TN Maio 2024 Final

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Diretor: Frei Gilson Frede

Edição: No 545 - Ano XLIX - Maio de 2024


Edição online
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Ministério Público faz buscas na Câmara Municipal da Praia Pág.3

E N T R E V I S TA :

DINO D’SANTIAGO:
“A FÉ DOS MEUS PAIS SALVOU-NOS”
Pág.6-7

ATUALIDADE
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
DISTINGUE ANTIGO DEFENSOR
DE PRESOS POLÍTICOS Pág.3

RELIGIÃO
O PAPA FRANCISCO
CABO VERDE E
SENEGAL DESTACARAM
PROMULGOU A BULA DE
ÁREAS IMPORTANTES INDICAÇÃO PARA O ANO
DE COOPERAÇÃO Pág.3 JUBILAR DE 2025 Pág.10

QUEM ASSINA UM JORNAL INDEPENDENTE,


ASSINA UM COMPROMISSO COM A DEMOCRACIA.
S E J A A S S I N A N T E D O T E R R A N O VA
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Para ajudar os Missionários Capuchinhos em São Tomé e

2| Abertura Príncipe, encaminhe a sua oferta para os Irmãos Capuchinhos


de Cabo Verde. Conta BCA nº 4123083

A lei é útil se realmente


FREI GILSON FREDE mudar o mundo.
Artigo do Papa Francisco

Todos os seres
humanos são belos
Ensinar a ver a beleza nos outros, torna-nos mais tolerantes e menos exigen-
tes connosco próprios. Torna-nos mais humanos.
Não há dúvida que a percepção do belo está inscrita no que é sermos huma-
nos. A beleza faz-nos estremecer, faz-nos viajar até longe para a observarmos
e comovermo-nos, faz-nos parar junto ao mar para nos maravilharmos com um
pôr-do-sol. Faz-nos sorrir, chorar, sentir e pode mesmo fazer-nos enamorar. É
sempre belo o fruto do nosso amor. São sempre belos os nossos amigos.

Mas, como diz o ditado, “não há bela sem senão”. A beleza e o seu signifi-
cado é de tal modo impactante que pode tornar-se uma obsessão e, hoje como
outrora, os jovens prendem-se aos padrões de beleza, às definições do que é belo
e são capazes de sentir que, ao não obedecerem a esses parâmetros, não podem
estar bem com o seu rosto, com o seu corpo, acabando por se deixar dominar pela
baixa auto-estima.

Esses padrões são de tal modo dominantes, que temos jovens africanas que
desfrisam os seus caracóis para usarem cabelos lisos; jovens asiáticas que fazem
cirurgias para tornar os olhos maiores ou os narizes mais finos; jovens indianas
que usam branqueadores de pele para ficarem mais claras. Tudo isto porque o
padrão que domina os seus subconscientes é o da jovem branca, de cabelos lisos e
louros e, claro, de olhos azuis. A ditadura da beleza domina as redes sociais onde
a maioria das crianças e adolescentes navegam — já são notícia as crianças de 8 “Estou satisfeito por estarmos a tra- diferenciando-se das meras declarações de
anos que acordam mais cedo para se maquilharem antes de saírem para a escola, balhar no projeto de uma Constituição da princípio. “Da mesma forma que o amor –
fruto dos tutoriais do TikTok; ou os jovens que não se conseguem ver sem os Terra e que se esteja a pensar na sua eficá- dissemos – também a justiça e a solidarieda-
filtros das redes sociais, preferindo a sua imagem com filtros. cia, cada vez mais dramaticamente neces- de não são alcançadas de uma vez por todas,
sária para garantir o bem comum”, escreve mas devem ser conquistadas dia após dia”.
Muito tem sido feito para desmistificar estes padrões de beleza, desde campa- o Papa Francisco, em artigo publicado por Il Estou satisfeito por estarmos a trabalhar
nhas publicitárias a mudanças na seleção das modelos que passam a alta-costura Manifesto. no projeto de uma Constituição da Terra e
nas semanas da moda, ou dos actores que são escolhidos para protagonistas de que se esteja pensando na sua eficácia, cada
filmes e de séries. Essas mudanças passam também pelos bonecos com que as O direito é uma prática e um instrumen- vez mais dramaticamente necessária para
crianças brincam — a Barbie já não tem medidas irrealistas, mas pode ser forte, to. Incorpora valores que, é claro, podem garantir o bem comum. E é imprescindível
baixa, ter trissomia 21 ou mesmo andar de cadeira de rodas, para que as crianças perfeitamente corresponder aos nossos sen- chegar a “organismos mundiais mais efica-
compreendam que a diversidade existe e os padrões podem ser muitos. Até as timentos. Mas realmente serve apenas na zes, dotados da autoridade necessária para
princesas da Disney deixaram de ser jovens do centro da Europa, como Cinderela medida em que é efetivo e gera mudanças garantir o bem comum mundial, a erradica-
ou Branca de Neve, e temos protagonistas que além de serem de outras etnias, na realidade do mundo. ção da fome e da pobreza e a efetiva defesa
são jovens fortes e independentes como a chinesa Mulan ou a índia Pocahon- As catástrofes descritas pelo dos direitos humanos elementares».
tas (sei que há umas mais recentes, mas eu fiquei parada nos finais dos anos 90, professor Ferrajoli, sobre as quais tantas O direito romano transmitiu ao mundo o
desculpem). vezes expressamos o nosso alarme, dizem- princípio alterum non laedere. Convido-vos
nos que já não há mais tempo e que é pre- a completá-lo com o princípio agir em favor
Toda esta diversidade do belo é importante para que os mais novos cresçam ciso empenharmo-nos em ações concretas. dos outros, para que todos juntos possamos
de maneira saudável, não focados em si e nas suas necessidades. Esta diversidade Para enfrentar os perigos globais que realizar o sonho mundial da irmandade.
está cada vez mais presente nas escolas portuguesas e pode ser abraçada, com a a própria ação humana gerou e continua Não é uma utopia. Pensemos na perife-
ajuda dos pais. Como é simpática a amiga ucraniana com os seus totós louros, a gerar, são necessários acordos de ajuda ria do mundo, porque “quando a sociedade
como é querida a amiga nepalesa com os seus olhos enormes, como é divertida mútua efetivamente vinculantes. Ninguém – local, nacional ou global – abandonar uma
a amiga brasileira com o seu sotaque doce. Ensinar a ver a beleza nos outros, deve sentir-se estranho ao que acontece na parte de si mesma na periferia, não haverá
torna-nos mais tolerantes e menos exigentes connosco próprios. Torna-nos mais nossa casa comum. programas políticos ou medidas policiais
humanos. Por isso, é obrigar os mais pequenos a tirar os olhos do ecrã e deixá-los É assim que o direito deve ser que possam garantir a segurança a longo
espraiar pelo mundo, para que se comovam com a beleza. implementado e tornar-se efetivo, prazo”.

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O Mês: Os fatos importantes das últimas 720 horas |3


por dentro de todas as notícias do país e da
diáspora.

PRESIDENTE DA
REPÚBLICA DISTINGUE
ANTIGO DEFENSOR DE
PRESOS POLÍTICOS
O Presidente da República, José Maria Ne-
ves, atribuiu hoje a Felisberto Vieira Lopes, a
título póstumo, a Ordem Amílcar Cabral, Se-
gundo Grau, em reconhecimento pelo percurso
do antigo advogado na sua luta pela liberdade e
dignidade da nação.
Por ocasião das comemorações do 50.º ani-
versário da libertação dos presos políticos do
Campo de Concentração do Tarrafal, o chefe de
Estado justificou que o reconhecimento atribuí-
do é um “ato de justiça” e que Felisberto Vieira
Lopes é “uma figura marcante da história política

Ministério Público faz buscas na contemporânea de Cabo Verde”.


“Muitos jovens foram mobilizados graças à
pedagogia política feita por Vieira Lopes”, real-
Câmara Municipal da Praia çou José Maria Neves, apontando que este des-
tacado defensor fez com que muitos tomassem
consciência da necessidade de lutar pela liberda-
A Câmara Municipal da Praia está a ser alvo de citando como exemplos a aquisição dos seis camiões de e de lutar pela dignidade da pessoa humana.
buscas pelo Ministério Público, por alegadas irregu- de recolha de lixo feita sem a deliberação da Câmara “Hoje podemos ver muitos testemunhos de
laridades. Municipal da Praia, e a venda de património municipal cabo-verdianos que aderiram à luta pela liber-
O presidente da Câmara Municipal da Praia come- também sem a aprovação do colectivo camarário (pre- dade e pela independência, graças ao empenho
çou a ser julgado a 7 de Março último num processo sidente e vereadores). cívico de Vieira Lopes”, acrescentou.
movido pelos vereadores do MpD, Maria Aleluia e Ma- Entretanto, para Francisco Carvalho as portas da O chefe de Estado lembrou que o contribu-
nuel Alves, por supostas “ilegalidades graves” na ge- Justiça vão continuar abertas, já que há um outro pro- to de Vieira Lopes foi “ainda maior” no auge do
stão da autarquia, que pode levar à perda do mandato cesso judicial contra ele, desta feita por causa da carta combate ao colonialismo, quando vários jovens
de Francisco Carvalho. de despedimento do inspector Renato Fernandes em que foram presos injustamente e ele foi um “defensor
A queixa dos vereadores Maria Aleluia e Manuel denuncia uma série de “irregularidades e ilegalidades”
a sério nos tribunais”.
Alves assenta na aprovação dos orçamentos de 2022 e na gestão do município e que o MpD fez chegar ao Mi-
Defendeu quem, era “encarcerado por causa
2023, que terão passado sem que fossem respeitados “os nistério Público. Sobre este caso, o procurador-geral
das suas ideias, dos seus sonhos, dos seus ideais
procedimentos legais”, uma “prática reiterada de ilega- da República já comunicou a abertura de instrução do
processo no Departamento Central da Acção Penal para de libertação. Hoje muitos deles lembram-se da
lidades”, de acordo com a acusação, que aponta ausên-
cia de reuniões, casos de deliberações sem quórum e averiguar os factos denunciados. coragem, da inteligência de Vieira Lopes, de um
a justificação do “voto de qualidade”, situações que, O presidente da Câmara Municipal da Praia, Fran- homem destemido a lutar pela realização da jus-
conforme os Estatutos do Município, obrigam à perda cisco Carvalho, tinha assegurado à imprensa que o tri- tiça”, declarou José Maria Neves, indicando que
de mandato por configurar “ilegalidade grave”. bunal da República “não conseguiu e nunca vai con- Cabo Verde “precisa de homens como Felisberto
A acusação denuncia ainda a execução de despesas seguir absolutamente nada” em relação à sua gestão Vieira Lopes e da sua generosidade”.
e de receitas sem deliberação do colectivo camarário, alegadamente corrupta na câmara municipal. Vieira Lopes nasceu na ilha de Santiago, em
Santa Catarina, em 1937.
Licenciado em Direito, em Lisboa, foi autor
de várias obras literárias e era dos mais antigos

Cabo Verde e Senegal destacaram advogados do país, até falecer no dia 3 de abril
de 2020.

