N. 140 (2024) LITERATURA DE ENTRETENIMENTO
N. 140 (2024) LITERATURA DE ENTRETENIMENTO
N. 140 (2024) LITERATURA DE ENTRETENIMENTO
Trimestral.
Continuação de: Revista da Universidade de São Paulo
Descrição baseada em: N. 93 (2012)
ISSN 0103-9989
119 Conto de fadas: origens, conceitos e reflexões sobre o gênero Sandra Trabucco Valenzuela
textos
137 Direitos humanos na América Latina: entre insurgência e libertação César Augusto Costa
145 O que é cultura? Reflexões para uma sociedade (pós-)pandêmica José Ricardo Vitória
e Magnus Luiz Emmendoerfer
arte
158 Na raiz do tempo, a matriz da cor Claudinei Roberto da Silva
livros
179 Diplomacia e progresso Wagner Kotsura
Conselho Editorial
ALBÉRICO BORGES FERREIRA DA SILVA
CICERO ROMÃO RESENDE DE ARAUJO
EDUARDO VICTORIO MORETTIN
EUGÊNIO BUCCI (membro nato)
FERNANDO LUIS MEDINA MANTELATTO
FLÁVIA CAMARGO TONI
FRANCO MARIA LAJOLO
JOSÉ ANTONIO MARIN-NETO
OSCAR JOSÉ PINTO ÉBOLI
Jurandir Renovato
6 REVISTA USP • SÃO PAULO • N.92 • P. XX-XX • DEZEMBRO/FEVEREIRO 2011-2012
Domínio público/Wikimedia Commons
literatura de
entretenimento
Apresentação
Além da literatura para entretenimento
A
exemplo do que suce- Felipe, Oscar Nestarez, Ricardo Ian-
deu em outras opor- nace, Romy Schinzare, Sandra Reimão
tunidades, este dossiê e Sandra Trabucco Valenzuela pela
resultou do produ- seriedade e rigor com que prepararam
tivo diálogo com o os artigos. Agradeço em particular a
editor da Revista Jurandir Renovato pela oportunidade
USP, Jurandir Reno- de somarmos vozes na discussão em
vato. Desde o início, torno do que se convencionou chamar
a ideia fora reunir de “literatura(s) de massa”.
ensaios de caráter Assim como os autores do dossiê,
introdutório sobre as presumo que as narrativas de ficção
modalidades e temas científica, as distopias, as histórias
encontrados na prosa de detetive, os romances góticos e a
dita “comercial”, que circula entre nós. literatura de horror não precisam (nem
Os artigos oferecem ótimas sínteses. podem) ser reduzidos a meros produtos
Foram produzidos por escritores e estu- de consumo, voltados exclusivamente
diosos competentes que tencionam soar para passar o tempo.
didáticos – ou seja, claros e objetivos Bastaria considerar a riqueza dos
– sem perder de vista a densidade que cenários imaginados pelos escritores;
as matérias merecem. Trata-se de con- a complexidade das personagens que
tribuições efetivas estendidas a novos criaram; os artifícios empregados pelos
leitores e a pesquisadores que já inves- seus narradores etc. para desconfiarmos
tigam esses gêneros e temas literários. que determinados rótulos não compro-
Sou muito grato a Caio Alexandre metem a qualidade literária nem invia-
Bezarias, Cleber Vinícius do Amaral bilizam a composição de tramas de ele-
vado alcance, capazes não somente de méride, esperamos que os ensaios sejam
entreter, mas de estimular outras formas úteis e estimulem a realização de novas
de ref lexão sobre nosso tempo e lugar. empreitadas, dentro e fora da academia.
Este dossiê marca um século da pri-
meira edição do romance Nós, de Iêvgueni
Zamiátin. Para além de celebrar a efe- Jean Pierre Chauvin
Este texto está dividido em duas partes: This paper is divided into two parts: in part
na parte I abordamos as origens e as I we address the origins and characteristics
características do gênero policial e na of the detective fiction literature and in part
parte II, a literatura policial escrita por II we address detective fiction literature
brasileiros. Em cada uma dessas partes written by Brazilians. In each of these parts,
há três subdivisões, assim organizadas: there are three subdivisions organized as
Edgar Allan Poe e o nascimento do follows: Edgar Allan Poe and the birth of
gênero policial; Sherlock Holmes, de the detective genre; Conan Doyle’s Sherlock
Conan Doyle, e Hercule Poirot, de Agatha Holmes and Agatha Christie’s Hercule Poirot;
Christie; Sobre o policial noir (parte I); Em On the detective fiction noir (part I); Around
torno do detetive brasileiro; Brasil: sobre the Brazilian detective; Brazil: on crime and
crimes e culpas; A expansão da literatura guilt; The expansion of Brazilian detective
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons
policial brasileira no século XXI (parte II). fiction literature in the XXIst century (part II).
T
é desvendado, se encerra a narrativa.
Edgar Allan Poe (1809-1849), o criador
da literatura policial, desenvolveu o cha-
oda narrativa policial apre- mado policial de enigma e seus textos nesse
senta um crime, um delito, gênero são os exemplos mais expressivos
e alguém disposto a des- dessa forma narrativa.
vendá-lo, mas nem toda
narrativa em que esses
elementos aparecem pode
ser classificada como poli- Este texto retoma, em partes e com modificações, vá-
rios trabalhos anteriores que publiquei sobre o tema,
cial. Isso porque, além da
especialmente os livros O que é romance policial (1990) e
presença desses elementos, Literatura policial brasileira (2005).
é preciso haver uma deter-
minada forma de articular
a narrativa, de construir a
relação do detetive com o SANDRA REIMÃO é professora da
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
crime e com a narração, para que uma nar- (EACH) da USP e autora de, entre outros,
rativa possa assim ser considerada. Literatura policial brasileira (Zahar).
já foi resolvido por Holmes. Watson atua- cada em 1920. Geralmente, os textos que
ria como o detetive do detetive. Se Holmes têm Poirot como personagem central seguem
investiga um crime, Watson, para elaborar uma linha mais clássica do romance de
a narrativa, segue as pistas de Holmes a enigma, são textos que seguem mais fiel-
respeito da investigação e as transmite ao mente os modelos criados por Poe e Conan
leitor; Watson investiga e tenta compreender Doyle. Em alguns desses textos encontramos
o processo de investigação de Holmes. Se o Capitão Hastings, que atua como amigo,
Holmes visa elucidar um crime, Watson, companheiro e memorialista narrador dos
por seu turno, visa esclarecer e transmitir feitos de Poirot. Hastings, assim como Wat-
o processo de investigação desse crime. son e o narrador anônimo das aventuras
Além disso, Watson, enquanto narrador, de Dupin, tornou-se narrador a pedidos.
é um narrador-personagem, sua visão dos Hastings, como Watson, é um narra-
fatos é parcial, ele sabe tanto quanto o leitor dor-personagem, o narrador com a visão
médio. Esse fato facilita ao leitor identificar- “com”, aquele que sabe tanto quanto as
-se com esse narrador, a fim de que possa personagens. E Hastings será a “pior” das
seguir a narrativa compartilhando os pontos personagens, aquela que demora mais tempo
de vista de Watson. para encontrar as explicações dos aconte-
cimentos. Mas, muitas outras vezes, fica
*** patente para o leitor que Hastings está sendo
Não se sabe ao certo o número de textos ludibriado e, assim, o leitor adianta-se a
escritos por Agatha Christie (1891-1976), esse narrador-personagem, que é basica-
isso devido às diferenças entre as edições mente “aquém-leitor médio” em relação à
inglesas e americanas e ao fato de um sua capacidade intelectual.
mesmo grupo de contos ser muitas vezes Para Hercule Poirot o trabalho de inves-
encaixado de forma diferente, em volumes tigar é composto, assim como era para Hol-
diferentes. Agatha Christie escreveu, apro- mes, tanto do trabalho de dedução mental
ximadamente, 61 romances, 165 contos e 14 (“as células cinzentas”), quanto do trabalho
textos para teatro (concebidos originalmente empírico (reconstruir pistas etc.). Com ênfase
para teatro ou teatralizados por ela mesma); para a primeira atividade, Poirot sempre diz:
além disso, escreveu mais oito textos sob “O verdadeiro trabalho é feito aqui dentro
outros nomes (Mary Westmacott e Aga- nas pequenas células cinzentas”.
tha Christie Mallowan). Seus romances e Outro detetive criado por Agatha Christie
contos deram material para muitos filmes, é a fascinante Miss Jane Marple, uma gen-
seriados televisivos e montagens teatrais. til, pacata e refinada, mas simples, velhi-
Cerca de 30 romances, 57 contos e seis nha inglesa, brilhante e certeira quando
peças teatrais de Agatha Christie têm como se trata de conhecer a natureza humana e
protagonista Hercule Poirot. Esse detetive desvendar suas ações.
belga, vaidoso e refinado, com caracterís-
ticas francesas, foi o primeiro criado por ***
Christie, tendo aparecido inicialmente na Ao analisarem o gênero, vários estu-
narrativa “O misterioso caso Styles”, publi- diosos já assinalaram o caráter apazi-
ram o modelo narrativo da literatura que esses dois “vícios” são o cenário de
policial clássica têm algo a ver com uma muitas histórias em que o delegado se
difusa ideia de brasilidade: exacerbação envolve e dão ocasião para muitas de suas
dos sentimentos e da sexualidade, mis- deduções e achados.
ticismo, ingenuidade e limitação intelec- Os procedimentos de Espinosa ao buscar
tual, e, lembremos, essas especificidades esclarecer um determinado crime estão pró-
são, na maioria das vezes, assinadas em ximos das formas de atuação dos detetives
chave cômica. Como que a indicar que do chamado romance policial clássico ou
quanto mais brasileiro for uma persona- policial de enigma, pois Espinosa sem-
gem, mais patente se torna a discrepância pre utiliza métodos racionais de investi-
entre esta e a literatura policial enquanto gação. Além disso, apesar de um pouco
modelo transposto, e mais necessária ainda cínica, a personagem é basicamente gen-
se torna a chave cômica para assinalar e til – praticamente nunca recorre à vio-
ao mesmo tempo dar a dimensão dessa lência física. Apesar de ser um detetive
defasagem. dedutivo-racional, ele não pode ser clas-
Mais de 50 anos após a criação do sificado como um gênio ou uma infalível
detetive Mello Bandeira, em 1996, Luiz máquina de raciocinar. Trata-se apenas de
Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), o princi- um indivíduo bom, tentando fazer o certo.
pal escritor brasileiro de literatura policial, E é nessa especificidade que esse dete-
publicou seu primeiro livro com o prota- tive assinala sua distância com o modelo
gonista Espinosa – O silêncio da chuva. do protagonista da narrativa de enigma
Mais uma vez um detetive protagonista clássica. Sua falta de genialidade intelec-
que se distancia do modelo máquina de tual, sua capacidade cognitiva mediana
raciocinar clássico. A seguir vieram os não comprometem sua busca por justiça
livros Achados e perdidos, Vento sudoeste, – mostrando que o perfilar-se ao bem
Uma janela em Copacabana, Perseguido, pode estar acessível a qualquer pessoa.
Espinosa sem saída, Na multidão, Céu de
origami, Fantasma, Um lugar perigoso e
A última mulher. Brasil: sobre crimes e culpas
A cidade do Rio de Janeiro coprota-
goniza, junto com Espinosa, essas nar- Em O mistério, primeira narrativa poli-
rativas. Nascido e criado no Rio, o dele- cial brasileira, em que pese o caráter bas-
gado Espinosa mora sozinho há mais de tante debochado do texto, não deixa de
dez anos (sua ex-mulher mudou-se com o ser curioso notar que essa narrativa relata
filho para os Estados Unidos) no último um “crime justo”, ou seja, um crime que
andar de um prédio de três andares sem o autor admite ter cometido e que todos
elevador e seu apartamento está repleto sabem que ele está dizendo a verdade,
de livros. O delegado, que sabe ter pouca mas todos também acreditam haver jus-
resistência à bebida alcoólica, tem dois tificativas morais suficientes para o ato
grandes vícios/hobbies: colecionar livros e criminoso. Ao final de O mistério, o réu
andar pelo Rio de Janeiro antigo. É claro confesso é absolvido, o que transforma o
de 30 anos. Gabriel está assustado com o que matava quadros (1961) e A ideia de
anúncio e seu aniversário está chegando. matar Belina (1968).
Depois da conversa com Espinosa, a amiga Na década de 1980, um escritor brasi-
que levara Gabriel para conversar com o leiro, do qual algumas obras podem ser
delegado é assassinada. Há uma série de perfiladas no âmbito da literatura poli-
assassinatos de pessoas próximas a Gabriel. cial, alcançou grande sucesso de público:
Dona Alzira, mãe do rapaz, acha que o Rubem Fonseca. Em seguida ao romance
filho está possuído pelo demônio e pede A grande arte, publicado em 1983, Rubem
ajuda a um padre, que não acredita em Fonseca publicou Bufo & Spallanzani, em
sua interpretação. Há uma versão final 1986, também literatura policial, também
“oficial” para explicar os crimes, mas, com grande repercussão.
no seu íntimo, o delegado Espinosa tem Na década de 1990, vemos surgir mais
outra interpretação para os fatos: para ele três grandes autores de literatura policial:
o criminoso é outro, só que, como diz, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Patrícia Melo e
“o que eu acho é muito fantasioso para Tony Bellotto. Dessa autora, destaquemos
constar de um inquérito policial [...] Pas- Acqua Tofana e O matador, de 1994 e
sado algum tempo, acho que ele vai me 1995. Tony Bellotto criou uma série com o
procurar [...] Não sei o que virá primeiro: detetive Bellini, na qual se destaca Bellini
a confissão ou a loucura”. e a esfinge, publicado em 1995. A partir
Esta falta de uma interpretação final uní- dessa época, aumenta o número de edito-
voca, de um desvendamento claro e inequí- ras com coleções de literatura policial e
voco que geraria um tranquilizador veredito cresce bastante o número de autores bra-
capaz de delimitar a culpa de um crime sileiros no gênero.
aos criminosos e transgressores, faz com Nas décadas finais do século XX e pri-
que, neste aspecto, os romances policiais de meira década do século XXI houve um
Garcia-Roza possam ser vistos em diálogo crescimento do mercado editorial brasileiro
com clássicos da literatura policial noir. em números absolutos. O grande cresci-
mento do mercado de livros no Brasil (pro-
A expansão da literatura cesso que cessou a partir de 2014) se deu
de maneira correlata a uma maior aceita-
policial brasileira no século XXI
ção, por parte do público leitor, do autor
de ficção nacional: altas frequências em
Após a narrativa inaugural da literatura feiras de livros, presença em listagens de
policial em terras brasileiras, O mistério, mais vendidos, destaque em prateleiras de
publicada em 1920, esse gênero literário livrarias são atestados do crescimento do
manteve-se constante, porém bastante dis- interesse do leitor de ficção pela atividade
creto no país, com poucos escritores e de escritores brasileiros, em contraposição
não muitas obras deste perfil – com pou- ao escritor estrangeiro.
cas exceções, como os contos policiais de O crescimento do mercado de livros no
Luiz Lopes Coelho reunidos nos volumes Brasil e da aceitação do autor brasileiro
A morte no envelope (1957), O homem são dados que emolduram e configuram
REFERÊNCIAS
N
UM TRATADO PRECURSOR? tantos pés quantos pés forem necessários
para se obter uma cela maior.
O apartamento do inspetor ocupa o centro;
a segunda carta do tra- você pode chamá-lo, se quiser, de aloja-
tado O panóptico, publi- mento do inspetor” (Bentham, 2000, p. 18).
cado em 1785, Jeremy
Bentham detalhava a Em suas cartas, Bentham destacava aspec-
concepção e as múlti- tos relativos ao éthos dos criminosos e à natu-
plas utilidades da ins- reza dos seus atos, julgados com maior ou
talação. Meticuloso, o menor rigor segundo variados graus de tor-
jurista descrevia o com- peza. Decerto, o seu relato a frio, de caráter
plexo arquitetônico nes- tecnicista e despido de compaixão (endereçado
tes termos: a um correspondente infenso a uma maior
sensibilidade), produz efeitos bem outros sobre
“O edifício é circular. o leitor de nosso tempo, maiormente se levar
Os apartamentos dos em conta as diferentes réguas que orientam
prisioneiros ocupam a circunferência. Você determinadas penas aplicadas pela justiça.
pode chamá-los, se quiser, de celas.
