TN Maio 2024 Final
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TN Maio 2024 Final
E N T R E V I S TA :
DINO D’SANTIAGO:
“A FÉ DOS MEUS PAIS SALVOU-NOS”
Pág.6-7
ATUALIDADE
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
DISTINGUE ANTIGO DEFENSOR
DE PRESOS POLÍTICOS Pág.3
RELIGIÃO
O PAPA FRANCISCO
CABO VERDE E
SENEGAL DESTACARAM
PROMULGOU A BULA DE
ÁREAS IMPORTANTES INDICAÇÃO PARA O ANO
DE COOPERAÇÃO Pág.3 JUBILAR DE 2025 Pág.10
Todos os seres
humanos são belos
Ensinar a ver a beleza nos outros, torna-nos mais tolerantes e menos exigen-
tes connosco próprios. Torna-nos mais humanos.
Não há dúvida que a percepção do belo está inscrita no que é sermos huma-
nos. A beleza faz-nos estremecer, faz-nos viajar até longe para a observarmos
e comovermo-nos, faz-nos parar junto ao mar para nos maravilharmos com um
pôr-do-sol. Faz-nos sorrir, chorar, sentir e pode mesmo fazer-nos enamorar. É
sempre belo o fruto do nosso amor. São sempre belos os nossos amigos.
Mas, como diz o ditado, “não há bela sem senão”. A beleza e o seu signifi-
cado é de tal modo impactante que pode tornar-se uma obsessão e, hoje como
outrora, os jovens prendem-se aos padrões de beleza, às definições do que é belo
e são capazes de sentir que, ao não obedecerem a esses parâmetros, não podem
estar bem com o seu rosto, com o seu corpo, acabando por se deixar dominar pela
baixa auto-estima.
Esses padrões são de tal modo dominantes, que temos jovens africanas que
desfrisam os seus caracóis para usarem cabelos lisos; jovens asiáticas que fazem
cirurgias para tornar os olhos maiores ou os narizes mais finos; jovens indianas
que usam branqueadores de pele para ficarem mais claras. Tudo isto porque o
padrão que domina os seus subconscientes é o da jovem branca, de cabelos lisos e
louros e, claro, de olhos azuis. A ditadura da beleza domina as redes sociais onde
a maioria das crianças e adolescentes navegam — já são notícia as crianças de 8 “Estou satisfeito por estarmos a tra- diferenciando-se das meras declarações de
anos que acordam mais cedo para se maquilharem antes de saírem para a escola, balhar no projeto de uma Constituição da princípio. “Da mesma forma que o amor –
fruto dos tutoriais do TikTok; ou os jovens que não se conseguem ver sem os Terra e que se esteja a pensar na sua eficá- dissemos – também a justiça e a solidarieda-
filtros das redes sociais, preferindo a sua imagem com filtros. cia, cada vez mais dramaticamente neces- de não são alcançadas de uma vez por todas,
sária para garantir o bem comum”, escreve mas devem ser conquistadas dia após dia”.
Muito tem sido feito para desmistificar estes padrões de beleza, desde campa- o Papa Francisco, em artigo publicado por Il Estou satisfeito por estarmos a trabalhar
nhas publicitárias a mudanças na seleção das modelos que passam a alta-costura Manifesto. no projeto de uma Constituição da Terra e
nas semanas da moda, ou dos actores que são escolhidos para protagonistas de que se esteja pensando na sua eficácia, cada
filmes e de séries. Essas mudanças passam também pelos bonecos com que as O direito é uma prática e um instrumen- vez mais dramaticamente necessária para
crianças brincam — a Barbie já não tem medidas irrealistas, mas pode ser forte, to. Incorpora valores que, é claro, podem garantir o bem comum. E é imprescindível
baixa, ter trissomia 21 ou mesmo andar de cadeira de rodas, para que as crianças perfeitamente corresponder aos nossos sen- chegar a “organismos mundiais mais efica-
compreendam que a diversidade existe e os padrões podem ser muitos. Até as timentos. Mas realmente serve apenas na zes, dotados da autoridade necessária para
princesas da Disney deixaram de ser jovens do centro da Europa, como Cinderela medida em que é efetivo e gera mudanças garantir o bem comum mundial, a erradica-
ou Branca de Neve, e temos protagonistas que além de serem de outras etnias, na realidade do mundo. ção da fome e da pobreza e a efetiva defesa
são jovens fortes e independentes como a chinesa Mulan ou a índia Pocahon- As catástrofes descritas pelo dos direitos humanos elementares».
