N. 140 (2024) LITERATURA DE ENTRETENIMENTO

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CREDENCIAMENTO E APOIO FINANCEIRO:
PROGRAMA DE APOIO ÀS PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS PERIÓDICAS DA USP
COMISSÃO DE CREDENCIAMENTO

Rev ista USP / Superintendência de Comunicação Social


da Universidade de São Paulo. – N. 1 (mar./maio 1989) -
- São Paulo, SP: Universidade de São Paulo, Superintendência
de Comunicação Social, 1989-

Trimestral.
Continuação de: Revista da Universidade de São Paulo
Descrição baseada em: N. 93 (2012)
ISSN 0103-9989

1. Ensaio acadêmico. I. Universidade de São Paulo.


Superintendência de Comunicação Social
CDD-080
ISSN 0103-9989 140 janeiro/fevereiro/março 2024

dossiê literatura de entretenimento


5 Editorial

9 Apresentação Jean Pierre Chauvin

11 Literatura policial – uma abordagem panorâmica Sandra Reimão

25 Notas sobre a distopia literária moderna Jean Pierre Chauvin

39 Ficção científica – breve panorama histórico Romy Schinzare

63 Gótico: o medo e o pessimismo como propulsores da criação literária Oscar Nestarez

75 Sangue, morte, medo: a força e permanência do horror na literatura e nas artes


Caio Alexandre Bezarias

89 No rastro da meia-noite: moldura e paródia do gótico em Pinheiro Chagas Cleber Vinicius


do Amaral Felipe

107 Fantástico: breviário Ricardo Iannace

119 Conto de fadas: origens, conceitos e reflexões sobre o gênero Sandra Trabucco Valenzuela

textos
137 Direitos humanos na América Latina: entre insurgência e libertação César Augusto Costa

145 O que é cultura? Reflexões para uma sociedade (pós-)pandêmica José Ricardo Vitória
e Magnus Luiz Emmendoerfer

arte
158 Na raiz do tempo, a matriz da cor Claudinei Roberto da Silva

livros
179 Diplomacia e progresso Wagner Kotsura

183 Cartografias da camaradagem criativa: a correspondência de Oswald a Mário de Andrade


Julio Augusto Xavier Galharte e Marco Antônio Teixeira Junior
A é uma publicação trimestral da
Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP.
Os artigos encomendados pela revista têm prioridade
na publicação. Artigos enviados espontaneamente poderão
ser publicados caso sejam aprovados pelo Conselho Editorial.
As opiniões expressas nos artigos assinados
são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor CARLOS GILBERTO CARLOTTI JUNIOR


Vice-reitora MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA

SUPERINTENDÊNCIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Superintendente EUGÊNIO BUCCI

Coordenador editorial LUIZ ROBERTO SERRANO

Editor JURANDIR RENOVATO


Editora de arte LEONOR TESHIMA SHIROMA
Revisão MARIA ANGELA DE CONTI ORTEGA
MARIA PAULA LUCENA BONNA (estagiária)
SILVIA SANTOS VIEIRA
Secretária MARIA CATARINA LIMA DUARTE
Colaborador MARCOS SANTOS (fotografia)

Conselho Editorial
ALBÉRICO BORGES FERREIRA DA SILVA
CICERO ROMÃO RESENDE DE ARAUJO
EDUARDO VICTORIO MORETTIN
EUGÊNIO BUCCI (membro nato)
FERNANDO LUIS MEDINA MANTELATTO
FLÁVIA CAMARGO TONI
FRANCO MARIA LAJOLO
JOSÉ ANTONIO MARIN-NETO
OSCAR JOSÉ PINTO ÉBOLI

Ctp, impressão e acabamento


Gráfica CS

Rua da Praça do Relógio, 109 – Bloco L – 4o andar


CEP 05508-050 – Cidade Universitária – Butantã – São Paulo/SP
Telefax: (11) 3091-4403
www.usp.br/revistausp
e-mail: [email protected]
Q
uem nunca se deixou seduzir pela inventividade
da ficção científica? Ou se emaranhou nos ardis
e reviravoltas de um enredo policial? Ou sentiu o
estômago gelar numa cena de terror, de mistério? De
Júlio Verne a Ray Bradbury, de Georges Simenon
a Dashiell Hammett, de Edgar Allan Poe a Stephen
King, a lista é imensa e inclui bem mais do que
simplesmente aquilo que a estreiteza do adjetivo
“comercial” pode abrigar. Pois este dossiê da Revista
USP é uma homenagem a esses gêneros (e autores)
todos, a um tipo de literatura que desde sempre tem
proporcionado prazer e alegria a milhares de leitores mundo afora.
E é um número especial por diversos aspectos, a começar pela capa. Ela foi
elaborada a partir de ilustrações do brasileiro Henrique Alvim Correa para a edição
belga, de 1906, de A guerra dos mundos. Segundo consta, o próprio H. G. Wells
se encantou com o trabalho do artista carioca. São de fato desenhos belíssimos.
Outro motivo de satisfação para nós é o dossiê ter sido coordenado por Jean
Pierre Chauvin, amigo desta casa, e que há muito se dedica ao tema, lecionando na
ECA-USP os cursos Romance Distópico e Romance Policial de Agatha Christie,
ou seja, criando na universidade um espaço de discussão sobre uma produção
literária que sempre se manteve fora dos radares acadêmicos. Ele soube montar
um time original de especialistas no assunto, pois muitos deles (como ele próprio)
também são autores do gênero a que se dedicam como pesquisadores. E isso,
como o leitor verá, confere um charme todo particular ao dossiê.
Aqui a literatura de entretenimento é levada a sério. Como tem de ser. Afinal,
como bem lembrou Isaac Bashevis Singer ao receber o Nobel de Literatura,
nenhum escritor pode perder de vista sua função essencial de ser um entertainer
do espírito. Em suas palavras, que tomo a liberdade de transcrever aqui, “não
há um paraíso para leitores aborrecidos e nenhuma desculpa para uma literatura
tediosa que não intrigue o leitor, lhe dê a alegria e a fuga que a verdadeira arte
sempre oferece”. Portanto, boa diversão!

Jurandir Renovato
6 REVISTA USP • SÃO PAULO • N.92 • P. XX-XX • DEZEMBRO/FEVEREIRO 2011-2012
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literatura de
entretenimento
Apresentação
Além da literatura para entretenimento

A
exemplo do que suce- Felipe, Oscar Nestarez, Ricardo Ian-
deu em outras opor- nace, Romy Schinzare, Sandra Reimão
tunidades, este dossiê e Sandra Trabucco Valenzuela pela
resultou do produ- seriedade e rigor com que prepararam
tivo diálogo com o os artigos. Agradeço em particular a
editor da Revista Jurandir Renovato pela oportunidade
USP, Jurandir Reno- de somarmos vozes na discussão em
vato. Desde o início, torno do que se convencionou chamar
a ideia fora reunir de “literatura(s) de massa”.
ensaios de caráter Assim como os autores do dossiê,
introdutório sobre as presumo que as narrativas de ficção
modalidades e temas científica, as distopias, as histórias
encontrados na prosa de detetive, os romances góticos e a
dita “comercial”, que circula entre nós. literatura de horror não precisam (nem
Os artigos oferecem ótimas sínteses. podem) ser reduzidos a meros produtos
Foram produzidos por escritores e estu- de consumo, voltados exclusivamente
diosos competentes que tencionam soar para passar o tempo.
didáticos – ou seja, claros e objetivos Bastaria considerar a riqueza dos
– sem perder de vista a densidade que cenários imaginados pelos escritores;
as matérias merecem. Trata-se de con- a complexidade das personagens que
tribuições efetivas estendidas a novos criaram; os artifícios empregados pelos
leitores e a pesquisadores que já inves- seus narradores etc. para desconfiarmos
tigam esses gêneros e temas literários. que determinados rótulos não compro-
Sou muito grato a Caio Alexandre metem a qualidade literária nem invia-
Bezarias, Cleber Vinícius do Amaral bilizam a composição de tramas de ele-

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dossiê literatura de entretenimento

vado alcance, capazes não somente de méride, esperamos que os ensaios sejam
entreter, mas de estimular outras formas úteis e estimulem a realização de novas
de ref lexão sobre nosso tempo e lugar. empreitadas, dentro e fora da academia.
Este dossiê marca um século da pri-
meira edição do romance Nós, de Iêvgueni
Zamiátin. Para além de celebrar a efe- Jean Pierre Chauvin

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Literatura policial – uma
abordagem panorâmica
Sandra Reimão

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resumo abstract

Este texto está dividido em duas partes: This paper is divided into two parts: in part
na parte I abordamos as origens e as I we address the origins and characteristics
características do gênero policial e na of the detective fiction literature and in part
parte II, a literatura policial escrita por II we address detective fiction literature
brasileiros. Em cada uma dessas partes written by Brazilians. In each of these parts,
há três subdivisões, assim organizadas: there are three subdivisions organized as
Edgar Allan Poe e o nascimento do follows: Edgar Allan Poe and the birth of
gênero policial; Sherlock Holmes, de the detective genre; Conan Doyle’s Sherlock
Conan Doyle, e Hercule Poirot, de Agatha Holmes and Agatha Christie’s Hercule Poirot;
Christie; Sobre o policial noir (parte I); Em On the detective fiction noir (part I); Around
torno do detetive brasileiro; Brasil: sobre the Brazilian detective; Brazil: on crime and
crimes e culpas; A expansão da literatura guilt; The expansion of Brazilian detective
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons

policial brasileira no século XXI (parte II). fiction literature in the XXIst century (part II).

Palavras-chave: gênero policial; policial Keywords: detective genre; detective


noir; literatura policial brasileira. fiction noir; Brazilian detective fiction
literature.
LITERATURA POLICIAL – ORIGENS O tipo mais usual de narrativa policial é
E CARACTERÍSTICAS DO GÊNERO o chamado policial de enigma, ou romance
de enigma. Tal denominação indica que a
solução do enigma, a elucidação, é o motor
Edgar Allan Poe e o que mantém a narrativa; quando o enigma
nascimento do gênero policial

T
é desvendado, se encerra a narrativa.
Edgar Allan Poe (1809-1849), o criador
da literatura policial, desenvolveu o cha-
oda narrativa policial apre- mado policial de enigma e seus textos nesse
senta um crime, um delito, gênero são os exemplos mais expressivos
e alguém disposto a des- dessa forma narrativa.
vendá-lo, mas nem toda
narrativa em que esses
elementos aparecem pode
ser classificada como poli- Este texto retoma, em partes e com modificações, vá-
rios trabalhos anteriores que publiquei sobre o tema,
cial. Isso porque, além da
especialmente os livros O que é romance policial (1990) e
presença desses elementos, Literatura policial brasileira (2005).
é preciso haver uma deter-
minada forma de articular
a narrativa, de construir a
relação do detetive com o SANDRA REIMÃO é professora da
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
crime e com a narração, para que uma nar- (EACH) da USP e autora de, entre outros,
rativa possa assim ser considerada. Literatura policial brasileira (Zahar).

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dossiê literatura de entretenimento

“Assassinatos na Rua Morgue”, de Edgar amigo, ao mesmo tempo memorial e aju-


Allan Poe, é considerada a primeira narra- dante do detetive protagonista – estabelece
tiva policial, a fundadora do gênero – ela um modelo que encontraremos muitas outras
foi publicada em abril de 1841 na Graham’s vezes em romances policiais de enigma.
Magazine. Com a personagem Auguste Não é apenas sobre esse narrador anônimo
Dupin, Poe inventa o detetive moderno, que o leitor dispõe de poucas informações.
inventa “um arquétipo literário: o detetive O próprio Dupin é uma personagem apenas
amador, o homem que coleciona enigmas esboçada. E o é intencionalmente. Dupin é
como os outros colecionam objetos” (Lacas- primordialmente uma máquina de raciocinar,
sin, 1974, v. 1, p. 19). sua maior capacidade é o rigor nos raciocí-
Para Dupin, investigar é um hobby, um nios como um instrumento para investigar
passatempo que se apresenta como um e desvendar a aparentemente inexplicável
substituto do ócio. Dupin é um detetive lógica das ações e motivações humanas.
amador, suas investigações se baseiam em Dupin sempre se lança na tarefa de
grande parte nas rigorosas inferências que investigação depois de o crime ter acon-
faz sobre os pensamentos e as ações dos tecido. Tanto o trabalho de Dupin em rela-
envolvidos nos crimes em questão – pos- ção aos crimes quanto a narração de suas
tura bastante condizente com o positivismo deduções são posteriores – elas acontecem
filosófico de então. Todo esse rigor e cien- depois de o crime ter ocorrido. E esta é
tificismo são aplicados sobre um fato que uma regra básica no romance de enigma.
articula os mesmos ingredientes das nar- Ou seja, o romance policial de enigma é
rativas dos jornais populares – um crime composto de duas histórias: a do crime e a
–, e este crime ocorre, no caso de Poe, do inquérito ou investigação (Todorov, 1979,
nas novas cidades industriais. pp. 57-67), sendo que a investigação (e a
O detetive Dupin, este “arquétipo lite- narrativa) começa após a primeira história
rário”, tem vida curta, aparece apenas nos (a do crime) já ter ocorrido. A segunda
três contos policiais de Poe: “Assassinatos história (a do inquérito ou investigação) é
na Rua Morgue”, “O mistério de Marie o espaço onde as personagens, especial-
Roget” e “A carta roubada”. mente o detetive e o narrador, detectam e
Não é o próprio detetive Dupin que narra investigam uma ação já consumada.
suas aventuras: nos três contos policiais Essas características de cada uma das
de Poe há um narrador anônimo, amigo duas histórias, nessa dupla história, serão,
do protagonista Dupin. O leitor não fica sem dúvida, a estrutura básica de todo
informado do nome, da aparência física, romance de enigma clássico, estrutura que
da idade etc. desse narrador. Sabe-se ape- enfatizará, em última instância, não o próprio
nas que ele é um fiel amigo, admirador e crime (primeira história), mas a forma de
companheiro de moradia de Dupin. Para apreensão do detetive sobre uma ação pas-
o leitor, ele é apenas um mediador, um sada, a forma de investigação, de condução
contador das aventuras e das inferências e do inquérito (segunda história).
raciocínios de Dupin. Essa forma de nar- Encontramos, também, no romance de
ração – narrativas elaboradas por um fiel enigma, assim como nos contos policiais

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de Poe, uma das consequências dessa estru- Holmes. Holmes foi imortalizado por seu
tura: a imunidade do detetive. Uma vez que autor em quatro romances – Um estudo em
as personagens da segunda história, a do vermelho (1ª ed., 1887), O signo dos quatro
inquérito, apreendem sobre uma ação pas- (1890), O cão dos Baskerville (1902) e O
sada e que as narrativas são elaboradas em vale do terror (1915) – e 56 contos distri-
forma de memória, via de regra, pelo amigo buídos em cinco livros. Além desses textos
ou memorialista do detetive central, dimi- de Conan Doyle, vários outros autores escre-
nuem, em princípio, as possibilidades de o veram narrativas parodiando, ressuscitando
detetive morrer ou sofrer grandes danos no ou fazendo pastiches com essa personagem.
desenrolar da narrativa. Fato esse perfeita- O cinema também dedicou vários filmes a
mente condizente com a perspectiva inicial Holmes. O portal IMDb – Internet Movie
da narrativa policial, dada pela concepção Data base registra até dezembro de 2022
do detetive não como uma personagem, mas mais de 200 filmes longas-metragens tendo a
como uma “máquina de pensar”. personagem Sherlock Holmes como principal.
O narrador dos contos policiais de Poe A fama de Sherlock Holmes chegou a tal
não é a “máquina de raciocínio” rigorosa e ponto que até hoje muitas pessoas acreditam
infalível que é Dupin; ele despreza indícios que ele tenha realmente existido e não que
reveladores, não se apercebe de lacunas, seja uma criação literária. Nos textos de
assim como o leitor médio. E Dupin sem- Conan Doyle que têm Holmes como pro-
pre apresenta soluções relativamente sur- tagonista, o narrador tem uma importância
preendentes para ambos. Pois nem toda a central. Embora o narrador, dr. John Watson,
intimidade de Dupin com seu narrador faz se proponha a ser o mediador que fará com
com que esse lhe adiante os resultados de que o público tome conhecimento dos fatos
suas investigações. Só após ter elucidado vividos e desvendados por Sherlock Holmes,
o caso e estar com o enigma resolvido, e apesar de o próprio Holmes também se
Dupin revela a solução simultaneamente referir a Watson como um cronista de seus
ao delegado de polícia ou à pessoa que lhe feitos, John Watson é muito mais do que
solicitou a investigação, a seu companheiro um mero mediador, um simples anotador.
narrador e ao leitor. Watson é um narrador, em primeiro lugar,
Narrador e leitor partilham do fato de não que escolhe e seleciona as aventuras de seu
serem máquinas de raciocínio infalíveis e do protagonista que devem ser narradas e é um
fascínio pelas surpresas que as inferências narrador que opta por sua forma de narra-
deste homem-máquina, a infalível máquina ção. Inclusive, por exemplo, em O signo dos
de raciocinar detetive Dupin, podem causar. quatro, Holmes critica a forma não lógica,
“romanceada”, como Watson teria narrado
Sherlock Holmes, de Conan Doyle, seus feitos no caso.
Holmes, na maioria dos casos, se lança
e Hercule Poirot, de Agatha Christie
ao trabalho de investigação após o enigma
estabelecido, o fato (o delito, o crime etc.)
Conan Doyle (1859-1930) criou o mais consumado; Watson, por seu turno, começa
famoso detetive de todos os tempos: Sherlock a atuar, como narrador, quando o enigma

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dossiê literatura de entretenimento

já foi resolvido por Holmes. Watson atua- cada em 1920. Geralmente, os textos que
ria como o detetive do detetive. Se Holmes têm Poirot como personagem central seguem
investiga um crime, Watson, para elaborar uma linha mais clássica do romance de
a narrativa, segue as pistas de Holmes a enigma, são textos que seguem mais fiel-
respeito da investigação e as transmite ao mente os modelos criados por Poe e Conan
leitor; Watson investiga e tenta compreender Doyle. Em alguns desses textos encontramos
o processo de investigação de Holmes. Se o Capitão Hastings, que atua como amigo,
Holmes visa elucidar um crime, Watson, companheiro e memorialista narrador dos
por seu turno, visa esclarecer e transmitir feitos de Poirot. Hastings, assim como Wat-
o processo de investigação desse crime. son e o narrador anônimo das aventuras
Além disso, Watson, enquanto narrador, de Dupin, tornou-se narrador a pedidos.
é um narrador-personagem, sua visão dos Hastings, como Watson, é um narra-
fatos é parcial, ele sabe tanto quanto o leitor dor-personagem, o narrador com a visão
médio. Esse fato facilita ao leitor identificar- “com”, aquele que sabe tanto quanto as
-se com esse narrador, a fim de que possa personagens. E Hastings será a “pior” das
seguir a narrativa compartilhando os pontos personagens, aquela que demora mais tempo
de vista de Watson. para encontrar as explicações dos aconte-
cimentos. Mas, muitas outras vezes, fica
*** patente para o leitor que Hastings está sendo
Não se sabe ao certo o número de textos ludibriado e, assim, o leitor adianta-se a
escritos por Agatha Christie (1891-1976), esse narrador-personagem, que é basica-
isso devido às diferenças entre as edições mente “aquém-leitor médio” em relação à
inglesas e americanas e ao fato de um sua capacidade intelectual.
mesmo grupo de contos ser muitas vezes Para Hercule Poirot o trabalho de inves-
encaixado de forma diferente, em volumes tigar é composto, assim como era para Hol-
diferentes. Agatha Christie escreveu, apro- mes, tanto do trabalho de dedução mental
ximadamente, 61 romances, 165 contos e 14 (“as células cinzentas”), quanto do trabalho
textos para teatro (concebidos originalmente empírico (reconstruir pistas etc.). Com ênfase
para teatro ou teatralizados por ela mesma); para a primeira atividade, Poirot sempre diz:
além disso, escreveu mais oito textos sob “O verdadeiro trabalho é feito aqui dentro
outros nomes (Mary Westmacott e Aga- nas pequenas células cinzentas”.
tha Christie Mallowan). Seus romances e Outro detetive criado por Agatha Christie
contos deram material para muitos filmes, é a fascinante Miss Jane Marple, uma gen-
seriados televisivos e montagens teatrais. til, pacata e refinada, mas simples, velhi-
Cerca de 30 romances, 57 contos e seis nha inglesa, brilhante e certeira quando
peças teatrais de Agatha Christie têm como se trata de conhecer a natureza humana e
protagonista Hercule Poirot. Esse detetive desvendar suas ações.
belga, vaidoso e refinado, com caracterís-
ticas francesas, foi o primeiro criado por ***
Christie, tendo aparecido inicialmente na Ao analisarem o gênero, vários estu-
narrativa “O misterioso caso Styles”, publi- diosos já assinalaram o caráter apazi-

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guador da literatura policial de enigma. Sobre o policial noir
Referindo-se à literatura policial clássica
frente aos demais grupos de textos literá-
rios, Jorge Luis Borges por várias vezes O chamado policial noir, também conhe-
salientou o “reconforto” de uma codifica- cido como policial americano, tem como
ção narrativa em relação a uma literatura criador Dashiell Hammett (1894-1961).
caótica: “Nesta nossa época, tão caótica, O policial noir teve na coleção Série
há algo que, humildemente, tem mantido Noire, que começou a ser publicada na
as virtudes clássicas: o conto policial. Já França em 1945, seu ápice e seu reconheci-
que não se compreende um conto policial mento pelo público. Mas a sua plataforma
sem princípio, sem meio, sem fim”. de lançamento foi a revista Black Mask,
De outro ponto de vista – enfocando onde, a partir de 1925, Hammett começou
o âmbito psicológico do leitor – autores a publicar seus contos. Hammett iniciou
como W. Auden enfatizarão o tempo- sua atividade literária no início da década
rário aniquilamento de nossos instintos de 1920, mas no fim desta e começo dos
agressivos que a literatura policial clás- anos 1930, com os romances Safra ver-
sica pode propiciar a seu leitor. Auden melha, Estranha maldição e A chave de
lembra que o conf lito central da litera- vidro, é que ele teve o seu período mais
tura policial é o que se estabelece entre fértil e mais valorizado pela crítica. O
culpa e inocência, e o leitor poderia aí principal protagonista criado por Hammett
apaziguar seu sentimento de culpa, não é o detetive profissional Sam Spade – uma
por ter efetivamente cometido algum figura antológica da literatura policial.
ato ilícito e sim por ter experimentado O romance policial noir é, em alguma
desejos que sabemos absurdos, por pos- medida, antagônico ao romance policial de
suírem uma dimensão de periculosidade enigma clássico. Para começo de conversa,
social. A leitura de romances policiais de no romance policial noir não se encontra
enigma traria ao leitor a satisfação de se um detetive infalível que sempre resolve
ver como aquele que não agiu errado, e os mistérios. Temos um detetive falível
que, portanto, não precisa se sentir cul- e que entra na ação e que muitas vezes
pado, já que essas narrativas, depois da recorre à violência física. São apresenta-
suspeita geral, situam a culpabilidade em das situações angustiantes e sentimentos
outra pessoa que não o leitor. O assassino convencionalmente tidos como ignóbeis,
está lá, apontado, delimitado, detectado; paixões bestiais, ódios ardentes etc. A
é alguém que não somos nós, alguém gíria e os palavrões são admitidos, usa-
diferente e dissociado de nós. -se a linguagem coloquial do dia a dia
Em contraposição ao policial de e vê-se frequentemente ironia e deboche.
enigma, visto por muitos críticos como É importante notar que essa reviravolta
evasivo e apaziguador do leitor, o poli- proposta pelo romance policial noir foi
cial noir é apontado, também quase que feita em uma época em que o mundo
unanimemente, como um instrumento estava em reviravolta, às vésperas da
de crítica social. Segunda Grande Guerra e do crash da

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dossiê literatura de entretenimento

Bolsa em 1929. E, no que tange ao uni- tecimentos. Ou seja, no romance noir a


verso das ideias, estávamos presenciando narrativa se dá ao mesmo tempo em que
uma importância crescente da filosofia de a ação e não há garantia da imunidade
Nietzsche, do vitalismo de Bergson, da física do detetive. Os detetives noirs se
psicanálise e os primórdios do Existen- envolvem e muitas vezes são desenca-
cialismo, que engendram um clima cultu- deantes das ações que constituem a trama
ral que se opõe ao otimismo racionalista dos romances. Esses detetives também
oriundo do Positivismo. se envolvem totalmente com as demais
A obra de Dashiell Hammett O falcão personagens da narrativa – amam desen-
maltês é considerada um dos melho- freadamente, odeiam radicalmente etc.
res romances policiais noirs de todos O ponto central, estruturador, funda-
os tempos, além de ter obtido grande mental dos textos de Hammett é a crítica
sucesso de público. ético-político-social. Através de seu dete-
Ao invés de bem-educado, fino, ele- tive e das tramas em que ele se envolve,
gante, sutil, como a maioria dos famo- Hammett nos mostra o quanto o mundo
sos detetives do romance de enigma, do crime participa e é solicitado pela
Sam Spade, o protagonista de O falcão sociedade capitalista.
maltês, é rude, vulgar, áspero ao expres- O tempo todo, ao fazer seu detetive
sar-se e deselegante. Além disso, Sam penetrar nas minúcias do mundo do crime,
Spade não é um diletante, ele trabalha Hammett vai fazendo com que nós, lei-
para sobreviver, ele é um empregado tores, nos apercebamos das contradições,
assalariado da Agência Continental. das ambiguidades, dos jogos duplos do
Em uma paródia em relação à propagada mundo burguês em que vivemos, numa
abstinência sexual dos grandes detetives verdadeira alegoria econômico-político-
do romance de enigma, e ao mesmo tempo -social da nossa sociedade.
satirizando os valores sociais que regem Utilizando o mundo do crime como
os relacionamentos afetivo-sexuais em nos- metáfora da sociedade em geral, Hammett
sas sociedades burguesas, Sam Spade vive vai denunciando a falência das institui-
envolvido com mulheres; suas relações não ções burguesas, a corrupção, o egoísmo, a
seguem os padrões aceitos e reforçados na falsa moralidade etc. E faz com que nós,
nossa sociedade (em O falcão maltês ele leitores, passemos a enxergar com outros
é amante da esposa de seu sócio); seus olhos não a própria narrativa policial, mas
relacionamentos são rudes, duros e sem o mundo em que vivemos cotidianamente.
nenhum romantismo.
A própria forma de construção nar- LITERATURA POLICIAL NO BRASIL
rativa, no romance noir, é radicalmente
distinta daquela que encontramos no
romance de detetive. A narrativa é cons- Em torno do detetive brasileiro
truída no presente, acompanha o correr
dos fatos, segue as investigações, inclu- O mistério, publicada em 1920, é
sive as infrutíferas, e a ordem dos acon- considerada a primeira narrativa brasi-

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leira franca e explicitamente policial1. do gênero, não cessa de fazer referências
O mistério foi escrito, em capítulos, por a seus progenitores.
Coelho Neto, Afrânio Peixoto, J. J. C. C. O detetive policial clássico é, como o
Medeiros e Albuquerque e Viriato Corrêa concebeu Allan Poe, uma máquina de racio-
– cada autor lia e dava continuidade ao cinar. Os detetives da literatura policial brasi-
capítulo anterior de outro autor, sem leira também tentam ser como o investigador
um plano geral da obra. Esse texto foi Dupin, Sherlock Holmes e Hercule Poirot,
publicado inicialmente em 1920, no jor- potentes e frias máquinas de elaborar dedu-
nal A Folha, em forma de folhetim e, a ções. Mas muitos deles não conseguiram se
seguir, foi lançado em livro pela Com- manter nessa trilha do raciocínio frio; sendo
panhia Editora Nacional. A partir dessa latinos, brasileiros, incorrem em “deslizes”
primeira incursão no gênero, de maneira sentimentais – e recursos narrativos cômicos
paulatina e gradualmente crescente, vão assinalam essa discrepância com o modelo.
sendo editados mais textos do gênero de Em O mistério, o Major Mello Ban-
autores brasileiros, crescimento esse que deira é um detetive policial encarregado de
se acelera a partir da década de 1990 investigar um caso de assassinato. Mello
(Medeiros e Albuquerque, 1979)2 . Bandeira já aparece, desde o início, como
Como característica geral, cremos poder uma figura relacionada à literatura poli-
dizer que há na literatura policial bra- cial europeia: é descrito como o Sherlock
sileira, desde essa narrativa inicial, uma da cidade. Essa característica será, nessa
exacerbação e ampliação do cômico e que personagem, motivo de situações cômicas.
os recursos cômicos aumentados passam a Ao tentar aplicar métodos científico-tec-
ser veículos para sublinhar as limitações nológicos de investigação na linha Hol-
das regras vigentes nos clássicos policiais mes, Mello Bandeira sempre acaba por
e a assinalar que em solos brasileiros essas se dar mal e por ser alvo da ironia dos
regras precisam ser alteradas. companheiros: por exemplo, quando põe
O mistério foi publicado em 1920, ou cães rastreadores a procurar o criminoso,
seja, 79 anos depois da estreia da perso- eles acabam se voltando contra o próprio
nagem Dupin, 33 anos depois do “nasci- investigador, que esquecera em seus bolsos
mento” de Sherlock Holmes (e no apogeu as luvas e os sapatos do assassino.
da fama dessa personagem) e no mesmo Mello Bandeira procura ser, como Hol-
ano do lançamento da primeira aventura mes, uma máquina de raciocinar. Mas, ao
do detetive Hercule Poirot, de Agatha final, vamos surpreendê-lo em uma atitude
Christie. De nascimento tardio, a litera- carinhosa para com uma das moças detidas
tura policial brasileira, como aliás é traço para investigação. No decorrer da história
da literatura policial brasileira encontra-
mos vários textos em que os protagonistas
1 Confira em: Medeiros e Albuquerque (1979). Este livro não reiteram as características globais dos
apresenta em um capítulo o primeiro levantamento clássicos do gênero, como Mello Bandeira.
sistemático sobre literatura policial brasileira.
Notemos que nessas personagens cen-
2 Para uma visão geral da literatura policial brasileira ao
longo desse tempo, ver: Reimão (2005). trais as características pessoais que alte-

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ram o modelo narrativo da literatura que esses dois “vícios” são o cenário de
policial clássica têm algo a ver com uma muitas histórias em que o delegado se
difusa ideia de brasilidade: exacerbação envolve e dão ocasião para muitas de suas
dos sentimentos e da sexualidade, mis- deduções e achados.
ticismo, ingenuidade e limitação intelec- Os procedimentos de Espinosa ao buscar
tual, e, lembremos, essas especificidades esclarecer um determinado crime estão pró-
são, na maioria das vezes, assinadas em ximos das formas de atuação dos detetives
chave cômica. Como que a indicar que do chamado romance policial clássico ou
quanto mais brasileiro for uma persona- policial de enigma, pois Espinosa sem-
gem, mais patente se torna a discrepância pre utiliza métodos racionais de investi-
entre esta e a literatura policial enquanto gação. Além disso, apesar de um pouco
modelo transposto, e mais necessária ainda cínica, a personagem é basicamente gen-
se torna a chave cômica para assinalar e til – praticamente nunca recorre à vio-
ao mesmo tempo dar a dimensão dessa lência física. Apesar de ser um detetive
defasagem. dedutivo-racional, ele não pode ser clas-
Mais de 50 anos após a criação do sificado como um gênio ou uma infalível
detetive Mello Bandeira, em 1996, Luiz máquina de raciocinar. Trata-se apenas de
Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), o princi- um indivíduo bom, tentando fazer o certo.
pal escritor brasileiro de literatura policial, E é nessa especificidade que esse dete-
publicou seu primeiro livro com o prota- tive assinala sua distância com o modelo
gonista Espinosa – O silêncio da chuva. do protagonista da narrativa de enigma
Mais uma vez um detetive protagonista clássica. Sua falta de genialidade intelec-
que se distancia do modelo máquina de tual, sua capacidade cognitiva mediana
raciocinar clássico. A seguir vieram os não comprometem sua busca por justiça
livros Achados e perdidos, Vento sudoeste, – mostrando que o perfilar-se ao bem
Uma janela em Copacabana, Perseguido, pode estar acessível a qualquer pessoa.
Espinosa sem saída, Na multidão, Céu de
origami, Fantasma, Um lugar perigoso e
A última mulher. Brasil: sobre crimes e culpas
A cidade do Rio de Janeiro coprota-
goniza, junto com Espinosa, essas nar- Em O mistério, primeira narrativa poli-
rativas. Nascido e criado no Rio, o dele- cial brasileira, em que pese o caráter bas-
gado Espinosa mora sozinho há mais de tante debochado do texto, não deixa de
dez anos (sua ex-mulher mudou-se com o ser curioso notar que essa narrativa relata
filho para os Estados Unidos) no último um “crime justo”, ou seja, um crime que
andar de um prédio de três andares sem o autor admite ter cometido e que todos
elevador e seu apartamento está repleto sabem que ele está dizendo a verdade,
de livros. O delegado, que sabe ter pouca mas todos também acreditam haver jus-
resistência à bebida alcoólica, tem dois tificativas morais suficientes para o ato
grandes vícios/hobbies: colecionar livros e criminoso. Ao final de O mistério, o réu
andar pelo Rio de Janeiro antigo. É claro confesso é absolvido, o que transforma o

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assassinato julgado em um crime impune. titutas, vai formando um quebra-cabeça
A apresentação na narrativa de um crime onde se encaixam peças de um vasto pai-
impune, que poderia ter vários sentidos e nel crítico da sociedade brasileira atual e
funções, tem, nesse texto, um objetivo bem seus subterrâneos.
preciso: é uma crítica, por via do cômico, O assassinato de prostitutas, provavel-
ao sistema jurídico nacional. mente associado à perda de uma fita de
O mistério ironiza a literatura policial videocassete por um de seus clientes, é a
de enigma e se autoironiza perfilando-se chave para que o protagonista, dr. Man-
a ela ou utilizando exacerbadamente seus drake, um advogado que pretende um dia
recursos. Seu desfecho é uma grande iro- ser escritor, comece a ir desvendando e
nia: temos uma crítica ao sistema judici- nos apresentando o intrincado relaciona-
ário, que é elaborada pondo em cena um mento da prostituição com as quadrilhas
júri impressionável, a decidir sobre a culpa organizadas, os distribuidores de tóxicos,
de um assassinato sem vítima, de certa os traficantes, a rota da cocaína e, por
forma metaforizando o próprio papel do fim, o acobertamento legal que as gran-
leitor nesse tipo de narrativa. des empresas prestam a essa atividades.
Essa questão do crime moralmente justi- O papel do Brasil na rota internacional
ficável reaparecerá algumas vezes na litera- da cocaína é um dos dados da ação de A
tura policial brasileira, como, por exemplo, grande arte. A trama básica dessa narra-
nos contos “Um candelabro apaga uma tiva conduz o texto a abordar o crime de
vida” e “Não pôde o mais fez o menos”, “colarinho branco” organizado e encaixá-
de Luiz Lopes Coelho. -lo no vasto quadro das intrincadas rela-
Em A grande arte, de Rubem Fonseca ções do tecido social. Por outro lado, essa
(1925-2020), publicado em 1983, a ques- complexa narrativa também tangencia uma
tão da culpa e da delimitação de culpados questão que paira no horizonte da litera-
põe-se como duplamente inviável: devido tura policial, aquela do homem como pos-
ao limite humano de desvendar sentidos sível leitor de signos e possível agente de
e destes nunca serem unívocos, e devido seu destino, em contraposição ao homem
ao fato de o mundo do crime ser profun- enquanto paciente de um destino que lhe
damente imbricado na sociedade em geral é ininteligível e inexorável.
e necessário a esta. A grande arte é uma Certa ambiguidade nos desfechos, e
história de verdades e fachadas. De colu- portanto na atribuição de culpas, é uma
náveis e respeitáveis corruptos de luvas característica das narrativas policiais de
brancas e de pequenos marginais de mãos Garcia Roza.
ensanguentadas. De violências legalizadas Em Vento sudoeste, Gabriel, um rapaz
e de massacres físicos. triste e solitário, que mora com a mãe e
Em A grande arte, romance construído está às vésperas de fazer 30 anos, procura
com técnicas da narrativa policial e tam- o delegado Espinosa com uma estranhís-
bém jogando, brincando com as próprias sima história: no aniversário anterior, um
técnicas, Rubem Fonseca, através do fio vidente dissera que ele cometeria um assas-
condutor do assassinato de algumas pros- sinato deliberado antes de seu aniversário

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dossiê literatura de entretenimento

de 30 anos. Gabriel está assustado com o que matava quadros (1961) e A ideia de
anúncio e seu aniversário está chegando. matar Belina (1968).
Depois da conversa com Espinosa, a amiga Na década de 1980, um escritor brasi-
que levara Gabriel para conversar com o leiro, do qual algumas obras podem ser
delegado é assassinada. Há uma série de perfiladas no âmbito da literatura poli-
assassinatos de pessoas próximas a Gabriel. cial, alcançou grande sucesso de público:
Dona Alzira, mãe do rapaz, acha que o Rubem Fonseca. Em seguida ao romance
filho está possuído pelo demônio e pede A grande arte, publicado em 1983, Rubem
ajuda a um padre, que não acredita em Fonseca publicou Bufo & Spallanzani, em
sua interpretação. Há uma versão final 1986, também literatura policial, também
“oficial” para explicar os crimes, mas, com grande repercussão.
no seu íntimo, o delegado Espinosa tem Na década de 1990, vemos surgir mais
outra interpretação para os fatos: para ele três grandes autores de literatura policial:
o criminoso é outro, só que, como diz, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Patrícia Melo e
“o que eu acho é muito fantasioso para Tony Bellotto. Dessa autora, destaquemos
constar de um inquérito policial [...] Pas- Acqua Tofana e O matador, de 1994 e
sado algum tempo, acho que ele vai me 1995. Tony Bellotto criou uma série com o
procurar [...] Não sei o que virá primeiro: detetive Bellini, na qual se destaca Bellini
a confissão ou a loucura”. e a esfinge, publicado em 1995. A partir
Esta falta de uma interpretação final uní- dessa época, aumenta o número de edito-
voca, de um desvendamento claro e inequí- ras com coleções de literatura policial e
voco que geraria um tranquilizador veredito cresce bastante o número de autores bra-
capaz de delimitar a culpa de um crime sileiros no gênero.
aos criminosos e transgressores, faz com Nas décadas finais do século XX e pri-
que, neste aspecto, os romances policiais de meira década do século XXI houve um
Garcia-Roza possam ser vistos em diálogo crescimento do mercado editorial brasileiro
com clássicos da literatura policial noir. em números absolutos. O grande cresci-
mento do mercado de livros no Brasil (pro-
A expansão da literatura cesso que cessou a partir de 2014) se deu
de maneira correlata a uma maior aceita-
policial brasileira no século XXI
ção, por parte do público leitor, do autor
de ficção nacional: altas frequências em
Após a narrativa inaugural da literatura feiras de livros, presença em listagens de
policial em terras brasileiras, O mistério, mais vendidos, destaque em prateleiras de
publicada em 1920, esse gênero literário livrarias são atestados do crescimento do
manteve-se constante, porém bastante dis- interesse do leitor de ficção pela atividade
creto no país, com poucos escritores e de escritores brasileiros, em contraposição
não muitas obras deste perfil – com pou- ao escritor estrangeiro.
cas exceções, como os contos policiais de O crescimento do mercado de livros no
Luiz Lopes Coelho reunidos nos volumes Brasil e da aceitação do autor brasileiro
A morte no envelope (1957), O homem são dados que emolduram e configuram

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o cenário do atual crescimento da litera- e a ironia como recursos para assinalar
tura ficcional de entretenimento e, nesse especificidades do Brasil.
âmbito, o crescimento e a consolidação Não podemos encerrar este artigo sem
da literatura policial de autor brasileiro. nos referirmos, mesmo que seja apenas em
Nosso percurso por narrativas brasilei- forma de uma breve lista, a obras recentes
ras de literatura policial mostrou que, ao de escritores e escritoras de literatura poli-
mesmo tempo em que podem ser perfila- cial brasileira que merecem ser destacados.
das como pertencentes ao gênero por se Vamos a elas: Informações sobre a vítima,
afinarem com seus modos de fazer, mui- de Joaquim Nogueira; Morte nos búzios
tas dessas narrativas introduzem traços e e Motivos e razões para matar e morrer,
características brasileiras e essa presença de Reginaldo Prandi; Morte na USP, de
de elementos locais propicia o questiona- Ada Pellegrini; Peixe morto, de Marcus
mento, algumas vezes irônico, da própria Freitas; O marido perfeito mora ao lado,
existência do gênero no Brasil, um país de Felipe Pena; Se um de nós dois morrer,
em desenvolvimento. de Paulo Roberto Pires; Opus generalis,
Quanto à personagem principal das nar- de Marcelo Nascimento; Nove tiros em
rativas policiais – o detetive –, vimos que chef Lidu e Feliz aniversário, Silvia, de
a introdução de características de alguma Paula Bajer Fernandes.
forma presentes na ideia de povo brasileiro, Há casos de escritores consolidados em
como afetividade excessiva e limitação inte- outros ramos da escrita que eventualmente
lectual, faz com que seja necessário à narra- se voltam a escrever romances policiais,
tiva assinalar a diferença dessa personagem como o contista e cronista Luis Fernando
em relação aos seus modelos e essa sinaliza- Verissimo, que escreveu o envolvente
ção se faz, muitas vezes, pelo viés cômico. romance policial Os espiões. Anterior-
Em relação às tramas abordadas pela mente, o autor publicou vários contos e
literatura policial de autor brasileiro, o narrativas curtas com a personagem cômica
breve sobrevoo que realizamos mostrou do detetive Ed Mort: destacadamente Ed
uma grande presença de temas complexos, Mort e outras histórias e a coletânea Ed
como o crime moralmente justificado e o Mort – todas as histórias.
crime impune, que podem ser vistos como O jornalista, compositor e crítico
elementos que assinalam a necessidade de musical Nelson Motta escreveu e publi-
alterações, no que se refere à trama e à cou dois romances policiais: O canto da
estrutura de construção, em relação aos sereia – um noir baiano e Bandidos e
clássicos do gênero, para que as narrativas mocinhas. A música, a noite e o show
possam se assentar em solos brasileiros. business se fazem presentes nessas intrin-
Muitas vezes os escritores de literatura cadas e cativantes narrativas de investi-
policial brasileira usaram a comicidade gação com muito humor.

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REFERÊNCIAS

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LACASSIN, F. Mythologie du roman policier. 2 vols. Paris, 10/18, 1974.
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Francisco Alves, 1979.
PORTAL ELETRÔNICO IMDb – Internet Movie Data base.
REIMÃO, S. Literatura policial brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 2005.
REIMÃO, S. O que é romance policial. 2ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1990.
TODOROV, T. “Tipologia do romance policial”, in Poética da prosa. Lisboa, Edições 70, 1979.

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Germano Facetti/Reprodução/Domínio público

Notas sobre a distopia literária moderna


Jean Pierre Chauvin
resumo abstract

Neste artigo, discutem-se algumas We intend to discuss some characteristics


dentre as principais características da concerning the dystopian literature in this
distopia literária. O objetivo inicial é article. The initial purpose is to show that
mostrar que as narrativas desse gênero dystopic narratives are not necessarily
não estão necessariamente subordinadas subordinated to the science fiction. In way
à f icção científ ica. Para ilustrar as to illustrate specificities of this literary
especificidades da distopia, recorre-se a gender, we quote foreigners works
obras estrangeiras publicadas a partir da published in the 1920’s, and Brazilian
década de 1920 e àquelas publicadas a narratives, edited since the 1960’s.
partir dos anos de 1960, no Brasil.
Keywords: dystopia; foreigner literature;
Palavras-chave: distopia; literatura Brazilian literature; literary criticism.
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons

estrangeira; literatura brasileira; crítica


literária.
“Seria preciso estudar alguma vez,
de maneira muito especial,
a histeria da linguagem.”
(V. Klemperer, LTI: a linguagem
do Terceiro Reich)

N
UM TRATADO PRECURSOR? tantos pés quantos pés forem necessários
para se obter uma cela maior.
O apartamento do inspetor ocupa o centro;
a segunda carta do tra- você pode chamá-lo, se quiser, de aloja-
tado O panóptico, publi- mento do inspetor” (Bentham, 2000, p. 18).
cado em 1785, Jeremy
Bentham detalhava a Em suas cartas, Bentham destacava aspec-
concepção e as múlti- tos relativos ao éthos dos criminosos e à natu-
plas utilidades da ins- reza dos seus atos, julgados com maior ou
talação. Meticuloso, o menor rigor segundo variados graus de tor-
jurista descrevia o com- peza. Decerto, o seu relato a frio, de caráter
plexo arquitetônico nes- tecnicista e despido de compaixão (endereçado
tes termos: a um correspondente infenso a uma maior
sensibilidade), produz efeitos bem outros sobre
“O edifício é circular. o leitor de nosso tempo, maiormente se levar
Os apartamentos dos em conta as diferentes réguas que orientam
prisioneiros ocupam a circunferência. Você determinadas penas aplicadas pela justiça.
pode chamá-los, se quiser, de celas.
Essas celas são separadas entre si e os prisio-
neiros, dessa forma, impedidos de qualquer
comunicação entre eles, por partições, na JEAN PIERRE CHAUVIN é professor
livre-docente da Escola de Comunicações
forma de raios que saem da circunferência e Artes (ECA) da USP e autor de, entre
em direção ao centro, estendendo-se por outros, Mil, uma distopia (Editora Luva).