Essas celas são separadas entre si e os prisio-
neiros, dessa forma, impedidos de qualquer
comunicação entre eles, por partições, na JEAN PIERRE CHAUVIN é professor
livre-docente da Escola de Comunicações
forma de raios que saem da circunferência e Artes (ECA) da USP e autor de, entre
em direção ao centro, estendendo-se por outros, Mil, uma distopia (Editora Luva).
bólicos2 , para não serem detectados pelos os transeuntes em geral: “Exibiu-se o pri-
sistemas de controle3. Publicado em 1909, meiro preso, um homem preto, perplexo, de
o conto “A máquina parou”, de Edward roupas simples, olhos inquietos. Provavel-
Morgan Forster, inicia-se nestes termos: mente estava lá para dentro antes; mancava
“Imagine, se puder, um pequeno quarto, um pouco, era dócil, obediente e assustado.
hexagonal como a célula de uma colmeia. Olhos discretos observaram o dia do preso”
A iluminação não vem de alguma janela, (Ângelo, 1980, p. 174).
nem de uma lâmpada e, no entanto, um Em outros casos, a reificação consiste
brilho suave espalha-se por todo o lugar. em padronizar os seres humanos desde sua
Não existem aberturas para ventilação e, no clonagem em laboratório, como sugerem os
entanto, o ar é fresco” (Forster, 2018, p. 17). capítulos iniciais de Admirável mundo novo:
Há variadas formas de restringir e “Agitou de novo a mão, e a Enfermeira-Chefe
confinar as gentes, já que nem toda prisão baixou uma segunda alavanca. Os gritos das
é revestida por barras de ferro ou grades crianças mudaram subitamente de tom. Havia
de aço, sob a mira das torres de vigilância. algo de desesperado, de quase demente, nos
Essas estruturas podem ser replicadas em urros agudos e espasmódicos que elas então
moradias transparentes, que desnudam a já soltaram” (Huxley, 2017, p. 41).
reduzida privacidade do sujeito, devassando Cenas claustrofóbicas como essas tam-
o que resta de sua intimidade, como acon- bém são percebidas nas obras de gêneros
tece nos edifícios envidraçados, descritos literários vizinhos, em que prevalecem as
nos diários do protagonista em Nós. características da ficção científica e das
Curiosamente, as grades de metal tam- obras de fantasia. Cercado pela tecnologia
bém cedem lugar à transparência no conto suprema, o indivíduo pode ser um astronauta
“A casa de vidro” (1979), de Ivan Ângelo. limitado às salas e câmaras de uma nave ou
Convertem-se interrogatórios e sessões de estação espacial, como descreve o narrador
tortura em espetáculo: a límpida visão do de Solaris (1961): “O corredor estava vazio.
sofrimento infligido aos presos distrai os Fiquei por um momento em frente às portas
homens “de bem”, estimula a profilaxia dos fechadas tentando escutar alguma coisa. As
cidadãos e funciona como um corretivo para paredes deviam ser finas, pois de fora che-
gava o gemido do vento” (Lem, 2017, p. 29).
Recorrendo a Erving Goffman (2010,
p. 16), poderíamos interpretar essas condi-
2 “Durante um segundo, dois, haviam trocado um
olhar equívoco, e era o fim da história. Mas até ções como características das “instituições
aquilo era um acontecimento memorável, na soli- totais”, em que o “caráter total é simbolizado
dão amuralhada em que se era obrigado a viver”
(Orwell, 2004, p. 20). pela barreira à relação social com o mundo
3 Como notou Evanir Pavlovksi (2014, p. 79): “Em 1984, externo e por proibições à saída que muitas
não resta ao indivíduo espaço possível de exercício
da liberdade além do seio do Partido ou das pro- vezes estão incluídas no esquema físico –
fundezas de sua própria consciência. Assim, para por exemplo, portas fechadas, paredes altas,
Winston Smith, o processo de dissimulação é tão
importante quanto o enclausuramento de sua pró- arame farpado, fossos, água, florestas ou
pria individualidade. O protagonista se vê obrigado
pântanos”. Para além desses cenários, nas
a levantar muros em torno de si mesmo como forma
de resguardar a sua integridade física e mental”. últimas décadas tem sido frequente o apare-
dagem é recorrente em países onde o (neo) presentes nas distopias de Aldous Huxley,
liberalismo costuma ser justificado como o George Orwell e Ray Bradbury, para a mul-
melhor dos mundos possíveis. tifacetada paisagem brasileira, situada entre
Ao ignorar as arbitrariedades subjacentes o campo e a cidade.
ao Estado de direito (para quem?) e a cele- A hora dos ruminantes (1966) se passa
bração da livre-concorrência (em função da na pequena e pacata cidade de Manarai-
desigualdade social), demoniza-se qualquer rema. Sem aviso prévio, seus habitantes são
sistema de governo que se contraponha ao tomados de assalto por um grupo de foras-
modo de produção capitalista11. teiros, acompanhados de cães ferozes que
coagem os moradores, enquanto se apossam
DISTOPIAS NACIONAIS: do território12: “O derrame de cachorros foi
o primeiro sinal forte de que os homens não
UM BREVÍSSIMO PANORAMA
eram aqueles anjos que Amâncio estava que-
rendo impingir” (Veiga, 1987, p. 33). Agos-
Há relativo acordo, na historiografia tinho Potenciano de Souza (1990, pp. 59-60)
literária brasileira, de que os romances de observou que, nesse romance,
José J. Veiga, publicados entre 1966 e 1982,
sejam obras de teor fantasioso e distópico, “[...] as relações sociais se encontram em con-
dentre as mais relevantes, publicadas por flito com as novas normas impostas pelos que
aqui. Não é um dado desprezível que as vêm de fora. Na cidade pequena de Mana-
narrativas totalitárias daquele período pas- rairema (pela etimologia tupi: ‘um ninho
saram a circular dois anos após o golpe de sob espreita’), toda a população se conhece,
Estado planejado e executado pelos mili- se dá o direito de ir-e-vir sem restrições de
tares (com o suporte ideológico, logístico lugar. Sabe de tudo o que está acontecendo.
e financeiro dos Estados Unidos, em sua A venda, as oficinas e as ruas são centros
eterna cruzada “anticomunista”) e tenham onde correm todas as notícias, todos os papos.
conhecido seu maior índice de popularidade A invasão do estranho, do estrangeiro, per-
em 1981, quando Não verás país nenhum, turba e altera o modus vivendi. Os cidadãos
de Ignácio de Loyola Brandão, apareceu (ou deixam de ser donos do seu espaço”.
seja, quatro anos antes da assim chamada
redemocratização). Quer dizer, no intervalo Argumento similar embala Sombras de
de 15 anos, escritores como José J. Veiga, reis barbudos, publicado seis anos depois.
Chico Buarque, Ivan Ângelo e Ignácio de Uma pequena cidade recebe um grupo de
Loyola Brandão conceberam narrativas que investidores endinheirados que comuni-
transpunham os temas e lugares-comuns, cam a intenção de investir na companhia
REFERÊNCIAS
ÂNGELO, I. “A casa de vidro”, in A casa de vidro: cinco histórias do Brasil. 2ª ed. São Paulo,
Livraria Cultura Editora, 1980, pp. 167-210.
ATWOOD, M. O conto da aia. Trad. Ana Deiró. Rio de Janeiro, Rocco, 2017.
BENTHAM, J. O panóptico. Trad. M. D. Magno. Belo Horizonte, Autêntica, 2000.
BRADBURY, R. Fahrenheit 451. 2ª ed. Trad. Cid Knipel. São Paulo, Globo, 2012.
BRADFORD, R. Orwell, um homem do nosso tempo. Trad. Renato Marques de Oliveira.
São Paulo, Tordesilhas, 2014.
BRANDÃO, I. de L. Não verás país nenhum. 28ª ed. São Paulo, Global, 2020.
BUARQUE, C. Fazenda modelo (novela pecuária). São Paulo, Círculo do Livro, 1976.
BURGESS, A. Laranja mecânica. 2ª ed. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo, Aleph, 2014.
CLAYES, G. Dystopia: a natural history. Oxford, Oxford University Press, 2018.
Este texto está dividido em duas partes: This text is divided into two parts: in Part
na Parte I, abordamos as origens da I we address the origins of science fiction
ficção científica e seu contexto histórico and its international and national historical
internacional e nacional, e na Parte II, context, and in Part II we address the works
as obras consideradas relevantes para considered relevant to the genre in the
o gênero nos cenários internacional international and national scenarios, its
e nacional, seus temas e subgêneros. themes and subgenres. In each of these
Em cada uma dessas partes, existem parts, there are subdivisions organized
subdivisões organizadas da seguinte as follows: Science fiction: a new literary
forma: Ficção científica: um novo gênero genre; Historical context of the emergence
literário; Contexto histórico do surgimento of science fiction; Science fiction in Brazil
da ficção científica; Ficção científica no (Part I); Works considered relevant on the
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons
O
de contos e novelas (geralmente serializadas).
um novo gênero literário
Seus leitores buscavam-na como literatura de
entretenimento, educação científica ou estí-
termo “ficção científica” mulo a novos inventos. Segundo Léo Godoy
(FC) é uma tradução do Otero (1987), “Hugo Gernsback convenceu
inglês science fiction.
Tido como uma nova
forma de literatura, o
1 A introdução apresenta o uso do termo science fiction
rótulo surge nos Esta- como anterior ao século XX. No entanto, esse primeiro
dos Unidos pela primeira uso não designava um gênero literário estabelecido,
mas uma atitude poética de realismo conforme a ver-
vez (na variante scienti- dade científica (segundo Brave New Words: The Oxford
fiction) na revista Ama- Dictionary of Science Fiction, de Jeff Prucher).
o mundo de que de fato existia uma forma cientificamente. Como observa Flávio Rai-
de literatura chamada FC. Sua preocupação mundo Giarola (2016):
com o rigor científico e a clareza, para o
bem ou para o mal, estabeleceu a natureza “Atrelado a esse contexto de mudança de
distinta do gênero FC” (Westhfall, 2021). mentalidade, a partir do século XIX sur-
Com a acolhida dessas revistas, novos giu um novo gênero literário, que buscava
escritores são encorajados a publicar, prever as etapas posteriores da evolução
levando à ascensão do gênero e fazendo do homem. A ficção científica imaginava
com que fossem se delineando as bases da mundos fantásticos, futuros não apenas dife-
especulação sobre invenções tecnológicas e rentes do presente, mas também marcados
teorias científicas. Houve uma profusão de pelo mais alto grau de avanço tecnológico
temas e publicações. Ainda segundo Otero do homem. Nessa nova literatura, o cientista
(1987, p. 90), esse momento representou um era colocado como agente do progresso.
“jorro de imaginação, predominante fan- Ele determinava futuros possíveis, que
tasia, [que] submergirá a capacidade dos mostrariam o constante aperfeiçoamento
leitores em discernir o que era ‘realidade da humanidade. Os pioneiros da ficção
futura’, extrapolação científica, misticismo científica também se inspiravam naquilo
pseudocientífico e também charlatanismo, que era considerado o maior produto do
tal era a confusão reinante, a miscelânea engenho humano, as máquinas, para projetar
de temas, nessa parafernália espacial”. um amanhã no qual estas estivessem cada
vez mais a serviço do homem”.
Contexto histórico
Os avanços nas áreas da física, química,
do surgimento da FC
biologia e astronomia estabeleceram as bases
da FC. O lugar antes ocupado por magia e
A FC é gestada no século XVIII, num crença passou a ser ocupado por cientistas
cenário pós-Revolução Industrial, mas se e máquinas. Apesar de muitos escritores de
estabelece nos séculos XIX e XX, no con- FC surgirem entre profissionais dessas áreas,
texto histórico do desenvolvimento anglo- eles escreviam na qualidade de artistas, não
-americano com o advento da indústria, da de cientistas. Trabalhavam com antecipações
máquina, da especialização, da técnica e da possíveis de fatos, buscando verossimilhança.
automação. Também porta valores trazidos Sendo assim, tratava-se de uma literatura de
pelos ideais positivistas, corrente filosófica especulação sobre futuros possíveis, ou de
que surgiu na França no início do século uma literatura de antecipação.
XIX e defendeu o conhecimento científico
como a única forma de conhecimento ver- “A FC é um método literário eminentemente
dadeiro. Os positivistas não consideravam os especulativo, cuja constante deve ser a ciên-
conhecimentos adquiridos através de crenças cia para a qual são estabelecidos fatos, os
religiosas, superstição ou qualquer outro do quais, uma vez laborados no tempo, venham
campo espiritual, intuitivo ou transcendente, a produzir uma nova situação, uma nova
apenas os que pudessem ser comprovados estrutura para a ação humana. Inspirada no
as antigas lendas de civilizações avançadas vem para unir os povos num ideal estético
escondidas no coração da selva amazônica. e conceitual, e não promover a segregação
O primeiro romance de FC publicado neste racial” (Pietro, s.d.).
subgênero é Amazofuturism (2021), de Rogé-
rio Pietro. Segundo o autor, o subgênero é Parece haver um número excessivo de
definido por quatro pilares fundamentais: subgêneros na FC; desconsiderando o mérito
disso ser interessante ou não para o gênero
“Primeiro pilar: os indígenas, a etnia ou o literário, é inegável que contribui para melhor
povo representado, seja real ou fictício, deve organizar a diversidade enorme de publi-
ser da selva amazônica. Do contrário não cações que a ficção científica abrange na
seria amazofuturismo. Obras de arte futu- atualidade. Os conceitos se aperfeiçoam com
ristas sobre povos indígenas de outras loca- o tempo, trazendo ou subtraindo elementos
lidades podem receber novas denominações. e, às vezes, se fundindo. O fato é que a FC
Segundo pilar: a tecnologia indígena deve ser brasileira se amplia a cada dia com maior
inovadora e única. O simples fato de dar aos quantidade e qualidade de escritores, leitores
personagens telefones celulares ou computa- e obras, necessitando ainda de maior reco-
dores não caracteriza o amazofuturismo. Pelo nhecimento e valorização. E de difusão que
contrário, o uso de tecnologias tipicamente a faça ocupar espaços e mercados.
usadas por outros povos seria apenas uma Pode-se observar que esse gênero, que
descaracterização da cultura indígena. Ter- nasce como literatura estrangeira, se encaixa
ceiro pilar: os avanços tecnológicos devem e avança rumo a produções cada vez mais
estar em harmonia com o meio ambiente. voltadas para temáticas brasileiras, incor-
A sociedade indígena amazofuturista deve porando nossas experiências como povo e
ser utópica, voltada para o bem-estar dos nossos valores culturais, elementos fortes
habitantes e sempre respeitar a selva e os e presentes na modernidade. Testemunha-
animais. Se uma sociedade indígena amazô- mos o momento que inaugura os passos
nica for retratada com um olhar distópico, na direção da existência de uma FC com
em que o meio ambiente e a sociedade foram identidade nacional.
degradados, então o termo amazofuturismo
não pode ser usado. Esse tipo de visão talvez OBRAS CONSIDERADAS
pudesse ser chamado de ‘amazopunk’, o que
RELEVANTES PARA A FC NO CENÁRIO
não é o objetivo do novo subgênero da ficção
científica. Quarto pilar: as histórias devem INTERNACIONAL E NACIONAL,
ser contadas do ponto de vista dos perso- SEUS TEMAS E SUBGÊNEROS
nagens indígenas, e não mais do ponto de
vista do personagem explorador/colonizador
que se deslumbra ao encontrar uma cidade Cenário internacional
maravilhosa no seio da selva amazônica. Por
outro lado, as histórias amazofuturistas não A FC surgiu como gênero literário no
precisam ter autoria exclusiva de escritores século XIX, mas foi gestada no século XVII.
ou roteiristas indígenas. O amazofuturismo Muitas obras foram escritas antes de 1930
bém ambientado no Rio de Janeiro, apre- processo os humanos levam uma lição de
senta influências de Wells e Conan Doyle. solidariedade universal dos viajantes. Ainda
O escritor provoca um encontro casual entre de Jeronymo Monteiro, 3 meses no século
o protagonista, Ayrton – jovem funcionário 81 (1947), romance com influência direta
de uma empresa no Rio de Janeiro –, com de Wells, em que o personagem Campos se
um professor estudioso de física relativís- depara com um futuro muito diferente do
tica. É-lhe dado conhecer as invenções do esperado e deverá mostrar à humanidade o
cientista, uma máquina do tempo, como a de que realmente importa. Fausto Cunha, com
Wells, que tem a capacidade de desvendar o a coletânea de contos As noites marcianas
futuro até o ano de 3527, e um rádio-trans- (1960). Dinah Silveira de Queiroz, com Eles
porte, que leva as coisas que uma pessoa herdarão a Terra (1960), livro com cinco
necessita até sua casa, pelo rádio. histórias, com invasões extraterrestres e mãos
Outro romance, Viagem à aurora do decepadas. E André Carneiro, que escreve
mundo (1939), de Érico Veríssimo, sob influ- vários livros de contos, com destaque para a
ência de Wells, apresenta um protagonista noveleta “A escuridão” (1963), que trata de
que é cientista e constrói um aparelho capaz um mundo sem luz, sem causas explicáveis,
de revelar a gênese da Terra a partir da onde os cegos, como únicos habituados a
captação das mensagens luminosas proje- viver no escuro, relevam-se.
tadas no espaço. Sonha com viagens pelo A Segunda Onda da FC brasileira surge
infinito em velocidades superiores à da luz, após o período da ditadura militar, na década
fotografando tempos passados e futuros, na de 1980, período de 1982 a 2015, também
dimensão espaço-temporal. chamado de período do renascimento da FC.