tas (sei que há umas mais recentes, mas eu fiquei parada nos finais dos anos 90, professor Ferrajoli, sobre as quais tantas O direito romano transmitiu ao mundo o
desculpem). vezes expressamos o nosso alarme, dizem- princípio alterum non laedere. Convido-vos
nos que já não há mais tempo e que é pre- a completá-lo com o princípio agir em favor
Toda esta diversidade do belo é importante para que os mais novos cresçam ciso empenharmo-nos em ações concretas. dos outros, para que todos juntos possamos
de maneira saudável, não focados em si e nas suas necessidades. Esta diversidade Para enfrentar os perigos globais que realizar o sonho mundial da irmandade.
está cada vez mais presente nas escolas portuguesas e pode ser abraçada, com a a própria ação humana gerou e continua Não é uma utopia. Pensemos na perife-
ajuda dos pais. Como é simpática a amiga ucraniana com os seus totós louros, a gerar, são necessários acordos de ajuda ria do mundo, porque “quando a sociedade
como é querida a amiga nepalesa com os seus olhos enormes, como é divertida mútua efetivamente vinculantes. Ninguém – local, nacional ou global – abandonar uma
a amiga brasileira com o seu sotaque doce. Ensinar a ver a beleza nos outros, deve sentir-se estranho ao que acontece na parte de si mesma na periferia, não haverá
torna-nos mais tolerantes e menos exigentes connosco próprios. Torna-nos mais nossa casa comum. programas políticos ou medidas policiais
humanos. Por isso, é obrigar os mais pequenos a tirar os olhos do ecrã e deixá-los É assim que o direito deve ser que possam garantir a segurança a longo
espraiar pelo mundo, para que se comovam com a beleza. implementado e tornar-se efetivo, prazo”.
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PRESIDENTE DA
REPÚBLICA DISTINGUE
ANTIGO DEFENSOR DE
PRESOS POLÍTICOS
O Presidente da República, José Maria Ne-
ves, atribuiu hoje a Felisberto Vieira Lopes, a
título póstumo, a Ordem Amílcar Cabral, Se-
gundo Grau, em reconhecimento pelo percurso
do antigo advogado na sua luta pela liberdade e
dignidade da nação.
Por ocasião das comemorações do 50.º ani-
versário da libertação dos presos políticos do
Campo de Concentração do Tarrafal, o chefe de
Estado justificou que o reconhecimento atribuí-
do é um “ato de justiça” e que Felisberto Vieira
Lopes é “uma figura marcante da história política
Cabo Verde e Senegal destacaram advogados do país, até falecer no dia 3 de abril
de 2020.
4| Igreja
EU Católica e Assembleia Nacional terceira idade, o descarte. O Papa afirma o quanto os idosos e as próprias famílias acabam
sendo vítimas da “cultura individualista” porque, quando se envelhece, as pessoas ficam
sem ajuda de ninguém: “cada vez mais «perdemos o gosto da fraternidade» (FRANCISCO,
firmam protocolo de cooperação Carta enc. Fratelli tutti, 33)”.
“Isto acontece quando se perde vista o valor de cada pessoa, tornando-se ela apenas
uma despesa que, em alguns casos, parece demasiado elevada para pagar. O pior é que,
A Escola Universitária Católica de Através deste acordo, destacou, pre- muitas vezes, acabam dominados por esta mentalidade os próprios idosos que chegam a
Cabo Verde (EU Católica) e a Assembleia tendem reforçar o compromisso com o considerar-se como um fardo, sendo os primeiros a quererem desaparecer.”
