Dissertação Carolina Viana Machado

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


Instituto de História

O pós-abolição nas aulas de História: uma análise do papel


social atribuído aos negros na História ensinada

Carolina Viana Machado

Rio de Janeiro
Julho/2016
O pós-abolição nas aulas de História: uma análise do papel
social atribuído aos negros na História ensinada

Carolina Viana Machado

Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Mestrado

Profissional do Programa de Pós-graduação em Ensino de

História do Instituto de História da UFRJ como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Ensino

de História.

Orientador: Amílcar Araújo Pereira

Rio de Janeiro
Julho/ 2016

2
FOLHA DE APROVAÇÃO

Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de


Mestrado Profissional do Programa de Pós-
graduação em Ensino de História do Instituto de
História da UFRJ como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de mestre em
Ensino de História.

Aprovada por:
____________________________________________________________
Prof. Dr. Amílcar Araújo Pereira – UFRJ

____________________________________________________________
Profª. Dr.ª Juçara da Silva Barbosa de Mello- PUC/RJ

___________________________________________________________
Prof. Dr.ª Warley da Costa – UFRJ

3
CIP - Catalogação na Publicação

V111 Ma p Viana Machado , Carolina


O pós-abolição nas aulas de História: uma análise do papel social atribuído
aos negros na História ensinada / Carolina Viana Machado . -- Rio de
Janeiro, 2016 .
98 f.
Orientador: Amílcar Araújo Pereira .
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto
de História, Programa de Pós-Graduação em Ensino de História, 2016 .
1. Ensino de História . 2. Pós-abolição . 3.Livros didáticos . I. Araújo Pereira ,
Amílcar , orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos


pelo(a) autor(a)

4
RESUMO

Esta dissertação corresponde ao resultado final da pesquisa realizada ao longo de minha


trajetória no curso de Mestrado Profissional em Ensino de História do Instituto de
História da UFRJ (ProfHistória) no qual me dediquei a analisar a forma como a
participação política social e cultural dos negros na História do Brasil, no período pós-
abolição, vem sendo tratada nas aulas de História. Para isto embasei minha análise tanto
no que se refere ao conteúdo presente nos livros didáticos quanto na atuação dos
professores no cotidiano das aulas, a partir de entrevistas realizadas com docentes que
atuam na Educação Básica.

Palavras-chave: Pós-Abolição, Livros Didáticos, Ensino de História

5
ABSTRACT

O pós-abolição nas aulas de História: uma análise do papel social atribuído aos
negros na História ensinada

Carolina Viana Machado

Orientador: Prof. Dr. Amílcar Araújo Pereira

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Ensino de História, Instituto de História, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Ensino de
História.

This work corresponds to the final result of the research carried out throughout my
career in the course Professional Master in History Education UFRJ History Institute
in which I dedicated myself to examine how social and cultural political participation
of blacks in the history of Brazil in the post- abolition period , it has been treated in
history lessons both in relation to this content in the textbooks as the role of teachers
in the daily lessons, from interviews with teachers who work in Basic Education

Key-words: Post- Abolition, Textbooks , History Teaching

Rio de Janeiro
2016

6
AGRADECIMENTOS :

Durante minha trajetória pelo Mestrado Profissional em Ensino de História


(ProfHistória) pude contar com algumas pessoas especiais que me ajudaram a percorrer
este caminho. A estas pessoas dedico este trabalho.

Primeiramente aos meus pais Ary Antunes Machado e Isis Monteiro Viana
Machado e a meu irmão Ravi Gabriel Viana Machado por seu enorme carinho,
paciência, força e apoio não somente em relação a meus estudos, mas em todos os
momentos de minha vida.

A meu orientador o Professor Doutor Amílcar Araújo Pereira por toda a sua
ajuda, sabedoria e compreensão que foram fundamentais para a realização deste
trabalho, bem como pelo carinho e dedicação dispensado a todos os seus orientandos.

Agradeço também a todos os professores que concordaram em conceder as


entrevistas para esta pesquisa. Em nossa profissão muitas vezes nos sentimos
desestimulados por acreditar que estamos em uma luta solitária. No entanto, ouvir e
compartilhar estas experiências, traz um novo ânimo e a percepção de que os
problemas dificuldades são comuns a todos nós, bem como as tentativas de
transformação da sociedade através da História que ensinamos aos nossos alunos .

E por fim agradeço a colaboração da Direção e Equipe Pedagógica, bem como


aos alunos do CIEP 178 João Saldanha, em Belford Roxo onde trabalho como
professora. Sua compreensão e apoio foram fundamentais para que eu conseguisse
concluir esta jornada.

7
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................... p. 9

CAPÍTULO 1 - O pós-abolição no Ensino de História......................................... p. 21

CAPÍTULO 2 - O Livro Didático como Objeto e Fonte de pesquisa................ p. 37


2.1 - O Livro didático em sua Multiplicidade: Características Gerais.......................p.38
2.2 - Análise da Coleção............................................................................................ p. 46

CAPÍTULO 3 - O lugar do Negro na História Ensinada..................................... p. 57


3.1 - Trajetórias, Saberes e Experiências..................................................................... p.57
3.2 - O livro Didático: Críticas e Formas de Utilização............................................. p.71
3.3 - O Racismo no Cotidiano Escolar ...................................................................... p.71

CAPÍTULO 4 – O pós-abolição nas Aulas de História : Sugestões de como


Trabalhar este Conteúdo......................................................................................... p. 73

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................p. 82

REFERÊNCIAS.......................................................................................................p. 86

ANEXOS....................................................................................................................p. 90

8
INTRODUÇÃO:

A presente dissertação corresponde ao resultado final da pesquisa desenvolvida


ao longo de minha trajetória no curso de Mestrado Profissional em Ensino de História
(PROFHISTÓRIA-UFRJ). O tema escolhido para análise foi a forma como a
participação dos afrodescendentes na História do Brasil é tratada nas aulas de História,
tanto no conteúdo dos livros didáticos, quanto na prática dos professores.

O cenário educacional brasileiro tem se transformado significativamente nas


últimas décadas, sobretudo no que se refere à inclusão social, ao multiculturalismo e ao
reconhecimento e respeito à diversidade cultural. O combate ao racismo e a valorização
de nossa herança cultural africana são questões que têm sido largamente discutidas na
sociedade atual se fazendo presentes também no campo da educação.

No fim da década de 1990, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)


trouxeram temas como a diversidade e o multiculturalismo, que não costumavam ser
abordados pelos currículos oficiais. Tal fator deu início a uma série de mudanças na
forma de se compreender as relações entre os diferentes grupos sociais e culturais no
âmbito do ensino.

