Maria Cou Dry
Maria Cou Dry
Maria Cou Dry
8673480
NEUROLINGUÍSTICA E LINGUÍSTICA
Resumo: Este artigo visa a contribuir para o volume especial da Cadernos de Estudos Linguísticos que
homenageia os seus 45 anos. O texto resulta do trabalho colaborativo de duas docentes do Departamento de
Linguística do IEL, na área de Neurolinguística, e se organiza em duas partes. Na primeira, busca-se apresentar
o início do processo de desenvolvimento da nova área no IEL, a partir do trabalho fundante de Coudry que
culminou na publicação de Diário de Narciso: discurso e afasia, estabelecendo e consolidando a
Neurolinguística Discursiva como campo teórico e como uma possível área de atuação para o linguista. Na
segunda parte, o texto relata alguns dos principais desdobramentos teórico-metodológicos da ND para os
campos da Linguística, da Fonoaudiologia e da Educação, revisitando trabalhos que se dedicam ao estudo
tanto de teorias que a ND agrega quanto de práticas com a linguagem propostas para lidar com as várias
patologias que, de algum modo, impactam o funcionamento da linguagem, como as Afasias, as Demências, o
Autismo, dentre outras. Em nossos estudos, buscamos compreender esse funcionamento nas patologias,
incorporando nas análises o sujeito em sua atividade discursiva. Também discutimos equívocos de avaliação
de linguagem e terapêuticos apartados da reflexão teórico-metodológica possibilitada pela Linguística.
Palavras-chave: neurolinguística; linguagem nas afasias; escrita na infância.
Abstract: This article aims to contribute to the special volume of Cadernos de Estudos Linguísticos, for
the celebration of its 45 years. The text results from the collaborative work of two professors of the
Department of Linguistics, Institute of Language Studies, in the field of Neurolinguistics and is organized
in two parts. In the first, the text seeks to present the beginning of the process of developing of our research
field, based on the founding work of Coudry, which culminated with publication of Diário de Narciso:
discourse and afasia, establishing and consolidating Discursive Neurolinguistics (DN) as a new theoretical
field and also as a possible area for activity for linguists. In the second part, the article reports some of the
main theoretical-methodological developments of Discursive Neurolinguistics for the areas of Linguistics,
Speech Therapy and Education, revisiting works dedicated either to the theories that DN aggregates and to
the practices with language, proposed to approach the various pathologies that, in different ways, impact
the functioning of language, such as Aphasia, Dementia, Autism, among others. In our studies, we seek to
understand such functioning, including the subject in his discursive activity. We also address the theme of
linguistic assessment and therapeutic follow-up, when separated from the theoretical-methodological
reflection made possible by Linguistics.
Keywords: neurolinguistics; language in aphasia; writing in childhood.
1
Professora Titular da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, SP, Brasil.
[email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2724-1608
2
Professora Associada III da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, SP, Brasil.
[email protected]
3
Relembrando a parceria de ideias entre Cida Coudry, Marisa Cassim e Maza Coudry (primeira autora
deste texto).
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PARTE I: EXPERIÊNCIA INCOMPLETA
1. INTRODUÇÃO
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Entendemos ser necessária e esclarecedora a escrita em primeira pessoa em algumas passagens do texto,
quando a primeira autora relata seu trabalho para estabelecer e consolidar a Neurolinguística Discursiva
como campo teórico de atuação para o linguista, assim como quando apresenta dados de afasia e de escrita
na infância em que a Profa. Maria Irma Coudry era a interlocutora.
5
Em trabalhos publicados na Cadernos de Estudos Linguísticos, Coudry e Morato (1988, 1990) estendem
o conceito de “processo linguístico” para “processo linguístico-cognitivo” na abordagem neurolinguística
de patologias em que a linguagem está envolvida.
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produz fundam a ND conduzindo a avaliação e o seguimento longitudinal pelos caminhos
da experiência imperfeita, inspirados por Lemos na condução do processo de Aquisição
da Linguagem; de como a criança entra na linguagem, capturada pelo outro, pela língua,
pelo discurso e pela cultura (LEMOS, 2002). É esse percurso que o afásico pode
reconhecer em caminhos que já trilhou.