Nacional firmam um acordo de cooperação desenvolvimento contínuo e a capacitação “A solidão e o descarte tornaram-se elementos frequentes no contexto em que estamos
possibilitando o desenvolvimento profis- profissional, contribuindo também para o imersos”. Mas, a Sagrada Escritura apresenta opções diferentes face à velhice, porque “vi-
sional e académico em diversas áreas de avanço educacional e científico em Cabo ver sozinhos não pode ser a única alternativa”. Diante de um «não me abandones», é pos-
interesse de ambas as instituições. O acto Verde. sível responder «não te abandonarei!», cuidando “de um idoso ou simplesmente demons-
teve lugar no salão de banquetes da As- Como parte desta cooperação, adian- trando diariamente solidariedade a parentes ou conhecidos que não têm mais ninguém”.
sembleia, na Cidade da Praia. tou que a EU Católica vai oferecer vá- Manter-se junto aos idosos, comenta ainda Francisco, reconhecer “o papel insubstituível
O principal objectivo, adiantou, é esta- rios cursos como Pós-Graduação em que eles têm na família, na sociedade e na Igreja, também nós receberemos muitos dons,
belecer e desenvolver acções de coopera- Psicologia Positiva nas organizações e no tantas graças, inúmeras bênçãos!”.
“Neste IV Dia Mundial a eles dedicado, não deixemos de mostrar a nossa ternura aos
ção nos domínios da formação e qualifica- trabalho, o Aperfeiçoamento em Retórica
avós e aos idosos das nossas famílias, visitemos aqueles que estão desanimados e já não
ção dos deputados da nação e funcionários e interação com a Comunidade e o curso
esperam que seja possível um futuro diferente. À atitude egoísta que leva ao descarte e à
da Assembleia Nacional, bem como outras de Aperfeiçoamento em Bem-Estar no solidão, contraponhamos o coração aberto e o rosto radioso de quem tem a coragem de
áreas de interesse mútuo. Ambiente Laboral. dizer «Não te abandonarei!» e de seguir um caminho diferente.”
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Reflexão |5
6|
DINO D’SANTIAGO:
“A FÉ DOS MEUS PAIS SALVOU-NOS”
Usas a tua voz para falar de temas importantes. É Nasces e cresces num contexto difícil, numa O que te leva a dar voz à figura feminina?
um dever ou é um propósito maior? pobreza que não era espiritual, mas que era pobreza. Lá está: sempre a fé e a religião. Foi uma confissão,
Acredito mais no propósito, alinhado com o que me Adorei essa forma como trouxeste… Pobreza, não pedido de desculpa de quem está como observador saben-
faz vibrar. Se eu adormecer e no dia seguinte despertar espiritual, mas pobreza. Essa é a grande verdade, foi a do que está do lado do privilégio de [ser] homem. Muitas
com aquela mensagem ainda a incomodar-me, sinto que espiritualidade que salvou a minha família, sem margem vezes essa pessoa que, fruto deste patriarcado, exerceu o
tenho de agir. Mas não me sinto um ativista, sinto-me um de dúvidas. seu poder e tomou decisões que penalizaram mulheres. É
cidadão a exercer o seu direito e sinto a responsabilidade o meu exercício de perdão e é uma canção para a minha
de não me silenciar perante injustiças e coisas que me E a fé também? mãe, porque é a pessoa que eu mais admiro, que mais me
fazem escrever e ser impulsivo. Quando partilhei com o A fé dos meus pais e, posteriormente, a minha espi- desafiou a ser o mais íntegro possível, mesmo que sinta
meu pai que ia tocar na Festa do Avante, no início do ritualidade. Porque com base nas crenças deles durante muitas vezes que falhei. E vou-me redimindo, porque é
conflito entre a Ucrânia e a Rússia, quando não havia uma algum tempo senti-me aprisionado, sentia que era mais uma construção. A minha mãe sempre foi esse colo de
posição muito clara sobre o conflito do partido que orga- ambicioso do que o lugar onde estava. Sentia que sonha- não-julgamento.