áreas importantes de cooperação


Cabo Verde e Senegal destacaram áreas importan- portantes de cooperação, sublinhando que a “visita es-
tes de cooperação, visando o desenvolvimento dos dois tratégica” abre caminho para o reforço dessas relações.
países, assuntos que foram discutidos hoje no Palácio “Temos áreas dos transportes, turismo, energia,
da Presidência, à margem da visita que o chefe de Esta- das trocas comerciais que possibilitam o reforço das
do do Senegal efectua ao arquipélago. relações entre os dois países, designadamente através
Bassirou Diomaye Faye encontra-se em Cabo Ver- de relações marítimas e também a possibilidade de
de para uma visita de algumas horas, acompanhado por cooperarmos e articularmos posições tanto no quadro
uma delegação de membros do Governo senegalês, da Comunidade Económica dos Estados da África Oci-
incluindo os ministros dos Negócios Estrangeiros, da dental (CEDEAO) quanto da União Africana”, disse
Energia, Transportes, Indústria e Comércio, no quadro José Maria Neves.
de um périplo por países da África Ocidental. O chefe de Estado cabo-verdiano salientou que o
Em declarações à imprensa, após um encontro en- país está satisfeito e honrado com a visita, esperando
tre os dois chefes de Estado, seguido por uma conver- que, “efectivamente”, seja o início de um trabalho pro-
sação entre as delegações dos dois países, o Presidente dutivo de relações entre Cabo Verde e Senegal.
cabo-verdiano, José Maria Neves felicitou a presença Por sua vez, o Presidente senegalês, Bassirou Faye,
do seu homólogo ao arquipélago, considerando que o sublinhou que para além do quadro bilateral entre os
encontro abre caminhos de cooperação entre os dois dois países, Cabo Verde e Senegal partilham também
países. relações a nível da sub-regional e regional.
O Senegal é um país democrático, disse José Maria Bassirou Diomaye Faye lembrou ainda que no
Neves e há uma grande comunidade cabo-verdiana no sector dos transportes, o serviço de viagens marítimas
Senegal, bem integrada e que participa activamente no oferece “grandes oportunidades” de circulação de pas-
processo global político, económico e social do país de sageiros e comerciantes, frisando, de igual modo, que
acolhimento. a CEDEAO incentiva e permite “fundamentalmente”
O Presidente cabo-verdiano referiu-se às áreas im- essa ligação de pessoas e bens.
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4| Igreja

PAPA: Diante do descarte e


solidão na velhice, coragem em
não abandonar os idosos

EMRC com “impacto positivo” no


comportamento e na “melhoria
na aprendizagem” dos alunos
O presidente da comissão nacional da primeiro ciclo, como também do sétimo e O Papa divulgou nesta terça-feira (14/05) a mensagem para o IV Dia Mundial dos
disciplina Educação Moral e Religiosa Ca- oitavo anos de escolaridade. Avós e dos Idosos, que será celebrado em 28 de julho. “Na velhice, não me abandones”
tólica (EMRC), padre José Eduardo, enal- Neste momento, explicou, a aposta (Sal 71, 9) é o tema de reflexão proposto pelo Pontífice: “à atitude egoísta que leva ao
teceu hoje a importância deste ensino no tem sido essencialmente no ensino primá- descarte e à solidão, contraponhamos o coração aberto e o rosto radioso de quem tem a
contexto escolar pelo “impacto positivo” rio, por acreditarem que é desde pequenino coragem de dizer «Não te abandonarei!»”.
no comportamento e “melhoria na apren- que se deve “incutir e transformar o cora- O Papa Francisco divulgou a mensagem para o IV Dia Mundial dos Avós e dos Idosos,
dizagem” dos alunos. ção, a vida e a mente” dessas crianças, que celebrado todo quarto domingo de julho, próximo à memória litúrgica dos Santos Joaquim
O sacerdote falava à imprensa no âm- no futuro vão assumir a condução do país. e Ana, avós de Jesus. Neste ano, será comemorado em 28 de julho e o Pontífice oferece
bito da Semana da EMRC, sob o lema Na Educação Moral e Religiosa, avan- uma reflexão proposta do Salmo 71, “Na velhice, não me abandones” (Sal 71, 9), voltando
“EMRC, como lugar de promoção da çou, são privilegiados valores sociais que a tratar da rejeição na melhor idade, quando as pessoas enfrentam contextos de solidão e
paz e da liberdade”, que juntou alunos também, sublinhou, são valores de inspira- sentimentos de descarte.
de diversas escolas contempladas com a ção cristã, sendo que o projecto de EMRC A mensagem começa encorajadora, ao recordar que “Deus nunca abandona os seus fi-
lhos; nem sequer quando a idade vai avançando e as forças já declinam, quando os cabelos
disciplina, no Centro Educativo Miraflores. vem ajudar a Igreja Católica na “empreita-
ficam brancos e a função social diminui, quando a vida se torna menos produtiva e corre o
O responsável assegurou que a disci- da de resgatar valores” que hoje estão “em
risco de parecer inútil. O Senhor não olha para as aparências (cf. 1 Sam 16, 7),” destaca o
plina Educação Moral e Religiosa Católica erosão” na sociedade cabo-verdiana.
Papa no texto. Esse “amor fiel do Senhor”, do “modo como Deus cuida de nós”, continua
tem conquistado “cada vez mais espaço e Sobre os resultados, assegurou que há ele, é revelado em toda Sagrada Escritura e, sobretudo, nos salmos: “aliás, segundo a Bí-
importância” no contexto escolar, contan- escolas em que os próprios directores têm blia, é sinal de bênção poder envelhecer”.
do com “crescente aceitação e participa- testemunhado até publicamente que houve A solidão na velhice
ção” das famílias e dos alunos a cada ano melhorias de comportamento na aprendi- Mas, nos próprios salmos, também encontramos “esta sentida invocação ao Senhor:
letivo que passa. zagem e melhorias nas notas dos alunos, «Não me rejeites no tempo da velhice» (Sal 71, 9). Uma frase forte, crua. Faz pensar no
Explicou que a sua introdução no sis- fruto desta disciplina. sofrimento extremo de Jesus, quando gritou na cruz: «Meu Deus, meu Deus, porque me
tema do ensino cabo-verdiano foi fruto de Esclareceu que o projecto tinha um pe- abandonaste?» (Mt 27, 46)”. Assim, encontramos na Bíblia tanto “a certeza da proximi-
um acordo jurídico estabelecido entre o ríodo experimental de três anos, conforme dade de Deus” como “o temor do abandono, especialmente na velhice e nos períodos de
Estado de Cabo Verde e a Santa Sé, sendo o acordado com o Governo, para ver se sofrimento”. Isso porque é um reflexo da realidade, já que os idosos “com frequência”,
que este ano celebram-se os dez anos desse realmente valia a pena avançar, e, depois encontram a solidão.
acordo. desse tempo, com a avaliação feita dos im- “Muitas vezes sucedeu-me, como bispo de Buenos Aires, ir visitar lares de terceira
E a sua afirmação, aceitação e adesão pactos tanto pelo Ministério da Educação idade, dando-me conta de como raramente recebiam visitas aquelas pessoas: algumas, há
no sistema de ensino tem vindo a aumen- como pela equipa do projecto, revelou que muitos meses, não viam os seus familiares.”
tar, segundo o secretariado diocesano de se chegou à conclusão de que não podem O Papa Francisco, então, traz algumas causas dessa solidão, provenientes, por exem-
EMRC a cada ano letivo, considerando que parar. plo, de situações de pobreza e conflitos, migrações e hostilidades dos jovens em relação
aos idosos – essa uma mentalidade que deve ser “combatida e erradicada”, escreve o Pon-
o número de aluno passou, sucessivamen- Isto tendo em conta, conforme assina-
tífice, para não alimentar “uma certa conflitualidade geracional”: “se pensarmos bem, está
te, de 1466, em 2019/2020, para 2352, em lou, os “benefícios variados” que a mesma
hoje muito presente por todo o lado esta acusação, lançada contra os velhos, de «roubar o
2020/2021, 4067, em 2021/2022, 7113, em trouxe a nível educativo e moral, mas
futuro aos jovens»”:
2022/2023 e 12 005, em 2023/2024. também comportamental dos alunos, daí “O contraste entre as gerações é um equívoco, um fruto envenenado da cultura do
A mesma fonte afirmou que a evolução que a intenção é alargá-la gradualmente a conflito. Opor os jovens aos idosos é uma manipulação inaceitável: ‘O que está em jogo é
é “satisfatória”, uma vez que começaram mais escolas. a unidade das idades da vida’.”
com menos de mil alunos e agora a disci- O descarte dos idosos
plina já chegou a mais de 12 mil alunos do TN com informações da Inforpress “A solidão e o descarte dos idosos não são casuais nem inevitáveis, mas fruto de op-
ções – políticas, económicas, sociais e pessoais – que não reconhecem a dignidade infinita
de cada pessoa”, continua Francisco na mensagem ao acrescentar nesse pacote triste da