Ao definirem o tema transversal “pluralidade cultural” os autores dos


PCNs enfatizam que não se trata de dividir a sociedade brasileira em
grupos culturalmente fechados, mas educar com vistas a estimular a
convivência entre tradições e práticas culturais diferenciadas,
presentes na sociedade brasileira, educando para a tolerância e o
respeito às diversidades, sejam culturais, linguísticas, étnico-raciais,
regionais ou religiosas. (MATTOS, 2003, p.127).

Dentro desta perspectiva de educar para o respeito à diversidade e no que se


refere a uma educação para as relações étnico-raciais, a grande mudança se deu a partir
da publicação da lei 10.639, em 2003. Esta lei incluiu na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) a obrigatoriedade do Ensino da História da África e da
História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas de todo o país.

Tal mudança na legislação representou uma importante conquista para a


sociedade brasileira de um modo geral, levando a uma reflexão sobre a importância da
História e da Cultura Afro-brasileira na formação dos estudantes. Deste modo, a lei
10.639 também trouxe uma reconfiguração da forma de se compreender e ensinar a
História do Brasil:

9
Pressões postas no tempo presente, sobretudo aquelas advindas do
combate ao racismo, forçam a uma reconfiguração das narrativas
históricas com repercussões nas formas de abordagem da história do
Brasil. Estamos diante certamente, de uma reescrita da história e dos
usos e leituras do passado possibilitadas pela produção dessa área, em
especial por meio do ensino de história, forçada pela agenda do
antirracismo (PEREIRA & ROZA, 2012, p. 92).

A obrigatoriedade do ensino de conteúdos referentes à História e Cultura


Africana e Afro-Brasileira a partir da Lei 10.639 exigiu mudanças nos currículos,
principalmente no que se refere ao Ensino de História. Em março de 2004 foram
aprovadas e publicadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana.

Este documento traz uma proposta de educação para as relações étnico-raciais e


o combate ao racismo na sociedade brasileira a partir do espaço escolar. Ele também
demonstra a forma como as temáticas impostas pela legislação que o acompanha seriam
tratadas nas escolas apresentando sugestões de conteúdos e propostas de atividades e
abordagens das mesmas.

No entanto, apesar destas importantes conquistas, tenho observado em minha


prática docente que, em relação aos conteúdos referentes à História do Brasil, a
trajetória do Movimento Negro bem como a participação política e social dos
afrodescendentes fora do período escravista ainda é muito pouco abordada nos
currículos, nos livros e nas aulas.

Diante desta realidade, o recorte temporal escolhido para análise nesta


dissertação foi o período pós-Abolição. Os estudos sobre o pós-Abolição ainda são
pouco conhecidos no âmbito escolar, no entanto nos últimos anos tem ganhado destaque
no meio acadêmico. Um exemplo disto foi a criação do Grupo de Trabalho
Emancipações e pós-Abolição durante o XXVII Simpósio Nacional da Anpuh (Natal,
2013). De acordo com este grupo de pesquisadores e estudiosos sobre tema:

O reconhecimento de escravos e seus descendentes como


sujeitos históricos influenciou os estudos sobre o Pós-Abolição.
Em contraponto à tese clássica do “largados à própria sorte”,
trabalhos importantes procuraram responder o que aconteceu
com a população negra depois de 13 de maio de 1888. Se a
década de 1980 representou um marco para historiografia da
escravidão, podemos pensar que os anos 2000 foram decisivos

10
para a historiografia do pós-Abolição. [...] O GT objetiva
consolidar o pós-Abolição como campo de pesquisa
relativamente "dissociado dos estudos sobre escravidão,
abolicionismo e relações raciais" como afirmaram Flavio Gomes
e Petrônio Domingues, reconhecendo, contudo, a centralidade
dos processos sociais e políticos que resultaram na abolição e
que, portanto, estariam incluídos no referido campo.1

Partindo desta concepção o pós-abolição, enquanto recorte temporal, engloba


desde a segunda metade do século XIX, quando a luta pela abolição e o Movimento
Abolicionista se intensificaram, até os dias atuais. Nesta dissertação o período escolhido
para análise compreende a participação dos afrodescendentes em nossa História ao
longo do século XX.

Os estudos sobre o pós-abolição incluem também o processo de reavaliação do


papel dos negros na História do Brasil, uma importante reivindicação do Movimento
Negro Brasileiro desde a década de70.

Um importante exemplo desta luta específica foi a construção,


realizada a partir de 1971, em torno do 20 de novembro como data a
ser comemorada pela população negra no Brasil em substituição ao 13
de maio. Essa mudança engloba uma ampla discussão sobre a
valorização da cultura, política e identidade negras e que pode
provocar objetivamente uma reavaliação sobre o papel das populações
negras na sociedade brasileira, na medida em que propõe deslocar
propositalmente o protagonismo em relação ao processo da abolição
para esfera dos negros (tendo Zumbi como referência), recusando a
tradição da princesa benevolente que teria redimido os escravos.
(PEREIRA, 2012, p.113)

Esta compreensão do protagonismo negro nas lutas por melhores condições de


vida e igualdade de direitos bem como na resistência à dominação, se estende até os dias
atuais. Neste sentido se faz necessário compreender a atuação da população
afrodescendente nas mais diversas áreas como conteúdo histórico legítimo e parte
integrante da História do Brasil.

Cabe ressaltar que a pesquisa aqui desenvolvida não corresponde a uma análise
da História do Movimento Negro no Brasil. Trata-se de compreender a forma como
atuação dos afrodescendentes em nossa História tem sido abordada no espaço escolar,
seja nos materiais didáticos seja na fala dos professores, ou mesmo através de projetos e
atividades extraclasses.

1
GT Emancipações e Pós Abolição, texto provisório. XXVII Simpósio Nacional da Anpuh, 2013.

11
Neste sentido, uma das fontes utilizadas na pesquisa foram os livros didáticos.
Os livros e materiais didáticos são fontes de pesquisa muito comuns na área da
Educação, pois correspondem a uma das principais ferramentas do processo de ensino
aprendizagem.

No que se refere à caracterização e análise dos livros didáticos a principal autora


utilizada como referência nesta pesquisa foi Circe Bittencourt. Ela define os livros
didáticos como objetos complexos que atuam, entre outros aspectos, como mediadores
do processo de aquisição do conhecimento, além de facilitadores da apreensão de
conceitos, do domínio de informações e de uma linguagem específica da área de cada
disciplina (BITTENCOURT, 2005, p. 296).

No âmbito do Ensino de História, a importância desta ferramenta é ainda maior.


Os livros didáticos contribuem significativamente para a construção memórias bem
como a formação de identidades por parte de crianças e adolescentes que em sua
maioria não têm contato com nenhum outro tipo de leitura.

É importante ressaltar que estas ferramentas de ensino também sofreram


mudanças a fim de se adequar às novas exigências curriculares das últimas décadas,
como a já citada lei 10.639/2003 e a lei 11645/2008 que estabeleceu a obrigatoriedade
do Ensino de História Indígena. Entretanto, no que se refere ao Ensino de História da
África e da Cultura Africana, é possível observar que tais temas ainda são tratados como
algo exótico, distante de nossa realidade.