niza a festa e muita confusão na internet, ele temeu pela va com coisas, estando naquele Bairro dos Pescadores,
minha vida. Disse-lhe, antes de sair de casa: “Se for para com água a entrar por dentro de casa, com aqueles ratos a De que forma?
morrer por isto, pela liberdade de fazer o que eu sinto que comerem a roupa, com aquele cenário dantesco, o cheiro A minha mãe é uma criança que foi entregue pela sua
está certo…” da vala aberta… Mas ao mesmo tempo, olho para trás mãe, que estava no leito da morte, à minha avó Teresa,
e penso: todas as crianças que conseguiram sobreviver que cuidou dela e a mimou até aos seus 18 anos, até o
Quando o teu pai veio para Portugal, vivia onde? àqueles passeios com o chão inundado de seringas dos meu pai a trazer para Portugal. Nessa mulher mimada,
Veio primeiro para Sines. Felizmente, um padre – o toxicodependentes… As coisas que me impediam de ser eu vi uma mulher de muita força. Ela nunca deixou que a
padre César, que hoje é padrinho do meu filho – abrigava- mais livre, eu associava-as sempre à pobreza e não à cor. maltratassem. Teve um patrão que ultrapassou os limites
-o na igreja a partir das cinco da tarde, porque havia muita A questão do racismo para mim não era tão direta, não era ao dizer: “Vocês em África fazem muito mais do que
violência, muita gente revoltada com o facto de perderem tão clara, até eu crescer e realmente me aperceber. isto”, para insinuar que a minha mãe deveria ter um ato
pessoas na guerra, e aquela cor era sinónimo de revolta. sexual com ele, enfim, coisas que me foi contando só
Então, ele tinha os seus motivos para dizer: “Nunca fales Com essa tua vivência, podias ter caído para o em adulto, que eu não compreendia o porquê de ela às
de política, nunca isto, nunca aquilo.” Mas eu senti que outro lado. Pensas que podias ter-te tornado uma vezes ser tão dura e tão direta. Eu via aquela mulher a ir
já nasci num mundo mais livre, graças a ele também, e pessoa diferente, mais revoltada e amargurada, mas lavar roupa aos tanques no centro de Quarteira, depois ir
disse-lhe mesmo: “Se o pai está preocupado com a minha que usaste a tua revolta num sentido positivo, para trabalhar na copa em Vilamoura, depois fazer o seu curso
vida, então que seja esta ação a levar-me, e não o medo.” melhorar as coisas à tua volta? de cozinha para subir de estatuto e passar a cozinheira…
Foi aí que a fé dos meus pais nos salvou. A questão da Nós quase não víamos a minha mãe e, quando víamos,
Tiveste uma infância dura, mas nunca faltou amor. catequese, dos domingos garantidos de missa – por mais aquilo mexia comigo. A minha mãe adormecia com as
Imaginaste que poderias chegar aonde estás hoje, a que não me apetecesse fazê-lo, eu temia mesmo a ida para mãos em cima da mesa a latejarem e os tornozelos in-
viajar o mundo e a espalhar a tua mensagem e a tua o inferno. Toda aquela imagem, toda aquela construção do chados, e chorava… Fazia-me confusão, mas nós não
música? temor a Deus – eu tinha pesadelos, não podia ver o filme podíamos fazer nada.
Sonhar, sonhei. Mas quando olho para trás e penso “O Exorcista”! Se não fosse isso, eu garantidamente não
naquele puto, não acredito que ele chegou aqui. E mui- estaria aqui. Estaria com as pessoas com quem agora tra- Só mais tarde é que percebes que aquilo também
tas vezes, nos impulsos e nos receios, ainda sinto aquele balho no Estabelecimento Prisional do Linhó, que quando era amor.