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O teor das missivas também deixava LUGARES-COMUNS


ver que o panóptico estaria sujeito à arbi-
trariedade, subjacente ao discurso e à
ação dos homens do direito, segundo a Não seria difícil encontrar paralelos
moral vigente no final do século XVIII. entre o tratado relativo ao planejamento,
Isso não passou despercebido pelos estu- construção e utilidade do panóptico, com
diosos que se debruçaram sobre o tra- diversas narrativas escritas um século e
tado do filósofo inglês. No ensaio que meio depois. É o que se constata ao exa-
escreve sobre o projeto, Jacques-Alain minar a rotina do matemático D-503,
Miller (2000, p. 77) sugere que o panóp- narrador de Nós (1924): “[...] ainda não
tico “não é uma prisão. É um princípio encontramos uma solução absolutamente
geral de construção, o dispositivo poli- exata para a felicidade – duas vezes por
valente da vigilância, a máquina ótica dia, das 16 às 17 horas e das 21 às 22
universal das concentrações humanas”. horas, nosso poderoso e único organismo
Antes dele, Michel Foucault (2007, p. se divide em células isoladas: essas são as
31) havia observado, em Vigiar e punir, que Horas Pessoais estabelecidas pela Tábua
“o suplício repousa na arte quantitativa do das Horas” (Zamiátin, 2017, p. 30); ou
sofrimento. Mas não é só: essa produção quando adentramos o Centro de Incubação
é regulada. O suplício faz correlacionar e Condicionamento descrito em Admirável
o tipo de ferimento físico, a qualidade, mundo novo (1932): “Isto – agitou a mão
a intensidade, o tempo dos sofrimentos – são as incubadoras. – E, abrindo uma
com a gravidade do crime, a pessoa do porta de proteção térmica, mostrou-lhes
criminoso, o nível social de suas vítimas”. porta-tubos empilhados uns sobre os outros
A concepção maniqueísta, inerente às cheios de tubos de ensaios numerados. – A
cartas enviadas por Bentham, talvez expli- provisão de óvulos da semana” (Huxley,
que a classificação das pessoas em seres 2017, p. 23); ou ainda quando acompanha-
supostamente bons ou maus, cabendo aos mos a paisagem desoladora de Londres, a
poderes (portanto, aos poderosos) legislar, capital da Oceânia, com seus Ministérios
julgar e executar as penas cabíveis. Em certa imponentes, em contraste com a penúria e
medida, o tratado sobre o panóptico continha reduzidas proporções das moradias desti-
elementos que passariam a ser refigurados nadas aos proletários, desenhada em 1984
nas distopias totalitárias do século XX1. (1949): “O Ministério da Verdade – ou
Miniver, em Novilíngua – era completa-
mente diferente de qualquer outro objeto
1 De acordo com Gregory Clayes (2010, p. 107, tra-
visível. Era uma enorme pirâmide de alvís-
dução nossa): “O termo distopia só passou a ser simo cimento branco, erguendo-se, terraço
corrente no século XX, embora tenha aparecido de
modo intermitente antes (dis-topia ou ‘cacotopia’, sobre terraço, trezentos metros sobre o
mau lugar, tinha sido usado por John Stuart Mill solo” (Orwell, 2004, p. 7).
em um debate parlamentar de 1868)”. Vinícius
Liebel (2021, p. 191) recorda: “O ponto histórico Esses cenários, forrados de prédios impo-
de surgimento do gênero é bastante debatido [...],
mas considera-se o livro de Mary Shelley, O último
nentes e indivíduos reduzidos a códigos e
homem, como o precursor do gênero”. números – a quem falta autonomia e sobra

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indignidade – tornaram-se lugares-comuns televisionado para todo o país, mudam de
nas narrativas classificadas como distopias. acordo com os caprichos do presidente
Por exemplo, a protagonista de O conto da Snow, replicados pelo seu eficiente bata-
aia (1985) está confinada em espaço res- lhão de engenheiros e tecnocratas, espe-
trito – um quarto-e-banheiro, localizado cializados em monitorar os competidores,
no segundo pavimento da casa – sob as rastreá-los como alvos de caça e criar
ordens do Comandante e de sua Esposa: obstáculos em meio aos ambientes mais
inóspitos. A competição entre os repre-
“O jardim é o domínio da Esposa do sentantes dos distritos é precedida por
Comandante. Olhando para fora por minha uma ritualística que combina alistamento
janela com vidro inquebrável, com frequ- militar e condenação à morte: “As pessoas
ência a vejo nele, os joelhos sobre uma foram à fila para a inscrição em silêncio.
almofada, um véu azul atirado sobre as abas A colheita também é uma boa oportuni-
largas do chapéu de jardineiro, uma cesta ao dade para a Capital manter a população
lado com podadeiras e pedaços de barbante sob vigilância” (Collins, 2021, p. 23).
para amarrar as flores no lugar. Um Guar-
dião destacado para servir o Comandante
O LÉXICO PECULIAR
faz o trabalho pesado de cavar, a Esposa
do Comandante dá instruções, apontando
com sua bengala” (Atwood, 2017, p. 21). Restrição é uma das palavras-chave
encontradas nas distopias. Em narrativas
Assim como Winston Smith (protago- do gênero, é frequente a representação de
nista do avesso no 1984), Offred não tem limites físicos (ou abstratos) que desa-
acesso a materiais impressos; ela também fiam a curiosidade das personagens, tais
não pode exercer o mero ato de escrever. como muros que não se pode ultrapassar
Para piorar a situação, a aia só está auto- ou escalar; ruas interditadas por solda-
rizada a percorrer as ruas supervigiadas dos, com armadilhas mortais; corredores
do “bairro” quando faz compras, devida- labirínticos capazes de desnortear os pas-
mente acompanhada de outra aia, ciente santes; salas monitoradas dia e noite por
de que uma vigia as palavras (clichês de microfones, câmeras e telas justificadas
cortesia) e os gestos (contidos) da outra. A pela manutenção da ordem; moradias onde
estreita supervisão que uns exercem sobre sobra vigilância e falta privacidade; veícu-
os outros sugere que há variadas formas los automáticos com velocidade constante
de manter Aias, Marthas, Motoristas e e destinos predefinidos; barreiras naturais
demais subalternos sob a mira de Olhos, ou construções faraônicas que delimitam
Soldados, Tias, Esposas e Comandantes. a área de circulação nos territórios etc.
O panóptico teria sido aprimorado? Um dos expedientes consiste em esta-
Em Jogos vorazes (2008), Katniss sabe belecer severos contrastes entre os podero-
que competirá com representantes dos sos (quase sempre representados por seres
outros distritos; mas ainda ignora que as idealizados e intangíveis) e os despossuí-
regras do perverso jogo de entretenimento, dos, que aprendem a fabricar muros sim-

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dossiê literatura de entretenimento

bólicos2 , para não serem detectados pelos os transeuntes em geral: “Exibiu-se o pri-
sistemas de controle3. Publicado em 1909, meiro preso, um homem preto, perplexo, de
o conto “A máquina parou”, de Edward roupas simples, olhos inquietos. Provavel-
Morgan Forster, inicia-se nestes termos: mente estava lá para dentro antes; mancava
“Imagine, se puder, um pequeno quarto, um pouco, era dócil, obediente e assustado.
hexagonal como a célula de uma colmeia. Olhos discretos observaram o dia do preso”
A iluminação não vem de alguma janela, (Ângelo, 1980, p. 174).
nem de uma lâmpada e, no entanto, um Em outros casos, a reificação consiste
brilho suave espalha-se por todo o lugar. em padronizar os seres humanos desde sua
Não existem aberturas para ventilação e, no clonagem em laboratório, como sugerem os
entanto, o ar é fresco” (Forster, 2018, p. 17). capítulos iniciais de Admirável mundo novo:
Há variadas formas de restringir e “Agitou de novo a mão, e a Enfermeira-Chefe
confinar as gentes, já que nem toda prisão baixou uma segunda alavanca. Os gritos das
é revestida por barras de ferro ou grades crianças mudaram subitamente de tom. Havia
de aço, sob a mira das torres de vigilância. algo de desesperado, de quase demente, nos
Essas estruturas podem ser replicadas em urros agudos e espasmódicos que elas então
moradias transparentes, que desnudam a já soltaram” (Huxley, 2017, p. 41).
reduzida privacidade do sujeito, devassando Cenas claustrofóbicas como essas tam-
o que resta de sua intimidade, como acon- bém são percebidas nas obras de gêneros
tece nos edifícios envidraçados, descritos literários vizinhos, em que prevalecem as
nos diários do protagonista em Nós. características da ficção científica e das
Curiosamente, as grades de metal tam- obras de fantasia. Cercado pela tecnologia
bém cedem lugar à transparência no conto suprema, o indivíduo pode ser um astronauta
“A casa de vidro” (1979), de Ivan Ângelo. limitado às salas e câmaras de uma nave ou
Convertem-se interrogatórios e sessões de estação espacial, como descreve o narrador
tortura em espetáculo: a límpida visão do de Solaris (1961): “O corredor estava vazio.
sofrimento infligido aos presos distrai os Fiquei por um momento em frente às portas
homens “de bem”, estimula a profilaxia dos fechadas tentando escutar alguma coisa. As
cidadãos e funciona como um corretivo para paredes deviam ser finas, pois de fora che-
gava o gemido do vento” (Lem, 2017, p. 29).
Recorrendo a Erving Goffman (2010,
p. 16), poderíamos interpretar essas condi-
2 “Durante um segundo, dois, haviam trocado um
olhar equívoco, e era o fim da história. Mas até ções como características das “instituições
aquilo era um acontecimento memorável, na soli- totais”, em que o “caráter total é simbolizado
dão amuralhada em que se era obrigado a viver”
(Orwell, 2004, p. 20). pela barreira à relação social com o mundo
3 Como notou Evanir Pavlovksi (2014, p. 79): “Em 1984, externo e por proibições à saída que muitas
não resta ao indivíduo espaço possível de exercício
da liberdade além do seio do Partido ou das pro- vezes estão incluídas no esquema físico –
fundezas de sua própria consciência. Assim, para por exemplo, portas fechadas, paredes altas,
Winston Smith, o processo de dissimulação é tão
importante quanto o enclausuramento de sua pró- arame farpado, fossos, água, florestas ou
pria individualidade. O protagonista se vê obrigado
pântanos”. Para além desses cenários, nas
a levantar muros em torno de si mesmo como forma
de resguardar a sua integridade física e mental”. últimas décadas tem sido frequente o apare-

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cimento de distopias vinculadas aos fatores constante da punição) é assegurar a oferta
ecológicos4, como se percebe em Não verás de algumas formas de escape (racionalizadas
país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. pelo sistema), de maneira que os mínimos
Segunda palavra-chave das distopias: prazeres sejam supervalorizados em com-
entorpecimento. Os “passes” que assegu- paração com o pensamento padronizado, a
ram a prática de relações íntimas entre os palavra rarefeita e a ação interditada.
cidadãos de Nós; as pílulas do “Soma”, que De alguma forma, a relação afetiva entre
abastecem a população pavloviana de Admi- as personagens se vincula a esse “anestesia-
rável mundo novo; o “Gim Vitória”, con- mento”: um respiro contra o sistema arbitrá-
sumido habitualmente pelos proletários de rio vendido aos habitantes como se fosse o
1984; as “pílulas para dormir”, censuradas melhor dos mundos possíveis. É o que sugere
pelo narrador de Fahrenheit 451; as doses o grande interesse do deslumbrado narrador
cavalares de “anfetamina” por Case5, em D-503 pela mulher identificada como I-330,
Neuromancer; a gentil acolhida e fausto em Nós; ou a relação interdita entre os pro-
banquete oferecido aos representantes dos letários Winston e Júlia, em 1984. Por sinal,
12 distritos (pré-condenados a lutar até a o envolvimento entre Theo e Julian, descrito
morte), em Jogos vorazes etc. em Filhos da esperança (1992), de P. D.
Essas substâncias visam, senão aneste- James, possibilitaria estabelecer vários pontos
siar, amortecer o peso da existência uni- de contato com a narrativa de George Orwell.
forme, retilínea e invariável. A presença Nesses e em outros casos, as mulheres pal-
delas no cotidiano das personagens eviden- milham com vigor o caminho da revolução
cia que o bem-estar é momentâneo, pois ou, pelo menos, questionam enfaticamente
estão sujeitas ao imponderável e podem as estruturas a que todos estão submetidos.
reagir à instabilidade de modo imprevi- Esses e outros fatores permitem supor
sível. Para que a ordem seja mantida sem que, mesmo em sua feição contemporânea,
sobressaltos, tão importante quanto se exer- a distopia é uma modalidade que recorre
cer a constante vigilância (sob a ameaça a tópicas, ou seja, a lugares-comuns6 – a
exemplo do que acontece em outros gêne-
ros literários. Negar a existência de certos
4 “Os termos ‘ecologia’ e ‘distopia’ foram impro- ingredientes soaria impreciso. Somente a
visados pela primeira vez a partir de suas raízes
gregas, em meados do século XIX. Em 1858, Henry combinação de ingenuidade e prepotência
David Thoreau usou a forma antiga sete anos de- autorizaria um indivíduo a escrever uma
pois de a palavra ser formalmente definida como
um ramo da biologia por Ernst Haeckel” (Stable- ficção distópica supostamente original.
ford, 2010, p. 259, tradução nossa).
5 Como assinalou Mark Fisher (2020, p. 48): “Se a
figura da sociedade da disciplina era do trabalha-
dor/presidiário, a figura da sociedade do controle é 6 Como ensina João Adolfo Hansen (2012, p. 160),
a do endividado/viciado. O capital do ciberespaço “[...] a memória se inclui na imaginação, ou seja,
opera viciando seus usuários. William Gibson já re- a memória é constituída por imagens e como
conhecia isto em Neuromancer. No livro, Case e os imagens de lugares. Por que lugar? Aristóteles diz
outros cowboys ciberespaciais sentiam abstinên- que é preciso partir de alguma coisa localizada e
cia física (insetos rastejando sob a pele) quando visível quando se lembra. Essa coisa mentalmente
desplugados da matrix (o uso de anfetamina por especializada é um topos, ‘lugar’, que, por ser re-
Case é claramente um substituto do vício em uma petido quando os vários gêneros do discurso são
velocidade muito mais abstrata)”. usados, é ‘comum’”.

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Chegamos, assim, à terceira palavra-chave Partindo de outra perspectiva, poderíamos


das distopias: linguagem. É importante levar acrescentar o modo como os cegos são tra-
essa dimensão em conta, quando se está diante tados pelas autoridades, no Ensaio sobre a
de uma narrativa do gênero. De um lado, os cegueira (1995), de José Saramago. A todo
poderosos recorrem a determinados jargões instante, o narrador reforça a violência das
com o propósito de naturalizar as formas palavras e das ações impostas pelos políticos
de violência material e simbólica; de outro e soldados, recorrendo a vozes de comando
lado, os cidadãos, proletários e aias encontram disparadas sem cessar pelos autofalantes ins-
brechas linguísticas que constituem metáforas talados entre a guarita e o manicômio, onde
de sua luta pela liberdade possível. os primeiros “contaminados” são despejados.
Em Cântico, de Ayn Rand (2015, p. 37), A condição piora ainda mais quando uma
o narrador declara que a sua escrita é “um segunda leva de cegos passa a exigir servi-
pecado’’, pois ele bem sabe que “não existe ços particulares, em troca de refeições a que
transgressão mais grave do que fazer ou todos teriam direito. A “cegueira branca”
pensar algo por si”, afinal “as leis dizem traz um componente fantástico à narrativa,
que os homens não podem escrever, exceto o que não impede reconhecermos que se
se o Conselho de Vocações solicitar que trata de uma distopia.
o façam”. Doze anos depois, uma situação
similar seria explicada por outro narrador, ENTRE A DISTOPIA
ao descrever o comportamento irregular de
E A FICÇÃO CIENTÍFICA
Winston Smith fora do alcance da teletela,
que tudo vê e ouve: “O que agora se dis-
punha a fazer era abrir um diário. Não era A exemplo do que acontece com os roman-
um ato ilegal (nada mais era ilegal, pois ces policiais, raros são os estudos de maior
não havia mais leis), porém, se descoberto, fôlego sobre distopia realizados no Brasil. Por
havia razoável certeza de que seria punido, esse motivo, costuma-se celebrar o acesso
por pena de morte, ou no mínimo vinte e aos manuais que se concentram sobre esse
cinco anos num campo de trabalhos força- e outros gêneros literários. Para citar dois
dos” (Orwell, 2004, p. 10). estudiosos mais conhecidos, consideremos A
A linguagem contagia o enredo de Laranja verdadeira história da ficção científica, de
mecânica, de Anthony Burgess (2014, p. 77): Adam Roberts (2016), e Dystopia: a natural
um universo ficcional arquitetado sobre a vio- history, de Gregory Claeys (2017).
lência generalizada das gangues e a tortura Embora o trabalho de Roberts revele
nas prisões. De tempos em tempos, o prota- extraordinário fôlego de pesquisa e rigor
gonista nos pergunta “então, o que vai ser, acadêmico, ele parte de uma premissa até
hein?”, até que a questão emenda em seu certo ponto discutível, pois não só vincula
máximo sofrimento, quando preso: “Agora distopia a ficção científica7, como subordina
eu recomeço, e aí é que entra a parte triste
e tipo assim trágica da história, meus irmãos
e únicos amigos, na Prestata (ou seja, Prisão 7 Peter Fitting (2010, p. 135 e segs.) segue caminho
similar, embora reconheça aspectos que distinguem
Estatal) Número 84F”. esses gêneros literários.

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a primeira à segunda8. Isso fica mais evidente muito estreitos) e confrontar a ordem (ainda
a partir do nono capítulo, quando nomeia o que arbitrária).
início do século XX como “Alto Modernismo” Dystopia, de Gregory Claeys, apresenta
e abriga obras que ele classifica como “anti- um panorama tão ou mais impressionante
maquinistas”: caso de Admirável mundo novo, que o livro de Adam Roberts. Após justa-
com sua “hostilidade com relação à tecnolo- por numerosas definições do gênero, esta-
gia”, e do romance Nós, que “descreve um belecendo subcategorias em acordo com o
Estado totalitário baseado na crença de que tema predominante (darwinismo social, euge-
a privacidade, a personalidade e em especial nia, revolução, civilização mecânica etc.),
o livre-arbítrio são as causas da infelicidade” Claeys explica por que Admirável mundo
(Roberts, 2018, pp. 321 e 333). novo poderia ser considerado como exemplar
É bem verdade que os aparatos tecno- da anti-utopia. Os argumentos são consis-
lógicos costumam comparecer aos enredos tentes. Por sinal, revisitar A ilha, publicado
distópicos, não apenas naquele período. 30 anos após o romance mais famoso de
Porém, enquanto a ênfase das obras de ficção Huxley, reforça a hipótese de que, num e
científica recai sobre o uso irrestrito das tec- noutro caso, o escritor pretendia apresentar
nologias, as distopias colocam o ser humano contrapontos às utopias que circularam na
em questão9. Ou seja, ainda que o enredo Europa a partir do século XVI.
conceda espaço relevante para a arquitetura Quando Gregory Claeys se detém na figura
monumental, incluindo máquinas, paraferná- do “anti-herói” Winston Smith, percebe que
lias ultramodernas e robôs, a força-motriz o fato de “desafiar o Grande Irmão se torna
que embala a narrativa distópica consiste em a rebelião de toda mulher e homem que já
descrever condições arbitrárias e indignas foram esmagados pela vida, pelo amor, pelo
que limitam e apequenam as personagens. trabalho, fragilidade física, gênero e opressão”
Se nas obras de ficção científica a fábula (Claeys, 2018, p. 391). Entretanto, ele rei-
se ampara no automatismo, nas distopias, as tera o clichê de incerta crítica que descreveu
personagens convivem com variados níveis 1984 como uma alegoria do regime stalinista,
de ameaça; submetem-se aos métodos mais capaz de “vaporizar o mito soviético”. Apesar
perversos de coerção; padecem devido ao de George Orwell ter afirmado, em mais de
sadismo daqueles que se regozijam em punir uma oportunidade, que seu romance não era
quem ousou ultrapassar os limites (embora um ataque à União Soviética10, tampouco ao
partido trabalhista inglês, esse tipo de abor-

8 Para Gregory Claeys (2010), A máquina do tempo (1895),


O homem invisível (1897) e O primeiro homem na Lua
(1901) seriam obras de ficção científica, enquanto A 10 “[...] em uma carta a Francis A. Hanson, líder sindical
ilha do doutor Moreau (1896), uma distopia. norte-americano que desejava recomendar 1984 aos
trabalhadores de seu sindicato, mas não se sentia à
9 “[...] a tecnologia é importante na criação do gênero vontade pelo fato de o livro ter recebido uma enxur-
distopia, e é um item que está intrinsecamente ligado rada de rasgados elogios da imprensa conservadora,
ao enredo de várias histórias do gênero. A distopia e Orwell começa afirmando que o livro “NÃO é [...] um
a ficção científica estão muito imbricadas, e poucos ataque ao socialismo ou ao Partido Trabalhista bri-
são os romances distópicos que não se utilizam dos tânico (de quem sou um defensor)”, como alegaram
princípios deste último gênero na composição de suas diversos resenhistas e jornalistas norte-americanos
sociedades” (Pereira, 2018, p. 226). (Bradford, 2014, pp. 283-4).

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dagem é recorrente em países onde o (neo) presentes nas distopias de Aldous Huxley,
liberalismo costuma ser justificado como o George Orwell e Ray Bradbury, para a mul-
melhor dos mundos possíveis. tifacetada paisagem brasileira, situada entre
Ao ignorar as arbitrariedades subjacentes o campo e a cidade.
ao Estado de direito (para quem?) e a cele- A hora dos ruminantes (1966) se passa
bração da livre-concorrência (em função da na pequena e pacata cidade de Manarai-
desigualdade social), demoniza-se qualquer rema. Sem aviso prévio, seus habitantes são
sistema de governo que se contraponha ao tomados de assalto por um grupo de foras-
modo de produção capitalista11. teiros, acompanhados de cães ferozes que
coagem os moradores, enquanto se apossam
DISTOPIAS NACIONAIS: do território12: “O derrame de cachorros foi
o primeiro sinal forte de que os homens não
UM BREVÍSSIMO PANORAMA
eram aqueles anjos que Amâncio estava que-
rendo impingir” (Veiga, 1987, p. 33). Agos-
Há relativo acordo, na historiografia tinho Potenciano de Souza (1990, pp. 59-60)
literária brasileira, de que os romances de observou que, nesse romance,
José J. Veiga, publicados entre 1966 e 1982,
sejam obras de teor fantasioso e distópico, “[...] as relações sociais se encontram em con-
dentre as mais relevantes, publicadas por flito com as novas normas impostas pelos que
aqui. Não é um dado desprezível que as vêm de fora. Na cidade pequena de Mana-
narrativas totalitárias daquele período pas- rairema (pela etimologia tupi: ‘um ninho
saram a circular dois anos após o golpe de sob espreita’), toda a população se conhece,
Estado planejado e executado pelos mili- se dá o direito de ir-e-vir sem restrições de
tares (com o suporte ideológico, logístico lugar. Sabe de tudo o que está acontecendo.
e financeiro dos Estados Unidos, em sua A venda, as oficinas e as ruas são centros
eterna cruzada “anticomunista”) e tenham onde correm todas as notícias, todos os papos.
conhecido seu maior índice de popularidade A invasão do estranho, do estrangeiro, per-
em 1981, quando Não verás país nenhum, turba e altera o modus vivendi. Os cidadãos
de Ignácio de Loyola Brandão, apareceu (ou deixam de ser donos do seu espaço”.
seja, quatro anos antes da assim chamada
redemocratização). Quer dizer, no intervalo Argumento similar embala Sombras de
de 15 anos, escritores como José J. Veiga, reis barbudos, publicado seis anos depois.
Chico Buarque, Ivan Ângelo e Ignácio de Uma pequena cidade recebe um grupo de
Loyola Brandão conceberam narrativas que investidores endinheirados que comuni-
transpunham os temas e lugares-comuns, cam a intenção de investir na companhia

12 Diversos elementos descritos no romance poderiam


11 Deste artigo não participam recentes manuais que ser colocados em diálogo com o roteiro e a cenografia
equipararam fascismo, nazismo e comunismo, sem de Bacurau, exibido nos cinemas brasileiros em 2019.
maior vagar e exame. Particularmente não será dado Roteirizada e dirigida por Kleber Mendonça Filho e
crédito a quem define Olavo de Carvalho como “filó- Juliano Dornelles, a história contrapõe habitantes
sofo”. desconfiados e forasteiros perversos.

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sonhada por Baltazar. Desconfiado daquele guagem truncada dos documentos oficiais
punhado de homens frios e superpoderosos, maquinados de modo autoritário:
o narrador diverge da boa-fé com que seu
tio vislumbrava os negócios que estavam “Por meio de um documento que não cabe
por vir: “Então começou aquela romaria reproduzir aqui, porque muito extenso, e
de gente de fora, uns homens muito prosas insosso, e repleto de vírgulas, como a maio-
no vestir e no falar” (Veiga, 2015, p. 29). ria dos ofícios, que falam assim aos trope-
Em pouco tempo, Baltazar deixa de fre- ções, por meio de um documento desses,
quentar a companhia e a configuração da quase incompreensível porque redundante,
cidade muda radicalmente: “De repente os truculento, ficou nomeado Juvenal, o Bom
muros, esses muros. Da noite para o dia eles Boi, conselheiro-mor da Fazenda Modelo.
brotaram assim retos, curvos, quebrados, A ele todas as reses devem obediência e
descendo, subindo, dividindo as ruas ao respeito, reconhecendo-o como seu legítimo
meio conforme o traçado, separando ami- chefe e magarefe” (Buarque, 1976, p. 19).
gos, tapando vistas, escurecendo, abafando”
(Veiga, 2015, p. 42). Já em Não verás país nenhum (1981), de
Também é sobre muros, desvãos e Ignácio de Loyola Brandão, as ações trans-
outros modos de cerceamento social que correm numa metrópole em que a pobreza, a
trata Aquele mundo de Vasabarros (1982) violência e o racionamento de água partici-
– território vigiado por soldados fortemente pam do cotidiano de seus habitantes. Loyola
armados que monitoram o menor movimento Brandão coloca um casal entediado no plano
dos habitantes, a partir das torres espa- central. A narrativa se abre com um cená-
lhadas em todo o mapa. No romance, os rio impactante: “Mefítico. O fedor vem dos
poderosos se perpetuam no poder, apoiados cadáveres, do lixo e dos excrementos que se
por leis e regimentos que naturalizam a amontoam além dos Círculos Oficiais Permi-
sucessão de pai para filho. As regalias dessa tidos, para lá dos Acampamentos Paupérri-
corte extravagante são mantidas enquanto mos” (Brandão, 2020, p. 13). A exemplo do
os funcionários humildes sobrevivem em que acontecia em 1984, o narrador receia
condições miseráveis nas zonas inóspitas usar determinada linguagem: “Que não me
e inseguras de Vasabarros. ouçam designar tais regiões pelos apelidos
Situação diversa é retratada na novela populares. Mal sei o que me pode acontecer.
Fazenda modelo, publicada em 1974 por Isolamento, acho” (Brandão, 2020, p. 13).
Chico Buarque. A fábula é protagonizada Também há algo de orwelliano no modo
por bezerros, bois e vacas, em provável como a passagem de tempo é colocada em
alusão à Fazenda dos animais, de George segundo plano: “Os calendários desta casa
Orwell. O Capítulo II, intitulado “Ato”, permanecem sempre no primeiro do ano. O
parece evocar o infame Ato Institucional 1 vermelho, fraternidade universal. O ver-
n. 5, imposto ao país em 13 de dezem- melho desbota, torna-se rosado ao fim do
bro de 1968. Transportado para a ficção, ano. [...] O 1 eterno. Não é preciso marcar
o teor do “Ato” questiona a arbitrariedade o tempo, basta abandoná-lo, ela me disse
do “Bom Boi” Juvenal e ridiculariza a lin- uma vez” (Brandão, 2020, p. 15).

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DITADURA NUNCA MAIS 13 dade de regime autoritário – que tivesse


sido bem-sucedido em limar diferenças, dar
sumiço aos “indesejáveis” e disfarçar a misé-
Mais recentemente, Bernardo Kucinski
ria econômica das ruas, viadutos e marquises
se antecipou ficcionalmente ao que seria a
de banco –, continua a haver imprevisibili-
controversa presidência militar da República,
dades. É justamente a diferença, a plurali-
entre 2019 e 2022. Na primeira página de
dade de concepções, estilos, ideologias, ações
A nova ordem, há uma curiosa ilustração:
e modos de sentir que podem assegurar à
três listras retangulares, de alturas, com-
humanidade o que a diferencia dos autômatos
primentos e cores diferentes. Duas delas,
e a coloca em posição de relativa superio-
mais longas, cercam o retângulo central, de
ridade sobre os animais, ditos irracionais.
tom mais claro. Nas páginas finais é que
Dos 22 capítulos, o primeiro é um dos
se pode encontrar uma possível explicação
mais longos e impactantes. Trata-se da reu-
para ela: “O general Fagundes senta-se. O
nião de um grupo de intelectuais de vários
baterista rufa seu tambor. Os dois solda-
ramos do saber, reunidos numa instalação
dos se adiantam com passos cadenciados,
denominada “fábrica”, por seus captores. A
postam-se na frente do coronel Humberto,
cena é impactante e sumariza os efeitos pro-
batem os calcanhares e passam a arrancar
duzidos pela “Operação Cátedra”, cujo alvo,
suas dragonas, seus galões, suas fitas de
como logo se adivinha, são as universidades
condecorações” (Kucinski, 2019, pp. 158-9).
e institutos de pesquisa. Por sinal, se há uma
Ao lado da ficha catalográfica, há duas
coisa em que transparece o talento dos agen-
epígrafes com que o livro dialoga. Numa
tes, está em criar siglas de impacto, dispos-
delas, o narrador de Admirável mundo novo
tas em éditos federais, além de dar nomes
defende a pré-seleção dos elementos, em uma
divertidos a projetos trágicos, a exemplo da
sociedade planificada em que a tensão entre
“Operação Capela”14 ou “Ação Solidária”15.
as classes sociais teria sido equacionada
O que seriam os tais “éditos”? A maior
graças aos métodos de condicionamento in
parte deles equivaleria, em termos utilizados
utero. Para os episódios de mal-estar haveria
hoje, a decretos sem o amparo da Constitui-
a ingestão do Soma, substância que devolve
ção. Um dos mais nefastos é o édito “3/2019
ao indivíduo a fluidez que acompanha a
[,] que obriga todo brasileiro ao completar
vida lisa, sem sobressaltos nem angústias.
18 anos a abrir uma conta bancária denomi-
A segunda epígrafe, extraída de 1984, alude
nada Conta-Pessoa, contraindo para tal fim
ao regime totalitário do Grande Irmão, que
conta com propaganda maciça, dispositivos
de vigilância e polícia do pensamento.
14 “É só com os padres que ele [sargento Messias] tem
O que A nova ordem tem em comum que lidar; os pastores evangélicos estão fora da Opera-
com as distopias imaginadas por Huxley e ção Capela. São de confiança. Tanto assim que a Igreja
Universal virou oficial” (Kucinski, 2019, p. 98).
Orwell? O fato de que, mesmo numa socie-
15 “– Que tal Operação Resgate?, diz o general. Ariovaldo,
que vinha trabalhando a operação como altamente
secreta, está espantado, não sabe o que dizer. Final-
mente, balbucia: – Com todo o respeito, general…
13 Nesta seção, retoma-se uma resenha publicada no creio que operação não soa bem, é uma expressão
portal Outras Palavras, em 12 de agosto de 2019. militar” (Kucinski, 2019, p. 124).

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um empréstimo no mesmo banco e agência, tura, o que aproxima Bernardo Kucinski de
denominado Empréstimo-Pessoa” (Kucinski, Aldous Huxley e George Orwell é a tentativa
2019, p. 12). Às linhas finais do primeiro de retratar concepções de mundo propaga-
capítulo, há um dos vários diálogos premo- das por sujeitos ressentidos e violentos, cujo
nitórios do romancista: discurso moralizante oscila conforme o que
lhes convém. Eis a importância de esmiu-
“– O que vai acontecer conosco?, pergunta çar o emprego dos dispositivos linguísticos
um catedrático ainda jovem, aproximando- como recurso para satirizar a fala inepta e
-se do coronel. hipócrita de certos líderes.
– Quem é o senhor?, pergunta o coronel. A fala histriônica é um artifício ambi-
– Sou reitor da Universidade Federal de valente, cujo propósito é levar apoiadores
Santa Catarina. a confundir sinceridade com grosseria; a
– As universidades federais não existem mais, defender a liberdade (de alguns), naturali-
retruca o coronel” (Kucinski, 2019, p. 18). zando a opressão (de quase todos); a bana-
lizar o uso de crendices pessoais, vincadas
Em A nova ordem, as coincidências com o pela falácia da prosperidade, como signo
mundo empírico não são obra do acaso, mas da retidão moral e dádiva celestial; a tecer
parte de um projeto romanesco muito bem- juras de amor ao país que eles enfeitam,
-sucedido, que denuncia modos autocráticos fatiam e entregam, sem qualquer constran-
de desgovernar o país. Ressalvada a distância gimento ético ou político, às potências do
no tempo e as especificidades de cada cul- Oeste e do Leste.

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38 Revista USP • São Paulo • n. 140 • p. 25-38 • janeiro/fevereiro/março 2024


Ficção científica – breve panorama histórico
Romy Schinzare

Georges Mèliés/Reprodução/Domínio público


resumo abstract

Este texto está dividido em duas partes: This text is divided into two parts: in Part
na Parte I, abordamos as origens da I we address the origins of science fiction
ficção científica e seu contexto histórico and its international and national historical
internacional e nacional, e na Parte II, context, and in Part II we address the works
as obras consideradas relevantes para considered relevant to the genre in the
o gênero nos cenários internacional international and national scenarios, its
e nacional, seus temas e subgêneros. themes and subgenres. In each of these
Em cada uma dessas partes, existem parts, there are subdivisions organized
subdivisões organizadas da seguinte as follows: Science fiction: a new literary
forma: Ficção científica: um novo gênero genre; Historical context of the emergence
literário; Contexto histórico do surgimento of science fiction; Science fiction in Brazil
da ficção científica; Ficção científica no (Part I); Works considered relevant on the
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons

Brasil (Parte I); Cenário internacional; international scene; Works considered


Cenário nacional; Temas e subgêneros relevant on the national scene; Science
da ficção científica (Parte II). fiction themes and subgenres (Part II).

Palavras-chave: ficção científica; ficção Keywords: science fiction; science fiction


científica no Brasil. in Brazil.
FICÇÃO CIENTÍFICA – ORIGENS E que foram publicadas de 1896 até o final
da década de 1950.
CONTEXTO HISTÓRICO DO GÊNERO
A FC surge como um tipo de narrativa
que entrelaça fato científico com visão ante-
Ficção científica: cipativa. O texto era apresentado em forma

O
de contos e novelas (geralmente serializadas).
um novo gênero literário
Seus leitores buscavam-na como literatura de
entretenimento, educação científica ou estí-
termo “ficção científica” mulo a novos inventos. Segundo Léo Godoy
(FC) é uma tradução do Otero (1987), “Hugo Gernsback convenceu
inglês science fiction.
Tido como uma nova
forma de literatura, o
1 A introdução apresenta o uso do termo science fiction
rótulo surge nos Esta- como anterior ao século XX. No entanto, esse primeiro
dos Unidos pela primeira uso não designava um gênero literário estabelecido,
mas uma atitude poética de realismo conforme a ver-
vez (na variante scienti- dade científica (segundo Brave New Words: The Oxford
fiction) na revista Ama- Dictionary of Science Fiction, de Jeff Prucher).

zing Stories, em 1926


(Roberts, 2018)1. A
publicação, logo seguida
por várias outras, marca ROMY SCHINZARE é professora
do ensino público municipal de São Paulo
o início do uso do novo gênero de pulp fic- e ficcionista, autora de, entre outros,
tion, formado em revistas de ficção baratas Apócrifos do futuro (Editora Patuá).

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o mundo de que de fato existia uma forma cientificamente. Como observa Flávio Rai-
de literatura chamada FC. Sua preocupação mundo Giarola (2016):
com o rigor científico e a clareza, para o
bem ou para o mal, estabeleceu a natureza “Atrelado a esse contexto de mudança de
distinta do gênero FC” (Westhfall, 2021). mentalidade, a partir do século XIX sur-
Com a acolhida dessas revistas, novos giu um novo gênero literário, que buscava
escritores são encorajados a publicar, prever as etapas posteriores da evolução
levando à ascensão do gênero e fazendo do homem. A ficção científica imaginava
com que fossem se delineando as bases da mundos fantásticos, futuros não apenas dife-
especulação sobre invenções tecnológicas e rentes do presente, mas também marcados
teorias científicas. Houve uma profusão de pelo mais alto grau de avanço tecnológico
temas e publicações. Ainda segundo Otero do homem. Nessa nova literatura, o cientista
(1987, p. 90), esse momento representou um era colocado como agente do progresso.
“jorro de imaginação, predominante fan- Ele determinava futuros possíveis, que
tasia, [que] submergirá a capacidade dos mostrariam o constante aperfeiçoamento
leitores em discernir o que era ‘realidade da humanidade. Os pioneiros da ficção
futura’, extrapolação científica, misticismo científica também se inspiravam naquilo
pseudocientífico e também charlatanismo, que era considerado o maior produto do
tal era a confusão reinante, a miscelânea engenho humano, as máquinas, para projetar
de temas, nessa parafernália espacial”. um amanhã no qual estas estivessem cada
vez mais a serviço do homem”.
Contexto histórico
Os avanços nas áreas da física, química,
do surgimento da FC
biologia e astronomia estabeleceram as bases
da FC. O lugar antes ocupado por magia e
A FC é gestada no século XVIII, num crença passou a ser ocupado por cientistas
cenário pós-Revolução Industrial, mas se e máquinas. Apesar de muitos escritores de
estabelece nos séculos XIX e XX, no con- FC surgirem entre profissionais dessas áreas,
texto histórico do desenvolvimento anglo- eles escreviam na qualidade de artistas, não
-americano com o advento da indústria, da de cientistas. Trabalhavam com antecipações
máquina, da especialização, da técnica e da possíveis de fatos, buscando verossimilhança.
automação. Também porta valores trazidos Sendo assim, tratava-se de uma literatura de
pelos ideais positivistas, corrente filosófica especulação sobre futuros possíveis, ou de
que surgiu na França no início do século uma literatura de antecipação.
XIX e defendeu o conhecimento científico
como a única forma de conhecimento ver- “A FC é um método literário eminentemente
dadeiro. Os positivistas não consideravam os especulativo, cuja constante deve ser a ciên-
conhecimentos adquiridos através de crenças cia para a qual são estabelecidos fatos, os
religiosas, superstição ou qualquer outro do quais, uma vez laborados no tempo, venham
campo espiritual, intuitivo ou transcendente, a produzir uma nova situação, uma nova
apenas os que pudessem ser comprovados estrutura para a ação humana. Inspirada no

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bom senso, permite, ou recusa, à imaginação existência de outras galáxias, e a pequena
do autor avançar, ou não, além do possível, Via Láctea era todo o universo conhecido.
bem como contradizê-lo” (Otero, 1987, p. 15). Hoje, observamos o infinito e aceleramos
partículas para saber de que é feito o uni-
Neste universo, o homem passa a imagi- verso. Daqui a duzentos anos o que haverá?”
nar o que não existe, deduz e presume even- (Oliveira, 2018, p. 12).
tos futuros, usando o conhecimento de sua Somente em 1930 o termo “ficção cientí-
época. Nesta medida, a FC faz com que se fica” (science fiction) é difundido no cenário
compreenda melhor o seu tempo e avance em internacional. Isso ocorre através da revista
hipóteses rumo ao futuro. Interessante obser- americana Wonder Stories, fundada por Hugo
var que muitas projeções feitas por escrito- Gernsback e publicada sob vários títulos de
res de FC acabaram por se concretizar. A 1929 a 1955. Gernsback é considerado o pai
liberdade em criar e imaginar permitiu que da ficção científica em revista, envolvido
navegassem por caminhos mais “permissivos” com criação, divulgação e disseminação do
que a ciência em questão, fazendo com que gênero, atuando como escritor, editor e crí-
a FC fosse vista como literatura do porvir tico literário. A partir daí o termo “ficção
que pensa na ciência, na tecnologia e seus científica” correu o mundo e passou por
impactos e consequências para a sociedade, transformações, com alguns avanços e alguns
para os indivíduos: retornos para reafirmar conceitos antigos.
Em 1940, John W. Campbell Jr., na revista
“Recuando-se bastante no tempo, pode-se Astounding Stories, propõe que a FC seja
dizer que nasceu a ficção científica desde considerada um meio literário semelhante
quando o homem começou a imaginar coi- à própria ciência. J. O. Bayley, no pioneiro
sas que não existiam na sua época; con- estudo Pilgrimsthrough space and time
tudo, através de conhecimentos adquiridos, (1947), identifica a FC como uma narrativa
poderia deduzir ou presumir achados e imaginária com aventuras e experiências pos-
eventos futuros. Se havia a biga romana síveis para a ciência. Judith Merril, um dos
tirada por cavalos, poderia existir, um dia, poucos nomes femininos na FC na década
o automóvel. Se havia o moinho de vento, de 1950, retorna no tempo e adota o termo
poderia haver, também, o moinho elétrico” “ficção especulativa” (1947) de Robert A.
(Otero, 1987, p. 15). Heinlein, cujo objetivo é explorar, descobrir,
aprender, por meio de projeção, extrapola-
Para Nelson de Oliveira, a FC arranca ção, analogia e experimentação de hipóte-
o leitor do que ele chama de “letargia do ses, algo sobre a natureza do universo, do
perpétuo presente”, em que a rotina e a inca- homem, ou realidade, com uso de método
pacidade de se maravilhar com o mundo científico. Para Merril, observação, hipótese
imperam. Outro mundo, onde antes não e experimento, no entanto, incluem histórias
havia algumas coisas, agora existe: “Duzen- que retratam mudanças sociais. Na década
tos anos atrás não sabíamos da existência de 1960, o Reino Unido retoma o uso do
dos micróbios. Não existiam o antibiótico termo para designá-la como literatura, não
e o transplante de órgãos. Não sabíamos da escrita para cientistas.

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Em 1986, Aldiss defende o romance Apesar dessas considerações, desde cedo


gótico gerado na revolução industrial e a FC passa a ser rotulada como gênero
científica, do início do século XIX, como menor porque nunca chegaria a ser aceita
uma das raízes do gênero. Críticos mais pela intelligentsia literária, e isso fez com
recentes, como Brian M. Stableford, veem que autores e editores evitassem o uso do
a ficção científica de gênero internacional termo. Característica que se estende até
em uma tradição vinda do século XIX, e a atualidade e se reflete em várias áreas,
contestam aquelas definições que a atre- seja entre editores, em concursos literá-
lam à evolução das revistas americanas. Na rios ou entre os leitores (Stableford; Clute;
década de 1970, nos EUA, a FC entra em Nicholls, 2021).
salas de aula com tentativas mais rigorosas O fato é que a FC nasceu da fusão de
de defini-la, de forma didática. Em 1972, vários gêneros, da utopia à aventura espacial.
Darko Suvin traz o conceito que diferen- Surge como proposta de visão do futuro,
cia a FC através do que chamou de novun, mas com o tempo foi se modificando, tra-
uma coisa nova, alguma diferença entre o zendo para si o deslocamento do mundo real
mundo da ficção e o que classifica como através do tempo e do espaço, deixando a
“ambiente empírico”, o mundo real lá fora. “responsabilidade” de usar o futuro para
Em 1975, Robert Scholes insere o conceito nos ensinar sobre o presente e acoplando, às
de “fabulação estrutural” – que compar- temáticas científicas, outras de cunho social,
tilha as iniciais de SF (structural fabu- sociológico, antropológico, de gênero, raça,
lation) –, segundo o qual a ficção cientí- ambientais, entre outras.
fica nos oferece um mundo diverso do que
conhecemos e, no entanto, nos obriga a
confrontá-lo com esse mesmo mundo real.
Ficção científica no Brasil
Na contramão desse empenho acadêmico,
Damon Knight e Norman Spinrad defen- No Brasil, a FC existe desde o século
dem que FC é qualquer coisa publicada XIX, mas ganha força na década de 1930,
como FC, destacando sua importância como com o início da industrialização brasileira.
uma categoria editorial presente no mundo As primeiras revistas pulp brasileiras tive-
real. Numa versão mais econômica, Nelson ram influência direta das revistas americanas
de Oliveira define ficção científica como e foram produzidas no período de 1934 a
“qualquer narrativa que apresente ao menos 1968. Athos Eichler Cardoso as chamava de
uma das três características: 1. Elementos “revistas de emoção”, publicações comer-
da ciência e da tecnologia fundamentando cializadas na forma de suplementos e que,
o enredo; 2. Ícones, tipos e estereótipos gradativamente, foram conquistando espaço
ligados à ciência e à tecnologia: a astro- entre os leitores nacionais: Romance Mensal:
nave, o alienígena, o androide, o ciborgue, a Uma Revista Diferente das Outras, Aventura
inteligência artificial, a máquina do tempo, e Mistério, Detetive, A Novela, Mistérios,
a realidade alternativa etc.; 3. Uma grande X9 e Meia-Noite. Todas traziam histórias
reformulação da sociedade, de natureza utó- vinculadas ao universo anglo-americano e
pica ou distópica” (Oliveira, 2018, p. 11). raramente ao brasileiro (Cardoso, 2009).

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A primeira revista brasileira de FC foi Moderna de 1922, escreve o Manifesto antro-
Fantastic, publicada de 1955 a 1961, versão pofágico da ficção científica brasileira. O
autorizada da homônima revista americana. documento é um marco importantíssimo para
A edição trouxe uma narrativa brasileira a FC brasileira porque clama para a urgên-
sobre o mito do caboclo d’água, assinada cia de trazer temáticas nacionais para as
pelo redator-chefe da revista, Zaé Júnior. Nos publicações de FC. Regina impulsionou, com
anos de 1970 e 1971, a temática brasileira esta ação, a geração de autores da Segunda
se amplia com a circulação do Magazine Onda da FC brasileira:
de Ficção Científica, trazido pelas mãos do
editor Jeronymo Monteiro, que publicava uma “A ficção científica brasileira não existe.
história brasileira a cada número, totalizando A cópia do modelo estrangeiro cria crian-
20 histórias nacionais publicadas em dois ças de olhos arregalados, velhinhos tarados
anos. Prática seguida de longe pela Isaac por livros, escritores sem leitores, homens
Asimov Magazine: Contos de Ficção Cientí- neuróticos, literaturas escapistas, absurdos
fica (1990-1993), que, apesar de mais tempo livros que se resumem a capas e pobreza
em circulação e com 25 números, publicou mental, colônias intelectuais, que procuram,
somente 16 histórias brasileiras. num grotesco imitar, recriar o modus vivendi
O primeiro romance brasileiro de FC dos países tecnologicamente desenvolvidos.
foi O doutor Benignus (1875), do portu- A ficção científica nacional não pode vir a
guês naturalizado brasileiro Augusto Emílio reboque do resto do mundo. Ou atingimos
Zaluar, admirador das obras de Verne. Relata sua qualidade ou desaparecemos. A produ-
as aventuras do doutor Benignus, médico ção literária brasileira, no gênero de FC, à
e cientista amador, e uma comitiva de 30 exceção de reduzido rol de obras, é de uma
pessoas que participam de uma expedição mediocridade horripilante.
com a esperança de encontrar o pai dele, Uma mula sem cabeça cospe fogo radioativo
o inglês William River, que possivelmente pelas ventas” (Regina, 1993, p. 10).
havia sido preso por indígenas no interior
do Brasil. Enquanto percorrem as matas de Também agitando a Segunda Onda,
Minas Gerais e de Goiás à procura de indí- colado intuitivamente ao manifesto, estava
cios de extraterrestres, observam e descrevem o subgênero tupinipunk (1989), termo criado
o céu e os planetas. Ao observar Marte por por Roberto de Sousa Causo (2013) para
seu telescópio, Benignus identifica florestas apresentar o cyberpunk à moda brasileira.
e conclui que o planeta avermelhado seria Nos anos de 2000 surge a revista Quark,
habitado. Adiante, ele reconhece as manchas produto inteiramente local, brasileiro, que
da superfície do Sol e diz que seu núcleo não era versão de uma revista americana,
também poderia ser habitado, pois não teria publicando mais histórias nacionais do que
a mesma consistência que a superfície. Como traduções, logo seguida pela concorrente Sci-
Zaluar, muitos escritores brasileiros sofreram -fi News Contos (2001), que também publi-
influência de Júlio Verne e H. G. Wells. cava somente histórias locais.
Em 1988, Ivan Carlos Regina, imbuído Os romances de FC brasileiros “pipo-
do espírito transgressor da Semana de Arte cam” com alguns precursores, mas, no sen-

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tido estrito do conceito de sci-fi, surgem São muitos os subgêneros e correntes da


somente após 1930 e florescem a partir FC nacional e todos possuem temas e iden-
de 1960, com as Edições GRD, nome da tidade visual próprios: cyberpunk, exobioló-
editora pioneira na publicação de livros de gica, FC hard, imortalidade, inteligência arti-
ficção científica no país, cuja sigla vem do ficial, new weird, primeiro contato, realidade
nome do editor e proprietário Gumercindo paralela, satírica, space opera, viagem no
Rocha Dorea (1924-2021). tempo, ufológica, esotérica, tupinipunk etc.
Segundo Oliveira, apesar de haver um Nascidos mais recentemente, do movimento
número cada vez maior de autores brasilei- de expansão da FC pelo Brasil, estão: solar-
ros talentosos, a FC aqui produzida ainda punk, cyberagreste, o sertãopunk, o amazo-
sofre de invisibilidade por parte de leitores, futurismo e o afrofuturismo. É muito comum
editores, críticos e acadêmicos, mais por que ocorra desses subgêneros se mesclarem,
preconceito de acreditar que “se é coisa exigindo que o leitor mais atento identifique
brasileira é ruim” que por não dispor de qual tem predominância no texto para fazer
qualidade. Ele vê na ficção científica a classificações à luz de cada um deles.
verdadeira literatura marginal brasileira: Vale observar que ao menos nove subgê-
neros da FC trazem a característica de serem
“Hoje, a periferia e a favela são temas punks. Há um elemento de rebelião no uso do
constantes não apenas na literatura, mas termo e as personagens principais costumam
também na canção, na tevê e no cinema ser membros marginalizados da sociedade,
brasileiros. Essa literatura produzida pela remetendo ao sentido original da palavra.
parcela mais pobre da sociedade, expres- Passarei a discorrer brevemente sobre
sando seus dramas e suas tragédias parti- alguns subgêneros mais atuais e em expansão
culares, já foi acolhida e legitimada pelas no Brasil, por serem símbolos de produções
autoridades culturais. Uma vitória bem- que fogem ao eixo Rio-São Paulo e apontam
-vinda” (Oliveira, 2018, p. 15). para um novo movimento no Brasil.
O solarpunk é um movimento estético
O acesso às publicações independentes derivado do cyberpunk, que aborda questões
de certa forma democratizou o mercado climáticas (desmatamento, desenvolvimento
editorial, trazendo novos nomes à cena, e sustentável, entre outras) e dinâmicas sociais
não somente a periferia das grandes cida- (desigualdade social, acesso à água, entre
des é retratada, mas também temas espe- outras). Com uma visão de um futuro pro-
cíficos antes não presentes nesse universo. missor, imagina mundos com produção de
Novos subgêneros, com uma visão mais energias inesgotáveis e ausência de danos
otimista de futuro, eclodem pelo Brasil, para os ecossistemas:
dando ênfase a temáticas regionais do
Nordeste e da Amazônia brasileira, logo, “Solarpunk é um subgênero que tem a ques-
fugindo do eixo Rio-São Paulo e apontando tão de criticar o sistema mostrando o que
para o que alguns (como o pesquisador poderia ser se esse sistema não existisse. É
Alexander Meireles da Silva) classificam um subgênero punk bem otimista, e que é
como a Quarta Onda da FC Brasileira. focado na questão do desenvolvimento sus-

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tentável, uma coisa que é importante para [...] o reforço e reprodução dos estereótipos
o Nordeste, por conta de boa parte do Nor- combatidos por parte dos artistas da região
deste ter problemas com recursos hídricos. há anos, sendo importante ressaltar a ima-
Como se a gente vivesse numa seca, que para gem de território que ‘precisa de ajuda para
vivermos temos que saber manejar recursos chegar a algum lugar’” (Milla, 2021).
hídricos” (Diniz, 2021).
O sertãopunk apresenta uma FC nordes-
O cyberagreste surgiu com as ilustrações tina - criado pelos autores G. G. Diniz, Alan
do gaúcho Vitor Wiedergrum, que associou de Sá e Alec Silva, o subgênero mistura a
o subgênero cyberpunk com elementos do cultura nordestina com um futuro fantástico
Nordeste brasileiro, principalmente o can- e remete a outros subgêneros punks, como
gaço e a miséria dos retirantes. Como lite- cyberpunk e steampunk. É necessariamente
ratura representativa do subgênero, temos especulativo e trabalha com a cultura dos
o livro de quadrinhos Cangaço overdrive credos, lendas e religiosidades, tanto afro-
(2018), que, com roteiro de Zé Wellington -brasileiros quanto nordestinos.
e ilustrações de Walter Geovani, apresenta A primeira obra publicada no subgê-
narração em forma de cordel, com batalhas nero foi O sertão não virou mar (2005),
nas quais próteses cibernéticas e a cone- de Liduina Farias Almeida da Costa. Como
xão absoluta são a realidade. Também são fundamentos do subgênero, Alan de Sá e G.
exemplos possíveis os contos “Filhos do G. Diniz apontam o realismo mágico, o afro-
metal e da caatinga”, de Laisa Ribeiro, na futurismo e o solarpunk (Sá; Diniz, 2020).
coletânea 2084: mundos cyberpunks (2019), O afrofuturismo nacional partilha de
com organização de Lídia Zuim, e, evidente- alguns dos mesmos idealizadores do ser-
mente, as histórias “Os olhos do cajuzeiro”, tãopunk, Alec Silva e Alan de Sá:
de G. G. Diniz, e “SCHIZOPHRENIA”, de
Alan de Sá, em Sertãopunk: histórias de “Então tem coisas dos conflitos étnicos do
um Nordeste do amanhã (2022). Nordeste que são bem únicos para a região.
Esse subgênero recebe críticas por apre- Se formos olhar a história, o Ceará aboliu
sentar uma visão estigmatizada do Nordeste. a escravidão quatro anos antes do resto do
Segundo Chico Milla, em texto na Rede Brasil. Aqui nós temos conflitos étnicos que
Alagadiço – Plataforma Artística Cearense, são bem únicos da região em relação aos
o subgênero traz o negros e aos povos originários. Afrofutu-
rismo não contempla os povos originários,
“[...] esvaziamento dos símbolos regionais mas contempla pessoas negras” (Diniz, 2021).
reforçando o uso do ‘belo pelo belo’ sem
qualquer aprofundamento [...]; reprodução O amazofuturismo nasceu com as artes
de exotismo periférico [...] no protagonista visuais do ilustrador João Queiroz (Dutra,
branco, homem, cis, hétero, desbravando uma 2020), em 2019, através da mistura estética
‘terra de ninguém’; [...] supervalorização da do cyberpunk e do solarpunk. O subgênero
seca, da miséria como únicos problemas dig- explora as possibilidades tecnológicas indíge-
nos de nota [...] o exotismo da zona rural; nas amazônicas e cria um novo olhar sobre