No entanto, o boom na FC brasileira Vários escritores aparecem em fanzines como
ocorreu nos anos de 1960, com a chamada Somnium, Hiperespaço, Boletim Antares e
Geração GRD (Allen, 1973, pp. 11-2). Esse em organizações de fãs como o Clube de
período foi considerado a Primeira Onda Leitores de Ficção Científica.
da FC brasileira (Bell e Molina-Gavilán, Vale destacar neste período os autores
2003, pp. 6-8 e 19), abrangendo os anos Jorge Luiz Calife, com o romance Padrão de
de 1957 a 1972. contato (1985), uma ópera espacial seguida
Foram representantes da FC brasileira de outros dois romances: Horizonte de even-
desta época autores como Jeronymo Mon- tos (1986) e Linha terminal (1991). Traz uma
teiro, que nos anos 1930 radiofonizava visão otimista da raça humana, onde uma
novelas e escrevia contos de FC em jor- mulher, com nome brasileiro de “Angela
nais e revistas como A Cigarra (1914-1975), Duncan”, é guardiã do universo; Braulio
com publicação quinzenal em São Paulo. Tavares, com A espinha dorsal da memó-
O autor escreveu vários livros com temá- ria (1989), uma das melhores coletâneas de
ticas de FC, dentre eles, Os visitantes do contos de FC brasileira; Fausto Fawcett, com
espaço (1963), em que alienígenas reluzen- seu primeiro romance Santa Clara Polter-
tes de um dos satélites de Júpiter vêm à geist (1991), com elementos cyberpunk, de
Terra para retirar um pouco do hidrogênio psipowers e near future; Roberto de Sousa
de nossa atmosfera. O que fazem, mas no Causo, com a noveleta Patrulha para o des-
configurações da ficção científica no Brasil podemos para mudar esse cenário. Quere-
na segunda década do século XXI: mos que a literatura de gênero evolua, que
abrace todas as pessoas do mundo e não
“Hoje, já na quarta onda da ficção cientí- apenas uma minúscula parte dele” (Anotsu;
fica brasileira, vemos autores que exploram Vieira, 2015).
subgêneros populares atualmente, como o
afrofuturismo, no qual se destaca a obra O Esse movimento traz à tona a importância
caçador cibernético da Rua 13, de Fábio de todos serem representados na literatura,
Kabral, ou o romance steampunk de O baro- sem distinção, demonstrando um amadure-
nato de Shoah, de José Roberto Vieira, ou a cimento da FC brasileira. Como afirma Ale-
versão LGBT, a partir de movimentos como xander Meireles da Silva (2021): “Mais do
o Manifesto Irradiativo. E acontece nestes que nunca, podemos dizer que a FC nacional
dias a ascensão de uma nova frente especu- reconhece hoje na multiplicidade cultural
lativa: o cyberagreste” (Zuin, 2019). do seu passado e presente as ferramentas
de construção de seu futuro”.
Com esses movimentos, novos olhares
se somam ao cenário brasileiro, desvelando Temas e subgêneros
regionalidades na fala de autores daqueles
da ficção científica
lugares. Nesta medida, um amazonense
poderá falar de uma lenda regional viva,
como o Mapinguari (monstro amazônico), A ficção científica tem como princi-
excluindo dela o sentido pejorativo que a pal tema a ciência, seja na literatura, no
palavra “folclore” possa apresentar. São cinema, em HQ ou outra forma de lin-
outros olhares apresentando outras possibili- guagem. Ciência entendida num sentido
dades, trazendo riqueza à produção nacional. mais amplo, que envolve vários campos
Isso não significa que exista unanimidade, do conhecimento humano, como a filosofia
mas sim diversidades nos olhares e vozes. e a fantasia, entre outros.
A Quarta Onda surge a partir de 2010 São muitos os subgêneros da FC,
e vem com esse viés de amplitude e diver- como também muitos os seus temas, e
sidade, assim como de democratização do eles aumentam cada vez mais o seu grau
acesso, produção e divulgação na literatura de complexidade. Adoto aqui o critério
especulativa brasileira, para que seja mais de organização de alguns subgêneros com
inclusiva. Em prol desta diversidade nacional certa ordem cronológica e brevíssimas
surge o Manifesto Irradiativo. caracterizações da época, lembrando que
não são territórios estanques, podendo se
“O mundo do papel e das telas ainda é mesclar numa mesma obra.
dominado por homens cis brancos fazendo
o que sempre fizeram e refazendo o que ● Viagem no tempo (século XIX) – pro-
sempre fizeram. É por isso que acredita- duções baseadas no conceito de mover-
mos numa forma de tomar isso de assalto, -se para trás e para frente na linha do
fazendo barulho com o que temos e o que tempo, de um modo análogo à mobilidade
mas morais, crítica social, discurso pessi- tas consideram impossíveis. Tem como
mista que flerta com a esperança, violên- temas a telepatia, viagem mais rápida do
cia banalizada e generalizada. Exemplos: que a luz, parapsicologia. Série Duna,
romance 1984, de George Orwell (1949); de Frank Herbert (1965), é um marco da
romances Piscina livre e Amorquia, de ficção científica soft; Não chore, novela
André Carneiro (1980 e 1991); de Luiz Bras (2016).
● História alternativa (século XX) – a trama ● Space opera ou novela espacial (século
transcorre num mundo no qual a histó- XX – 1960 e 1970) – enfatiza aventuras
ria possui um ponto de divergência da e batalhas interplanetárias. Geralmente se
história como nós a conhecemos. Faz a situa no espaço sideral ou num planeta
seguinte pergunta: “O que aconteceria se distante. Tem como temas: espaçonaves
a história tivesse transcorrido de maneira que voam distâncias ilimitadas em curto
diferente?”. A maioria das obras do gênero espaço de tempo, planetas com formas de
é baseada em eventos históricos reais, vida exóticas, alienígenas, armas de raios,
ainda que aspectos sociais, geopolíticos robôs, carros voadores, forças paranor-
e tecnológicos tenham se desenvolvido mais, energias capazes de destruir plane-
diferentemente. A noveleta A ética da tas, estrelas e galáxias inteiras. Exemplos
traição (1993), de Gerson Lodi-Ribeiro, de filmes no gênero são Star wars e Star
é considerada um clássico moderno; trek e os romances Glória sombria e Shi-
● Ficção científica hard (século XX – por roma, matadora ciborgue, de Roberto de
volta de 1950) – as histórias são centradas Sousa Causo (2013 e 2015).
em tramas com plausibilidade nos seus ● Feminista (século XX – Brasil, anos 1970)
elementos científicos, com tecnologias – lida com o papel da mulher na socie-
e eventos possíveis. Prioriza as ciências dade, levanta pontos sobre as questões
exatas (física, química, matemática etc.) sociais como a forma pela qual se cons-
e alguns de seus temas são: personagens trói os papéis de gênero, qual o papel
cientistas, engenheiros, astronautas; fenô- da reprodução na definição de gênero e
menos astronômicos e físicos; uso da tec- o poder político e pessoal desigual entre
nologia como solução do problema, preci- homens e mulheres; aborto, machismo,
são técnica, conjuntos consistentes de leis racismo, homofobia, transfobia, preconceito
da física em universos alternativos; naves com a literatura produzida por mulheres.
espaciais. Exemplos: Fundação, de Isaac Temas comuns: sociedades utópicas e dis-
Asimov (1944), e 2001: Uma odisseia no tópicas, patriarcalismo, papel da mulher
espaço, de Arthur C. Clarke (1968); na sociedade etc. Exemplo: coletânea Uni-
● Ficção científica soft (século XX – final verso desconstruído, organização de Lady
da década de 1970) – associada à ficção Sybylla e Aline Valek (2013);
científica new wave, tende a focar perso- ● Steampunk (século XX – 1980 e 1990) –
nagens humanas, seus relacionamentos e também conhecido como vaporpunk ou
sentimentos. Faz uso das ciências huma- tecvapor, ocorre no período da Revolu-
nas (filosofia, sociologia, psicologia etc.). ção Industrial e trata de obras ambien-
Cai no campo das coisas que os cientis- tadas no passado em que os paradigmas
uma abdução alienígena. Temas: objetos res com inteligência artificial avançada,
voadores não identificados (OVNIs), alie- máquinas, humanoides, programas de
nígenas. Exemplo: o romance O homem tecnologia avançados, redes neurais arti-
que viu o disco voador, de Rubens Tei- ficiais, dispositivos tecnológicos. Exem-
xeira Scavone (1958); plos: Eu, robô, de Isaac Asimov (1950);
● Universo paralelo (meados do século XX) no cinema, O exterminador do futuro, de
– sobre outro(s) universo(s), separado(s) James Cameron (1984);
do nosso, mas com pontos de contato, em ● Primeiro contato (século XX – 1927) –
certos casos, formando um multiverso. narrativa sobre o primeiro encontro entre
Temas: outra(s) dimensão(s), hiperespaço, humanos e alienígenas. Temas: raças avan-
atalho mais rápido que a luz, viagem çadas, viagens interestelares, encontros
interestelar, viagem no tempo, elemen- com raças predatórias, choque cultural,
tos fantásticos e surreais etc. Exemplo: extraterrestres, naves espaciais etc. Exem-
conto “O jardim dos caminhos que se plos: romance Guerra dos mundos, de
bifurcam” (1941), de Jorge Luis Borges H. G. Wells (1897); conto “A nuvem”, de
(trabalha com labirinto temporal); Ricardo Teixeira (1994);
● Vida extraterrestre (século XX) – nar- ● Retrofuturismo (século XX – no final
rativa sobre viagens a outros planetas e da década 70) – reúne os diversos punks
sobre os seres vivos, inteligentes ou não, retrôs derivados do cyberpunk e do
que vivem lá. Temas: extraterrestres, via- steampunk: stonepunk, clockpunk, deco-
gens interplanetárias, formas de vida que punk, dieselpunk, atompunk e solarpunk.
podem variar desde simples organismos Traz como temas histórias ambientadas
a humanos, vírus etc. Exemplos: contos num passado alternativo, como cidades
“Exercícios de silêncio”, de Finisia Fideli, suspensas em nuvens ou a milhares de
e “Zayn”, de Romy Schinzare. metros do chão, carros voadores, armas
● Imortalidade (século XX) – narrativa de raios, estradas intergalácticas, robôs
em que a biotecnologia investiga certos com funções domésticas etc. Exemplos:
meios de neutralizar o processo de enve- “Venezia em chamas”, conto de Ana
lhecimento, com o objetivo de aumentar Cristina Rodrigues; animação de Hanna
indefinidamente a expectativa de vida. Barbera Os Jetsons (1962-1963).
Temas: longevidade, imortalidade, progra- ● Afrofuturismo (século XX – 1990) – nar-
mas tecnológicos, implantes tecnológicos, rativa que combina ficção científica e
engenharia genética, backups automáticos cosmologia africana. Temas: arte e cul-
de consciência, chips, mind upload etc. tura africana. Vai além da literatura,
Exemplos: livro/série de TV Carbono alte- incluindo pintura e fotografia. Exem-
rado, de Richard Morgan (2002); “Paraíso plos: romance O caçador cibernético da
líquido”, conto de Luiz Bras (2010); Rua 13, romance de Fábio Kabral (2017);
● Inteligência artificial (século XX) – fala filme Pantera Negra (2018);
de softwares, robôs e androides tão ou ● Solarpunk (século XXI – 2008) –
mais inteligentes do que os seres huma- movimento estético derivado do cyber-
nos que os criaram. Temas: computado- punk, aborda questões climáticas (desmata-
REFERÊNCIAS
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BELL, A. L.; MOLINA-GAVILÁN, Y. (eds.). Cosmos latinos: an anthology of science fiction
from Latin America and Spain. Wesleyan University Press, 2003.
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CARDOSO, A. E. As revistas de emoção no Brasil (1935-1949): o último lance da invasão
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CAUSO, R. de S. “Tupinipunk – cyberpunk brasileiro”. Ondas nas praias de um
mundo sombrio: new wave e cyberpunk no Brasil. Tese de doutorado. São Paulo,
FFLCH-USP, 2013.
O presente texto pretende esquadrinhar This text intends to examine the literary
a expressão literária do gótico a partir expression of Gothic from its origins in
de suas origens, no século XVIII, tendo the 18th century, taking into account
em vista duas perspectivas: o fenômeno two perspectives: the historical, cultural
histórico, cultural e artístico que, a and artistic phenomenon that, from that
partir daquele momento e ao longo do moment on and throughout the following
século seguinte, transbordou das letras century, overflowed from fiction to other
para outras áreas de conhecimento; areas; and Gothic as a specific poetics,
e o gótico como poética, a qual, após which, after the exhaustion of formulas
o esgotamento de fórmulas e temas and themes established throughout
estabelecidos ao longo do período the aforementioned period, began to
mencionado, passou a fornecer a moldura provide the ideal framework for narratives
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons
narrativa ideal para histórias ancoradas no anchored in fear and pessimism – emotions
medo e no pessimismo – emoções que that inevitably result from the human
inevitavelmente resultam da experiência experience in this world.
humana neste mundo.
Keywords: Gothic; gothic literature; fear;
Palavras-chave: gótico; literatura gótica; pessimism.
medo; pessimismo.
A
rrepios, tremores, cora- isso lhes custasse a vida. As tempestades,
ção acelerado: quando o fogo, as nevascas, os vulcões em erup-
sentimos medo, o corpo ção, os ataques de animais: um território
não nos deixa mentir. imenso, então intocado pela ciência, ins-
Por mais que tente- pirou as criações mais delirantes. Lendas
mos dissimular, algum e mitos, ao redor da fogueira, eram trans-
comando primitivo é mitidos pelos mais idosos das tribos aos
disparado dentro de nós, ouvidos dos mais jovens. A esse respeito,
e toda a racionalidade é conhecida a frase de um dos princi-
acumulada ao longo de pais nomes da ficção literária de horror, o
séculos é subitamente estadunidense Howard Phillips Lovecraft:
aniquilada pela certeza “A mais forte e mais antiga emoção da
de que nossa vida está humanidade é o medo, e a mais forte e
em perigo. Trata-se do alerta primordial, mais antiga forma de medo é o medo do
item fundamental de nosso mecanismo de desconhecido”. A afirmação está no início
sobrevivência. Devido a isso, a humanidade de O horror sobrenatural na literatura,
assusta a si mesma desde o momento em
que estabeleceu formas rudimentares de
comunicação. Abandonados à própria sorte
em um mundo hostil, nossos descenden- OSCAR NESTAREZ é doutor em Estudos
tes primatas já eram inquietos e curiosos. Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras
Queriam compreender e explicar todos os e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e ficcionista,
fenômenos que os cercavam, ainda que autor de, entre outros, Bile negra (Avec Editora).
longo ensaio publicado pela primeira vez Cavaleiro Verde (século XIV), de autoria
em 1927 e até hoje bastante referenciado desconhecida, e A morte de Arthur, de
em estudos dedicados ao gênero. Thomas Malory (século XV). Segundo
Os séculos se passaram, o homem Delumeau (2009, p. 17):
foi compreendendo seus arredores, mas
o fascínio exercido por narrativas sobre- “Da Antiguidade até data recente, mas
naturais ou assustadoras, ainda que em com ênfase no tempo da Renascença, o
suas formas mais rudimentares, não dimi- discurso literário apoiado pela iconogra-
nuiu. Pelo contrário: esses relatos passa- fia (retratos em pé, estátuas equestres,
ram a ocupar as paredes de cavernas, os gestos e drapeados gloriosos) exaltou a
manuscritos, os pergaminhos e, enfim, as valentia – individual – dos heróis que
páginas de epopeias e documentos reli- governaram a sociedade. Era necessário
giosos da Antiguidade. Prova disso é o que fossem assim, ou ao menos apre-
Antigo Testamento (meados do século I) sentados sob essa perspectiva, a fim de
da Bíblia. Trata-se de uma leitura que, justificar aos seus próprios olhos e aos
retirada do contexto religioso, apresenta do povo o poder de que estavam revesti-
inúmeros monstros (na forma de quime- dos. Inversamente, o medo era o quinhão
ras como Beemote e Leviatã) e eventos vergonhoso – e comum – e a razão da
tão violentos quanto sangrentos. Outros sujeição dos plebeus”.