O que Galindo (2023) – em sua recente obra Latim em pó – chama de milagre é o
que chamamos de experiência incompleta. Diz o autor: “[...] a partir de dados
desorganizados, fragmentados e muitas vezes contraditórios, Luzia vai aprender a falar ”6.
É isso o que também nos atrai na afasia. A convivência com o incompleto na fala, que
demanda acabamento (BAKHTIN, 1992; NOVAES-PINTO, 1999, 2017), na arena da
fala compartilhada, é uma questão familiar para os falantes, sejam afásicos ou não. Quem
já não se sentiu incompleto, seja no que diz, seja no que imagina que o outro entendeu do
que foi dito, sem ser afásico? A quem não faltam palavras, sobretudo nomes de pessoas,
de coisas, de lugares, de filmes, livros, autores e atores?
Enunciados produzidos por afásicos na relação com não afásicos, na experiência
incompleta – de onde deriva o conhecimento da afasia e a possibilidade de sua reparação
sempre inconclusa – dão visibilidade a essa experiência de falante e faltante que o sujeito
experimenta na afasia, e que busco salientar nos dados que se seguem7.
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(ii) Sujeito ED11, em abril de 2023
Enquanto N mostrava fotos de sua família, apontei para uma moça e perguntei: “É
sua sobrinha?” Ele respondeu: “Sim, sua sobrinha”. “Minha sobrinha?”, provoquei.
“Não, minha”. Observamos no dado que N busca seu lugar no discurso e o outro o leva a
encontrá-lo pela experiência imperfeita do diálogo que traz a reversibilidade de papéis
discursivos acoplada às formas da língua.
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e só então acede a sambando, pelo prompting alongado samband fornecido pela
interlocutora.
Tentando explicar o provérbio “Feliz foi Adão que não teve sogra e nem
caminhão” AF se apegou ao sentido que sua sogra tem em sua vida – que o protege e que
é boa para ele; não admitindo que a sogra possa fazer mal ao casamento. É quando toma
a linguagem como literal, unívoca que se revela sua afasia. AF não manipula sentidos
estabelecidos, indiretos, inferências e pressuposições para interpretar piadas, provérbios
e textos dirigidos ao outro. Ao contrário, ele interpreta o provérbio com base apenas em
sua experiência pessoal e não a partir do discurso, o que pouco contribui para desvelar o
sentido veiculado nesse gênero de texto. Sogra, para ele, tem um sentido fixo, à parte do
que significa culturalmente o provérbio. Camadas de sentido historicamente construídas
são apagadas; ficam aquelas que na infância são encaminhadas pela emoção, pelo afeto,
as mais antigas, as fortalecidas pelo uso, das quais não se consegue desvencilhar e que
emergem com a afasia. Freud (1973), em seu estudo sobre as afasias, considera que
lembranças antigas resistem mais a esquecimentos e a efeitos de lesões. Mas AF foi
aprendendo a se distanciar de si e do discurso e a lidar com a heterogeneidade e não
univocidade das estruturas da língua. Fez também parte de nossa experiência incompleta
a recontagem de piadas a AF por Sírio Possenti (POSSENTI; COUDRY, 1991;
COUDRY; POSSENTI, 1993) que ajudam a compreender suas dificuldades linguísticas
que não dizem respeito ao conhecimento enciclopédico, ao significado das palavras e das
coisas, mas ao acesso, pela via da linguagem, a este equipamento socialmente construído
em que operam matrizes semânticas que orientam as relações de sentido no discurso. Ao
contar ao investigador que estava tentando voltar a trabalhar, este perguntou a AF: “O
que você está fazendo agora?”, ao que AF respondeu: “Agora? Agora, eu estou falando
com o senhor”, indicando o trabalho do eu no discurso do outro, e diferenciando os dois
empregos correntes de “agora”. Rindo, AF restabeleceu uma espécie de “prazer do
cômico” (POSSENTI, 2009).
15
WW: lesão na região da Artéria Cerebral Média (ACM) do hemisfério esquerdo, apresentando
dificuldades de seleção de palavras e sua concomitante combinação para a produção de enunciados.
16
A ND insere a reflexão desse autor em seu corpo teórico e toma a possibilidade de o afásico traduzir na
própria língua o que a afasia perturba, buscando outras formas de dizer, que sempre há, alçando vias vicinais
por processos alternativos de significação.