Dino do Bairro dos Pescadores [em Quarteira]. começam a revelar a sua infância e o contexto, eu olho para Já pedi várias vezes perdão porque sinto que fui in-
mim e penso: “Pronto, eu seria uma destas pessoas.” Mas justo por não perceber, era uma criança. Eu fui para a es-
Quem era esse Dino? felizmente tinha medo de ir para o inferno, medo de pecar, cola sozinho. A minha mãe mostrou-me o caminho, mas
Não era tão feliz como eu achava. Vivia muito medo desses lugares que me protegeram e me trouxeram depois, com cinco anos, tive de ir sozinho. Nunca mais
condicionado, principalmente por não ter os pais em casa, até aqui. Por motivos que não considero certos, porque me esqueço, parece que fiquei traumatizado, com a minha
como alguns amigos. Lembro-me de um que tinha sempre acho que devemos amar Deus, ou seja, os nossos movi- mochilinha amarela a chegar ali e a ver todos os outros
a mãe em casa, e eu invejava um bocado aquela doçura. mentos nunca devem ser por medo, não é a energia certa alunos a chegarem com os pais, e eu estava sozinho. Hou-
Os meus pais quase não puderam passar tempo connosco. para nenhuma boa decisão. Mas foi esse medo que fez com ve momentos em que julguei a minha mãe por isso. Hoje
Ao crescer, apercebi-me de que fiquei com tantas feridas que, quando saltávamos para uma vivenda só para tomar reconheço que, realmente, ela fez de tudo. Até ficarmos
dessa ausência de afeto – a minha carência ser um sinóni- um banho de piscina, havia uns que queriam entrar dentro trancados em casa – era isso ou a rua.
mo de fraqueza, chorar muito e de repente ter de engolir o da casa, e eu nunca tive essa coragem, só tomava o meu
choro porque senão era uma criança feia… Enfim. banhinho e ia-me embora… É precisamente por isso.
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cardeal Jean-Claude Hollerich
Lembro-me de outro episódio em que referes a tua estabelecimento prisional. São pessoas que eu entendo, guerras de irmãos, o meu pai, que sabia que a minha mãe
mãe, mas que se calhar é o teu primeiro contacto com tenho empatia com o contexto de onde saíram. ia odiar ver–nos a lutar, disse-nos uma vez – nunca mais
o racismo, quando estavas na escola… Tinham que me esqueço: “Vocês não matam a minha mulher.” Ou
idade? Queres falar sobre esse projeto? seja: “Eu amo-vos muito, mas vocês não são prioridade
Foi no terceiro ano. Eu era muito falador, estava sem- Montei um estúdio, porque a música ajuda a libertar. em relação à vossa mãe. Porque um dia vocês formam as
pre distraído, e essa professora gritou: “Cala-te, preto!” Eles tinham sessões de terapia e não revelavam grande vossas famílias, vão-se embora, e quem vai ficar somos
Como éramos ainda alguns afrodescendentes, comecei a parte do que os amargurava. Até para termos terapia pre- nós os dois, por isso a vossa mãe é que é a minha priori-
ver para qual de nós era e vi que o olhar era direcionado cisamos de um pouco de literacia, de orientação. Eu de- dade. Sabendo que isto é uma coisa que ela nunca tolera-
para mim. Não disse nada, mas depois fui para casa e con- safiei-os a escreverem coisas que queriam dizer aos pais, ria, se voltar a acontecer, podem considerar-se órfãos de
tei à minha mãe. Na manhã seguinte, ela foi à escola, fez ao sistema, a traduzir tudo isso em canções. Ouvi e li coi- pai.” Foi uma coisa dura que ele disse, mas nunca mais
queixa e a professora foi mesmo despedida. sas… Consegui finalmente juntar em estúdio pessoas de lutámos. Sempre ouvi que os filhos são prioridade, mas
etnia cigana com pessoas de etnia africana e foi o primeiro realmente os filhos foram feitos por duas pessoas que se
Isso mostra que era uma mulher de garra. encontro em estabelecimentos prisionais dessas duas et- amam. O meu pai é uma pessoa assertiva, com os seus
Sim, e que na minha escola também havia mulheres. nias tão discriminadas e que têm muitas rivalidades, mas princípios, com as suas teimosias, mas, no que diz res-
A diretora também tinha coragem. que ali tinham em comum a mesma história. peito a dar palco à minha mãe – que merece –, o meu pai
nunca fica com os louros. Ele olha para mim e diz: “Tu
Na altura, não tinhas a sensação de que esse Tens muito esse sentimento de justiça, ou de és mesmo a tua mãe. Só que ela não teve a possibilidade,
comentário fosse racista? injustiça, e és um homem de causas. Tens agora a mas és.”