documentos religiosos da Antiguidade,
como o Avesta (a compilação de textos Com o passar do tempo, e o reforço de
sagrados do zoroastrismo, anos 3 a 7 d. acontecimentos históricos como a Revo-
C.) e épicos de cavalaria (séculos X a lução Francesa, “a preocupação com a
XV, como as sagas arturianas e de Beo- verdade psicológica prevaleceu” (Delu-
wulf), também constituem exemplos da meau, 2009, p. 18). De acordo com Delu-
incorporação de excertos que despertam meau, a literatura, concomitantemente à
alguma reação negativa diante de perigos historiografia, foi restituindo ao medo
reais ou imaginários. o seu verdadeiro lugar. Em seu estudo,
A despeito dessa incorporação, durante o historiador menciona, como exemplos
centenas de anos se observou o que Jean dessa remissão, os contos de Guy de
Delumeau (2009, p. 11) denominou “o Maupassant, La débâcle, de Émile Zola,
silêncio sobre o medo”. Na Introdução de e Diálogos das carmelitas, do também
História do medo no Ocidente, o historia- francês Georges Bernanos (Delumeau,
dor francês lembra que, entre os séculos 2009, p. 18). Como bem sintetiza Delu-
XIII e XVIII, os referenciais heroicos meau (2009, p. 23), o medo é “um com-
ganham vulto na sociedade ocidental, ponente maior da experiência humana, a
expressando valores prosaicos; com isso, despeito de todos os esforços para superá-
as formas literárias de então reforçam “a -lo”. Assim sendo, é também um compo-
exaltação sem nuança da audácia” (Delu- nente das expressões artísticas nascidas
meau, 2009, p. 14), característica decerto dessa experiência. Ainda que abafado – ou
saliente em obras como Sir Gawain e o silenciado – por determinadas conjunturas
efeito mais perceptível uma profunda desi- literatura gótica, porém, está justamente
lusão com os rumos da humanidade. A em sua violação programática dos parâ-
tensão entre os riscos da ausência e os do metros do realismo tradicional, ao apre-
excesso do conhecimento tomou forma de sentar eventos, enredos e personagens que
uma linguagem artística repleta de con- estendem ou desafiam o conhecimento
venções estilísticas e temáticas que não de mundo do leitor. Ou seja, ela seria
têm por objetivo produzir representações antirrealismo, e não antirrealista.
realistas do mundo. As narrativas góticas Nesse sentido, parte das obras góticas
caracterizam-se, assim, por seu intenso e pode ser descrita como unnatural narra-
consciente caráter ficcional – a verossimi- tives – narrativas que constroem mundos
lhança é produzida não por meio do res- ficcionais “antinaturais”, resultantes de
peito às leis da probabilidade, mas através temporalidades reversas, eventos impos-
de técnicas narrativas complexas, em que síveis do ponto de vista lógico, persona-
se destacam, por exemplo, os mecanismos gens com mentalidades não tipicamente
de mútua corroboração de narrativas em humanas ou atos de narração não naturais
moldura (Punter, 1996, p. 137), capazes (Alber; Nielsen; Richardson, 2010). Tomar
tanto de legitimar os eventos metaem- uma narrativa como antinatural permite
píricos no plano da diegese quanto de entender como ela se desvia da moldura
promover o embate dialógico entre visões do mundo real e, assim, torna-se capaz
de mundo discordantes. Embora grandes de trazer à tona e criticar aquilo que o
questões políticas, sociais e culturais se discurso realista muitas vezes reprime,
manifestem nos enredos góticos, isso se como a expressão da tensão existente entre
dá por meio de figurações, recursos sim- as normas sociais e os medos e desejos
bólicos e outros processos convencionais inconscientes (Wood, 2002).
de criação artística, o que leva o gótico a O gótico é, assim, a literatura em sua
ser constantemente confundido com uma máxima potência. Assume-se como pura
forma artística antirrealista. ficção, recusando a condição de sociolo-
Mas investir contra as convenções do gia não quantitativa que certo realismo
realismo não significa, contudo, ser avesso literário, tão disseminado, insiste em
ao real. Os principais modelos de descri- produzir. Dessa forma, a ficção gótica
ção e definição de “narrativa”, por serem dá continuidade a uma prática primor-
muito influenciados por teorias miméticas, dial do ser humano: usar a faculdade da
tomam como paradigmas os textos realis- imaginação para produzir narrativas que
tas e naturalizam a crença de que todo e nos ajudem a lidar com nosso assombro
qualquer aspecto de uma narrativa pode diante do mundo que nos cerca.
e deve ser explicado com base em nossos Ao romper com as convenções rea-
parâmetros cognitivos de conhecimento listas e investir no desconhecido e nas
do mundo real. Consequentemente, tudo facetas sombrias da mente humana, a
aquilo que não segue esse modelo implí- literatura gótica tornou-se uma tradição
cito corre o risco de ser entendido como artística que codificou modos de figurar
alienado ou escapista. Muito da força da os medos e de expressar os interditos de
REFERÊNCIAS
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Ohio State University Press, 2010.
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bello. Trad. Menene Gras Balaguer. Madri, Editorial Tecnos, 2001.
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.
DINIZ, A. “As estranhezas insuspeitas e inexpugnáveis”, in Contos de assombro. Trad.
Maria Aparecida Barbosa et al. São Paulo, Carambaia, 2018.
FRANÇA, J. “O sequestro do gótico no Brasil”, in J. França; L. Colucci (eds.). As nuances do
gótico: do Setecentos à atualidade. Rio de Janeiro, Bonecker, 2017, pp. 111-24.
O artigo intenta esmiuçar a origem, The article intends to scrutinize the origin,
características, principais divisões ou distinctive characteristics, main divisions
subgêneros e a pertinência do horror or subgenres and the relevance of horror
nas artes, principalmente na literatura. in the arts, mainly in literature. It intends,
Ainda busca distinguir horror das too, to distinguish horror from the concepts
noções de medo e terror, uma vez que of fear and terror, since the three ideas are
frequentemente os três conceitos são frequently and almost universally confused
confundidos entre si, portanto, essa é uma with each other, so this is a difficult and
demarcação difícil e até mesmo polêmica. even controversial delimitation. To this
Para tanto, conceitos de psicanálise, teoria end, concepts from psychoanalysis,
literária, mitologia, história e até biologia literary theory, mythology, history and
são mobilizados, para assim desvendar a even biology are mobilized and related, in
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causada por algo, alguém ou algum evento XVIII, erodiu sem cessar (Lukács, 2000,
ainda não ocorrido ou não encontrado; pp. 23-36). O surgimento e consolidação
a iminência desse contato ou encontro dessa diferença conceitual entre terror e
permeia a narrativa, domina a mente das horror podem ser entendidos como sinal
personagens; portanto, é a possibilidade da consolidação do pensamento racional-
de algo assustador ou horrível acontecer -iluminista, da vitória da ciência sobre as
ou surgir que causa o terror. O terror, por- outras formas de pensamento humano, as
tanto, seria muito próximo e até se con- outras formas que a humanidade dispõe
fundiria com o medo, sentimento primal para compreender e explicar o mundo –
da humanidade. O horror, por sua vez, é incluindo o pensamento mítico/religioso,
uma reação, um choque indelével, que não cujas narrativas e imagens mais prime-
pode ser esquecido; o terror é o estado vas, cumpre reiterar, constituem a base,
de medo ante a possibilidade do horror. são as primeiras narrativas de horror que
Essa definição precisa, certeira e didá- se conhece. E como é bem sabido pelas
tica, porém, é, felizmente para os lei- ciências humanas e seus praticantes, a
tores e apreciadores da literatura mais vitória do pensamento científico levou ao
desenfreada, negada e até implodida pelas desencantamento do mundo e sua apli-
obras mais poderosas e que permanece- cação cada vez mais extensiva a todos
ram no decorrer da literatura fantástica, os aspectos da vida social, econômica,
desde sua gênese, que pode ser rastreada política, a uma fragmentação da percep-
nos mitos cosmogônicos das mais antigas ção e entendimento desse mundo. Assim,
civilizações, inclusive por ser difícil e até essa divisão teórica entre terror e horror
mesmo artificial assinalar exatamente em poderia ser mais um produto dessa atomi-
que ponto de uma narrativa fantástica o zação do pensamento e ao mesmo tempo
terror termina e dá lugar ao horror; a dita uma maneira torcida de tentar resgatá-la
confusão entre os dois termos não é tão de algum modo, mas pela chave de uma
problemática ou errônea quanto aparenta, unidade do medo, mostrando a experiência
pelo contrário, se lida de determinada humana em um mundo enorme, horrível
maneira, pode enriquecer a experiência e incompreensível como algo pavoroso.
estética de ler essas obras. Pois parece que as obras mais influentes
Nas mais antigas narrativas que che- e duradouras (ou, se preferirmos o clichê,
garam até nós – cosmogonias de povos “atemporais”) do horror são justamente
pré-históricos e das primeiras civilizações as que superam e ignoram essas classifi-
–, aquilo que o pensamento moderno con- cações limitadoras e desafiam o público
ceitua como medo, terror e horror está e os estudiosos a serem consideradas em
imbricado. Como afirma Georg Lukács, mais de uma classificação, que, repetimos,
no primeiro capítulo de sua Teoria do é instrumental e enviesada.
romance, neste tempo arcaico as esferas Sejamos um pouco tradicionalistas,
estavam conectadas, tudo era uno, com- um pouco materialistas e, dentro dessa
pleto, relacionado com tudo, unidade corrente de pensamento, ousamos dizer,
que a modernidade, a partir do século até mesmo um pouco biologistas: é mais
seria muito mais temático que formal Quanto mais fragmentado e incompreen-
ou estético e atravessaria, por assim sível tornou-se o mundo, mais assustador,
dizer, outros subgêneros do horror. mais aterrorizante ele se tornou ao indi-
víduo, pobre ser que, por mais que negue,
Ainda há uma variedade de outros carrega em si muito do seu antepassado
subgêneros nomeados e descritos em tons pré-histórico que tremia de medo perante
ainda menos rigorosos, que se confundem as forças cósmicas que não entendia. Pois
entre si e com alguns dos demais apre- justamente então a distinção terror/horror
sentados acima. Assim, haveria o horror ganhou sentido e forma. Podemos enten-
tecnológico (o avanço de uma ou mais der essa distinção como um sintoma da
vertentes da tecnologia geraria eventos e incompreensão do mundo, do medo que
entidades aterradoras, como inteligências este lhe causa, pois não mais uno e com
artificiais hostis e que tais) e o horror sentido? Então as melhores obras de lite-
ecológico (os eventos cataclísmicos causa- ratura fantástica modernas buscam der-
dos pela interferência humana nos ciclos rubar essa separação, não para resgatar
da natureza gerando caos, morte e, claro, uma “conexão perdida com o todo” ou
horror), que uma investigação mais atenta “restabelecer a música das esferas”, mas
classificaria como subtipo do horror de sim causar um efeito ainda mais intenso
ficção científica. Fala-se (escreve-se) sobre no leitor, causar mais medo, mais terror
horror extremo, em que a violência física, e horror (ver Lovecraft, 1987, pp. 7-8) e
mutilação e o verter de sangue seriam o uso intensivo de mitologias arcaicas
tão cruentos e desvairados que parte do que, segundo Lovecraft, são a fonte pri-
público o rejeita; mas, convenhamos, é mordial do “horror cósmico”.
um termo tão vago que pode ser posto de A angústia e o mal-estar da moderni-
lado. Há quem considere o horror gótico dade, motivados pela alienação e separa-
como uma categoria própria, que a nosso ção das esferas da vida e do mundo pré-
ver seria corretamente classificado como -moderno, em que tudo estava relacionado,
uma corrente estética e não temática. como Lukács (2000, pp. 23-36) bem define
Não deixa de ser interessante observar no início de A teoria do romance, têm
que essa divisão ganhou força e clareza sua expressão máxima e mais visceral na
a partir da segunda metade do século literatura de horror, que se separou inclu-
XVIII, exatamente o século em que foi sive de sua antessala, o terror, mas com
forjada a obra literária considerada inau- o qual insiste em tentar se reintegrar. O
gural da literatura gótica, O castelo de horror sempre foi onipresente nas artes,
Otranto. E também o século em que a nas manifestações culturais, na expressão
fragmentação do conhecimento, das ciên- do ser humano reagindo à natureza e ao
cias, a especialização do saber cada vez cosmo do qual ele é uma fração ínfima;
maior e mais intensa e a implosão da como um gênero literário/artístico defi-
compreensão do mundo como uma estru- nido, data do século XVIII, no entanto,
tura em que tudo está relacionado ganha- não é para menos que a frase que inicia
ram impulso e definiram a modernidade. o ensaio O horror sobrenatural na lite-
estranhos. Sua deformidade, feiura, estra- exaltações que fez aos efeitos causados
nheza devem ter um plano estético, ser um no leitor pelos textos abordados em seu
todo que, por mais anormal que pareça, estudo histórico, não se fartava de afir-
causará uma repulsa, uma sensação de mar, em sua mastodôntica correspondência
horror no protagonista e no leitor – claro. com amigos (incluindo vários outros auto-
O horror mostra quão limitada é a razão res de literatura fantástica), que buscava,
diante do espantoso, do demoníaco e do por meio da literatura, acima de tudo, a
inexplicado; ainda que estas categorias “expressão pessoal”.
tenham explicações além da compreensão Em termos mais simples e diretos:
humana, o que, aliás, as torna ainda mais a correta fruição de uma obra de hor-
assustadoras. No horror, a impotência e ror também deve considerar os medos,
o desamparo do protagonista perante a preconceitos, idiossincrasias, ou seja, a
causa do horror são totais, pois a escu- humanidade do autor e a inextinguível
ridão e a sensação de estar nela mergu- necessidade do ser humano de expressar
lhado, impotente, são talvez o mais atá- e afirmar sua existência perante os outros
vico medo que assola o homem, e aqui seres humanos e, por que não, perante um
deve-se usar “homem” (o ser biológico na cosmo que lhe é indiferente? Assim, paira
nudez de sua condição carnal, a anima- a questão: o que é mais importante no
lidade sem nenhum construto histórico- horror, as características estéticas e temá-
-social a cobri-lo e olvidá-lo dessa con- ticas em si, como algo fechado e indepen-
dição) e não “ser humano” (a construção dente, ou o efeito que pretende causar no
histórico-social). leitor/público? Ou as relações entre esses
A tradição da crítica e teoria sobre elementos, a considerar a obra de horror
o horror de valorizar os efeitos emo- como um artefato que expressa os medos,
cionais que o autor busca causar no lei- angústias e, claro, terrores de um dado
tor – preponderância esta não absoluta, período histórico de uma certa experiência
onipotente, cumpre reiterar – merece e humana (o autor) e um meio de comunicar
deve ser discutida, pois tende a um claro esses sentimentos a outros (os leitores/
reducionismo que considera a literatura público) e compartilhar a consciência e
de horror algo como uma simples busca o espanto do terror da existência?
de sensações fortes causadas por imagens Dentre as primeiras manifestações
e temas perturbadores, uma relação um míticas e narrativas desse espanto, e dos
tanto mecanicista que não dá conta da consequentes medos e terrores da huma-
miríade de outros fatores envolvidos na nidade perante os mistérios da sua pró-
produção, circulação e recepção da obra pria existência e da existência do cosmo
literária, sejam quais forem seus gêneros incomensuravelmente maior que ela, está
e épocas. Apenas a título de ilustração: a cosmogonia da mitologia grega, em que
e a expressão das emoções e ideias do a primeira divindade, o Caos, é uma “reu-
autor, qual sua situação nessa equação nião confusa de todos os elementos, antes
simplista? Um exemplo é o próprio H. da formação do mundo” (Spalding, 1965,
P. Lovecraft, que, a despeito das muitas p. 49). Essa percepção de mundo, de modo
REFERÊNCIAS
O artigo analisa a obra A lenda da This article analyzes the work A lenda da
meia-noite (1874) e a maneira como meia-noite (1874) and the way in which
o letrado português Manuel Pinheiro the Portuguese scholar Manuel Pinheiro
Chagas recorreu à técnica da moldura Chagas used the frame technique with the
com o propósito de parodiar tópicas e purpose of parodying topics and devices
dispositivos do gênero gótico. of the Gothic genre.
idade avançada, resolvem dedicar seus um bosque inundado pela chuva, e que
últimos anos a recordar suas façanhas e vejo, à luz do relâmpago, as árvores nuas
educar seus filhos, Raymundo e Branca. de folhas estenderem-se os braços des-
Paes enxerga no filho o vigor de sua camados, e formarem em torno de mim,
mocidade e o prepara para seguir seus guiadas pelo furacão, danças fantásticas
passos; seu amigo, sem poder fazer o e extravagantes, imagino ver as danças da
mesmo quanto à filha, nem por isso lhe meia-noite, travadas pelos espectros nos
dedica menor afeição. A prole de ambos, cruzeiros dos cemitérios, e, lembrando-
atingida a idade adulta, se apaixona, mas -me dos contos lindíssimos que a minha
Raymundo acreditava que esse amor só ama me contava quando eu era pequeno,
poderia ser consumado depois que servisse chego a acreditar na sua realidade, e acho
ao rei, enfrentando os inimigos da fé e prazer naquilo. Então que quer?” (Chagas,
conquistando sua honra. Antes de partir, 1863a, p. 222).
ambos prometem, ao pé de um crucifixo,
que se reencontrariam para concretizar O trecho permite constatar não apenas
o casamento. Distante de casa e durante as preferências da personagem por ambien-
um ataque contra infiéis, o jovem por- tes tempestuosos e cenários noturnos, mas
tuguês acaba seduzido por Zoraida, uma também sua propensão a tomar narrativas
moura, e Branca, ao tomar conhecimento aterrorizantes como sendo verdadeiras e
do ocorrido, acaba cometendo suicídio, prazerosas. Ou seja, José Augusto alega
se lançando do despenhadeiro do Açude. não resistir aos seus efeitos, o que sugere
Tempos depois, o novo casal passa pelo uma imaginação ávida por fantasias.
local onde Raymundo prometeu regres- Os dois primeiros capítulos consistem
sar e zomba do crucifixo diante do qual no encontro entre os homens no lagar e
a promessa foi firmada. Então, Zoraida na história contada por João Moedor. O
se transforma em uma figura demoníaca terceiro, intitulado “Loucura!”, começa
e se atira, agarrada a seu consorte, no introduzindo uma casa elegante, com sua
precipício. O fantasma de Branca então dona, uma viúva de 27 anos, a entreter
aparece e reza por seu amado, apesar da convivas durante um café, em particular
traição. Em noites de tempestade, segundo o doutor Vidigal, que lhe fazia a corte.