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AF: lesão Fronto-Parietal (FP) esquerda, que acarreta, dentre outras, dificuldades de interpretação de
sentidos figurados, sobretudo as metáforas, provérbios e piadas.
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(viii) Sujeito SB18, em junho de 1997
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SB: lesão Têmporo-Parieto-Occipital (TPO) esquerda que afetou a subjetividade e acarretou
estranhamento de seu estado afásico com repercussão na linguagem.
19
AB: lesão Têmporo-Parieto-Occipital (TPO) esquerda que mostrou sinais de hemiplegia, anosognosia,
expressão da subjetividade, apraxia para gestos simbólicos, percepção e representação do corpo e anomia.
20
No afásico, pode ocorrer um estranhamento de si, do sujeito que passou a ser depois da afasia, o que nos
faz retomar sempre a hipótese inicial de Coudry, de que há dois sujeitos depois da afasia (além das múltiplas
faces que incorporamos), que convivem linguística e psiquicamente: o que antes dela exercia seus múltiplos
papéis com eficácia (S1) e aquele que acontece com a afasia (S2), mais incompleto ainda. Em lesões centro-
hemisféricas e posteriores do cérebro, e também em lesões bilaterais, essa convivência passa por um
estranhamento que se explicita verbal e não verbalmente, considerando o papel que as áreas posteriores do
cérebro desempenham na percepção, imagem/representação do corpo e gestualidade – mediadas pela
linguagem.
21
CF sofreu uma rotura de aneurisma com 29 anos de idade, o que provocou uma hemorragia extensa no
hemisfério esquerdo cerebral. Apresenta também apraxia buco-facial. Produz automatismos e frases
cristalizadas, precisando de prompting para a sua produção verbal.
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Quando trouxe minha labradora Buana22 para a sessão do CCA, CF queria dizer
seu nome. Ao invés de “Buana”, só lhe ocorria dizer “Bruna” e “Bruninha”, nome de uma
sobrinha que mora com ela. A semelhança fonética leva CF a dizer nomes que se impõem.
A vizinhança sonora em si não é explicativa do ato falho e/ou da parafasia, mas se
constitui como um contexto favorável à emergência de palavras que nos fogem ao
controle. Conforme Freud (1969), o ato falho é favorecido por circunstâncias de valor
fonético e por associações psicológicas próximas. Assim, compreendemos melhor porque
no lugar de “Buana” vieram outros nomes, mas não quaisquer nomes. Nomes que são
velhos conhecidos de CF, com os quais tem uma relação de afeto, que povoam seu campo
psíquico e têm registros marcados pela repetição e uso. A análise desse dado permite
trazer a reflexão posta por Freud (1973) acerca da proximidade entre os mecanismos que
regem o ato falho e a parafasia – o que pode ser estendido para o esquecimento temporário
de nomes e a anomia (falta do nome por acesso lexical dificultado em certos estados de
afasia); ou seja, reencontra-se a familiaridade entre processos psíquicos que ocorrem tanto
em estados normais como em estados patológicos do cérebro (COUDRY, 2009). O dado
mostra ainda a relação de CF com a afasia e a linguagem, seu empenho em enfrentá-la na
experiência incompleta23 vivida na prática social exercida em grupo no CCA – que tantas
possibilidades de dizer/mostrar traz a todos – marcas de sua vida cotidiana na lida com a
afasia.
Outra reflexão de Freud (1973) acerca da relação que o sujeito estabeleceu até
então com a língua e/ou com o modo como se dá seu funcionamento discursivo, na afasia:
o conhecido se apresenta modificado como se fosse novo; se imerso no uso da linguagem,
na experiência incompleta, vários caminhos levam esse novo a se repetir em outras
situações, e muitas outras vezes. Isso se vê na predileção de CF por “Bruna” e “Bruninha”.
22
Homenageando Rita Lee, retomo esse dado.
23
As possibilidades de reparação da afasia e de entrada do falante na língua e no discurso, na infância,
acontecem na experiência incompleta, onde mora a função criadora/criativa da linguagem, condição para
renovar o velho da língua (automatizado, irrefletido) e instaurar o novo (reflexivo, pensado). A afasia
transforma o conhecido, o velho da língua, em novo; na criança, ao longo da ontogênese, o novo vai se
transformando em velho, o que vai criando sua intimidade com a linguagem, por sua vez afetada na afasia
(COUDRY, 2010).