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as antigas lendas de civilizações avançadas vem para unir os povos num ideal estético
escondidas no coração da selva amazônica. e conceitual, e não promover a segregação
O primeiro romance de FC publicado neste racial” (Pietro, s.d.).
subgênero é Amazofuturism (2021), de Rogé-
rio Pietro. Segundo o autor, o subgênero é Parece haver um número excessivo de
definido por quatro pilares fundamentais: subgêneros na FC; desconsiderando o mérito
disso ser interessante ou não para o gênero
“Primeiro pilar: os indígenas, a etnia ou o literário, é inegável que contribui para melhor
povo representado, seja real ou fictício, deve organizar a diversidade enorme de publi-
ser da selva amazônica. Do contrário não cações que a ficção científica abrange na
seria amazofuturismo. Obras de arte futu- atualidade. Os conceitos se aperfeiçoam com
ristas sobre povos indígenas de outras loca- o tempo, trazendo ou subtraindo elementos
lidades podem receber novas denominações. e, às vezes, se fundindo. O fato é que a FC
Segundo pilar: a tecnologia indígena deve ser brasileira se amplia a cada dia com maior
inovadora e única. O simples fato de dar aos quantidade e qualidade de escritores, leitores
personagens telefones celulares ou computa- e obras, necessitando ainda de maior reco-
dores não caracteriza o amazofuturismo. Pelo nhecimento e valorização. E de difusão que
contrário, o uso de tecnologias tipicamente a faça ocupar espaços e mercados.
usadas por outros povos seria apenas uma Pode-se observar que esse gênero, que
descaracterização da cultura indígena. Ter- nasce como literatura estrangeira, se encaixa
ceiro pilar: os avanços tecnológicos devem e avança rumo a produções cada vez mais
estar em harmonia com o meio ambiente. voltadas para temáticas brasileiras, incor-
A sociedade indígena amazofuturista deve porando nossas experiências como povo e
ser utópica, voltada para o bem-estar dos nossos valores culturais, elementos fortes
habitantes e sempre respeitar a selva e os e presentes na modernidade. Testemunha-
animais. Se uma sociedade indígena amazô- mos o momento que inaugura os passos
nica for retratada com um olhar distópico, na direção da existência de uma FC com
em que o meio ambiente e a sociedade foram identidade nacional.
degradados, então o termo amazofuturismo
não pode ser usado. Esse tipo de visão talvez OBRAS CONSIDERADAS
pudesse ser chamado de ‘amazopunk’, o que
RELEVANTES PARA A FC NO CENÁRIO
não é o objetivo do novo subgênero da ficção
científica. Quarto pilar: as histórias devem INTERNACIONAL E NACIONAL,
ser contadas do ponto de vista dos perso- SEUS TEMAS E SUBGÊNEROS
nagens indígenas, e não mais do ponto de
vista do personagem explorador/colonizador
que se deslumbra ao encontrar uma cidade Cenário internacional
maravilhosa no seio da selva amazônica. Por
outro lado, as histórias amazofuturistas não A FC surgiu como gênero literário no
precisam ter autoria exclusiva de escritores século XIX, mas foi gestada no século XVII.
ou roteiristas indígenas. O amazofuturismo Muitas obras foram escritas antes de 1930

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na Europa, por esse motivo, algumas delas se a história influenciasse diretamente
foram relacionadas abaixo. Três grandes as produções literárias e trouxesse temas
nomes se destacam neste cenário da FC: específicos daquela época. Vale observar
Júlio Verne, H. G. Wells e Isaac Asimov. que os períodos não são estanques, mes-
Vale o destaque para Mary Shelley, com clam-se, são interpenetráveis:
obra que se tornou um marco da FC numa
época em que o cenário literário era predo- ● Período Primitivo (1815-1926) – a FC
minantemente dominado por homens. neste período não existia enquanto
forma literária e publicava-se tudo que
1634 – Somnium, Johannes Kepler se assemelhasse a temas de antecipação,
1726 – Viagens de Gulliver, Jonathan Swift como viagens interplanetárias, mons-
1818 – Frankenstein, Mary Shelley tros marinhos e extraterrestres, guerras
1864 – Viagem ao centro da Terra, espaciais. Autores como Mary Shelley,
Júlio Verne Edgar Allan Poe, Arthur Conan Doyle,
1870 – Vinte mil léguas submarinas, Tolstoi, Júlio Verne e H. G. Wells
Júlio Verne incluem-se nesse período. No final,
1895 – A máquina do tempo, H.G. Wells firma-se o papel de Hugo Gernsback,
1897 – O homem invisível, H. G.Wells que, em 1926, edita a revista Amazing
1898 – A guerra dos mundos, H. G. Wells Stories, entre outras que falavam da
1901 – Os primeiros homens na Lua, paixão pelo progresso tecnológico.
H. G. Wells ● Período Gernsback (1926-1938) – com
1920 – RUR: robôs universais de Rossum, especulação de aventuras e inventos
Karel Capek tendo por base a biologia, sociologia e
1922 – Aelita, Alexei Tolstoi psicologia, surge neste período a space
1924 – Nós, Yevgeny Zamyatin opera e os heróis dilatam seus feitos no
1925 – Metrópolis, Thea Von Harbou Cosmo, extrapola-se o campo científico
1932 – Admirável mundo novo, e nem sempre existe respeito à precisão
Aldous Huxley científica nas descrições. Abordam-se
1949 – 1984, George Orwell temas como drogas da inteligência, supe-
1944 – Fundação, Isaac Asimov ração da velocidade da luz, natalidade
1950 – Eu, robô, Isaac Asimov controlada por laboratórios, drogas da
1950 – As crônicas marcianas, Ray Bradbury felicidade, consumismo de coisas novas
1961 – Solaris, Stanislaw Lem e descarte das velhas, viagens cósmicas,
1963 – O planeta dos macacos, Pierre Boulle foguetes. Surgem aqui os conceitos de
1968 – 2001: Uma odisseia no espaço, hard science fiction e soft science fiction
Arthur C. Clarke – a primeira está vinculada às ciências
físicas e naturais (física, astronáutica,
Segundo Léo Godoy Otero (1987, pp. aeronáutica, astronomia, mecânica) e a
82-132), a FC se divide em cinco grandes segunda extrapola as ciências do com-
períodos e a cada um deles destaca literatu- portamento (antropologia, exobiologia
ras voltadas a temáticas específicas, como etc.), temas inerentes à FC social. Desse

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período, destacam-se os livros Admirável Huxley (1962), O androide, de Henry Kut-


mundo novo, de Aldous Huxley (1932), tner, Duna, de Frank Herbert (1965), e
Fundação, de Isaac Asimov (1944), e A mão esquerda da escuridão, de Ursula
Sirius, de Olaf Stapledon (1944). K. Le Guin (1969). Nesse período, a FC
● Período Social ou de Campbell (1938- fica mais elaborada e de difícil leitura,
1945) – em que o homem surge como com enfoque psicológico e místico.
empresa, a tripulação é especializada nos
diversos setores da técnica, a participa- Segundo Adam Roberts, o lançamento do
ção da mulher ocorre numa relação de satélite artificial Sputnik pela União Sovi-
igualdade, máquinas lógicas, “neuroses ética transformou a viagem espacial em
robóticas”. Surgem temas como telepatia, realidade e a missão à Lua com a Apolo
imortalidade, gigantismo humano, super- em 1969 trouxe entusiasmo e esperança de
mentalidades, viagens no tempo, aranhas que o futuro era realidade. No entanto, o
inteligentes, entidades capazes de assu- desaparecimento de recursos e cortes em
mir aparências físicas. O livro Viagens investimentos em 1970 reduziu o sonho
de Gulliver, de Jonathan Swift, subsidia da viagem espacial a satélites comerciais
a abordagem de John W. Campbell, tido e militares em órbita da Terra, e a algu-
como o pai da FC social. mas sondas-robô em aventuras um pouco
● Período Atômico (1945-1958) – surge logo mais longas. Isso fez com que o otimismo
após o advento da bomba atômica e a da década anterior fosse desaparecendo na
literatura assume uma visão pessimista década de 1970, adentrando os anos 1980.
de mundo. Pululam temas sobre radio- Grupos de escritores, desapontados com a
atividade, chagas, imperialismo interga- realidade, formaram duas correntes na FC: a
láctico, mutantes ominosos, semicarboni- new wave e o movimento cyberpunk. A pri-
zados. Destacam-se no período 1984 e A meira, uma associação informal de escritores
revolução dos bichos, de George Orwell das décadas de 1960 e 1970 que produziam
(1949 e 1945), O futuro do mundo e a FC de vanguarda, com narrativas radicais
Série Fundação e Império, de Isaac Asi- ou fragmentadas. Segundo Damien Brode-
mov, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury rick, a new wave foi “uma reação contra
(1953), e 2001: uma odisseia no espaço, a exaustão do gênero”. Segundo Roberts,
de Arthur C. Clarke (1968). esse movimento pode ser visto como “uma
● Período Sincrético (1958 – hoje) – período tentativa deliberada de elevar a qualidade
em que se busca a solução para os proble- literária e estilística da FC”, que pretendia
mas do planeta, surgem máquinas subju- abandonar os padrões da FC tradicional com
gadas, colonização de planetas, universos ênfase no conteúdo antes que no estilo e no
paralelos, viagens superiores à velocidade tratamento. Época marcada por certo fascínio
da luz, mutações biológicas, faculdades com o fim dos tempos, novo início cósmico,
supranormais, homossexualiadade, inte- a vinda da Era de Aquário, ansiedade e medo
ligências superiores que visitam a Terra, do aniquilamento nuclear... Uma linguagem
máquinas com sentimentos, clones, cibor- da transcendência, com temas que abordam
gues. Destacam-se os livros A ilha, de o fascínio pelo valor do messias. Alguns dos

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grandes clássicos que marcam o período são afro-americana, com o livro Kindred: laços
Um estranho numa terra estranha (1961), de de sangue (1979), que trata da experiência
Heinlein, Duna (1965), de Frank Herbert, da escravidão antes da Guerra Civil.
os romances da grande fase de Philip K. Na década de 1990, as produções de
Dick, como Os três estigmas de Palmer ficção científica são invadidas por temas
Eldritch (1965), O caçador de androides dos dias atuais, como questões ecológicas
(1968) e Ubik (1969). e o que seria um ambiente vital e viável de
Ainda segundo Roberts, houve esforço sobrevivência humana. As séries de roman-
de muitos escritores para renovar o novum, ces mais significativas do período foram a
com tentativas de escrever a FC com mais trilogia Marte, de Kim Stanley Robinson
sofisticação literária e mais ambição for- (1993-1996), e Confluence (Confluência), de
mal, “de integrar mulheres, minorias étnicas, Paul McAuley (1997-1999).
modos alternativos de vida e sexualidade A FC se expande para as artes visuais. A
como expressão do fascínio central da fic- criação de seres e ambientes virtuais cresce
ção científica”. Helen Merrick estabelece de forma vertiginosa, inserindo a FC em
vínculos entre a new wave e o impacto do realidades mais tecnológicas. Abordando
movimento das mulheres sobre a FC. temas como amizade, escolaridade, socia-
lização fora da família e sexo, em histórias
“[A] invasão feminina com um debate novo de amor comoventes que filtram o grau
e contestado com vigor entre ‘FC hard’, esti- de violência e fazem sucesso comercial.
lizada como masculina, e a ‘FC soft’, esti- Destacam-se nesse período três séries de
lizada como feminina do modo [...] talvez livros que se transformaram em grandes
faça mais sentido ver a new wave como o metáforas globais – Harry Potter (1997-
gênero refletido sobre si mesmo para recon- 2007), de J. K. Rowling, saga Crepúsculo
siderar sua lógica original” (Roberts, 2018). (2005-2008), de Stephenie Meyer, e Jogos
vorazes (2008-2010), de Suzanne Collins.
O livro The female man (O homem femi- Três sucessos comerciais que dominaram a
nino), 1975, de Joanna Russ, surge como paisagem editorial, e que continuam a ser
uma utopia feminista e crítica polêmica dos lidos, atingindo público diverso. Os dois
homens e da masculinidade. O período é primeiros estão no campo da fantasia e o
marcado também por autoras como Margaret terceiro, no da distopia.
Atwood, com o livro O conto da aia (1985), Adam Roberts nos traz o conceito do
em que as mulheres são vítimas das hierar- leitor “jovem adulto”. Pessoas entre 25
quias repressivas construídas pelos homens e 30 anos de idade que continuam gos-
em um Estados Unidos ultraconservador; tando de textos, filmes, músicas e games
Sheri Tepper, com os livros O portão para da adolescência. Segundo Roberts, esse
o país das mulheres (1988), The waters rising público passa a determinar toda uma pro-
(A subida das águas; 2010), que trazem pre- dução cultural de FC.
ocupações ambientais e as delinquências da Filmes adaptados das histórias em qua-
relação da humanidade com o mundo natu- drinhos tornam-se campeões de público e
ral; Octavia Butler, importante romancista bilheteria e são disputadíssimos pelas gran-

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des empresas cinematográficas. Os fãs de trando nessas tecnologias não só um meio


FC auxiliam na divulgação e formação de de concretizar o seu visual, mas também de
opiniões. Exemplos disso são as convenções materializar a sua própria estética: a prin-
de quadrinhos da ComiCon nos Estados Uni- cípio mais vinculada à estética do grande
dos, a FinnCon na Europa, e a WorldCon teatro e depois criando um senso de espe-
em diversos lugares. táculo especificamente cinematográfico.
Também segundo Roberts, apesar de Ainda segundo Roberts, na década de
não ser sucesso de vendas, o mainstream 1960 foram produzidos menos filmes de FC,
mantém-se como categoria cultural relevante em comparação com a década anterior, mas
e obras significativas, explorando temas de foi criada uma série de filmes inovadores
ficção científica, foram publicadas no século de FC. Como exemplos, Matango (1963),
XX. A exemplo da escritora norte-americana de Inishiro Honda; Fahrenheit 451 (1966),
Jennifer Egan, com A visit from the Goon de François Truffaut; Barbarella (1967), de
Squad (Uma visita do Esquadrão Capanga; Roger Vadim; 2001: uma odisseia no espaço
2020), que trata de um mundo em colapso (1968), de Stanley Kubrick.
climático em um futuro próximo, e Não A FC audiovisual na TV é encontrada
me abandone jamais (2002), de Kazuo no final da década de 1940 e inícios de
Ishiguro, que trata de clones criados em 1950. Surge de forma bem amadorística e
remotos ambientes escolares para fornecer passa, na década de 1950 e na de 1960, a
órgãos de transplante. formatos genéricos como Science fiction
No século XXI surgem os subgêneros ste- theatre (1955-1957) ou seriados com epi-
ampunk, de retrofuturismo e ficção científica sódios independentes. Alguns exemplos:
recursiva que, impelido por uma nostalgia Além da imaginação (1959-1964); Quinta
dos estilos e condutas da Inglaterra da era dimensão (1963-1965); Os Jetsons (1962-
vitoriana, propõe a convivência harmônica 1963); Viagem ao fundo do mar (1964-
entre a tecnologia contemporânea e a ele- 1968); Perdidos no espaço (1965-1968);
gância e as boas maneiras do século XIX; Túnel do tempo (1966-1967); Jornada nas
o new weird, que surge com um grupo de estrelas (1966-1969); Doctor Who (1963-
escritores de fins do século XX, promovendo 1989 e 2005 até o presente).
uma estética irregular e sombria, baseada em Adam Roberts alerta para uma cres-
uma paixão pelas fantasias de H. P. Love- cente tendência visual do gênero FC e uma
craft, Mervyn Peake e M. John Harrison; mudança no seu foco textual, que passa de
e a new space opera, que inclui o trabalho textos individuais vinculados a uma premissa
de escritores que conseguem executar uma particular para “megatextos”, abrangendo
FC de aventura, de modo devidamente hábil, várias mídias (novelas, filmes, seriados de
combinando pesquisa científica rigorosa com TV, videogames, histórias em quadrinhos,
sensibilidade literária. Como exemplos, os ilustrações etc). A FC passa a aceitar múlti-
autores Paul MacAuley e Alastair Reynolds. plas adições textuais, como ocorre em Duna,
Nas últimas décadas do século XX, a FC de Frank Herbert, e depois passa a ser pla-
torna-se um gênero dominado pela mídia nejada antecipadamente como megatextos,
visual, invadindo cinemas e TVs, encon- como ocorre em Star wars (1977) e Matrix

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(1999), por exemplo. O mesmo ocorre com ser considerados precursores no gênero,
Doctor Who e Jornada nas estrelas, pois período que abrange de 1857 a 1957.
nascem com a premissa de serem moldados Passo a discorrer brevemente sobre auto-
em diferentes formatos. res e obras para que se possam aferir as
O sucesso de bilheteria e os fãs auxi- características da FC presentes.
liam no processo de manutenção da histó- Exemplos mais antigos incluem o conto
ria, gerando novas sequências. Como exem- “O fim do mundo” (1857), de Joaquim
plo, podemos citar os filmes Planeta dos Manuel de Macedo; o romance O dou-
macacos; De volta ao planeta dos macacos tor Benignus (1875), de Augusto Emílio
(1969); Fuga do planeta dos macacos (1971); Zaluar; o conto “O imortal” (1882), de
A conquista do planeta dos macacos (1972); Machado de Assis. Neste último, o médico
A batalha do planeta dos macacos (1973) homeopata Dr. Leão busca persuadir seus
e assim por diante. O mesmo ocorre com ouvintes – o coronel Bertioga e o tabelião
Alien, Matrix etc. Linhares – sobre a imortalidade de seu
Nas décadas de 1980 e 1990, surgem os pai, Rui de Leão, que teria vivido por
filmes de super-heróis, transferidos da FC 255 anos, entre 1600 e 1855, graças a um
dos quadrinhos para o cinema. Exemplos: poderoso elixir indígena.
Superman (1978); Batman (1989); Homem- O romance A rainha do ignoto (1899), de
-Aranha (2002), entre outros. Foram fran- Emília Freitas, narra uma história ambientada
quias relançadas de 2000 a 2010 com grande no Ceará, com uma sociedade autônoma e
sucesso de bilheteria. altamente desenvolvida de mulheres aven-
Os diálogos da FC entre as diversas tureiras que se vale da hipnose e da capa-
mídias continuam se ampliando até a cidade de se comunicar com o além para
atualidade. Se, por um lado, esse cresci- identificar e ajudar outras pessoas doentes
mento visual enfraquece a prosa da FC, ou oprimidas, tendo como líder Funesta,
também a fortalece, pois muitos leitores descrita como criatura mítica local, cheia
querem ler aventuras do tipo Star wars de mistérios e medo.
e as editoras atendem às suas necessi- O conto “Demônios” (1893), de Aluísio
dades. Segundo Roberts, a FC em prosa de Azevedo, através de um sonho, descreve
da década 1980 retorna em formato às de modo delirante o Rio de Janeiro em
convenções da Era de Ouro, não aos trevas. O personagem principal vai atrás
avanços estéticos da new wave. de Laura, a bem-amada, confessando pai-
xão e comunicando-se ambos por telepatia;
transformam-se em quadrúpedes, depois se
Cenário nacional transmutam em árvores e assim permane-
cem por séculos, até que a lama se desfaz
No Brasil, a FC chegou tardiamente e e surgem novas moléculas e átomos com
se restringiu às grandes cidades por terem a geração de outra vida.
maior domínio tecnológico. Nenhuma obra, O presidente negro (1926), de Monteiro
no estrito conceito de FC, foi escrita antes Lobato, é um romance controverso devido
de 1930, mas tivemos autores que podem às abordagens que faz dos negros – tam-

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bém ambientado no Rio de Janeiro, apre- processo os humanos levam uma lição de
senta influências de Wells e Conan Doyle. solidariedade universal dos viajantes. Ainda
O escritor provoca um encontro casual entre de Jeronymo Monteiro, 3 meses no século
o protagonista, Ayrton – jovem funcionário 81 (1947), romance com influência direta
de uma empresa no Rio de Janeiro –, com de Wells, em que o personagem Campos se
um professor estudioso de física relativís- depara com um futuro muito diferente do
tica. É-lhe dado conhecer as invenções do esperado e deverá mostrar à humanidade o
cientista, uma máquina do tempo, como a de que realmente importa. Fausto Cunha, com
Wells, que tem a capacidade de desvendar o a coletânea de contos As noites marcianas
futuro até o ano de 3527, e um rádio-trans- (1960). Dinah Silveira de Queiroz, com Eles
porte, que leva as coisas que uma pessoa herdarão a Terra (1960), livro com cinco
necessita até sua casa, pelo rádio. histórias, com invasões extraterrestres e mãos
Outro romance, Viagem à aurora do decepadas. E André Carneiro, que escreve
mundo (1939), de Érico Veríssimo, sob influ- vários livros de contos, com destaque para a
ência de Wells, apresenta um protagonista noveleta “A escuridão” (1963), que trata de
que é cientista e constrói um aparelho capaz um mundo sem luz, sem causas explicáveis,
de revelar a gênese da Terra a partir da onde os cegos, como únicos habituados a
captação das mensagens luminosas proje- viver no escuro, relevam-se.
tadas no espaço. Sonha com viagens pelo A Segunda Onda da FC brasileira surge
infinito em velocidades superiores à da luz, após o período da ditadura militar, na década
fotografando tempos passados e futuros, na de 1980, período de 1982 a 2015, também
dimensão espaço-temporal. chamado de período do renascimento da FC.
No entanto, o boom na FC brasileira Vários escritores aparecem em fanzines como
ocorreu nos anos de 1960, com a chamada Somnium, Hiperespaço, Boletim Antares e
Geração GRD (Allen, 1973, pp. 11-2). Esse em organizações de fãs como o Clube de
período foi considerado a Primeira Onda Leitores de Ficção Científica.
da FC brasileira (Bell e Molina-Gavilán, Vale destacar neste período os autores
2003, pp. 6-8 e 19), abrangendo os anos Jorge Luiz Calife, com o romance Padrão de
de 1957 a 1972. contato (1985), uma ópera espacial seguida
Foram representantes da FC brasileira de outros dois romances: Horizonte de even-
desta época autores como Jeronymo Mon- tos (1986) e Linha terminal (1991). Traz uma
teiro, que nos anos 1930 radiofonizava visão otimista da raça humana, onde uma
novelas e escrevia contos de FC em jor- mulher, com nome brasileiro de “Angela
nais e revistas como A Cigarra (1914-1975), Duncan”, é guardiã do universo; Braulio
com publicação quinzenal em São Paulo. Tavares, com A espinha dorsal da memó-
O autor escreveu vários livros com temá- ria (1989), uma das melhores coletâneas de
ticas de FC, dentre eles, Os visitantes do contos de FC brasileira; Fausto Fawcett, com
espaço (1963), em que alienígenas reluzen- seu primeiro romance Santa Clara Polter-
tes de um dos satélites de Júpiter vêm à geist (1991), com elementos cyberpunk, de
Terra para retirar um pouco do hidrogênio psipowers e near future; Roberto de Sousa
de nossa atmosfera. O que fazem, mas no Causo, com a noveleta Patrulha para o des-

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conhecido (1991), FC militar que fala dos narrativas. O representante mais significativo
pracinhas da FEB e o encontro com estra- deste período é “Luiz Bras”, pseudônimo
nhos habitantes durante a Segunda Guerra de Nelson de Oliveira, vencedor do Prêmio
Mundial, na Itália; Ivan Carlos Regina e sua Casa de las Américas, com Fábulas (contos,
coletânea O fruto maduro da civilização 1997) e editor das revistas do Projeto Portal
(1993), que inclui o Manifesto antropofágico (2008-2010), com as quais fomentou a ponte
da ficção científica brasileira, e textos de entre FC e mainstream, refletindo o debate
humor sarcástico como carro-chefe da FC; no jornal literário Rascunho sobre o tema.
Finisia Fideli, com “O ovo do tempo” (1994), Nesse grupo estão os atuais escritores
conto delicado e bem-humorado sobre uma de FC. Alguns nomes da Segunda Onda
bióloga que adquire um geodo que a condu- se uniram aos novos nomes e ampliaram
zirá ao contato com um viajante do tempo; as vozes pelo território nacional. Os blogs,
Gerson Lodi-Ribeiro, com O vampiro de internet, revistas eletrônicas, podcasts e
Nova Holanda (1997), história alternativa pequenas editoras, com um número cada
que passa pela presença holandesa no Nor- vez maior de publicações de coletâneas e
deste brasileiro e a de escravos fugidos antologias – como a coleção Futuro Infi-
de Palmares a quem o vampiro se alia. nito (Bras, 2019-2023), que reúne autores
Fábio Fernandes, com o romance curto Os da antiga e da nova geração, incluindo a
dias da peste (2009), que trata de singula- comunidade LGBTQIA+ – muito contribu-
ridades tecnológicas; Ivanir Calado, com o íram e contribuem para esta expansão que
livro de contos Anjos, mutantes e dragões avança com diversidade de gêneros, autorias
(2010), que aborda os subúrbios cariocas e espaços fora das grandes capitais.
com alternâncias entre suspense, humor, Atualmente, fala-se do surgimento da
drama e especulação intelectual. “Quarta Onda” da FC brasileira. Segundo
A Terceira Onda da FC brasileira surge o professor Alexander Meireles da Silva
a partir de 2004 com vários autores jovens (2021): “Quarta Onda pode ser entendida
querendo fazer parte desse universo. O pela afirmação e celebração das diversidades
advento da internet estimulou esses auto- socioculturais e regionais do Brasil, forma-
res, e surge a comunidade “Ficção Cientí- lizada pela maior presença na cena literária
fica” no Orkut, fundada por Fábio Fernandes de escritores e escritoras negras ligadas ao
(2004). Com nomes como Fábio Medeiros, afrofuturismo e a ascensão de movimentos
com Quintessência (2004); Cristina Lasai- como o amazofuturismo e o sertãopunk”.
tis, com Fábulas do tempo e da eternidade Caracteriza-se este momento como de
(2008); Tibor Moricz, com Fome (2008), expansão da FC brasileira, com a vinda à
uma das obras mais violentas da FC brasi- tona de vozes antes alijadas tanto do pro-
leira. E ainda Lady Sybylla e Aline Valek, cesso de produção, como de divulgação
com Universo desconstruído (2013), uma e premiação no cenário nacional da FC.
das primeiras antologias com contos de viés Também como momento de resgate de uma
feminino ou feminista no Brasil. Foi um perí- nacionalidade, no sentido de abarcar um
odo de muita efervescência, com ampliação maior número de autores, gerando o surgi-
de publicações e experimentações de novas mento do que Lidia Zuin chama de novas

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configurações da ficção científica no Brasil podemos para mudar esse cenário. Quere-
na segunda década do século XXI: mos que a literatura de gênero evolua, que
abrace todas as pessoas do mundo e não
“Hoje, já na quarta onda da ficção cientí- apenas uma minúscula parte dele” (Anotsu;
fica brasileira, vemos autores que exploram Vieira, 2015).
subgêneros populares atualmente, como o
afrofuturismo, no qual se destaca a obra O Esse movimento traz à tona a importância
caçador cibernético da Rua 13, de Fábio de todos serem representados na literatura,
Kabral, ou o romance steampunk de O baro- sem distinção, demonstrando um amadure-
nato de Shoah, de José Roberto Vieira, ou a cimento da FC brasileira. Como afirma Ale-
versão LGBT, a partir de movimentos como xander Meireles da Silva (2021): “Mais do
o Manifesto Irradiativo. E acontece nestes que nunca, podemos dizer que a FC nacional
dias a ascensão de uma nova frente especu- reconhece hoje na multiplicidade cultural
lativa: o cyberagreste” (Zuin, 2019). do seu passado e presente as ferramentas
de construção de seu futuro”.
Com esses movimentos, novos olhares
se somam ao cenário brasileiro, desvelando Temas e subgêneros
regionalidades na fala de autores daqueles
da ficção científica
lugares. Nesta medida, um amazonense
poderá falar de uma lenda regional viva,
como o Mapinguari (monstro amazônico), A ficção científica tem como princi-
excluindo dela o sentido pejorativo que a pal tema a ciência, seja na literatura, no
palavra “folclore” possa apresentar. São cinema, em HQ ou outra forma de lin-
outros olhares apresentando outras possibili- guagem. Ciência entendida num sentido
dades, trazendo riqueza à produção nacional. mais amplo, que envolve vários campos
Isso não significa que exista unanimidade, do conhecimento humano, como a filosofia
mas sim diversidades nos olhares e vozes. e a fantasia, entre outros.
A Quarta Onda surge a partir de 2010 São muitos os subgêneros da FC,
e vem com esse viés de amplitude e diver- como também muitos os seus temas, e
sidade, assim como de democratização do eles aumentam cada vez mais o seu grau
acesso, produção e divulgação na literatura de complexidade. Adoto aqui o critério
especulativa brasileira, para que seja mais de organização de alguns subgêneros com
inclusiva. Em prol desta diversidade nacional certa ordem cronológica e brevíssimas
surge o Manifesto Irradiativo. caracterizações da época, lembrando que
não são territórios estanques, podendo se
“O mundo do papel e das telas ainda é mesclar numa mesma obra.
dominado por homens cis brancos fazendo
o que sempre fizeram e refazendo o que ● Viagem no tempo (século XIX) – pro-
sempre fizeram. É por isso que acredita- duções baseadas no conceito de mover-
mos numa forma de tomar isso de assalto, -se para trás e para frente na linha do
fazendo barulho com o que temos e o que tempo, de um modo análogo à mobilidade

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pelo espaço. Temas como máquinas do ● Utopia (final do século XVII) – nasce
tempo, conceitos de física que possibi- com viés socialista, envolve um mundo ou
litam viajar no tempo com buracos de sociedade ideal em tudo. Pode haver situa-
minhoca, universos paralelos, dobra do ções de conflito, mas a ideia é que esse
tempo, criação de novas realidades, alte- lugar é regido pelas melhores leis, pelas
rar passado, memórias, desaceleração ou melhores pessoas, um espaço de conforto
aceleração no tempo... H. G. Wells é um e de paz porque tudo está bem. Temas:
dos responsáveis pela popularização do inventos e experimentos, projeções emba-
conceito com seu romance A máquina sadas nas ciências que, mesmo longín-
do tempo, publicado em 1895; série de quas, são possíveis de se tornarem reais.
TV Dark (2017); conto “O buraco de Exemplos: Notícia de lugar nenhum, de
minhoca”, de Romy Schinzare (2018); William Morris (1890); Terra das mulhe-
● Satírica (surge no século XIX, por volta res, de Charlotte Perkins Gilman (1915);
de 1868) – ficção que se apropria dos ● Mundo perdido (final do século XIX e
principais elementos dos outros subgêne- início do século XX) – diz respeito à
ros, exagerando-os ou distorcendo-os. Tem descoberta de lugar remoto e inexplorado
como estratégias: ridicularizar loucuras, que permaneceu “fora do tempo”, isolado
abusos e falhas; envergonhar indivíduos, do resto do mundo conhecido, mas con-
corporações, governo ou a própria socie- servando características extraordinárias
dade em melhoria. Exemplos: romance arcaicas ou completamente anacrônicas
O doutor Benignus, de Augusto Emílio graças ao seu isolamento. Temas: dinos-
Zaluar (1875); conto “O sr. Info e dona sauros, répteis pré-históricos; lugares exó-
Ninfo”, de Ivan Carlos Regina (1993); ticos – cidades localizadas nas cavidades
● Pós-apocalipse (início do século XIX) – profundas da Terra ou civilizações anti-
às vezes abreviada como “pós-apo” ou gas escondidas na selva, ilhas distantes
“pós-nuclear”, costuma ser associada ao ou vales inacessíveis que preservam um
subgênero distopia. Retrata a vida após fragmento do passado. Exemplos: Via-
um desastre que destruiu a civilização: gem ao centro da Terra, de Júlio Verne
guerra nuclear, colisão de meteorito, epi- (1864); A cidade perdida, de Jeronymo
demia, colapso de economia ou energia, Monteiro (1948); O mundo perdido (1912),
pandemia, invasão alienígena etc. Os de Arthur Conan Doyle;
sobreviventes precisam seguir em frente ● Distopia (início do século XX) – lugar
e aprender as novas regras de sociedade, no espaço ou no tempo em que a vida e
sobrevivência e vivência nessa nova rea- a vivência são terríveis, com uma orga-
lidade. Temas: relação entre civilização nização opressiva, comandado por um
perdida e o novo caos, confrontos de rea- governo totalitário, onde os direitos são
lidades sociais, discurso original sobre o poucos e a voz das pessoas quase não é
real etc. Largamente explorada em filmes ouvida. Sociedade visivelmente dividida,
e afins. Exemplos: Guia do mochileiro das onde a elite detém o privilégio supremo
galáxias, de Douglas Adams (1979); A e as castas mais baixas são fadadas ao
máquina do tempo, de H. G. Wells (1895); horror e ao esquecimento. Temas: dile-

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mas morais, crítica social, discurso pessi- tas consideram impossíveis. Tem como
mista que flerta com a esperança, violên- temas a telepatia, viagem mais rápida do
cia banalizada e generalizada. Exemplos: que a luz, parapsicologia. Série Duna,
romance 1984, de George Orwell (1949); de Frank Herbert (1965), é um marco da
romances Piscina livre e Amorquia, de ficção científica soft; Não chore, novela
André Carneiro (1980 e 1991); de Luiz Bras (2016).
● História alternativa (século XX) – a trama ● Space opera ou novela espacial (século
transcorre num mundo no qual a histó- XX – 1960 e 1970) – enfatiza aventuras
ria possui um ponto de divergência da e batalhas interplanetárias. Geralmente se
história como nós a conhecemos. Faz a situa no espaço sideral ou num planeta
seguinte pergunta: “O que aconteceria se distante. Tem como temas: espaçonaves
a história tivesse transcorrido de maneira que voam distâncias ilimitadas em curto
diferente?”. A maioria das obras do gênero espaço de tempo, planetas com formas de
é baseada em eventos históricos reais, vida exóticas, alienígenas, armas de raios,
ainda que aspectos sociais, geopolíticos robôs, carros voadores, forças paranor-
e tecnológicos tenham se desenvolvido mais, energias capazes de destruir plane-
diferentemente. A noveleta A ética da tas, estrelas e galáxias inteiras. Exemplos
traição (1993), de Gerson Lodi-Ribeiro, de filmes no gênero são Star wars e Star
é considerada um clássico moderno; trek e os romances Glória sombria e Shi-
● Ficção científica hard (século XX – por roma, matadora ciborgue, de Roberto de
volta de 1950) – as histórias são centradas Sousa Causo (2013 e 2015).
em tramas com plausibilidade nos seus ● Feminista (século XX – Brasil, anos 1970)
elementos científicos, com tecnologias – lida com o papel da mulher na socie-
e eventos possíveis. Prioriza as ciências dade, levanta pontos sobre as questões
exatas (física, química, matemática etc.) sociais como a forma pela qual se cons-
e alguns de seus temas são: personagens trói os papéis de gênero, qual o papel
cientistas, engenheiros, astronautas; fenô- da reprodução na definição de gênero e
menos astronômicos e físicos; uso da tec- o poder político e pessoal desigual entre
nologia como solução do problema, preci- homens e mulheres; aborto, machismo,
são técnica, conjuntos consistentes de leis racismo, homofobia, transfobia, preconceito
da física em universos alternativos; naves com a literatura produzida por mulheres.
espaciais. Exemplos: Fundação, de Isaac Temas comuns: sociedades utópicas e dis-
Asimov (1944), e 2001: Uma odisseia no tópicas, patriarcalismo, papel da mulher
espaço, de Arthur C. Clarke (1968); na sociedade etc. Exemplo: coletânea Uni-
● Ficção científica soft (século XX – final verso desconstruído, organização de Lady
da década de 1970) – associada à ficção Sybylla e Aline Valek (2013);
científica new wave, tende a focar perso- ● Steampunk (século XX – 1980 e 1990) –
nagens humanas, seus relacionamentos e também conhecido como vaporpunk ou
sentimentos. Faz uso das ciências huma- tecvapor, ocorre no período da Revolu-
nas (filosofia, sociologia, psicologia etc.). ção Industrial e trata de obras ambien-
Cai no campo das coisas que os cientis- tadas no passado em que os paradigmas

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tecnológicos ocorreram mais cedo que intencionais da revolução da biotecnologia.
os registrados na história. Uma realidade Explora as lutas de indivíduos ou grupos,
alternativa em que a tecnologia mecâ- muitas vezes o produto da experimenta-
nica a vapor evoluiu até níveis impos- ção humana, em um cenário de governos
síveis. Temas recorrentes: máquina a totalitários e megacorporações que abusam
vapor, fabricações em madeira, cobre de biotecnologias como meio de controle
e bronze, amplo uso de engrenagens, social e de especulação. Tem como temas:
personagens com indumentárias vitoria- DNA, tecnologia da informação, biologia
nas. Um exemplo é o romance A lição sintética, indivíduos modificados, clínica,
de anatomia do temível dr. Louison, de laboratório ou hospital com prática ilegal,
Enéias Tavares (2014); manipulação genética, modificação bio-
● Cyberpunk (século XX – anos 1980 e lógica dúbia, lucro. Exemplo: A ilha do
1990) – apresenta cenário high-tech, doutor Moreau, de H. G. Wells (1896);
repleto de computadores fundidos a seres ● Exobiológica (meados do século XX) –
humanos. As pessoas passam a maior parte trata da possibilidade de vida em espaços
do tempo em espaço virtual. Envolve uso extraterrestres, levando em consideração
de alta tecnologia e situações de baixa desde a origem dessas formas de vida até
qualidade de vida. Tem como temas o as condições ambientais para sua existên-
cérebro humano, neuropróteses, compu- cia. Tem como temas extraterrestres com
tadores, empresas multinacionais, sistema variações da forma humanoide, outras for-
totalitário, inteligência artificial, hackers, mas de civilizações e organizações sociais,
internet, cibernética, música eletrônica, organismos microscópicos (vírus, príons)
ambientes de subcultura e vandalismo, trazidos para o universo macroscópico,
realidade virtual, tecnologias da informa- evolução da vida, atividades neurológi-
ção, ciberespaço, luzes de néon, cidades cas e formas de vida, relação dos seres
altamente tecnológicas, chuvosas e deca- com o meio ambiente, simetria e estrutura
dentes. Exemplos de filmes no gênero: corporal. Exemplo de conto no gênero:
Blade runner e Matrix (1982 e 1999); “Quando murgau A.M.A. murgau”, de
● New weird (século XX – década de Ivan Carlos Regina (1993).
1990) – mistura ficção científica, horror ● Esotérica (meados do século XX) –
e fantasia, não raro absorvendo elemen- narrativa que aproxima o conhecimento
tos também da ficção policial. Normal- mensurável (ciência) do conhecimento
mente é uma história urbana, que flerta paranormal (ocultismo). Temas no gênero
com o surrealismo. Temas: cultura de rua são crenças, superstições, misticismos etc.
moderna com mitologia, bizarrice, quebra Exemplo: livro 9225: ficção da nova era,
de padrões, mistérios. Podemos traçar sua de Regina Sylvia, edição independente
genealogia até H. P. Lovecraft; O alienado, lançada em 1989.
romance de Cirilo S. Lemos (2012); ● Ufológica (meados do século XX) – nar-
● Biopunk (última década do século XX) – rativa sobre o fenômeno dos discos voa-
subgênero do cyberpunk, se passa em um dores, normalmente avistados em condi-
futuro próximo com consequências não ções imprecisas, podendo ou não ocorrer

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dossiê literatura de entretenimento

uma abdução alienígena. Temas: objetos res com inteligência artificial avançada,
voadores não identificados (OVNIs), alie- máquinas, humanoides, programas de
nígenas. Exemplo: o romance O homem tecnologia avançados, redes neurais arti-
que viu o disco voador, de Rubens Tei- ficiais, dispositivos tecnológicos. Exem-
xeira Scavone (1958); plos: Eu, robô, de Isaac Asimov (1950);
● Universo paralelo (meados do século XX) no cinema, O exterminador do futuro, de
– sobre outro(s) universo(s), separado(s) James Cameron (1984);
do nosso, mas com pontos de contato, em ● Primeiro contato (século XX – 1927) –
certos casos, formando um multiverso. narrativa sobre o primeiro encontro entre
Temas: outra(s) dimensão(s), hiperespaço, humanos e alienígenas. Temas: raças avan-
atalho mais rápido que a luz, viagem çadas, viagens interestelares, encontros
interestelar, viagem no tempo, elemen- com raças predatórias, choque cultural,
tos fantásticos e surreais etc. Exemplo: extraterrestres, naves espaciais etc. Exem-
conto “O jardim dos caminhos que se plos: romance Guerra dos mundos, de
bifurcam” (1941), de Jorge Luis Borges H. G. Wells (1897); conto “A nuvem”, de
(trabalha com labirinto temporal); Ricardo Teixeira (1994);
● Vida extraterrestre (século XX) – nar- ● Retrofuturismo (século XX – no final
rativa sobre viagens a outros planetas e da década 70) – reúne os diversos punks
sobre os seres vivos, inteligentes ou não, retrôs derivados do cyberpunk e do
que vivem lá. Temas: extraterrestres, via- steampunk: stonepunk, clockpunk, deco-
gens interplanetárias, formas de vida que punk, dieselpunk, atompunk e solarpunk.
podem variar desde simples organismos Traz como temas histórias ambientadas
a humanos, vírus etc. Exemplos: contos num passado alternativo, como cidades
“Exercícios de silêncio”, de Finisia Fideli, suspensas em nuvens ou a milhares de
e “Zayn”, de Romy Schinzare. metros do chão, carros voadores, armas
● Imortalidade (século XX) – narrativa de raios, estradas intergalácticas, robôs
em que a biotecnologia investiga certos com funções domésticas etc. Exemplos:
meios de neutralizar o processo de enve- “Venezia em chamas”, conto de Ana
lhecimento, com o objetivo de aumentar Cristina Rodrigues; animação de Hanna
indefinidamente a expectativa de vida. Barbera Os Jetsons (1962-1963).
Temas: longevidade, imortalidade, progra- ● Afrofuturismo (século XX – 1990) – nar-
mas tecnológicos, implantes tecnológicos, rativa que combina ficção científica e
engenharia genética, backups automáticos cosmologia africana. Temas: arte e cul-
de consciência, chips, mind upload etc. tura africana. Vai além da literatura,
Exemplos: livro/série de TV Carbono alte- incluindo pintura e fotografia. Exem-
rado, de Richard Morgan (2002); “Paraíso plos: romance O caçador cibernético da
líquido”, conto de Luiz Bras (2010); Rua 13, romance de Fábio Kabral (2017);
● Inteligência artificial (século XX) – fala filme Pantera Negra (2018);
de softwares, robôs e androides tão ou ● Solarpunk (século XXI – 2008) –
mais inteligentes do que os seres huma- movimento estético derivado do cyber-
nos que os criaram. Temas: computado- punk, aborda questões climáticas (desmata-

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mento, desenvolvimento sustentável, entre avançadas e limpas. Exemplo: primeiro
outras) e dinâmicas sociais (desigualdade romance Amazofuturismo, de Rogério
social, acesso à água, entre outras). Com Pietro (2021);
uma visão de um futuro promissor, ima- ● Pós-apocalipse (século XXI) – narrativa
gina mundos com produção de energias ambientada em um mundo quase sem
inesgotáveis, ausência de danos para os ninguém, devastado por uma guerra ou
ecossistemas e outros. Exemplo: livro uma pandemia. Temas: guerra atômica,
Solarpunk: histórias ecológicas e fan- civilização em colapso, mudança climá-
tásticas em um mundo sustentável, de tica descontrolada, evento astronômico de
Gerson-Lodi Ribeiro, ed. (2013); impacto, esgotamento de recursos, revolta
● Amazofuturismo (século XXI – 2019) cibernética etc. Exemplo: conto “A espin-
– explora as possibilidades tecnológi- garda”, de André Carneiro (1966);
cas indígenas amazônicas, cria um novo ● Realidade paralela (século XXI) – subgê-
olhar sobre as antigas lendas de civili- nero que trata de outras realidades que
zações escondidas no coração da selva. coexistem e se comunicam com a nossa,
Temas: flora e fauna amazônicas, coca- podendo ser acessadas por meio de por-
res sagrados dos indígenas, pinturas cor- tais físicos ou mentais. Temas: portais do
porais com seus significados, respeito à tempo; outras vidas etc. Exemplo: romance
natureza; tecnologias imaginárias, novas, Matéria escura, de Jason Dessem (2016).

REFERÊNCIAS

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brasileira/.

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Domínio público/ Wikimedia Commons

Gótico: o medo e o pessimismo como


propulsores da criação literária
Oscar Nestarez
resumo abstract

O presente texto pretende esquadrinhar This text intends to examine the literary
a expressão literária do gótico a partir expression of Gothic from its origins in
de suas origens, no século XVIII, tendo the 18th century, taking into account
em vista duas perspectivas: o fenômeno two perspectives: the historical, cultural
histórico, cultural e artístico que, a and artistic phenomenon that, from that
partir daquele momento e ao longo do moment on and throughout the following
século seguinte, transbordou das letras century, overflowed from fiction to other
para outras áreas de conhecimento; areas; and Gothic as a specific poetics,
e o gótico como poética, a qual, após which, after the exhaustion of formulas
o esgotamento de fórmulas e temas and themes established throughout
estabelecidos ao longo do período the aforementioned period, began to
mencionado, passou a fornecer a moldura provide the ideal framework for narratives
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons

narrativa ideal para histórias ancoradas no anchored in fear and pessimism – emotions
medo e no pessimismo – emoções que that inevitably result from the human
inevitavelmente resultam da experiência experience in this world.
humana neste mundo.
Keywords: Gothic; gothic literature; fear;
Palavras-chave: gótico; literatura gótica; pessimism.
medo; pessimismo.
A
rrepios, tremores, cora- isso lhes custasse a vida. As tempestades,
ção acelerado: quando o fogo, as nevascas, os vulcões em erup-
sentimos medo, o corpo ção, os ataques de animais: um território
não nos deixa mentir. imenso, então intocado pela ciência, ins-
Por mais que tente- pirou as criações mais delirantes. Lendas
mos dissimular, algum e mitos, ao redor da fogueira, eram trans-
comando primitivo é mitidos pelos mais idosos das tribos aos
disparado dentro de nós, ouvidos dos mais jovens. A esse respeito,
e toda a racionalidade é conhecida a frase de um dos princi-
acumulada ao longo de pais nomes da ficção literária de horror, o
séculos é subitamente estadunidense Howard Phillips Lovecraft:
aniquilada pela certeza “A mais forte e mais antiga emoção da
de que nossa vida está humanidade é o medo, e a mais forte e
em perigo. Trata-se do alerta primordial, mais antiga forma de medo é o medo do
item fundamental de nosso mecanismo de desconhecido”. A afirmação está no início
sobrevivência. Devido a isso, a humanidade de O horror sobrenatural na literatura,
assusta a si mesma desde o momento em
que estabeleceu formas rudimentares de
comunicação. Abandonados à própria sorte
em um mundo hostil, nossos descenden- OSCAR NESTAREZ é doutor em Estudos
tes primatas já eram inquietos e curiosos. Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras
Queriam compreender e explicar todos os e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e ficcionista,
fenômenos que os cercavam, ainda que autor de, entre outros, Bile negra (Avec Editora).