No que se refere à História do Brasil, a participação dos negros se resume


basicamente à escravidão. São destacadas as formas de resistência, os quilombos, e um
ou outro nome presente no movimento abolicionista, em geral José do Patrocínio e
Joaquim Nabuco. Porém ainda é predominante a visão eurocêntrica do escravo
enquanto simples mercadoria do sistema colonial europeu. Sobre este aspecto Hebe
Mattos ressalta que:

Reproduzindo a tradição fundamente arraigada na historiografia


brasileira, mesmo quando a narrativa se estrutura a partir do tema
diversidade cultural e conflitos, os povos africanos não são
considerados a partir de suas culturas de origem e de seus encontros e
desencontros com europeus e nativos americanos, mas
fundamentalmente a partir de seu papel como força de trabalho na
sociedade colonial escravista (MATTOS, 2003, p. 133).

12
O sistema escravista foi sem dúvida um dos fatores estruturantes da sociedade
brasileira e a escravidão no período colonial, tanto de africanos quanto de indígenas,
constitui uma parte importante de nossa História devendo ser largamente discutida por
professores e alunos. No entanto, os descendentes destes escravizados continuaram a ter
um papel importante em nossa sociedade e história após o fim da escravidão. Tal fato
deve ser tratado nas aulas com a mesma profundidade e importância, reconhecendo e
valorizando as experiências vivenciadas pelos negros no pós-abolição.

A ênfase dada ao fator escravista como exclusivo exemplo de participação dos


negros em nossa História, feita por alguns livros didáticos, contribui para o reforço de
estereótipos e a construção de uma visão negativa como destaca Ana Maria Monteiro:

Pesquisas têm revelado o impacto dessa abordagem na construção da


memória e das identidades de afrodescendentes no Brasil. Crianças e
jovens têm dificuldades em se identificar com antepassados que eram
castigados, chicoteados, e considerados peças, coisas, mercadoria
(MONTEIRO, p. 21).

Em relação ao período pós-abolição, os afrodescendentes têm muito pouco ou


nenhum destaque nos materiais didáticos. Em geral apenas o marinheiro João Candido é
citado nos textos referentes à Revolta da Chibata, bem como Lima Barreto citado entre
os grandes nomes da literatura brasileira do início do século.

É notório que o papel desempenhado pelos afrodescendentes em nossa sociedade


neste período na arte, na literatura, na música e principalmente na luta contra o racismo
e por melhores condições de vida ainda tem estado em segundo plano. Nomes como
Antônio Torres, Viriato Correia, João do Rio, Luís Gama, Clementina de Jesus e
organizações como a Frente Negra Brasileira, criada em 1931, permanecem sem ser
sequer abordados em boa parte dos livros.

Dentre os diversos fatores que contribuíram para esta realidade, se destaca o


pensamento que se construiu a partir da década de 30, cujo principal exemplo é a obra
de Gilberto Freire, que exaltava a convivência harmoniosa das três raças formadoras do
estereótipo do brasileiro, a ausência de conflitos e a noção de democracia racial. Este
pensamento predominou em nossa sociedade por décadas, sendo determinante para o
modo como o governo brasileiro e a população em geral lidavam com as questões
raciais.

13
Tal fato se refletia, e ainda se reflete, na forma como a participação dos
afrodescendentes em nossa História bem como a importância do Movimento Negro e o
combate ao racismo são abordados nos materiais didáticos.

Diante desta realidade, foi escolhida para análise nesta pesquisa a coleção
didática: História - O mundo por um fio: do século XX ao século XXI. vol.3 (terceiro
ano do Ensino Médio) Autores: Jorge Ferreira; Georgina Santos; Ronaldo Vainfas;
Sheila de Castro Farias Editora: Saraiva / 2ª edição – 2013.

A escolha por esta coleção se deu pelo fato de a mesma ter sido adotada pelos
professores da escola estadual em que trabalho. Durante este processo, do qual
participei, a coleção recebeu muitos elogios e foi eleita pela equipe de história como a
que melhor atenderia as demandas dos alunos e dos professores. O principal motivo
alegado em favor da coleção citada se refere ao conteúdo. Segundo os professores esta
coleção possui um conteúdo considerado mais completo, abordando temas ausentes nos
outros livros analisados.

Além da coleção já citada, foram distribuídas aos professores de História de


minha unidade escolar as seguintes coleções para análise : História do Geral e do Brasil
volumes 1,2 e 3 autor : Claudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo Editora : Scipione/ 2ª
edição 2013; História Sociedade e Cidadania volumes 1,2 e 3 autor : Alfredo Boulos
Júnior Editora : FTD 1ª edição 2013 ( esta coleção que teve o maior número de
adesões nas escolas estaduais) ; História - das Cavernas ao Terceiro Milênio volumes
1, 2 e 3 autores : Patrícia Ramos Braick e Myrian Becho Mota. Editora : Moderna/ 3ª
edição 2013.

No que se refere a História da África estas três coleções cumprem os critérios de


análise estabelecidos pelo PNLD, embora a ênfase dada a História e cultura africana não
seja a mesma dada a Historia europeia , que ainda é predominante. No que se refere a
História afro-brasileira, a abordagem tradicional também predomina. Exceto algumas
referencias pontuais a Revolta da Chibata ou autores como Lima Barreto, a escravidão é
a principal referencia da participação dos afrodescendentes na História do Brasil.

De fato a coleção escolhida pela equipe foi a única que abordou a participação
política e social dos negros na História do Brasil no Pós-Abolição, ainda que de forma

14
superficial . Tal fator foi determinante, no critério comparativo, para a escolha desta
coleção como fonte para esta pesquisa.

Os autores da coleção também influenciaram na escolha, já que se tratam nomes


reconhecidos no meio acadêmico. Tal fator foi ressaltado pelos professores durante o
processo de escolha como positivo, pois a trajetória dos autores seria uma contribuição
para a qualidade da coleção.

Conforme o texto do Guia do PNLD de 2015 (Guia PNLD 2015, p. 84), a coleção
segue uma cronologia linear. Sendo assim, a opção pelo volume referente ao terceiro
ano do Ensino Médio se deu pelo fato dos conteúdos sobre o pós-Abolição estarem
concentrados neste volume que se trata do século XX aos dias atuais.

É importante destacar que a escolha por analisar apenas uma coleção se deveu ao
fato desta coleção ser a mais completa apresentada em comparação com as outras em
que o pós-abolição não foi sequer mencionado. Além disto, acredito que analisar a
coleção utilizada em minha escola foi algo bastante proveitoso pois permitiu a
comparação das impressões e experiências dos professores entrevistados com a minha
própria enquanto profissional, fortalecendo o diálogo com a experiência prática.

As entrevistas realizadas correspondem às fontes orais que compõe a pesquisa.