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outros que tangem as condutas terapêuticas apartadas do funcionamento discursivo da
linguagem (COUDRY, 2006; 2010; 2014; 2020; BORDIN, 2010; ANTONIO, 2011;
MÜLLER, 2013; MOUTINHO, 2014; BERGAMASCHI, 2020). Do ponto de vista do
falante, a companhia da fala no novo aprendizado significa trazer a experiência
incompleta que aconteceu em sua entrada na fala pela língua compartilhada.
Nesse contexto, e contra a patologização da infância, apresento dois dados que
mostram o efeito da experiência incompleta na entrada normal das crianças no mundo da
leitura e da escrita no Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho)24 formado em
2004 sob os mesmos princípios que guiam o CCA. O CCazinho se configura como um
espaço de avaliação e seguimento individual e coletivo dedicado a crianças que apresentam
dificuldades de escrita, muitas das quais estão associadas a um diagnóstico a que nos
contrapomos.
Equivocadamente, tais dificuldades têm sido tomadas – tanto na clínica quanto no
ambiente escolar – como sintomas de patologias, notadamente a Dislexia, o Transtorno
do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade (TDAH), a Dificuldade/Transtorno de
Aprendizagem e o Déficit do Processamento Auditivo, dentre outros (MÜLLER, 2013;
MOUTINHO, 2014). Analisadas à luz da ND, os dois dados que se seguem mostram
sujeitos atuando com dificuldade nos processos de leitura e escrita, mas também indicam
diagnósticos que não se confirmam mostrando como a criança é capturada pela
experiência incompleta em sua entrada na leitura e escrita.
O hábito de ler com as crianças o que está escrito em nosso entorno e ajudá-las a
descobrir as diversas funções sociais da escrita despertou nelas a curiosidade de ler avisos,
placas, etc. Durante o primeiro semestre de 2010, as salas de aula do IEL estiveram em
reforma. No corredor de acesso a elas, bem perto de onde se situa o CCazinho, havia uma
placa (Figura 1) que KS25 leu. Ela entrou contente na sala onde eu estava, dizendo: “Eu li
a praca”.
24
O Centro de Convivência de Linguagens - CCazinho - foi criado por Coudry, em 2004, na área de
Neurolinguística do Departamento de Linguística da Unicamp, para acolher crianças com dificuldades
escolares e que apresentam avaliação/diagnóstico de alguma patologia. A experiência de falar, ler, escrever
no CCazinho tem mostrado que as crianças vão muito além do que se espera delas, não confirmando o
diagnóstico de patologia/distúrbio/alteração que afetaria sua escrita e leitura. Mostra também que aprendem
o que se ensina para elas, em um ritmo próprio, como cada um de nós (COUDRY, 2023).
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KS: Diagnóstico de Dificuldade de Aprendizagem e Problemas na Fala. Apresenta dificuldades,
sobretudo, nos processos de leitura e escrita.
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Figura 1: Placa indicando a presença de obras no IEL
Fonte: Banco de dados em Neurolinguística (BDN) - CNPq n° 307227/2009-0: CCazinho, abril de 2010
Segue-se a transcrição do diálogo com KS, para que se possa analisar o processo
da produção da leitura, que se faz pela fala.
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lugar do sentido para Freud (1973). Para entender o que está escrito, KS tem que
superassociar placa (escrita) e praca (fala), guiada pelo sentido que conhece, por meio de
sua variedade de fala (praca) – que não é patológica, mas, ao contrário, é a que reconhece
por meio da língua dos outros, com quem aprendeu a falar: “A diversidade linguística é
tratada não como um problema, mas como uma qualidade do fenômeno linguístico”
(ALKMIM, 2006, p. 37). Para KS – e para todos os falantes do português do Brasil que
dominam essa variedade social e regional, e mesmo para os que dominam uma variedade
mais próxima do padrão – a sequência das consoantes ‘PR’ é uma possibilidade que a
língua dispõe, tanto quanto ‘PL’, ou seja, trata-se de grupos consonantais possíveis na
língua (como em presente; plano; problema; pleno; prato etc), e isso não é um problema
de fala, nem uma fala com problema.