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dossiê literatura de entretenimento

longo ensaio publicado pela primeira vez Cavaleiro Verde (século XIV), de autoria
em 1927 e até hoje bastante referenciado desconhecida, e A morte de Arthur, de
em estudos dedicados ao gênero. Thomas Malory (século XV). Segundo
Os séculos se passaram, o homem Delumeau (2009, p. 17):
foi compreendendo seus arredores, mas
o fascínio exercido por narrativas sobre- “Da Antiguidade até data recente, mas
naturais ou assustadoras, ainda que em com ênfase no tempo da Renascença, o
suas formas mais rudimentares, não dimi- discurso literário apoiado pela iconogra-
nuiu. Pelo contrário: esses relatos passa- fia (retratos em pé, estátuas equestres,
ram a ocupar as paredes de cavernas, os gestos e drapeados gloriosos) exaltou a
manuscritos, os pergaminhos e, enfim, as valentia – individual – dos heróis que
páginas de epopeias e documentos reli- governaram a sociedade. Era necessário
giosos da Antiguidade. Prova disso é o que fossem assim, ou ao menos apre-
Antigo Testamento (meados do século I) sentados sob essa perspectiva, a fim de
da Bíblia. Trata-se de uma leitura que, justificar aos seus próprios olhos e aos
retirada do contexto religioso, apresenta do povo o poder de que estavam revesti-
inúmeros monstros (na forma de quime- dos. Inversamente, o medo era o quinhão
ras como Beemote e Leviatã) e eventos vergonhoso – e comum – e a razão da
tão violentos quanto sangrentos. Outros sujeição dos plebeus”.
documentos religiosos da Antiguidade,
como o Avesta (a compilação de textos Com o passar do tempo, e o reforço de
sagrados do zoroastrismo, anos 3 a 7 d. acontecimentos históricos como a Revo-
C.) e épicos de cavalaria (séculos X a lução Francesa, “a preocupação com a
XV, como as sagas arturianas e de Beo- verdade psicológica prevaleceu” (Delu-
wulf), também constituem exemplos da meau, 2009, p. 18). De acordo com Delu-
incorporação de excertos que despertam meau, a literatura, concomitantemente à
alguma reação negativa diante de perigos historiografia, foi restituindo ao medo
reais ou imaginários. o seu verdadeiro lugar. Em seu estudo,
A despeito dessa incorporação, durante o historiador menciona, como exemplos
centenas de anos se observou o que Jean dessa remissão, os contos de Guy de
Delumeau (2009, p. 11) denominou “o Maupassant, La débâcle, de Émile Zola,
silêncio sobre o medo”. Na Introdução de e Diálogos das carmelitas, do também
História do medo no Ocidente, o historia- francês Georges Bernanos (Delumeau,
dor francês lembra que, entre os séculos 2009, p. 18). Como bem sintetiza Delu-
XIII e XVIII, os referenciais heroicos meau (2009, p. 23), o medo é “um com-
ganham vulto na sociedade ocidental, ponente maior da experiência humana, a
expressando valores prosaicos; com isso, despeito de todos os esforços para superá-
as formas literárias de então reforçam “a -lo”. Assim sendo, é também um compo-
exaltação sem nuança da audácia” (Delu- nente das expressões artísticas nascidas
meau, 2009, p. 14), característica decerto dessa experiência. Ainda que abafado – ou
saliente em obras como Sir Gawain e o silenciado – por determinadas conjunturas

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históricas e sociais, o medo jamais deixou transforma, desencadeando novas escolas
de comparecer às narrativas concebidas de pensamento sobre o tema.
pela mente humana. A partir do século XVII, à medida que
Por outro lado, cabe salientar que, o Iluminismo se estabelece como cor-
durante séculos, as passagens aterrado- rente racionalista e filosófica na Europa
ras inseridas na ficção tinham alguma Ocidental, as práticas e as instituições
finalidade específica: catequizar, propagar do continente passam por uma profunda
a fé, alçar figuras históricas à categoria reformulação. A razão torna-se o princi-
de mitos etc. É imprescindível recordar, pal instrumento de reflexão, relegando ao
da mesma forma, que, a partir da Idade segundo plano as verdades absolutas que
Média, a humanidade ocidental encon- alicerçavam as crenças do homem medie-
trava-se enredada pela hesitação entre val. Pressionada também pela Revolução
a realidade e o sobrenatural; em outras Industrial, a cultura humana orienta-se na
palavras, parecia avançar no território direção dos princípios de racionalidade, de
do fantástico, conforme delineado por controle e de planejamento. Nas palavras
Tzvetan Todorov na Introdução à litera- de Alcebíades Diniz (2018, p. 214), “tal
tura fantástica. Contudo, de acordo com pressão, exercida de forma progressiva,
Samuel Sadaune, a noção de “fantástico”, levou a arte a uma busca por alívio, a
na Idade Média, é bastante diferente da uma reação diante desse recém-constituído
concepção atual. “O termo não existe na império da factualidade, da causalidade”.
época: o homem medieval vive em um
universo no qual há ‘maravilhamentos’:
e isto vai do fenômeno inexplicável ao
DO SUBLIME AO GÓTICO
milagre” (Sadaune, 2012, p. 7, tradução
nossa). Esse funcionamento é governado É nesse contexto reativo que ganha
por uma cosmovisão segundo a qual relevo o conceito de sublime, conforme
estabelecido pelos filósofos Edmund Burke
“[...] o universo é a criação de Deus, o e Immanuel Kant. O segundo, na Crítica
qual colocou um fim ao caos em detri- da faculdade do juízo, assim se refere a
mento de um mundo organizado. Mas, fenômenos naturais que despertam temor:
mesmo que Deus tenha estabelecido a “A visão de tais eventos [raios e trovões,
ordem, as forças das trevas tentavam (e, vulcões, tornados, as corredeiras de um
às vezes, conseguiam) instalar a desordem; poderoso rio] torna-se mais atrativa quanto
e o próprio Deus se manifesta para per- mais assustadora for, uma vez que esteja-
turbar, de maneira mais ou menos espe- mos em segurança” (Kant, 2012, p. 147).
tacular, mais ou menos longa, a ordem Burke, por sua vez, delineia o termo da
que ele criou” (Sadaune, 2012, p. 7, tra- seguinte forma:
dução nossa).
“Tudo que é capaz de despertar as ideias
Ocorre que, com o surgimento das teo- de dor e perigo, ou seja, tudo o que é de
rias iluministas, tal visão de mundo se algum modo terrível, ou que se relaciona

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dossiê literatura de entretenimento

a objetos terríveis, ou atua de maneira assentada na proporção e na harmonia,


análoga ao terror, é uma fonte do sublime, espelhamentos da verdade e da razão.
isto é, produz a emoção mais forte que Mas verdade e razão encontram pouco
a mente é capaz de sentir. [...] Quando espaço na narrativa de Walpole. A “his-
o perigo ou a dor perturbam demasiada- tória gótica” é marcada pela ambiência
mente, não podem oferecer deleite algum, medieval e por castelos assombrados, cala-
e são simplesmente terríveis; contudo, a bouços gotejantes, esqueletos que voltam
certas distâncias e com ligeiras modifi- à vida, aparições espectrais, entre outros
cações, podem ser e são deleitosos, como elementos narrativos. Assim, O castelo
experimentamos todos os dias” (Burke, de Otranto figura como um verdadeiro
2001, p. 29, tradução nossa). inventário da cenografia que, ainda hoje, é
fartamente utilizada na construção de uma
Em certa medida, Kant e Burke teo- história de horror. A partir de então, nada
rizam sobre a apreciação abrigada, pro- foi como antes: mais e mais romancistas
tegida de ameaças – uma conceituação buscaram refúgio no castelo medieval do
que, como se verificará, será fundamental gótico, como os também britânicos Char-
para o estabelecimento de vertentes como les Maturin, William Beckford, Matthew
o gótico e o próprio horror a partir da Gregory Lewis e Ann Radcliffe, entre
concepção de efeitos estéticos. inúmeros outros. As reverberações desta
No campo literário, tal conjuntura vai “tentativa de fundir dois tipos de romance,
fomentar o que Alcebíades Diniz (2018, o antigo e o moderno” (Walpole, 2019, p.
p. 214) chama de “uma ficção baseada no 19) espalharam-se rapidamente pela Europa
espanto, notadamente aquele despertado continental e causaram impacto específico
por uma outra era, mais brutal e primi- na Alemanha, onde o gótico britânico deu
tiva, na qual a racionalidade com frequ- origem a inúmeros subgêneros, como o
ência cedia espaço ao terror sagrado”. schauerroman (romance de calafrios), com
Trata-se da ficção gótica, que surge em intensa produção de autores locais.
1764 com a publicação de O castelo de No The Cambridge companion to
Otranto, relato supostamente medieval gothic fiction (2012), o pesquisador esta-
cuja autoria foi assumida pelo inglês dunidense Jerrold Hogle assim apresenta
Horace Walpole na ocasião da segunda esse período inicial das narrativas góticas:
edição do livro, que recebeu o subtítulo
Uma história gótica. O termo “gótico” “Trata-se de um fenômeno totalmente
advém das antigas tribos dos godos, sendo pós-medieval, e mesmo pós-renascen-
utilizado como sinônimo de “bárbaro” e tista. Apesar de muitas formas literárias
relacionado ao período medieval. Já a já existentes combinarem suas represen-
expressão “estilo gótico”, cunhada pelo tações iniciais – da prosa e da poesia
pintor e arquiteto italiano Giorgio Vasari românicas até as tragédias e comédias
no século XVI, carrega forte sentido pejo- de Shakespeare –, a primeira publica-
rativo, já que era utilizada para diferen- ção a intitular-se Uma história gótica
ciar a arquitetura alemã da arte clássica, foi um falso relato medieval lançado

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muito tempo depois da Idade Média: O poética gótica, que, de acordo com Júlio
castelo de Otranto, de Horace Walpole, França (2017), configura “um modo
impresso sob pseudônimo na Inglaterra ficcional de concepção e expressão
em 1764 e reimpresso em 1765, em uma dos medos e ansiedades da experiência
segunda edição com um novo prefácio moderna cujas contínuas reelaborações
que defendia abertamente uma ‘mistura estendem-se, de maneira pujante, até
de dois tipos de romance, o antigo e o nossos dias”. Para França, tal modo se
moderno’, o primeiro ‘todo imaginação e alicerça em três elementos principais,
improbabilidade’, e o segundo presidido comumente chamados de “goticizantes”:
pelas ‘regras da probabilidade’ conectadas
com ‘a vida comum’” (Hogle, 2002, p. 1). “(i) o locus horribilis: a literatura gótica
caracteriza-se por ser ambientada em espa-
Já o britânico Fred Botting delineia o ços narrativos opressivos, que afetam,
gótico em termos mais amplos e estruturais: quando não determinam, o caráter e as
ações das personagens que lá vivem. [...]
“Gótico significa uma escrita do excesso. (ii) a presença fantasmagórica do passado:
Ele aparece na terrível obscuridade que sendo um fenômeno moderno, a literatura
assombrou a racionalidade e a moralidade gótica carrega em si as apreensões geradas
do século XVIII. Ele lança sombras nos pelas mudanças ocorridas nos modos de
êxtases desesperados do idealismo e do percepção do tempo a partir do século
individualismo românticos, bem como nas XVIII. A aceleração do ritmo de vida e a
inquietantes dualidades do realismo e da urgência de se pensar um futuro em cons-
decadência vitorianos. As atmosferas góti- tante transformação promoveram a ideia
cas – sombrias e misteriosas – assinalaram de rompimento da continuidade entre os
repetidamente o perturbador retorno de tempos históricos. Os eventos do passado
passados sobre presentes e evocaram emo- não mais auxiliam na compreensão do
ções de terror e riso. [...] As figurações que está por vir: tornam-se estranhos e
góticas continuam a lançar sombras no potencialmente aterrorizantes, retornando,
progresso da modernidade com contra- de modo fantasmagórico, para afetar as
-narrativas que revelam o outro lado de ações do presente. [...]
valores iluministas e humanistas. Gótico (iii) a personagem monstruosa: na narra-
condensa as muitas ameaças percebidas a tiva gótica, vilões e anti-heróis são costu-
esses valores, ameaças associadas a forças meiramente caracterizados como monstru-
sobrenaturais e naturais, a excessos ima- osidades. As causas atribuídas à existência
ginativos e delírios, à maldade religiosa do monstro são variáveis – psicopatolo-
e humana, à transgressão social, à desin- gias, diferenças culturais, determinantes
tegração mental e à corrupção espiritual” sociais, a hybris do homem de ciência,
(Botting, 1996, p. 1, tradução nossa). entre outras” (França, 2017, pp. 117-8).

A conceituação de Botting mostra- Note-se que a concepção acima trans-


-se abrangente. Ele chega a propor uma cende o fenômeno cultural e social cir-

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cunscrito a determinados contextos. A minista. A propósito, Alcebíades Diniz


partir desses índices, pode-se determi- salienta que, por meio de uma ficção que
nar a manifestação do gótico em obras já se servia do sublime para oferecer satis-
muito distantes – tanto no tempo quanto fação aos leitores, os romancistas mencio-
no espaço – daquelas que inauguraram nados anteriormente propunham o resgate
e consolidaram a vertente, ao passo que de um “efeito do passado medieval, de
certos estudos se restringem apenas a seus terrores e fúria” (Diniz, 2018, p.
esses períodos. Trata-se de duas formas 215, grifo nosso). Olga Pampa Arán, em
de percepção das narrativas góticas, as consonância com Diniz e mais orientada
quais, convém assinalar, a presente pes- para os elementos narrativos da ficção
quisa pretende abarcar, ainda que priorize gótica, assim conceitua:
a segunda, de natureza historiográfica.
Assim sendo, aqui se adota o entendi- “Enigma e suspense são as engrenagens
mento de que gótico designa uma expres- que sustentam os universos narrativos do
são estética vinculada a um período e a gótico e que governam todos os recursos
localidades específicos, com aspectos e que costuram as incontáveis peripécias
elementos bastante definidos. Por outro da história, os motivos, o espaço-tempo
lado, os chamados elementos narrativos representado e os personagens, por meio
“goticizantes” servirão de índices para o de um narrador onisciente que sabe dosar
reconhecimento dessa expressão em textos a informação para criar o mistério e o
escritos séculos depois de seu surgimento. efeito psicológico de medo ou terror.
Por ora, cabe destacar o ponto de con- A armadilha e a aparência governam a
cordância entre Hogle e Botting: o fato representação: nada é o que parece, tudo
de que as narrativas góticas despontam oculta um segredo, o mal fica mais perto
no período “pós-medieval, e mesmo pós- a cada passo, o invisível se torna visível
-renascentista”, “na terrível obscuridade e o inanimado reivindica a vida” (Arán,
que assombrou a racionalidade e a mora- 2020, tradução nossa).
lidade do século XVIII”. Para o crítico
italiano Mario Praz (1954, p. 26), trata- Arán menciona as “engrenagens”, as
-se de um período no qual a “beleza do “peripécias” e a “representação”, ou seja,
horrendo tornou-se fonte não mais de destaca a artificialidade das narrativas
conceitos, como no século XVII, mas góticas – o que Diniz (2018, p. 215)
de sensações”; tempos em que a beleza chama de “teatralidade que sobrevivia
da Medusa tocou e moldou um novo tipo ao sabor de convenções”. De fato, na
de sensibilidade, para a qual o horror se ficção gótica predominam truques cêni-
tornou fonte de prazer e, mais adiante, cos, como alçapões, passagens secretas e
no Romantismo e no Decadentismo, se fantasmagorias diversas; grassam, tam-
associou à própria beleza. bém, personagens de natureza comumente
Assiste-se a um fenômeno de contornos estanque, sempre heroicas ou sempre cru-
bastante específicos que extrai sua força éis. Nessa conjugação, a ameaça de uma
do entrechoque com a racionalidade ilu- outra possibilidade, de caráter sobrena-

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tural e de fato assustadora, ocupava o para todos os problemas humanos (Ste-
panejamento de fundo. vens, 2000, p. 9). Contudo, o gótico sem-
pre se apresentou também como um terri-
OS EXCESSOS E AS tório de ambivalências. Enquanto alguns
escritores como Horace Walpole explora-
AUSÊNCIAS DO GÓTICO
vam as lacunas da racionalidade, outros,
como Ann Radcliffe, faziam apologia a
Ainda que, do ponto de vista da his- ela para curar os males do excesso de
toriografia literária, as narrativas góticas sentimento – ainda que explorassem, à
fossem vistas como um fenômeno restrito exaustão, supostos eventos sobrenaturais e
à Europa, especialmente ao Reino Unido arroubos passionais. As narrativas góticas
dos séculos XVIII e XIX, é fácil obser- serviram, portanto, como formas literárias
var que a amplitude, a permanência e capazes de figurar tanto os temores do
a pujança cultural da maquinaria gótica excesso, como postulou Botting, quanto
estendem-se até a contemporaneidade, os da ausência do conhecimento.
nas mais diversas mídias artísticas de As temáticas relacionadas aos bônus e
vários lugares. Detendo-nos agora mais aos ônus de conhecimento têm uma longa
especificamente nesta linha do tempo, história na literatura. Gilgamesh, na epo-
cabe constar que a história do gótico se peia suméria que leva seu nome, vagava
confunde, por meio de elementos gotici- pelo mundo em busca do conhecimento
zantes, com a própria história da narrativa da vida eterna. Já Hesíodo canta como
ficcional moderna: do roman setecen- Prometeu, ao prover a humanidade com a
tista, passando pelos romances e contos ferramenta do fogo e encurtar a distância
românticos, pela literatura decadente fin- entre deuses e humanos, libera a ira de
-de-siècle, pelo Modernismo norte-ame- Zeus sobre nossa espécie. Na mitologia
ricano e pelas chamadas literaturas de judaico-cristã, por sua vez, a perdição de
entretenimento do século XX, até chegar Adão e Eva está relacionada à interdita
ao cinema e às narrativas intermidiáticas árvore do conhecimento. A tradição pros-
do mundo contemporâneo. Dessa forma, segue no mundo moderno, com a lenda
mantendo-nos sob a perspectiva literá- de Dr. Fausto – disposto a oferecer sua
ria, compreender o desenvolvimento das alma a Mefistófeles em troca de conheci-
principais formas narrativas ficcionais mento –, até chegar à sua figuração defi-
modernas – o romance e o conto – tam- nitiva com Frankenstein (1818), de Mary
bém significa estabelecer ligações com Shelley, que consolidaria o gótico como
suas raízes góticas e seus desdobramentos. gênero narrativo moderno por excelência,
No campo diegético, ao fomentar o ao tematizar a hybris do cientista e os
medo, o assombro e o maravilhamento, a produtos monstruosos da razão.
literatura gótica, em suas origens, inves- Para França, essa relação ambígua e
tiu em sentimentos e em sensibilidades tensa entre o ser humano moderno e sua
rebaixados pelo ideário iluminista, que capacidade de conhecer e transformar a
vislumbrava na racionalidade a solução realidade, presente no gótico, tem como

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efeito mais perceptível uma profunda desi- literatura gótica, porém, está justamente
lusão com os rumos da humanidade. A em sua violação programática dos parâ-
tensão entre os riscos da ausência e os do metros do realismo tradicional, ao apre-
excesso do conhecimento tomou forma de sentar eventos, enredos e personagens que
uma linguagem artística repleta de con- estendem ou desafiam o conhecimento
venções estilísticas e temáticas que não de mundo do leitor. Ou seja, ela seria
têm por objetivo produzir representações antirrealismo, e não antirrealista.
realistas do mundo. As narrativas góticas Nesse sentido, parte das obras góticas
caracterizam-se, assim, por seu intenso e pode ser descrita como unnatural narra-
consciente caráter ficcional – a verossimi- tives – narrativas que constroem mundos
lhança é produzida não por meio do res- ficcionais “antinaturais”, resultantes de
peito às leis da probabilidade, mas através temporalidades reversas, eventos impos-
de técnicas narrativas complexas, em que síveis do ponto de vista lógico, persona-
se destacam, por exemplo, os mecanismos gens com mentalidades não tipicamente
de mútua corroboração de narrativas em humanas ou atos de narração não naturais
moldura (Punter, 1996, p. 137), capazes (Alber; Nielsen; Richardson, 2010). Tomar
tanto de legitimar os eventos metaem- uma narrativa como antinatural permite
píricos no plano da diegese quanto de entender como ela se desvia da moldura
promover o embate dialógico entre visões do mundo real e, assim, torna-se capaz
de mundo discordantes. Embora grandes de trazer à tona e criticar aquilo que o
questões políticas, sociais e culturais se discurso realista muitas vezes reprime,
manifestem nos enredos góticos, isso se como a expressão da tensão existente entre
dá por meio de figurações, recursos sim- as normas sociais e os medos e desejos
bólicos e outros processos convencionais inconscientes (Wood, 2002).
de criação artística, o que leva o gótico a O gótico é, assim, a literatura em sua
ser constantemente confundido com uma máxima potência. Assume-se como pura
forma artística antirrealista. ficção, recusando a condição de sociolo-
Mas investir contra as convenções do gia não quantitativa que certo realismo
realismo não significa, contudo, ser avesso literário, tão disseminado, insiste em
ao real. Os principais modelos de descri- produzir. Dessa forma, a ficção gótica
ção e definição de “narrativa”, por serem dá continuidade a uma prática primor-
muito influenciados por teorias miméticas, dial do ser humano: usar a faculdade da
tomam como paradigmas os textos realis- imaginação para produzir narrativas que
tas e naturalizam a crença de que todo e nos ajudem a lidar com nosso assombro
qualquer aspecto de uma narrativa pode diante do mundo que nos cerca.
e deve ser explicado com base em nossos Ao romper com as convenções rea-
parâmetros cognitivos de conhecimento listas e investir no desconhecido e nas
do mundo real. Consequentemente, tudo facetas sombrias da mente humana, a
aquilo que não segue esse modelo implí- literatura gótica tornou-se uma tradição
cito corre o risco de ser entendido como artística que codificou modos de figurar
alienado ou escapista. Muito da força da os medos e de expressar os interditos de

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uma sociedade – inclusive os tabus que o casos; francamente pessimista, em outros –
decoro do realismo burguês nem sempre que se concretizou em uma forma literária
podia abordar. Assim, longe de ser uma caracterizada por uma série de convenções
fuga da realidade, o gótico – com suas narrativas. As principais entre elas, como
convenções, seus “maneirismos” e seus já mencionamos, são o locus horribilis, a
prazeres estéticos negativos (em especial presença fantasmagórica do passado e a
o sublime terrível da tradição burkiana figuração de monstruosidades. Servindo-nos
e o grotesco) – é o resultado de uma de tal arcabouço teórico e de tais estru-
visão crítica de mundo eivada por um turantes, podemos reconhecer, 260 anos
sentimento avassalador de degradação e depois de sua eclosão, tanto a abrangência
de ruína civilizacional. quanto a permanência da literatura gótica,
Em outras palavras, o que se chama de esta moldura tão apropriada para acomodar
literatura gótica é, pois, o produto ficcional a assustadora experiência de vivermos em
de uma visão sombria – cética, em alguns um mundo que não cessa de nos assombrar.

REFERÊNCIAS

ALBER, J.; NIELSEN, H. S.; RICHARDSON, B. (orgs.). A poetics of unnatural narratives. Ohio,
Ohio State University Press, 2010.
ARÁN, P. “Gótico: elementos narrativos”, in C. Reis et al. (eds.). Dicionário digital do insólito
ficcional (e-DDIF). Rio de Janeiro, Dialogarts, 2020.
BOTTING, F. Gothic. Londres, Routledge, 1996.
BURKE, E. Indagación filosófica sobre el origen de nuestras ideas acerca de lo sublime y de lo
bello. Trad. Menene Gras Balaguer. Madri, Editorial Tecnos, 2001.
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.
DINIZ, A. “As estranhezas insuspeitas e inexpugnáveis”, in Contos de assombro. Trad.
Maria Aparecida Barbosa et al. São Paulo, Carambaia, 2018.
FRANÇA, J. “O sequestro do gótico no Brasil”, in J. França; L. Colucci (eds.). As nuances do
gótico: do Setecentos à atualidade. Rio de Janeiro, Bonecker, 2017, pp. 111-24.

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dossiê literatura de entretenimento

HOGLE, J. The Cambridge companion to gothic fiction. Cambridge, Cambridge University


Press, 2012.
KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e António Marques. São Paulo,
Forense Universitária, 2012.
PRAZ, M. The romantic agony. Trad. Angus Davidson. Londres, Oxford University Press, 1954.
SADAUNE, S. Le fantastique au Moyen Âge. Rennes, Éditions Ouest France, 2012.
STEVENS, D. The gothic tradition. Cambridge, Cambridge University Press, 2000.
WALPOLE, H. O castelo de Otranto. Trad. Oscar Nestarez. Barueri, Novo Século, 2019.
WOOD, R. “The American nightmare: horror in the 70’s”, in M. Jancovich (org.). Horror: the
film reader. Londres, Routledge, 2002, pp. 25-32.

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H. P. Lovecraft/Domínio público/ Wikimedia Commons

Sangue, morte, medo: a força e permanência


do horror na literatura e nas artes
Caio Alexandre Bezarias
resumo abstract

O artigo intenta esmiuçar a origem, The article intends to scrutinize the origin,
características, principais divisões ou distinctive characteristics, main divisions
subgêneros e a pertinência do horror or subgenres and the relevance of horror
nas artes, principalmente na literatura. in the arts, mainly in literature. It intends,
Ainda busca distinguir horror das too, to distinguish horror from the concepts
noções de medo e terror, uma vez que of fear and terror, since the three ideas are
frequentemente os três conceitos são frequently and almost universally confused
confundidos entre si, portanto, essa é uma with each other, so this is a difficult and
demarcação difícil e até mesmo polêmica. even controversial delimitation. To this
Para tanto, conceitos de psicanálise, teoria end, concepts from psychoanalysis,
literária, mitologia, história e até biologia literary theory, mythology, history and
são mobilizados, para assim desvendar a even biology are mobilized and related, in
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons

imensa penetração e o intenso fascínio order to reveal the immense penetration


que este gênero fantástico exerce no and intense fascination that this fantastic
imaginário desde épocas muito recuadas, genre exercises in the imagination of so
e também buscar compreender sua many cultures since ancient times, and
posição na cultura da modernidade also seeks to understand its position in the
desde a sua afirmação nesta, no segundo culture of modernity since its affirmation,
quartel do século XVIII. in the second quarter of the 18th century.

Palavras-chave: horror; medo; terror; Keywords: horror; fear; terror; literature;


literatura; mitologia. mythology.
Q
ue conste dos autos: este Assim, este ensaio repassa alguns dos
escriba/pesquisador e autor principais traços estéticos, estruturais e
de literatura fantástica também históricos do horror, além das
sofreu e sofre dificulda- características particulares de alguns de
des, como muitos de seus seus principais subgêneros.
pares – alguns de pensa- A distinção entre terror e horror é
mento muito mais refi- um conceito importante, que deve ser
nado e agudo que o dele apreciado e discutido, para dar início
próprio –, para distinguir à empreitada. Segundo Ann Radcliffe,
“terror” de “horror” com a diferença entre eles consiste em que
segurança e clareza, e este “terror e horror são tão opostos um ao
texto é não mais que uma outro, que o primeiro expande a alma e
tentativa, falha e tênue, desperta as capacidades para um nível
de domar essa criatura selvagem que é a de vida mais elevado; o outro contrai,
criação literária e reduzi-la a categorias congela, e quase as aniquila” (Radcliffe,
acabadas, que são limitadas a despeito de 2019, p. 263). Trata-se de uma sensação
sua imensa utilidade.
Os grandes autores da literatura fan-
tástica, cujo propósito e efeito é provo-
car medo (ou seria terror, ou horror, ou CAIO ALEXANDRE BEZARIAS é mestre em
ambos, ou os três?) no leitor, tampouco Literatura de Língua Inglesa pela Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
parecem muito mais seguros ao tentar da USP e ficcionista, autor de, entre outros,
enumerar os traços distintivos do horror. Shimandur – a cidade da chuva (Editora Devir).

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dossiê literatura de entretenimento

causada por algo, alguém ou algum evento XVIII, erodiu sem cessar (Lukács, 2000,
ainda não ocorrido ou não encontrado; pp. 23-36). O surgimento e consolidação
a iminência desse contato ou encontro dessa diferença conceitual entre terror e
permeia a narrativa, domina a mente das horror podem ser entendidos como sinal
personagens; portanto, é a possibilidade da consolidação do pensamento racional-
de algo assustador ou horrível acontecer -iluminista, da vitória da ciência sobre as
ou surgir que causa o terror. O terror, por- outras formas de pensamento humano, as
tanto, seria muito próximo e até se con- outras formas que a humanidade dispõe
fundiria com o medo, sentimento primal para compreender e explicar o mundo –
da humanidade. O horror, por sua vez, é incluindo o pensamento mítico/religioso,
uma reação, um choque indelével, que não cujas narrativas e imagens mais prime-
pode ser esquecido; o terror é o estado vas, cumpre reiterar, constituem a base,
de medo ante a possibilidade do horror. são as primeiras narrativas de horror que
Essa definição precisa, certeira e didá- se conhece. E como é bem sabido pelas
tica, porém, é, felizmente para os lei- ciências humanas e seus praticantes, a
tores e apreciadores da literatura mais vitória do pensamento científico levou ao
desenfreada, negada e até implodida pelas desencantamento do mundo e sua apli-
obras mais poderosas e que permanece- cação cada vez mais extensiva a todos
ram no decorrer da literatura fantástica, os aspectos da vida social, econômica,
desde sua gênese, que pode ser rastreada política, a uma fragmentação da percep-
nos mitos cosmogônicos das mais antigas ção e entendimento desse mundo. Assim,
civilizações, inclusive por ser difícil e até essa divisão teórica entre terror e horror
mesmo artificial assinalar exatamente em poderia ser mais um produto dessa atomi-
que ponto de uma narrativa fantástica o zação do pensamento e ao mesmo tempo
terror termina e dá lugar ao horror; a dita uma maneira torcida de tentar resgatá-la
confusão entre os dois termos não é tão de algum modo, mas pela chave de uma
problemática ou errônea quanto aparenta, unidade do medo, mostrando a experiência
pelo contrário, se lida de determinada humana em um mundo enorme, horrível
maneira, pode enriquecer a experiência e incompreensível como algo pavoroso.
estética de ler essas obras. Pois parece que as obras mais influentes
Nas mais antigas narrativas que che- e duradouras (ou, se preferirmos o clichê,
garam até nós – cosmogonias de povos “atemporais”) do horror são justamente
pré-históricos e das primeiras civilizações as que superam e ignoram essas classifi-
–, aquilo que o pensamento moderno con- cações limitadoras e desafiam o público
ceitua como medo, terror e horror está e os estudiosos a serem consideradas em
imbricado. Como afirma Georg Lukács, mais de uma classificação, que, repetimos,
no primeiro capítulo de sua Teoria do é instrumental e enviesada.
romance, neste tempo arcaico as esferas Sejamos um pouco tradicionalistas,
estavam conectadas, tudo era uno, com- um pouco materialistas e, dentro dessa
pleto, relacionado com tudo, unidade corrente de pensamento, ousamos dizer,
que a modernidade, a partir do século até mesmo um pouco biologistas: é mais

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que lugar-comum afirmar que os medos Como a distinção terror/horror, já esta-
ancestrais, atávicos, que habitam o ser belecida para a literatura moderna, poderia
humano são os mais poderosos e eternos, se aplicar à remota Antiguidade, até aos
que sua origem remonta à própria origem tempos pré-históricos? Façamos o sedutor
da espécie e que as condições que mol- exercício de imaginação a que tantos cien-
daram seus corpos e mentes são a fonte tistas, historiadores, arqueólogos, antropó-
desses medos atemporais – e, portanto, logos e os absortos e fascinados leitores
do terror e do horror que dela brotam. Ou, de suas obras de divulgação se deixaram
em termos mais diretos, que causam ojeriza dominar: imaginemos a espécie humana na
em alguns intelectuais de humanas: são dita aurora dos tempos (sim, termo muito
atemporais, quiçá eternos, parte da “natu- clichê), nada mais que um primata que há
reza humana”, que não é eterna ou per- pouco desenvolvera linguagem simbólica
manente, cumpre destacar! e assim auferira alguma vantagem perante
Uma leitura minimamente atenta e absorta a madrasta e indiferente natureza. Como
das mitologias mais arcaicas, dos mitos cos- esse ser ainda bastante indefeso perante
mogônicos das culturas fundantes da civi- as forças naturais e agora dotado do dom
lização, atesta essas afirmações e também e maldição da linguagem lida com seus
outra afirmação, repetida tanto quanto as medos, que, como já dito, estão inscritos
demais: que a literatura fantástica, o ter- em seu ser mais profundo, são atávicos,
ror e o horror têm suas origens nas nar- biológicos? Ou: como e em que se inse-
rativas míticas. Mas essa relação/passagem rem terror e horror nesse momento inicial
entre terror e horror repele classificações do homem? Porventura essa distinção, uma
estanques e rígidas; nas artes tudo influen- construção teórica, é um resgate/apreensão
cia a escola posterior e é influenciado pela de algum evento ocorrido na formação da
escola anterior, numa mistura de gêneros, mente humana naquele momento recuado
formas, temas, uma geração contínua de da história da espécie? Ou essa distinção
novos seres que englobam os anteriores e aponta para algo mais profundo e antigo
prenunciam os posteriores, que desdenham que discussões de academias literárias? Por
das limitações corporais que as pretensões que na melhor literatura fantástica essa dife-
da crítica e da historiografia literária, para rença não se deixa perceber com facilidade?
horror desta, gerando uma mistura digna O conceito de medo, segundo a psi-
dos monstros gigantescos e fascinantes do canálise, oferece algumas iluminações
horror. Um exemplo? – Frankenstein, que é para percorrer a escuridão dessas nar-
ficção científica (para muitos, incluindo este rativas sombrias. Luiz Hanns, no Dicio-
pesquisador, o texto fundador deste gênero), nário comentado do alemão de Freud,
horror corporal e também possui terror e, destaca insistentemente a proximidade
claro, horror. Como, então, classificar a cria- de Angst com o medo: “Angst significa
ção máxima de Mary Shelley? Como litera- medo. [...] Refere-se tanto a ameaças
tura fantástica, em que tudo é perceptível e específicas (Angst vor, medo de) como
poderoso ao leitor atento e nada se permite inespecíficas (Angst, medo). Angst pode
limitar com facilidade. referir-se a objetos específicos ou inespe-

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dossiê literatura de entretenimento

cíficos. [...] A palavra Angst é empregada maior e incompreensível, do qual nossos


em composição com termos como ‘ata- sentidos e nossa ciência captam apenas
que de medo’, ‘irrupção de medo’ etc.” uma pequena parte?
(Hanns, 1996, pp. 62-3); descreve reações O que é exatamente, então, o horror?
que se exteriorizam fortemente (Freud, A consumação do terror (medo)? Um está-
2016, pp. 6-7). gio posterior deste? A descoberta que o
Os afetos seriam os equivalentes filo- homem na verdade não passa de uma cria-
genéticos (ou seja, vinculados à história tura mortal feita da mesma carne dos
da espécie) dos ataques histéricos dos outros animais e que seu fim é inevitável
indivíduos. No caso do medo, existe e banal como o destes?
uma necessidade biológica vinculada ao Freud, no seu clássico texto Inibição,
imperativo de reação em uma situação sintoma e medo (2016), afirma que o medo
de perigo (Freud, 2016, p. 8); o horror, tem suas raízes na experiência da sepa-
portanto, teria uma base biológica imemo- ração física da criança da mãe, primeiro
rial profundamente arraigada na estrutura objeto de seu amor, e que esse medo,
da mente humana. Ainda segundo Freud, continuamente revivido a cada vez que a
o medo, como sentimento, sensação, é criança lactente tem o contato físico com
reprodução de uma memória ancestral já a mãe interrompido, por uma série de pro-
existente no indivíduo e, de um ponto de cessos, se incorpora ao aparelho psíquico,
vista biológico (que o próprio Freud não assumindo inclusive um substituto para
rejeita), supraindividual, atávico, pois são a experiência traumática do nascimento,
registros de traumas antiquíssimos vivi- que seria inacessível, não registrada pela
dos pela espécie humana, uma afirmação mente. O medo – precursor do horror –
que soa um tanto óbvia aos aficionados surge, segundo Freud (2016), como uma
e estudiosos, mas prenhe de implicações defesa do eu contra algo indesejado do
e desdobramentos. mundo exterior e, por extensão, podemos
Quais seriam os medos que a literatura afirmar que esse indesejado pode chegar
de horror evoca para atingir os efeitos a ameaçar a integridade do eu, como, por
pretendidos no leitor? Uma enumeração exemplo, aniquilá-lo ao confrontar sua
deles seria uma classificação dos tipos de pequenez diante do cosmo (horror cós-
narrativas de horror? Esta a razão de o mico); destruir sua relação com o corpo,
horror ser tão impregnado de perversões que é parte fundamental de sua identidade,
da carne, do corpo humano, da natureza, deformando-o (horror corporal); subme-
da ordem cósmica, de ser tão habitado tendo-o a sofrimentos atrozes que podem
por criaturas monstruosas que negam a causar danos permanentes em sua estrutura
ordem da natureza? O horror relembra (horror psicológico) e assim por diante.
que este cosmo organizado que vemos e Subjaz no texto do criador da psicaná-
tanto prezamos é apenas uma construção lise a ideia de que os medos primários do
de nossas limitações como seres mortais ser humano são temores da ideia de cisão,
e minúsculos, construção limitada e, pior, separação, de destruição de uma unidade
transitória, diante de um universo muito idílica – perdida para sempre, cumpre

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lembrar. Bem, e como isso se relaciona à cem afirmar. Muitos fantasmas e monstros
experiência estética buscada pela literatura fugidios e perturbadores atravessam essa
de terror/horror? Ora, o medo da morte, divisão entre os dois conceitos com uma
medo supremo do ser humano e, portanto, facilidade exasperante.
o medo mais explorado pelas narrativas O horror é eminentemente físico, sen-
de horror, pode ser descrito como o medo sorial, carnal; o medo ou terror, seu pre-
causado pela consciência de que todos cursor, eminentemente psicológico, mental,
seremos inevitavelmente apartados deste emocional. O horror é visceral – esse termo
mundo, desta existência física de maneira tende ao literal, neste caso – por lembrar
irreversível e inevitável e que esse evento as origens biológicas e os limites corporais
– como o trauma do nascimento, do parto (biológicos) de nossa espécie e de nossa
– é inexplicável, obstruído de ser com- percepção e compreensão do mundo; sendo
preendido pela razão: o ser humano que seres cuja estrutura biológica e mental
é transformado em monstro é separado nos dá um entendimento limitado do Uni-
da condição humana; a vítima desmem- verso, quando algo além desse entendi-
brada, despedaçada pela monstruosidade, mento surge, a incompreensão descamba
morre por ter as partes do corpo físico para o medo e deste para o horror. As
separadas; a morte é a separação final narrativas e imagens de horror lembram-
do mundo e da vida sofrida por aquele -nos que somos carne e que em nossa
que finalmente experimenta o memento origem éramos seres apavorados perante
mori. E a separação física causada pela o Universo; o horror retoma esse pavor.
morte violenta, em que a vítima, nas his-
tórias de horror mais cruentas, tem seu UMA POSSÍVEL CLASSIFICAÇÃO
corpo desfeito, separado em partes, está
DAS NARRATIVAS DE HORROR
entre as mais assustadoras. A separação
teórica entre terror e horror seria mais
uma expressão dessa força, portanto, um A miríade de classificações do horror
conceito central para o ensaio: a separa- é contraditória, incerta; muitas das tenta-
ção, disjunção, é central para os efeitos tivas perpetradas são bastante discutíveis,
do horror; este consiste em um apartar pois carentes de rigor e coerência. Apre-
cuja possibilidade é tão assustadora que sentaremos uma enumeração de algumas
o medo gerado causa o terror, sendo ele das categorias mais comuns, dos subgê-
a consumação dessa possibilidade – se o neros ou tipos que pululam em diversos
acontecimento for ainda mais terrível, sur- textos e documentos veiculados de varia-
preendente, inusitado que o imaginado/ das formas – a quase totalidade dessas
temido, tanto melhor para se atingir o classificações, cumpre registrar, circula
propósito que levou à criação do texto em meios não acadêmicos e em que muitas
literário. Mas essa fronteira entre terror das vezes grassa absoluta e total ausência
e horror não é sólida, racional ou tran- de rigor e método –, tentativa baseada no
quila como simples tentativas teóricas de elemento temático e não no formal/esté-
capturar a literatura em categorias pare- tico, uma vez que cada uma das categorias

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abaixo possui um sem-número de exem- fabulosas, ou fazer descobertas científicas


plos em literatura, cinema, artes visuais que abalam a visão que o homem tem de
e gráficas, em todos os subgêneros des- si mesmo e de seu lugar no Universo, é
sas artes – conto, novela, romance, curta de inegável e puro horror. Outros even-
e longa-metragem de cinema, histórias tos ou entidades existentes nos limites
em quadrinhos, pintura, gravura –, atra- das leis da ciência também o causariam.
vessando muitas décadas de produção e O encontro com esses seres, lugares ou
circulação. Portanto, o elemento formal eventos, que podem ser definidos como
não distingue um tipo de horror de outro; os definitivos Outros, causa o efeito nos
o fundamento do horror são suas raízes protagonistas. Pode-se dizer que dentro
atávico-biológicas, suas causas, os temas do gênero horror, portanto, existe o horror
abordados e, claro, que efeito se busca de ficção científica, em que monstros e
atingir. Assim, vejamos uma amostra de situações aterradoras seguem as leis físi-
nomenclaturas para o horror. cas. Várias narrativas de horror cósmico
também são de ficção científica, o que
● Horror cósmico: a descoberta de que o demonstra como esta classificação aqui
ser humano é minúsculo ante o cosmo, proposta é porosa.
desprezível e ignorado pelas forças que ● Body horror (horror corporal): a consci-
o regem; essa sensação teria nascido ência terrível e dolorosa de que o corpo
quando o homem pela primeira vez humano é frágil, nada além de mais uma
contemplou e especulou sobre o Uni- estrutura biológica como tantas outras
verso estrelado que pairava acima de neste planeta, que pode ser destruída,
sua cabeça e foi levada a píncaros por consumida e – muito mais assustador –
H. P. Lovecraft, não o criador, mas o manipulada e transformada, por seres e
mais influente e desvairado autor desse forças macabras, em algo que não é mais
subgênero, que empregou o conheci- reconhecido como humano pelo próprio
mento científico sobre o Universo para indivíduo que sofre a transformação e
demonstrar, numa cruel ironia, que essa experimenta sensações e sentimentos tão
sabedoria milenar estava correta. Muito pavorosos que terminam por desintegrar
importante: o horror cósmico não é um sua sanidade e a daqueles próximos à
subgênero literário dentro do próprio desventurada vítima, que assistem ao
horror, mas um efeito estético que se processo ou são vitimados pelo resul-
busca atingir por meio do emprego tado. Um interessante subgênero do
dessa descoberta – o horror cósmico horror corporal seria o que recebeu a
seria uma temática, que pode ser vazada inusitada alcunha de “horror venéreo”.
em diversas formas. O termo foi cunhado para descrever e
● Horror de ficção científica: em muitas analisar os primeiros longas-metragens
obras da FC, a reação das personagens do cineasta canadense David Cronen-
ao topar ou confrontar outras espécies berg, datados de meados dos anos 70 do
de seres racionais, oriundas de outros século passado, os quais narram como
planetas, civilizações antigas ou perdidas, o resultado monstruoso de experiências

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médicas e científicas bizarras é disse- tos – mortes, desaparecimentos, crimes,
minado por meio de relações sexuais; violência, mutilações etc. – é revelada
filmes que, como um preciso clichê como “sobrenatural”, que literalmente
repete, anteciparam tudo que o surgi- significa “além do natural”, portanto,
mento e disseminação da aids causaram algo inexplicado ou negado pelas leis
na década de 1980. da natureza e da ciência. A descoberta
● Folk horror: o “horror folclórico” é aquele de que há seres e coisas no mundo ou
experimentado pela personagem que se além deste que a arrogância do pensa-
defronta com a descoberta que uma comu- mento científico/racional não abarca ou
nidade rural ou idílica, que vive em uma dá conta, e a personagem/protagonista é
aparente harmonia com o meio ambiente assim arremessada da maneira mais ter-
e entre seus membros, mantém essa har- rível à condição primeva da humanidade,
monia por meio do horror de sacrifícios quando o mundo exterior era uma pletora
ritualísticos sangrentos ofertados às divin- de perigos e monstruosidades inexplicá-
dades que garantem essa harmonia e a veis e o homem quase nada tinha à mão
subsistência física – colheitas abundantes para enfrentar esses terrores, é o funda-
e regulares, chuvas na época certa etc. A mento dessa categoria tão vasta.
descoberta de que a paz, a beleza e a ino- ● Horror psicológico: termo contestado
cente vida bucólica da comunidade/região por muitos entusiastas, aficionados e
são alimentadas por sangue, sofrimento pesquisadores do gênero, com conside-
e morte é terrível demais e gera uma rável razão, pois carrega uma impreci-
poderosa onda de medo e terror que se são tal que termina por ser mais uma
abate sobre o protagonista (que, não raro, metacategoria mal-arranjada, em que
termina como vítima sacrificada, ou seja, exemplares de outros subgêneros pode-
deságua no horror). Algumas narrativas riam ser inseridos simplesmente porque
de horror cósmico também são horror tal obra investiga os efeitos na psico-
folclórico: os narradores-protagonistas logia das personagens ao se deparar,
descobrem a existência de uma comu- por exemplo, com uma transformação
nidade, em um rincão afastado e sinis- grotesca do próprio corpo (horror cor-
tro, em que costumes pagãos ancestrais poral) ou com um segredo que revela
vicejam e as entidades cultuadas e que a pequenez e futilidade da espécie
recebem sacrifícios mostram, por suas humana perante o cosmo (horror cós-
simples existências, que a humanidade mico). Já outros autores e observadores,
é minúscula e desprezível. em uma tentativa de atingir mais rigor,
● Horror sobrenatural: é uma verda- afirmam que o horror psicológico se
deira metacategoria, bastante discutí- caracterizaria por enfatizar os efeitos
vel tamanha sua amplidão e vagueza, e de um evento perturbador na psique da
que abrange diversos tipos de entidades, personagem, sendo o evento em si de
acontecimentos e até lugares que geram menor importância em termos estéti-
o medo e o posterior horror. Este sobre- cos e de fabulação, de construção do
vém quando a causa dos acontecimen- texto. O horror psicológico, portanto,

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seria muito mais temático que formal Quanto mais fragmentado e incompreen-
ou estético e atravessaria, por assim sível tornou-se o mundo, mais assustador,
dizer, outros subgêneros do horror. mais aterrorizante ele se tornou ao indi-
víduo, pobre ser que, por mais que negue,
Ainda há uma variedade de outros carrega em si muito do seu antepassado
subgêneros nomeados e descritos em tons pré-histórico que tremia de medo perante
ainda menos rigorosos, que se confundem as forças cósmicas que não entendia. Pois
entre si e com alguns dos demais apre- justamente então a distinção terror/horror
sentados acima. Assim, haveria o horror ganhou sentido e forma. Podemos enten-
tecnológico (o avanço de uma ou mais der essa distinção como um sintoma da
vertentes da tecnologia geraria eventos e incompreensão do mundo, do medo que
entidades aterradoras, como inteligências este lhe causa, pois não mais uno e com
artificiais hostis e que tais) e o horror sentido? Então as melhores obras de lite-
ecológico (os eventos cataclísmicos causa- ratura fantástica modernas buscam der-
dos pela interferência humana nos ciclos rubar essa separação, não para resgatar
da natureza gerando caos, morte e, claro, uma “conexão perdida com o todo” ou
horror), que uma investigação mais atenta “restabelecer a música das esferas”, mas
classificaria como subtipo do horror de sim causar um efeito ainda mais intenso
ficção científica. Fala-se (escreve-se) sobre no leitor, causar mais medo, mais terror
horror extremo, em que a violência física, e horror (ver Lovecraft, 1987, pp. 7-8) e
mutilação e o verter de sangue seriam o uso intensivo de mitologias arcaicas
tão cruentos e desvairados que parte do que, segundo Lovecraft, são a fonte pri-
público o rejeita; mas, convenhamos, é mordial do “horror cósmico”.
um termo tão vago que pode ser posto de A angústia e o mal-estar da moderni-
lado. Há quem considere o horror gótico dade, motivados pela alienação e separa-
como uma categoria própria, que a nosso ção das esferas da vida e do mundo pré-
ver seria corretamente classificado como -moderno, em que tudo estava relacionado,
uma corrente estética e não temática. como Lukács (2000, pp. 23-36) bem define
Não deixa de ser interessante observar no início de A teoria do romance, têm
que essa divisão ganhou força e clareza sua expressão máxima e mais visceral na
a partir da segunda metade do século literatura de horror, que se separou inclu-
XVIII, exatamente o século em que foi sive de sua antessala, o terror, mas com
forjada a obra literária considerada inau- o qual insiste em tentar se reintegrar. O
gural da literatura gótica, O castelo de horror sempre foi onipresente nas artes,
Otranto. E também o século em que a nas manifestações culturais, na expressão
fragmentação do conhecimento, das ciên- do ser humano reagindo à natureza e ao
cias, a especialização do saber cada vez cosmo do qual ele é uma fração ínfima;
maior e mais intensa e a implosão da como um gênero literário/artístico defi-
compreensão do mundo como uma estru- nido, data do século XVIII, no entanto,
tura em que tudo está relacionado ganha- não é para menos que a frase que inicia
ram impulso e definiram a modernidade. o ensaio O horror sobrenatural na lite-

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ratura, de Lovecraft (1987, p. 1), seja tão natureza, a um cosmo de todo indiferente
repetida e incensada ao se tratar do tema: a ele e à morte. Qualquer criação que lhes
“A emoção mais forte e mais antiga do rememore que a vida social e material
homem é o medo, e a espécie mais forte regida pela técnica, organização produ-
e antiga de medo é o medo do desconhe- tiva e racionalidade sem limites é frágil e
cido” – o medo ancestral da noite, das transitória, seja uma obra de ficção, uma
feras que nela se escondem, das intem- narrativa ou uma simples imagem a denun-
péries climáticas e geológicas colossais ciar a construção social à qual entregou
e indiferentes aos seres que habitam a seu ser por completo, é inaceitável. Com
superfície do planeta, das influências das perdão de um jogo de palavras primário,
luzes brilhantes e moventes no céu sobre o horror é um horror para eles.
o que estava abaixo delas e portanto era A curiosidade, verdadeira anedota, é
inferior. O horror nas artes resgata esses que O castelo de Otranto teve seu cará-
medos, que a modernidade cada vez mais ter romântico/fantasioso criticado, quando
racional trouxe mais e mais à tona no Horace Walpole revelou ser uma obra fic-
imaginário e na vida cotidiana de uma cional, na segunda edição. Os ataques
espécie que se julgava emancipada dos desferidos por vários dos mesmos críticos
imperativos da natureza e se desfazia de que elogiaram a primeira edição, por esta
seu passado mais recuado, um desprezo supostamente ser tradução bem-feita de
em que se imiscui um profundo mal-estar uma narrativa “real”, ilustram parte do
pela consciência de que não superou a que aqui defendemos e suscitam reflexões
condição de ser biológico, sobre o qual várias. Por que a imaginação desenfreada
os horrores da existência podem se aba- é criticada? Por que os pouco afeitos às
ter exatamente como ocorria com seus artes e à cultura letrada quase invaria-
(nossos) antepassados limitados e nus de velmente tacham narrativas fantásticas,
qualquer poder ou tecnologia. seja de horror, terror, fantasia ou ficção
Não soa coincidência ou mera relação científica, de “impossíveis”, de que “isso
de causa/efeito simples e mecânica que não existe”, “não faz sentido”? Porque
exatamente as pessoas embrutecidas e esses produtos da imaginação relembram
desumanizadas pela maquinização e racio- o que há de irracional e inexplicável na
nalismo, os indivíduos mais degradados existência, resgatam e despertam os medos
pela vida administrada sejam justamente atávicos que ainda habitam nos recessos
os que mais rejeitam as obras de horror, da humanidade, e aqueles obliterados pela
qualquer que seja a forma de arte em que razão instrumental não aceitam, muito
este se expresse, mais as tratam como algo menos compreendem essas obras, pois a
“imoral”, “terrível”, “de mau gosto”: esses imaginação que revolve e anima esses
indivíduos foram de tal forma captura- medos ancestrais é negada por essas cons-
dos pelo racionalismo e fragmentação do ciências pisoteadas pela razão.
mundo que não mais aceitam ou veem que Para a criatura, o evento, o local causa-
o homem ainda é o que era há milênios rem horror, não basta serem deformados,
– pequeno, indefeso e limitado perante a feios, desconjuntados, fora dos padrões,

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estranhos. Sua deformidade, feiura, estra- exaltações que fez aos efeitos causados
nheza devem ter um plano estético, ser um no leitor pelos textos abordados em seu
todo que, por mais anormal que pareça, estudo histórico, não se fartava de afir-
causará uma repulsa, uma sensação de mar, em sua mastodôntica correspondência
horror no protagonista e no leitor – claro. com amigos (incluindo vários outros auto-
O horror mostra quão limitada é a razão res de literatura fantástica), que buscava,
diante do espantoso, do demoníaco e do por meio da literatura, acima de tudo, a
inexplicado; ainda que estas categorias “expressão pessoal”.
tenham explicações além da compreensão Em termos mais simples e diretos:
humana, o que, aliás, as torna ainda mais a correta fruição de uma obra de hor-
assustadoras. No horror, a impotência e ror também deve considerar os medos,
o desamparo do protagonista perante a preconceitos, idiossincrasias, ou seja, a
causa do horror são totais, pois a escu- humanidade do autor e a inextinguível
ridão e a sensação de estar nela mergu- necessidade do ser humano de expressar
lhado, impotente, são talvez o mais atá- e afirmar sua existência perante os outros
vico medo que assola o homem, e aqui seres humanos e, por que não, perante um
deve-se usar “homem” (o ser biológico na cosmo que lhe é indiferente? Assim, paira
nudez de sua condição carnal, a anima- a questão: o que é mais importante no
lidade sem nenhum construto histórico- horror, as características estéticas e temá-
-social a cobri-lo e olvidá-lo dessa con- ticas em si, como algo fechado e indepen-
dição) e não “ser humano” (a construção dente, ou o efeito que pretende causar no
histórico-social). leitor/público? Ou as relações entre esses
A tradição da crítica e teoria sobre elementos, a considerar a obra de horror
o horror de valorizar os efeitos emo- como um artefato que expressa os medos,
cionais que o autor busca causar no lei- angústias e, claro, terrores de um dado
tor – preponderância esta não absoluta, período histórico de uma certa experiência
onipotente, cumpre reiterar – merece e humana (o autor) e um meio de comunicar
deve ser discutida, pois tende a um claro esses sentimentos a outros (os leitores/
reducionismo que considera a literatura público) e compartilhar a consciência e
de horror algo como uma simples busca o espanto do terror da existência?
de sensações fortes causadas por imagens Dentre as primeiras manifestações
e temas perturbadores, uma relação um míticas e narrativas desse espanto, e dos
tanto mecanicista que não dá conta da consequentes medos e terrores da huma-
miríade de outros fatores envolvidos na nidade perante os mistérios da sua pró-
produção, circulação e recepção da obra pria existência e da existência do cosmo
literária, sejam quais forem seus gêneros incomensuravelmente maior que ela, está
e épocas. Apenas a título de ilustração: a cosmogonia da mitologia grega, em que
e a expressão das emoções e ideias do a primeira divindade, o Caos, é uma “reu-
autor, qual sua situação nessa equação nião confusa de todos os elementos, antes
simplista? Um exemplo é o próprio H. da formação do mundo” (Spalding, 1965,
P. Lovecraft, que, a despeito das muitas p. 49). Essa percepção de mundo, de modo

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análogo à fusão indistinta dos elementos musas – Platão – à construção racional
e forças primordiais, é um amálgama do de um efeito – Aristóteles. Consta que
espanto, do medo, do terror e, por fim, do em épocas tardias, já pouco antes da era
horror que nasce justamente da primeira cristã, as invocações às musas tinham se
vez que o homem toma consciência de si, reduzido a uma mera formalidade literária
vê-se como apartado do reino animal e que o autor deveria incluir no início de sua
experimenta esses sentimentos. É essa a obra, não por acreditar e buscar os favo-
percepção também expressa por Hesíodo res das filhas da Memória e de Zeus, mas
na sua Teogonia – não por acaso, conside- simplesmente para mostrar que dominava
rada um dos primeiros exemplos do horror as técnicas e procedimentos da escrita.
cósmico em uma obra literária – e sobre Em outras palavras, o espanto para com o
essa unidade primeva discorre Nietzsche mundo ia sendo substituído por uma racio-
em A filosofia na era trágica dos gregos, nalidade que a tudo catalogava e alienava
um livro que mostra evidentes ligações com do restante do Universo, um movimento
esses textos primordiais da mitologia, mas que teria paralelo com o movimento terror-
que procura também superar o que há de -horror: de algo mais indefinido, etéreo,
trágico e assustador na vida humana. misterioso e, claro, assustador, para uma
Nessa cultura clássica, esse movimento corporificação – a fonte/causa precisa e
ou transformação (a alcunha “evolução” determinada do medo, do sentimento, um
não soa adequada) encontra paralelo, inclu- passo para a racionalidade –, pois não é
sive, nos textos teóricos sobre literatura mais um terror vago, uma miríade de
dos filósofos, as primeiras reflexões lite- possibilidades, mas uma coisa/fenômeno
rárias sistemáticas do pensamento grego, determinada. Mas tão aterrador quanto o
que passaram da inspiração guiada pelas terror vago de antes?