Foram entrevistados quatro professores. Dois que atuam em escolas estaduais de
diferentes regiões do estado do Rio de Janeiro, um que atua em uma escola técnica
federal e outra que atua na rede estadual e na rede FAETEC.

A escolha e caracterização dos entrevistados serão tratadas no terceiro capítulo


desta dissertação, que tem como tema a análise do conteúdo das entrevistas realizadas.

Como fundamentação teórica para a realização e análise das entrevistas foram


utilizados alguns conceitos e técnicas de História Oral. Dentre os diversos autores que
tratam desta temática, faço uso da concepção de História Oral de Verena Alberti :

Se pudéssemos arriscar uma rápida definição, diríamos que a História


Oral é um método de pesquisa ( histórica, sociológica, antropológica
etc..) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que
participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas,
visões de mundo como forma de se aproximar do objeto de estudo. (
ALBERTI, 2013, p.24 )

15
Nesta pesquisa as entrevistas não são as únicas fontes utilizadas para análise, no
entanto possuem uma grande importância para a compreensão do objeto por fornecerem
um tipo diferenciado de informações.

A entrevista em História Oral permite também recuperar aquilo que


não encontramos em documentos de outra natureza: acontecimentos
pouco esclarecidos ou nunca evocados, experiências pessoais,
impressões particulares etc.[...] informações inéditas podem ser
resgatadas durante uma entrevista de História Oral e confrontadas com
outros documentos escritos e /ou orais (ALBERTI, 2013, p. 30)

Partindo deste princípio a opção por utilizar as entrevistas se deve à necessidade


de ouvir os professores e suas demandas. Um dos principais objetivos deste trabalho é
compreender como a temática analisada tem sido desenvolvida pelos professores em
sala de aula. Ao relatarem a sua experiência prática, estes profissionais trouxeram
questões que vão além do uso do livro didático ou da aula expositiva tradicional.

Nas entrevistas foram abordados temas que vão desde a formação dos
professores, passando pelos conteúdos sobre o pós-abolição e a forma como a Lei
10.639 vem sendo aplicada nas respectivas escolas. A utilização do livro didático foi um
ponto importante, procurei observar não só a forma como livro era utilizado (ou não)
por estes professores nas aulas, mas também a opinião dos docentes sobre o mesmo.
Foi questionado se eles participaram do processo de escolha, as dificuldades, os pontos
positivos, os pontos negativos e o parecer sobre o conteúdo, em especial sobre o Pós-
Abolição.

Além da metodologia da História Oral foram utilizados como referenciais


teóricos para esta pesquisa autores que tratam das questões relativas à memória e à
identidade e como estas são construídas e reafirmadas na escola.

Deste modo compartilho da noção de memória de Michael Pollack que a


compreende enquanto um fenômeno social e coletivo, construído coletivamente e
submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes (POLLAK,1992, p.
201). Sendo assim, a memória não deve ser compreendida como simples vestígios do
passado, estáticos e imutáveis. Ao contrário, a memória é construída no presente e
reflete uma leitura do passado a partir das demandas do tempo presente.

No que se refere à relação entre memória e Ensino de História, faço uso das
noções e conceitos desenvolvidos pela professora Ana Maria Monteiro:

16
O Ensino de História é, potencialmente, um lugar onde memórias se
entrecruzam, dialogam, entram em conflito; lugar no qual, também, se
busca a afirmação e registro de - ou onde se desenvolvem embates entre
- determinadas versões e explicações sobre as sociedades, a política, o
mundo, prescritas pela instituição em que se localiza; “lugar de
fronteira”, que possibilita o diálogo entre memórias e “história
conhecimento escolar” (MONTEIRO, p.15).

A escola é por si só um espaço de rituais e trocas simbólicas onde uma


infinidade de memórias individuais e coletivas são construídas pelos estudantes e por
todos que compartilham aquele espaço. Nas aulas de História, a memória existente
sobre determinados fatos, personagens ou grupo sociais pode ser reconstruída, ou
reafirmada dependendo do tipo de interpretação do passado feita pelo professor e pelos
materiais didáticos utilizados.

Existem diversas disputas em torno da memória e de seus significados.


Selecionar o que deve ser lembrado por uma determinada sociedade envolve a
conciliação dos interesses de diferentes grupos sociais que englobam desde memória
nacional, discurso que unifica os membros de um país sobre uma identidade comum, até
as chamadas memórias subterrâneas, das minorias e grupos marginalizados socialmente.

Neste sentido outro importante conceito utilizado é a noção de dever de


memória, que trata justamente da forma como os diversos grupos sociais tem sua
história lembrada dentro de uma sociedade. De acordo com a autora Luciana Heymann:

Dever de memória, expressão cunhada ao longo dos anos 1990 e que


em poucas palavras, remete à ideia de que memórias de sofrimento e
opressão geram obrigações por parte do Estado e da sociedade, em
relação às comunidades portadoras dessas memórias. Envolvendo a
sociedade civil, o Estado e a comunidade acadêmica (HEYMANN,
2006, p. 4)

Ao trazer a noção de dever de memória para a realidade brasileira, as


reivindicações do Movimento Negro tem sido largamente discutidas em vários âmbitos
da sociedade, não só no meio acadêmico. Tais reivindicações incluem a reflexão sobre a
memória construída acerca dos afrodescendentes, a reinterpretação de seu papel na
História do Brasil e a valorização da sua cultura.

Neste contexto, outro elemento que norteia a análise proposta neste trabalho é a
relação entre memória e construção de laços de identidade e pertencimento no ambiente
escolar. De acordo com Michael Pollak:

17
A memória, essa ação coletiva dos acontecimentos e das
interpretações do passado que se quer salvaguardar , se integra
em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre
coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos,
igrejas, aldeias, regiões, clãs , famílias, nações etc. A referência
ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das
instituições que compõe uma sociedade, para definir o seu lugar
respectivo, sua complementariedade , mas também as oposições
redutíveis ( POLLAK, 1989, p. 9 ).

Quando se pensa sobre as identidades construídas no espaço escolar pelos


estudantes, há de se levar em consideração o caráter coletivo desde processo, além da
percepção individual destes alunos que se identificam com determinados grupos socais
a partir das relações de pertencimento e diferença em relação ao outro. Conforme
afirma Michael Pollak:

A construção da identidade é um fenômeno que se reproduz em


referência aos outros, em referência aos critérios de admissibilidade,
de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com
outros. Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser
negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como
essências de uma pessoa ou grupo (POLLAK, 1992, p. 204).

Neste sentido pode-se afirmar que a memória construída acerca de um grupo


social é um dos itens fundamentais para a construção de laços reconhecimento
identitários entre os membros deste grupo:

Podemos, portanto, dizer que a memória é um elemento constituinte


do sentimento de identidade, tanto individual quanto coletiva, na
medida em que ela é um fator extremamente importante do sentimento
de continuidade e de coerência de uma pessoa ou um grupo em sua
reconstrução de si (Pollak, 1992, p. 204).