EU Católica e Assembleia Nacional terceira idade, o descarte. O Papa afirma o quanto os idosos e as próprias famílias acabam
sendo vítimas da “cultura individualista” porque, quando se envelhece, as pessoas ficam
sem ajuda de ninguém: “cada vez mais «perdemos o gosto da fraternidade» (FRANCISCO,
firmam protocolo de cooperação Carta enc. Fratelli tutti, 33)”.
“Isto acontece quando se perde vista o valor de cada pessoa, tornando-se ela apenas
uma despesa que, em alguns casos, parece demasiado elevada para pagar. O pior é que,
A Escola Universitária Católica de Através deste acordo, destacou, pre- muitas vezes, acabam dominados por esta mentalidade os próprios idosos que chegam a
Cabo Verde (EU Católica) e a Assembleia tendem reforçar o compromisso com o considerar-se como um fardo, sendo os primeiros a quererem desaparecer.”
Nacional firmam um acordo de cooperação desenvolvimento contínuo e a capacitação “A solidão e o descarte tornaram-se elementos frequentes no contexto em que estamos
possibilitando o desenvolvimento profis- profissional, contribuindo também para o imersos”. Mas, a Sagrada Escritura apresenta opções diferentes face à velhice, porque “vi-
sional e académico em diversas áreas de avanço educacional e científico em Cabo ver sozinhos não pode ser a única alternativa”. Diante de um «não me abandones», é pos-
interesse de ambas as instituições. O acto Verde. sível responder «não te abandonarei!», cuidando “de um idoso ou simplesmente demons-
teve lugar no salão de banquetes da As- Como parte desta cooperação, adian- trando diariamente solidariedade a parentes ou conhecidos que não têm mais ninguém”.
sembleia, na Cidade da Praia. tou que a EU Católica vai oferecer vá- Manter-se junto aos idosos, comenta ainda Francisco, reconhecer “o papel insubstituível
O principal objectivo, adiantou, é esta- rios cursos como Pós-Graduação em que eles têm na família, na sociedade e na Igreja, também nós receberemos muitos dons,
belecer e desenvolver acções de coopera- Psicologia Positiva nas organizações e no tantas graças, inúmeras bênçãos!”.
“Neste IV Dia Mundial a eles dedicado, não deixemos de mostrar a nossa ternura aos
ção nos domínios da formação e qualifica- trabalho, o Aperfeiçoamento em Retórica
avós e aos idosos das nossas famílias, visitemos aqueles que estão desanimados e já não
ção dos deputados da nação e funcionários e interação com a Comunidade e o curso
esperam que seja possível um futuro diferente. À atitude egoísta que leva ao descarte e à
da Assembleia Nacional, bem como outras de Aperfeiçoamento em Bem-Estar no solidão, contraponhamos o coração aberto e o rosto radioso de quem tem a coragem de
áreas de interesse mútuo. Ambiente Laboral. dizer «Não te abandonarei!» e de seguir um caminho diferente.”
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Reflexão |5

A Vez do Consumidor: VOZES e ECOS


Direção da ADECO

ADECO: 26 anos de desafios e conquistas


em defesa do Consumidor relembrados
pelos Ex-Presidentes PRAIA: 60 FAMÍLIAS
Em 26 anos de existência, a ADECO teve cinco Marco Cruz – “Foi um grande desafio tentar BENEFICIADAS COM
Presidentes do Conselho da Direção. Em entrevista,
os quatro ex-Presidentes da Associação para Defesa
reajustar a ADECO em um momento de poucos
recursos financeiros, por arrasto também poucos CERCA DE COM
do Consumidor responderam a algumas questões so- recursos humanos, e fazer com que a associação
bre as conquistas e desafios enfrentados pela ADE- continuasse a funcionar ajustando-a aos recursos CINCO MIL PINTOS
CO durante seus mandatos, e quais os seus desejos disponíveis na época.”
para a associação.
Questionados sobre a maior conquista da asso-
PARA CRIAÇÃO
1.º Presidente e Membro Fundador, João do ciação durante o seu mandato, essas foram as res-
Rosário postas:
A Câmara Municipal da Praia, em parceria
– “O primeiro desafio importante foi criar a as- João do Rosário - “A maior conquista foi a ade-
sociação, porque era algo novo. Criar algo é sempre são intelectual à associação. Não estou a falar da com a empresa privada “UPRANIMAL” , distri-
mais complexo. O outro desafio era a sua subsistên- adesão dos associados que pagavam a quota, mas buiu, recentemente, cinco mil pintos para cria-
cia pois tinha de passar por um escritório indepen- sim da intelectual. A maioria das pessoas, quando ção, beneficiando cerca de 60 famílias, oriundas
dente, não podia ficar num espaço da Câmara.” falamos da ADECO, aceita-a de bom grado. Se hoje
de diferentes bairros da Praia.
João do Rosário ainda relembrou que a ideia de a ADECO vai fazer 26 anos, é porque a sociedade
criar a ADECO, nome inspirado na associação por- precisava da associação. Se tivesse sido feito apenas Convém realçar que trata-se da segunda edi-
tuguesa DECO, surgiu quando ainda era Vereador naquele quadro de quatro anos, já não existia. En- ção desta iniciativa, enquadrada na “política de
da CMSV e tinha o pelouro de Defesa do Consumi- tão, foi uma grande conquista ter passado a ADE- promoção da autonomia e autossuficiência dos
dor. Recebia avalanches de queixas, inclusive contra CO para a sociedade civil.”
beneficiários do Programa Emergencial Social”.
a Câmara, pelo que lhe pareceu que a defesa do con- Alcides Graça - “A maior conquista foi levar a
sumidor tinha de passar para a Sociedade Civil. Foi CMSV a assumir a sua responsabilidade no senti- Durante o ato de entrega, o Vereador Fernan-
então que surgiu a ideia de criar a ADECO. do de disponibilizar um espaço para a ADECO. Foi do Pinto, em representação do Presidente da Câ-
uma luta difícil. E nós conseguimos. A primeira sede mara Municipal da Praia, destacou a confiança
2.º Presidente e Membro Fundador, Alcides da ADECO foi no Mercado Municipal. O Presidente
das empresas privadas em cooperar com a Au-
Graça – 2000-2023 da CMSV, na altura, era o engenheiro Faria, a Câ-
- “Eu diria que o maior desafio foi a constituição mara cedeu-nos um espaço de instalação e de fun- tarquia, visando a melhoria da qualidade de vida
da ADECO. Como sabe, em Cabo Verde, constituir cionamento da ADECO.” dos munícipes.
uma associação de fins não lucrativos é complica- António Pedro Silva - “A maior conquista é, de “Este ato é sinal de que estas empresas acre-
do. Encontrar pessoas com disponibilidade para in- facto a existência da ADECO como uma associação.
ditam na gestão transparente desta atual equipa
tegrar órgãos sociais e depois participar ativamente Não de âmbito regional, pensado só para São Vicen-
de uma forma cívica, sem remunerações, é uma ta- te, mas uma associação de âmbito nacional, com im- camarária, que tem como foco ajudar as famílias
refa complexa.” pacto internacional e com renome. E sendo a orga- na gestão dos seus recursos para o sustento fa-
Alcides Graça acrescentou que a sensibilização nização de referência, até há pouco tempo, era uma miliar”, sublinhou Fernando Pinto que chegou a
da população para a importância de uma associação das melhores associações de consumidores a nível
destacar também as diversas formações minis-
de defesa dos consumidores foi outro dos grandes de África. E no universo da CPLP, fora os casos do
desafios. Disse que na altura foi um longo e difícil Brasil e Portugal, é de longe a melhor associação de tradas no âmbito do Projeto “Criando Oportuni-
trabalho fazer as pessoas mudarem o chip e aceitar defesa dos consumidores.” dades”.
os direitos dos consumidores. Houve muita resistên- Marco Cruz - “Acho que a conquista foi conse- Por sua vez, Alberto Rosa, enquanto bene-
cia, os próprios consumidores quase pediam favores guirmos fazer uma transição para um novo momen-
ficiário, mostrou a sua gratidão perante o ges-
aos fornecedores de bens e serviços para reivindicar to, conseguir exatamente que a ADECO avançasse,
os seus direitos. reorganizar a associação e adaptá-la. Também acre- to das duas instituições e fez uma chamada de
dito que a instalação do gabinete jurídico foi uma atenção para as famílias beneficiadas, no sentido
3.º Presidente, António Pedro Silva – 2004- grande conquista, que nos permitiu prestar um ser- de saberem gerir esta atividade.
2018 viço aos nossos associados, à sociedade em geral,
“Esta iniciativa é de louvar porque muitas fa-
António Pedro Silva - “Penso que o maior de- em termos de aconselhamento, orientações, de uma
safio tem a ver com o Estado de Cabo Verde que tem forma geral.” mílias não possuem condições financeiras para
falhado a nível do Poder Central, da Presidência da E para terminar os quatro ex-presidentes deseja- adquirir esses pintos. Se souberem criar e gerir
República, da Assembleia Nacional e principalmen- ram à ADECO que continue uma associação rejuve- bem o que receberam, de certeza que irão ter
te ao nível da autarquia. E o caso pior, vergonhoso nescida e que esteja ao lado da população; tenha uma
uma fonte de rendimento”, frisou Alberto Rosa.
mesmo, é o caso da CMSV, melhor, não da Câmara, implantação efetiva em todo o território nacional,
do atual Presidente da CMSV.” em todas as ilhas, autonomia financeira e técnicos A Câmara Municipal realçou que o objetivo
capazes de posicionar com propriedade em questões principal é buscar alternativas de subsistência
4.º Presidente, Marco Cruz – 2019-2021. técnicas específicas; Justiça! Deve haver uma deci- para os munícipes e apostar no empoderamento
Marco Cruz começou declarando que a ADECO são rápida do Supremo Tribunal de Justiça sobre o
das famílias.
sempre teve problemas de recursos financeiros. E caso da ADECO contra a CMSV; E que continue a
que quando assumiu a gestão, a questão financeira ser uma associação relevante para a sociedade, que
agravou-se ainda mais, pois o projeto financiado possa unir os consumidores, e consiga empurrar a TN com informações da CMP
pela União Europeia tinha terminado. agenda da defesa do consumidor em Cabo Verde.
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6|

Numa entrevista que teve lugar


no Centro Cultural de Cabo
Verde em Lisboa, à revista
D de Delta, Dino d’Santiago
conversou sobre música e ação
social, as suas raízes humildes
e os sonhos para o futuro. O
artista falou da fé dos pais que
o livrou do mau caminho, dando
ênfase à catequese e à missa
aos domingos.