Para Freud, o sujeito que faz uso de um dialeto realiza uma superassociação. Em
nossos termos, superassociar requer um trabalho linguístico-cognitivo complexo que
envolve as funções psíquicas superiores (linguagem, atenção, percepção, memória,
práxis/corpo, raciocínio intelectual) (LURIA, 1977, 1996; VYGOTSKY, 2021), em pleno
processo, na idade em que KS está; requer uma espécie de tradução (JAKOBSON, 1975;
COUDRY, 2008), que mostra que a representação sonora e motora de praca se aproxima
da de placa. O que mostra a relação íntima da leitura com a fala é que KS, lendo, introduz
marcas de sua variedade de fala, marcas de subjetividade (BENVENISTE, 1995), dando
indícios de que a leitura vem inicialmente colada à fala, lugar de sentido para o aprendiz,
como propõe Freud (1973). É o que se nota quando KS lê as palavras pedestre e execução,
novas para ela, desta vez um movimento que se inicia na leitura/escrita e entra na fala.
Freud destaca que a relação entre o sonoro e o motor se automatiza quando podemos ler
mentalmente sem precisar do apoio da voz ou da escrita, o que KS ainda não faz. Quando
lemos um texto difícil com palavras que não conhecemos, como é o caso de KS, nos
comportamos como ela, ou seja, precisamos do retorno sonoro, motor e até visual,
separadamente, porque não há condição de concomitância entre eles: as palavras lidas,
para completarem o sentido, voltam a precisar do apoio da fala e/ou da escrita.
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AB: Diagnóstico de Dificuldade de Aprendizagem, sobretudo nos processos de leitura e escrita.
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Figura 2: AB escreve as palavras do livro Pedro vira porco-espinho
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Conversamos com as crianças sobre como as histórias nos ajudam a lidar com a vida, as emoções, as
alegrias, os medos, os sofrimentos etc., sugerindo-lhes assistir a série Chapeuzinho de todas as cores,
baseadas no livro Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque e Ziraldo, especialmente destinada a isso.
28
A expressão “companheiros de viagem” foi recorrentemente empregada por Wanderley Geraldi para se
referir aos autores aos quais recorremos para ancorar o desenvolvimento de uma teoria. Ampliamos o uso
dessa figura de linguagem em nossas pesquisas para nos remetermos também aos nossos companheiros na
pesquisa, no ensino e na extensão: colegas da área, alunos, orientandos.
29
O dossiê Trinta anos após o Diário de Narciso foi organizado por Novaes-Pinto e Freire.
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Perottino cita a obra O que é um autor?, de Foucault (1969) para recorrer à noção de ‘função-autor’.
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afásicos nas situações concretas de interlocução”. Além de centralizar o papel do sujeito
nas práticas de linguagem, Perottino (2018) destaca o tipo de acompanhamento realizado
nos grupos de convivência e nos atendimentos longitudinais individuais no IEL. Outra
questão pontuada pela autora é a forte crítica feita aos testes padronizados que orientam
(ainda hoje) as avaliações de linguagem na clínica tradicional. A autora atribui os rumos
dados por Coudry à Neurolinguística de orientação discursiva ao seu compromisso com
os sujeitos afásicos.
Tal ruptura com as abordagens tradicionais contribuiu para mudanças – inclusive
éticas – na postura terapêutica de fonoaudiólogos que cursaram a Pós-Graduação em
Linguística no IEL, em um ambiente propício para a ‘circulação dessa nova
discursividade’ desde a década de 80. O discurso instaurado na área a partir de então é
uma forma de resistência ao discurso hegemônico da Medicina em relação aos fenômenos
da linguagem nas patologias.
