesial, a oração e a ascese, como
para a vida espiritual do sacerdote. Ao longo da nossa reflexão identificamos três pilares
perigo, realizando uma correção fraterna discreta, mas eficaz. A paternidade do bispo,
exercida numa verdadeira comunhão com os sacerdotes, revelou-se também como a forma
mais eficaz da Igreja realizar a sua missão. Pois, os bispos são verdadeiramente os principais
fidelidade ao seu ministério. Para além disso, também os fiéis têm grande responsabilidade
96
para com os seus pastores, devendo manifestar-lhes sempre uma amor filiar, ajudando-os a
superar os obstáculos da vida sacerdotal e a perseverar na sua missão. A vivência destes três
pilares é, na verdade, o grande desafio a que a Igreja é chamada, ou seja, a viver uma
autêntica comunhão em todos os seus membros, onde as diferenças não se contradizem, mas
serviço ao outro.
dimensão profundamente ampla que merece uma séria atenção, e possivelmente uma maior
objeções.
significado teológico do celibato, propósito que parece ter sido alcançado na nossa reflexão.
Pois, comprovamos que o exemplo de vida de Jesus Cristo foi de tal modo eloquente que
levou os seus discípulos a uma configuração total com o seu Mestre, a qual implica toda a
existência, uma doação total que leva à renúncia ao matrimónio e à paternidade segundo a
carne. Compartilhar o mesmo estado de vida de Jesus é, também, viver como Ele viveu, célibe
pelo reino do Céu, por isso, tal opção é vista pela Igreja como um profundo sinal e estimulo
inseparáveis, só a adesão a Cristo como valor absoluto pode estar na base da fundamentação
Igreja. Tal como Cristo amou e se entregou totalmente pela Igreja, assim, também os
sacerdotes, como participantes na Sua missão sacerdotal, desposam a Igreja num amor
97
esponsal. Segundo esta perspetiva, entendemos que o celibato é na verdade uma experiência
espiritual milenar da Igreja pós-apostólica, que assumiu a perfeita continência como serviço
indiviso ao reino do Céu. A experiencia dos discípulos de Jesus é continuamente uma resposta
ao amor do Divino Esposo, num amor esponsal, numa doação plena que se converte em
celibato, quando assumido devidamente pelo sacerdote, por ser um verdadeiro sinal
escatológico para o mundo, advento das realidades celestes. Através do qual, o sacerdote se
constitui um sinal eficaz do Reino, testemunhando na sua própria carne, em toda a sua
comunhão com os fiéis apresentam-se de facto como três dimensões essenciais na vida
sacerdotal. Por isso, julgamos que, numa perspetiva futura, seria oportuno um
aprofundamento específico destas dimensões, bem como uma investigação empírica sobre a
resultados que permitam compreender mais claramente a lógica e excelência desta profunda
98
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OGGIONI, Giulio, «Il celibate sacerdotale: aspetti escatologici », in Seminarium 49 (1967) 808-
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693-806.
103
ÍNDICE
Siglas .......................................................................................................................................... 2
Resumo ...................................................................................................................................... 3
Abstract ..................................................................................................................................... 3
Introdução ................................................................................................................................. 4
104
2.4. Sacerdotalis Caelibatus .................................................................................................. 47
Conclusão ................................................................................................................................ 94
Bibliografia .............................................................................................................................. 99
105