DINO D’SANTIAGO:
“A FÉ DOS MEUS PAIS SALVOU-NOS”
Usas a tua voz para falar de temas importantes. É Nasces e cresces num contexto difícil, numa O que te leva a dar voz à figura feminina?
um dever ou é um propósito maior? pobreza que não era espiritual, mas que era pobreza. Lá está: sempre a fé e a religião. Foi uma confissão,
Acredito mais no propósito, alinhado com o que me Adorei essa forma como trouxeste… Pobreza, não pedido de desculpa de quem está como observador saben-
faz vibrar. Se eu adormecer e no dia seguinte despertar espiritual, mas pobreza. Essa é a grande verdade, foi a do que está do lado do privilégio de [ser] homem. Muitas
com aquela mensagem ainda a incomodar-me, sinto que espiritualidade que salvou a minha família, sem margem vezes essa pessoa que, fruto deste patriarcado, exerceu o
tenho de agir. Mas não me sinto um ativista, sinto-me um de dúvidas. seu poder e tomou decisões que penalizaram mulheres. É
cidadão a exercer o seu direito e sinto a responsabilidade o meu exercício de perdão e é uma canção para a minha
de não me silenciar perante injustiças e coisas que me E a fé também? mãe, porque é a pessoa que eu mais admiro, que mais me
fazem escrever e ser impulsivo. Quando partilhei com o A fé dos meus pais e, posteriormente, a minha espi- desafiou a ser o mais íntegro possível, mesmo que sinta
meu pai que ia tocar na Festa do Avante, no início do ritualidade. Porque com base nas crenças deles durante muitas vezes que falhei. E vou-me redimindo, porque é
conflito entre a Ucrânia e a Rússia, quando não havia uma algum tempo senti-me aprisionado, sentia que era mais uma construção. A minha mãe sempre foi esse colo de
posição muito clara sobre o conflito do partido que orga- ambicioso do que o lugar onde estava. Sentia que sonha- não-julgamento.
niza a festa e muita confusão na internet, ele temeu pela va com coisas, estando naquele Bairro dos Pescadores,
minha vida. Disse-lhe, antes de sair de casa: “Se for para com água a entrar por dentro de casa, com aqueles ratos a De que forma?
morrer por isto, pela liberdade de fazer o que eu sinto que comerem a roupa, com aquele cenário dantesco, o cheiro A minha mãe é uma criança que foi entregue pela sua
está certo…” da vala aberta… Mas ao mesmo tempo, olho para trás mãe, que estava no leito da morte, à minha avó Teresa,
e penso: todas as crianças que conseguiram sobreviver que cuidou dela e a mimou até aos seus 18 anos, até o
Quando o teu pai veio para Portugal, vivia onde? àqueles passeios com o chão inundado de seringas dos meu pai a trazer para Portugal. Nessa mulher mimada,
Veio primeiro para Sines. Felizmente, um padre – o toxicodependentes… As coisas que me impediam de ser eu vi uma mulher de muita força. Ela nunca deixou que a
padre César, que hoje é padrinho do meu filho – abrigava- mais livre, eu associava-as sempre à pobreza e não à cor. maltratassem. Teve um patrão que ultrapassou os limites
-o na igreja a partir das cinco da tarde, porque havia muita A questão do racismo para mim não era tão direta, não era ao dizer: “Vocês em África fazem muito mais do que
violência, muita gente revoltada com o facto de perderem tão clara, até eu crescer e realmente me aperceber. isto”, para insinuar que a minha mãe deveria ter um ato
pessoas na guerra, e aquela cor era sinónimo de revolta. sexual com ele, enfim, coisas que me foi contando só
Então, ele tinha os seus motivos para dizer: “Nunca fales Com essa tua vivência, podias ter caído para o em adulto, que eu não compreendia o porquê de ela às
de política, nunca isto, nunca aquilo.” Mas eu senti que outro lado. Pensas que podias ter-te tornado uma vezes ser tão dura e tão direta. Eu via aquela mulher a ir
já nasci num mundo mais livre, graças a ele também, e pessoa diferente, mais revoltada e amargurada, mas lavar roupa aos tanques no centro de Quarteira, depois ir
disse-lhe mesmo: “Se o pai está preocupado com a minha que usaste a tua revolta num sentido positivo, para trabalhar na copa em Vilamoura, depois fazer o seu curso
vida, então que seja esta ação a levar-me, e não o medo.” melhorar as coisas à tua volta? de cozinha para subir de estatuto e passar a cozinheira…
Foi aí que a fé dos meus pais nos salvou. A questão da Nós quase não víamos a minha mãe e, quando víamos,
Tiveste uma infância dura, mas nunca faltou amor. catequese, dos domingos garantidos de missa – por mais aquilo mexia comigo. A minha mãe adormecia com as
Imaginaste que poderias chegar aonde estás hoje, a que não me apetecesse fazê-lo, eu temia mesmo a ida para mãos em cima da mesa a latejarem e os tornozelos in-
viajar o mundo e a espalhar a tua mensagem e a tua o inferno. Toda aquela imagem, toda aquela construção do chados, e chorava… Fazia-me confusão, mas nós não
música? temor a Deus – eu tinha pesadelos, não podia ver o filme podíamos fazer nada.
Sonhar, sonhei. Mas quando olho para trás e penso “O Exorcista”! Se não fosse isso, eu garantidamente não
naquele puto, não acredito que ele chegou aqui. E mui- estaria aqui. Estaria com as pessoas com quem agora tra- Só mais tarde é que percebes que aquilo também
tas vezes, nos impulsos e nos receios, ainda sinto aquele balho no Estabelecimento Prisional do Linhó, que quando era amor.
Dino do Bairro dos Pescadores [em Quarteira]. começam a revelar a sua infância e o contexto, eu olho para Já pedi várias vezes perdão porque sinto que fui in-
mim e penso: “Pronto, eu seria uma destas pessoas.” Mas justo por não perceber, era uma criança. Eu fui para a es-
Quem era esse Dino? felizmente tinha medo de ir para o inferno, medo de pecar, cola sozinho. A minha mãe mostrou-me o caminho, mas
Não era tão feliz como eu achava. Vivia muito medo desses lugares que me protegeram e me trouxeram depois, com cinco anos, tive de ir sozinho. Nunca mais
condicionado, principalmente por não ter os pais em casa, até aqui. Por motivos que não considero certos, porque me esqueço, parece que fiquei traumatizado, com a minha
como alguns amigos. Lembro-me de um que tinha sempre acho que devemos amar Deus, ou seja, os nossos movi- mochilinha amarela a chegar ali e a ver todos os outros
a mãe em casa, e eu invejava um bocado aquela doçura. mentos nunca devem ser por medo, não é a energia certa alunos a chegarem com os pais, e eu estava sozinho. Hou-
Os meus pais quase não puderam passar tempo connosco. para nenhuma boa decisão. Mas foi esse medo que fez com ve momentos em que julguei a minha mãe por isso. Hoje
Ao crescer, apercebi-me de que fiquei com tantas feridas que, quando saltávamos para uma vivenda só para tomar reconheço que, realmente, ela fez de tudo. Até ficarmos
dessa ausência de afeto – a minha carência ser um sinóni- um banho de piscina, havia uns que queriam entrar dentro trancados em casa – era isso ou a rua.
mo de fraqueza, chorar muito e de repente ter de engolir o da casa, e eu nunca tive essa coragem, só tomava o meu
choro porque senão era uma criança feia… Enfim. banhinho e ia-me embora… É precisamente por isso.
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cardeal Jean-Claude Hollerich