João Moedor, é possível testemunhar os A viscondessa, Amélia de São Cristó-
fantasmas dos envolvidos repetindo as vão, no mesmo dia em que João Moedor
ações daquele dia fatídico. diverte seus companheiros, discorre sobre
José Augusto é quem demonstra maior a aparição de fantasmas no Açude, esti-
interesse no assunto e chega mesmo a mulando o ceticismo do médico, que trata
confessar que gosta do clima hostil e de a lenda com desdém e sugere a leitura
histórias terríveis: de Ann Radcliffe como alternativa, para
desconsolo da anfitriã. Repentinamente,
“[...] sabe você, sr. Manuel dos Reis, que uma criada entra na sala e anuncia a pre-
eu gosto de noites assim? Que diabo! sença de dois habitantes de Lisboa, que
Quando atravesso a galope a clareira de pediam refúgio contra a tempestade. Com
pela anfitriã, que lhe corresponde o afeto. num sítio da Beira-Baixa, em Portugal.
O jovem lisboeta encara o amor como Por toda parte, nos arredores, existiam
novo “delírio”, ainda mais arrebatador e “verdura, árvores, águas, o ar puríssimo
implacável. A aventura de fantasmas ter- das serras, os rumores misteriosos das
mina em casamento. O dr. Vidigal tece solidões” (Chagas, 1874, p. 4). Entre o
o último comentário da trama, não sem outono e o inverno, a paisagem assume
ironia: “Estou dizendo, minha senhora, tons carregados e lúgubres, promovendo
que o casamento é um belo estado, e que ventanias, trovoadas e relâmpagos; nos
o senhor José Augusto de Albuquerque salões dos edifícios isolados “ouvem-se
deve dar graças a Deus, que lhe trans- rumores sinistros”; o vento, “fazendo ran-
formou em tão esplêndida realidade a ger os pilares da varanda, entoa a música
Visão do Precipício” (Chagas, 1863c, p. triste das lendas populares” (Chagas, 1874,
254). Jocosamente, o médico estabelece p. 4). Depois de descrever o ambiente, o
uma analogia entre a anedota medieval clima e o aspecto do casarão, o narra-
e a história do novo casal, que cumpre dor se volta para um episódio em que os
a promessa cujo descumprimento rendeu anfitriões recebem alguns convidados, que
uma lenda fantasmagórica. pretendiam caçar na propriedade: o dou-
tor Macedo, um escritor chamado Lucio
Valença, o comendador Madureira e sua
OUTRA VISÃO DO PRECIPÍCIO filha, Isaura, o jovem Henrique Osório e
um jornalista aposentado, Roberto Soa-
Em A lenda da meia-noite (1874), res. A prole dos proprietários (Leonor,
Manuel Pinheiro Chagas reuniu cinco con- Álvaro e Julia) também estava presente.
tos: “Julieta: conto fantástico”, “A visão do Nas paredes da ampla sala de estar,
precipício”, “A igreja profanada”, “Memó- os convivas encontram uma série de qua-
rias de uma bolsa verde” e “Dominus dros sombrios; a luz iluminava somente
tecum... (conto para crianças)”. Segundo a ampla mesa de pau santo, deixando as
Jean Carlos Carniel, a maioria deles foi adjacências perdidas nas sombras. Os
editada na imprensa antes de integrar o criados irrompiam da penumbra “como
volume: afora o primeiro, que parece ter se surgissem do chão” (Chagas, 1874,
saído pela primeira vez, e o terceiro, que p. 5). Os ruídos noturnos acabam aba-
foi publicado na Revista Contemporânea lando os nervos de uma jovem e pálida
de Portugal e Brazil, em 1864, os outros senhora, Isaura. Quando Henrique lhe per-
constam do Arquivo Pitoresco: Seminário gunta se gosta de “lendas”, ela afirma
Ilustrado, nas edições de 1863, 1864 e que sim, mas prefere lê-las à luz do dia.
1865 (Carniel; Pavanelo, 2022, p. 4). Dr. Macedo replica: “Sem mise-en-scène
Uma moldura estabelece a conexão não prestam” (Chagas, 1874, p. 7). Lúcio
entre essas narrativas, tramada com recur- explica o termo: “[...] as lendas devem
sos muito convencionais: a nobre família ser lidas e apreciadas à noite, no meio
Fragoza possui uma casa ampla e antiga, do silêncio geral, quando se está sozinho,
cercada de dependências rústicas e situada num velho castelo de Ann Radcliffe, cheio
(Dumas, 2019, p. 34). Por sinal, o livro entes frágeis, pálidos ou rosados, de olhos
é mencionado em A lenda da meia-noite, negros ou azuis, alegres ou melancóli-
sugerindo que Chagas tenha emulado o cos, esses entes femininos encantadores
romance, cuja moldura organiza as nar- e tímidos adoram tudo o que os faz tre-
rativas em torno de assuntos sobrenatu- mer, e recreiam-se sobretudo com essas
rais que sugerem a existência de almas, histórias terríveis, em que o leitor estu-
prodígios, mortos-vivos. Para situar as pefato encontra um punhal ao voltar de
ocorrências insólitas, a meia-noite com- cada página, um ladrão à esquina de cada
parece como momento privilegiado sobre período, um fantasma pelo menos em cada
o qual pairam várias superstições. capítulo” (Chagas, 1874, p. 20).
Regressando à contação de histórias
de A lenda da meia-noite, o primeiro Note-se a sobreposição de situações:
conto, “Julieta”, se ambienta em Ben- num primeiro plano, Henrique Osório
fica, durante uma reunião de amigos que conta uma história na casa dos viscon-
discutiam temas sobrenaturais, como a des Fragoza; a sua trama retrata, num
existência de almas do outro mundo. A segundo plano, uma reunião de amigos
despeito dos protestos de um jornalista, a discutir temas sobrenaturais, quando
que preferia assuntos mais amenos, um um jovem, chamado Roberto, é convi-
médico insistia no tema para expressar dado a relatar sua experiência fantástica.
seu ceticismo, sugerindo que apenas um A narrativa de Henrique é abertamente
“doido” imaginaria que laços invisíveis ficcional; a de sua personagem afeta ares
pudessem atar o escravo ao senhor, o corpo de testemunho verídico ao enunciar uma
material e frágil e a alma etérea e imor- ocasião em que se encontrava assistindo a
tal. Uma “sublime tolice”, constata: “[...] uma peça de teatro. Roberto acompanha
quem tal supõe, não sentiu nunca debaixo a peça com tamanha entrega que “desa-
do escalpelo anatômico o cadáver inerte e parece o teatro, desaparecem os espec-
desprezível, nem pode avaliar com a vista tadores, desaparece a ficção” (Chagas,
infalível da ciência o nada imenso das 1874, p. 22). Segundo o narrador:
vaidades humanas!” (Chagas, 1874, p. 19).
Um jovem entusiasta, em represália, sugere “[...] arrastada no manto de fogo do ideal,
que a primeira vaidade humana é a ciência, a minha alma sente, enleva-se, palpita,
zombando do “presunçoso Hipócrates”. Em geme, pranteia, soluça com Macbeth o
seguida, o rapaz pede a Roberto que conte grito do remorso, suspira com Desdêmona
a história “do teu espectro”, pois as dis- a canção da saudade, gorjeia com Helena
cussões metafísicas estavam aborrecendo o hino da desposada, escuta com Rosina
as senhoras presentes: a meiga serenata, solta com Lucrécia o
rugido da envenenadora, e volta depois à
“Propor a senhoras uma história de fan- terra, deixando-me ficar pálido, extasiado,
tasmas é despertar-lhes a atenção, é fazer- porque entrevi em sonhos a deslumbrante
-lhes passar nas veias o estremecimento claridade de um mundo desconhecido”
do entusiasmo. Não sei por que, esses (Chagas, 1874, p. 22).
REFERÊNCIAS
E. T. A. Hoffmann/Reprodução/Domínio público
resumo abstract
Este breviário incursiona por narrativas This breviary explores unusual narratives in
de matriz insólita nas quais residem which they have dominant characteristics
dominantes do fantástico. Para tanto, a visita of the fantastic. To this end, tales from the
a contos da tradição do surpreendente, a surprising tradition are revisited, such as
exemplo de “O homem da areia” e “Casa “The sandman” and “House taken over”.
tomada”, vem possibilitar a identificação The objective is to recognize elements and
de elementos e aspectos estruturais dessa structural aspects of this lineage of intrigues,
linhagem de intrigas, visando – por meio de aiming at the articulation – through specific
recortes específicos – à aliança com ensaios excerpts – with essays that, for decades,
que, há décadas, têm asseverado sobre have investigated this fiction linked to the
essa ficção atada ao fenômeno do duplo, à phenomenon of the double, to the hesitant
recepção hesitante, ao homem imerso em reception, to the man immersed in a
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons
I
nsólito, sinistro, estranho e rea- De início, o aceno é ao conto “O homem
lismo maravilhoso são termos da areia”, do alemão E. T. A. Hoffmann
vizinhos, amistosos e, em alguma (1776-1822), escritor contemporâneo de
medida, congênitos ao fantástico. J. W. von Goethe. Elaborada em 1815, a
Uma pergunta, aliás, costuma che- intriga tornou-se conhecida em decorrência
gar com regularidade aos pesqui- de sua qualidade estética e devido a Sig-
sadores da vertente: o fantástico mund Freud, em 1919, tomá-la como objeto
se classifica como gênero, sub- de especulação para formular o ensaio
gênero, categoria, meio ou modo “Das Unheimliche”, título que em portu-
de construção ficcional? guês recebeu estas traduções: “O estranho”,
A designação modo de constru- “O inquietante” e “O infamiliar”.
ção é recente e recebe a anuência No texto de Hoffmann inscrevem-se
dos estudiosos. O fenômeno lite- elementos que estão na raiz dessa linha-
rário, que encontra nos gêneros conto gem caracterizada intencionalmente por
e romance um terreno fértil para seu atmosfera turva, sob a condução de nar-
desenvolvimento, engenha-se a partir de gra-
mática própria; em outras palavras, a poética
que edifica tal matéria põe em relevo uma
concentração de ingredientes e um proce-
RICARDO IANNACE é professor das Faculdades
dimento narrativo sui generis. Para ilustrar, de Tecnologia do Estado de São Paulo e do
cabe a incursão por tramas canônicas, gra- Programa de Pós-Graduação em Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa
ças às quais o fantástico, perto de alcançar da FFLCH-USP e autor de, entre outros, Murilo
três séculos, se faz conhecido e explorado. Rubião e as arquiteturas do fantástico (Edusp).
àqueles que atravessam a tenra idade, com o acender da luz, não fizer sombra na
a concepção identificadora de corpos parede do quarto ou cuja sombra não tiver
animados e inanimados se expressa fre- cabeça, morrerá em um ano” (Rank, 2014,
quentemente borrada. posição 762); “alguns povos levam ainda
Em “Das Unheimliche” está registrado hoje seus enfermos ao sol para atrair de
que um médico chamado E. Jentsch rea- volta, com sua sombra, a alma prestes a
lizara estudo introdutório a respeito do partir” (Rank, 2014, posição 800) –, isto
inquietante (o que parece funcionar como é, um mosaico cravejado de superstições
start às reflexões freudianas acerca do e fulgurações obituárias vem à baila nesse
tema). Jentsch acerta no sintagma “incer- estudo. Observação: o ementário que ao
teza intelectual” para traduzir o estra- longo da história se estratifica sobre o fan-
nho sentimento, mas o escritor Friedrich tástico mergulha em várias dessas nascentes.
Schelling vai além: é “[…] tudo o que
deveria permanecer em segredo, oculto,
mas apareceu” (apud Freud, 2010, p. 337,
3
grifos do autor). Freud, por sua vez, sin-
tetiza com propriedade: “[…] esse Unhei- Diante de volumoso material sobre a
mlich não é realmente algo novo ou alheio, natureza e os aspectos da vertente ficcional
mas algo há muito familiar à psique, que aqui discutida, um recorte teórico-crítico
apenas mediante o processo da repressão mostra-se necessário; a bem da verdade,
alheou-se dela” (Freud, 2010, p. 360). O postulados tornam-se mais elucidativos
pensador de Viena não ignora o trabalho do quando expostos em simultaneidade com
amigo e compatrício, médico psicanalista, obras para as quais eles lançam farol. De
Otto Rank – Der Doppelgänger (1914) (O saída, a menção é a Todorov.
duplo: um estudo psicanalítico). Trata-se Em Introdução à literatura fantástica
de pesquisa inicial que se adensa e ganha (1970), o historiador búlgaro, guiado por
publicação em livro no ano de 1925; é, até uma visão sistematizadora, à feição do
hoje, referência a todos que perscrutam o estruturalismo, elege e comenta uma série
fantástico e seus arredores. de narrativas de verve insólita, depreen-
As inferências de Rank contemplam lite- dendo-as como gênero. Isso suscita con-
ratos universais. Hans Christian Andersen, trovérsias: ao firmar, taxonomicamente,
Fiódor Dostoiévski, incluindo Hoffmann, incontáveis tipologias, oferece a algumas
Poe e outros cujas narrativas vislumbraram delas uma conceituação frágil; entretanto,
o duplo e a sombra, são incisivamente recu- não parece justo ignorar que, no conjunto,
perados. O investigante é prodigioso nas os argumentos de Todorov encerram plau-
remissões a comunidades, tabus e mitos sibilidade. Veja-se: “‘Cheguei quase a
regionais – “é um costume muito difun- acreditar’: eis a fórmula que resume o
dido na Áustria, em toda a Alemanha e espírito do fantástico” (Todorov, 1992,
também entre os países eslavos meridio- p. 36). E mais: “A hesitação do leitor é
nais, realizar, nas vésperas do Ano Novo pois a primeira condição do fantástico”
e do Natal, o seguinte teste: aquele que, (Todorov, 1992, p. 37, grifos do autor).
cia de metragem avantajada. O conto não Nos cursos de literatura que Cortázar
sintoniza com narrativas abalizadas pelo ministrava, ele preferia silenciar a trazer
medo: a inquietude é branda, se comparada a lume as intenções metafóricas de seus
às histórias de têmpera oblíqua do XIX escritos. Reservava os minutos derradei-
(nem da arena do verossímil, tampouco da ros das aulas para interagir com estudan-
órbita do realismo maravilhoso, sequer da tes esperançosos em lograr do mestre as
latitude do fantástico castiço – essa urdi- senhas decodificadoras da sua obra. Toda-
dura de Cortázar se situa no intermezzo). via, as respostas do autor argentino eram,
A rotina pacata dos irmãos afeiçoados à nessas circunstâncias, evasivas: “[…] no
moradia é destruída quando ambos começam meu caso, os contos fantásticos nasceram
a escutar rumores ali dentro (ele, absorto nos muitas vezes de sonhos, principalmente de
livros e na coleção de selos deixada pelo pesadelos. Um dos contos mais trabalhados
pai; ela, empenhada nos afazeres da cozinha pela crítica, para o qual buscaram um sem-
e na tarefa da costura). Para se protegerem, -fim de interpretações, é um pequeno conto
optam pelo bloqueio dos cômodos, impedindo que se chama ‘Casa tomada’” (Cortázar,
o acesso aos aposentos e, por contiguidade, 2018, p. 67). Reitera: “[…] no pesadelo eu
a comunicação entre as dependências; com estava sozinho e no conto me desdobrei
essa decisão, os proprietários comprimem-se num casal de irmãos que vive numa casa
dia após dia no domicílio. Até que, certa onde ocorre um evento de tipo fantástico”.