Ainda no que se refere à construção de identidades, faço uso das considerações


de Stuart Hall. O autor afirma que as identidades não são unificadas e estão em
constante transformação, fragmentação e ressignificação, sendo construídas a partir da
diferença e da relação com o outro (HALL, 2000, p. 108). Sobre as identidades o autor
ainda ressalta que:

[...] Elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de


poder se são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da
exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente
constituída, de uma “identidade em seu significado tradicional – isto é
uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras,
inteiriça e sem diferenciação interna (HALL, 2000, p.109).

18
Deste modo, ao abordar a identidade e as relações de pertencimento levo em
consideração que as identidades são múltiplas e dinâmicas, além de serem construções
históricas que estão constantemente submetidas às disputas no campo do poder.

Tendo em vista estes conceitos, a escola se destaca como um espaço


privilegiado para a produção e transformação das múltiplas identidades, na medida em
que há uma convivência constante de alunos, professores e funcionários interagindo e
construindo relações a partir de suas diferenças. É importante ressaltar que o espaço
escolar também constitui um espaço de disputas de poder, fator que influencia
diretamente no processo de construção identitária.

O autor também traz importantes considerações acerca da construção da


identidade negra no universo multicultural (HALL, 2003, 335-348), além da
delimitação de conceitos como raça, racismo e racialismo ( HALL, 2003, 69-72). Tais
conceitos serviram de base para compreender de que forma as relações entre memória
identidade, pertencimento, reconhecimento e diferença podem ser desenvolvidas a partir
do conhecimento adquirido nas aulas de História sobre a população afrodescendente.

Ao abordar a experiência prática dos professores, tanto em relação às questões


referentes ao Pós-Abolição e a utilização dos livros didáticos quanto às relações étnico-
raciais no espaço escolar, também se faz necessário compreender o processo de
mobilização dos diversos saberes, presentes no chamado saber escolar, bem como as
estratégias utilizadas por estes profissionais. Neste sentido, utilizo como principal
referência para esta pesquisa as considerações da professora Ana Maria Monteiro, que
compreende a categoria saber escolar como:

Aquela que designa um conhecimento com configuração cognitiva


própria, relacionado, mas diferente do saber científico de referência e
que é criado a partir das necessidades e injunções do processo
educativo, envolvendo questões relativas à transposição didática e às
mediações entre conhecimento científico e conhecimento cotidiano,
bem como as dimensões histórica e cultural em uma perspectiva
pluralista (MONTEIRO, 2007, p. 14).

Neste sentido é de suma importância compreender os saberes escolares em uma


perspectiva mais ampla, sobretudo quando nos propomos a pensar na maneira como
certos conteúdos antes silenciados e ignorados por muitos estão sendo tratados nas aulas
de história.

19
Para melhor compreender como o saber escolar se manifesta na atuação prática
dos professores e como estes se articulam a partir das escolhas realizadas, faço uso das
noções do autor Jean Claude Forquin sobre cultura escolar, saber escolares e saberes
docentes (FORQUIN,1992, p.28-44), elementos fundamentais para compreender a
construção do conhecimento no espaço escolar.

Conforme foi exposto anteriormente, o Ensino de História e Cultura Afro-


brasileira envolve várias questões de ordem teórica que vão muito além do conteúdo
presente nos currículos oficiais. Ao tratar destes temas nas aulas nós, professores,
estamos tratando da construção e legitimação de memórias, de relações de diferença,
pertencimento e identidade. Além da possibilidade de contribuir para a ressignificação
do papel atribuído aos negros escravizados e seus descendentes na História do Brasil.

20
CAPÍTULO I : O PÓS-ABOLIÇÃO NO ENSINO DE HISTÓRIA

É notório que a atuação das populações afrodescendentes, sobretudo os


indivíduos escravizados, tem grande destaque nas aulas de História do Brasil, tanto no
período colonial quanto no chamado Brasil Império. Entretanto, após o fim oficial do
sistema escravista em 1888, a presença destas populações praticamente desaparece tanto
dos livros e materiais didáticos, quanto das aulas de História. Isto se deve, entre outros
fatores, ao desconhecimento de informações sobre o pós-abolição, não apenas dos
professores da Educação Básica como da população de um modo geral.

Embora a presença negra no periodismo e na ficção do século XIX


tenha sido abundante, ao pensar as articulações entre História,
historiografia e ensino de História, uma pergunta permanece sem
respostas precisas: o que aconteceu com essa população após a
assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888? Ao fazer-se tal
pergunta, professores e professoras da Educação Básica veem-se
imersos num mar de dúvidas relacionadas à como trabalhar com a
temática. O que significa falar numa pós-abolição? Quando começa?
Quando termina? Quem são/eram os sujeitos desta história? Que
documentos utilizar? Onde encontra-los? (XAVIER, 2013, p. 87).

As questões apontadas acima pela autora Giovana Xavier, traduzem a


necessidade de uma maior conexão entre o que se produz no meio acadêmico e o
conhecimento produzido e construído em sala de aula, sobretudo no que se refere aos
materiais didáticos utilizados.

Desde a década de 1960 alguns autores se dedicaram à análise do papel social


desempenhado pelos afrodescendentes após o fim do sistema escravista. Um exemplo
desta realidade é a obra do autor Florestan Fernandes. O negro no mundo dos brancos é
um clássico que trata das estratégias de inserção desta população na sociedade
brasileira, dominada pelas elites brancas. Entretanto, os estudos sobre o Pós-Abolição
tiveram pouco destaque no meio acadêmico até pelo menos o final do século XX.

Somente nas últimas duas décadas têm se intensificado a produção acadêmica


brasileira sobre o pós-abolição. Autores como Petrônio Domingues, Hebe Mattos,
Martha Abreu, Maria Helena Machado e tantos outros vem se dedicando a analisar a
forma como estes indivíduos, antes escravizados, e seus descendentes atuaram na
sociedade brasileira seja por um viés econômico, social, político ou cultural.

21
Em 2013 foi criado o Grupo de Trabalho Emancipações e Pós-Abolição durante
o XXVII Simpósio Nacional da Anpuh. Conforme já foi abordado na introdução deste
trabalho, este grupo de pesquisadores, professores e estudantes tem uma visão mais
ampla do período, não seguindo os marcos cronológicos tradicionais.

Desta forma o pós-abolição não teria início no 13 de maio de 1888, data oficial
da abolição da escravidão no Brasil, e sim a partir da segunda metade do século XIX,
com a consolidação do movimento abolicionista, bem como a intensificação de medidas
de restrição à escravidão.

Dentro desta proposta, o pós-abolição englobaria tanto a participação social dos


negros em nossa história após o fim da escravidão quanto sua participação como
protagonistas do processo da abolição.