Bordin e Freire (2018) também apontam para diferenças fundantes entre uma
Fonoaudiologia de caráter biomédico e uma Fonoaudiologia que se beneficia de
princípios teórico-metodológicos da ND. Trata-se de uma concepção que dá voz aos
fonoaudiólogos “[...] que não se identificam com práticas corretoras ainda hegemônicas
na área, e de construir um novo espaço coletivo para reinterpretar o seu papel”
(BORDIN; FREIRE, 2018, p. 396); uma abordagem quase sempre marcada “[...] por um
viés corretivo (objetivando um padrão de normalidade) e reabilitador (visando a
eliminação de sintomas), em que fala e linguagem são tomadas, muitas vezes, como
sinônimos” (BORDIN; FREIRE, 2018, p. 386), o que acaba por gerar um excesso de
diagnósticos. O discurso é ignorado como possibilidade de intervenção clínica enquanto
deveria orientar tanto a avaliação quanto os acompanhamentos terapêuticos tendo como
foco os processos. Nas palavras das autoras, o trabalho fonoaudiológico em linguagem
[...] revisto sob a luz dos conceitos da ND, pressupõe a interação com sujeitos que apresentam
diferentes relações com a linguagem – a fala, a língua e o discurso, decorrentes de suas histórias
de vida, o que impacta os quadros clínicos que apresentam (e vice-versa). (BORDIN; FREIRE,
2018, p. 393)
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Ver, a respeito do tema da dislexia, o artigo de Aquino (2018), Onde está o deficit? Polêmica em torno
da dislexia.
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no IEL. Seria impossível listar neste artigo todos esses trabalhos, mas destacamos em
seguida alguns deles, para dar visibilidade a essas relações.
Caron (2018, p. 554), ao abordar os desafios da educação e os papéis de seus
agentes, afirma que as “escolas são locais onde se dão ações educativas”, com o objetivo
de possibilitar aos cidadãos, independentemente das suas diferenças e necessidades, “o
desenvolvimento das competências e habilidades que lhes auxiliem a explorar plenamente
os seus potenciais, integrando-se ativamente à sociedade e contribuindo para a vida
econômica, social e cultural do país”. Seguindo os princípios da Neurolinguística de
orientação discursiva, a autora destaca o papel da família como agente responsável pela
inclusão da criança na sociedade, já que esta é o primeiro campo de socialização para a
criança, onde são desenvolvidos o crescimento físico, pessoal e emocional. “Trata-se de
um sistema complexo e mutável de organização social, imerso em um contexto espaço-
temporal em que coexistem diferentes padrões, estruturas e funções” (CARON, 2018, p.
554). De acordo com essas interações, nela afirma-se a relação com a saúde e as doenças.
Para a autora, “a relação família-escola também será variavelmente afetada pela
satisfação ou insatisfação de professoras e de mães/pais, e pelo sucesso ou fracasso do/a
estudante” (CARON, 2018, p. 555). A experiência de trabalho no CCazinho dá
visibilidade a essas relações e indica um caminho promissor para o processo de ensino-
aprendizagem, entendendo a prática pedagógica como uma construção partilhada de
sentidos. Em suas palavras:
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Outros trabalhos do volume já referido nos ajudam a dimensionar a ‘transferência’
dos princípios teórico-metodológicos da ND para os estudos da linguagem nas mais
diversas patologias. Citamos, por exemplo, a reflexão de Nascimento e Chacon (2018, p.
468), na qual os autores discutem as associações entre aspectos motores e discursivos na
Doença de Parkinson, que se “[...] mostram submetidos a fatos discursivos que apontam
mais para funcionamentos integrados do que para funcionamentos específicos nas
relações entre cérebro e linguagem”.
Silva (2014, 2018) problematiza o discurso médico determinístico da Síndrome
do X-frágil. Por meio de um estudo de caso, busca compreender o que é da ordem do
patológico, considerando fatores de ordem social e da história de vida do sujeito,
defendendo que ele não pode ser reduzido à sua doença e que, por isso, foram
alfabetizados – embora não seja isso que se espera deles em uma abordagem tradicional,
que dispensa a Linguística. No mesmo sentido, Navarro (2018) aborda a atuação do
fonoaudiólogo no contexto da terapia com crianças autistas e propõe uma reinterpretação
da prática fonoaudiológica com a linguagem no contexto da equoterapia, ressignificando
a relação entre corpo, sistema sensorial, fala e linguagem.