noite, se evadem da habitação: “Cingi com E esse “conto segue exatamente o pesa-
meu braço a cintura de Irene (eu acho que delo” (Cortázar, 2018, p. 67).
ela estava chorando) e saímos assim à rua. “Funes, o memorioso” (1942) é uma
Antes de nos afastar tive pena, fechei bem a narrativa que igualmente resiste a um con-
porta da entrada e joguei a chave no bueiro” ceito ortodoxo de fantástico e realismo
(Cortázar, 1971, p. 18). Parafraseando Todo- maravilhoso. O insólito marca presença na
rov, seria razoável considerar que o leitor descrição conferida à personagem-título
contemporâneo dificilmente assimilaria os e ao cenário que a circunscreve. Após
ruídos apontados na trama como manifes- ter sido derrubado por um cavalo, Ire-
tação de almas do outro mundo, ou algo neo Funes torna-se paralítico e permanece
semelhante a isso. recluso. Certa feita, em ala de penumbra
O estranhamento suscitado resvala da sua casa, o jovem de 19 anos recebe
interpelações nada quiméricas. Há indí- o narrador para uma conversa.
cios na intriga de que Irene e o protago- Se a figura desse fumante com fisiono-
nista teriam vivido experiência incestuosa: mia indígena carrega algo de sinistro (como
“Entramos nos quarenta anos com a ine- são incomuns o seu timbre de voz e o jeito
xprimível ideia de que o nosso simples e de olhar – aí ressonam laivos da literatura
silencioso matrimônio de irmãos era o fim fantástica), o que dizer da natureza bioló-
necessário da genealogia fundada pelos gica de Funes? Ela insurge em paridade com
bisavós em nossa casa” (Cortázar, 1971, p. a instância do realismo maravilhoso, dado
11). Ao alastrar-se, a acústica inclemente que o rapaz dispõe de memória e faculdade
rebenta como autocensura, obsidiando-os. perceptiva sem-iguais, super-humanas. No
Jolles discorreu. Vejam-se asserções inteli- em que nos sentimos envolvidos com eles
gentes do linguista neerlandês acerca desta numa cálida atmosfera de simpatia orgâ-
peça cifrada: “[…] a verdadeira e única nica eles nos são apresentados sob uma
finalidade da adivinha não é a solução, mas luz fria e estranha” (Sartre, 2005, p. 145).
a resolução” (Jolles, 1976, p. 116, grifo Em se tratando da literatura brasileira,
do autor). Ela “é plurívoca. A primeira componentes do fantástico, no Oitocen-
solução esconde e comporta uma segunda; tos, alastram-se por enredos de autores
tampouco entrega seu segredo mais pro- consagrados (Machado de Assis e Aluísio
fundo […]; as adivinhas ‘autênticas’ não Azevedo foram alguns deles); no Nove-
têm solução unívocas […]” (Jolles, 1976, centos, Monteiro Lobato e Cornélio Penna
p. 125). Bessière, nessa diretriz, vincula a experimentaram a fórmula, e, adiante,
astúcia do reconto com o sintagma esfín- vários outros: Erico Verissimo, Bernardo
gico. E assevera: “[…] no relato fantás- Élis, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia
tico, a impossibilidade da solução resulta Fagundes Telles. Contudo, dois escritores
da presença da demonstração de todas as produziram, nessa genealogia, entrechos
soluções possíveis” (Bessière, 2009, p. 12). que se consolidam como projeto de escopo
fantástico: José J. Veiga e Murilo Rubião.
Neles, o insólito leva em conta a idiossin-
4 crasia e aquele referencial humano para
os quais Sartre aponta nos romances de
Sobre o fantástico que deságua no Maurice Blanchot e Franz Kafka.
século XX, é também aguda a intelecção Na prosa de Murilo Rubião (1916-1991), a
de Jean-Paul Sartre. Em texto a respeito rotina que sufoca as personagens é a mesma
da narrativa Aminadab (1942), de Maurice que desencadeia uma rede de absurdos:
Blanchot, ele aproxima-a da obra de Kafka obreiros, radicados em um arranha-céu,
(o cotejo não se faz com A metamorfose, veem a torre crescer à revelia das injunções
e sim com O processo e O castelo). Para do engenheiro responsável pela edificação;
o filósofo do existencialismo, quer na fic- uma fila inócua, formada por indivíduos
ção do francês, quer na do tcheco, “[…] anônimos, expande-se a esmo no curso das
não há senão um único objeto fantástico: horas; uma esposa ganha peso desmesu-
o homem” (Sartre, 2005, p. 138). Isto é: radamente, engordando na proporção dos
“Nada de súcubos, nada de fantasmas, nada pedidos extravagantes confiados ao marido;
de fontes que choram […]” (Sartre, 2005, e uma mulher engravida sem que haja a con-
p. 139) – mas a presença, em constelação sumação do ato sexual, parindo em escala
eminentemente burocratizada, de um “labi- desordenada e ritmo desvairado. Esses e
rinto de corredores, de portas, de escadas demais relatos se organizam na então lin-
que não levam a nada” (Sartre, 2005, p. guagem sintética do contista obsessivo pelo
141). Eis que os “utensílios, os atos, os exercício da reescrita, a mimetizar, nessa
fins, tudo nos é familiar, e estamos com enunciação, tais feitos de altitude exorbi-
eles numa tal relação de intimidade que tante e mágica. Não é gratuito o parale-
mal os percebemos; mas no exato momento lismo que críticos agenciam entre Rubião e
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O presente artigo estuda o conto de This article examines the fairy tale genre,
fadas, partindo da análise sobre o conto beginning with an analysis of the marvelous
maravilhoso com base em Todorov, para, tale based on Todorov’s framework, and
em seguida, abordar a dimensão feérica subsequently addressing the enchanting
na visão de Benjamin, Lüthi, Chiampi, dimension through the perspectives of
Jolles, Coelho, Volobuef e Valenzuela. A Benjamin, Lüthi, Chiampi, Jolles, Coelho,
investigação prossegue com a origem Volobuef, and Valenzuela. The investigation
dos contos de fadas, identificando nas continues by exploring the origins of fairy
narrativas primordiais e nos mitos celtas tales, identifying in primordial narratives and
fontes para a gestação de histórias que Celtic myths sources for the development of
relatam a intervenção de seres femininos, stories that depict the intervention of female
intermediando relações entre dois beings, mediating relationships between two
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons
mundos: o natural e o sobrenatural. Por worlds: the natural and the supernatural.
fim, o artigo encerra-se com a reflexão a Finally, the article concludes with a reflection
respeito do papel dos contos de fadas na on the role of fairy tales in contemporary
contemporaneidade, com Tatar, Machado, times, drawing insights from Tatar, Machado,
Estés e Carter. Estés, and Carter.
R
recolhidos, assimilados, relidos e, por fim,
OS CONTOS DE FADAS
publicados como obras literárias.
A origem dos contos maravilhosos é
efletir sobre os contos incerta, no entanto, não há dúvida que eles
de fadas como gênero remontam às origens da linguagem e sua
requer uma leitura de evolução, o momento em que, através da
mundo de uma perspec- fala, narrativas começaram a circular entre
tiva do maravilhoso, a os grupos humanos em âmbitos espaço-tem-
qual se distancia dos porais bastante diversos. A interpretação da
pressupostos iluminis- existência, a geração da vida, as etapas de
tas e positivistas – defi- crescimento, a chegada da morte, o des-
nidos pela determina- tino implacável, os fenômenos da natureza,
ção de compreender a o medo e os perigos que estão à espreita,
realidade com base no a luz e as sombras, o sono, a crueldade, a
materialismo, determi- vingança, a mentira, vilanias de toda sorte,
nismo e outras linhas
teórico-filosóficas ancoradas na tentativa
racionalista de interpretar o mundo vivido.
O conto de fadas (ou conto da carochi- SANDRA TRABUCCO VALENZUELA
nha) é singular e impactante, mantendo, é professora do Programa de Pós-Graduação
em Estudos Comparados de Literaturas de Língua
porém, vínculos profundos com outros gêne- Portuguesa da FFLCH-USP e autora de, entre
ros, gestados e disseminados pela tradição outros, A bela e a fera: um reconto (Editora nVersos).
injustiças, mas também a boa fortuna e os natural personagens como duendes, fadas,
acontecimentos que movem a experiência do bruxas, gnomos e vampiros, os quais, mui-
cotidiano dentro de um contexto social, de tas vezes, se valem de objetos capazes
alguma forma, lançam as sementes para a de alterar ou interferir sobre a realidade
criação de narrativas primordiais, compostas física, como varinhas, vassouras, portas
de mitos e lendas, que se multiplicam através mágicas, poções secretas ou, até mesmo,
dos contos populares e contos maravilhosos. ferramentas intrincadas, que terminam por
Historicamente, os contos maravilhosos determinar acontecimentos que escapam
têm sua origem nas narrativas orais de cunho por completo à compreensão racional.
popular. Contos maravilhosos – ou contos O denominado “maravilhoso puro” se
de encantamento (Tavares, 1969, p. 422) – afasta de narrativas em que o sobrenatural
constituem narrativas compostas de fatos se destaca por receber certas explicações e
extraordinários, inclusive inverossímeis, com justificativas. Assim, o maravilhoso puro
a intervenção de fórmulas mágicas, talis- diferencia-se do maravilhoso hiperbólico,
mãs e objetos com propriedades inusitadas, do maravilhoso exótico e do maravilhoso
cujo enredo apresenta uma natureza mate- instrumental, visto que essas variedades
rial, social e sensorial que se manifesta pela valem-se de justificativas para a ocorrên-
busca da riqueza, da satisfação do corpo ou cia do sobrenatural (Todorov, 2012, p. 63).
pela conquista de poder, nos termos de Nelly Nos contos de fadas, estabelece-se
Novaes Coelho (2000, p. 173). Os contos um acordo tácito entre leitor e instância
maravilhosos variam de acordo com o seu narrativa, em que há uma aceitação dos
conteúdo, podendo ser: miraculosos, contos elementos mágicos sem questionamento,
de costumes e contos sobre animais. respeitando-se a lógica interna da narra-
Segundo Todorov, o maravilhoso é mar- tiva, manifestada através do espaço-tempo
cado pela quebra das leis da natureza, “sendo imemorial e do faz-de-conta. Desse modo,
necessário admitir novas fórmulas para a embora tanto a ficção científica como a
explicação dos fenômenos descritos” (Todo- literatura de horror estejam imbuídas de
rov, 1975, pp. 47-8). O maravilhoso como elementos constitutivos do maravilhoso1,
gênero literário congrega elementos do sobre- é possível afirmar que, entre suas marcas
natural e que são aceitos sem qualquer hesi- de distinção, estão os recursos, os meios
tação, por parte dos personagens ou do leitor
implícito: o que caracteriza o maravilhoso,
portanto, é a “própria natureza dos aconte-
cimentos” narrados (Todorov, 2012, p. 60). 1 De acordo com Todorov (2012, p. 51), o fantástico
articula-se no limiar entre o maravilhoso e o estranho,
Todorov sustenta que o conto de fadas por ele considerado domínios vizinhos. Por sua vez,
insere-se no gênero maravilhoso como uma Roas (2011, pp. 30-1) elabora o conceito afirmando que
“[...] lo fantástico se caracteriza por proponer un conflicto
de suas variedades carregada de aconte- entre (nuestra idea de) lo real y lo imposible. Y lo esencial
cimentos sobrenaturais, tipificados pela para que dicho conflicto genere un efecto fantástico no
es la vacilación o la incertidumbre sobre las que muchos
forma narrativa e não pelos acontecimentos teóricos (desde el ensayo de Todorov) siguen insistiendo,
sino la inexplicabilidad del fenómeno. Y dicha inexpli-
sobrenaturais em si. Fazem parte desse cabilidad no se determina exclusivamente en el ámbito
universo ficcional que estrutura o sobre- intratextual sino que involucra al propio lector”.
atributos distintivos que caracterizam siglo IX hasta el XII continúan las his-
o gênero do ponto de vista estrutural e torias de caballerías, y en ellas aparece
epistemológico. De acordo com Nicola- Melusina, druidesa de la Isla del Sena,
jeva (2003, p. 138), “os contos de fadas con todos los atributos que hacen de un
têm suas raízes na sociedade arcaica e no hada un personaje tangible de la historia
pensamento arcaico, sucedendo-se ime- humana” (Mantovani, 1959, pp. 10-1).
diatamente aos mitos”.
Os contos primordiais que origina- O substantivo “fada” provém do latim,
ram os contos de fadas permitiram ao fatum, i, cujo significado é destino, fado,
ser humano criar e recriar sua existência, fatalidade, desgraça, referindo-se também
produzindo uma diversificada constelação à personificação das Parcas (Fatae ou Tria
de deuses, poderes divinos, fadas, demô- Fata – os Três Destinos) ou ao oráculo
nios, destinos, monstros, animais falan- (Fata). Na França, o termo evoluiu para
tes, bruxas, ogros e outras personagens fée, resultando em faerie e féerie (feérico);
sobrenaturais que se inserem no universo foi nessa forma que a palavra ingressou
do imaginário: “[...] um outro mundo está na língua inglesa: fairy (século XIII).
muito vivo nos contos de fadas, graças Na mitologia grega, identifica-se com
à nossa capacidade como contadores de as Moiras da mitologia grega, que eram
histórias” (Zipes, 2012, p. 4). em sua origem demônios ligados ao nasci-
A citação mais antiga relativa a seres mento (Kury, 2008, p. 304), apresentadas
imaginários semelhantes a fadas aparece como três irmãs fiandeiras, que tecem
em Pomponius Mela (século I), em De os fios da vida de cada ser humano,
situ orbis 2 (43 d.C). A fada consiste num sendo Cloto responsável pelo nascimento,
elemento mediador para que os huma- Láqueses, cuja atribuição de girar o fuso
nos possam alcançar a realização (real ou encarregava-a também de tecer a vida,
fictícia) de seus sonhos e fantasias. De e Átropos, quem cortava o fio da vida.
acordo com Fryda Schultz de Mantovani, Portanto, o destino, a predestinação e as
Pomponius Mela situa fatalidades são componentes decisivos nos
contos de fada.
“[...] en la Isla del Sena a nueve vírgenes Cabe, aqui, destacar que na literatura
dotadas de poder sobrenatural, medio ondi- há fadas boas e fadas más, que atuam
nas y medio pitonisas, que con sus impre- como elementos sobrenaturais que inter-
caciones y sus cantos imperaban sobre el ferem na vida dos seres humanos, res-
viento y el Atlántico, asumían diferentes guardando dos perigos, favorecendo os
encarnaciones, curaban a los enfermos y protegidos com a boa fortuna ou, pelo
protegían a los navegantes. [...] Desde el contrário, provocando desgraças, impin-
gindo castigos terríveis ou mesmo fazendo
apenas travessuras. Exemplo disso é o
conto A bela adormecida, dos irmãos
2 Disponível em: https://play.google.com/store/
book s/details?id=z 3E9A A A Ac A A J&rdid=book-
Grimm: furiosa por não ter sido convi-
-z3E9AAAAcAAJ&rdot=1. dada para o banquete em comemoração
povos celtas, sendo ligada à água e, mais ções. Por sua vez, nas novelas de cavala-
tarde, à fertilidade da terra, identifican- ria germânicas, as personagens femininas
do-se pelo nome de “Dana, Danu, Dôn ou semelhantes às fadas são conhecidas como
Anu” (Silva, 2020, p. 17), associando-se damas brancas, damas verdes ou, ainda,
ao Rio Danúbio e ao Rio Don, na Rús- damas negras, de acordo com as cores
sia. O destaque para a presença feminina dos cavaleiros a quem elas protegiam;
como divindade associada não só à natu- já na Mesopotâmia, as fadas são repre-
reza e à gestação da vida, mas também sentadas como dama da planície, dama
à ambiguidade da passagem entre dois da fonte ou dama das águas, rememo-
mundos e à dualidade entre o bem e o rando imagens arcanas do feminino, numa
mal produziu uma infinidade de entidades veneração das manifestações da natureza
femininas sobrenaturais. substancializadas como água (rios, lagos,
As fadas são, portanto, herdeiras dessas fontes), bosques, árvores, frutos e terra.
tradições pagãs, portadoras de poderes O conto de fadas apresenta uma natu-
semelhantes a seres mágicos, como nin- reza espiritual, ética e existencial, ligada
fas, ondinas, oríades, dríades e valquí- à magia feérica (Coelho, 2000, p. 173).
rias, mas também, conforme a tradição, Nesta categoria, heróis e heroínas desen-
podem aludir a elfos, duendes e gnomos volvem percursos narrativos com a inter-
– para mencionar apenas alguns. Frutos mediação do sobrenatural para conquistar
da cultura ocidental, as fadas ganharam objetivos intangíveis, como o amor, a feli-
diferentes representações conforme as cidade e a alegria “para sempre”, numa
regiões e seus costumes. atmosfera cuja paisagem de sombra “não
De acordo com Coelho, foi por meio da é isenta de um toque irônico e satânico”
sinergia entre as fontes orientais e greco- (Benjamin, 1987, p. 240).