O protagonismo negro na luta contra a escravidão e na luta por


melhores condições de vida no período Pós-Abolição deve ser
pesquisado, conhecido e trabalhado nas escolas de nosso país.
Protagonismo que vai de Zumbi dos Palmares, passando pelas
instituições como as Irmandades Negras no século XIX, por
personagens como Maria Firmina dos Reis e Luiz Gama, entre
muitos outros, e chegando aos movimentos negros organizados
na História da República brasileira. Essas histórias são partes da
história do Brasil! E essas memórias precisam estar disponíveis
para a população brasileira como um todo (PEREIRA, 2012, p.
125).

Entretanto, quando pensamos na Educação Básica, e principalmente na forma


como a participação social dos negros em nossa história no pós-abolição é tratada pelos
livros didáticos, o período após 1888 nos traz pouquíssimas informações. Tal fator
demonstra que toda esta produção acadêmica ainda é pouco conhecida pela maioria dos
profissionais da docência e consequentemente pouco trabalhada em sala de aula.

É interessante destacar que o mesmo não acontece em relação ao sistema


escravista, tanto no Brasil Colonial quanto no continente americano de um modo geral.
É comum vermos livros didáticos que trazem referências a textos acadêmicos de autores
consagrados da historiografia sobre o tema, como Flávio Gomes e Lilian Schwartz em
textos, atividades propostas, quadros informativos etc...

Do mesmo modo, quando se trata do protagonismo negro em relação à luta e a


resistência à escravidão, o principal e muitas vezes único exemplo citado em grande

22
parte dos livros didáticos é o Quilombo dos Palmares e um ou outro nome do
Movimento Abolicionista como José do Patrocínio e Joaquim Nabuco.

São poucas as obras que trazem, por exemplo, atuação das diversos clubes e
associações abolicionistas liderados por negros ou mesmo a atuação, dentro do Direito,
de Luiz Gama e André Rebouças. O protagonismo nestes casos é dado à ação da
princesa Isabel ao assinar a Lei Aurea e a liberdade reduzida a um ato de benevolência
e não a uma conquista dos afrodescendentes.

Neste contexto se faz evidente, uma reavaliação do papel dos afrodescendentes


em nossa história, algo que vem sendo reivindicado há várias décadas pelo Movimento
Negro:

Essa mudança engloba uma ampla discussão sobre a valorização


da cultura, politica e identidade negras, e pode provocar
objetivamente uma reavaliação sobre o papel das populações
negras na formação da sociedade brasileira, na medida em que
propõe deslocar propositalmente o protagonismo em relação ao
processo de abolição para esfera dos negros ( Zumbi como
referência), recusando a tradicional imagem da princesa branca
benevolente que teria redimido os escravos (PEREIRA, 2012, p.
113) .

Assim sendo podemos concluir que o pós-abolição engloba a reavaliação e a


valorização do papel social dos afrodescendentes antes e depois da abolição, quando o
negro praticamente desaparece de nossa história. A maioria dos autores que tratam do
Pós-Abolição ressalta que tal fato está relacionado com a forma como se tratou das
questões raciais no Brasil a partir do século XIX com a influência das teorias raciais
vindas da Europa e dos Estados Unidos, passando pela política de branqueamento de
nossa população até a noção de democracia racial e ausência de conflitos étnicos
popularizada na obra de Gilberto Freyre.

A maioria dos autores concorda que “raça" é uma construção social


que só pode ser apreendida tendo em vista as relações concretas que
ocorrem nas sociedades em diferentes contextos e também espaços e
situações no presente (ALBERTI, 2013, p. 35).

Partindo deste princípio de que a ideia de raça é algo social e historicamente


construído e que pode variar de acordo com os interesses e aspirações dos diferentes
grupos sociais e políticos, o século XIX representou um momento chave para a
construção das noções raça bem como para a consolidação das bases do racismo em

23
todo o mundo. Dentro da lógica imperialista era de suma importância para as potências
europeias buscarem estratégias que legitimassem a sua dominação econômica política e
cultural, sobretudo no continente africano.

Neste contexto, as teorias raciais surgidas na Europa foram a base do chamado


racismo científico partindo de uma visão da espécie humana dividida em raças
hierarquicamente separadas por graus de superioridade e civilização. Dentro desta
perspectiva o homem branco europeu estaria no topo do desenvolvimento, sendo um
modelo a ser seguido, enquanto aos povos africanos, asiáticos cabia a visão negativa,
serem não civilizados, e consequentemente inferiores em todos os aspectos.

O racismo e a hierarquização das sociedades e culturas começou a ter um


embasamento científico ainda no final do século XVIII. Cientistas e estudiosos
buscaram as mais diversas formas de comprovar a superioridade biológica da raça
branca e do povo europeu:

A explicação físico-biológica passa ter o papel principal para explicar


as diferenças. As ciências da natureza vão influenciar as ciências
humanas e a desigualdade humana passa a ser explicada pelas leis
naturais, através da ideia de evolução, de progresso das civilizações.
Dessa forma, como para os europeus, sua civilização estava evoluída,
a superioridade estava justificada (PEREIRA, 2010, p. 42).

Neste contexto se destacou o naturalista e médico sueco Carlos Lineu, que


desenvolveu uma classificação das espécies e tipos humanos, utilizada em escolas e
livros didáticos até décadas atrás. Segundo sua classificação, europeus, americanos,
asiáticos e africanos teriam características diferentes. Esta caracterização seguia uma
hierarquia na qual, por exemplo, os europeus eram descritos como engenhosos,
inventivos, e governados por leis e os africanos como preguiçosos, negligentes, negros
fleumáticos e governados pela vontade de seus senhores2.

Também merecem destaque neste contexto, Arthur Gobineau e Herbert Spencer.


Gobineau, partindo da noção da existência de tipos raciais permanentes, via a
miscigenação como principal causa para o declínio das civilizações. Quanto mais
misturas raciais houvesse em uma sociedade mais esta estaria fadada ao fracasso.

2
Ver referencia em : PEREIRA, Amilcar A. O mundo Negro: a constituição do movimento negro
contemporâneo no Brasil ( 1970-1995). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010.

24
Já Spencer foi o principal defensor do chamado darwinismo social, uma
adaptação das hipóteses de Charles Darwin que explicam a evolução das espécies, para
as sociedades humanas, legitimando a superioridade da raça branca.

No Brasil, o século XIX representou o momento de construção do ideal de


nação e de uma identidade nacional, que unificasse a população através de
características identitárias comuns. No entanto a população brasileira não era de forma
alguma homogênea. Era preciso conciliar as características e demandas, de negros
(escravizados e livres), indígenas, brancos e mestiços que compunham a nossa
população.