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REFERÊNCIAS

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Reprodução/Domínio público

No rastro da meia-noite: moldura e


paródia do gótico em Pinheiro Chagas
Cleber Vinicius do Amaral Felipe
resumo abstract

O artigo analisa a obra A lenda da This article analyzes the work A lenda da
meia-noite (1874) e a maneira como meia-noite (1874) and the way in which
o letrado português Manuel Pinheiro the Portuguese scholar Manuel Pinheiro
Chagas recorreu à técnica da moldura Chagas used the frame technique with the
com o propósito de parodiar tópicas e purpose of parodying topics and devices
dispositivos do gênero gótico. of the Gothic genre.

Palavras-chave: Pinheiro Chagas; Keywords: Pinheiro Chagas; frame;


moldura; gênero gótico. Gothic genre.
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons
N
o que se refere ao vampiros, monstros e lobisomens” (Pun-
campo literário, o termo ter, 1996, p. 1)1. Além disso, o gênero
“gótico” abarca, a prin- passa a abranger outros aspectos, como
cípio, romances escri- a explicação racional de episódios estra-
tos entre as décadas de nhos, a presença de tramas amorosas, o
1760 e 1820 por autores comparecimento de elementos históricos.
como Horace Walpole, Em seus primórdios, o gótico é enca-
Ann Radcliffe, Matthew rado como uma resposta ao empirismo e
Lewis e Mary Shelley. racionalismo iluministas. De acordo com
Embora a história literá- Botting, o termo condiz com uma “escrita
ria tenha agrupado esses de excesso” e, por esse motivo, recorre a
e outros escritores em formulações sublimes e contraria perspec-
um corpo particular da
ficção, suas obras não apresentam carac-
terísticas idênticas. Dentre elas, destacam-
1 Este trecho, assim como os dois fragmentos citados na
-se o uso do sobrenatural, a descrição de sequência, foram traduzidos pelo autor deste artigo.
acontecimentos aterrorizantes, a adoção
de cenários arruinados e medievais e a
presença de personagens estereotipadas.
Conforme David Punter, a literatura gótica
“é a ficção do castelo assombrado, das CLEBER VINICIUS DO AMARAL FELIPE
é professor do Instituto de História da
heroínas atacadas por terrores indescri- Universidade Federal de Uberlândia e autor de
tíveis, do vilão sombrio, dos fantasmas, Heroísmo na singradura dos mares (Paco Editorial).

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tivas idealistas, individualistas e realistas a da trama e estilo, desafiou a crítica,


partir da segunda metade do século XVIII. que costuma encontrar na literatura
Seus temas, muito abrangentes, podem elementos desagregadores da ordem social.
incluir delírios da imaginação, polêmicas Entretanto, ainda segundo Botting, essa
com base religiosa, corrupção espiritual e ficção não celebra os descomedimentos do
forças sobrenaturais. Trata-se, assim, de homem, mas se interroga sobre os limites
um fascínio pela transgressão. Se, no iní- do comportamento. Conforme o autor,
cio, a atenção recai sobre espectros, mons-
tros, demônios, cadáveres e esqueletos, no “em meados do século XIX há uma difu-
século XIX a trama incorpora cientistas, são significativa de traços góticos através
loucos, criminosos. Dos castelos com seus da ficção literária e popular, em meio às
subsolos e passagens secretas, passou-se formas realistas, romances de sensação e
a priorizar casas isoladas e arruinadas. histórias de fantasmas especificamente.
A maquinaria gótica do século XVIII e
“Nas produções góticas, a imaginação e os as paisagens selvagens do individualismo
efeitos emocionais excedem a razão. A pai- romântico dão lugar a terrores e horrores
xão, a excitação e a sensação transgridem que estão muito mais próximos aos lares,
as propriedades sociais e as leis morais. A interrupções insólitas das fronteiras entre
ambivalência e a incerteza obscurecem um o interior e o exterior, realidade e ilusão,
significado único. Baseando-se nos mitos, propriedade e corrupção, materialismo e
lendas e folclore dos romances medievais, o espiritualidade. Esses são significados
gótico evocou mundos mágicos e contos de pelo jogo de fantasmas, duplos e espe-
cavaleiros, monstros, fantasmas e aventuras e lho” (Botting, 1996, p. 74).
terrores extravagantes. Associado à selvage-
ria, o gótico significa uma superabundância Como veremos, Manuel Pinheiro Cha-
de frenesi imaginativo, indomado pela razão gas dominava esse repertório e recorreu
e desenfreado pelas exigências convencionais a ele com o propósito de parodiar tópicas
do século XVIII de simplicidade, realismo provenientes do gênero gótico.
ou probabilidade. A ilimitação, bem como
a ornamentação excessiva dos estilos góti-
cos, faziam parte de um afastamento das
A VISÃO DO PRECIPÍCIO
regras estéticas estritamente neoclássicas que
insistiam na clareza e na simetria, na varie- Em 1863, Chagas publicou “A visão
dade englobada pela unidade de propósito do precipício”. Os quatro capítulos desse
e designer. Gótico significa uma tendência breve texto ficcional foram editados
para uma estética baseada no sentimento e nos números 28, 29, 30 e 32 do jornal
na emoção e associado principalmente ao Arquivo Pitoresco: Semanário Ilustrado.
sublime” (Botting, 1996, p. 3). O narrador, a princípio, adverte: “O meu
romance anuncia-se de um modo terrível.
Seu potencial transgressor, que reper- Começa por uma tempestade. Estou obri-
cute em excessos e ambivalências no nível gado moralmente a apresentar alçapões,

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subterrâneos, e donzelas perseguidas. que devia ser ou a de um grande poeta,
Se não invento por aí uns quatro assas- ou a de um grande doido, se estas duas
sinatos, estou perdido no conceito de ideias não são sinônimas, segundo a opi-
certos leitores” (Chagas, 1863a, p. 221). nião de muita gente” (Chagas, 1863a, p.
Convém destacar a suposta preocupação 222). A associação entre poesia e lou-
com a recepção, o elenco de lugares-co- cura não é incomum em textos românti-
muns góticos e o tom paródico do frag- cos, tampouco a ideia de que a palidez
mento, o que sugere a proposição de um seria indício de uma mente propensa à
decoro “forçado” com o intuito de ajustar imaginação. Na sequência, Chagas men-
a matéria a um auditório particular. Na ciona Xavier de Maistre para assegurar
sequência, o relato cumpre o prometido, que, diferentemente do ânimo de José
figurando um locus horrendus a subsi- Augusto, em que o espírito (l’âme) domi-
diar a história e antecipar seu teor: “Feita nava a fera (la bête), o seu amigo, o
esta declaração, vou introduzir os meus inglês John Williams, apresentava o perfil
leitores... num lagar de azeite, por uma oposto: seus olhos emitiam uma luz fria
noite tempestuosa de dezembro, quando e sem expressão, e o corpo obeso fazia
o vendaval açoita rijamente os pinheirais lembrar a emblemática figura de Sancho
frementes, e os relâmpagos iluminam com Pança, personagem de Cervantes.
pálido fulgor as campinas inundadas pelas Enfim, diante do clima tempestuoso, as
chuvas copiosas de uma noite de invernia” personagens começam a conversar e um
(Chagas, 1863a, p. 221). camponês, identificado como João Moe-
Ao final da descrição, o narrador con- dor, narra a lenda do fantasma do Açude:
fessa: “A mim agrada-me o quadro medo- “Há de haver um par de anos, muito antes
nho das fúrias da invernia! Contemplo com do terremoto, e talvez antes que tives-
delícias a fisionomia terrivelmente fan- sem nascido os pais dos nossos bisavós,
tástica das planícies e dos bosques, onde governavam os mouros a maior parte da
paira, batendo as asas flamejantes, o sinis- nossa terra abençoada” (Chagas, 1863a,
tro arcanjo da tempestade. São estes os epi- p. 223). Convencido do teor verídico do
sódios grandiosos do poema da natureza! relato, João insiste que ele “não é conto
São estas as páginas sublimes do livro da da carochinha” e que “o mais pimpão do
criação” (Chagas, 1863a, p. 221). Após esse sítio tremia, como varas verdes” (Chagas,
prólogo, que mobiliza/parodia uma série 1863a, p. 223), caso tivesse que passar
de topoi comuns às histórias de horror, a ao pé do Açude à noite.
trama se volta para um grupo de homens A tomar pelo que afirma o narrador,
reunido em uma dependência de produção trata-se de um evento ocorrido na Idade
de azeite. Confere-se destaque a dois indi- Média, quando boa parte do território
víduos: José Augusto de Albuquerque era português se encontrava ameaçada pela
alto, elegante e apresentava uma palidez presença moura. Àquela altura, depois de
sintomática de uma imaginação exaltada, muito pelejar na companhia de cruzados,
com olhos cintilantes cujo fulgor revelava o cavaleiro Inigo Paes e um companheiro
“o ardor daquela organização simpática, de armas, afastados da guerra devido à

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idade avançada, resolvem dedicar seus um bosque inundado pela chuva, e que
últimos anos a recordar suas façanhas e vejo, à luz do relâmpago, as árvores nuas
educar seus filhos, Raymundo e Branca. de folhas estenderem-se os braços des-
Paes enxerga no filho o vigor de sua camados, e formarem em torno de mim,
mocidade e o prepara para seguir seus guiadas pelo furacão, danças fantásticas
passos; seu amigo, sem poder fazer o e extravagantes, imagino ver as danças da
mesmo quanto à filha, nem por isso lhe meia-noite, travadas pelos espectros nos
dedica menor afeição. A prole de ambos, cruzeiros dos cemitérios, e, lembrando-
atingida a idade adulta, se apaixona, mas -me dos contos lindíssimos que a minha
Raymundo acreditava que esse amor só ama me contava quando eu era pequeno,
poderia ser consumado depois que servisse chego a acreditar na sua realidade, e acho
ao rei, enfrentando os inimigos da fé e prazer naquilo. Então que quer?” (Chagas,
conquistando sua honra. Antes de partir, 1863a, p. 222).
ambos prometem, ao pé de um crucifixo,
que se reencontrariam para concretizar O trecho permite constatar não apenas
o casamento. Distante de casa e durante as preferências da personagem por ambien-
um ataque contra infiéis, o jovem por- tes tempestuosos e cenários noturnos, mas
tuguês acaba seduzido por Zoraida, uma também sua propensão a tomar narrativas
moura, e Branca, ao tomar conhecimento aterrorizantes como sendo verdadeiras e
do ocorrido, acaba cometendo suicídio, prazerosas. Ou seja, José Augusto alega
se lançando do despenhadeiro do Açude. não resistir aos seus efeitos, o que sugere
Tempos depois, o novo casal passa pelo uma imaginação ávida por fantasias.
local onde Raymundo prometeu regres- Os dois primeiros capítulos consistem
sar e zomba do crucifixo diante do qual no encontro entre os homens no lagar e
a promessa foi firmada. Então, Zoraida na história contada por João Moedor. O
se transforma em uma figura demoníaca terceiro, intitulado “Loucura!”, começa
e se atira, agarrada a seu consorte, no introduzindo uma casa elegante, com sua
precipício. O fantasma de Branca então dona, uma viúva de 27 anos, a entreter
aparece e reza por seu amado, apesar da convivas durante um café, em particular
traição. Em noites de tempestade, segundo o doutor Vidigal, que lhe fazia a corte.
João Moedor, é possível testemunhar os A viscondessa, Amélia de São Cristó-
fantasmas dos envolvidos repetindo as vão, no mesmo dia em que João Moedor
ações daquele dia fatídico. diverte seus companheiros, discorre sobre
José Augusto é quem demonstra maior a aparição de fantasmas no Açude, esti-
interesse no assunto e chega mesmo a mulando o ceticismo do médico, que trata
confessar que gosta do clima hostil e de a lenda com desdém e sugere a leitura
histórias terríveis: de Ann Radcliffe como alternativa, para
desconsolo da anfitriã. Repentinamente,
“[...] sabe você, sr. Manuel dos Reis, que uma criada entra na sala e anuncia a pre-
eu gosto de noites assim? Que diabo! sença de dois habitantes de Lisboa, que
Quando atravesso a galope a clareira de pediam refúgio contra a tempestade. Com

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o assentimento da patroa, entram José – E esta é uma delas?
Augusto e John Williams. O primeiro, – É: aquele rapaz tem uma das organiza-
tomado por uma “palidez cadavérica”, foi ções mais originais que eu tenho encon-
comparado a Orestes: seus olhos “ful- trado na minha carreira médica; nunca
giam sinistramente, e pareciam dilatados imaginei que a exaltação romanesca de
por uma exaltação notável, de uma gran- uma imaginação ardente pudesse exer-
deza desmensurada” (Chagas, 1863b, p. cer uma tal influência na parte material
235). Ao fitar a viscondessa, ajoelha-se do homem; uma febre passageira, que se
e a confunde com Branca, a jovem que dissiparia com o repouso, e com a luz do
se lançou desfiladeiro abaixo no Açude. dia principalmente, era natural; mas uma
José Augusto imagina ser o espectro de loucura assim com todos os caracteres da
Raymundo e pede perdão a Amélia, pro- alienação mental mais grave, sossegada,
pondo a concretização das bodas. meiga, incansável na mesma ideia, é um
Williams explica o delírio do amigo fato raro. Pois é esse realmente o estado
e a viscondessa, compadecida, solicita de José Augusto de Albuquerque” (Cha-
auxílio ao dr. Vidigal. O médico pede gas, 1863c, p. 252).
para a anfitriã assumir o papel de Branca,
para benefício do alienado. Ela resolve O único recurso, segundo Vidigal, seria
incorporar a personagem, pois apreciava manter a tática da simulação:
romances e encara a performance como
uma aventura. O último capítulo da trama “[...] atualmente o sistema que se está
descreve melhor Amélia de São Cristó- empregando com mais frequência, e de
vão, grande apreciadora de livros fran- que se tem colhido melhores resultados,
ceses e portugueses (o narrador men- é o emprego dos remédios brandos; ace-
ciona as obras La Petite Comtesse, de der perfeitamente aos desvarios da lou-
Otávio Feuillet, as Nouvelles, de Alfred cura, condescender com todas as suas
de Musset, Amor e melancolia, de Anto- exigências, evitar o mais possível o dar
nio Feliciano de Castilho, os Versos de a entender o doente que está num estado
Bulhão Pato, de Raimundo Antonio de anormal, e conduzi-lo assim a pouco e
Bulhão Pato, e D. Jayme, de Thomaz pouco à razão, é com efeito o único tra-
Ribeiro). Em seguida, o narrador des- tamento possível em casos em que um
creve o reencontro entre a viscondessa choque forte é inútil, porque não foi tam-
e o médico, na manhã do dia seguinte: bém um choque o motivo da loucura”
(Chagas, 1863c, p. 252).
“– Que tal o acha?
– Mal. O ardil logo se mostra eficaz e José
– Então é séria a loucura? Augusto, aos poucos, recobra o equilíbrio
– É. e abandona a ideia de que seria o espectro
– Aterra-me com o seu laconismo, doutor. de Raymundo. No entanto, se o delírio
– O laconismo inventou-se para as oca- o fez tomar a viscondessa por Branca, o
siões graves. retorno da sanidade o faz se apaixonar

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pela anfitriã, que lhe corresponde o afeto. num sítio da Beira-Baixa, em Portugal.
O jovem lisboeta encara o amor como Por toda parte, nos arredores, existiam
novo “delírio”, ainda mais arrebatador e “verdura, árvores, águas, o ar puríssimo
implacável. A aventura de fantasmas ter- das serras, os rumores misteriosos das
mina em casamento. O dr. Vidigal tece solidões” (Chagas, 1874, p. 4). Entre o
o último comentário da trama, não sem outono e o inverno, a paisagem assume
ironia: “Estou dizendo, minha senhora, tons carregados e lúgubres, promovendo
que o casamento é um belo estado, e que ventanias, trovoadas e relâmpagos; nos
o senhor José Augusto de Albuquerque salões dos edifícios isolados “ouvem-se
deve dar graças a Deus, que lhe trans- rumores sinistros”; o vento, “fazendo ran-
formou em tão esplêndida realidade a ger os pilares da varanda, entoa a música
Visão do Precipício” (Chagas, 1863c, p. triste das lendas populares” (Chagas, 1874,
254). Jocosamente, o médico estabelece p. 4). Depois de descrever o ambiente, o
uma analogia entre a anedota medieval clima e o aspecto do casarão, o narra-
e a história do novo casal, que cumpre dor se volta para um episódio em que os
a promessa cujo descumprimento rendeu anfitriões recebem alguns convidados, que
uma lenda fantasmagórica. pretendiam caçar na propriedade: o dou-
tor Macedo, um escritor chamado Lucio
Valença, o comendador Madureira e sua
OUTRA VISÃO DO PRECIPÍCIO filha, Isaura, o jovem Henrique Osório e
um jornalista aposentado, Roberto Soa-
Em A lenda da meia-noite (1874), res. A prole dos proprietários (Leonor,
Manuel Pinheiro Chagas reuniu cinco con- Álvaro e Julia) também estava presente.
tos: “Julieta: conto fantástico”, “A visão do Nas paredes da ampla sala de estar,
precipício”, “A igreja profanada”, “Memó- os convivas encontram uma série de qua-
rias de uma bolsa verde” e “Dominus dros sombrios; a luz iluminava somente
tecum... (conto para crianças)”. Segundo a ampla mesa de pau santo, deixando as
Jean Carlos Carniel, a maioria deles foi adjacências perdidas nas sombras. Os
editada na imprensa antes de integrar o criados irrompiam da penumbra “como
volume: afora o primeiro, que parece ter se surgissem do chão” (Chagas, 1874,
saído pela primeira vez, e o terceiro, que p. 5). Os ruídos noturnos acabam aba-
foi publicado na Revista Contemporânea lando os nervos de uma jovem e pálida
de Portugal e Brazil, em 1864, os outros senhora, Isaura. Quando Henrique lhe per-
constam do Arquivo Pitoresco: Seminário gunta se gosta de “lendas”, ela afirma
Ilustrado, nas edições de 1863, 1864 e que sim, mas prefere lê-las à luz do dia.
1865 (Carniel; Pavanelo, 2022, p. 4). Dr. Macedo replica: “Sem mise-en-scène
Uma moldura estabelece a conexão não prestam” (Chagas, 1874, p. 7). Lúcio
entre essas narrativas, tramada com recur- explica o termo: “[...] as lendas devem
sos muito convencionais: a nobre família ser lidas e apreciadas à noite, no meio
Fragoza possui uma casa ampla e antiga, do silêncio geral, quando se está sozinho,
cercada de dependências rústicas e situada num velho castelo de Ann Radcliffe, cheio

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de alçapões e de subterrâneos, quando o três conventos de Lewis, reforçados ainda
vento geme lugubremente nos corredores, pelos mil e um fantasmas de Alexandre
e faz oscilar a luz da vela que ilumina a Dumas” (Chagas, 1874, p. 12). Mesmo
nossa solitária vigília” (Chagas, 1874, p. assim, Isaura manifesta seu receio, o
7). Isaura, aterrorizada, ressalta: “[...] hoje que leva o médico a propor a abolição da
com toda a certeza não durmo. Que ideia! meia-noite e dos temores da jovem aflita
É necessário que não tenham a mínima por meio de uma contação de histórias à
dose de sensibilidade para assim estarem maneira de Decameron, ou seja, zombar
zombeteando a respeito de coisas, que me das anedotas fantasmagóricas como os nar-
produziriam uma impressão tamanha, que radores de Boccaccio caçoaram da peste
os meus nervos decerto não resistiriam. em Florença. Cada um poderia compor uma
Estou já toda trêmula” (Chagas, 1874, p. história fantástica, uma lenda, um conto
8). Em seguida, arremata: “[...] levado maravilhoso, a ser lido à meia-noite. No
a esse ponto, o fantástico produziria no dia seguinte, a narrativa ficaria a cargo
meu espírito um funesto efeito. Matava-me do jovem Henrique, que concedeu a ela o
ou enlouquecia-me” (Chagas, 1874, p. 8). título “Julieta: conto fantástico”.
A ideia de que enredos aterrorizantes Antes de prosseguir, convém ressaltar
são capazes de abalar os nervos das lei- alguns elementos prévios: no decorrer da
toras foi convertida em um lugar-comum trama, o narrador e as personagens, na
no Oitocentos, sendo notado não apenas na medida em que dialogam, terminam por
ficção, mas também na crítica jornalística revelar as auctoritates que orientam o
de obras como Drácula (1897), de Bram gênero literário mobilizado por Chagas;
Stoker. Por sinal, convém reconhecer que o as referências modelares da literatura
livro de Chagas se articula em torno dessa de horror; a disposição do enredo (que
tópica, afinal, as histórias narradas tinham emula Decameron); o núcleo da invenção
o propósito de atenuar os receios de Isaura. (seguindo de perto autores como Shakes-
Leonor, filha dos proprietários, cita peare, Ann Radcliffe, Victor Hugo, Ale-
Almeida Garret, Shakespeare e Victor xandre Dumas, dentre outros); os topoi
Hugo para salientar, não sem alguma iro- associados ao gótico e ao fantástico
nia, que seres angélicos são propensos (clima tempestuoso, instalações sombrias,
a grandes comoções, como é o caso das ambiente noturno, isolamento, ruídos fan-
personagens Ofélia, Maria de Noronha e tasmagóricos). Sem falar que as personae
a irmã do bispo Myriel, personagem de são oportunas à trama, performando tipos
Os miseráveis. As badaladas do sino de românticos, céticos, irônicos, aristocratas,
uma vila próxima soaram 12 vezes, anun- patéticos, antiquados, zombeteiros.
ciando o momento sobre o qual pairam Figurar um narrador em ação, de
receios e superstições. Diante da aflição certa maneira, pressupõe a dramatização
de Isaura, Macedo garante que não havia do gesto de contar histórias, sobretudo
perigo: “[...] v. ex.ª está no meio dum quando a trama evidencia os efeitos dessa
batalhão de gente viva capaz de afron- história num público. A moldura, enquanto
tar dois subterrâneos de Ann Radcliffe, expediente retórico, favorece esse quadro

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ao propor, justamente, a performance de claramente por que Boccaccio deixa a


um grupo que resolve elaborar enredos caracterização dos narradores e suas rela-
com a finalidade de entreter amigos e ções mútuas numa zona de penumbra. Se
convidados. O sentido moderno de “mol- eles fossem bem definidos, não haveria
dura”, como se sabe, remonta a Boccaccio. moldura e a narrativa se bastaria a si
Segundo Harold Bloom (2013, p. 119), mesma” (Auerbach, 2020, p. 26). Logo,
“o irônico contar de uma história cujo a moldura não se limita a suplementar as
tema é o contar da história é em muito histórias, assumindo papel marginal ou
invenção de Boccaccio. Esta descoberta acessório, pois a maneira como articula
tinha por finalidade libertar as histórias os narradores e suas respectivas narra-
do didatismo e do moralismo, de modo ções constitui a unidade da obra e seu
que o leitor ou o ouvinte, não o conta- sentido global. É por meio dela que se
dor da história, se tornasse responsável formula o contraste entre uma Florença
pela sua utilização, para o bem ou para pestilenta e decadente e as amenidades
o mal”. Talvez o rompimento com o dida- idílicas ocorridas em uma casa de campo.
tismo/moralismo seja, antes, um efeito, e Em meio ao horror, irrompe um locus
não propriamente uma finalidade, mas o amoenus no qual dez jovens dedicam seu
que interessa é a nova posição ocupada tempo à doçura e ao prazer.
pelo leitor/ouvinte, responsabilizado pela Segundo Carlos Berriel (2013), as his-
maneira como se apropria do relato, e tórias do Decameron são organizadas
o dispositivo irônico que fundamenta o por duas molduras: a primeira remete às
desempenho das personagens. “mulheres que amam”, a quem Boccaccio
De acordo com Erich Auerbach, a téc- dedica a obra. Isso fica explícito no Pró-
nica da moldura, surgida no Oriente, se logo, quando se adverte que essas leitoras
tornou uma questão primordial na Idade “poderão colher deleite e conselho útil,
Média. No século XIII, ela deixa de ser das coisas reconfortantes mostradas atra-
o “texto”, em face do qual as histórias vés das narrativas. Elas ficarão sabendo
pareciam paráfrases, para se tornar “pre- aquilo de que convém fugir, e aquilo que,
texto” para a narração de novelas e meio semelhantemente, se deve seguir” (Boc-
artístico capaz de intensificar seus efeitos. caccio, 2018, pp. 23-4). Trata-se de uma
Boccaccio teria sido o responsável pela apropriação do topos horaciano utile et
mudança, sobretudo quando, em Deca- dulci (utilidade e deleite) e da história
meron, reuniu jovens aflitos com a peste como registro exemplar/instrutivo (historia
negra e dispostos a construir um estado de magistra vitae, segundo formulação cice-
ordem provisório. A despeito das centenas roniana). A segunda moldura diz respeito
de mortes e do colapso das instituições, a à peste, que funciona como enquadra-
educação que receberam persevera como mento apocalíptico a contemplar tanto as
paradigma de reconstrução do mundo. personagens quanto as temáticas de suas
Para Auerbach, é “a partir do conceito de novelas. Há um movimento que parte do
forma social que melhor se compreende a caos para atingir a sabedoria: o conhe-
moldura do Decameron. Percebe-se então cimento desse “quadro” acaba minando

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qualquer suspeita de obscenidade por parte palavra às próprias personagens de suas
dos protagonistas, traço que se destacaria novelas, “para depois as comentarem
caso algumas das novelas fossem lidas entre si e com os ouvintes/leitores”. É
de forma isolada. O narrador chega a se essa contextualização das novelas que
desculpar pela moldura aterradora que se conhece como cornice (moldura) “e
abarca as novelas, mas admite julgá-la encerra as cem novelas em uma arquite-
indispensável: “A dizer a verdade, se eu tônica textual coerente” (Cavallari, 2010,
pudesse, honestamente, conduzir vocês p. 10). Aliás, outro detalhe interessante é
àquilo a que desejo, por outro caminho a maneira como os textos reunidos citam
que não fosse árduo, como este o é, eu lugares reais e pessoas conhecidas para
o teria feito. Entretanto, seja qual for a conferir verossimilhança à narrativa, ainda
causa pela qual aconteceram as coisas que o autor sempre recorde que está escre-
que adiante se vão ler, essa causa nunca vendo peças ficcionais.
poderá ser demonstrada sem rememora-
ção” (Boccaccio, 2018, p. 29). “A cornice ou moldura é considerada a
O Decameron, como lembra Doris verdadeira novidade tipológica da obra,
Cavallari, propõe um diálogo paródico porque a coletânea de novelas com moral
com a tradição, uma vez que as cem paródica já era popular na Idade Média e
novelas reunidas promovem um rebaixa- podemos observar muitas das novelas do
mento dos gêneros sérios. Além disso, Decameron com base no novellino (cole-
a obra, ambientada no tempo da peste, tânea de cem novelas, publicadas na Itália
figura a “recriação” do mundo através um século antes da obra boccaccesca) e no
de uma narrativa em língua vulgar. Por Fabliaux, reunião de cerca de 150 novelas
meio da antítese Tanatos/Eros, Boccac- produzidas na França, entre os séculos XII
cio apresenta a morte e as alegrias do e XIV. Esses textos, todavia, não apre-
amor erótico, necessárias para o nasci- sentam a coerência temática com a qual
mento de um novo mundo. Na primeira Boccaccio apresenta e defende sua obra.
jornada, por exemplo, sete moças e três A organicidade que as novelas ganham
rapazes se encontram em local afastado com a temática definida e a cornice faz
dos distúrbios citadinos, recorrendo aos do texto um conjunto de narrativas coli-
prazeres da narrativa, toda ela pautada em gadas a um fim, o de organizar o caos
largas doses de ironia e comicidade, como pela narrativa” (Cavallari, 2006, s/p).
paliativo contra o medo do contágio, da
dor e da morte. Outra inovação, segundo Quando resolveu parodiar o gênero
Cavallari, diz respeito à presença de um do horror, Alexandre Dumas recorreu ao
“hipernarrador”, ou seja, de alguém que expediente da moldura e, com isso, repre-
controla os aspectos do universo ficcional sentou a performance narrativa de algu-
e cria nuances estilísticas para cada uma mas personagens. Os mil e um fantasmas,
das personagens a quem cede a palavra. que Dumas escreveu com Paul Lacroix
Sendo assim, o autor concede voz a dez e Paul Bocage, é uma trama ambientada
narradores que, por sua vez, outorgam a na França, no segundo semestre de 1831

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(Dumas, 2019, p. 34). Por sinal, o livro entes frágeis, pálidos ou rosados, de olhos
é mencionado em A lenda da meia-noite, negros ou azuis, alegres ou melancóli-
sugerindo que Chagas tenha emulado o cos, esses entes femininos encantadores
romance, cuja moldura organiza as nar- e tímidos adoram tudo o que os faz tre-
rativas em torno de assuntos sobrenatu- mer, e recreiam-se sobretudo com essas
rais que sugerem a existência de almas, histórias terríveis, em que o leitor estu-
prodígios, mortos-vivos. Para situar as pefato encontra um punhal ao voltar de
ocorrências insólitas, a meia-noite com- cada página, um ladrão à esquina de cada
parece como momento privilegiado sobre período, um fantasma pelo menos em cada
o qual pairam várias superstições. capítulo” (Chagas, 1874, p. 20).
Regressando à contação de histórias
de A lenda da meia-noite, o primeiro Note-se a sobreposição de situações:
conto, “Julieta”, se ambienta em Ben- num primeiro plano, Henrique Osório
fica, durante uma reunião de amigos que conta uma história na casa dos viscon-
discutiam temas sobrenaturais, como a des Fragoza; a sua trama retrata, num
existência de almas do outro mundo. A segundo plano, uma reunião de amigos
despeito dos protestos de um jornalista, a discutir temas sobrenaturais, quando
que preferia assuntos mais amenos, um um jovem, chamado Roberto, é convi-
médico insistia no tema para expressar dado a relatar sua experiência fantástica.
seu ceticismo, sugerindo que apenas um A narrativa de Henrique é abertamente
“doido” imaginaria que laços invisíveis ficcional; a de sua personagem afeta ares
pudessem atar o escravo ao senhor, o corpo de testemunho verídico ao enunciar uma
material e frágil e a alma etérea e imor- ocasião em que se encontrava assistindo a
tal. Uma “sublime tolice”, constata: “[...] uma peça de teatro. Roberto acompanha
quem tal supõe, não sentiu nunca debaixo a peça com tamanha entrega que “desa-
do escalpelo anatômico o cadáver inerte e parece o teatro, desaparecem os espec-
desprezível, nem pode avaliar com a vista tadores, desaparece a ficção” (Chagas,
infalível da ciência o nada imenso das 1874, p. 22). Segundo o narrador:
vaidades humanas!” (Chagas, 1874, p. 19).
Um jovem entusiasta, em represália, sugere “[...] arrastada no manto de fogo do ideal,
que a primeira vaidade humana é a ciência, a minha alma sente, enleva-se, palpita,
zombando do “presunçoso Hipócrates”. Em geme, pranteia, soluça com Macbeth o
seguida, o rapaz pede a Roberto que conte grito do remorso, suspira com Desdêmona
a história “do teu espectro”, pois as dis- a canção da saudade, gorjeia com Helena
cussões metafísicas estavam aborrecendo o hino da desposada, escuta com Rosina
as senhoras presentes: a meiga serenata, solta com Lucrécia o
rugido da envenenadora, e volta depois à
“Propor a senhoras uma história de fan- terra, deixando-me ficar pálido, extasiado,
tasmas é despertar-lhes a atenção, é fazer- porque entrevi em sonhos a deslumbrante
-lhes passar nas veias o estremecimento claridade de um mundo desconhecido”
do entusiasmo. Não sei por que, esses (Chagas, 1874, p. 22).

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O trecho simula a perspectiva patética da noite faz ondear os ciprestes funerá-
de um olhar romântico e descreve os voos rios, e o pálido clarão da lua vem beijar
de uma alma original ávida por expe- melancólico as cruzes tumulares. O grito
riências transcendentais. Depois de um sinistro do mocho só de vez em quando
breve solilóquio sobre as prisões da esfera perturba a paz dos mortos; por entre a
material e a impossibilidade de vislumbrar relva dos sepulcros fulgura a lúgubre fos-
a etérea morada, Roberto se depara com forescência dos cemitérios. É tudo silêncio
uma dama pálida a encará-lo, sozinha em em roda, mas ao longe começa a sentir-se
um camarote. Ela apresentava fisionomia um vago rumor, que parece o longínquo
impassível e olhos que “emanavam raios ruído de um exército marchando. E uma
magnéticos e deslumbrantes, que enlou- aragem de terror parece esvoaçar por entre
queciam quem se atrevesse a encará-los” os túmulos, dando vida às lousas e voz
(Chagas, 1874, p. 24). À meia-noite, depois ao ciprestal. Lúgubres clarões abraçam as
do espetáculo, o narrador resolveu segui- cruzes das campas, e as figuras de pedra
-la, mas nunca conseguia alcançá-la, que guardam, sentinelas inanimadas, o
mesmo quando corria em seu encalço. sono dos finados, agitam-se convulsa-
Depois de alguns minutos, a mulher cessa mente ao sopro de fogo daquela procela
o passo e pede a Roberto que a encontre desconhecida [...]. E logo uma longa pro-
naquele local à meia-noite do dia seguinte. cissão de fantasmas brancos começou a
Nos dias que se seguiram, eles se viram desfilar por diante de mim num silêncio
e trocaram juras de amor. O rapaz chegou aterrador. Depois deram-se as mãos e
mesmo a dispensar uma pretendente. A formaram em torno de mim uma dança
certa altura, reconhece que suas ideias de espectros” (Chagas, 1874, pp. 40-1).
pertenciam a um “espírito que procurou
sempre em regiões inacessíveis a felici- Diante disso, Roberto desmaia e acorda
dade, que nunca pude encontrar, e que em casa: “Julguei que fora vítima de uma
talvez caminhasse ao meu lado sem eu alucinação, mas ainda hoje se me repre-
dar por isso” (Chagas, 1874, p. 36). sentam tanto ao vivo as cenas, a que
Depois de alguns encontros, caminha- assisti, que não posso admitir a possibi-
ram por um lindo jardim, que figurava lidade dessa hipótese” (Chagas, 1874, p.
um verdadeiro locus amoenus. Entretanto, 43). Frederico, um dos ouvintes, depois
depois de um beijo e de uma troca de anéis de ouvir o testemunho, afirma: “As aspi-
(simulação de um matrimônio), o cenário rações da alma têm um limite, que não
se desbota e irrompe um locus horrendus: podem ultrapassar. No céu da felicidade
há esferas inacessíveis onde a natureza
“Desapareceram os floridos canteiros, humana desmaia, prostrada pela verti-
emudeceu o rouxinol suave, sumiram-se as gem. Na família, meu amigo, resume-se
estátuas, fugiram as acácias. Estendem-se a suprema ventura. É prosaica unicamente
a perder de vista as ruas sombrias de um para os que a não compreendem” (Chagas,
cemitério, de um lado e de outro avultam 1874, p. 43). O conto é finalizado com
as pedras brancas das sepulturas. O vento uma proposição moral, portanto: Roberto

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gostaria de protagonizar grandes aventu- de seus respectivos autores. A recepção


ras, movido por sua desenvolta imagina- por parte dos convivas funciona como
ção, mas essa faculdade acaba acentuando crítica (pois ajuíza a respeito dos méri-
sua incapacidade de encontrar felicidade tos da narrativa), mas também como uma
nas ocorrências ordinárias da vida. forma de compreender as relações entre
Henrique Osório foi aplaudido, exceto as personagens e seus descompassos.
por Isaura, que bocejava: “[...] a sua ideia Quanto à segunda história, Chagas
acho-a cada vez pior. Vejam se é admissível retomou o texto “A visão do precipício”,
falar-se aqui em cemitérios uma hora da mas conservou apenas os dois primeiros
noite. Eu, se estou assim mais tranquila capítulos, eliminando os episódios que tra-
é porque a Leonor prometeu que dormia tam da loucura de José Augusto e do seu
no meu quarto” (Chagas, 1874, p. 44). Em casamento com a viscondessa. Em A lenda
seguida, afirma: “[...] o sr. Osório tratou da meia-noite, a anedota foi narrada por
bem as pálidas! No seu entender, mulher Roberto Soares, um jornalista “antiquado”
pálida só pode ser mulher desenterrada. que mobiliza com ironia os lugares-co-
Muito agradecida” (Chagas, 1874, p. 44). muns do gênero gótico, mantendo o tom
Leonor também critica a história, mas em da primeira versão do conto. A recepção
particular e com visível despeito: “O teu do texto pelos convivas, no entanto, não
romance é uma loucura. Estás engraçado foi desacompanhada de críticas: se o estilo
com as tuas idealizações constantes. Queres merecia aplausos, a matéria teria sido insu-
mulheres sobrenaturais, entes fantásticos, ficiente, segundo Lucio Valença: “Era ine-
damas brancas de Avenel! Se achas que é vitável”, diz ele, “eu estava já prevendo que
lisonjeiro para uma mulher perder a sua íamos descambar em plena Idade Média.
realidade para agradar ao homem que diz O nosso amigo Roberto Soares não pôde
amá-la, morrer primeiro para ser depois dispensar-se de consagrar um vivo afeto às
desposada por ele em forma espectral, couraças da sua adolescência, e às achas
como no Noivado do sepulcro, de Soares d’armas da sua criação. Fez-nos voltar para
de Passos...” (Chagas, 1874, p. 45). É prática 1830, o nosso bom amigo” (Chagas, 1874,
comum, entre as personagens, a revelação p. 80). A opinião de Henrique Osório é
das auctoritates imitadas pelos narradores. menos solícita:
Há situações particulares, relativas à
moldura do livro, que os contos repercu- “Eu mesmo me vi em ânsias para resis-
tem: Henrique admira a beleza de Isaura tir ao sono. Quem atura hoje um destes
e a maneira como ressaltou a palidez de solários cansados e gastos que deliciaram
sua personagem, Julieta, não passava de a velha geração, com os seus cavaleiros
uma homenagem que, para sua infeli- de armas negras, e os seus diabos disfar-
cidade, foi mal-recebida pela filha do çados em mulheres formosas, e os seus
comendador. Leonor, sua amiga desde a fidalgos que venderam a alma a Satanás
infância, o amava, mas Henrique igno- como na Dama Pé de Cabra, de Alexan-
rava seus sentimentos. De certo modo, as dre Herculano, ou na Torre de Caim, de
intrigas ficcionais figuram os sentimentos Rebello da Silva? Isso foi bom no seu

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tempo, hoje está longe do maravilhoso quarto, “Memórias de uma bolsa verde”,
moderno” (Chagas, 1874, p. 81). escrito por Lucio Valença, é fantástico
apenas na medida em que confere vida
Como no primeiro conto, há uma a um ente inanimado. Dr. Macedo acusa
sobreposição de situações: a princípio, o escritor de fugir ao combinado: “Então
Roberto Soares narra sua história diante isto é um conto fantástico? Você nunca
dos amigos à meia-noite; seu enredo apre- leu Hoffmann? Você nunca leu Carlos
senta uma reunião de trabalhadores rurais, Dickens? [...] onde há aqui espectros?
quando João Moedor assume o posto de Onde há visão? Onde há os terrores legen-
narrador e discorre sobre o fantasma do dários da meia-noite?” (Chagas, 1874,
Açude, lenda associada à Idade Média, p. 202). O outro conto, voltado para um
com topoi românticos que entediam alguns público infantil, foi reservado aos jovens
ouvintes, que manifestam seu desapreço filhos dos viscondes, Álvaro e Julia. Nele
por anedotas obsoletas desajustadas ao aparece um duende malvado que, no final,
maravilhoso moderno. não conclui seus planos graças à inter-
Na terceira noite, dr. Macedo narra “A venção de Patrício, um camponês que lhe
igreja profanada”, em que um barqueiro e prestava serviço. No final do livro, Hen-
seu passageiro/amo presenciam um evento rique Osório se casa com Leonor.
extraordinário, quando vozes melódicas A obra de Pinheiro Chagas apresenta,
irrompem do oceano, as águas se afastam como fundamento, uma metaficção, afi-
e uma igreja surge e logo desaparece. O nal, “tem-se uma discussão sobre o con-
barqueiro conta a história de Guilherme ceito de fantástico e uma crítica metali-
e Inês, dois irmãos que viveram um amor terária e paródica às narrativas insólitas,
incestuoso. A certa altura, ambos se abrigam, isto é, os contos reunidos na coletânea
com sua comitiva luxuriosa, em uma igreja são alvos de comentários feitos pelos per-
durante uma celebração religiosa. Guilherme sonagens da narrativa-moldura” (Carniel,
assassina o sacerdote e, posteriormente, 2021, p. 35). Repare-se que o final feliz
devido a uma força sobrenatural, a igreja do conto “Visão do precipício”, ausente
é transportada para o fundo do oceano. O em A lenda da meia-noite, mantém analo-
grupo profanador padece afogado. Desde gias com o final do romance, que também
então, toda meia-noite, “acendem-se os círios termina com um casamento. No entanto,
na igreja sepultada, e, no fundo do mar, os seria um equívoco imaginar que Pinheiro
réprobos entoam os salmos da penitência” Chagas se limitou a recuperar antigos
(Chagas, 1874, p. 109). Ao contrário das expedientes do gênero romanesco, pois
narrativas anteriores, o conto é bem rece- a matéria é tratada com ironia, muito
bido pelos convidados. Henrique alega que embora o desfecho faça repercutir os
sentiu medo e Macedo, em seguida, admite finais felizes das narrativas convencio-
que a narrativa não era sua, mas de Leonor, nais. Como, em A lenda da meia-noite,
o que impressiona a todos. o propósito era o de narrar ocorrências
Os outros dois contos não se encai- insólitas, o final do conto em análise
xam nos parâmetros dos três primeiros: o seria um despropósito, mas o fundamento

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dossiê literatura de entretenimento

paródico se encontra tanto no conto de tativas de certos tipos sociais e definem


1863 como no romance de 1874. decoros apropriados a cada circunstância
Por sinal, em 1876, n’A varanda de performada no texto literário, ressaltando
Julieta, Pinheiro Chagas coleta alguns a importância de um instrumento que,
contos, inclusive “A visão do precipício”, desde Boccaccio, se consagrou entre os
conforme a primeira versão, completa, de escritores: a moldura.
1863. Nesse caso, não há uma moldura,
mas uma advertência inicial, a justificar a
coleta de narrativas: “Tomou este volume o
CONSIDERAÇÕES FINAIS
título do primeiro romance que nele figura,
porque todos os outros narram aventuras Em trabalho sobre The mysteries of
enamoradas, idílios ou dramas de amor, Udolpho, de Ann Radcliffe, Lainister
e todos portanto se passam nos arredores Esteves (2020) afirma que, desde o tra-
da varanda decantada por Shakespeare, balho seminal de Edmund Burke sobre
da varanda de cujo parapeito se debruçou o belo e o sublime, publicado em 1757,
Julieta a chamar pelo seu Romeu com a a associação entre o medo e o prazer
mais apaixonada ânsia, que jamais tem passou a integrar os debates estéticos.
feito palpitar um coração de mulher” (Cha- No caso da obra de Radcliffe, Esteves
gas, 1876, p. 5). A introdução desempenha demonstra como o recurso ao “sobrenatu-
o papel da moldura e forja um alicerce a ral explicado” gerou polêmicas ao associar
reunir os contos coletados, voltados para os prazeres da imaginação à racionaliza-
dramas de amor. A paródia já não mira ção do terror. Convém recordar que, à
as ambientações góticas e acontecimentos época, além do investimento nas tópicas
sobrenaturais, mas os lugares-comuns do do sublime, a literatura tendeu a flexi-
gênero romanesco. bilizar a adesão às prescrições retóricas,
No século XIX, tornaram-se recorren- contradizendo a centralidade da imitação
tes manifestações literárias que acomo- como paradigma das artes. A explicação
davam, na sua trama, elaborações críti- do sobrenatural dividiu as opiniões: alguns
cas a respeito dos dispositivos da ficção. autores sugeriram que o procedimento
Poder-se-ia adotar o termo “metaficção” atendia ao decoro; outros julgaram a
para referir essa técnica que, por vezes, medida desnecessária e capaz de preju-
aparece diluída nos debates entre per- dicar os efeitos pretendidos. Walter Scott,
sonagens, sobretudo quando o enredo por exemplo, assumiu uma postura crítica
comporta performances oratórias. Alguns ao supor a consciência literária dos leito-
contos de Pinheiro Chagas adotam o expe- res, ou seja, o público esclarecido poderia
diente ao figurar a atuação de narradores, recepcionar a máquina sobrenatural sem
revelar a recepção dos ouvintes e, com assumir uma postura crédula.
isso, interpelar o/a leitor(a), ditando-lhe Ou seja, no tempo de Pinheiro Chagas,
os critérios a serem empregados no ato a paródia dos dispositivos góticos não
da leitura. Além disso, parodiam práti- pretendia alertar o leitor sobre a artifi-
cas letradas obsoletas, explicitam expec- cialidade da ficção, debate que, àquela

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altura, encontrava-se em estágio avançado; escolhas narrativas. Basta reparar nas três
também não se tratava de uma atualização ocasiões em que “A visão do precipício”
do “sobrenatural explicado”, mas de uma foi editada: a princípio, a narrativa foi
dramatização da narração e recepção de publicada em quatro partes, nas páginas
objetos ficcionais. A adoção da moldura de um jornal; depois, metade do texto foi
favorece a iniciativa e permite encarar incorporada em uma moldura que preten-
lugares-comuns muito convencionais como dia parodiar os receios que pairam em
evidências do artifício. A mobilização de torno da meia-noite; em A varanda de
procedimentos góticos continua a sugerir Julieta, o conto foi recobrado na íntegra,
a ideia de transgressão, mas a explicitação mas para compor uma coletânea voltada
das engrenagens do efeito amplifica o pra- para idílios amorosos. A funcionalidade
zer ao ressaltar a ironia dos enunciados. da ficção se mostra passível de ajustes
O par medo/prazer continua operante, mas conforme o gênero e o elenco de auc-
o deleite é obtido, sobretudo, pela denún- toritates mobilizado permite flagrar a
cia da contingência e do arbitrário das inteligibilidade e o decoro da narrativa.

REFERÊNCIAS

AUERBACH, E. A novela no início do Renascimento: Itália e França. Trad. Tercio Redondo.


São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2020.
BERRIEL, C. “Introdução”, in G. Boccaccio. Decameron. Trad. Ivone C. Benedetti.
Porto Alegre, L&PM, 2013.
BLOOM, H. O cânone ocidental. Trad. Manuel Frias Martins. Lisboa, Temas e Debates, 2013.
BOCCACCIO, G. O decamerão. Trad. Raul de Polillo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2018.
CARNIEL, J. C. “O insólito na narrativa-moldura de A lenda da meia-noite, de Pinheiro
Chagas”. Cadernos de Pós-Graduação em Letras, v. 21, n. 1. São Paulo, jan.-abr./2021,
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CARNIEL, J. C.; PAVANELO, L. M. “Duas leituras de ‘Julieta: conto fantástico’, de Pinheiro
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CAVALLARI, D. N. “O Decameron de G. Boccaccio: alguns traços de intertextualidade”.
Recorte, ano 3, n. 5, 2006, s/p.

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dossiê literatura de entretenimento

CAVALLARI, D. N. “A palavra astuta: as estratégias discursivas e a modernidade do


Decameron de G. Boccaccio”. Bakhtiniana, v. 1, n. 4. São Paulo, 2010.
CHAGAS, M. P. A lenda da meia-noite. Porto, Livraria Moré, 1874.
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DUMAS, A. Os mil e um fantasmas. Trad. Manuel João Gomes. Lisboa, E-Primatur, 2019.
ESTEVES, L. de O. “The mysteries of Udolpho: o sobrenatural como problema
literário”. Revista de Estudos de Cultura, v. 5, n. 16, 2020, pp. 51-64.