Nada. Nem sequer conhecia o termo racismo. Mas Associação Mundo Nôbu.
aquela expressão, “preto”, soou-me agressiva, rude. Fomos aos Estados Unidos ver um modelo de projeto Eles sempre te apoiaram para seguires o que
que trabalhasse com jovens e adolescentes, que se enqua- quisesses.
Fizeste até uma t-shirt recentemente que diz drasse com o contexto afrodescendente da Grande Lisboa, Muito. É aquela coisa: havia pobreza, mas a riqueza
“preto, estás na tua terra”. e felizmente encontrámos o The Brotherhood Sister Soul, espiritual fez com que nunca me dissessem: “Não faças,
Sim, já foi uma mensagem para o meu filho. Saben- no Harlem [Nova Iorque], que tem feito um trabalho ina- não sigas, não acredites”. Isso foi a maior herança.
do que infelizmente esse comentário ainda vai perdurar creditável nos últimos 30 anos, muito premiado e com
– tanto que, nesse ano, tinham tirado a vida ao Bruno uma taxa de sucesso para lá de 90%. Que sonhos tens hoje?
Candé com essa expressão. Fi-lo no sentido de proprieda- Ainda tenho alguns, mas já são menos. Quero muito
de, ou seja, “estás” mesmo na tua terra, é uma afirmação. O que é que eles fazem? ter a minha fundação em Cabo Verde para poder ajudar
Assume-te com a tua etnia até que possas só ser, e aí o Vêem jovens que têm potencial em desporto, artes, principalmente os artistas idosos e as mães que vivem no
prefixo “preto” já se pode ir embora. Este é agora o meu economia, o que seja. Procuram entender o potencial da- interior, porque sempre que se ajuda uma mãe é garantido
grande sonho: ser só o Dino, não o afrodescendente, não quela criança e dar-lhe ferramentas, com uma rede que que o filho não sai da escola, enquanto connosco, homens,
o luso-cabo-verdiano, etc. está disponível 24 horas por dia. Nós vamos iniciar um isso não é garantido. Em Cabo Verde sinto que há tanto
projeto de três a seis anos, dependendo da idade, com 160 jovem e tanto sonho por edificar, que acho que posso ser
Já és. Mas percebo que, de alguma maneira, crianças. uma mais-valia. E sei que isso vai alimentar-me a alma e
representes um grupo de pessoas. Acho que precisamos rejuvenescer-me.
de falar sobre este tema, que continua a ser um pouco Quem é que te inspira, na música e na vida?
tabu. Ainda há muito racismo em Portugal? A minha mãe, sem dúvida. Mas o meu pai é um Este artigo foi originalmente publicado no 15.º
É que muitas vezes não dá para explicar. São mi- exemplo do que quero ser enquanto homem. Naquelas número da revista DDD – D de Delta.
croagressões que vão acontecendo. Sempre disse que não
acreditava que Portugal era racista porque cresci num
ambiente em que ali, no sul de Portugal, as imagens não
eram nada distantes das que víamos no início dos anos 90
da UNICEF a fazer aquelas campanhas em África. Era a
mesma realidade, só que num país europeu. Eu via pes-
soas brancas nas mesmas condições. Por isso é que disse:
“Não é racismo, é pobreza. O que eu vejo em Portugal é
um flagelo que se chama pobreza. Grande parte da popu-
lação é pobre.” As coisas que me impediam de ser mais
livre, eu associava-as sempre à pobreza, não à cor.
8| Opinião
Crónicas |9
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