Diante desta realidade, o processo de construção de uma identidade nacional


iniciado ainda no período imperial não podia deixar de levar em consideração a questão
racial. Neste mesmo período teve início a política de branqueamento da população
brasileira que foi, entre outros aspectos, uma tentativa de apagar os traços africanos e
indígenas de nossa sociedade.

Isto se deu através do incentivo do governo brasileiro à entrada maciça de


imigrantes europeus no país. Houve ao longo do século XIX e da primeira metade do
século XX, legislações específicas que não somente abriam o país para a chegada de
europeus como também restringiam a entrada de indivíduos de origem africana ou
asiática.

Estes imigrantes tinham além de sua função econômico-social, no contexto de


substituição da mão de obra escrava e povoamento de algumas regiões do país, a função
de tentar fazer com que a herança branca europeia fosse predominante em nossa
população.

As teorias do branqueamento surgiram, assim, baseadas na convicção


de que o elemento considerado “racialmente superior”, ou seja, o
branco , predominaria nos processos de mistura de raças. Disso
resultou a crescente defesa, por parte de políticos e intelectuais, da
imigração europeia, com vistas a favorecer o processo de
branqueamento biológico e cultural da futura população brasileira
(MATTOS, 2005, p. 31).

Deste modo, na identidade nacional do brasileiro que se construiu no final do


século XIX e início do século XX a herança cultural africana ficou em segundo plano.

25
A nacionalidade brasileira foi formada ou “imaginada” como uma
comunidade de indivíduos dissimilares em termos étnicos e que
chegavam de todas as partes do mundo, mormente da Europa. No
Brasil, a nação foi formada por uma amálgama de crioulos cuja
origem étnica e racial foi esquecida pela nacionalidade brasileira. A
nação permitiu que uma penumbra cúmplice encobrisse
ancestralidades desconfortáveis (GUIMARÃES, 1997, p. 45).

Paralelamente a esta ideia do branqueamento, começou a se desenvolver no


Brasil a partir da década de 1930 uma nova forma de se compreender a questão racial,
cuja obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, teve um papel central. Freyre
defendia, através de suas obras, uma visão positiva da mestiçagem característica de
nosso povo.

Segundo ele o povo brasileiro seria formado pela união do negro, do indígena e
do branco. Neste contexto, elementos culturais de origem africana e indígena teriam
contribuído para o aperfeiçoamento do homem brasileiro cuja base seria
predominantemente branca/europeia. Estas três raças conviveriam em perfeita
harmonia, formando uma verdadeira democracia racial. Deste modo Renato Ortiz
afirma:

Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade,


o que permite completar definitivamente os contornos de uma
identidade que já há muito vinha sendo desenhada [...] O mito das três
raças torna-se então plausível e pode se atualizar como ritual. A
ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas teorias raciais, ao
ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso
comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos
grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-
se nacional (ORTIZ, 1985, p. 41).

O mito das três raças ou da democracia racial no Brasil, ao transformar o


mestiço em nacional, pressupôs a não existência de conflitos entre as diferentes culturas
formadoras e principalmente do preconceito racial.

Nossa narrativa de identidade nacional, consolidada a partir dos anos


30, principalmente, afirma que somos uma sociedade mista, uma
mistura de três raças. Muitos acreditam que, se temos problemas como
injustiças e desigualdades, eles se devem a contrastes sociais e a
herança da escravidão e não ao racismo propriamente dito (ALBERTI,
2013, p. 31).

Esta noção de harmonia entre os diferentes grupos étnicos não corresponde em


absoluto a nossa realidade. O racismo é real e está presente em diversas esferas de nossa
sociedade, inclusive na escola.

26
Neste sentido, a atuação dos profissionais ligados à educação em suas diversas
funções deve buscar estabelecer entre os alunos o respeito às diferenças e o fim do
preconceito. No que se refere aos professores da Educação Básica, o Ensino de História
nos apresenta diversas possibilidades de discutir tais questões. Uma destas
possibilidades se encontra nas diversas formas de se trabalhar a História afro-brasileira
no pós-Abolição durante as aulas de História.

Deste modo para trabalhar com o período Pós-Abolição em sala de


aula, é importante estimular os alunos a refletirem algo que pode
parecer mas não é obvio: os descendentes de escravos foram sujeitos
múltiplos com visões de mundo e interesses pessoais diversos que
convergiam com as várias formas de mobilização no mundo livre
(XAVIER, 2013, p. 100).

Ao longo de nossa História, desde o período colonial até os dias hoje,


afrodescendentes e indígenas vem lutando por melhores condições de vida e igualdade
de oportunidades, mas principalmente pela diminuição do preconceito. No entanto, seria
interessante evitar confinar o estudo da História das relações raciais a nichos no
currículo, como por exemplo, ao período da escravidão ou a momentos do ano letivo em
torno o dia 13 de maio ou dia 20 de novembro (ALBERTI, 2013, p. 39).

Mais uma vez cabe ressaltar a importância de se tratar da atuação do


Movimento Negro no pós-abolição ao longo de todo o conteúdo de História do Brasil.
Embora existissem diversos grupos como os clubes e associações abolicionistas e as
Irmandades Negras entre outros, é após a abolição da escravidão e principalmente com a
chegada da República que se tem um crescimento significativo do Movimento Negro
em nosso país.

Com o fim da escravidão, ainda sob a influência das teorias raciais do século
XIX, o governo brasileiro não se mostrou interessado em promover uma real integração
dos afrodescendentes, tanto os libertos quanto os que já nasceram livres, à sociedade.
Estas populações continuavam marginalizadas e foram se organizando a fim de tentar
reverter este quadro e conseguir melhores condições de vida, valorização de sua cultura
e participação política.

Neste contexto, podemos destacar a produção dos jornais da chamada Imprensa


Negra, composta por jornais escritos por negros com conteúdo voltado para as
demandas desta população. As publicações tiveram início ainda no século XIX no Rio
de Janeiro, com jornais como O Homem de Cor, de 1833. Em São Paulo o primeiro
27
periódico a ser publicado foi A Pátria, em 1889, seguido de O combate, O Alfinete, A
liberdade, O Menelick, O Clarín da Alvorada, a Voz da Raça, e tantos outros que
tiveram um importante papel social e politico até 1965 quando seu último jornal O
Alvorada deixou de ser publicado (DOMINGUES, 2007, p. 105)

Esses jornais enfocavam as mais diversas mazelas que afetavam a


população negra no âmbito do trabalho, da habitação, da educação e
da saúde, tornando-se uma tribuna privilegiada para se pensar em
soluções concretas para o problema do racismo na sociedade
brasileira. Além disso, as páginas destes periódicos constituíam
veículos de denúncia do regime de “segregação racial" que incidia em
várias cidades do país, impedindo o negro de ingressar ou frequentar
determinados hotéis, clubes, cinemas, teatros, orfanatos,
estabelecimentos comerciais e religiosos, além algumas escolas, ruas e
praças públicas (DOMINGUES, 2007, p. 105).