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Fantástico: breviário
Ricardo Iannace

E. T. A. Hoffmann/Reprodução/Domínio público
resumo abstract

Este breviário incursiona por narrativas This breviary explores unusual narratives in
de matriz insólita nas quais residem which they have dominant characteristics
dominantes do fantástico. Para tanto, a visita of the fantastic. To this end, tales from the
a contos da tradição do surpreendente, a surprising tradition are revisited, such as
exemplo de “O homem da areia” e “Casa “The sandman” and “House taken over”.
tomada”, vem possibilitar a identificação The objective is to recognize elements and
de elementos e aspectos estruturais dessa structural aspects of this lineage of intrigues,
linhagem de intrigas, visando – por meio de aiming at the articulation – through specific
recortes específicos – à aliança com ensaios excerpts – with essays that, for decades,
que, há décadas, têm asseverado sobre have investigated this fiction linked to the
essa ficção atada ao fenômeno do duplo, à phenomenon of the double, to the hesitant
recepção hesitante, ao homem imerso em reception, to the man immersed in a
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons

caleidoscópio de incertezas. kaleidoscope of uncertainties.

Palavras-chave: fantástico; insólito; Keywords: fantastic; unusual events;


realismo maravilhoso; duplo; absurdo. wonderful realism; double; absurd.
Para Nádia Battella Gotlib
– da teoria do conto

“O fantástico força uma crosta aparente,


e por isso lembra o ponto vélico;
há algo que encosta o ombro
para nos tirar dos eixos.”
(Julio Cortázar)

I
nsólito, sinistro, estranho e rea- De início, o aceno é ao conto “O homem
lismo maravilhoso são termos da areia”, do alemão E. T. A. Hoffmann
vizinhos, amistosos e, em alguma (1776-1822), escritor contemporâneo de
medida, congênitos ao fantástico. J. W. von Goethe. Elaborada em 1815, a
Uma pergunta, aliás, costuma che- intriga tornou-se conhecida em decorrência
gar com regularidade aos pesqui- de sua qualidade estética e devido a Sig-
sadores da vertente: o fantástico mund Freud, em 1919, tomá-la como objeto
se classifica como gênero, sub- de especulação para formular o ensaio
gênero, categoria, meio ou modo “Das Unheimliche”, título que em portu-
de construção ficcional? guês recebeu estas traduções: “O estranho”,
A designação modo de constru- “O inquietante” e “O infamiliar”.
ção é recente e recebe a anuência No texto de Hoffmann inscrevem-se
dos estudiosos. O fenômeno lite- elementos que estão na raiz dessa linha-
rário, que encontra nos gêneros conto gem caracterizada intencionalmente por
e romance um terreno fértil para seu atmosfera turva, sob a condução de nar-
desenvolvimento, engenha-se a partir de gra-
mática própria; em outras palavras, a poética
que edifica tal matéria põe em relevo uma
concentração de ingredientes e um proce-
RICARDO IANNACE é professor das Faculdades
dimento narrativo sui generis. Para ilustrar, de Tecnologia do Estado de São Paulo e do
cabe a incursão por tramas canônicas, gra- Programa de Pós-Graduação em Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa
ças às quais o fantástico, perto de alcançar da FFLCH-USP e autor de, entre outros, Murilo
três séculos, se faz conhecido e explorado. Rubião e as arquiteturas do fantástico (Edusp).

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dossiê literatura de entretenimento

rador habilidoso na arte da impenetrabi- o indivíduo sinistro pratica experiências


lidade, sem a qual o receptor talvez não alquímicas, trancafiado com o pai do
hesitasse – verbo escolhido por Tzvetan menino no gabinete – espaço onde irrompe
Todorov para equalizar a reação desse lei- o acidente responsável pelo óbito do chefe
tor. Pois bem: reside em “O homem da da casa); terceiro: o aparecimento do ita-
areia” a figuração do duplo, do autômato liano Giuseppe Coppola (sobrenome cuja
e da incerteza no tocante a ocorrências grafia – veja-se a duplicidade – espelha as
anunciadas na esfera do sobrenatural; certa consoantes e a vogal do outro, chamado
ideia fixa se potencializa na personagem Coppelius), que é um óptico, vendedor
e conquista status de anomalia psíquica. de barômetros e lentes.
A vida de Nathaniel é preenchida por De fato, o conto de Hoffmann traz uma
acontecimentos ininteligíveis. Esse prota- combinação de eventos surpreendentes. Nos
gonista, na troca de missivas com a noiva parágrafos que precedem ao epílogo, com
e o amigo, irmão desta, intui que seu a cena do baque fatal de Nathaniel de uma
relato será interpretado como uma aluci- torre, quando se acreditava que ele supe-
nação. Segundo ele, a absurda cadeia de rara a crise psicológica (detalhe: do alto,
incidentes que o envolve, pessoalmente, avistou Coppola na praça), dá-se a paixão
não pode ser apreendida como lances insana do rapaz pela jovem Olímpia, filha
casuais – da mesma forma que essa teia do professor Spalanzani; avante, o enamo-
ambígua desautomatiza e invalida expli- rado descobre que a moça era uma boneca
cações de grandeza cognitiva. de madeira (os olhos dela são arrancados
Baralham-se em sua mente episódios da pelo comerciante Coppola – também fabri-
infância, os quais, na fase adulta, rever- cante de artefatos artificiais – ao desen-
beram de modo atordoante. Primeiro: tender-se com o catedrático que arquitetava
a lenda contada pelos mais velhos aos o androide). Em resumo, o texto hoffman-
infantes que desobedecem à determinação niano, em sua economia, eclipsa os porquês
de se recolherem para dormir (conforme da ventura excepcional da personagem.
a crença popular, um homem malvado,
a altas horas, aproxima-se das crianças
resistentes ao sono e arremessa punha-
2
dos de areia nos seus olhos, que, uma
vez despregados das cavidades oculares Considere-se que a ambiência insólita,
e ensanguentados, são postos em um saco por si, não se sustenta como assinatura
e levados à Lua pela criatura perversa, do fantástico (sobretudo do fantástico
a fim de servirem de alimento aos seus primevo, clássico). É preciso mais: sob
filhos, cujos bicos se assemelham aos determinada névoa espessa, o duplo, a
das corujas); segundo: a visita noturna androginia, a necrofilia e a insurgência
e intermitente de Coppelius à família de de patologias, afora as estátuas moven-
Nathaniel – para o protagonista, o advo- tes, os aparelhos mecânicos com ges-
gado de aparência medonha é nada menos tualidade humana ou os humanos com
que o homem da areia (tarde da noite, movimento maquinal, estão em estreita

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aliança. Com efeito, essas narrativas de William Wilson (note-se, a propósito, a
origem europeia, que vêm a público ao ressonância desses morfemas). Testemu-
final do século XVIII e ganham força nha a personagem, em retórica peremp-
no XIX, se disseminando entre nações, tória e interrogativa: “Meu andar, minha
encetam o desabono ao racionalismo ilu- voz, meus costumes, meus gestos! Seria
minista e ao cartesianismo, contrariando tudo isso o resultado de uma imitação
a doutrina das verdades. apenas?” (Poe, 1996, p. 115). Nessa his-
Esses construtos se aclimatam à escola tória, a similitude irrespondível repousa
romântica. Lembre-se de que o fantástico no seio do fantástico, no lusco-fusco do
encontra acolhimento no espírito gótico e gótico e do horror. O sósia persegue-o,
opera na consolidação dessa perspectiva sussurra-lhe e, à presença de estranhos,
estética que se ramifica na corrente oito- denuncia as ações fraudulentas do anti-he-
centista; afinal, dispositivos como insani- rói. Há, no conto, referências a reuniões
dade, estado onírico, mistério, grotesco e secretas com jogatina, baile noturno com
morte assomam às faturas. Edgar Allan trajes à fantasia, máscaras e embriaguez;
Poe (1809-1849), autor estadunidense a há duelo e homicídio. O ser constituído
quem se deve o legado do horror e do como réplica, fac-símile (dono, inclusive,
fantasmagórico, avulta como ícone dessa de uma voz que se confunde com a cons-
tendência literária. O conto “William Wil- ciência do narrador), é assassinado em
son” emblema esse ideário. um salão amplo e espelhado.
Publicado em 1839, o texto de Poe O ensaio de Freud é anterior à narrativa
agencia o fenômeno do duplo de maneira “William Wilson”; se o psicanalista aus-
inigualável. O narrador posicionado em tríaco a conhecesse e quisesse, decerto a
primeira pessoa registra com gravidade incluiria em suas proposições sobre o duplo.
a desonra que pesa sobre si, oriunda de “Das Unheimliche” configura-se como lei-
vícios morais precocemente manifestados. tura intrincada do mundo perturbador de
Tão logo é admitido no colégio interno, Nathaniel; a análise freudiana descortina
descobre a existência de condiscípulo de uma cartografia de sombras na escritura de
nome igual ao seu e com idêntica aparên- Hoffmann, iluminando a imagem paterna
cia: “Digo-lhes que, se tivéssemos sido e a castração infantil. O pai bom (mante-
irmãos, teríamos sido gêmeos […]; e se nedor e protetor da família) e o pai mau
espantem como eu: depois de ter deixado (Coppola, homem da areia) desdobram-se,
o colégio, vim a saber, por acaso, que respectivamente, nas personae do professor
meu xará nascera ao dia 19 de janeiro de Spalanzani e do vendedor de olhos sintéti-
1813, precisamente a data do meu nasci- cos. E o conflito edipiano, haja vista a rela-
mento” (Poe, 1996, pp. 112-3). ção malsucedida entre Nathaniel e o sujeito
A uma espiral de dados convergentes feminino, ecoa no dueto Clara (a noiva)
– o “mesmo nome, os mesmos traços, o e Olímpia (o autômato). O psicanalista
mesmo dia de chegada ao colégio” e de ainda adverte que o brinquedo boneca –
abandono da instituição –, somem-se o culturalmente oferecido às crianças – age
convívio tenso e a rivalidade entre os na fantasia de maneira singular, porque,

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àqueles que atravessam a tenra idade, com o acender da luz, não fizer sombra na
a concepção identificadora de corpos parede do quarto ou cuja sombra não tiver
animados e inanimados se expressa fre- cabeça, morrerá em um ano” (Rank, 2014,
quentemente borrada. posição 762); “alguns povos levam ainda
Em “Das Unheimliche” está registrado hoje seus enfermos ao sol para atrair de
que um médico chamado E. Jentsch rea- volta, com sua sombra, a alma prestes a
lizara estudo introdutório a respeito do partir” (Rank, 2014, posição 800) –, isto
inquietante (o que parece funcionar como é, um mosaico cravejado de superstições
start às reflexões freudianas acerca do e fulgurações obituárias vem à baila nesse
tema). Jentsch acerta no sintagma “incer- estudo. Observação: o ementário que ao
teza intelectual” para traduzir o estra- longo da história se estratifica sobre o fan-
nho sentimento, mas o escritor Friedrich tástico mergulha em várias dessas nascentes.
Schelling vai além: é “[…] tudo o que
deveria permanecer em segredo, oculto,
mas apareceu” (apud Freud, 2010, p. 337,
3
grifos do autor). Freud, por sua vez, sin-
tetiza com propriedade: “[…] esse Unhei- Diante de volumoso material sobre a
mlich não é realmente algo novo ou alheio, natureza e os aspectos da vertente ficcional
mas algo há muito familiar à psique, que aqui discutida, um recorte teórico-crítico
apenas mediante o processo da repressão mostra-se necessário; a bem da verdade,
alheou-se dela” (Freud, 2010, p. 360). O postulados tornam-se mais elucidativos
pensador de Viena não ignora o trabalho do quando expostos em simultaneidade com
amigo e compatrício, médico psicanalista, obras para as quais eles lançam farol. De
Otto Rank – Der Doppelgänger (1914) (O saída, a menção é a Todorov.
duplo: um estudo psicanalítico). Trata-se Em Introdução à literatura fantástica
de pesquisa inicial que se adensa e ganha (1970), o historiador búlgaro, guiado por
publicação em livro no ano de 1925; é, até uma visão sistematizadora, à feição do
hoje, referência a todos que perscrutam o estruturalismo, elege e comenta uma série
fantástico e seus arredores. de narrativas de verve insólita, depreen-
As inferências de Rank contemplam lite- dendo-as como gênero. Isso suscita con-
ratos universais. Hans Christian Andersen, trovérsias: ao firmar, taxonomicamente,
Fiódor Dostoiévski, incluindo Hoffmann, incontáveis tipologias, oferece a algumas
Poe e outros cujas narrativas vislumbraram delas uma conceituação frágil; entretanto,
o duplo e a sombra, são incisivamente recu- não parece justo ignorar que, no conjunto,
perados. O investigante é prodigioso nas os argumentos de Todorov encerram plau-
remissões a comunidades, tabus e mitos sibilidade. Veja-se: “‘Cheguei quase a
regionais – “é um costume muito difun- acreditar’: eis a fórmula que resume o
dido na Áustria, em toda a Alemanha e espírito do fantástico” (Todorov, 1992,
também entre os países eslavos meridio- p. 36). E mais: “A hesitação do leitor é
nais, realizar, nas vésperas do Ano Novo pois a primeira condição do fantástico”
e do Natal, o seguinte teste: aquele que, (Todorov, 1992, p. 37, grifos do autor).

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Declara-se: “[...] há narrativas fantásticas Quanto a essas especificidades e fron-
nas quais todo medo está ausente […]. teiras, vale atentar-se às colocações de
O medo está frequentemente ligado ao Irlemar Chiampi (1980, p. 56): “O fan-
fantástico mas não como condição neces- tástico contenta-se em fabricar hipóteses
sária” (Todorov, 1992, p. 41). falsas […], sem oferecer ao leitor nada
Entre as aferições de Todorov, estas são além da incerteza […]”. Entende-se que,
bastante categóricas: “Há uma diferença nos “contos maravilhosos (com ou sem
qualitativa entre as possibilidades pessoais fadas), não existe o impossível, nem o
que tinha um autor do século XIX, e as escândalo da razão: tapetes voam, gali-
de um autor contemporâneo” (Todorov, nhas põem ovos de ouro, cavalos falam,
1992, p. 168). Porque, além de a ficção dragões raptam princesas, príncipes viram
atinente ao século de James Joyce reve- sapos e vice-versa. […] Assim, enquanto
lar-se majoritariamente ousada no expe- na narrativa realista a causalidade é explí-
rimentalismo verbal – a palavra flertando cita (isto é, há continuidade entre causa
a si, em sintaxe turbulenta, encrespada –, e efeito) e na fantástica ela é questionada
existe o fato de a psicanálise ter substi- (comparece pela falsificação das hipóteses
tuído “(e por isso mesmo torna inútil) a explicativas), na narrativa maravilhosa ela
literatura fantástica. Não se tem necessi- é simplesmente ausente” (Chiampi, 1980,
dade hoje de recorrer ao diabo para falar p. 60, grifo da autora). De permeio, “[…] a
de um desejo sexual excessivo, nem aos causalidade interna (‘mágica’) do realismo
vampiros para designar a atração exercida maravilhoso é o fator de uma relação
pelos cadáveres: a psicanálise e a litera- metonímica entre os dados da diegese
tura que, direta ou indiretamente, nela […]; ao leitor desamparado e aterrorizado
se inspira, tratam disto tudo em termos pela fuga do sentido do fantástico, é resti-
indisfarçados” (Todorov, 1992, p. 169). tuído o sentido: a fé na transcendência de
Embora as intrigas de “Casa tomada”, um estado extranatural, nas leis meta-em-
de Julio Cortázar (1914-1984), e “Funes, o píricas” (Chiampi, 1980, p. 61, grifo da
memorioso”, de Jorge Luis Borges (1899- autora); motivo por que as “personagens
1986), não sejam alvo de sondagem na do realismo maravilhoso não se descon-
ensaística de Todorov, parecem exemplares certam jamais diante do sobrenatural, nem
no que tange à “neutralidade” do medo. moralizam a natureza do acontecimento
Os dois prosadores, ao lado de Gabriel insólito” (Chiampi, 1980, p. 61).
García Márquez, Juan Rulfo e outros Em “Casa tomada” (1946), o narrador
hispano-americanos do século XX, des- apresenta-se como homem de meia-idade
pontam, em seus países correspondentes, que vive na companhia de Irene, sua irmã;
como paradigmáticos do boom da litera- metódicos, são os únicos ocupantes do imó-
tura de ramagem extraordinária. Às vezes, vel herdado da família. O destino não facul-
os textos manifestam dicção filiada a um tou a algum deles a alegria ou o dissabor
fantástico genuíno, mas – sem rarefação do matrimônio; em vez disso, nessa união
– eles tilintam como composições típicas consanguínea, cada qual passa a cuidar do
do realismo maravilhoso. outro e a zelar, com exagero, pela residên-

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cia de metragem avantajada. O conto não Nos cursos de literatura que Cortázar
sintoniza com narrativas abalizadas pelo ministrava, ele preferia silenciar a trazer
medo: a inquietude é branda, se comparada a lume as intenções metafóricas de seus
às histórias de têmpera oblíqua do XIX escritos. Reservava os minutos derradei-
(nem da arena do verossímil, tampouco da ros das aulas para interagir com estudan-
órbita do realismo maravilhoso, sequer da tes esperançosos em lograr do mestre as
latitude do fantástico castiço – essa urdi- senhas decodificadoras da sua obra. Toda-
dura de Cortázar se situa no intermezzo). via, as respostas do autor argentino eram,
A rotina pacata dos irmãos afeiçoados à nessas circunstâncias, evasivas: “[…] no
moradia é destruída quando ambos começam meu caso, os contos fantásticos nasceram
a escutar rumores ali dentro (ele, absorto nos muitas vezes de sonhos, principalmente de
livros e na coleção de selos deixada pelo pesadelos. Um dos contos mais trabalhados
pai; ela, empenhada nos afazeres da cozinha pela crítica, para o qual buscaram um sem-
e na tarefa da costura). Para se protegerem, -fim de interpretações, é um pequeno conto
optam pelo bloqueio dos cômodos, impedindo que se chama ‘Casa tomada’” (Cortázar,
o acesso aos aposentos e, por contiguidade, 2018, p. 67). Reitera: “[…] no pesadelo eu
a comunicação entre as dependências; com estava sozinho e no conto me desdobrei
essa decisão, os proprietários comprimem-se num casal de irmãos que vive numa casa
dia após dia no domicílio. Até que, certa onde ocorre um evento de tipo fantástico”.
noite, se evadem da habitação: “Cingi com E esse “conto segue exatamente o pesa-
meu braço a cintura de Irene (eu acho que delo” (Cortázar, 2018, p. 67).
ela estava chorando) e saímos assim à rua. “Funes, o memorioso” (1942) é uma
Antes de nos afastar tive pena, fechei bem a narrativa que igualmente resiste a um con-
porta da entrada e joguei a chave no bueiro” ceito ortodoxo de fantástico e realismo
(Cortázar, 1971, p. 18). Parafraseando Todo- maravilhoso. O insólito marca presença na
rov, seria razoável considerar que o leitor descrição conferida à personagem-título
contemporâneo dificilmente assimilaria os e ao cenário que a circunscreve. Após
ruídos apontados na trama como manifes- ter sido derrubado por um cavalo, Ire-
tação de almas do outro mundo, ou algo neo Funes torna-se paralítico e permanece
semelhante a isso. recluso. Certa feita, em ala de penumbra
O estranhamento suscitado resvala da sua casa, o jovem de 19 anos recebe
interpelações nada quiméricas. Há indí- o narrador para uma conversa.
cios na intriga de que Irene e o protago- Se a figura desse fumante com fisiono-
nista teriam vivido experiência incestuosa: mia indígena carrega algo de sinistro (como
“Entramos nos quarenta anos com a ine- são incomuns o seu timbre de voz e o jeito
xprimível ideia de que o nosso simples e de olhar – aí ressonam laivos da literatura
silencioso matrimônio de irmãos era o fim fantástica), o que dizer da natureza bioló-
necessário da genealogia fundada pelos gica de Funes? Ela insurge em paridade com
bisavós em nossa casa” (Cortázar, 1971, p. a instância do realismo maravilhoso, dado
11). Ao alastrar-se, a acústica inclemente que o rapaz dispõe de memória e faculdade
rebenta como autocensura, obsidiando-os. perceptiva sem-iguais, super-humanas. No

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ato da queda, “perdeu o conhecimento; guração do caixeiro-viajante prescinde de
quando o recobrou, o presente era quase indagações). Do contrário, as anomalias
intolerável de tão rico e tão nítido, e assim dos jovens Ireneo Funes e Gregor Samsa
também as memórias mais antigas e mais gozariam, nas obras, de protagonismo.
triviais” (Borges, 2007, p. 104). Na ver- Todorov e Irène Bessière pronunciaram-
dade, seus predicados inatos e, não menos, -se a respeito da trama kafkiana.
excepcionais teriam dilatado incrivelmente. Assinala o crítico: “Em que se transfor-
As “lembranças não eram simples; cada mou a narrativa do sobrenatural no século
imagem visual estava ligada a sensações XX? Tomemos o texto mais célebre, sem
musculares, térmicas etc. Podia reconstituir dúvida, que se deixa incluir nesta categoria: A
todos os sonhos, todos os entressonhos” metamorfose, de Kafka”. Nele, “a coisa mais
(Borges, 2007, p. 105). surpreendente é precisamente a ausência de
No diálogo entre personagem e narrador surpresa diante deste acontecimento inaudito
por ocasião da retirada, na residência de […]” (Todorov, 1992, p. 177). Quanto ao com-
Funes, de livros em latim que lhe haviam portamento da família, “há de início surpresa
sido emprestados, descobre-se o quão deco- mas não hesitação […]” (Todorov, 1992, p.
rara a língua de Cícero em prazo exíguo. 178). Sumariamente, eis “a diferença entre o
Nessa noite, confidencia: “Eu sozinho tenho conto fantástico clássico e as narrativas de
mais lembranças que terão tido todos os Kafka: o que era uma exceção no primeiro
homens desde que o mundo é mundo. […] mundo torna-se aqui uma regra” (Todorov,
Minha memória, senhor, é como um monte 1992, p. 182). Diz Bessière: em A metamor-
de lixo” (Borges, 2007, p. 105, grifos do fose, “a questão posta não é ‘O que me tor-
autor). Na intriga, tal prodígio jamais se nei?’, ‘O que me aconteceu?’. É interessante
abre para questionamentos de foro cientí- observar que a consciência do homem-inseto
fico: há, naturalmente, um embarque no uni- não ficou alterada e que somente importa o
verso desmesurado do moço que armazena enigma do acontecimento” (Bessière, 2009, p.
(“No mundo entulhado de Funes não havia 6). Isto é, importa o “enigma”, não o “acon-
senão detalhes, quase imediatos” – Borges, tecimento” stricto sensu.
2007, p. 108). Sabe-se, pouco depois, que A ensaísta francesa, em “Le récit fan-
ele morre de uma congestão pulmonar. tastique: forme mixte du cas et de la devi-
Emerge da tessitura borgiana o retrato nette” (“O relato fantástico: forma mista
dessa anormalidade de matriz ontológica. do caso e da adivinha”), capítulo introdu-
Um parêntese: salvaguardadas as diferen- tório de seu livro Le récit fantastique: la
ças, o conto do autor de Buenos Aires traz poétique de l’incertain (1974), encontra na
uma situação análoga àquela que Franz interseção de dois gêneros discursivos a
Kafka (1883-1924), no ano de 1915, defla- inspiração para alicerçar seu conceito de
gra em A metamorfose (a zoomorfogia – à literatura fantástica – arvora-se, pois, do
maneira como se deixa alegorizar nas pági- caso (relato) e da adivinha (charada). Pau-
nas do escritor austro-húngaro – não é alvo tada pela obra Formas simples (1930), de
de questionamento do elenco da novela; André Jolles, a autora elege duas – entre as
noutros termos: o evento em si da transfi- várias – estruturas de textos sobre as quais

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Jolles discorreu. Vejam-se asserções inteli- em que nos sentimos envolvidos com eles
gentes do linguista neerlandês acerca desta numa cálida atmosfera de simpatia orgâ-
peça cifrada: “[…] a verdadeira e única nica eles nos são apresentados sob uma
finalidade da adivinha não é a solução, mas luz fria e estranha” (Sartre, 2005, p. 145).
a resolução” (Jolles, 1976, p. 116, grifo Em se tratando da literatura brasileira,
do autor). Ela “é plurívoca. A primeira componentes do fantástico, no Oitocen-
solução esconde e comporta uma segunda; tos, alastram-se por enredos de autores
tampouco entrega seu segredo mais pro- consagrados (Machado de Assis e Aluísio
fundo […]; as adivinhas ‘autênticas’ não Azevedo foram alguns deles); no Nove-
têm solução unívocas […]” (Jolles, 1976, centos, Monteiro Lobato e Cornélio Penna
p. 125). Bessière, nessa diretriz, vincula a experimentaram a fórmula, e, adiante,
astúcia do reconto com o sintagma esfín- vários outros: Erico Verissimo, Bernardo
gico. E assevera: “[…] no relato fantás- Élis, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia
tico, a impossibilidade da solução resulta Fagundes Telles. Contudo, dois escritores
da presença da demonstração de todas as produziram, nessa genealogia, entrechos
soluções possíveis” (Bessière, 2009, p. 12). que se consolidam como projeto de escopo
fantástico: José J. Veiga e Murilo Rubião.
Neles, o insólito leva em conta a idiossin-
4 crasia e aquele referencial humano para
os quais Sartre aponta nos romances de
Sobre o fantástico que deságua no Maurice Blanchot e Franz Kafka.
século XX, é também aguda a intelecção Na prosa de Murilo Rubião (1916-1991), a
de Jean-Paul Sartre. Em texto a respeito rotina que sufoca as personagens é a mesma
da narrativa Aminadab (1942), de Maurice que desencadeia uma rede de absurdos:
Blanchot, ele aproxima-a da obra de Kafka obreiros, radicados em um arranha-céu,
(o cotejo não se faz com A metamorfose, veem a torre crescer à revelia das injunções
e sim com O processo e O castelo). Para do engenheiro responsável pela edificação;
o filósofo do existencialismo, quer na fic- uma fila inócua, formada por indivíduos
ção do francês, quer na do tcheco, “[…] anônimos, expande-se a esmo no curso das
não há senão um único objeto fantástico: horas; uma esposa ganha peso desmesu-
o homem” (Sartre, 2005, p. 138). Isto é: radamente, engordando na proporção dos
“Nada de súcubos, nada de fantasmas, nada pedidos extravagantes confiados ao marido;
de fontes que choram […]” (Sartre, 2005, e uma mulher engravida sem que haja a con-
p. 139) – mas a presença, em constelação sumação do ato sexual, parindo em escala
eminentemente burocratizada, de um “labi- desordenada e ritmo desvairado. Esses e
rinto de corredores, de portas, de escadas demais relatos se organizam na então lin-
que não levam a nada” (Sartre, 2005, p. guagem sintética do contista obsessivo pelo
141). Eis que os “utensílios, os atos, os exercício da reescrita, a mimetizar, nessa
fins, tudo nos é familiar, e estamos com enunciação, tais feitos de altitude exorbi-
eles numa tal relação de intimidade que tante e mágica. Não é gratuito o parale-
mal os percebemos; mas no exato momento lismo que críticos agenciam entre Rubião e

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Kafka quando examinam os infortúnios de Aí repousa um dos traços capitais
heróis sitiados em vale de mal-entendidos, do fantástico contemporâneo, conforme
ou melhor, anti-heróis cujos tropeços não a nomeação do crítico espanhol David
afluem a solução alguma. Roas, ao deslindá-lo na esteira do que
Humor ácido, ironia penetrante e lirismo, o argentino Jaime Alazraki chama de
conjugados à tarefa laboriosa que cintila o neofantástico – ou seja, uma construção
processo redacional da obscuridade, aflo- estético-verbal destituída da intenção de
ram, pois, na fatura do autor de O con- provocar o medo (como antecipava Todo-
vidado. Certa vez Rubião testemunhou: rov), laureada de metáforas que reclamam
“Nunca me preocupei em dar um final maior proximidade entre os cidadãos do
aos meus contos. Usando a ambiguidade tempo presente e o mundo concreto, cam-
como meio ficcional, procuro fragmentar baleantes na macroesfera de irresoluções
as minhas histórias ao máximo, para dar que os enovela.
ao leitor a certeza de que elas prosseguirão A palavra em fluxo, com seus pontos de
indefinidamente, numa indestrutível repe- fuga, suas lacunas e fraturas, disputa esse
tição cíclica” (Ponce, 1974, p. 4). jogo – senão, esse espelho de simulacros.

REFERÊNCIAS

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Conto de fadas: origens,
conceitos e reflexões sobre o gênero
Sandra Trabucco Valenzuela

Gustave Dore/Domínio público/ Wikimedia Commons


resumo abstract

O presente artigo estuda o conto de This article examines the fairy tale genre,
fadas, partindo da análise sobre o conto beginning with an analysis of the marvelous
maravilhoso com base em Todorov, para, tale based on Todorov’s framework, and
em seguida, abordar a dimensão feérica subsequently addressing the enchanting
na visão de Benjamin, Lüthi, Chiampi, dimension through the perspectives of
Jolles, Coelho, Volobuef e Valenzuela. A Benjamin, Lüthi, Chiampi, Jolles, Coelho,
investigação prossegue com a origem Volobuef, and Valenzuela. The investigation
dos contos de fadas, identificando nas continues by exploring the origins of fairy
narrativas primordiais e nos mitos celtas tales, identifying in primordial narratives and
fontes para a gestação de histórias que Celtic myths sources for the development of
relatam a intervenção de seres femininos, stories that depict the intervention of female
intermediando relações entre dois beings, mediating relationships between two
Giovanni Cardinali/Domínio público/Wikimedia Commons

mundos: o natural e o sobrenatural. Por worlds: the natural and the supernatural.
fim, o artigo encerra-se com a reflexão a Finally, the article concludes with a reflection
respeito do papel dos contos de fadas na on the role of fairy tales in contemporary
contemporaneidade, com Tatar, Machado, times, drawing insights from Tatar, Machado,
Estés e Carter. Estés, and Carter.

Palavras-chave: conto de fadas; conto Keywords: fairy tale; marvelous tale;


maravilhoso; literatura infantil; tradição children’s literature; oral tradition; fairies.
oral; fadas.
“‘E se não morreram, vivem até hoje’,
diz o conto de fadas. Ele é ainda hoje o primeiro
conselheiro das crianças, porque foi o primeiro
da humanidade, e sobrevive, secretamente,
na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e
continua sendo o narrador de contos de fadas.”
(Walter Benjamin)

O MARAVILHOSO E oral de cunho popular e, posteriormente,

R
recolhidos, assimilados, relidos e, por fim,
OS CONTOS DE FADAS
publicados como obras literárias.
A origem dos contos maravilhosos é
efletir sobre os contos incerta, no entanto, não há dúvida que eles
de fadas como gênero remontam às origens da linguagem e sua
requer uma leitura de evolução, o momento em que, através da
mundo de uma perspec- fala, narrativas começaram a circular entre
tiva do maravilhoso, a os grupos humanos em âmbitos espaço-tem-
qual se distancia dos porais bastante diversos. A interpretação da
pressupostos iluminis- existência, a geração da vida, as etapas de
tas e positivistas – defi- crescimento, a chegada da morte, o des-
nidos pela determina- tino implacável, os fenômenos da natureza,
ção de compreender a o medo e os perigos que estão à espreita,
realidade com base no a luz e as sombras, o sono, a crueldade, a
materialismo, determi- vingança, a mentira, vilanias de toda sorte,
nismo e outras linhas
teórico-filosóficas ancoradas na tentativa
racionalista de interpretar o mundo vivido.
O conto de fadas (ou conto da carochi- SANDRA TRABUCCO VALENZUELA
nha) é singular e impactante, mantendo, é professora do Programa de Pós-Graduação
em Estudos Comparados de Literaturas de Língua
porém, vínculos profundos com outros gêne- Portuguesa da FFLCH-USP e autora de, entre
ros, gestados e disseminados pela tradição outros, A bela e a fera: um reconto (Editora nVersos).

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injustiças, mas também a boa fortuna e os natural personagens como duendes, fadas,
acontecimentos que movem a experiência do bruxas, gnomos e vampiros, os quais, mui-
cotidiano dentro de um contexto social, de tas vezes, se valem de objetos capazes
alguma forma, lançam as sementes para a de alterar ou interferir sobre a realidade
criação de narrativas primordiais, compostas física, como varinhas, vassouras, portas
de mitos e lendas, que se multiplicam através mágicas, poções secretas ou, até mesmo,
dos contos populares e contos maravilhosos. ferramentas intrincadas, que terminam por
Historicamente, os contos maravilhosos determinar acontecimentos que escapam
têm sua origem nas narrativas orais de cunho por completo à compreensão racional.
popular. Contos maravilhosos – ou contos O denominado “maravilhoso puro” se
de encantamento (Tavares, 1969, p. 422) – afasta de narrativas em que o sobrenatural
constituem narrativas compostas de fatos se destaca por receber certas explicações e
extraordinários, inclusive inverossímeis, com justificativas. Assim, o maravilhoso puro
a intervenção de fórmulas mágicas, talis- diferencia-se do maravilhoso hiperbólico,
mãs e objetos com propriedades inusitadas, do maravilhoso exótico e do maravilhoso
cujo enredo apresenta uma natureza mate- instrumental, visto que essas variedades
rial, social e sensorial que se manifesta pela valem-se de justificativas para a ocorrên-
busca da riqueza, da satisfação do corpo ou cia do sobrenatural (Todorov, 2012, p. 63).
pela conquista de poder, nos termos de Nelly Nos contos de fadas, estabelece-se
Novaes Coelho (2000, p. 173). Os contos um acordo tácito entre leitor e instância
maravilhosos variam de acordo com o seu narrativa, em que há uma aceitação dos
conteúdo, podendo ser: miraculosos, contos elementos mágicos sem questionamento,
de costumes e contos sobre animais. respeitando-se a lógica interna da narra-
Segundo Todorov, o maravilhoso é mar- tiva, manifestada através do espaço-tempo
cado pela quebra das leis da natureza, “sendo imemorial e do faz-de-conta. Desse modo,
necessário admitir novas fórmulas para a embora tanto a ficção científica como a
explicação dos fenômenos descritos” (Todo- literatura de horror estejam imbuídas de
rov, 1975, pp. 47-8). O maravilhoso como elementos constitutivos do maravilhoso1,
gênero literário congrega elementos do sobre- é possível afirmar que, entre suas marcas
natural e que são aceitos sem qualquer hesi- de distinção, estão os recursos, os meios
tação, por parte dos personagens ou do leitor
implícito: o que caracteriza o maravilhoso,
portanto, é a “própria natureza dos aconte-
cimentos” narrados (Todorov, 2012, p. 60). 1 De acordo com Todorov (2012, p. 51), o fantástico
articula-se no limiar entre o maravilhoso e o estranho,
Todorov sustenta que o conto de fadas por ele considerado domínios vizinhos. Por sua vez,
insere-se no gênero maravilhoso como uma Roas (2011, pp. 30-1) elabora o conceito afirmando que
“[...] lo fantástico se caracteriza por proponer un conflicto
de suas variedades carregada de aconte- entre (nuestra idea de) lo real y lo imposible. Y lo esencial
cimentos sobrenaturais, tipificados pela para que dicho conflicto genere un efecto fantástico no
es la vacilación o la incertidumbre sobre las que muchos
forma narrativa e não pelos acontecimentos teóricos (desde el ensayo de Todorov) siguen insistiendo,
sino la inexplicabilidad del fenómeno. Y dicha inexpli-
sobrenaturais em si. Fazem parte desse cabilidad no se determina exclusivamente en el ámbito
universo ficcional que estrutura o sobre- intratextual sino que involucra al propio lector”.

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para provocar os efeitos desejados: se a cação imediata com figuras históricas ou
ciência e a técnica compõem o maquinário concretamente referenciadas na vida real,
idealizado e os preceitos epistemológi- evitando assim o ajuizamento conceitual
cos que se interpõem na ficção cientí- que poderia ser atribuído às ações: “Todos
fica, o horror se manifesta pela repulsa, esses seres [fadas, mas também monstros,
pela atmosfera estranha e amedrontadora ogros e bruxas] são o produto bem claro
que prevalece e é compartilhada entre os da disposição mental cujas duas direções
personagens e o leitor. Como exemplo, encarnam. Monstros, espíritos malignos,
se a poção da bruxa no conto de fadas ogros e bruxas encarnam a direção trágica;
é um elemento mágico, na ficção cientí- graças aos seus poderes mágicos, as boas
fica a poção elaborada por um alienígena fadas e tudo o que a elas se associa são o
recebe uma abordagem tecnicista e, no meio mais seguro de escapar à realidade
horror, é provável que sejam as conse- [...]” (Jolles, 1976, p. 202).
quências da poção elaborada por um ser Nos contos maravilhosos, as persona-
de caráter monstruoso (seja por suas fei- gens podem guardar poderes sobrenatu-
ções ou psicologia), aplicadas dentro de rais, sendo capazes, no momento certo,
uma certa ambientação, que despertam de empreender metamorfoses e deslocar-
estranhamento, medo e aversão. -se pelo espaço-tempo, beneficiando-se
O feérico – como uma das dimen- de poderes mágicos e contrapondo forças
sões do maravilhoso – desenha-se como do bem e do mal (Coelho, 2000, p. 172).
um distanciamento do natural, projetado A coletânea As mil e uma noites, fixada
pela desreferencialização espaço-tempo- pela primeira vez no Ocidente pela ver-
ral, expressa por enunciados como “era são em francês do orientalista Antoine
uma vez”, “há muitos anos atrás”, “num Galland (1646-1715), elaborada a partir
reino distante”. Tal recurso garante ao de 1704, sendo o último volume lançado
conto a manutenção de seu “fascínio”, em 1717, serviu como base para versões
preservando as narrativas do rigor ético em outras línguas, estabelecendo as dire-
e histórico-filosófico relacionado a um trizes da narrativa dos contos maravilho-
período ou fato determinado e conectado sos produzidos posteriormente na Europa
com a realidade. (Valenzuela, 2016, p. 36).
Nos contos maravilhosos, como afirma
Chiampi (1980, p. 60), “a unidimensiona-
lidade não provoca emoções especiais no
ORIGEM DOS CONTOS DE FADA
leitor: os prodígios se sucedem na busca-
-viagem do herói, que, inchada de fantasias, Formular uma distinção precisa e única
afasta-se do natural. Nos contos maravi- sobre o conceito de contos de fada, com
lhosos (com ou sem fadas), não existe o vistas a traçar limites claros entre mito,
impossível, nem o escândalo da razão”. conto popular e fantasia, por exemplo,
De acordo com Jolles (1976), assim constitui uma tarefa que pode ser consi-
como o espaço-tempo, as personagens derada impossível (Nicolajeva, 2003, p.
não devem apresentar qualquer identifi- 138), entretanto, é fundamental elencar

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atributos distintivos que caracterizam siglo IX hasta el XII continúan las his-
o gênero do ponto de vista estrutural e torias de caballerías, y en ellas aparece
epistemológico. De acordo com Nicola- Melusina, druidesa de la Isla del Sena,
jeva (2003, p. 138), “os contos de fadas con todos los atributos que hacen de un
têm suas raízes na sociedade arcaica e no hada un personaje tangible de la historia
pensamento arcaico, sucedendo-se ime- humana” (Mantovani, 1959, pp. 10-1).
diatamente aos mitos”.
Os contos primordiais que origina- O substantivo “fada” provém do latim,
ram os contos de fadas permitiram ao fatum, i, cujo significado é destino, fado,
ser humano criar e recriar sua existência, fatalidade, desgraça, referindo-se também
produzindo uma diversificada constelação à personificação das Parcas (Fatae ou Tria
de deuses, poderes divinos, fadas, demô- Fata – os Três Destinos) ou ao oráculo
nios, destinos, monstros, animais falan- (Fata). Na França, o termo evoluiu para
tes, bruxas, ogros e outras personagens fée, resultando em faerie e féerie (feérico);
sobrenaturais que se inserem no universo foi nessa forma que a palavra ingressou
do imaginário: “[...] um outro mundo está na língua inglesa: fairy (século XIII).
muito vivo nos contos de fadas, graças Na mitologia grega, identifica-se com
à nossa capacidade como contadores de as Moiras da mitologia grega, que eram
histórias” (Zipes, 2012, p. 4). em sua origem demônios ligados ao nasci-
A citação mais antiga relativa a seres mento (Kury, 2008, p. 304), apresentadas
imaginários semelhantes a fadas aparece como três irmãs fiandeiras, que tecem
em Pomponius Mela (século I), em De os fios da vida de cada ser humano,
situ orbis 2 (43 d.C). A fada consiste num sendo Cloto responsável pelo nascimento,
elemento mediador para que os huma- Láqueses, cuja atribuição de girar o fuso
nos possam alcançar a realização (real ou encarregava-a também de tecer a vida,
fictícia) de seus sonhos e fantasias. De e Átropos, quem cortava o fio da vida.
acordo com Fryda Schultz de Mantovani, Portanto, o destino, a predestinação e as
Pomponius Mela situa fatalidades são componentes decisivos nos
contos de fada.
“[...] en la Isla del Sena a nueve vírgenes Cabe, aqui, destacar que na literatura
dotadas de poder sobrenatural, medio ondi- há fadas boas e fadas más, que atuam
nas y medio pitonisas, que con sus impre- como elementos sobrenaturais que inter-
caciones y sus cantos imperaban sobre el ferem na vida dos seres humanos, res-
viento y el Atlántico, asumían diferentes guardando dos perigos, favorecendo os
encarnaciones, curaban a los enfermos y protegidos com a boa fortuna ou, pelo
protegían a los navegantes. [...] Desde el contrário, provocando desgraças, impin-
gindo castigos terríveis ou mesmo fazendo
apenas travessuras. Exemplo disso é o
conto A bela adormecida, dos irmãos
2 Disponível em: https://play.google.com/store/
book s/details?id=z 3E9A A A Ac A A J&rdid=book-
Grimm: furiosa por não ter sido convi-
-z3E9AAAAcAAJ&rdot=1. dada para o banquete em comemoração

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ao nascimento da princesa, a décima ter- a literatura, através da pena dos monges
ceira fada amaldiçoa a bebê: “[...] pelo católicos medievais.
fato de não terem me convidado eu lhes Os mitos celtas adentraram a cultura
digo que sua filha, ao completar quinze ocidental notadamente a partir do século
anos, irá espetar o dedo numa roca de XIII, através da expressão sincrética dos
fiar e cairá morta” (Grimm; Grimm, 2012, contos populares, visto que não há tex-
p. 237, vol. 1). tos escritos originais que tenham chegado
É consenso associar a origem dos a nós (Brunel, 1998, p. 684). Em suas
contos de fadas à cultura celta. Tendo inúmeras variantes, as principais fontes
dominado boa parte do continente euro- que relatam o mito celta são as lendas
peu, a civilização celta era constituída arturianas – compostas pelos romances
por povos que compartilhavam a língua, de cavalaria do poeta Chrétien de Troyes
costumes e a religião. “A referência mais (séculos XII e XIII), como Le conte du
antiga a Κελτική [celtiké], a terra dos Graal ou Perceval, de c. 1190; Romance
‘celtas’, localizada no interior de Mar- da história do Graal, de Robert Boron,
selha, é geralmente atribuída a Hecateu de 1200-1210, esta última a versão mais
de Mileto (c. 500 a.C.)” (Tomaschitz apud conhecida da lenda –, A lenda dourada
Karl, 2020, p. 1, tradução nossa). No (o ciclo de Eterno Retorno), Os peniten-
século V a.C, o historiador grego Heró- ciais e os Contos populares. Da perspectiva
doto descreveu que os “celtas” (keltoi) religiosa, os celtas concebiam a existên-
viviam no extremo oeste da Europa, além cia de dois reinos complementares entre
do que hoje é o Estreito de Gibraltar; mais si, porém, muitas vezes, concorrentes. Aos
tarde, no século IV a.C., a grande pre- seres humanos, contudo, caberia o conhe-
sença celta – que se expandiu a partir da cimento de apenas um, o do mundo onde
Europa Central – já ocupava desde a costa vivem, no entanto, deveriam submeter-se
do Oceano Atlântico, a região central, a igualmente às diversas interações de ambos
costa noroeste do Mar Mediterrâneo, che- os reinos, pois sabem que os atos cometidos
gando até os Bálcãs. Reconhecidos pelos aqui repercutem no outro. Este outro reino
romanos como galli (habitantes bárbaros é representado como um espaço ideal, belo
da Gália, originando o termo “gaulês”), e de tempo perene. A morte pertence ao
foram conquistados pelo Império Romano mundo comum e nele era preciso reverenciar
(Karl, 2020), desaparecendo lentamente o fluxo da vida, celebrando os antepassados
a partir do século II a.C. O legado celta mortos, seja através de festividades ou da
permaneceu vivo em muitas regiões da prática cotidiana da crença nas divindades
Europa, com marcas evidentes nas línguas e respeito à natureza.
e nas culturas irlandesa, gaélica, galesa e Os deuses celtas não tinham uma repre-
bretã. Já no século V, com a conversão dos sentação única e tampouco necessaria-
povos, antes ligados ao panteísmo, para mente humana: as divindades podiam
o cristianismo, imagens e crenças celtas, alterar seu aspecto, assumir a forma de
como a figura do druida, por exemplo, pessoas ou animais, conforme a conve-
passaram a integrar os textos religiosos e niência. A deusa Mãe era a ancestral dos

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povos celtas, sendo ligada à água e, mais ções. Por sua vez, nas novelas de cavala-
tarde, à fertilidade da terra, identifican- ria germânicas, as personagens femininas
do-se pelo nome de “Dana, Danu, Dôn ou semelhantes às fadas são conhecidas como
Anu” (Silva, 2020, p. 17), associando-se damas brancas, damas verdes ou, ainda,
ao Rio Danúbio e ao Rio Don, na Rús- damas negras, de acordo com as cores
sia. O destaque para a presença feminina dos cavaleiros a quem elas protegiam;
como divindade associada não só à natu- já na Mesopotâmia, as fadas são repre-
reza e à gestação da vida, mas também sentadas como dama da planície, dama
à ambiguidade da passagem entre dois da fonte ou dama das águas, rememo-
mundos e à dualidade entre o bem e o rando imagens arcanas do feminino, numa
mal produziu uma infinidade de entidades veneração das manifestações da natureza
femininas sobrenaturais. substancializadas como água (rios, lagos,
As fadas são, portanto, herdeiras dessas fontes), bosques, árvores, frutos e terra.
tradições pagãs, portadoras de poderes O conto de fadas apresenta uma natu-
semelhantes a seres mágicos, como nin- reza espiritual, ética e existencial, ligada
fas, ondinas, oríades, dríades e valquí- à magia feérica (Coelho, 2000, p. 173).
rias, mas também, conforme a tradição, Nesta categoria, heróis e heroínas desen-
podem aludir a elfos, duendes e gnomos volvem percursos narrativos com a inter-
– para mencionar apenas alguns. Frutos mediação do sobrenatural para conquistar
da cultura ocidental, as fadas ganharam objetivos intangíveis, como o amor, a feli-
diferentes representações conforme as cidade e a alegria “para sempre”, numa
regiões e seus costumes. atmosfera cuja paisagem de sombra “não
De acordo com Coelho, foi por meio da é isenta de um toque irônico e satânico”
sinergia entre as fontes orientais e greco- (Benjamin, 1987, p. 240).
-latinas, da espiritualidade celta associada Devido à diversidade cultural e ambi-
à “cultura bretã e germânica que, nas cor- guidade quanto a definir um caráter e
tes da Bretanha, França e Germânia, as constituição única para as fadas, estas
novelas de cavalaria se ‘espiritualizaram’” foram ganhando novos contornos com a
(Coelho, 2012, p. 53), urdindo a trama passagem do tempo. No Renascimento,
do ciclo arturiano, encadeando roman- Shakespeare trouxe à cena o universo
ces corteses, baladas, lais (cantigas que feérico de Sonho de uma noite de verão
contam sobre amores trágicos e eternos) (1594-1596), onde um filtro de amor,
e narrativas de encantamento – cernes utilizado de modo incorreto, age sobre
do que seriam, mais tarde, os contos de os relacionamentos, provocando confu-
fadas da literatura infantil clássica. sões entre o mago Oberon, rei dos elfos;
Assim, a Fada Viviana, a Dama do Titânia, a rainha das fadas; o cavaleiro
Lago, sacerdotisa de Avalon, filha de transformado em burro; o duende Puck;
Diana – cuja missão era proteger e entre- as fadas Teia-de-Aranha, Grão-de-Mos-
gar a Excalibur, a espada mágica, ao rei tarda, Flor-de-Ervilha e Mariposinha,
Artur –, reflete a confluência de paradig- todas pertencentes ao reino de Titânia,
mas cristãos e aqueles das antigas tradi- entre outras personagens. Data do mesmo

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período um dos mais longos poemas em versões de “Cinderela” (“La gatta Cene-
língua inglesa, composto por Edmund rentola”), “Rapunzel”, entre outras. Ao
Spenser, The Faerie Queene (1596), de todo, 50 contos de fadas, emoldurados por
abordagem épico-alegórica sobre moral e uma única história, são narrados por dez
política, sendo a Rainha das Fadas repre- contadores ao longo de cinco jornadas,
sentada por Elizabeth I; a obra popula- seguindo o modelo proposto por Boccac-
rizou a imagem das fadas como seres cio em Decameron. Apesar do título, a
diminutos. Além de Shakespeare e Spen- obra apresenta uma linguagem e estru-
ser, Ariosto, Tasso e Camões estão entre tura direcionada aos adultos, sem qual-
aqueles que resgatam o maravilhoso feé- quer preocupação com o público infantil.
rico, disseminando-o ao lado de outros
autores clássicos, os quais ampliaram a
constância das fadas, adicionando ainda
CONTOS DE FADAS PARA A INFÂNCIA
a presença de seres equivalentes às fadas
celtas, como “as banshees irlandesas, ‘as Do ponto de vista literário, os contos
mouras encantadas’, as xanas asturianas, de fadas atendem esteticamente ao gênero
as ‘damas verdes’ germânicas [...]” (Coe- ficcional, herdeiro da “vivência épica (o
lho, 2012, p. 80.) eu em relação com o outro, com o mundo
Neste panorama, destaca-se a importân- social), cuja expressão natural é a prosa,
cia dos contos de fadas coletados por Gio- a ficção” (Coelho, 2000, p. 163). As fadas
vanni Francesco Straparola (século XVI) eram personagens consubstanciadas em nar-
e Giambattista Basile (século XVII), que rativas e poemas direcionados ao público
serviram de modelo para que, posteriormente, leitor adulto, já que não havia qualquer pre-
Perrault e os irmãos Grimm, entre outros, ocupação em oferecer aos infantes material
publicassem contos adaptando-os às variações direcionado a eles: as crianças eram tratadas
regionais ou conforme a necessidade. como adultos em miniatura.
Em As noites agradáveis (Le piace- No século XVII, nos salões franceses,
voli notti), Straparola recolhe um total de nasceu um movimento social e cultural
75 histórias, incluindo contos de fadas, que se tornou conhecido como Precio-
novelas e contos folclóricos, na segunda sismo. Neste contexto, coube às mulheres
edição, datada de 1555, sendo traduzida “um papel fundamental [...], visto que tive-
poucos anos depois para o espanhol, ale- ram a oportunidade de revelar abertamente
mão e francês, com enorme repercussão. sua capacidade criativa e seu talento para
Um dos contos de fadas mais conhecidos as artes. Essas mulheres passaram a ser
é “O Gato de Botas”, mais tarde publi- chamadas de As Preciosas” (Valenzuela,
cado por Perrault. 2021, p. 34). O título “conto de fadas”
O napolitano Giambattista Basile tem aparece pela primeira vez na França do
os dois volumes de Pentameron ou O século XVII, cunhado pela escritora fran-
conto dos contos ou entretenimento dos cesa Marie-Catherine Le Jumel de Barne-
pequenos (1634 e 1636) publicados pos- ville (1652-1705), mais conhecida como
tumamente, incluindo aqui as primeiras Madame d’Aulnoy. Jack Zipes (2012, p.