Dentre os temas de pesquisa já desenvolvidos na Graduação e na Pós-Graduação
em Linguística no IEL, destacamos os seguintes, relativos às patologias que impactam o
funcionamento linguístico, além das diversas formas de afasias (fluentes e não-fluentes):
Transtornos do Espectro Autista (TEA), Dislexia, Demência de Alzheimer, Doença de
Parkinson, Síndrome Frontal, Síndrome de Down, Síndrome do X-Frágil, Epilepsia,
Surdez e processos de envelhecimento – patologias que envolvem o funcionamento da
linguagem e, em geral, o funcionamento de outras funções psíquicas superiores.
Quanto à semiologia das afasias, destacamos o estudo dos seguintes fenômenos
em dissertações e teses: agramatismo e fala telegráfica (COUDRY, 1986, 1988;
NOVAES-PINTO, 1992, 1999; LIMA, 2017; LIMA; NOVAES-PINTO, 2017; LIMA,
2023), parafasias (RAPP, 2003; NOVAES-PINTO; SOUZA-CRUZ, 2012; SOUZA-
CRUZ, 2013; SOUZA-CRUZ; BOCCATO, 2017), paragrafias e paralexias (BOCCATO,
2018), jargonafasia (MORATO; NOVAES-PINTO, 1998; NOVAES-PINTO, 1999),
produção de TOTs - palavras na ponta-da-língua (OLIVEIRA, 2015)32, dentre outros.
Foram essenciais para o desenvolvimento da área os estudos para aprofundar a
compreensão de processos linguístico-cognitivos como os de categorização (SOUZA-
CRUZ, 2017), compreensão (FUGIWARA, 2013; FUGIWARA; NOVAES-PINTO,
2013), interpretação de metáforas e provérbios, o papel dos promptings fonológico e
semântico, o papel das tecnologias digitais no trabalho com sujeitos adultos
(PIERUCCINI, 2015; GARCIA, 2018; DIAS, 2020). Muitos estudos também
tematizaram questões teórico-metodológicas que fundamentam o trabalho realizado no
Centro de Convivência de Afásicos, o trabalho com os familiares e acompanhantes
(CARON, 2018), a relevância dos estudos longitudinais de perspectiva
discursiva/qualitativa, de natureza dialógica e, sobretudo, a crítica aos testes padronizados
(COUDRY, 1986, 1988; NOVAES-PINTO, 1992, 1999, 2011, 2017).
Vale ainda mencionar que outras áreas da Linguística se debruçam sobre os dados
que emergem nas interações com os sujeitos afásicos visando avaliar diferentes
abordagens sobre o funcionamento linguístico-cognitivo. O agramatismo e a produção da
chamada “fala telegráfica”, por exemplo, considerados fenômenos dentre os mais
estudados na Neurolinguística, abordados inicialmente por Coudry (1986, 1988) já foram
retomados por Gregolin-Guindaste (1996) na teoria gerativista, por Lima (2023) na
perspectiva da Gramática Discursivo-Funcional e Novaes-Pinto (1992, 1999, 2017)
32
Sobre o tema das semiologias na perspectiva da linguística, referimo-nos ao trabalho de Morato (2010):
A semiologia das afasias: perspectivas linguísticas.
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incorporando conceitos bakhtinianos como categorias de análise. Teorias semânticas e
pragmáticas têm sido mobilizadas para analisar dados de sujeitos com esquizofrenia
(GATI, 2017), nas afasias posteriores e demências (OLIVEIRA, 2015; SOUZA-CRUZ,
2017), dentre outras patologias. As dissertações e teses da área, ao focarem nas análises
de um ou outro nível linguístico, contribuem para a compreensão de seu funcionamento
integrado (COUDRY, 1993), relacionando-os ainda ao funcionamento do cérebro como
um sistema funcional complexo (LURIA, 1977) buscando compreender as relações entre
as funções psíquicas superiores.
4. AGRADECIMENTOS
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33
Um afásico – JB –, ao responder ao Teste de Nomeação da “Bateria de Boston: the assessment of aphasia
and related disorders” (GOOGLASS; KAPLAN, 1972), diante da insólita figura de um iglu, responde:
“forno de pizza”, o mesmo que fez uma das crianças avaliadas. Para a ND, a resposta foi completamente
acertada, mas segundo os critérios para pontuação do referido teste, EF teria errado.
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Que articulam linguagem verbal, gestos e outros recursos linguístico-discursivos que o afásico traz para
a cena enunciativa.
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Aceito: 18/8/2023
Publicado: 26/9/2023
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