Lembro-me de outro episódio em que referes a tua estabelecimento prisional. São pessoas que eu entendo, guerras de irmãos, o meu pai, que sabia que a minha mãe
mãe, mas que se calhar é o teu primeiro contacto com tenho empatia com o contexto de onde saíram. ia odiar ver–nos a lutar, disse-nos uma vez – nunca mais
o racismo, quando estavas na escola… Tinham que me esqueço: “Vocês não matam a minha mulher.” Ou
idade? Queres falar sobre esse projeto? seja: “Eu amo-vos muito, mas vocês não são prioridade
Foi no terceiro ano. Eu era muito falador, estava sem- Montei um estúdio, porque a música ajuda a libertar. em relação à vossa mãe. Porque um dia vocês formam as
pre distraído, e essa professora gritou: “Cala-te, preto!” Eles tinham sessões de terapia e não revelavam grande vossas famílias, vão-se embora, e quem vai ficar somos
Como éramos ainda alguns afrodescendentes, comecei a parte do que os amargurava. Até para termos terapia pre- nós os dois, por isso a vossa mãe é que é a minha priori-
ver para qual de nós era e vi que o olhar era direcionado cisamos de um pouco de literacia, de orientação. Eu de- dade. Sabendo que isto é uma coisa que ela nunca tolera-
para mim. Não disse nada, mas depois fui para casa e con- safiei-os a escreverem coisas que queriam dizer aos pais, ria, se voltar a acontecer, podem considerar-se órfãos de
tei à minha mãe. Na manhã seguinte, ela foi à escola, fez ao sistema, a traduzir tudo isso em canções. Ouvi e li coi- pai.” Foi uma coisa dura que ele disse, mas nunca mais
queixa e a professora foi mesmo despedida. sas… Consegui finalmente juntar em estúdio pessoas de lutámos. Sempre ouvi que os filhos são prioridade, mas
etnia cigana com pessoas de etnia africana e foi o primeiro realmente os filhos foram feitos por duas pessoas que se
Isso mostra que era uma mulher de garra. encontro em estabelecimentos prisionais dessas duas et- amam. O meu pai é uma pessoa assertiva, com os seus
Sim, e que na minha escola também havia mulheres. nias tão discriminadas e que têm muitas rivalidades, mas princípios, com as suas teimosias, mas, no que diz res-
A diretora também tinha coragem. que ali tinham em comum a mesma história. peito a dar palco à minha mãe – que merece –, o meu pai
nunca fica com os louros. Ele olha para mim e diz: “Tu
Na altura, não tinhas a sensação de que esse Tens muito esse sentimento de justiça, ou de és mesmo a tua mãe. Só que ela não teve a possibilidade,
comentário fosse racista? injustiça, e és um homem de causas. Tens agora a mas és.”
Nada. Nem sequer conhecia o termo racismo. Mas Associação Mundo Nôbu.
aquela expressão, “preto”, soou-me agressiva, rude. Fomos aos Estados Unidos ver um modelo de projeto Eles sempre te apoiaram para seguires o que
que trabalhasse com jovens e adolescentes, que se enqua- quisesses.
Fizeste até uma t-shirt recentemente que diz drasse com o contexto afrodescendente da Grande Lisboa, Muito. É aquela coisa: havia pobreza, mas a riqueza
“preto, estás na tua terra”. e felizmente encontrámos o The Brotherhood Sister Soul, espiritual fez com que nunca me dissessem: “Não faças,
Sim, já foi uma mensagem para o meu filho. Saben- no Harlem [Nova Iorque], que tem feito um trabalho ina- não sigas, não acredites”. Isso foi a maior herança.
do que infelizmente esse comentário ainda vai perdurar creditável nos últimos 30 anos, muito premiado e com
– tanto que, nesse ano, tinham tirado a vida ao Bruno uma taxa de sucesso para lá de 90%. Que sonhos tens hoje?
Candé com essa expressão. Fi-lo no sentido de proprieda- Ainda tenho alguns, mas já são menos. Quero muito
de, ou seja, “estás” mesmo na tua terra, é uma afirmação. O que é que eles fazem? ter a minha fundação em Cabo Verde para poder ajudar
Assume-te com a tua etnia até que possas só ser, e aí o Vêem jovens que têm potencial em desporto, artes, principalmente os artistas idosos e as mães que vivem no
prefixo “preto” já se pode ir embora. Este é agora o meu economia, o que seja. Procuram entender o potencial da- interior, porque sempre que se ajuda uma mãe é garantido
grande sonho: ser só o Dino, não o afrodescendente, não quela criança e dar-lhe ferramentas, com uma rede que que o filho não sai da escola, enquanto connosco, homens,
o luso-cabo-verdiano, etc. está disponível 24 horas por dia. Nós vamos iniciar um isso não é garantido. Em Cabo Verde sinto que há tanto
projeto de três a seis anos, dependendo da idade, com 160 jovem e tanto sonho por edificar, que acho que posso ser
Já és. Mas percebo que, de alguma maneira, crianças. uma mais-valia. E sei que isso vai alimentar-me a alma e
representes um grupo de pessoas. Acho que precisamos rejuvenescer-me.
de falar sobre este tema, que continua a ser um pouco Quem é que te inspira, na música e na vida?
tabu. Ainda há muito racismo em Portugal? A minha mãe, sem dúvida. Mas o meu pai é um Este artigo foi originalmente publicado no 15.º
É que muitas vezes não dá para explicar. São mi- exemplo do que quero ser enquanto homem. Naquelas número da revista DDD – D de Delta.
croagressões que vão acontecendo. Sempre disse que não
acreditava que Portugal era racista porque cresci num
ambiente em que ali, no sul de Portugal, as imagens não
eram nada distantes das que víamos no início dos anos 90
da UNICEF a fazer aquelas campanhas em África. Era a
mesma realidade, só que num país europeu. Eu via pes-
soas brancas nas mesmas condições. Por isso é que disse:
“Não é racismo, é pobreza. O que eu vejo em Portugal é
um flagelo que se chama pobreza. Grande parte da popu-
lação é pobre.” As coisas que me impediam de ser mais
livre, eu associava-as sempre à pobreza, não à cor.

A perceção do racismo surge mais tarde?


A questão do racismo para mim não era tão direta
nem clara até crescer e me aperceber de que estas pes-
soas, mesmo sendo pobres e estando na miséria, se for
para passar à frente da fila, vai haver uma empatia natural
da cor que os vai meter umas escadas acima de mim. Foi
aí que o romantismo começou a dissipar-se e comecei a
ficar mais melancólico, porque comecei a ser vítima des-
se lugar. Hoje em dia, continuo a não ver a realidade por
preferência: para sofrer menos, procuro focar-me e inves-
tir a minha energia no mundo que eu quero que exista,
mais do que na constatação daquele mundo que ainda
existe. Acordo todos os dias em busca do “mundo nôbu”,
sempre.

Hoje estás num lugar de privilégio. Como é que


o aproveitas para colocar na ordem do dia temas
fraturantes da sociedade, que está cada vez mais
xenófoba e intolerante? Tu não és só de cantar nem de
falar, és de fazer. A minha mãe é uma criança que foi entregue
A tua última palavra foi o que me salvou de me tor-
nar uma pessoa revoltada. O melhor que posso fazer é pela sua mãe, que estava no leito da morte, à
fazer. Fui construindo os meus pilares com base nas mi- minha avó Teresa, que cuidou dela e a mimou
nhas crenças. Acredito num “mundo nôbu”. Tive vários
amigos presos, que várias vezes quis visitar e nunca vi- até aos seus 18 anos, até o meu pai a trazer
sitei. Agora o meu primo suicidou-se dentro da prisão.
O que é que eu posso fazer com as pessoas que lá estão
para Portugal. Nessa mulher mimada, eu vi
e que me representam também? No [Estabelecimento uma mulher de muita força. Ela nunca deixou
Prisional do] Linhó, mais de 80% são afrodescendentes.
Descobri a minha missão. Não é numa paróquia, é num
que a maltratassem.
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8| Opinião

Paz?! Que Paz?


O cristianismo, argumenta conceito nem a permitir uma compreen- ca, moral e técnica da tranquilidade, isto superabundância da caridade. O processo
são e aplicação prática do mesmo. é, na procura da ‘felicidade’ individual. é lento e os retrocessos são sempre pos-
Mounier, é realista. Aceita Pense-se que o modo mais fácil e abs- Neste caso, a felicidade está desligada síveis, visto o ódio e a violência estarem
trato de definir paz é fazê-lo negativamen- dos outros e aspira à doçura do viver, isto continuamente a reaparecer nos corações
a inevitabilidade da força-
te: a paz é a ausência de guerra. Este sen- é, à abundância e ao conforto. Aqui, o de cada geração.
bruta do mundo natural e tido negativo, embora constitua um ponto mundo moral já não é proposto como em- Nesse sentido, a construção da paz
de partida fundamental para a construção preendimento e procura coletiva de uma começa no interior de cada um, enquan-
procura transformá-la em da paz, é manifestamente insuficiente. A medida comum entre os seres humanos, to resposta ao chamamento para realizar
força-virtude pela inserção ausência da guerra armada poderá não sendo antes composta por uma profusão heroicamente o humano novo, aquele que
passar de uma paz podre alimentada por de pequenas felicidades avarentas. A paz vivifica desde o interior a única paz dura-
progressiva da justiça e ódios, mentiras e egoísmo ou ter-se trans- torna-se sinónimo de ‘vive e deixa viver’, doura. Aquela em que não faz discrimi-
da superabundância da formado em outros modos de guerra – de deixar e ser deixado em ‘paz’. O pro- nação de pessoas, segundo a máxima de
económica, social, ideológica, etc. – ou, blema é o indiferentismo resultante, cheio Paulo: “não há judeu nem grego; não há
caridade. ainda, pelo triunfo, domínio e opressão de protestos e indignações que ocultam a escravo nem livre; não há homem e mu-
de um dos lados. Na melhor das hipóteses insensibilidade crónica ao outro, à menti- lher, porque todos sois um só em Cristo
A paz cristã não é sinónimo de tran- este sentido não passa de uma paz exterior ra e à cobardia. Aspira-se a uma proteção Jesus” (Gl, 3,28).
quilidade nem de ausência de guerra e superficial, um protocolo de cortesia que contra a guerra similar à que no dia-a- O mandamento do amor é absoluto,
armada. Ela não é uma ordem exterior regula a relação entre seres humanos. -dia se usa contra a miséria do próximo. impondo-se não como uma abstração inu-
alheia à vida pessoal de cada um. A paz é Carece-se de um sentido positivo para O importante é salvaguardar o conforto mana e descarnada, mas como luz e telos
Caridade, é benevolência inquieta a paz. Múltiplas sugestões podem ser fei- (compras e comida ao domicílio, música último do drama histórico humano. Neste,
tas a este propósito. Seguirei, neste texto, e cinema online, aumento de férias, etc.). cada movimento é proposto para a nossa
Quando olhamos para o mundo ve- as três possibilidades identificadas por Esta é uma perspetiva frouxa. Mou- decisão, desafiando-nos a ver no outro o
rificamos que o número de conflitos tem Emmanuel Mounier em “Le Chrétiens nier recorda que “a paz não é um estado nosso irmão, alguém que tem de ser ama-
vindo a aumentar (e.g., guerras entre es- Devant le Problème de la Paix” (1939): débil, é um estado forte que requer de nós do (mesmo se não se gosta dele).
tados, guerras civis, insurgências terro- paz armada, pacifismo idealista e paz o máximo de desprendimento, de esforço O desafio para os cristãos, bem como
ristas, guerras ao narcotráfico, conflitos cristã. e de risco para manter nela o heroísmo para a generalidade dos seres humanos, é
de fronteira, etc. – cf. – Countries Cur- A noção de paz armada ou belicismo da nossa vocação cristã” (“Le Chrétiens o de se tornarem agentes construtores da
rently at War / Countries at War 2024 ). parte de uma ideia concreta. A história Devant le Problème de la Paix”, 801). A paz a todos os níveis – desde os seus con-
Inevitavelmente a constatação deste facto revela a presença da força-bruta na natu- paz cristã não é sinónimo de tranquilida- flitos interiores pessoais até às problemá-
é acompanhada pelos clamores e apelos reza e nas relações humanas e, por isso, de nem de ausência de guerra armada. Ela ticas mundiais. De encontrarem caminhos
à paz mundial, expressos quer por cida- ela pode ser vista como o percurso dos não é uma ordem exterior alheia à vida e meios de introduzir a Caridade na na-
dãos anónimos, quer por muitos dos in- sistemas de forças que se empurram. A pessoal de cada um. A paz é Caridade, é tureza e na sociedade, compreendendo
tervenientes e promotores dos conflitos. paz é uma força que se impõe. Vejam- benevolência inquieta. que a paz não é um estado ou um estatu-
Porém, quando se pede a paz, de que paz -se historicamente as realizações da pax O ponto de partida é idêntico ao do to automático derivado da ciência ou do
se está a falar? romana, da pax germânica ou, mais re- belicismo: o ser humano é biológico e so- direito, mas um processo construído por
O conceito paz, similarmente a ou- centemente, da pax americana. Esta é, cial, pelo que não é possível compreendê- atos de amor pessoais, a partir do Amor
tros (e.g. justiça, liberdade, igualdade, porém, uma paz de permanente sobres- -lo à margem do seu corpo e da sua per- superabundante. Para além disso, a paz
etc.), é extraordinariamente amplo e sem salto e medo, vivendo-se continuamente tença à sociedade. A força-bruta é uma não é exclusivamente uma disposição in-
um conteúdo natural, necessitando de em pé de guerra e esgotando os recursos realidade inerente à natureza e à condição dividual, mas uma realidade comunitária.
ser preenchido e de receber uma dire- públicos em armamentos. Os problemas e humana. Ora, se o belicista tem razão nes- Em suma, que cada um de nós olhe
ção específica. Nesse sentido, qualquer paradoxos do belicismo foram magistral- te ponto, daí não decorre a sua conclusão para si, para as pequenas comunidades a
reivindicação de paz está historicamen- mente denunciados por Stanley Kubrik na de que a guerra é uma fatalidade da natu- que pertence (familiar, laboral, religiosa,
te enraizada e adquire distintas nuances comédia Dr Estranho Amor (1964) e por reza. De igual modo, o pacifismo idealista etc.) e para o seu país, procurando criar na
consoante a cultura e a época que a define Bertrand Russell em “Methods of Settling acerta ao pretender conduzir o ser huma- história meios de resistência à força-bru-
(e.g., para Platão a guerra e a paz são mui- Disputes in the Nuclear Age” (1959). no à generosidade e bondade, mas falha ta do ódio, da mentira e da chantagem. A
to diferentes consoante o conflito é entre O pacifismo idealista traduz o que por assumir uma visão seráfica do mundo paz mundial deve merecer toda a nossa
gregos ou entre gregos e bárbaros. Cf Re- Mounier chama de ‘sensibilidade comum e do humano. O cristianismo, argumenta atenção e cuidado, contudo não deve ser
pública 470a-d). Por isso, o primeiro pon- ocidental’. Uma sensibilidade que detes- Mounier, é realista. Aceita a inevitabili- descurada a noção de que a paz começa
to a ter em conta é o de que as definições ta a brutalidade e pretende construir o ser dade da força-bruta do mundo natural e em casa, no nosso interior e nas nossas
abstracionistas tendem a não fazer jus ao humano e as sociedades sem a força-bruta procura transformá-la em força-virtude comunidades. Possa cada um de nós ser aí
do mundo. Fá-lo focando-se na metafísi- pela inserção progressiva da justiça e da um agente de paz e amor.
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Crónicas |9