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22) alerta para o fato de que D’Aulnoy atribuir à educação. [...] os pais se inte-
nunca esclareceu o motivo pelo qual ela ressavam pelos estudos de seus filhos e os
se valeu da designação, embora a tenha acompanhavam com uma solicitude habi-
atribuído como título à sua coletânea de tual nos séculos XIX e XX, mas outrora
24 narrativas, em oito volumes, publicada desconhecida” (Ariès, 2015, p. 11).
entre 1697-1698: Les contes de fées ou, Dentro dessa nova perspectiva arquite-
literalmente, Os contos sobre fadas (des- tada pela sincronicidade entre Iluminismo,
taque nosso), que foi a primeira obra do sociedade industrial, ascensão da burgue-
gênero publicada em Paris. sia e as teorias defendidas por Rousseau
Como questiona Joan DeJean, é inex- em Emílio ou Da educação (1762), que
plicável o motivo pelo qual Madame se espalha inicialmente pela Europa, é
d’Aulnoy foi preterida pela história literá- que desponta uma literatura destinada à
ria francesa moderna, consagrando Char- infância. Nesse bojo, o conto de fadas
les Perrault (1628-1703) – contemporâneo passa a integrar o arcabouço literário
de Madame d’Aulnoy – “como inventor infantil, compondo uma conexão com o
do conto de fadas francês e suas narra- maravilhoso, porém, muitas vezes, sem
tivas como arquétipos dos contes de fée” perder de vista esse novo prisma peda-
(DeJean apud Barneville, 2023, p. 11), gogizante e/ou moralizante, carregado de
visto que o público leitor da época reco- valores burgueses e cristãos.
nhecia Marie-Catherine como a grande Charles Perrault recolheu e adaptou
escritora e criadora do gênero. Entretanto, contos maravilhosos tanto da tradição
seu apagamento – assim como o de mui- oral, como também da obra de Straparola
tas outras escritoras contemporâneas dela e Basile, publicando, em 1697, a coletânea
– fez com que Charles Perrault fosse o História do tempo passado com mora-
único nome de destaque no país, especial- lidades, também conhecida como Con-
mente a partir da mudança de paradigma tos da Mamãe Gansa (Les contes de ma
trazida pela Revolução Francesa de 1789: Mère l’Oye), considerada um marco da
a invenção da infância, isto é, a família literatura infantil, ao fixar literariamente
e seus novos contornos burgueses, deixa essas narrativas, tornando-se “o criador
de ver na criança um adulto em minia- do primeiro núcleo da literatura infantil
tura e passa a pensar em sua educação, ocidental” (Valenzuela, 2020, p. 229). Vale
na importância de sua formação como dizer que, na edição original, a Mamãe
cidadão, na experiência como um ser em Gansa era representada com a figura de
desenvolvimento, que tem necessidades e uma fiandeira, seguindo a tradição que
expectativas próprias, e que, para isso, associa as Parcas às fadas, reforçando
precisa de experiências adequadas à sua seu caráter de tecer o destino. Em Per-
idade: “A família tornou-se o lugar de rault, como infere Sonia S. Khéde, as
uma afeição necessária entre os cônjuges fadas “eram o retrato das grandes damas
e entre pais e filhos, algo que ela não era que usavam roupa de boa qualidade e
antes. Essa afeição se exprimiu sobretudo faziam reverências como as Preciosas da
através da importância que se passou a corte de Luís XIV” (Khéde, 1990, p. 17),

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transformando a visão mítica original em Andersen (1805-1875), que publicou 156
percepções da realidade. contos valendo-se de fontes diversas, mas
Além de Perrault, notabilizaram-se também de sua própria vertente poética.
na produção de contos de fadas Madame Dentre os mais conhecidos contos de fadas
Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont estão “A pequena sereia”, “A roupa nova
(1711-1780), com A bela e a fera (1756), do imperador” e “Sapatinhos vermelhos”.
que, por sua vez, se inspirou no conto
de mesmo nome publicado por Madame ESTRUTURAS E ELEMENTOS
de Villeneuve em 1740, além de muitas
DOS CONTOS DE FADAS
outras escritoras que, por serem mulheres,
permaneceram no anonimato.
No entanto, é no século XIX, especial- Nem todos os contos de fadas con-
mente durante o período romântico, que tam com a presença de fadas. Exemplo
muitos escritores dedicam-se aos contos disso são “Branca de Neve”, “Chapeuzi-
de fadas. Pioneiros no estudo do folclore, nho Vermelho”, “Rumpelstiltskin”, entre
os irmãos Grimm – Jacob (1785-1863) e muitos outros. Nesses contos, a presença
Wilheim (1786-1859) – recolheram nar- da bruxa, do lobo e de um duende (res-
rativas e lendas populares da Alemanha, pectivamente) atuando como antagonistas,
absorvendo também as histórias de obras desempenha a mesma função das antigas
versando sobre o tema – Straparola, Basile, fadas más provenientes dos mitos e da
Perrault, além da tradução de As mil e uma tradição oral, e que agiam com a finali-
noites – e publicaram, em 1812, Kinder- dade de prejudicar os seres humanos. De
-und Haus-märchen (Contos para crianças forma maniqueísta, a fada assume a repre-
e famílias), incluindo alguns dos contos sentação do bem, da beleza e da espe-
de fadas mais conhecidos da literatura, rança, enquanto os opositores maléficos
entre eles “Branca de Neve”, “Cinderela”, cobram aspectos assustadores, “assimi-
“Rapunzel”, “Chapeuzinho Vermelho”, “A lando o paradigma do mal: sobre ela [a
bela adormecida” e “Hansel e Gretel” (“João bruxa] recai a rejeição social, ser colo-
e Maria”). Os trabalhos filológicos, os estu- cada à margem, tal como Lilith, Melusina,
dos sobre a antiguidade e o medievalismo a feiticeira perseguida pela Inquisição”
empreendidos pelos Grimm visavam à cons- (Michelli apud Gregorin Filho, p. 42).
trução de uma unidade cultural do povo Para Bruno Bethelheim (1980, p. 50),
alemão por meio das tradições e da língua em seu A psicanálise dos contos de fadas,
comum. De acordo com Jolles, a coletânea “o conto de fadas oferece materiais de
reuniu toda uma “diversidade num conceito fantasia que sugerem à criança sob forma
unificado e passou a ser, como tal, a base simbólica o significado de toda batalha
de todas as coletâneas ulteriores do século para conseguir uma autorrealização, e
XIX” (Jolles, 1976, p. 181). garante um final feliz. [...] Embora o conto
Outro expoente da literatura infantil de fadas ofereça imagens simbólicas fan-
e que se destacou pela criação de contos tásticas para a solução de problemas, a
de fadas é o dinamarquês Hans Christian problemática apresentada é comum”.

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dossiê literatura de entretenimento

Em seu texto “O narrador”, Walter pai, mandante, herói e falso herói. Da


Benjamin (1987, p. 215) considera que perspectiva da morfologia, o conto mara-
o narrador de contos de fadas continua vilhoso define-se como qualquer ação que
sendo o “primeiro narrador verdadeiro”, se desenrola partindo de
que libertou a narrativa da vinculação
mítica, permitindo à humanidade apren- “[...] uma malfeitoria ou de uma falta (a), e
der através de outros caminhos que não que passa por funções intermédias para ir
a sujeição ao mito e à implacável força acabar em casamento (w) ou em outras fun-
do destino. ções utilizadas como desfecho. A função-
Vladimir Propp, em sua obra Morfo- -limite pode ser a recompensa (f), alcançar
logia do conto, elaborou um estudo da o objeto da demanda ou, de uma maneira
coletânea Contos de fadas russos, em geral, a reparação da malfeitoria (k), o
oito volumes, trabalhando com 600 tex- socorro e a salvação durante a perseguição
tos populares, classificados no índice de (rs) etc. Chamamos a este desenrolar de
Aarne (1910) e ampliados por Thomp- ação uma sequência. Cada nova malfeito-
son (1928), com os números 300 a 749. ria ou prejuízo, cada nova falta dá lugar
Segundo Propp, os contos maravilhosos a uma nova sequência. Um conto pode
variam de acordo com o seu conteúdo, ter várias sequências e, quando se analisa
podendo ser: miraculosos, contos de costu- um texto, é necessário em primeiro lugar
mes e contos sobre animais (Propp, 2010, determinar de quantas sequências este se
p. 7). Para a análise, Propp dividiu a ação compõe” (Propp, 1983, p. 144).
em unidades de acordo com as funções
das personagens, sendo que cada uma se Nelly Novaes Coelho, com base no
refere a uma atitude, reação ou interven- modelo de Propp, considera que, embora
ção de alguma figura do conto. Segundo os contos de fadas apresentem uma pro-
ele, os contos populares compartilham blemática existencial, como a busca de
essas funções que se reiteram, obedecendo realização interior pelo amor, enquanto os
a uma mesma sequência. Propp define contos maravilhosos apresentam, em geral,
quatro teses que fundamentam a estru- problemáticas sociais, ambos apresentam
tura do conto maravilhoso: as funções estruturas narrativas idênticas. Coelho
das personagens como elementos cons- (2000, p. 109) propõe cinco elementos
tantes e permanentes; número limitado invariantes: 1) a efabulação expõe uma
de funções das personagens dentro do aspiração ou desígnio que instiga a ação
conto maravilhoso; a sequência das fun- do herói ou da heroína; 2) a condição
ções das personagens é sempre a mesma; inicial para a consumação desse desígnio
todos os contos maravilhosos pertencem a é o ato de sair de casa, numa viagem por
um único tipo de estrutura (Propp, 1983, um espaço desconhecido; 3) obstáculos
pp. 61-3). Ao todo, Propp descreve as 31 e dificuldades se interpõem, tentando
funções desenvolvidas pelas personagens, impedir o sucesso do herói ou heroína; 4)
agrupando-as em ações específicas: anta- é através de um auxiliar mágico ou sobre-
gonista, doador, auxiliar, princesa e seu natural que se estabelece como mediador

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entre o objetivo e o herói ou heroína que possibilitando um aprofundamento psico-
a conquista será alcançada; 5) por fim, o lógico das personagens. Embora os contos
herói ou heroína supera todas as adversi- de fadas artísticos tenham a tendência de
dades e conquista seu objetivo3. manter a indeterminação espaço-tempo-
A partir do século XIX, os contos de ral, o narrador pode incorporar ações e
fadas passam a receber um tratamento lugares que estejam mais próximos ao
artístico, que os diferencia tanto da tra- leitor, buscando assim uma identificação
dição oral como do mito, observando-se ou afinidade que permita uma associa-
uma adequação aos valores culturais e ção, mesmo que breve e fantasiosa, com
à moral vigente no contexto em que se a realidade conhecida. Cenário, vestes,
aplicam. Assim, muitos aspectos do conto alimentos e costumes compõem essas
tradicional são adaptados, expurgados ou variações possíveis.
reorganizados para atender aos interesses e Os contos de fadas artísticos subordi-
às regras sociais vigentes. Lüthi (1982, p. nam-se ao maravilhoso na medida em que
110) atribui a Wilhelm Grimm a “reformu- o tempo não obedece a uma passagem real:
lação estilística” que transformou o conto o tempo corre de acordo com a necessidade
popular literário (Buchmärchen) num conto da narrativa, sendo muitas vezes marcado
popular elevado (Kunstmärchen), que não pelo nascer do dia, pelo pôr do sol, pelas
pode ser confundido com os contos de estações do ano ou, simplesmente, pela
fadas da tradição oral (Volksmärchen) menção de que “os anos se passaram” ou
devido ao tratamento dispensado no refi- “e foram felizes para sempre”.
namento da linguagem e do estilo, fruto Os personagens não recebem nomes
da expressão da individualidade autoral e próprios, pois são reconhecidos mais por
da liberdade criativa. suas funções e características. Quando os
Nos contos de fadas artísticos (Kunst- nomes próprios surgem, estes são comuns
märchen), o narrador não se limita à e variam conforme o contexto do leitor:
terceira pessoa, podendo assumir uma Hänsel e Gretel tornam-se João e Maria,
perspectiva subjetiva e, muitas vezes, Juanito e Margarita, Jeannot e Margot,
emoldurada, ou seja, uma história inse- Giovanni e Margherita.
rida dentro de outra história, como bem
observa Volobuef (1993, p. 106). Por sua CONSIDERAÇÕES FINAIS: O CONTO
vez, tanto o espaço-tempo como conflitos
DE FADAS CONTEMPORÂNEO
secundários podem surgir ou ampliar-se,

A disseminação dos contos de fadas e


outras narrativas dedicadas ao público infan-
3 A divisão proposta por Coelho aproxima-se, em certa
medida, às etapas da jornada do herói anotadas pelo til ganhou novo fôlego, especialmente no
mitólogo Joseph Campbell em O herói de mil faces, século XXI, com a edição de novas obras,
na qual define o monomito, com base em estruturas
arquetípicas que se reiteram nas mais diversas cultu- traduções, adaptações e releituras publicadas
ras, em diferentes épocas. Divididas em três grandes
estágios – partida, iniciação, retorno –, Campbell fixa
em todo o mundo, incentivando a consa-
17 etapas para a jornada. gração de novos autores que deram voz a

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dossiê literatura de entretenimento

histórias locais; mas também com o resgate humanos e de uma dada sociedade, reve-
de escritoras (e suas obras) que sofreram lando sua ética, temores, ansiedades, com-
apagamento histórico; publicação de histó- portamentos compartilhados e tendências.
rias semelhantes à estrutura dos contos de Desse modo, se o lobo configura a metá-
fadas, mas que pertencem a culturas não fora do mal que está à espreita, mas que
europeias; versões de contos com releitu- poderá ser vencido através da inteligência
ras que respeitam temáticas contemporâneas e bondade do herói ou heroína, as fadas
referentes à mulher, inclusão e diversidade, são o auxílio mágico para uma pessoa
além de discussão de temas sociais e de em apuros, desde que ambas obedeçam
preservação do meio ambiente. Muitas são a critérios éticos e socialmente aceitos.
as polêmicas que cercam os contos de fadas, Como defende Ana Maria Machado (2010,
contudo, é consenso a relevância da leitura p. 13), os contos de fadas “fazem parte
desses contos como forma de apresentar aos de um patrimônio comum de todos nós,
pequenos leitores experiências e ensinamen- um tesouro que a humanidade vem pre-
tos que abordam questões como a morte, a servando pelos tempos afora. Cada um de
pobreza, a discriminação, a doença, a inveja nós tem direito a um quinhão dele [...]
e desentendimentos de todo tipo. quanto mais ele se divide, mais cresce”.
A fada, numa abordagem contemporânea, Angela Carter, na introdução de seu
traz consigo a possibilidade de realização livro A menina do capuz vermelho e
de sonhos e conquistas que parecem impos- outras histórias de dar medo (2011), con-
síveis para qualquer ser humano. Assim, sidera que a expressão “contos de fadas”
ela se consagra como elemento mediador engloba um “grande volume de narrativas
para que os humanos consigam alcançar infinitamente variadas que eram e ainda
seus sonhos e fantasias. Em oposição às são oralmente transmitidas e difundidas
fadas, estão bruxos, feiticeiros, animais mundo afora – histórias anônimas que
monstruosos e ogros, além de toda sorte podem ser reelaboradas vezes sem fim
de metáforas do mal: por quem as conta” (Carter, 2011, p. 7).
Embora sejam considerados uma forma
“Os contos de fadas são íntimos e pesso- de literatura infantil, os contos de fadas
ais, contando-nos sobre a busca de romance trazem a experiência da ancestralidade e,
e riquezas, de poder e privilégio e, o mais como afirma Estés (2005, p. 11), “sobre-
importante, sobre um caminho para sair da viveram à agressão e à opressão políti-
floresta e voltar à proteção e segurança da cas, à ascensão e à queda de civilizações,
casa. Dando um caráter terreno aos mitos aos massacres de gerações e a vastas
e pensando-os em termos humanos em vez migrações por terra e mar”.
de heroicos, os contos de fadas imprimem Essas histórias, alimentadas pela ora-
um efeito familiar às histórias no arquivo de lidade, sustentadas, multiplicadas e diver-
nossa imaginação coletiva” (Tatar, 2003, p. 9). sificadas pela escrita, continuam a povoar
a imaginação com a resistência da força
A linguagem simbólica dos contos de da linguagem, disseminadas pela litera-
fadas ressignifica, muitas vezes, valores tura e na virtualidade das telas.

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textos
Direitos humanos
na América Latina:
entre insurgência e libertação

César Augusto Costa

Q
PREMISSAS: DIREITOS HUMANOS
NA AMÉRICA LATINA

ual o sentido de abordar uma concep-


ção de direitos humanos (DH) a partir
de uma práxis insurgente de libertação
na América Latina? Em meio a tantas
outras abordagens, deve ser mais uma?
Lógico que não! Historicamente, indica-
mos que a trajetória dos DH tem seu fio
condutor desde a constituição do sistema-
-mundo moderno-colonial, pois “os espa-
nhóis invadiram a América para extirpar
o canibalismo, que ademais quase nem
existia, e os sacrifícios humanos. Livrar
os pobres indígenas desses sacrifícios hu-
manos. Esse foi o argumento que usaram

CÉSAR AUGUSTO COSTA é professor e


coordenador do Programa de Pós-Graduação
em Política Social e Direitos Humanos da
Universidade Católica de Pelotas (UCPEL).

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textos / Homenagem

para roubar tudo o que podiam e destruir sinato de seus povos (Ruiz, 2014). Desta
tudo o que lhes convinha” (Hinkelammert, forma, a temática dos DH se relaciona
2014, pp. 126-7). com várias dimensões da materialidade
Isto assinala que o capitalismo latino- da vida: democracia, economia, saúde,
-americano ressignificou as práticas de educação, habitação, natureza; o que
exclusão e violência, provocadas pela hie- também nos leva a outros temas, como
rarquização racial/étnica implantada pe- a luta antimanicomial, a pena de morte
lo sistema-mundo moderno-colonial, em etc. Seguindo na esteira de Ruiz (2014,
estruturas de longa duração formadas a p. 14), comumente os DH
partir do século XVI (Dussel, 1993; Porto-
-Gonçalves, 2015). Assim, a visão totali- “Tratam de acordos mínimos para situ-
zante e crítica da história e da situação ações de guerra ou conflitos civis [...]
atual do moderno capitalismo influenciou reconhecimento de cidadania em outros
teóricos latino-americanos a realizaram países; livre orientação e expressão se-
reflexões sobre os processos históricos xual; desenvolvimento de plenas poten-
de constituição de um marco global de cialidades de segmentos como crianças,
relações de poder, que significou para os adolescentes, mulheres, negros, indígenas
povos indígenas das Américas uma con- e tantos outros; falam de populações ri-
dição de subalternização e subordinação beirinhas, habitantes de quilombos ou das
(Resende; Nascimento, 2019). ruas das cidades, bem como do combate
Para a América Latina, a emergência a expressões reacionárias como racismo,
do sistema-mundo moderno-colonial sig- homofobia, xenofobia, tortura, e têm de-
nificou o começo da primeira forma de terminadas características com a divisão
domínio colonial europeu, gerando as con- da sociedade em classes”.
dições necessárias para aquilo que Qui-
jano (2000) chamou de colonialidade do Outra questão que cabe ressaltar é a
poder. No século XVI, se configuraram implicação da luta dos direitos humanos
alguns aspectos do padrão de poder que contra o sistema neoliberal que viola os
influenciariam não apenas o comporta- direitos das pessoas, vista no mercado ca-
mento social, político e econômico, como pitalista sacralizado, que nega aos pobres
também o cultural. e aos excluídos o direito básico de viver
Hodiernamente, os DH são uma cons- de forma digna. Nessa condição, a lógica
tante preocupação de diferentes sujeitos do mercado é reduzida ao cálculo, onde
sociais, de diversas opções teórico-políti- perdemos de vista a vida em comunidade
cas e opostas perspectivas. Sendo assim, e nas relações solidárias, porque é indis-
são utilizados para a defesa de modelos pensável para um “bem viver”, e é inútil
societários bem distintos: sociedades sem ao interesse capitalista (Mo Sung, 2014).
prisões, sem presídios clandestinos, sem Do ponto de vista epistêmico-político,
tortura, ou ausência de defesa em relação inegavelmente teremos que fazer um breve
a acusações recebidas, bem como justi- sobrevoo sobre o entendimento da práxis
ficativa para invasões de países e assas- a partir da teoria marxista e posterior de-

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lineamentos à luz da dimensão insurgente isolado, autônomo e não social” (Palazón
para a América Latina, pois assim com- Mayoral, 2007, pp. 7-8).
preendemos as articulações entre práxis
e direitos humanos, sua possibilidade e Sánchez Vázquez (2008) assinala sua
crítica radical contextualizada numa re- perspectiva de práxis como uma catego-
alidade injusta e opressora. ria central, uma vez que é, antes de tu-
Seguindo a trilha de nossa reflexão, ve- do, uma filosofia da práxis. Não somente
jamos em seguida como se relaciona a di- porque oferece à reflexão filosófica um
mensão da práxis na materialidade da vida. novo objeto, mas porque, especialmente
“quando se trata de transformar o mundo”,
A DIMENSÃO DA PRÁXIS forma parte como teoria do processo de
transformação do real, em que tal pro-
NA MATERIALIDADE DA VIDA cesso é interminável. Assim, a práxis é
um ato teleológico (com uma finalidade),
No processo dialético do conhecimen- no qual o sujeito modifica suas ações
to, o que interessa não é a crítica pela para alcançar um fim entre o subjetivo
crítica, mas a crítica e o conhecimento e o teórico. Ou seja,
para uma prática que altere e transfor-
me a realidade anterior no plano do co- “[...] as primeiras Teses sobre Feuer-
nhecimento e no plano histórico-social bach são as que perfilam sua noção
(Frigotto, 2004). Em termos dialéticos, a emancipadora da práxis (Marx a aplica
teoria materialista histórica sustenta que globalmente à produção, às artes, que
o conhecimento se dá na e pela práxis, satisfazem a expressão e o desejo de
que expressa a unidade indissolúvel de comunicar-se, e às revoluções). Sob a
duas dimensões distintas e diversas no perspectiva marxiana, o mundo não mu-
processo de conhecimento: teoria e ação, da somente pela prática: requer uma crí-
em função da ação para transformar (Fri- tica teórica (que inclui fins e táticas) e
gotto, 1989). Marx opõe-se ao idealismo, tampouco a teoria pura consegue fazê-lo.
que a isola da teoria, ou como atividade É indispensável a íntima conjugação de
alinhada pela consciência: ambos os fatores. Dessa forma, são os
fatos que provam os alcances da teoria
“A práxis age como fundamento porque mesma” (Palazón Mayoral, 2007, p. 7).
somente se conhece o mundo por meio
de sua atividade transformadora, pois a Nas Teses II e XI sobre Feuerbach,
dinâmica do pensamento funda-se na es- Marx (1988) situa a ação refletida (a prá-
fera humana. Pois a práxis exclui o ma- xis) como critério de verdade:
terialismo ingênuo, segundo o qual sujei-
to e objeto encontram-se em relação de “A questão se cabe ao pensamento huma-
exterioridade, e o idealismo, que ignora no uma verdade objetiva não é teórica,
os condicionamentos sociais da ação e mas prática. É na práxis que o homem
reação para centrar-se no sujeito como ser deve demonstrar a verdade, a saber, a

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textos / Homenagem

efetividade e o poder, a criteriosidade nega a prática como comportamento e


de seu pensamento. A disputa sobre a ação dados, mostrando que se trata de
efetividade ou não efetividade do pensa- processos históricos determinados pela
mento isolado da práxis é uma questão ação dos homens que, depois, passam a
puramente escolástica. [...] Os filósofos determinar suas ações. Revela o modo
se limitaram a interpretar o mundo di- pelo qual os homens criam suas condições
ferentemente, cabe transformá-lo”. de vida e são, depois, submetidos por es-
sas próprias condições. A prática, por sua
Segundo Lukács (2003), a práxis é o vez, nega a teoria como um saber sepa-
fazer com que não só o pensamento se rado e autônomo, como puro movimento
aproxime da realidade, mas a realidade de ideias se produzindo umas às outras
se aproxime do pensamento, tornando-se na cabeça dos teóricos. Nega a teoria
uma nova realidade. Lukács nos traz con- como um saber acabado que guiaria e
tribuições à reflexão, dando efetividade às comandaria de fora a ação dos homens. E
esferas cultural, política e ideológica nos negando a teoria enquanto saber separado
projetos societários de transformação, que do real que pretende governar esse real, a
constituem movimentos de aprendizado e prática faz com que a teoria se descubra
ação pelos quais saímos do senso comum como conhecimento das condições reais
estabelecido (consciência superficial do da prática existente, de sua alienação e
real) para a consciência crítica (conhe- de sua transformação”.
cimento que serve à transformação) da
totalidade social (Loureiro, 2007). Em sua dimensão revolucionária, a prá-
Na visão de Paulo Freire (1993, p. 67), xis é uma prática que aspira transformar
práxis “implica a ação e a reflexão dos radicalmente uma sociedade, detendo um
homens sobre o mundo para transformá- caráter vindouro porque “trabalha” em
-lo”. Para Freire, práxis pressupõe a ação favor de um melhor porvir humano. Uma
intersubjetiva entre sujeitos, sendo uma práxis revolucionária é aquela que aspira
atividade relativa à liberdade e às escolhas a uma ética social de viver bem com e
conscientes, feitas pela interação dialógica para os outros em instituições mais jus-
e pelas mediações que estabelecemos com tas. Supõe transformar as circunstâncias
o outro, com a sociedade e o mundo. sociais e o próprio ser humano, na qual
Segundo a concepção de Chauí (1980, p. 81): estes são condicionados por uma situa-
ção social injusta. Este ser-estar em uma
“A relação entre a teoria e a prática é uma situação provoca reações mais ou menos
relação simultânea e recíproca por meio revolucionárias ou, ao contrário, adapta-
da qual a teoria nega a prática enquanto das a um status quo (Palazón Mayoral,
prática imediata, isto é, nega a prática 2007). Assim, pode-se dizer que:
como um fato dado para revelá-lo em suas
mediações e como práxis social, ou seja, “A humanidade em seus atos e produ-
como atividade socialmente produzida e tos vai deixando pegadas, que revelam
produtora da existência social. A teoria a historicidade de seus pensamentos e

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desejos, de suas necessidades, de suas Para Dussel (2007), o sistema vigente
ambições e ideais que têm humanizado tem vítimas, as quais “não-podem-viver”
o entorno e vão humanizando as pessoas: plenamente. Sua “vontade-de-viver” foi
a consciência não só se projeta em sua negada pela “vontade-de-poder” dos capi-
obra, mas também se sabe projetada além talistas. O povo, antes de sua luta, é igno-
de suas próprias expectativas. A práxis rado, não existe, é uma coisa à disposição.
é, pois, subjetiva e coletiva; revela co- Quando os oprimidos e excluídos tomam
nhecimentos teóricos e práticos (supera consciência de sua situação, tornam-
unilateridades). Além do mais, e isto é se dissidentes. Os princípios políticos
básico, o trabalho de cada ser humano libertadores, incluindo os direitos humanos,
entra nas relações de produção relativas são princípios materiais em dimensões
a um âmbito socio-histórico” (Palazón ecológicas, econômicas e culturais. Destes
Mayoral, 2007, p. 4). dependem a afirmação e o aumento da
vida comunitária. A práxis da libertação,
DIREITOS HUMANOS: ENTRE para Dussel, é sempre um ato intersubje-
tivo, coletivo, de consenso recíproco. Sem
INSURGÊNCIA E LIBERTAÇÃO organização, o poder do povo é pura po-
tência, possibilidade, inexistência objetiva,
E o que podemos apontar sobre uma voluntarismo ideal. Segundo ele, o poder
práxis insurgente de direitos humanos fetichizado é a concepção de poder da
na América Latina? Vislumbremos o modernidade/colonialidade, sendo conse-
horizonte da insurgência à luz do que quência da “vontade-de-poder” como do-
Enrique Dussel propõe em suas 20 te- mínio sobre o povo, sobre os mais fracos,
ses de política (2007). Alicerçados no sobre os pobres. A política submete-se à
pensador mendocino, temos como desa- vontade das instituições fetichizadas, em
fio principal debater as recentes experi- favor de alguns membros particulares da
ências latino-americanas, marcadas por comunidade, ou, no caso dos países pós-
pautas autoritárias, fascistas, exclusivis- -coloniais como os latino-americanos, em
tas e anti-humanas, podendo pontuar aos favor dos Estados metropolitanos. Fetichi-
movimentos sociais momento oportuno zado é o poder autorreferente, repressor
para os trabalhadores, os povos originá- e antidemocrático. Fetichizado é o poder
rios e os excluídos travarem suas lutas para benefício do governante, do seu gru-
de libertação. Nesse sentido, o postulado, po, da classe dominante.
ou a utopia, é fundamental para orientar Em termos contextuais, Dussel (2007)
as ações e é usado para direcionar as aponta que o poder que reside sobre o povo
práticas a partir de diferentes visões de é um poder compartilhado simetricamente.
mundo. O político deve ter clareza estra- Da participação de todos é que emerge a
tégica na ação transformadora, trabalhar legitimidade das decisões. E a legitimidade
sobre táticas eficazes e escolher os seus permite a convicção interna das decisões
meios apropriados. A luta libertadora não tomadas. Tenho que obedecer às leis, mas
é por incluir, mas pela transformação. se participo das decisões (se sou origem

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textos / Homenagem

da lei), obedeço a mim mesmo. Se não Refletir dialeticamente sobre teoria e


participo, vejo a lei como estrangeira ou práxis significa conciliarmos pensamento
desleal (Dussel, 2016). Assim, o sistema e conhecimento em prol da compreensão
de leis é parte de um sistema de legitima- da realidade em seu movimento de trans-
ção, o que nos leva a refletir sobre o papel formação. A realidade crítica e transfor-
das instituições políticas, pois Dussel não madora da práxis está no desmascaramen-
acredita que se deva superar ou abolir as to das lógicas da exclusão e numa ação
instituições, mas compreender qual poder política coletiva que instaure uma socie-
elas buscam legitimar. dade mais justa socialmente. É pensar o
Assim, o pensamento insurgente, para “não homem” alienado economicamen-
os direitos humanos, é questionador e con- te, mas num processo de vir-a-ser dig-
testador porque exige o reexame da teoria namente. Situar a realidade vivida como
e a crítica da sua prática. Se é verdade semente da revolução social como meta
que a teoria nasce da prática e com ela e horizonte de realização do verdadeiro
se desenvolve dialeticamente, o modo de ser social. Situar uma episteme política
refletir se encontrará a serviço daqueles capaz de entender que a totalidade do
que são espoliados pelo modo de produção mundo e suas estruturas não foram dadas
vigente em suas estruturas de dominação e postas como acontecimentos objetivos,
colonial, estabelecendo com elas sua auto- como afirmavam os esquemas metafísicos.
crítica. Para tal caminhada, cumpre apontar A totalidade da América Latina deno-
uma perspectiva teórica e política dos DH ta reflexividade e ação, uma vez que se
que adensa conceitos como historicidade, opõe a premissas baseadas na teoria do
humanismo, a totalidade e a dialética que agir comunicativo (habermasiano), a qual
estão presentes em toda a vida social. permite consensos dirigidos a uma “falsa
Dussel, em sua Filosofia da libertação aparência” do real, bem como dos seus
(1986), orienta sua prática afirmando que “encobrimentos” orientados pela matriz
a libertação é antes de tudo uma tarefa colonial de poder. A América Latina passa
ética, nos colocando a serviço do outro fome, não quer entendimento, quer ação,
e auxiliando-o em sua libertação social e uma práxis de justiça e transformação!
política. Sua teoria é prática, na medida Desenvolver uma práxis insurgente de
em que é preciso libertar o ser humano libertação para os direitos humanos é
da exclusão, pois refletir é um ato segun- constatar no horizonte das relações so-
do. Tal aspecto serve para nos inserirmos ciais uma atividade orientada pela crítica
numa visão ampla e emancipatória do ser séria e competente (no sentido freiriano),
humano a partir de sua condição real de capaz de carregar o germe da justiça e
existência. Pois a práxis transformadora da luta política. Em suma, é compreen-
é, portanto, aquela que fornece e dá con- der que não é suficiente agir sem capa-
dições ao processo social para superar os cidade crítica, teórica e revolucionária.
antagonismos sociais entre seus sujeitos, Interessa a todos nós a transformação
visando à redefinição de lógicas excluden- pela atividade consciente, pela relação
tes que definem a sociedade capitalista. teoria-prática, modificando a materiali-

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dade e, principalmente, a subjetividade do. Consequentemente, para determinadas
das pessoas (Loureiro, 2006). apreensões críticas, é provocador refle-
Segundo Mo Sung (2014), lutar pelos tir sobre qual contribuição os DH podem
DH implica lutar pelo direito à vida digna, oferecer à construção de uma sociedade
contra o sistema de mercado sacralizado, justa e necessariamente anticapitalista e
uma vez que a única forma de nos rea- anticolonial. Eis nosso ponto de chegada
firmarmos como sujeitos humanos é não para refletir sobre direitos humanos, in-
nos deixarmos ser desumanizados pelas surgência e a necessidade de libertação
formas impostas de reprodução do merca- na América Latina.

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O que é cultura?
Reflexões para uma
sociedade (pós-)pandêmica

José Ricardo Vitória


Magnus Luiz Emmendoerfer

D
esde 1988, a cultura passa a ser conside-
rada um direito, inclusive relacionado aos
direitos humanos fundamentais no Brasil.

Este trabalho contou com o apoio do Conselho Nacional


de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Pro-
cesso 309363/2019-5), da Fundação de Amparo à Pesquisa
de Minas Gerais (Fapemig – Processo PPM-00049-18) e da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes – Financiamento 001).

JOSÉ RICARDO VITÓRIA é produtor cultural,


arte-educador e pesquisador do Grupo de
Pesquisa em Gestão e Desenvolvimento
de Territórios Criativos (GDTeC) do Núcleo
de Administração e Políticas Públicas (NAP2)
da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

MAGNUS LUIZ EMMENDOERFER é professor do


Programa de Pós-Graduação em Administração
Pública da UFV e coordenador do Grupo de
Pesquisa em Gestão e Desenvolvimento
de Territórios Criativos (GDTeC) do Núcleo de
Administração e Políticas Públicas (NAP2) da UFV.

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textos / Homenagem

Porém, na prática, esta teoria parece ser norteadora: “o que é cultura?”. Não é o
diferente, uma vez que nem todas as pes- problema de se definir cultura em um tra-
soas têm condições equitativas de acesso balho ou artigo acadêmico, nos quais se
ou provimento de bens e serviços cultu- estabelece a área que se deseja trabalhar e
rais, apesar de o Estado indicar garantir se aplicam os conceitos pertinentes àquele
isso em sua Constituição. campo. Aqui é colocada a inquietude sobre
Antes da pandemia de covid-19, foi o que responder de imediato a alguém – a
observado um progressivo desmonte dos um leigo, por exemplo – que perguntasse o
arranjos públicos institucionais no setor que é cultura. Não obstante, esta resposta,
cultural e retrações no fomento das ativi- mesmo ainda incompleta, não deve causar
dades culturais. Os motivos dessa retração contradição entre os inúmeros conceitos
por parte dos governos que representam e definições de cultura existentes. Dessa
o Estado em ação são diversos, incluindo forma, após vários anos atuando no meio
crises fiscais, ambientais, políticas e eco- cultural e estudando sobre cultura, em um
nômicas, além dos efeitos da pandemia que momento de reflexão surgiu a seguinte
têm afetado os setores culturais e criativos proposição: enquanto grupo e/ou sociedade,
nas cidades (Emmendoerfer; Fioravante, cultura é tudo aquilo que cultivamos e/ou
2021). Frente a isso, resgatar e refletir tudo aquilo pelo qual somos cultivados.
sobre os sentidos da cultura em uma so- A partir dessa afirmativa, este ensaio
ciedade pós-pandêmica, ou seja, após a (Burgoon, 2001) foi desenvolvido. Para isso,
instauração mundial da covid-19 como são apresentados os significados e origens
pandemia reconhecida pela Organização do termo em que a palavra “cultivar” é
Mundial da Saúde (OMS, 2020), revela- usada (por vezes, em seu sentido lato e, por
-se algo relevante no contexto brasileiro. outras, de forma metafórica) para ilustrar
Definir cultura não é tarefa simples. O o que está sendo proposto. Posteriormente
termo evoca interesses multidisciplinares, argumenta-se a afirmativa a partir de alguns
sendo estudado em áreas como sociologia, teóricos que estudaram e desenvolveram
antropologia, história, comunicação, admi- suas próprias definições de cultura. As-
nistração, economia, entre outras. Em cada sim, buscou-se mostrar que, independente
uma dessas áreas, é trabalhado a partir de da definição dada à cultura, essa pode ser
distintos enfoques e usos, sendo que par- incluída na afirmativa supracitada.
te dessa complexa distinção semântica se
deve ao próprio desenvolvimento histórico
do termo, resultando em vários conceitos ANTECEDENTES, APROXIMAÇÕES
que, às vezes, são contraditórios. Isso torna E DIFERENÇAS NAS
“cultura” um dos termos principais nas ci-
DEFINIÇÕES DE CULTURA
ências humanas, a ponto de a antropologia
se constituir como ciência quase somente
em torno desse conceito (Canedo, 2009). Ao procurarmos nos dicionários o sig-
O presente trabalho surge da inquie- nificado e origem do termo “cultivar”,
tação gerada ao ouvir a seguinte questão encontramos uma variedade de significa-

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dos e sinônimos, cada qual com algumas -uro e -ura são formas verbais de indi-
variações. O dicionário Michaelis (2021) car projeto, algo que pode acontecer. Por
define “cultivar” como: 1) Na agricultu- sua vez, o termo “cultura” tem origem
ra: preparar a terra, removendo-a, ferti- no verbo colo, em latim, que significava
lizando-a e regando-a; amanhar, lavrar. “eu cultivo”, especificamente, “eu culti-
Fazer o cultivo de determinadas plantas vo o solo”. A primeira acepção de colo
ou espécies vegetais; desenvolver a agri- estava ligada ao mundo agrário, pois os
cultura. 2) Criar algo artificialmente com antigos romanos começaram efetivamente
o emprego de técnicas especiais. 3) Criar pela agricultura. Assim, o termo “cultura”
animais. 4) Desenvolver aptidões físicas, envolvia “aquilo que deve ser cultivado”.
intelectuais ou morais. 5) Dar a alguém Era um modo verbal que tinha sempre
ou a si mesmo um bom nível de educação alguma relação com o futuro; tanto que a
e erudição; educar(-se), formar(-se). 6) própria palavra tem essa terminação -ura,
Criar ou passar a ter algo. O Dicionário que é uma desinência de futuro, daqui-
Priberam da Língua Portuguesa (2021) lo que vai acontecer, da aventura. Então
define cultivar como: verbo transitivo. 1) a cultura seria, basicamente, o campo a
Preparar e cuidar da terra para que pro- ser arado, na perspectiva de quem vai
duza. 2) [Por extensão] Aplicar-se ao de- trabalhar a terra (Bosi, 2008).
senvolvimento de. 3) Dedicar-se a ou co- Os romanos colonizaram a Grécia e
mo verbo pronominal. 4) Desenvolver-se; tiveram muita influência da cultura gre-
aperfeiçoar-se. Ainda foram encontradas ga, mas não queriam usar os termos gre-
outras definições, todavia, todas giram em gos. Assim, na busca de uma palavra que
torno dos mesmos sentidos aqui expostos. substituísse a paideia, que significava o
Na maioria dos casos, sua etimologia está “conjunto de conhecimentos que devia ser
relacionada ao latim medieval cultivàre, transmitido às crianças” (paidós), os ro-
ou variações em outras línguas. manos passaram a usar a palavra “cultu-
Segundo Bosi (2008), “cultura” exprime ra”, que anteriormente tinha um sentido
a ideia de compartilhamento de conhe- puramente material, em relação à vida
cimentos e valores entre gerações, insti- agrária, para um sentido intelectual e
tuições e territórios, subsistindo sempre moral, indicando um conjunto de ideias
a ideia de algo estabelecido em um pas- e valores (Bosi, 2008).
sado – que pode ser próximo ou remoto. De acordo com Crespi e Cardoso
Dessa forma, “cada vez mais a dimen- (1997), os gregos, ao utilizarem o con-
são cumulativa, de passado, se impõe, e ceito de paideia, consideravam “culto”
nossa memória tem que ficar cada vez o indivíduo que, assimilando os conhe-
mais enriquecida, porque o tempo passa cimentos e valores socialmente transmi-
e a memória cresce proporcionalmente” tidos, conseguisse traduzi-los em quali-
(Bosi, 2008). Todavia o autor enfatiza que dades pessoais. Este mesmo conceito é
etimologicamente a palavra “cultura” tem igualmente usado na Roma antiga sob o
um sentido de futuro, que é a dimensão termo “cultura”, que indicava inicialmen-
do projeto. As palavras terminadas em te a ação de cultivar a terra e criar o

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textos / Homenagem

gado – para Crespi e Cardoso (1997), a pela sua cultura e avalia-se a cultura pe-
palavra “cultura” deriva do latim cole- lo progresso que traz a uma civilização”
re. O termo foi sucessivamente alargado, (Chauí, 2008, p. 55). O modelo que servia
em sentido metafórico, até a “cultura do como referência aos iluministas era o da
espírito”. Esse termo humanista foi am- cultura capitalista da Europa ocidental, em
plamente usado pelos filósofos Cícero e que os processos de exploração e domina-
Horácio e posteriormente retomado por ção eram justificados e legitimados ao se
Santo Agostinho, sendo possivelmente usar parâmetros de avaliação e hierarqui-
o que melhor corresponde ao conceito zação da cultura (Chauí, 2008). A partir
grego de paideia, um modo de cultivar da França, o termo “civilização” estende-
o espírito. A utilização, em sentido figu- -se rapidamente à Inglaterra (civilization),
rado, do termo “cultura” veio a alargar-se enquanto na Alemanha é, sobretudo, a pa-
ulteriormente até incluir, além do culti- lavra Kultur que assume um significado
var das próprias faculdades espirituais, análogo (Crespi; Cardoso, 1997).
também o da língua, da arte, das letras Por sua vez, a palavra “culto” vem do
e das ciências (Crespi; Cardoso, 1997). particípio passado de colo: cultus, que é
A partir da consolidação do Iluminis- aquilo que já foi trabalhado. Depois, pas-
mo, no século XVIII, o significado do sou a ter um sentido espiritual/religioso,
termo “cultura” é alargado, integrando o ou o contrário – não se sabe ao certo
patrimônio universal dos conhecimentos se o significado religioso foi anterior ou
e valores formativos ao longo da história posterior ao significado material. Contu-
da humanidade, e, como tal, é aberto a do, “cultura” passou de um significado
todos, constituindo, enquanto depósito da material para um significado ideal e in-
memória coletiva, uma fonte constante de telectual (Bosi, 2008).
enriquecimento da experiência. Contudo, Assim, a gênese do conceito de cultura
é nesse período que igualmente se afirma em termos científicos tem, por um lado, a
o conceito de “civilidade ou civilização, transformação do significado de cultura,
exprimindo o refinamento cultural dos ocorrida no século XVIII, de formação
costumes, em oposição à pretensa barbárie do espírito para um conjunto objetivo de
das origens ou a dos povos considerados representações, modelos de comportamen-
não civilizados” (Crespi; Cardoso, 1997, to, regras e valores enquanto patrimônio
p. 15). No Iluminismo, a cultura é uma comum realizado ao longo da evolução
forma de avaliar o quanto uma sociedade histórica e, por outro lado, a nova cons-
é civilizada. Dessa forma a cultura pas- ciência que se distingue do caráter histó-
sa a ser percebida como um conjunto de rico – relativo às diversas configurações
práticas artísticas, científicas e filosóficas culturais, conforme o tipo de sociedade
que permite a existência de uma hierar- e as diferentes épocas (Crespi; Cardoso,
quização dos valores de cada indivíduo 1997, p. 16). Tais observações etimológi-
ou classe na sociedade. Assim, a cultura cas são necessárias ao observarmos que
passa a ser associada ao progresso: “[...] ambos os significados sobreviveram nas
avalia-se o progresso de uma civilização línguas modernas. Pode-se falar em cul-

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turas do arroz, da soja, do trigo, enten- o caráter de aprendizado da cultura em
dendo-se que é uma terra cultivada; mas, oposição à ideia de transmissão biológica:
com frequência, tem-se usado a palavra “[cultura] tomada em seu amplo sentido
“cultura” na acepção ideal, que é muito etnográfico, é este todo complexo que in-
rica, porque traz dentro de si, na forma clui conhecimentos, crenças, arte, moral,
verbal terminada em -ura, as ideias de leis, costumes ou qualquer outra capaci-
projeto e de futuro (Bosi, 2008). dade ou hábitos adquiridos pelo homem
como membro de uma sociedade” (Laraia,
PLURALIDADES NAS 2001, p. 25). Nesse sentido, os conheci-
mentos são cultivados pelos ensinamentos
DEFINIÇÕES DE CULTURA dos pais e familiares, pelo que se ensina
nas escolas, ou pelas várias outras formas
Rapport (2014) argumenta que a cultura através das quais adquirimos conhecimen-
pode ser vista de maneira contrastante to ao longo de nossas vidas.
quando discutida sob os pontos de vista As crenças existem porque foram cul-
singular e plural. O ponto de vista singu- tivadas ao longo do tempo por outras pes-
lar é parecido com o dos iluministas, no soas, passando de geração em geração. Uma
sentido progressista e desenvolvimentista, pessoa só é cristã, muçulmana ou judia se
em que, quanto mais a criatividade e a alguém lhe ensinou e ela foi por um longo
racionalidade são cultivadas, mais cul- tempo cultivada por esses ensinamentos.
tas são as sociedades. Assim, “os seres Mesmo que sua “conversão” seja tardia, só
humanos se tornaram mais ‘cultivados’ ocorreu porque, em algum momento, a pes-
à medida que progrediam ao longo do soa foi cultivada por aquela ideologia, seja
tempo intelectualmente, espiritualmente por outras pessoas ou pelo conhecimento
e esteticamente” (Rapport, 2014, p.19). adquirido dos “livros sagrados”.
Por outro lado, culturas vistas como algo A moral é reflexo daquilo que a socie-
plural – ponto de vista da antropologia dade cultiva ao longo da história, assim
moderna – expressam-se apenas como di- como as leis são reflexos dos parâmetros
ferentes e não como superiores, em que morais e éticos construídos (cultivados)
cada povo cultiva aquilo que acredita ser ao longo do tempo. Dessa forma, tanto
o melhor modo de viver. Assim, “cada as leis quanto o que é considerado mo-
cultura pertence a um modo de vida espe- ral e/ou ético são mutáveis e passíveis
cífico, historicamente contingente, que foi de serem revistos e recultivados, assim
expressa através de seu conjunto específi- como as definições de cultura.
co de artefatos, instituições e padrões de Quanto à arte, podemos destacar dois
comportamento” (Rapport, 2014, p. 20). pontos: de preservação e de ruptura. O
Uma das concepções de cultura mais primeiro vem no sentido de cultivar aqui-
difundidas é sintetizada por Edward Bur- lo que é tradicional, e por meio da arte
nett Tylor (1832-1917), o primeiro a for- pode-se despertar o interesse dos mais
mular o conceito de cultura do ponto de jovens (bem como dos mais velhos) e
vista antropológico, em 1871, marcando transmitir tradições e conhecimentos

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textos / Homenagem

apreendidos por determinado povo. Já o suas experimentações e de suas rupturas,


sentido de ruptura está vinculado ao papel inclusive, com a tradição”.
da arte de cultivar novos pensamentos,
gerar novas reflexões, despertar novos Outro sentido muito comumente atri-
sentimentos nos demais, como se culti- buído à palavra “cultura” é aquele que
vasse um novo “cultivar” – como expresso a define como produção artística e inte-
na agricultura. Nesse sentido, Bourdieu lectual. Assim, podemos falar de cultura
(2007, p. 11) afirma que: erudita, cultura popular, cultura de massa,
ou seja, todas as expressões que desig-
“A intenção pura do artista é a de um nam conceitos específicos para a produção
produtor que pretende ser autônomo, ou intelectual de determinados grupos so-
seja, inteiramente dono do seu produto, ciais (Silva; Silva, 2009). Segundo Cunha
que tende a recusar não só os ‘progra- (2003), esse sentido costuma ser encontra-
mas’ impostos a priori pelos intelectuais do no âmbito do poder público em suas
e letrados, mas também com a velha hie- organizações (ministérios e secretarias de
rarquia do fazer e do dizer, as interpreta- Cultura), nos meios de comunicação, em
ções acrescentadas a posteriori sobre sua instituições educativas e em mercados de
obra: a produção de uma ‘obra aberta’, arte e de entretenimento.
intrínseca e deliberadamente polissêmi- Com esse enfoque, Bourdieu (2007)
ca, pode ser assim compreendida como o indica a existência de uma ideologia ca-
último estágio da conquista da autonomia rismática onde os gostos, em matéria de
artística pelos poetas e – sem dúvida, a cultura legítima, são considerados um dom
sua imagem – pelos pintores, que, durante da natureza. Contudo, a observação cien-
muito tempo, permaneceram tributários tífica mostra que as necessidades culturais
dos escritores e de seu trabalho de ‘fazer- são produto da educação e por isso de-
-ver’ e de ‘fazer-valer’. Afirmar a auto- vem ser cultivadas. Com isso, as famílias
nomia da produção e conferir o primado mais abastadas têm melhores condições de
àquilo de que o artista é senhor, ou seja, consumirem e usufruírem dos bens cultu-
a forma, a maneira e o estilo, em relação rais, bem como cultivar em seus sucesso-
ao ‘indivíduo’, referente exterior, por on- res novas necessidade culturais. Condições
de se introduz a subordinação a funções essas que as famílias menos afortunadas
– ainda que se tratasse da mais elemen- não possuem, podendo cultivar nos seus
tar, ou seja, a de representar, significar e descendentes apenas aquilo que lhes foi
dizer algo. E, ao mesmo tempo, recusar oferecido (cultivado) anteriormente.
o reconhecimento de qualquer outra ne-
cessidade além daquela que se encontra “A pesquisa estabelece que todas as práticas
inscrita na tradição própria da disciplina culturais (frequência a museus, concertos,
artística considerada; trata-se de passar de exposições, leituras etc.) e as preferências
uma arte que imita a natureza para uma em matéria de literatura, pintura ou música
arte que imita a arte, encontrando, em sua estão estreitamente associadas ao nível de
história própria, o princípio exclusivo de instrução (avaliado pelo diploma escolar ou

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pelo número de anos de estudo) e, secunda- dança, dos sistemas de relações sociais,
riamente, à origem social. O peso relativo particularmente os sistemas de parentesco
da educação familiar e da educação pro- ou a estrutura da família, das relações
priamente escolar (cuja eficácia e duração de poder, da guerra e da paz, da noção
dependem estreitamente da origem social) de vida e morte. A cultura passa a ser
varia segundo o grau de reconhecimento compreendida como o campo no qual os
e ensino dispensado às diferentes práticas sujeitos humanos elaboram símbolos e sig-
culturais pelo sistema escolar; além dis- nos, instituem as práticas e os valores,
so, a influência da origem social, no caso definem para si próprios o possível e o
em que todas as outras variáveis sejam se- impossível, o sentido da linha do tempo
melhantes, atinge seu auge em matéria de (passado, presente e futuro), as diferen-
cultura livre ou de cultura de vanguarda” ças no interior do espaço (o sentido do
(Bourdieu, 2007, p. 9). próximo e do distante, do grande e do
pequeno, do visível e do invisível), os va-
O conceito de cultura contemplado nas lores como o verdadeiro e o falso, o belo
obras de Marilena Chauí é entendido como e o feio, o justo e o injusto, instauram
algo próprio do ser humano: o conjunto a ideia de lei e, portanto, do permitido
de atividades e costumes humanos que e do proibido, determinam o sentido da
tem ligação com o meio em que ele vive. vida e da morte e das relações entre o
sagrado e o profano” (Chauí, 2008, p. 57).
“[...] Em sentido amplo, cultura é o cam-
po simbólico e material das atividades As diferenças culturais são ressaltadas
humanas, estudada pela etnografia, etno- por Chauí (2008) indicando a importância
logia e antropologia, além da filosofia. de observar a pluralidade cultural de ca-
Em sentido restrito, isto é, articulada à da sociedade, e o quanto os “dominados”
divisão social do trabalho, tende a iden- vivem em constante e dinâmica interação
tificar-se como a posse de conhecimentos com a estrutura social e a cultura domi-
e habilidades e gostos específicos, com nante, e não podem ser compreendidos
privilégios de classe, e leva à distinção como algo à margem ou isolado que deve
entre cultos e incultos, de onde partirá ser superado por um suposto progresso. O
a diferença entre cultura letrada erudita reconhecimento de que cada cultura tem
e cultura popular” (Chauí, 1986, p. 14). sua própria validade e coerência e não
pode ser julgada a partir dos critérios que
“[...] A partir de então, o termo cultura nos forem familiares, também conhecido
passa a ter uma abrangência que não pos- como relativismo cultural, vai colocando
suía antes, sendo agora entendida como as bases da difusa percepção de cultura.
produção e criação da linguagem, da re- Assim, segundo Crespi e Cardoso (1997),
ligião, da sexualidade, dos instrumentos gradualmente aumenta a consciência de
e das formas do trabalho, das formas da que os conceitos utilizados na representa-
habitação, do vestuário e da culinária, ção e interpretação da realidade dependem
das expressões de lazer, da música, da da diversidade dos lugares, bem como das

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textos / Homenagem

práticas de vida, que são resultado dos mais importante que outra, isso depende
costumes historicamente estabelecidos e do que cada grupo ou sociedade cultiva
dos hábitos que, à primeira vista, eram para si e considera importante do seu
extravagantes, podendo surgir como acei- ponto de vista.
táveis se for considerado o ambiente so- Tudo aquilo pelo qual um dia fomos
cial no qual encontraram as suas origens. “cultivados” ganha novos significados ao
longo de nosso crescimento, de nossa vida
e, sem perceber ou saber ao certo quando
CULTURA COMO PRÁTICAS, isso acontece, passamos a ser não mais
SOCIABILIDADES E ORIENTAÇÕES apenas cultivados, mas também cultiva-
dores do que acreditamos ser importante.
SIMBÓLICAS E MATERIAIS
Quanto a isso, Crespi e Cardoso (1997,
pp. 25-6) assinalam:
Crespi e Cardoso (1997) notam que sur-
gem diversos elementos no termo “cultura”, “Na prática, surge como confirmado o fato
ressaltando, por um lado, a dimensão des- de que cada indivíduo nasce no seio de um
critiva e cognitiva da cultura e, por outro, contexto social já formado e de uma cul-
a prescritiva. A primeira dimensão evoca tura específica que lhe é transmitida pelos
“as crenças e as representações sociais da adultos através da linguagem, dos hábitos
realidade natural e social, ou as imagens alimentares, das expressões de afeto, das
do mundo e da vida, que contribuem para regras para a educação, das narrações inter-
explicar e definir as identidades indivi- pretativas da vida e do mundo, da definição
duais, as unidades sociais, os fenômenos dos papéis e de tantos outros aspectos. Só
naturais”; já a segunda, um conjunto de num segundo momento o indivíduo cons-
valores que “indicam os objetivos ideais a ciente, através de uma elaboração pessoal
perseguir, e de normas (modelos de ação, dos significados que lhe foram transmiti-
definição dos papéis, regras, princípios dos, e levando à prática a capacidade de
morais, leis jurídicas etc.) que indicam o negação, que inicialmente referimos, pode
modo segundo o qual os indivíduos e as transformar tais significados até à produção
coletividades devem comportar-se” (Crespi; de novos significados”.
Cardoso, 1997, p. 14).
Metaforicamente, podemos verificar Não obstante, tudo que é cultivado neces-
que, apesar de o quilo do café ser mais sita de ferramentas para o cultivo. A cultura
caro que o do feijão ou do arroz no mer- surge então como um conjunto polivalente,
cado, não podemos dizer que o café tem diversificado e frequentemente heterogêneo
mais valor que os demais produtos. Ele de representações, códigos, leis, rituais, mo-
apenas adquiriu um valor de troca ou, delos de comportamento, valores que cons-
nesse caso, um valor financeiro maior tituem, em cada situação social específica,
que os dos outros, pela lei socioeconô- um conjunto de recursos, ou ferramentas,
mica da oferta e da procura. Também cuja função própria surge de acordo com
não podemos dizer que uma cultura é as contingências (Crespi; Cardoso, 1997).