-latinas, da espiritualidade celta associada Devido à diversidade cultural e ambi-
à “cultura bretã e germânica que, nas cor- guidade quanto a definir um caráter e
tes da Bretanha, França e Germânia, as constituição única para as fadas, estas
novelas de cavalaria se ‘espiritualizaram’” foram ganhando novos contornos com a
(Coelho, 2012, p. 53), urdindo a trama passagem do tempo. No Renascimento,
do ciclo arturiano, encadeando roman- Shakespeare trouxe à cena o universo
ces corteses, baladas, lais (cantigas que feérico de Sonho de uma noite de verão
contam sobre amores trágicos e eternos) (1594-1596), onde um filtro de amor,
e narrativas de encantamento – cernes utilizado de modo incorreto, age sobre
do que seriam, mais tarde, os contos de os relacionamentos, provocando confu-
fadas da literatura infantil clássica. sões entre o mago Oberon, rei dos elfos;
Assim, a Fada Viviana, a Dama do Titânia, a rainha das fadas; o cavaleiro
Lago, sacerdotisa de Avalon, filha de transformado em burro; o duende Puck;
Diana – cuja missão era proteger e entre- as fadas Teia-de-Aranha, Grão-de-Mos-
gar a Excalibur, a espada mágica, ao rei tarda, Flor-de-Ervilha e Mariposinha,
Artur –, reflete a confluência de paradig- todas pertencentes ao reino de Titânia,
mas cristãos e aqueles das antigas tradi- entre outras personagens. Data do mesmo
22) alerta para o fato de que D’Aulnoy atribuir à educação. [...] os pais se inte-
nunca esclareceu o motivo pelo qual ela ressavam pelos estudos de seus filhos e os
se valeu da designação, embora a tenha acompanhavam com uma solicitude habi-
atribuído como título à sua coletânea de tual nos séculos XIX e XX, mas outrora
24 narrativas, em oito volumes, publicada desconhecida” (Ariès, 2015, p. 11).
entre 1697-1698: Les contes de fées ou, Dentro dessa nova perspectiva arquite-
literalmente, Os contos sobre fadas (des- tada pela sincronicidade entre Iluminismo,
taque nosso), que foi a primeira obra do sociedade industrial, ascensão da burgue-
gênero publicada em Paris. sia e as teorias defendidas por Rousseau
Como questiona Joan DeJean, é inex- em Emílio ou Da educação (1762), que
plicável o motivo pelo qual Madame se espalha inicialmente pela Europa, é
d’Aulnoy foi preterida pela história literá- que desponta uma literatura destinada à
ria francesa moderna, consagrando Char- infância. Nesse bojo, o conto de fadas
les Perrault (1628-1703) – contemporâneo passa a integrar o arcabouço literário
de Madame d’Aulnoy – “como inventor infantil, compondo uma conexão com o
do conto de fadas francês e suas narra- maravilhoso, porém, muitas vezes, sem
tivas como arquétipos dos contes de fée” perder de vista esse novo prisma peda-
(DeJean apud Barneville, 2023, p. 11), gogizante e/ou moralizante, carregado de
visto que o público leitor da época reco- valores burgueses e cristãos.
nhecia Marie-Catherine como a grande Charles Perrault recolheu e adaptou
escritora e criadora do gênero. Entretanto, contos maravilhosos tanto da tradição
seu apagamento – assim como o de mui- oral, como também da obra de Straparola
tas outras escritoras contemporâneas dela e Basile, publicando, em 1697, a coletânea
– fez com que Charles Perrault fosse o História do tempo passado com mora-
único nome de destaque no país, especial- lidades, também conhecida como Con-
mente a partir da mudança de paradigma tos da Mamãe Gansa (Les contes de ma
trazida pela Revolução Francesa de 1789: Mère l’Oye), considerada um marco da
a invenção da infância, isto é, a família literatura infantil, ao fixar literariamente
e seus novos contornos burgueses, deixa essas narrativas, tornando-se “o criador
de ver na criança um adulto em minia- do primeiro núcleo da literatura infantil
tura e passa a pensar em sua educação, ocidental” (Valenzuela, 2020, p. 229). Vale
na importância de sua formação como dizer que, na edição original, a Mamãe
cidadão, na experiência como um ser em Gansa era representada com a figura de
desenvolvimento, que tem necessidades e uma fiandeira, seguindo a tradição que
expectativas próprias, e que, para isso, associa as Parcas às fadas, reforçando
precisa de experiências adequadas à sua seu caráter de tecer o destino. Em Per-
idade: “A família tornou-se o lugar de rault, como infere Sonia S. Khéde, as
uma afeição necessária entre os cônjuges fadas “eram o retrato das grandes damas
e entre pais e filhos, algo que ela não era que usavam roupa de boa qualidade e
antes. Essa afeição se exprimiu sobretudo faziam reverências como as Preciosas da
através da importância que se passou a corte de Luís XIV” (Khéde, 1990, p. 17),
histórias locais; mas também com o resgate humanos e de uma dada sociedade, reve-
de escritoras (e suas obras) que sofreram lando sua ética, temores, ansiedades, com-
apagamento histórico; publicação de histó- portamentos compartilhados e tendências.
rias semelhantes à estrutura dos contos de Desse modo, se o lobo configura a metá-
fadas, mas que pertencem a culturas não fora do mal que está à espreita, mas que
europeias; versões de contos com releitu- poderá ser vencido através da inteligência
ras que respeitam temáticas contemporâneas e bondade do herói ou heroína, as fadas
referentes à mulher, inclusão e diversidade, são o auxílio mágico para uma pessoa
além de discussão de temas sociais e de em apuros, desde que ambas obedeçam
preservação do meio ambiente. Muitas são a critérios éticos e socialmente aceitos.
as polêmicas que cercam os contos de fadas, Como defende Ana Maria Machado (2010,
contudo, é consenso a relevância da leitura p. 13), os contos de fadas “fazem parte
desses contos como forma de apresentar aos de um patrimônio comum de todos nós,
pequenos leitores experiências e ensinamen- um tesouro que a humanidade vem pre-
tos que abordam questões como a morte, a servando pelos tempos afora. Cada um de
pobreza, a discriminação, a doença, a inveja nós tem direito a um quinhão dele [...]
e desentendimentos de todo tipo. quanto mais ele se divide, mais cresce”.
A fada, numa abordagem contemporânea, Angela Carter, na introdução de seu
traz consigo a possibilidade de realização livro A menina do capuz vermelho e
de sonhos e conquistas que parecem impos- outras histórias de dar medo (2011), con-
síveis para qualquer ser humano. Assim, sidera que a expressão “contos de fadas”
ela se consagra como elemento mediador engloba um “grande volume de narrativas
para que os humanos consigam alcançar infinitamente variadas que eram e ainda
seus sonhos e fantasias. Em oposição às são oralmente transmitidas e difundidas
fadas, estão bruxos, feiticeiros, animais mundo afora – histórias anônimas que
monstruosos e ogros, além de toda sorte podem ser reelaboradas vezes sem fim
de metáforas do mal: por quem as conta” (Carter, 2011, p. 7).
Embora sejam considerados uma forma
“Os contos de fadas são íntimos e pesso- de literatura infantil, os contos de fadas
ais, contando-nos sobre a busca de romance trazem a experiência da ancestralidade e,
e riquezas, de poder e privilégio e, o mais como afirma Estés (2005, p. 11), “sobre-
importante, sobre um caminho para sair da viveram à agressão e à opressão políti-
floresta e voltar à proteção e segurança da cas, à ascensão e à queda de civilizações,
casa. Dando um caráter terreno aos mitos aos massacres de gerações e a vastas
e pensando-os em termos humanos em vez migrações por terra e mar”.
de heroicos, os contos de fadas imprimem Essas histórias, alimentadas pela ora-
um efeito familiar às histórias no arquivo de lidade, sustentadas, multiplicadas e diver-
nossa imaginação coletiva” (Tatar, 2003, p. 9). sificadas pela escrita, continuam a povoar
a imaginação com a resistência da força
A linguagem simbólica dos contos de da linguagem, disseminadas pela litera-
fadas ressignifica, muitas vezes, valores tura e na virtualidade das telas.
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Disponível em: https://www.jstor.org/stable/40542110. Acesso em: 20/dez./2023.
ZIPES, J. The irresistible fairy tale: the cultural and social history of a genre. Princeton,
Princeton University Press, 2012.
Q
PREMISSAS: DIREITOS HUMANOS
NA AMÉRICA LATINA
para roubar tudo o que podiam e destruir sinato de seus povos (Ruiz, 2014). Desta
tudo o que lhes convinha” (Hinkelammert, forma, a temática dos DH se relaciona
2014, pp. 126-7). com várias dimensões da materialidade
Isto assinala que o capitalismo latino- da vida: democracia, economia, saúde,
-americano ressignificou as práticas de educação, habitação, natureza; o que
exclusão e violência, provocadas pela hie- também nos leva a outros temas, como
rarquização racial/étnica implantada pe- a luta antimanicomial, a pena de morte
lo sistema-mundo moderno-colonial, em etc. Seguindo na esteira de Ruiz (2014,
estruturas de longa duração formadas a p. 14), comumente os DH
partir do século XVI (Dussel, 1993; Porto-
-Gonçalves, 2015). Assim, a visão totali- “Tratam de acordos mínimos para situ-
zante e crítica da história e da situação ações de guerra ou conflitos civis [...]
atual do moderno capitalismo influenciou reconhecimento de cidadania em outros
teóricos latino-americanos a realizaram países; livre orientação e expressão se-
reflexões sobre os processos históricos xual; desenvolvimento de plenas poten-
de constituição de um marco global de cialidades de segmentos como crianças,
relações de poder, que significou para os adolescentes, mulheres, negros, indígenas
povos indígenas das Américas uma con- e tantos outros; falam de populações ri-
dição de subalternização e subordinação beirinhas, habitantes de quilombos ou das
(Resende; Nascimento, 2019). ruas das cidades, bem como do combate
Para a América Latina, a emergência a expressões reacionárias como racismo,
do sistema-mundo moderno-colonial sig- homofobia, xenofobia, tortura, e têm de-
nificou o começo da primeira forma de terminadas características com a divisão
domínio colonial europeu, gerando as con- da sociedade em classes”.
dições necessárias para aquilo que Qui-
jano (2000) chamou de colonialidade do Outra questão que cabe ressaltar é a
poder. No século XVI, se configuraram implicação da luta dos direitos humanos
alguns aspectos do padrão de poder que contra o sistema neoliberal que viola os
influenciariam não apenas o comporta- direitos das pessoas, vista no mercado ca-
mento social, político e econômico, como pitalista sacralizado, que nega aos pobres
também o cultural. e aos excluídos o direito básico de viver
Hodiernamente, os DH são uma cons- de forma digna. Nessa condição, a lógica
tante preocupação de diferentes sujeitos do mercado é reduzida ao cálculo, onde
sociais, de diversas opções teórico-políti- perdemos de vista a vida em comunidade
cas e opostas perspectivas. Sendo assim, e nas relações solidárias, porque é indis-
são utilizados para a defesa de modelos pensável para um “bem viver”, e é inútil
societários bem distintos: sociedades sem ao interesse capitalista (Mo Sung, 2014).
prisões, sem presídios clandestinos, sem Do ponto de vista epistêmico-político,
tortura, ou ausência de defesa em relação inegavelmente teremos que fazer um breve
a acusações recebidas, bem como justi- sobrevoo sobre o entendimento da práxis
ficativa para invasões de países e assas- a partir da teoria marxista e posterior de-
REFERÊNCIAS
D
esde 1988, a cultura passa a ser conside-
rada um direito, inclusive relacionado aos
direitos humanos fundamentais no Brasil.
Porém, na prática, esta teoria parece ser norteadora: “o que é cultura?”. Não é o
diferente, uma vez que nem todas as pes- problema de se definir cultura em um tra-
soas têm condições equitativas de acesso balho ou artigo acadêmico, nos quais se
ou provimento de bens e serviços cultu- estabelece a área que se deseja trabalhar e
rais, apesar de o Estado indicar garantir se aplicam os conceitos pertinentes àquele
isso em sua Constituição. campo. Aqui é colocada a inquietude sobre
Antes da pandemia de covid-19, foi o que responder de imediato a alguém – a
observado um progressivo desmonte dos um leigo, por exemplo – que perguntasse o
arranjos públicos institucionais no setor que é cultura. Não obstante, esta resposta,
cultural e retrações no fomento das ativi- mesmo ainda incompleta, não deve causar
dades culturais. Os motivos dessa retração contradição entre os inúmeros conceitos
por parte dos governos que representam e definições de cultura existentes. Dessa
o Estado em ação são diversos, incluindo forma, após vários anos atuando no meio
crises fiscais, ambientais, políticas e eco- cultural e estudando sobre cultura, em um
nômicas, além dos efeitos da pandemia que momento de reflexão surgiu a seguinte
têm afetado os setores culturais e criativos proposição: enquanto grupo e/ou sociedade,
nas cidades (Emmendoerfer; Fioravante, cultura é tudo aquilo que cultivamos e/ou
2021). Frente a isso, resgatar e refletir tudo aquilo pelo qual somos cultivados.
sobre os sentidos da cultura em uma so- A partir dessa afirmativa, este ensaio
ciedade pós-pandêmica, ou seja, após a (Burgoon, 2001) foi desenvolvido. Para isso,
instauração mundial da covid-19 como são apresentados os significados e origens
pandemia reconhecida pela Organização do termo em que a palavra “cultivar” é
Mundial da Saúde (OMS, 2020), revela- usada (por vezes, em seu sentido lato e, por
-se algo relevante no contexto brasileiro. outras, de forma metafórica) para ilustrar
Definir cultura não é tarefa simples. O o que está sendo proposto. Posteriormente
termo evoca interesses multidisciplinares, argumenta-se a afirmativa a partir de alguns
sendo estudado em áreas como sociologia, teóricos que estudaram e desenvolveram
antropologia, história, comunicação, admi- suas próprias definições de cultura. As-
nistração, economia, entre outras. Em cada sim, buscou-se mostrar que, independente
uma dessas áreas, é trabalhado a partir de da definição dada à cultura, essa pode ser
distintos enfoques e usos, sendo que par- incluída na afirmativa supracitada.
te dessa complexa distinção semântica se
deve ao próprio desenvolvimento histórico
do termo, resultando em vários conceitos ANTECEDENTES, APROXIMAÇÕES
que, às vezes, são contraditórios. Isso torna E DIFERENÇAS NAS
“cultura” um dos termos principais nas ci-
DEFINIÇÕES DE CULTURA
ências humanas, a ponto de a antropologia
se constituir como ciência quase somente
em torno desse conceito (Canedo, 2009). Ao procurarmos nos dicionários o sig-
O presente trabalho surge da inquie- nificado e origem do termo “cultivar”,
tação gerada ao ouvir a seguinte questão encontramos uma variedade de significa-
gado – para Crespi e Cardoso (1997), a pela sua cultura e avalia-se a cultura pe-
palavra “cultura” deriva do latim cole- lo progresso que traz a uma civilização”
re. O termo foi sucessivamente alargado, (Chauí, 2008, p. 55). O modelo que servia
em sentido metafórico, até a “cultura do como referência aos iluministas era o da
espírito”. Esse termo humanista foi am- cultura capitalista da Europa ocidental, em
plamente usado pelos filósofos Cícero e que os processos de exploração e domina-
Horácio e posteriormente retomado por ção eram justificados e legitimados ao se
Santo Agostinho, sendo possivelmente usar parâmetros de avaliação e hierarqui-
o que melhor corresponde ao conceito zação da cultura (Chauí, 2008). A partir
grego de paideia, um modo de cultivar da França, o termo “civilização” estende-
o espírito. A utilização, em sentido figu- -se rapidamente à Inglaterra (civilization),
rado, do termo “cultura” veio a alargar-se enquanto na Alemanha é, sobretudo, a pa-
ulteriormente até incluir, além do culti- lavra Kultur que assume um significado
var das próprias faculdades espirituais, análogo (Crespi; Cardoso, 1997).