CRIMES, MORTES, SUICÍDIOS E OUTRAS


DESGRAÇAS NA AMÉRICA CABO-VERDIANA
O historial de crimes de e contra barba e tentou degolar-se, fazendo um Por isso, só se consegue saber que 15 anos de prisão para um assassino
cabo-verdianos nos Estados Unidos lanho no pescoço, da orelha à garganta. eram cabo-verdianos em notícia de 6 Martin J. Walsh tinha 20 anos de
da América é longo, na exacta relação Milagrosamente, não atingiu nenhuma de Março7 reportada a 13 de Fevereiro, idade quando foi condenado a 15 de
do seu número com a antiguidade da artéria e tratado no St. Luke’s Hospital dia em que se realizou o julgamento cadeia11, que teria de cumprir na prisão
secular permanência de gente do ar- ficou livre de perigo3. em audiência policial de José Fermi- do estado de Massachusetts. Para além
quipélago naquele país. Temos vascu- nio (Firmino?) e Amélia S. Fernan- de já ser desertor do exército, matara
lhado milhares e milhares de páginas des, acusados de adultério pelo mari- com requintes de extrema malvadez o
de jornais portugueses, americanos Quase bigamia… do desta, Manuel Fernandes. Dados cabo-verdiano Joaquim L. Monteiro,
e americanos de língua portuguesa Mais ou menos pela mesma altura do os acontecimentos como provados, o de 47 anos. O crime teve lugar a 7 de
e, embora sem conhecermos estudos sucesso anterior, a 20 de Janeiro, Ma- juiz mandou subir o caso a instâncias Maio de 1941, numa casa de hóspedes
científicos ou estatísticas que o pro- ria Lopes, que coabitava com Manuel superiores e exigiu uma fiança de 300 de que o homicida era proprietário, no
vem, a nossa nítida sensação é a de que Santiago, na cidade de que temos vindo dólares para os acusados poderem en- sul da cidade de Boston. Para a con-
a comunidade cabo-verdiana não tem a falar, fez queixa deste porque desco- tretanto permanecer em liberdade. cretização do lamentável feito, Walsh
sido nem mais nem menos protagonis- briu que ele era casado com uma mulher utilizou primeiro um ferro de engomar
ta ou vítima de crimes que as restantes “esquecida” na ilha Brava. Em dois anos e depois recorreu ao afogamento do
– incluindo, até 1975, data limite das de vida em conjunto, Manuel e Maria Morte de criança numa casa de pasto Joaquim Monteiro. Insatisfeito, ainda
nossas investigações, a açoriana, por haviam tido duas crianças. O caso seria Na América também havia cabo- subtraiu à vítima 10 dólares. A notícia
exemplo. Deles, nalguns casos bem ri- julgado no Março seguinte…4 -verdianos proprietários de estabeleci- não indica os motivos do delito mas
síveis como o primeiro que relatamos, mentos de restauração, como os pais da podemos supor que o que o provocou
resolvemos fazer curta selecção para a pequena Ida Mendes, de ano e meio, terá sido eventual atraso no pagamento
presente Crónica do Norte Atlântico – Um caso de adultério filha de José Mendes, falecida em 15 da acomodação. De qualquer modo, o
quase todos do século XIX, excepto os O Progresso Californiense relata- de Fevereiro de 1886, na casa de pasto assassino foi apanhado, considerou-se
dois últimos, já do XX. va em Fevereiro de 18865 a notícia do da família, em Newland St., NB, que responsável pelo acto perante o juiz
seu colega Standard6, de New Bedford, teve enterro concorrido8. do Supremo Tribunal Lewis Goldberg,
sobre um indivíduo, provenientes de teve julgamento e consequente castigo.
Uma bofetada por mais de 100 dólares Cape Cod, que ali tinha chegado. Na A lei funcionou e Joaquim Monteiro,
Que relação teria Luísa Gonçalves cidade tinha mulher, à qual fora en- Tuberculose nas minas um estrangeiro de origem cabo-verdia-
com Salomão Gomes, ambos cabo- viando dinheiro, enquanto estivera Em Maio de 1887, O Progresso Cali- na12, foi vingado. A América aqui, no
-verdianos residentes em New Bedford, fora. Contudo, ao invés do que seria de forniense9 dava a conhecer que em Aus- verdadeiro sentido da expressão, este-
Mass., não o sabemos. Nem sequer que esperar, dirigiu-se não à sua residên- tin, Nevada, o mineiro Manuel da Cruz ve “no seu melhor”…
malfeitoria este lhe fez para ela assim cia mas ao escritório de um advogado, falecera de tísica. Era cabo-verdiano e
reagir. O que é verdade é que a dita para lhe contar que lhe haviam dito que possuía familiares na zona. Aqui temos
mulher, lá pelos finais do século XIX, a companheira mantinha relações ilíci- mais um caso de natural das ilhas que 1. O Progresso Californiense,
pregou no indivíduo valente estalada. tas com outro fulano. O causídico foi também trabalhava fora do circuito dos 18.06.1885, pág. 2.
Claro que sofreu as devidas consequên- então ter com o chefe da polícia que portos, da pesca da baleia e da apanha 2. Cremos que se trata de
cias jurídicas. Feita queixa pelo Salomão pôs à disposição de ambos um agen- de bagas. americanização de “Benjamim Rosa”.
e ouvidas as partes em tribunal, o juiz te para os acompanhar a casa da mu- 3. O Progresso Californiense,
aplicou à agressora 100 dólares de mul- lher, em South Water St., por volta da 04.02.1886, pág. 2.
ta e pagamento de custas. Ainda assim, meia-noite do dia 2. Quando estavam O infortúnio de morrer da cura… 4. O Progresso Californiense,
retirou-se a Luísa satisfeita, segundo pa- a chegar ao local, surgiu a dita que Por Setembro de 1919, o cabo- 04.02.1886, pág. 2.
rece, como rezava O Progresso Califor- entrou para casa, acompanhada por -verdiano Domingos Dias, de 37 anos, 5. O Progresso Californiense,
niense1, em 1885… um sujeito. Sem serem vistos por ela, morador em Elm St., East Wareham, 18.02.1886, pág. 2.
e depois de uma conversa entre si, os Mass., andava com problemas de co- 6. Standard, 03.02.1886, pág.?.
homens retiraram-se e voltaram daí a ração. Foi ao médico e este recomen- 7. O Progresso Californiense,
Tentativa de suicídio três horas, de forma a obterem uma dou-lhe que tomasse determinadas 06.03.1886, pág. 2.
O Benjamin Rose2, cabo-verdiano situação de flagrante delito. Foi então pastilhas, de três em três horas. E ele 8. O Progresso Californiense,
morador numa casa de pasto situada na que o suposto marido traído avançou cumpriu de facto as recomendações do 06.03.1886, pág. 2.
South Water St., 65, New Bedford, tinha de rompante, arrombou a porta da casa clínico, durante o dia, de modo que à 9. O Progresso Californiense,
mulher e filhos nas ilhas. Era homem ho- e entrou nela, disposto a fazer justiça noite sentia-se quase refeito da maleita. 19.05.1887, pág. 3.
nesto e essa sua qualidade quase lhe ia pelas próprias mãos. Mas, para seu es- Por isso, não esteve com meias medi- 10. Alvorada Diária, 02.07.1919, pág. 1.
sendo fatal. Um patrício e companheiro panto, apenas a esposa ocupava o leito das e resolveu tomar ao mesmo tempo 11. No Diário de Notícias de New
de hospedaria acusou-o do roubo de dez conjugal. O “outro”, dormia num quar- uma remessa de drageias, para melho- Bedford de 01.11.1941, pág. 2, a expressão
dólares que lhe tinham faltado. Incapaz to contíguo. O PC diz ainda que todos rar mais rapidamente... Acontece que é “de 15 a 20 anos”, talvez portadora da
de provar a sua inocência, a 10 de Janei- eram portugueses mas não a exacta ori- já não acordou. Morrera da cura. Dei- ideia de que o condenado poderia sair ao
ro de 1886 o Rose pegou na navalha de gem… xou esposa e três filhos. Havia poucos fim de 15, sob certas condições.
anos que estavam nos States10. 12. Na altura, também portuguesa.
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10 | Tópicos para refletir