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Um olhar parecido com o que aqui liberdade e necessidade, à ideia de um
se coloca foi contemplado por Eagleton projeto consciente e um excedente não
(2011). Para este autor, a cultura pode planeável (Eagleton, 2011).
ser vista como um meio de autorreno- A cultura se volta, então, para duas
vação constante da natureza e, assim, a direções opostas, indicando uma divisão
própria natureza produz os meios de sua dentro do próprio indivíduo, entre o que
transcendência, sendo sempre, de uma se cultiva e se refina, e aquilo de que
maneira ou outra, cultural. As culturas, se constitui a matéria-prima para esse
portanto, são construídas com base em refinamento. Como “cultura”, a palavra
uma incessante relação com a natureza “natureza” significa tanto o que está ao
ou o trabalho. Etimologicamente, “cul- nosso redor como o que se encontra em
tura” remete ao crescimento espontâneo, nosso interior, constituindo uma questão
como em “cultivo agrícola”, e, portanto, de autossuperação e de autorrealização.
cultural é aquilo que é mutável, forma- Nesse sentido, se somos seres culturais,
do por um material autônomo, dotado também somos parte da natureza que tra-
de certa obstinação advinda da natureza balhamos. A cultura já deve representar
(Eagleton, 2011). um potencial dentro da natureza humana,
Por outro lado, “cultura” também é um se for para que vingue, mas a própria
conceito que envolve regras e promove necessidade de cultura sugere que há al-
uma interação entre a regulação e a não go faltando na natureza (Eagleton, 2011).
regulação. Não se deve, porém, interpretar A cultura, mais do que a herança ge-
toda ação como um seguimento de regra, nética, determina o comportamento das
pois tanto as regras como as culturas não pessoas e justifica suas realizações em
são regidas estritamente por determina- seu contexto social. Por meio da cultura
ções, nem mesmo puramente aleatórias: o ser humano é capaz de superar obstácu-
envolvem a ideia de liberdade. Portanto, a los e situações complicadas e modificar
ideia de cultura envolve uma dupla recusa: o seu hábitat, embora tal modificação
do determinismo orgânico e da autono- nem sempre seja a mais favorável para
mia do espírito, rejeitando o naturalismo a humanidade. Desse modo, a cultura
(pois há algo na natureza que a excede e pode ser definida como algo adquirido,
a anula) e o idealismo (pois mesmo o mais aprendido e também acumulativo, resul-
nobre agir humano tem raízes humildes tante da experiência de várias gerações.
na biologia e no ambiente natural). Dessa Enquanto aprendiz, o ser humano pode
forma, é um termo descritivo e analítico, sempre criar, inventar, mudar, podendo
que compreende uma tensão entre fazer ser também um criador de cultura. Por
e ser feito, racionalidade e espontanei- isso, a cultura está sempre em processo
dade. Cultura alude ao contraste político de mudança, podendo, em muitos ca-
entre evolução (orgânica e espontânea) e sos, ser modificada com muita rapidez
revolução (artificial e forçada), sugerindo e violência, dependendo dos processos
como se poderia ir além desta antítese a que for submetida. Dessa forma, o ser
batida, ao combinar crescimento e cálculo, humano não é somente o produto da cul-

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textos / Homenagem

tura, mas igualmente produtor de cultura Uma cultura de café existe quando
(Laraia, 2001). um agricultor a cultiva. E isso se aplica
Assim, poderíamos ter uma variedade a qualquer cultivo agrícola. Quando um
de possibilidades para conceber ao menos compositor cria uma música, ele pretende
uma noção de cultura que faça sentido. cultivar aquela mensagem ou sentimento
Pensada como um conjunto de ideias, va- transmitido pela música em outras pes-
lores e conhecimentos, o termo “cultura” soas. Assim como quando um ator ao en-
envolve, em primeiro lugar, a dimensão cenar, ou um pintor, usa de seus recursos
do passado, aproximando-se da noção de para transmitir algo. Eles estão fazendo
patrimônio. Isso porque, a cada ano que cultura, ou seja, estão cultivando algo em
passa, acumula mais conhecimentos que alguém. Em contrapartida, uma plantação
foram herdados de outras gerações. Con- de arroz é uma cultura, porque ela foi
tudo, ao voltarmos à etimologia, cada vez cultivada. Quando consumimos algum bem
mais nos preocupamos com a dimensão cultural, aquilo é cultivado em nós. Todo
de futuro, que é a dimensão do projeto. ensinamento, crenças, modos de pensar e
Logo, não basta que herdemos do passado agir são considerados uma cultura, por-
todas essas riquezas, é preciso continuar que nos foram cultivados e os tornamos
aprofundando discussões como esta em- nossa cultura, assim como nós cultivamos
preendida neste texto; se a cultura está aquilo para as gerações futuras, mesmo
sempre in progress, ela está sempre em em situações de crises e de mudanças de
fase de desvios, não é algo estabelecido hábitos, quando comparadas às situações,
para sempre. Na contemporaneidade, é antes e depois, da instauração da pande-
importante direcionarmos nossas preo- mia de covid-19.
cupações para criar projetos e políticas
de cultura; além desta criação, os nossos CONSIDERAÇÕES FINAIS
ideais democráticos exigem socialização
de conhecimentos. Dessa forma, “não só
cavar na matéria em si da cultura, mas A partir da questão norteadora deste
também estendê-la na linha da comuni- artigo, observou-se que para se definir
cação, na linha da socialização; e fazer cultura há necessidade de se contemplar
com que este bem seja repartido, distri- diversos elementos, inclusive em interse-
buído, da maneira mais justa e mais ampla ções, para ser completa, a depender de
possível, o que é próprio da sociedade qual área esteja sendo discutida; de forma
democrática” (Bosi, 2008). sintética, ela abrange todos os conceitos
Através do exposto, vemos a cultura de cultura, incluindo os dos setores agrá-
como aquilo que cultivamos, no senti- rios e organizacionais.
do do que buscamos para o futuro, co- Se pensarmos no campo das organiza-
mo projeto, e cultura como aquilo pelo ções, a partir dessa afirmação, poderemos
qual somos cultivados, aquilo que nos refletir sobre o que é cultura organiza-
foi transmitido ao longo dos tempos, no cional (Schein, 2016); ou sobre quando
sentido de passado. ela é o que os proprietários ou acionistas

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acreditam; ou, ainda, quando ela é um ou sociedade, cultura é tudo aquilo que
acumulado da cultura de seus colaborado- cultivamos e/ou tudo aquilo pelo qual
res. Também no campo das organizações somos cultivados. E, nesse sentido e na
governamentais, pode-se questionar o pa- atual conjuntura brasileira, as interseções
pel da cultura nas políticas públicas; o que culturais se revelam essenciais, podendo
deve ser cultivado para que determinada ser cultivadas com base em valores virtu-
política pública alcance seus objetivos; ou osos como a solidariedade democrática,
até o que as políticas públicas de cultura de forma saudável, equitativa, inclusiva e
têm cultivado. resiliente. E se, com base nesse cultivo,
Não obstante, diante do exposto, acre- tratarmos a cultura como prática, segundo
dita-se que, quando alguém for questio- Lewin (1952), seu conteúdo pode compor
nado sobre o que é cultura, pode-se res- uma boa teoria para orientar nossas ações,
ponder sem aflição: enquanto grupo e/ instituições e políticas públicas.

REFERÊNCIAS

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arte
Foto: Estúdio em Obras
Na raiz do tempo,
a matriz da cor
Claudinei Roberto da Silva
arte sérgio lucena

S
érgio Lucena, artista parai- na superfície sensual das telas. Assim,
bano radicado em São nas narrações plásticas que o pintor nos
Paulo, aqui foi primeira- apresenta está implicada uma espécie de
mente acolhido pelo mes- cosmogonia derivada das festas brasileiras
tre pintor Aldemir Mar- profanas e sacras, frequentemente asso-
tins, cearense, que, como ciadas às manifestações da religiosidade
Lucena, soube traduzir na de matriz africana, e também do sincre-
sua obra questões relevantes tismo cultural caboclo e originário, das
que, em Sérgio Lucena, são sínteses da arquitetura de viés popular
tornadas claras através do e nordestino. Enfim, os cruzamentos, as
projeto pictórico desenvol- encruzilhadas e os encontros (nem sempre
vido pelo artista ao longo de, pelo menos, pacíficos) que são marcas indeléveis da
quatro décadas de trabalho intensamente nossa cultura também contribuem para a
dedicado à pintura. A um e a outro artista realização dessa pintura, que, por com-
interessam suas raízes, seu lugar de ori- plexa, não desmente ou contesta certas
gem, certo território natal onde a força conquistas das escolas de pintura do Oci-
pungente e sempre presente da luz solar é dente, notadamente daquelas acontecidas
transmutada em experiência sensível atra- na Europa e nos Estados Unidos.
vés da cor que a pintura traduz e celebra. O resultado, verificado nas pinturas
Em Sérgio Lucena, a vitalidade da lin- de Lucena, propõe, delicada e sutil-
guagem pictórica também pode ser verifi-
cada ou confirmada a partir de processos
que, articulados pelo artista, resultam em
obras de alta voltagem poética e grande
CLAUDINEI ROBERTO DA SILVA é educador,
densidade simbólica. Desse projeto, parti- licenciado pela Escola de Comunicações e Artes
cipam vários elementos que se articulam (ECA) da USP, curador e artista visual.

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mente, uma narrativa em que convivem dimensões, que sincretizam tradições
aquilo que convencionalmente denomina- da pintura ocidental, além de outros
mos de “arte erudita” e “arte popular”. simbolismos que remetem, como já foi
A falsa dicotomia que opõe o “popular” dito, a matrizes culturais originárias e
ao “erudito” é corroída através da tese afrodiaspóricas. Nessas obras os ritmos
expressa na pintura de Sérgio Lucena, tonais são interceptados por signos que,
já que o artista, coerentemente, não além de potencializar as cores, sugerem
reconhece a preponderância de uma ou explicitam a aliança do artista com
“escola” sobre outra. Desse modo, na a religiosidade afro e indígena.
parcela que corresponde à fase inicial
do artista existe uma vinculação clara e FESTA NO INTERIOR
consentida com o Movimento Armorial.
Criado e liderado por Ariano Suassuna
(1927-2014), o movimento consagrou a Por meio da erosão de hierarquias
arte erudita e popular concebida numa entre documentos, objetos de uso coti-
matriz autóctone, nacional e marcada- diano, artefatos de trabalho e obras de
mente nordestina, mas que confessa arte de várias linguagens e épocas, a
inf luências outras como, por exemplo, expografia da exposição de longa duração
a da cultura árabe. Já temos prenun- organizada por Emanoel Araujo para o
ciada, nesta fase, questões que serão Museu Afro Brasil, que hoje incorpora
caras a Sérgio Lucena e que permeiam o seu nome, é enfática em afirmar que
todo seu trabalho, questões que se refe- é falsa a dicotomia entre o que conven-
rem ao emprego da cor para a criação cionamos chamar de “arte popular” e a
de “campos de luz”. Nas pinturas da assim denominada “arte erudita”.
série Deuses, por exemplo, a luz que No trabalho artístico realizado por
ilumina as criaturas fantásticas tem uma artistas “populares” percebemos, fre-
evidente importância na elaboração da quentemente, uma sofisticação que é
atmosfera que envolve essas composi- alcançada através de conhecimentos
ções. Essa luminosidade vai paulatina- não acadêmicos e que não são, por isso,
mente ganhando espaço nas narrativas menos engenhosos e brilhantes. Lucena
plásticas do artista e, aos poucos, vai conheceu a realidade e a paisagem que
diluindo a figura que assim dá lugar às estimulavam, abasteciam e faziam desen-
abstrações da fase que a sucede. volver essas sensibilidades “populares”;
alguns signos dessa cultura estão presen-
TEATRO DO MEU FASCÍNIO tes nos seus últimos trabalhos, aliados
a um rigor construtivo que foi filtrado
em outras matrizes.
A relativamente recente fase do traba- A propósito, as ilações simbólicas
lho de Sérgio Lucena que corresponde à implícitas ou explícitas, que na obra de
série Teatro do meu fascínio é caracte- Lucena remetem ao universo imagético
rizada por pinturas, em geral de grandes das culturas originárias e afrodiaspóricas,

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arte sérgio lucena

surgem, inclusive, da adesão do artista

Foto: Estúdio em Obras


à religiosidade afrodiaspórica. No caso
dessa exposição acontecida no Museu
Afro Brasil Emanoel Araujo oferece uma
camada extra de complexidade ao evento
e justifica os dois “Ferros de Santo”, do
mestre ferreiro José Adário, presentes na
mesma galeria em que Lucena exibe suas
obras. Mas, atenção: também, e talvez
principalmente, o rigor formal das obras
do mestre Adário seja o responsável pelo
estabelecimento de um profícuo diálogo
com a pintura de Lucena. Assim, pau-
latinamente, Sérgio Lucena constrói o
vocabulário que estabelece sua singular
semântica pictórica, seu universo alegó-
rico e lírico que o tempo vai transfor-
mando e adensando.
Visto que exigentes, os percursos que
sedimentam essa obra também solici-
tam tempo, tempo que, na sua grande
extensão, denuncia o grau de comprome-
timento do trabalhador artista com seu
projeto ético-estético. Assim, o tempo
dedicado à construção da obra pode,
eventualmente, delatar, nesse projeto,
a sua espessura poética e, por que não,
sua densidade política. Afinal, a pro-
fissão de fé ao fazer artístico contradiz
e enfrenta a hostilidade que, historica-
mente, em nosso país, ainda se dedica
à arte, à educação e à cultura.
Sérgio Lucena celebrou 40 anos de trajetória em
exposição no Museu Afro Brasil Emanoel Araujo

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arte sérgio lucena

Foto: Léo Faria

Sérgio Lucena no ateliê

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Foto: Marcio Fischer

O quadro n0 0, 1991. Acrílico sobre tela

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arte sérgio lucena
Foto: Marcio Fischer

Cervo, 2004. Óleo sobre linho

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Foto: Marcio Fischer

Rei alado, da série Deuses da Terra, 2004. Óleo sobre linho

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arte sérgio lucena

Foto: Marcio Fischer

Lagarto que ri, da série Deuses da Terra, 2005. Acrílica sobre cartão schoeller
Foto: Marcio Fischer

Carneiro caramujo, da série Deuses da Terra, 2006. Acrílica sobre cartão fabrianno

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Foto: Marcio Fischer

Retrato de Aldemir Martins, 2006. Óleo sobre linho colado sobre madeira

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arte sérgio lucena

Foto: Marcio Fischer

Série Teatro do meu fascínio, n0 01, 2020. Óleo sobre tela

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Foto: Marcio Fischer

Série Teatro do meu fascínio, n0 13, 2020. Óleo sobre tela

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arte sérgio lucena
Foto: Marcio Fischer

The big blue, 2020-21. Óleo sobre tela

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Foto: Marcio Fischer

Série Teatro do meu fascínio, n0 18, 2020-23. Óleo sobre tela

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arte sérgio lucena

Foto: Marcio Fischer

Série Platibanda, n0 04, 2023. Óleo sobre tela

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Foto: Marcio Fischer

Série Platibanda, n0 15, 2023. Óleo sobre tela

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arte sérgio lucena

Foto: Marcio Fischer

Série Platibanda, n0 23, 2023. Óleo sobre tela

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livros
Diplomacia e progresso

Wagner Kotsura

25 anos de política externa brasileira (1996-2021), de José Augusto Guilhon


Albuquerque (org.) e Alexandre Uehara (ed.), São Paulo, Fonte Editorial, 2023, 547 p.

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livros / Homenagem

C
oincidindo com a partir de três grandes blocos temáticos:
a atual emergên- paradigmas da política externa brasileira, a
cia do Brasil no política externa brasileira vista do exterior,
cenário interna- relações regionais e bilaterais.
cional, marcada Nessa viagem histórico-geográfica, cada
pelo papel de escala é um mergulho no conhecimento. Os
destaque exer- temas se complementam: relações comerciais,
cido nos princi- a formação de recursos para diplomacia, a
pais foros de discussão dos grandes temas política de segurança internacional e as ope-
mundiais (segurança, comércio, meio am- rações de paz, política comercial e climática.
biente, trabalho), o mercado editorial re- E as regiões se espalham: EUA, América
gistra um importante lançamento: 25 anos Latina (Argentina e países andinos), África,
de política externa brasileira (1996-2021). China, Japão, Europa e Oriente Médio.
Como informa o título, trata-se de um es- Como explicam os professores da USP
tudo sobre a diplomacia nos governos Fer- Alexandre Uehara, editor, e José Augusto
nando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula Guilhon Albuquerque, organizador, este li-
da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e vro “se inspira e dá sequência ao livro em
Jair Bolsonaro, com um olhar aprofundado quatro tomos 60 anos de política externa
e crítico em relação às nuances de cada brasileira (1930-1990), editado pelo Núcleo
período, determinadas pelo estilo e pelas de Pesquisa em Relações Internacionais da
opções de cada governante.
Em 526 páginas, divididas em Introdu-
ção, 19 Capítulos e Conclusões Finais, 28
especialistas nacionais e do exterior exa- WAGNER KOTSURA é jornalista,
com experiência em mídia impressa
minam à exaustão os diferentes e inúme- (Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo)
ros caminhos percorridos pelo Itamaraty, e telejornais (SBT e TV Record).

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USP, que completou 25 anos de publicação vital? Qual é nossa ameaça? O Brasil, por
em 2022”. Segundo Guilhon, há uma dife- uma série de razões, não tem ameaças, não
rença entre as duas obras. Desta vez, houve tem inimigos. Não existe em nosso entorno
uma preocupação maior com a metodologia nenhum país que tenha interesse, nem po-
de pesquisa, e não apenas a reunião de tex- der, para nos ameaçar. E, no mundo, quem
tos opinativos elaborados por conhecedores tem poder não tem interesse (nem os EUA)”.
do tema. Disso resultou um livro acadêmico Claríssimo, não? Isso nos leva ao segundo
para quem já fez ou pretende fazer da car- pilar sem base.
reira diplomática sua opção profissional. Não
obstante, qualquer interessado no assunto 2. O Brasil sem Livro Branco.
encontrará uma leitura acessível, que lhe Não existe um documento oficial sobre a
permitirá compreender melhor o intrincado política externa brasileira, com prioridades
mundo das disputas entre países. concretas, como há nos principais países,
com a definição de potenciais ameaças e
TRÊS PILARES, NENHUMA BASE ambições específicas.
Diz Guilhon: “Mais grave é a ausência
de um Livro Branco como paradigma de
Com sua reconhecida experiência, o pro- uma das mais respeitadas diplomacias inter-
fessor José Augusto Guilhon Albuquerque nacionalmente. A tentativa, estranhamente
chama a atenção para alguns aspectos que tardia do Itamaraty, de redigir e publicar
considera relevantes. O leitor desse impor- um primeiro Livro Branco ao longo do ano
tante livro terá a oportunidade de entrar de 2014, simplesmente gorou”. Resultado:
em contato com todo esse universo. Vamos uma “falha insuperável” às principais ame-
adiantar três pontos que se destacam pela aças à nossa existência como nação livre e
abrangência e pela atualidade: independente, na medida em que se pode
escrever qualquer coisa a qualquer momento
1. O Brasil sem inimigos. para atender a qualquer objetivo particular
Parece óbvio para nós, brasileiros, acos- em nome de um suposto interesse nacional.
tumados a ver invasões, ataques e guerras Sem Livro Branco, vale a pela lembrar
pelos meios de comunicação. Alguns desses quão gerais e vagas são as normas da Cons-
episódios recebem tratamento privilegiado na tituição Federal de 1988:
sua divulgação, como o conflito na Ucrânia.
Outros entram para uma rotina de horror “Art. 4º – A República Federativa do Bra-
contido, como a insolúvel crise entre Israel e sil rege-se nas suas relações internacionais
os palestinos. Afora, dezenas de golpes mi- pelos seguintes princípios:
litares sangrentos em países escondidos no I – independência nacional;
mapa escolar, em sociedades pré-capitalistas II – prevalência dos direitos humanos;
dominadas por líderes tribais. III – autodeterminação dos povos;
Diz Guilhon: “A política externa deve IV – não intervenção;
ser definida em relação àquilo que é vital. V – igualdade entre os Estados;
Qual é nosso inimigo vital, nosso obstáculo VI – defesa da paz;

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livros / Homenagem

VII – solução pacífica dos conflitos; há nenhum acordo efetivo, depois de anos
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; de negociação. É muito mais coisa simbólica
IX – cooperação entre os povos para o pro- que de fato. Não há sequência às dezenas
gresso da humanidade; de milhares de papéis empilhados, muitos
X – concessão de asilo político. deles com pomposos nomes de protocolo
Parágrafo único. A República Federativa do ou carta de intenções”.
Brasil buscará a integração econômica, polí- Algumas frases se tornam definitivas.
tica, social e cultural dos povos da América Na área diplomática, John Foster Dulles,
Latina, visando à formação de uma comu- chanceler do presidente americano Dwight
nidade latino-americana de nações”. Eisenhower nos anos 1950, deu uma aula
de pragmatismo: “Países não têm amigos,
3. O Brasil sem acordos reais. países têm interesses comuns”.
Aponta-se aqui um fenômeno comum aos Os futuros diplomatas brasileiros, que
tempos modernos da comunicação de massa, muito se beneficiarão desse livro, têm a opor-
em que as aparências são cada vez mais tunidade de conciliar conhecimento teórico
planejadas, preparadas e manipuladas para com lições práticas, como acima mencio-
criar uma sensação de realidade que não nadas, e a constatação de que, no Brasil,
corresponde ao que efetivamente ocorre na a política externa representa o equilíbrio
prática. Há décadas que os principais países entre o poder superior (governo), a socie-
deixaram de expor publicamente seus do- dade (sobretudo a parte da elite que valoriza
cumentos estratégicos (se é que alguma vez essas questões) e a corporação que executa
o fizeram plenamente), e ingressaram numa as políticas determinadas.
“diplomacia midiática”, na qual se trocam Leiam e fiquem com as palavras com
mensagens cifradas, recados, pela imprensa, que o professor Guilhon fecha o livro: “Que
buscando sensibilizar a opinião pública. este árduo trabalho investigativo da histó-
Diz Guilhon: “Existe uma ausência de ria contemporânea de vinte e cinco anos
programas concretos decorrentes dos grandes de nossa política externa contribua para a
compromissos das visitas presidenciais aos literatura acadêmica nacional e estrangeira
eventos plurilaterais. O presidente faz uma sobre os percalços e avanços de nossa re-
viagem, assina vários documentos, mas não lação com o mundo”.

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Cartografias da camaradagem criativa:
a correspondência de
Oswald a Mário de Andrade

Julio Augusto Xavier Galharte


Marco Antônio Teixeira Junior

Correspondência: Mário de Andrade & Oswald de Andrade, com organização,


introdução e notas de Gênese Andrade, São Paulo, Edusp/IEB, 2023, 264 p.

A economia brasileira como ela é – como reverter a destruição neoliberal, de J.


Carlos Assis, RioRevista
de USPJaneiro, Amazon, 2022, 116 p.
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livros / Homenagem

“Na calçada das cidades inacessíveis


Te mostrarei meus cartões postais.”
(Oswald de Andrade, “Dote”)

“Amor ódio tristeza...


E os sorrisos da ironia
Pra todas as cartas da gente…”
(Mário de Andrade, “Máquina de escrever”)

S
e os estudos a res- arquivo, cuja sede é o Instituto de Estudos
peito do Modernismo Brasileiros da USP. É sabido que esse nú-
brasileiro e da figura cleo de pesquisa e difusão dos escritos ma-
de Mário de Andrade riodeandradianos, com numerosos trabalhos
já contavam com um que se ativeram a seu arquivo e ainda se
poderoso fôlego ani- debruçam sobre ele, dedica especial atenção
mando pesquisa, en- à correspondência desse autor (que afirmou,
sino e difusão de co- certa vez, sofrer de “gigantismo epistolar”1),
nhecimento nos mais variados formatos e
plataformas, o recente centenário da Semana
de Arte Moderna veio intensificar ainda mais
1 “Sofro de gigantismo epistolar”: esse enunciado de
vivamente todas essas atividades. Isso porque Mário está justamente em uma missiva, escrita no
as movimentações em torno da efeméride dia 10 de novembro de 1924 e direcionada a Carlos
Drummond de Andrade. Em 1945, o ano do falecimen-
tornaram propícia a divulgação ao grande to de Mário, Drummond publicou, em A rosa do povo,
o poema “Mário de Andrade desce aos infernos”, em
público de materiais inéditos, bem como que se lê: “O meu amigo era tão/ de tal modo extraor-
de textos dispersos em periódicos hoje ex- dinário,/ cabia numa só carta” (Andrade, 1979, p. 238).
Verbo afetuoso, críticas, conselhos criativos, mostra de
tintos ou editados em obras já esgotadas. textos ainda não publicados, tudo isso palpitava nas
Esse é o caso de Correspondência: Mário missivas de Mário a Drummond e a outros escritores.

de Andrade & Oswald de Andrade, publi-


cada pela Edusp, sob organização de Gê-
nese Andrade, a qual também elaborou suas
notas e seu Posfácio. JULIO AUGUSTO XAVIER GALHARTE
é pesquisador com pós-doutorado em
O livro integra a Coleção Correspondên- Teoria e História Literária pela Unicamp.
cia de Mário de Andrade, levada a cabo
MARCO ANTÔNIO TEIXEIRA JUNIOR
pela equipe dedicada aos estudos da obra do é mestre em Filosofia pelo Instituto
escritor paulista, da sua memória e do seu de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

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formada por cerca de 7.700 itens documen- No caso de Correspondência: Mário de
tais, divididos entre correspondência ativa, Andrade & Oswald de Andrade, o silêncio
passiva e de terceiros 2 . Esse conjunto envolve aquele e não este, pois o volume é
de epístolas, uma das linhas de força um bloco formado apenas pela correspon-
da complexa trama que entrelaça outras dência de Oswald e não temos, portanto,
tipologias documentais e bibliotecas, foi as respostas postais do autor da Pauliceia
objeto de trabalho da referida equipe, desvairada. Apesar disso, é possível apre-
entre 1995 e 2003. O ano inicial remete- ender um fio narrativo que os escritos vão
-nos aos 50 anos da morte de Mário, que tecendo página a página e inferir as reações
deixou expressa sua vontade de que sua do destinatário a partir das entrelinhas (e
correspondência permanecesse lacrada até algumas vezes das linhas) de cada novo
o fim desse período. O ano final teste- texto postado pelo remetente.
munha a conclusão da imensa quanti- O material compreende um arco tem-
dade de tarefas ligadas ao tratamento poral que vai de 1919 a 1928 e é formado
arquivístico, desde a descrição de cada por 27 documentos: 20 cartas, um bilhete
um dos numerosos itens até o adequado e seis cartões-postais. Há ainda, no vo-
acondicionamento de todo o material, lume, uma nota introdutória, na qual Gê-
para sua melhor preservação. nese explicita aos leitores a organização
A obra também oferta novo impulso aos geral do livro e exibe os critérios ado-
estudos sobre Oswald de Andrade, que, em tados na empreitada editorial: as fontes
alguns períodos, inclusive quando ainda utilizadas para recolha dos documentos;
vivia, obteve frios hiatos na recepção de uma explicação do porquê de se criar
sua obra, diferentemente das calorosas um roteiro das viagens de Oswald (1922-
respostas dadas com relativa constância 1928), muito útil e esclarecedor, diga-se
pelos críticos aos textos de Mário. Es- de passagem; a escolha pela atualização
ses silêncios foram lamentados pelo pró- ortográfica de acordo com a norma vi-
prio Oswald, na crônica “Fraternidade de gente, respeitando as idiossincrasias do
Jorge Amado”, escrita em 1943: “Criou-se criador de Serafim Ponte Grande; o ob-
então a fábula de que eu só fazia piada jetivo das notas textuais e o método para
e irreverência, e uma cortina de silêncio sua elaboração; a presença de um dossiê,
tentou encobrir a ação pioneira que dera que reúne apreciações mútuas de Mário e
o Pau-Brasil [...]. Foi propositadamente Oswald (expressas em artigos publicados
esquecida a prosa renovada de 22, para a em periódicos), ajudando a compor os di-
qual eu contribuí com a experiência das álogos formados pela correspondência; e,
Memórias sentimentais de João Miramar” por fim, o ensaio da organizadora, que
(Andrade, 1971, p. 31). buscou desvendar possibilidades de lei-
tura partindo da materialidade dos docu-
mentos compulsados – analisando cores,
2 Disponível em: http://200.144.255.59/catalogo_eletro- linhas, tintas e timbres – até os temas de-
nico/consultaUnidadesLogicasInferiores.asp?Setor_
Codigo=1&Acervo_Codigo=10&Unidades_Logicas_
les apreensíveis. O volume ainda traz um
Codigos=9249,16885&Numero_Documentos=. caderno de imagens (fotografias, quadros,

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caricaturas, desenhos, capas de livros e dos deslocamentos do escritor, geralmente


revistas, dedicatórias etc.), dando a ver acompanhado por sua companheira, por
a iconografia ligada a espaços, tempos e alguns países da Europa, estabelecendo
personalidades envolvidas nos escritos. axiais contatos com intelectuais e artistas.
Falamos sobre silêncio e precisamos Como mencionamos, os silêncios falam,
retomar a referência a ele, pois sua som- e, mesmo sem a presença das cartas de
bra se projeta sobre o ponto inicial do Mário, a edição permite ver movimento
diálogo entre Oswald e Mário, registrado também da parte deste: na última carta
nesse livro: o primeiro texto, postado em do conjunto, escrita no dia 19 de maio
São Paulo, é um bilhete cuja data, 1919, é de 1928, Oswald enuncia: “Quando eu
atribuída pela organizadora. Nele, Oswald chegar (tempestadinha d’homem) faço
enuncia que, apesar da “excelente carta” questão que me raconte as maravilhas
(p. 65) do amigo, não sente forças para de Marajó. Eu te levarei as gravatas de
responder com a abundância verbal que Paris. Topa!” (p. 179). Ficamos sabendo,
uma missiva exigiria. O motivo do laco- com a ajuda da anotação da organizadora,
nismo (e provavelmente o assunto da epís- desse encontro pessoal dos dois missi-
tola de Mário) era o recente falecimento vistas, posterior à viagem que Mário fez
de sua companheira, Maria de Lourdes pelo Norte do Brasil, em companhia de
Castro Dolzani, mais conhecida por dona Olívia Guedes Penteado, Margarida
Daisy. Esta frase resume seu estado de Guedes Nogueira (sua sobrinha) e Dulce
espírito: “Estou arrasado” (p. 65). O tom (filha de Tarsila do Amaral), entre maio
é diverso no texto seguinte, redigido no e agosto de 1927 (dessa experiência sur-
Rio de Janeiro no ano da Semana de Arte giria uma das partes que comporiam o
Moderna, mais precisamente em 25 de vindouro O turista aprendiz, diário das
dezembro de 1922. O leitor é convidado viagens etnográficas de Mário). Oswald,
a acompanhar intensa movimentação hu- portanto, viajava por terras estrangeiras
mana e editorial em favor da difusão do e Mário, por lugares do Brasil, mas es-
Modernismo: o remetente lembra o des- ses périplos tinham um destino comum:
tinatário que ele passa a ser o diretor as terras visitadas, sua gente, suas ma-
artístico da Klaxon, revista criada para nifestações artísticas serviriam de inspi-
veicular os ideais e as produções do grupo ração para a criação desses escritores e
que promoveu a Semana. matéria-prima para aquecer o caldeirão
No entanto, os ventos (ou vendavais) multicultural do Modernismo brasileiro.
do Modernismo do Brasil também pre- Na carta 5, escrita no dia 29 de janeiro
cisavam ser soprados para fora do país, de 1923, Oswald informa sua localização
sendo este um dos motivos da futura via- usando um tipo de humor só permitido
gem de Oswald para o exterior. Uma ou- aos amigos que têm intimidade: refere-se
tra razão era o encontro com a pintora a Mário como “o mais bonito da geração”
Tarsila do Amaral, que passou a namo- e, na sequência, faz a seguinte observação
rar no mesmo e importante ano de 1922. quanto ao “elogio”: “(Estamos em Portugal,
Assim, as missivas seguintes dão notícia terrinha da piada)” (p. 78). Em um trecho

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anterior, dá uma séria e excelente notícia: ferência. Grande agitação nos arraiais da
“A geração surpreendente – Contemporâ- América Latina em Paris” (pp. 113-4).
nea – à nossa disposição” (p. 77). A Re- Trata-se da conferência “L’Effort intelec-
vista Contemporánea (mensário literário tuel du Brésil contemporain”, que seria
português, plataforma modernista na qual realizada no mês seguinte, no dia 11 de
atuaram escritores como Fernando Pessoa, maio, na Sorbonne, quando Oswald foi
Mário de Sá-Carneiro e mesmo Antero de apresentado pelo professor titular do curso
Quental) estava, portanto, com as portas de Estudos Brasileiros daquela universi-
abertas aos brasileiros, graças ao contato dade. Na epístola 15 (Paris, 15 de maio
que Oswald estabeleceu com seus diretores3. de 1923), comenta como foi o evento: “A
“Depois de Portugal Contemporânea, minha conferência causou boa impres-
Paris-Nouvelle Revue” (p. 87), enuncia são. [...] vítimas da maçonariazinha da
Oswald em missiva escrita em Paris no Rua Lopes Chaves satisfazem perfeita-
dia 25 de fevereiro 1923, sinalizando mente as exigências da ‘modernidade de
que no dia 1º de março almoçaria com Paris’” (p. 135). Nessa cidade, Oswald teve
dois colaboradores do periódico francês contato com outros importantes artistas:
mencionado: “Romains et Valery” (Jules Jean Cocteau, Paul Claudel, André Gide,
Romains e Valery Larbaud). A este úl- Pablo Picasso (“Dostoiewski nascido em
timo, oferece um livro de Mário (carta Málaga”, p. 121), Aragon (“a Besta do
9; Paris, 4 de março de 1923): “Tenho Apoca-Lipchitz”, p. 121) e Blaise Cen-
feito o possível por vós. Deixei na mesa drars (que, posteriormente, iria ao Bra-
de trabalho de Jules Romains o meu vo- sil e, em companhia de Oswald, Mário e
lume de Pauliceia” (p. 92). Na missiva outros modernistas, conheceria o carna-
12 (Paris, 18 de abril de 1923), Oswald val carioca, bem como as esculturas de
diz: “Brecheret, você, Menotti e a corja Aleijadinho, em Minas Gerais).
serão lançados por mim em próxima con- Os itinerários culturais de Oswald
percorrem mais plagas europeias (Suíça,
Espanha, Grécia e Inglaterra) e outros
continentes, como África. Do Senegal,
3 Gênese apõe, a esse texto de Oswald, as notas 11
(p. 77) e 12 (pp. 77-8). Esta última indica aos leitores
Oswald envia a Mário um cartão-postal
curiosos o site da Hemeroteca Digital de Lisboa, no com a seguinte mensagem: “Da África
qual se pode acessar a coleção completa da Revista
Contemporánea ou, pelo menos, a edição de março de – berço obscuro da humanidade – um
1923, na qual foi publicado “O barracão dos romeiros”, abraço obscuro do Oswald”, p. 138; co-
fragmento do romance A estrela de absinto, de Oswald.
A nota anterior explica o alerta oswaldiano inscrito nhece também o Egito e Ásia (visita Es-
no início da missiva: “Para ser lida e gozada numa 3a
feira”. O esclarecimento é este: às terças-feiras, Oswald
mirna e Istambul, na Turquia, Beirute,
e Mário, entre outros, reuniam-se na casa deste para Tiro e Sídon, no Líbano, Nazaré e Ti-
mostrarem suas produções artísticas. Um trecho do
ensaio “O Movimento Modernista” (presente no livro beríades, em Israel, e Chipre).
Aspectos da literatura brasileira, do próprio Mário) é Durante essas viagens, Oswald revi-
usado para complementar a informação: “Havia a
reunião das terças, à noite, na Rua Lopes Chaves. sava seu romance Memórias sentimen-
Primeira em data, essa reunião semanal continha
exclusivamente artistas e precedeu mesmo a Semana
tais de João Miramar, inspirado nos pas-
de Arte Moderna”. seios de seu autor pelo continente europeu

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em 1912. O personagem central, não por sonoramente o nome do personagem é


acaso, é um viajante, característica que, digno de nota. A narrativa que ele pro-
segundo Antonio Candido, já é sinalizada tagoniza era uma das prediletas, não só
em seu nome, no qual “está a vocação do seu autor, mas também de Mário de
e a contemplação do oceano” (Candido, Andrade, que conheceu o texto antes de
1977, p. 53). Miramar é mencionado no ser publicado, em 1924, sendo inclusive
poema inédito “Versos (sobretelhadistas)” muito influenciado por ele. Exatamente
(Paris, 4 de março de 1923), que Gênese por carta (de 1927), Mário expressa a
tentou desvendar em nota, remetendo o Manuel Bandeira como uma das passa-
leitor ao artigo de Oswald publicado no gens desse livro oswaldiano impregnou o
Correio Paulistano, no qual o Cubismo é capítulo “Carta pras Icamiabas”, do seu
relacionado ao mencionado “sobretelha- Macunaíma: “Agora ela [Carta pras Ica-
dismo” (nota 55, p. 101). O poema é este: miabas] me desgosta em dois pontos: pa-
rece imitação do Oswaldo e decerto os
“Versos (sobretelhadistas)/ Ah! A alegria preceitos usados por ele atuaram subcons-
de certos domingos insípidos./ Ah!/ Vou cientemente na criação da carta e acho
ao Louvre… A Gioconda em carne e osso comprida demais. O primeiro ponto não
da laca secular/ Miramar!! (leia-se com acho remédio. O segundo vou encurtar a
entonação)/ Os teus cotovelos/ São ins- carta. Mas não tiro ela não, porque gosto
tintivos/ Joelhos/ De joelhos/ Oh!/ Oh!/ muito dela” (Andrade, 1958, p. 171, apud
É a fotografia do Calvário!/ Este Cristo Campos, 1997, p. 8).
na cruz madeirenta!/ Do Greco!!!/ Uma Esse trecho da missiva de Mário a Ban-
vez roubei. Foi um pedaço de tela sofrida/ deira é citado por Haroldo de Campos no
Do museu do… Greco!!!/ Fui preso. Éra- ensaio “Miramar na mira”, em que loca-
mos todos amigos na gêole, um nommá liza no romance de Oswald os elementos
Dostoievwsky, um/ nommá Oscar Wilde, inspiradores de Mário:
um nommá Verlaine/ Todos ao Pretório/
Refeitório/ da Foule/ Folle…/ Brrrrr…// “O propósito de Mário de Andrade, na
Maison de l’avenir/ Je suis/ Le mystère/ ‘Carta pras Icamiabas’, foi, como salienta
Je suis/ La Chiromancie/ Je suis/ Le chat/ Cavalcanti Proença, ‘mostrar o artificia-
Escola/ Chatismo” (p. 101). lismo de uma linguagem anacrônica’. O
próprio Mário, na carta a Bandeira já re-
Nos versos, Miramar, por ter roubado ferida, esclarece bastante seus desígnios:
“um pedaço de tela sofrida” do Museu de ‘Macunaíma como todo brasileiro que sabe
El Greco (artista que pintou Jesus cruci- um pouquinho vira pedantíssimo. O maior
ficado), foi parar “na gêole” (na jaula), pedantismo do brasileiro atual é escrever
junto com Dostoiévski, Wilde e Verlaine português de lei [...]. Agora a ocasião era
(escritores que foram, em um período de boa pra eu satirizar os cronistas nossos
suas vidas, reclusos na prisão). “Mira- [...] e o estado atual de São Paulo, urbano,
mar!! (leia-se com entonação)”: esse pe- intelectual, político, sociológico. Fiz tudo
dido do sujeito poético para sublinhar isso em estilo pretensioso, satirizando o

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português nosso e, pleiteando sub-repti- sivista finaliza com um “Té logo” e as-
ciamente pela linguagem lépida, natural sina: “Oswardo” (p. 149). A proximidade
(literatura) simples, dépourvue dos outros com a linguagem popular era uma das
capítulos’” (Campos, 1997, pp. 8-9). afinidades entre os escritores, camara-
das na criatividade, no amor pelo Brasil,
Para Haroldo, essa estratégia de Má- na abertura para o diálogo com as artes
rio foi inspirada no texto de abertura de internacionais. Tudo era muito intenso
Memórias sentimentais de João Miramar, nessa amizade e havia a expectativa de
“À guisa de prefácio”, em que “um tí- que ela não acabasse; Mário, no ensaio
pico beletrista de sodalício – Machado “Oswaldo de Andrade”, publicado na edi-
Penumbra faz a apresentação do livro em ção de setembro de 1924 da Revista do
estilo empolado e arrebicado, recheado de Brasil (e incluído na seção Dossiê da obra
clichês acadêmicos, num contraste gri- em foco), enunciava: “[...] somos velhos
tante com o estilo do próprio autor, João companheiros. E espero que a camara-
Miramar-Oswald” (Campos, 1997, p. 9). dagem com o meu sempre caro Oswaldo
Se as Memórias sentimentais (1924) continue pela nossa ainda longa vida” (p.
muito influenciaram Macunaíma (1928), 188). Não continuou. 1929 é o ano dos
este deixou marcas indeléveis em Serafim rompimentos: a “amizade selada” torna-se
Ponte Grande (1933), o qual foi chamado “amizade despedaçada”4 , extinguindo o
de “Macunaíma urbano” por Antonio Can- Marioswald (combinação dos nomes usada
dido (1977, p. 45), no ensaio “Estouro e pelos dois, em 1927, na indicação da au-
libertação”, tendo muitos pontos de con- toria do poema elaborado a quatro mãos
tato com o romance mariodeandradiano. “Homenagem aos homens que agem”5), o
É certo que a influência se apresentava que coincide com a dissolução do “ca-
como uma via de mão dupla para Oswald sal Tarsiwaldo” (expressão inventada por
e Mário e vale a pena levar em conside- Mário para se referir à união entre o es-
ração que este dedicou àquele seu ensaio critor e a pintora e utilizada num poema
“A escrava que não é Isaura”, motivo de em que homenageava os dois).
gratidão expressa na carta 20 (Paris, ja- No entanto, se nas biografias de
neiro de 1925): “Sabe. Me deu pra mim Oswald e Mário a ruptura se impôs, na
uma comoção de você ofrecer pra mim discussão sobre literatura moderna que faz
o seu livro da tal escrava que se chama confluir invenção e qualidade ou sobre
Inzaura. [...] fico muito agradecido e não a força e a riqueza da cultura brasileira,
miricia tamanha honra” (p. 149). O mis- eles estão sempre juntos, marioswaldiando.

4 As duas expressões são de Gênese Andrade, usadas


como títulos de seções de seu Posfácio, “Andrade
versus Andrade”.
5 Esse texto integra o dossiê do livro.

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livros / Homenagem

REFERÊNCIAS

ANDRADE, C. D. de. “Mário de Andrade desce aos infernos”, in Poesia e prosa. 5ª ed.,
revista e ampliada. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1979, pp. 237-40.
ANDRADE, O. de. “Fraternidade de Jorge Amado”, in Ponta de lança. 2ª ed. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1971, pp. 30-2.
CAMPOS, H. de. “Miramar na mira”, in O. de Andrade. Memórias sentimentais de João
Miramar. 9ª ed. São Paulo, Globo, 1997, pp. 5-33.
CANDIDO, A. “Estouro e libertação”, in Vários escritos. 2ª ed. São Paulo, Livraria Duas
Cidades, 1977, pp. 33-50.
CANDIDO, A. “Oswald viajante”, in Vários escritos. 2ª ed. São Paulo, Livraria Duas Cidades,
1977, pp. 51-6.

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99 110 122
Futebol Ética e Sociedade Feminismos
133
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Cultura e Sociedade

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100 111 123
Educação Música Popular Histórias Culturais
134
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Política

Rumos da Financiamento da Marketing Político


101 112 124
Justiça Brasileira Americanistas Inteligência
135
Bicentenário da
Universidade Pesquisa no Brasil Artificial Independência:
Ciência e Tecnologia

Alternativas para Pensando o Futuro: Catástrofes


102 113 125
Metrópoles Amazônia Azul Saramago
136Integração
o Século XXI Ciências Exatas Latino-Americana

50
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103 114 126 137
Clima Interculturalidades Semiótica e Cultura Vida Escolar
Universidade Pública

Saúde Bibliotecas Digitais/


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Caminhos do Energia Elétrica Politicamente Ensino Público
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Linguística da Vida
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94 105 116 128


Semana de Universidade
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Queda do Muro do Pré-sal

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Computação Jogos Olímpicos Religião e Pandemia:
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