também o da língua, da arte, das letras Por sua vez, a palavra “culto” vem do
e das ciências (Crespi; Cardoso, 1997). particípio passado de colo: cultus, que é
A partir da consolidação do Iluminis- aquilo que já foi trabalhado. Depois, pas-
mo, no século XVIII, o significado do sou a ter um sentido espiritual/religioso,
termo “cultura” é alargado, integrando o ou o contrário – não se sabe ao certo
patrimônio universal dos conhecimentos se o significado religioso foi anterior ou
e valores formativos ao longo da história posterior ao significado material. Contu-
da humanidade, e, como tal, é aberto a do, “cultura” passou de um significado
todos, constituindo, enquanto depósito da material para um significado ideal e in-
memória coletiva, uma fonte constante de telectual (Bosi, 2008).
enriquecimento da experiência. Contudo, Assim, a gênese do conceito de cultura
é nesse período que igualmente se afirma em termos científicos tem, por um lado, a
o conceito de “civilidade ou civilização, transformação do significado de cultura,
exprimindo o refinamento cultural dos ocorrida no século XVIII, de formação
costumes, em oposição à pretensa barbárie do espírito para um conjunto objetivo de
das origens ou a dos povos considerados representações, modelos de comportamen-
não civilizados” (Crespi; Cardoso, 1997, to, regras e valores enquanto patrimônio
p. 15). No Iluminismo, a cultura é uma comum realizado ao longo da evolução
forma de avaliar o quanto uma sociedade histórica e, por outro lado, a nova cons-
é civilizada. Dessa forma a cultura pas- ciência que se distingue do caráter histó-
sa a ser percebida como um conjunto de rico – relativo às diversas configurações
práticas artísticas, científicas e filosóficas culturais, conforme o tipo de sociedade
que permite a existência de uma hierar- e as diferentes épocas (Crespi; Cardoso,
quização dos valores de cada indivíduo 1997, p. 16). Tais observações etimológi-
ou classe na sociedade. Assim, a cultura cas são necessárias ao observarmos que
passa a ser associada ao progresso: “[...] ambos os significados sobreviveram nas
avalia-se o progresso de uma civilização línguas modernas. Pode-se falar em cul-
práticas de vida, que são resultado dos mais importante que outra, isso depende
costumes historicamente estabelecidos e do que cada grupo ou sociedade cultiva
dos hábitos que, à primeira vista, eram para si e considera importante do seu
extravagantes, podendo surgir como acei- ponto de vista.
táveis se for considerado o ambiente so- Tudo aquilo pelo qual um dia fomos
cial no qual encontraram as suas origens. “cultivados” ganha novos significados ao
longo de nosso crescimento, de nossa vida
e, sem perceber ou saber ao certo quando
CULTURA COMO PRÁTICAS, isso acontece, passamos a ser não mais
SOCIABILIDADES E ORIENTAÇÕES apenas cultivados, mas também cultiva-
dores do que acreditamos ser importante.
SIMBÓLICAS E MATERIAIS
Quanto a isso, Crespi e Cardoso (1997,
pp. 25-6) assinalam:
Crespi e Cardoso (1997) notam que sur-
gem diversos elementos no termo “cultura”, “Na prática, surge como confirmado o fato
ressaltando, por um lado, a dimensão des- de que cada indivíduo nasce no seio de um
critiva e cognitiva da cultura e, por outro, contexto social já formado e de uma cul-
a prescritiva. A primeira dimensão evoca tura específica que lhe é transmitida pelos
“as crenças e as representações sociais da adultos através da linguagem, dos hábitos
realidade natural e social, ou as imagens alimentares, das expressões de afeto, das
do mundo e da vida, que contribuem para regras para a educação, das narrações inter-
explicar e definir as identidades indivi- pretativas da vida e do mundo, da definição
duais, as unidades sociais, os fenômenos dos papéis e de tantos outros aspectos. Só
naturais”; já a segunda, um conjunto de num segundo momento o indivíduo cons-
valores que “indicam os objetivos ideais a ciente, através de uma elaboração pessoal
perseguir, e de normas (modelos de ação, dos significados que lhe foram transmiti-
definição dos papéis, regras, princípios dos, e levando à prática a capacidade de
morais, leis jurídicas etc.) que indicam o negação, que inicialmente referimos, pode
modo segundo o qual os indivíduos e as transformar tais significados até à produção
coletividades devem comportar-se” (Crespi; de novos significados”.
Cardoso, 1997, p. 14).
Metaforicamente, podemos verificar Não obstante, tudo que é cultivado neces-
que, apesar de o quilo do café ser mais sita de ferramentas para o cultivo. A cultura
caro que o do feijão ou do arroz no mer- surge então como um conjunto polivalente,
cado, não podemos dizer que o café tem diversificado e frequentemente heterogêneo
mais valor que os demais produtos. Ele de representações, códigos, leis, rituais, mo-
apenas adquiriu um valor de troca ou, delos de comportamento, valores que cons-
nesse caso, um valor financeiro maior tituem, em cada situação social específica,
que os dos outros, pela lei socioeconô- um conjunto de recursos, ou ferramentas,
mica da oferta e da procura. Também cuja função própria surge de acordo com
não podemos dizer que uma cultura é as contingências (Crespi; Cardoso, 1997).
tura, mas igualmente produtor de cultura Uma cultura de café existe quando
(Laraia, 2001). um agricultor a cultiva. E isso se aplica
Assim, poderíamos ter uma variedade a qualquer cultivo agrícola. Quando um
de possibilidades para conceber ao menos compositor cria uma música, ele pretende
uma noção de cultura que faça sentido. cultivar aquela mensagem ou sentimento
Pensada como um conjunto de ideias, va- transmitido pela música em outras pes-
lores e conhecimentos, o termo “cultura” soas. Assim como quando um ator ao en-
envolve, em primeiro lugar, a dimensão cenar, ou um pintor, usa de seus recursos
do passado, aproximando-se da noção de para transmitir algo. Eles estão fazendo
patrimônio. Isso porque, a cada ano que cultura, ou seja, estão cultivando algo em
passa, acumula mais conhecimentos que alguém. Em contrapartida, uma plantação
foram herdados de outras gerações. Con- de arroz é uma cultura, porque ela foi
tudo, ao voltarmos à etimologia, cada vez cultivada. Quando consumimos algum bem
mais nos preocupamos com a dimensão cultural, aquilo é cultivado em nós. Todo
de futuro, que é a dimensão do projeto. ensinamento, crenças, modos de pensar e
Logo, não basta que herdemos do passado agir são considerados uma cultura, por-
todas essas riquezas, é preciso continuar que nos foram cultivados e os tornamos
aprofundando discussões como esta em- nossa cultura, assim como nós cultivamos
preendida neste texto; se a cultura está aquilo para as gerações futuras, mesmo
sempre in progress, ela está sempre em em situações de crises e de mudanças de
fase de desvios, não é algo estabelecido hábitos, quando comparadas às situações,
para sempre. Na contemporaneidade, é antes e depois, da instauração da pande-
importante direcionarmos nossas preo- mia de covid-19.
cupações para criar projetos e políticas
de cultura; além desta criação, os nossos CONSIDERAÇÕES FINAIS
ideais democráticos exigem socialização
de conhecimentos. Dessa forma, “não só
cavar na matéria em si da cultura, mas A partir da questão norteadora deste
também estendê-la na linha da comuni- artigo, observou-se que para se definir
cação, na linha da socialização; e fazer cultura há necessidade de se contemplar
com que este bem seja repartido, distri- diversos elementos, inclusive em interse-
buído, da maneira mais justa e mais ampla ções, para ser completa, a depender de
possível, o que é próprio da sociedade qual área esteja sendo discutida; de forma
democrática” (Bosi, 2008). sintética, ela abrange todos os conceitos
Através do exposto, vemos a cultura de cultura, incluindo os dos setores agrá-
como aquilo que cultivamos, no senti- rios e organizacionais.
do do que buscamos para o futuro, co- Se pensarmos no campo das organiza-
mo projeto, e cultura como aquilo pelo ções, a partir dessa afirmação, poderemos
qual somos cultivados, aquilo que nos refletir sobre o que é cultura organiza-
foi transmitido ao longo dos tempos, no cional (Schein, 2016); ou sobre quando
sentido de passado. ela é o que os proprietários ou acionistas
REFERÊNCIAS
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https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_26.06.2019/art_215_.asp.
S
érgio Lucena, artista parai- na superfície sensual das telas. Assim,
bano radicado em São nas narrações plásticas que o pintor nos
Paulo, aqui foi primeira- apresenta está implicada uma espécie de
mente acolhido pelo mes- cosmogonia derivada das festas brasileiras
tre pintor Aldemir Mar- profanas e sacras, frequentemente asso-
tins, cearense, que, como ciadas às manifestações da religiosidade
Lucena, soube traduzir na de matriz africana, e também do sincre-
sua obra questões relevantes tismo cultural caboclo e originário, das
que, em Sérgio Lucena, são sínteses da arquitetura de viés popular
tornadas claras através do e nordestino. Enfim, os cruzamentos, as
projeto pictórico desenvol- encruzilhadas e os encontros (nem sempre
vido pelo artista ao longo de, pelo menos, pacíficos) que são marcas indeléveis da
quatro décadas de trabalho intensamente nossa cultura também contribuem para a
dedicado à pintura. A um e a outro artista realização dessa pintura, que, por com-
interessam suas raízes, seu lugar de ori- plexa, não desmente ou contesta certas
gem, certo território natal onde a força conquistas das escolas de pintura do Oci-
pungente e sempre presente da luz solar é dente, notadamente daquelas acontecidas
transmutada em experiência sensível atra- na Europa e nos Estados Unidos.
vés da cor que a pintura traduz e celebra. O resultado, verificado nas pinturas
Em Sérgio Lucena, a vitalidade da lin- de Lucena, propõe, delicada e sutil-
guagem pictórica também pode ser verifi-
cada ou confirmada a partir de processos
que, articulados pelo artista, resultam em
obras de alta voltagem poética e grande
CLAUDINEI ROBERTO DA SILVA é educador,
densidade simbólica. Desse projeto, parti- licenciado pela Escola de Comunicações e Artes
cipam vários elementos que se articulam (ECA) da USP, curador e artista visual.
Lagarto que ri, da série Deuses da Terra, 2005. Acrílica sobre cartão schoeller
Foto: Marcio Fischer
Carneiro caramujo, da série Deuses da Terra, 2006. Acrílica sobre cartão fabrianno
Retrato de Aldemir Martins, 2006. Óleo sobre linho colado sobre madeira
Wagner Kotsura
C
oincidindo com a partir de três grandes blocos temáticos:
a atual emergên- paradigmas da política externa brasileira, a
cia do Brasil no política externa brasileira vista do exterior,
cenário interna- relações regionais e bilaterais.
cional, marcada Nessa viagem histórico-geográfica, cada
pelo papel de escala é um mergulho no conhecimento. Os
destaque exer- temas se complementam: relações comerciais,
cido nos princi- a formação de recursos para diplomacia, a
pais foros de discussão dos grandes temas política de segurança internacional e as ope-
mundiais (segurança, comércio, meio am- rações de paz, política comercial e climática.
biente, trabalho), o mercado editorial re- E as regiões se espalham: EUA, América
gistra um importante lançamento: 25 anos Latina (Argentina e países andinos), África,
de política externa brasileira (1996-2021). China, Japão, Europa e Oriente Médio.
Como informa o título, trata-se de um es- Como explicam os professores da USP
tudo sobre a diplomacia nos governos Fer- Alexandre Uehara, editor, e José Augusto
nando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula Guilhon Albuquerque, organizador, este li-
da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e vro “se inspira e dá sequência ao livro em
Jair Bolsonaro, com um olhar aprofundado quatro tomos 60 anos de política externa
e crítico em relação às nuances de cada brasileira (1930-1990), editado pelo Núcleo
período, determinadas pelo estilo e pelas de Pesquisa em Relações Internacionais da
opções de cada governante.
Em 526 páginas, divididas em Introdu-
ção, 19 Capítulos e Conclusões Finais, 28
especialistas nacionais e do exterior exa- WAGNER KOTSURA é jornalista,
com experiência em mídia impressa
minam à exaustão os diferentes e inúme- (Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo)
ros caminhos percorridos pelo Itamaraty, e telejornais (SBT e TV Record).
VII – solução pacífica dos conflitos; há nenhum acordo efetivo, depois de anos
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; de negociação. É muito mais coisa simbólica
IX – cooperação entre os povos para o pro- que de fato. Não há sequência às dezenas
gresso da humanidade; de milhares de papéis empilhados, muitos
X – concessão de asilo político. deles com pomposos nomes de protocolo
Parágrafo único. A República Federativa do ou carta de intenções”.
Brasil buscará a integração econômica, polí- Algumas frases se tornam definitivas.
tica, social e cultural dos povos da América Na área diplomática, John Foster Dulles,
Latina, visando à formação de uma comu- chanceler do presidente americano Dwight
nidade latino-americana de nações”. Eisenhower nos anos 1950, deu uma aula
de pragmatismo: “Países não têm amigos,
3. O Brasil sem acordos reais. países têm interesses comuns”.
Aponta-se aqui um fenômeno comum aos Os futuros diplomatas brasileiros, que
tempos modernos da comunicação de massa, muito se beneficiarão desse livro, têm a opor-
em que as aparências são cada vez mais tunidade de conciliar conhecimento teórico
planejadas, preparadas e manipuladas para com lições práticas, como acima mencio-
criar uma sensação de realidade que não nadas, e a constatação de que, no Brasil,
corresponde ao que efetivamente ocorre na a política externa representa o equilíbrio
prática. Há décadas que os principais países entre o poder superior (governo), a socie-
deixaram de expor publicamente seus do- dade (sobretudo a parte da elite que valoriza
cumentos estratégicos (se é que alguma vez essas questões) e a corporação que executa
o fizeram plenamente), e ingressaram numa as políticas determinadas.
“diplomacia midiática”, na qual se trocam Leiam e fiquem com as palavras com
mensagens cifradas, recados, pela imprensa, que o professor Guilhon fecha o livro: “Que
buscando sensibilizar a opinião pública. este árduo trabalho investigativo da histó-
Diz Guilhon: “Existe uma ausência de ria contemporânea de vinte e cinco anos
programas concretos decorrentes dos grandes de nossa política externa contribua para a
compromissos das visitas presidenciais aos literatura acadêmica nacional e estrangeira
eventos plurilaterais. O presidente faz uma sobre os percalços e avanços de nossa re-
viagem, assina vários documentos, mas não lação com o mundo”.
S
e os estudos a res- arquivo, cuja sede é o Instituto de Estudos
peito do Modernismo Brasileiros da USP. É sabido que esse nú-
brasileiro e da figura cleo de pesquisa e difusão dos escritos ma-
de Mário de Andrade riodeandradianos, com numerosos trabalhos
já contavam com um que se ativeram a seu arquivo e ainda se
poderoso fôlego ani- debruçam sobre ele, dedica especial atenção
mando pesquisa, en- à correspondência desse autor (que afirmou,
sino e difusão de co- certa vez, sofrer de “gigantismo epistolar”1),
nhecimento nos mais variados formatos e
plataformas, o recente centenário da Semana
de Arte Moderna veio intensificar ainda mais
1 “Sofro de gigantismo epistolar”: esse enunciado de
vivamente todas essas atividades. Isso porque Mário está justamente em uma missiva, escrita no
as movimentações em torno da efeméride dia 10 de novembro de 1924 e direcionada a Carlos
Drummond de Andrade. Em 1945, o ano do falecimen-
tornaram propícia a divulgação ao grande to de Mário, Drummond publicou, em A rosa do povo,
o poema “Mário de Andrade desce aos infernos”, em
público de materiais inéditos, bem como que se lê: “O meu amigo era tão/ de tal modo extraor-
de textos dispersos em periódicos hoje ex- dinário,/ cabia numa só carta” (Andrade, 1979, p. 238).
Verbo afetuoso, críticas, conselhos criativos, mostra de
tintos ou editados em obras já esgotadas. textos ainda não publicados, tudo isso palpitava nas
Esse é o caso de Correspondência: Mário missivas de Mário a Drummond e a outros escritores.
REFERÊNCIAS
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revista e ampliada. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1979, pp. 237-40.
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CANDIDO, A. “Oswald viajante”, in Vários escritos. 2ª ed. São Paulo, Livraria Duas Cidades,
1977, pp. 51-6.
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é editada desde 1989, mantendo sempre a mesma estrutura. A cada número, além da relação dos
Dossiês aqui apresentada, temos as seções Textos, Livros e Arte. Abaixo, os números ainda disponíveis.
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Revista Cinquenta Gestão e Política na Redes Sociais
103 114 126 137
Clima Interculturalidades Semiótica e Cultura Vida Escolar
Universidade Pública
Cosmologia
96 107 119 130
Alcoolismo Saúde Urbana Direitos Humanos Independências
Balanço da
Crise Mundial Latino-Americanas