O Papa Francisco promulgou a Bula de


Indicação para o Ano Jubilar de 2025
A esperança é a mensagem central des- certos países ao longo do tempo”.
te decreto de 8400 palavras, conhecido por O papa argentino lembrou que o Ano
seu título latino Spes non Confundit («A Jubilar coincide com o 1700.º aniversário
esperança não decepciona»), do qual o Papa do primeiro grande concílio ecuménico de
Francisco deu uma cópia a prelados repre- Niceia “que procurou preservar a unidade da
sentando as quatro principais basílicas ro- Igreja, que estava seriamente ameaçada pela
manas e as igrejas nos diferentes continentes negação da plena divindade de Jesus Cristo e,
numa cerimónia solene diante da Porta Santa portanto, de sua consubstancialidade com o
da Basílica de São Pedro, na noite de 9 de Pai” mas “após vários debates, pela graça do
maio, dia da Ascensão. Espírito, eles aprovaram por unanimidade o
Na bula, que nalgumas partes se assemelha Credo que ainda recitamos em cada domingo
a uma encíclica social, o Papa Francisco disse na celebração da Eucaristia”.
aos crentes que neste Ano Jubilar «somos Esse concílio «foi um marco na história
chamados a ser sinais tangíveis de esperança da Igreja” e “representa um convite a todas
para aqueles dos nossos irmãos e irmãs que as Igrejas e Comunidades Eclesiais a perse-
experimentam dificuldades de qualquer tipo”. verarem no caminho rumo à unidade visí-
Ele enfatizou a necessidade de a diplomacia vel”, disse ele. E lembrou que a data da Pás-
resolver as guerras e conflitos armados ao coa foi discutida em Niceia e lamentou que as
redor do mundo, pediu aos líderes que aten- «abordagens diferentes» das igrejas orientais
dam às necessidades dos “biliões» de pessoas e ocidentais impeçam todos os cristãos de
pobres no mundo que carecem de comida e celebrar «o evento fundamental de nossa fé
água e apelou - como o Papa João Paulo II fez no mesmo dia”. Mas, ele disse, “providen-
no Ano Jubilar de 2000 - ao cancelamento das cialmente uma celebração comum [da Pás-
dívidas dos países pobres e amnistia ou per- coa] ocorrerá no ano de 2025. Que isso sirva
dão para prisioneiros. como um apelo a todos os cristãos, orientais
Seguindo uma tradição que tem origens Francisco identificou o primeiro sinal de portante dar sinais de esperança aos jovens e ocidentais, para darem um passo decisivo
bíblicas, o primeiro Jubileu na Igreja Católica esperança no “desejo de paz em nosso mundo, no mundo de hoje. “É triste ver jovens sem em direção à unidade em torno de uma data
foi proclamado no ano de 1300 pelo Papa Bo- que mais uma vez se vê imerso na tragédia da esperança” porque eles não têm emprego, comum para a Páscoa”.
nifácio VIII, e desde então um Ano Jubilar guerra”. E perguntou: “Como é possível (...) segurança no emprego ou perspectivas Desde o início de seu pontificado, o
é realizado a cada 25 anos. Este é o segun- que o grito desesperado por ajuda não motive realistas para o futuro «e desencorajam-se”, papa jesuíta incentivou as pessoas a buscar
do jubileu de Francisco, pois ele decretou os líderes mundiais a resolverem os numero- recorrem às drogas ou buscam outras rotas de o perdão de Deus através do sacramento da
um Ano Jubilar Extraordinário da Misericór- sos conflitos regionais, tendo em vista as suas fuga. “O Ano Jubilar deve inspirar a Igreja reconciliação, fez isso novamente na bula,
dia e, quebrando com o precedente, abriu-o possíveis consequências a nível global?» Ele a fazer maiores esforços para ‘se aproximar lembrou que comissionou “Missionários
na República Centro-Africana devastada pela disse que «a necessidade de paz nos desafia deles’”. da Misericórdia” para alcançar as pessoas
guerra em novembro de 2015. a todos e exige que sejam tomadas medidas Ele pediu aos crentes neste Ano Jubi- durante o Ano da Misericórdia e disse que
“Todos sabem o que é esperar. No cora- concretas» e pediu que a diplomacia «seja lar que ofereçam sinais de esperança aos mi- estava fazendo o mesmo novamente para
ção de cada pessoa, a esperança habita como incansável no seu compromisso de buscar, grantes que deixam as suas terras natais em este Jubileu. Ele instou os bispos a fazerem
o desejo e a expectativa de coisas boas por com coragem e criatividade, cada oportuni- busca de uma vida melhor para si e suas fa- o mesmo nas suas dioceses. Além disso,
vir», disse o papa no decreto que não foge dade para empreender negociações visando mílias. Insistiu que “exilados, deslocados e acrescentou que as indulgências do Ano Ju-
da situação dramática que a humanidade está uma paz duradoura”. refugiados (...) devem ter garantia de segu- bilar estariam disponíveis para os fiéis, como
vivenciando. Um segundo sinal de esperança deve rança e acesso ao emprego e à educação, e aconteceu no passado.
«A esperança cristã não decepciona ou “envolver ter entusiasmo pela vida e estar os meios para encontrar seu lugar num novo Francisco concluiu dizendo que “a morte
engana porque está fundamentada na certeza pronto para compartilhá-lo”, disse ele. “Infe- contexto social”. e ressurreição de Jesus é o coração de nossa
de que nada nem ninguém pode nos separar lizmente, isso está a faltar”, observou, apon- Então, num apelo poderoso, Francis- fé e a base da nossa esperança” e “em virtude
do amor de Deus”, enfatizou, inspirando-se tando a a taxa de natalidade em declínio em co escreve: “Peço com todo o meu coração da esperança na qual fomos salvos, podemos
na Carta de São Paulo aos Romanos. muitos países. Ele pediu uma “legislação que a esperança seja concedida aos biliões ver a passagem do tempo com a certeza de
Ele rezou para que este Ano Jubilar pos- responsável» pelos estados para ajudar a de pobres, que muitas vezes carecem do que a história da humanidade e nossa própria
sa proporcionar uma oportunidade “de ser reverter essa situação e instou a comunidade essencial da vida». história individual não estão fadadas a um
renovado na esperança” não apenas para os cristã a «estar na vanguarda em apontar a «É escandaloso», disse ele, «que num beco sem saída ou um abismo escuro, mas
mais de 30 milhões de peregrinos que se es- necessidade de um pacto social para apoiar mundo possuidor de recursos imensos, desti- direcionadas a um encontro com o Senhor da
pera que viajem para Roma para este Jubileu, e promover a esperança”, para que possamos nados em grande parte à produção de armas, Glória”.
mas também para os inúmeros milhões que, ter “um futuro cheio de risos de bebés e crian- os pobres continuem sendo a maioria da po- Depois de D. Leonardo Sapienza, re-
incapazes de fazê-lo, celebrarão nas suas ças”. pulação do planeta, bilhões de pessoas”. gente da casa papal, ter lido trechos da bula
igrejas locais ou por meio de peregrinações Durante o Ano Jubilar, o Papa Fran- Francisco disse que o Ano Jubilar nos papal, cardeais, bispos e outros membros do
aos santuários marianos em todo o mundo. cisco disse, «somos chamados a ser sinais lembra que “os bens da terra não são desti- clero dirigiram-se para a basílica, seguidos
Ele também apresentou como uma oportuni- tangíveis de esperança para aqueles de nados a alguns privilegiados, mas a todos” pelo Papa Francisco, para a assinatura das
dade para a conversão, a reconciliação com nossos irmãos e irmãs que experimentam e disse que “os ricos devem ser generosos e vésperas.
Deus através do sacramento da penitência, dificuldades de qualquer tipo». E propôs não desviar o olhar dos rostos de seus irmãos Na sua homilia, Francisco novamente fo-
obtenção de indulgências pela misericórdia muitas maneiras concretas de fazer isso. e irmãs necessitados”. cou no tema da esperança e disse:
de Deus, renovação de nossa fé e amor pela Pediu aos crentes que cuidem dos prisio- Ele apelou aos governos para desviar “Caros irmãos e irmãs, neste Ano de Ora-
esperança e proclamação do amor de Deus às neiros e apelou aos governos para restaurar a dinheiro dos gastos militares para um fundo ção, enquanto nos preparamos para a celebra-
muitas pessoas que sofrem no mundo de hoje. esperança nos prisioneiros por meio de “for- global dedicado a acabar com a fome e ajudar ção do Jubileu, elevemos nossos corações a
Ele lembrou aos crentes que “a vida cristã mas de amnistia ou perdão». Ele disse que os no desenvolvimento de países pobres “para Cristo e tornemo-nos cantores de esperança
é uma jornada, que pede momentos de maior crentes e os seus pastores “deveriam exigir que seus cidadãos não recorram a situações num mundo marcado por muito desespero.
intensidade para encorajar e sustentar a espe- condições dignas para aqueles na prisão” e a violentas ou ilusórias, ou tenham que deixar Por meio das nossas ações, nossas palavras,
rança como a companheira constante que guia abolição da pena de morte. seus países em busca de uma vida mais dig- as decisões que tomamos a cada dia, nossos
nossos passos em direção ao objetivo de nos- Anunciou que deseja “abrir uma Porta na”. esforços pacientes para semear sementes de
so encontro com o Senhor Jesus”. Santa” numa prisão, assim como abrirá as Pediu às nações mais ricas “para perdoar beleza e bondade onde quer que estejamos,
«Além de encontrar esperança na graça de Portas Santas nas quatro principais basílicas as dívidas dos países que nunca serão capazes queremos cantar a esperança, para que sua
Deus” neste Ano Jubilar, ele disse, “Nós tam- romanas. de pagá-las. Mais do que uma questão de melodia possa tocar as cordas do coração da
bém somos chamados a descobrir esperança Ele apelou aos crentes para cuidarem dos generosidade, isso é uma questão de justiça”. humanidade e despertar em cada coração a
nos sinais dos tempos que o Senhor nos dá”. “doentes, em casa ou no hospital”, por meio Essa injustiça é agravada pela “dívida ecoló- alegria e a coragem de abraçar a vida plena-
E afirmou: “Precisamos reconhecer a imensa de “proximidade e afeto”, e para cuidarem gica” que existe entre o Norte Global e o Sul mente”.
bondade presente no nosso mundo, para que dos idosos que muitas vezes “se sentem soli- Global “conectada a desequilíbrios comer- Em conformidade com a tradição, a ceri-
não sejamos tentados a pensar que estamos tários e abandonados”. ciais com efeitos sobre o meio ambiente e o mónia ocorreu no dia da Ascensão de Jesus
sobrecarregados pelo mal e pela violência”. Disse também que era especialmente im- uso desproporcional de recursos naturais por Ressuscitado aos céus.
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“Leia outros pontos de vistas do Frei
António Fidalgo e de Laurindo Vieira em
www.terranova.cv Prisma | 11

Por Afonso Espregueira, sj

Sem cooperação, não há desenvolvimento integral


Para alcançar o desejado povos não há lugar à paz, sendo que lógicas, torna-se ainda mais crucial a coo- tre si, como no interior de cada país, onde
desenvolvimento, torna-se necessária este “não se reduz a um simples cres- peração internacional. o diálogo entre grupos políticos diferen-
uma cooperação entre os povos que vise cimento económico. Para ser autêntico, De facto, falar de desenvolvimento tes é tenso e feito de chavões simplistas.
o bem comum e seja capaz de ultrapassar deve ser integral, quer dizer, promo- integral hoje não pode excluir a dimensão Neste contexto, as instituições políticas,
os problemas que a todos dizem respeito. ver todos os homens e o homem todo” ecológica. Um meio ambiente saudável nacionais e internacionais, revelam-se
Em 1967, na sua encíclica Populo- (PP 14). Assim, “a situação actual do (ou não) tem impacto sobre a saúde, a eco- incapazes de gerar os consensos desejados
rum Progressio (PP), o Papa S. Paulo mundo exige uma ação de conjunto a nomia, a disponibilidade de recursos… No e a cooperação é posta em causa, apesar
VI afirmava que o “desenvolvimento é o partir de uma visão clara de todos os fim de contas, afecta toda a ação humana, da sua importância.
novo nome da paz”. Nas suas palavras: aspectos económicos, sociais, culturais já que o ser humano faz parte do ecossis- Assim, promover “todos os homens
“as excessivas disparidades económi- e espirituais” (PP 13). Para alcançar o tema. Inversamente, a nossa ação afecta o e o homem todo”, em harmonia com
cas, sociais e culturais provocam entre os desejado desenvolvimento, torna-se meio ambiente, positiva ou negativamen- o cuidado do planeta – isto é, uma eco-
povos tensões e discórdias e põem em pe- pois necessária uma cooperação entre te. Trata-se de um círculo de influência logia integral –, requer quase previa-
rigo a paz. (…) Combater a miséria e lutar os povos que vise o bem comum e seja mútua, que pode ser vicioso ou virtuoso. mente uma abertura ao outro e à com-
contra a injustiça é promover não só o bem- capaz de ultrapassar os problemas que a Desta forma, pensar a política e a maneira plexidade da realidade, sem receio da
-estar, mas também o progresso humano e todos dizem respeito. de viver em sociedade deve forçosamente diferença e do discernimento exigido
espiritual de todos e, portanto, o bem co- Hoje, aos elementos mencionados ter em conta a nossa relação com a Casa pelos tons de cinzento. No fim de contas,
mum da humanidade. A paz não se reduz a por S. Paulo VI, é inevitável acrescentar Comum e pede uma abordagem holística, sem tal atitude, não é possível a paz nem
uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio a questão climática, que, ameaçando o que, por incluir mais variáveis, é mais o desenvolvimento que a torna duradoura.
sempre precário das forças. Constrói-se, dia equilíbrio dos ecossistemas e tornando complexa e traz mais nuances. As visões Percebemos então melhor a referência
a dia, na busca de uma ordem querida por mais frequentes os fenómenos naturais dualistas a preto e branco não são, portan- que faz S. Paulo VI aos aspectos culturais
Deus, que traz consigo uma justiça mais extremos, será – ou já é mesmo – uma to, úteis para fazer face aos desafios atuais. e espirituais: sem cuidarmos destas
perfeita entre os homens” (PP 76). nova fonte de instabilidade, pobreza e Porém, vivemos cada vez mais num dimensões profundamente humanas e
Como fica patente, para o Papa, conflito. Sendo este um desafio global, mundo polarizado, tanto a nível interna- humanizadoras, não seremos capazes do
sem um desenvolvimento de todos os indiferente a fronteiras e afinidades ideo- cional, com blocos regionais fechados en- desenvolvimento integral que buscamos.

Visto por mim... LAURINDO VIEIRA

O drama atual das migrações.


Rostos sem nome
Foi um encontro casual num pedaço de chão de Blue que nesse dia ele apareceu, mas ficou parado um pouco jeitar a todas as seduções da correria e do desgaste físico,
Hill com este homem de traços como os nossos, de olhar mais atrás. Eu fui ter com ele. Tivemos 13 minutos de mental e material. É como alimentar-se da própria carne
quebrado e meio assustado. Eu disse good morning e ele conversa. para matar a fome.
respondeu, balbuciando algumas palavras. Era muito Pelas ruas do primeiro mundo, este era mais um imi- O sistema de produção vem precisando desta mão-
cedo, pouco mais depois das 6 e a 1 grau célcius. Conti- grante, vindo atrás do Sonho Americano. Pele escura, -de-obra barata de gente que cede os braços e o sangue
nuei a caminhada e de regresso a casa trouxe o seu sem- sem o domínio da língua, sem conhecer o nome das ruas tacitamente. Enviar essa gente de volta por um dia seria
blante comigo. Dois dias depois, já era uma quinta-feira, e sem muitos papeis, pronto para começar do zero, fora o colapso que deixaria salientes sequelas.
eu resolvi andar pelo mesmo local e à mesma hora. Lá da sua zona de conforto. Para trás, tudo o que edificou: a O que me tocou mais neste senhor é que quando o
estava ele de novo. Com uma mochila, botas impermeá- família, com mulher e, sobretudo a filha, menor, amigos lhe perguntei se estava tudo bem, ele respondeu honesta
veis, bem trajado para quem se expunha ao frio. Desta e o seu mundo. Agora faz um trabalho duro, pouco se e puramente que não. É que a filha estava gravemente
vez parei mais. Tentei perguntar como estava, já que ele importando, porque o volume do dinheiro é maior do doente, internada num hospital. O estado dela era está-
tinha um olhar calmo e acolhedor, apesar de muito re- que tem visto durante a sua vida, ainda que o dinheiro vel, mas os médicos nada conseguem fazer. Mostrou-me
traído e na defensiva. Ele não falava inglês. Falava ape- não chegue ao esforço e ao desgaste das 14 horas que a fotografia de uma linda criança, numa foto colorida,
nas crioulo do Haiti. Por haver muito francês no meio eu passa fora de casa, trabalhando, com 40 minutos de des- um sorriso que enche o mundo, de duas lindas tranças
fui puxando a conversa, ora metendo francês, ora espa- canso, parcelados em dois, pelo meio. Juntamente com firmes para o lado...de partir o coração: tanta vida e tanta
nhol, para encher o que eu tentava dizer com as mãos. este senhor, de ar carregado de que nunca soube o nome, inércia! Eu não pude dizer nada. Não sabia o que dizer.
Chegou uma van, para a qual ele entrou, depois de me trabalham outros mais, vindos do além mar. Muitos Disse-lhe somente que iria rezar. Ele entendeu, sem mu-
fazer um sinal de despedida. A nossa conversa não foi outros, hipotecando as energias, em troca do primeiro dar a expressão abatida do seu rosto de sempre.
muito por além de tentarmos dizer de onde éramos. Com salário mais gordo. Há contas para pagar, num mundo Por sorte a Vida não é romance. A Vida é extraor-
o frio que se sentia e pelas vezes que chovia não se podia que oferece tudo, fazendo da vida algo financeiramente dinária e é uma dádiva para quem teve toda a sorte. As
dar ao luxo de caminhar todos os dias de manhã cedo. Eu mais concretizável, mas que suga a vida para as forças dificuldades da vida são brechas claras pelas quais po-
esperei pela terça-feira seguinte, na expectativa de voltar centrífugas duma lógica capitalista e consumista. Em demos olhar a nós próprios e ter a certeza da presença
a encontrar o mesmo senhor. Fui um pouquinho mais pouco tempo não se sabe se é o sistema quem estressa gratuita de algo absolutamente superior que não se pode
cedo e ele não estava no lugar de sempre. Esfregando os bolsos ou se são as novas expetativas, criadas, que negar, pela fé: Deus.
as mãos, fiquei parado na esperança de o encontrar. Eis precisam ser alimentadas e por isso mesmo deve-se su-
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UMA FORMA EFICAZ DE CONSUMIR


ENERGIA ELÉTRICA

Permite o uso racional de Energia;


O cliente define a quantidade ou o
valor de energia que quer carregar;
Melhor gestão do consumo.

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