Na década de 1930, a Frente Negra Brasileira foi uma das mais importantes
organizações de afrodescendentes no Brasil. Com milhares de membros associados, a
entidade tinha uma ampla área de atuação não somente social como também cultural e
política. A FNB mantinha, entre outros serviços, escolas, grupos musicais e teatrais,
time de futebol, departamento jurídico, serviços médicos e odontológicos, cursos
formação em política, arte e diversos ofícios, além da publicação do jornal A voz da
Raça (DOMINGUES, 2007, p. 106) .

No campo político, a FNB tornou-se um partido em 1936, visando à disputa


eleitoral do ano seguinte. No entanto, dentro da conjuntura política do Estado Novo a
FNB, assim como os demais partidos políticos brasileiros, foi fechada pelo governo em
1937.

Na década de 1940, podemos destacar a União dos Homens de Cor, fundada por
João Cabral Alves em Porto Alegre, cuja finalidade elevar o nível socioeconômico e
intelectual das pessoas de cor em todo o território nacional. (DOMINGUES, 2007, p.
106), e o Teatro Experimental do Negro, fundado no Rio de Janeiro em 1944 que tinha
como líder Abdias Nascimento. O autor Petrônio Domingues define bem a proposta de
ação do grupo:

A proposta original era formar um grupo teatral constituído apenas por


atores negros, mas progressivamente o TEN adquiriu um caráter mais
amplo, publicou o jornal o Quilombo, passou a oferecer cursos de
alfabetização, de corte e costura, fundou o Instituto Nacional do
Negro , o Museu do Negro, organizou o I congresso Negro Brasileiro
[...] Defendendo os direitos civis dos negros na qualidade de direitos

28
humanos, o TEN propugnava a criação de uma legislação
antidiscriminatória para o país (DOMINGUES, 2007, p. 108) .

Na década de 1970 foi Fundado o Movimento Negro Unificado. O MNU surgiu a partir
da aglutinação de outros movimentos sociais negros e se tornou a principal referência para a luta
antirracista em todo Brasil (SILVA & TRAPP p. 2).

De acordo com Petrônio Domingues o MNU, era influenciado pelos ideais


socialistas e foi a escola de formação política e ideológica de várias lideranças
importantes desta fase do Movimento Negro:

O nascimento do MNU significou um marco na história do protesto


negro no país, porque, entre outros motivos desenvolveu-se a proposta
de unificar a luta de todos os grupos e organizações antirracistas em
escala nacional. O Objetivo era fortalecer o poder político do
Movimento Negro. Nesta nova fase, a estratégia que prevaleceu foi a
de combinar a luta do negro com a de todos os oprimidos da
sociedade. A tônica era contestar a ordem social vigente e
simultaneamente desferir a denúncia pública do problema do racismo
(DOMINGUES, 2007, p. 115).
A crítica à noção de democracia a racial era fortemente presente no movimento,
bem como tentativa de se construir uma nova concepção acerca da identidade negra.

A atuação do Movimento na figura de militantes como Abdias


Nascimento e Lélia Gonzáles, levou a uma problematização e
rediscussão da identidade brasileira agora pautada por um viés
“racial”. Em contrapartida, essa articulação levou a um processo de
ressignificação identitária, através da reivindicação de uma identidade
e de uma consciência “racial” negras. A questão da consciência negra
é de suma importância, no sentido de que permitiu constituir
mecanismos de fortalecimento do movimento e articular o processo de
ressignificação identitária entre os militantes e a população negra no
Brasil. (SILVA & TRAPP p. 3).

O Movimento Negro Unificado também tinha em sua pauta a questão da


educação e do papel social dos afrodescendentes no Ensino de História.

Naquele período, o movimento negro passou a intervir amiúde no


terreno educacional, com proposições fundadas na revisão dos
conteúdos preconceituosos dos livros didáticos; na capacitação de
professores para desenvolver uma pedagogia interétnica, na
reavaliação do papel do negro na História do Brasil e por fim, erigiu-
se a bandeira da inclusão do ensino da História da África nos
currículos escolares (DOMINGUES, 2007, p. 116) .

A partir da década de 1990, o Movimento Negro ganhou cada vez mais destaque
na sociedade brasileira. As questões referentes à valorização da identidade e da cultura
negra a partir da educação se tornam cada vez mais presentes. Neste período cresceu

29
também a influência de políticas estatais legitimando as demandas e conquistas sociais e
políticas do movimento.

Após a conferência de Durban em 2001, houve uma redefinição das estratégias de ação
política para o antirracismo e os movimentos antirracistas nacionais (SILVA & TRAPP, p. 5).
Neste contexto, a partir dos anos 2000 teve início por parte do governo brasileiro uma
série de medidas que visavam além da promoção da igualdade racial a valorização da
história e cultura afro-brasileira.

É neste contexto que, paralelamente a uma maior visibilidade pública


da chamada “questão racial”, se observa a institucionalização das
políticas antirracistas, como as ações afirmativas nas universidades
públicas e a criação da Secretaria Especial de Promoção de Políticas
de Igualdade Racial ( SEPPIR/2003). Esse órgão constitui-se como
importante instância de poder e veículo institucional para a criação e
promoção de políticas de corte racial para a população negra, como
por exemplo, o Plano Nacional de Igualdade Racial. No que se refere
às políticas educacionais, o movimento obteve importantes conquistas
como as cotas no Ensino Superior e, principalmente, com a
implementação da Lei 10.639/2003, referente à disciplina de História
e Cultura Afro-brasileira. (SILVA & TRAPP, p. 5).

Todas estas medidas remetem a um dos conceitos-chave utilizado ao longo da


pesquisa desta dissertação: a noção de dever de memória. O dever de memória trata
justamente da forma como os diversos grupos sociais tem sua história lembrada dentro
de uma sociedade. Esta noção exemplifica a clara relação entre a memória e as
demandas do tempo presente a partir das chamadas políticas de reparação direcionadas a
grupos historicamente marginalizados e que exigem uma ressignificação de sua
memória e de seu lugar ocupado na sociedade.

O fato de nas últimas décadas o Movimento Negro ter conseguido importantes


conquistas no âmbito da educação ressalta a importância do Ensino de História,
sobretudo na Educação Básica, como agente de transformação social e de construção e
ressignificação de memórias. Neste sentido cabe ressaltar alguns desdobramentos da lei
10.639, sobretudo no campo curricular.

A obrigatoriedade do ensino de conteúdos referentes à História e Cultura


Africana e Afro-Brasileira exigiu mudanças nos currículos, principalmente no que se
refere ao Ensino de História.

30
Em março de 2004 foram aprovadas e publicadas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana. Este documento traz uma proposta de educação para
as relações étnico-raciais e o combate ao racismo na sociedade brasileira a partir do
espaço escolar. Ele também demonstra a forma como as temáticas impostas pela
legislação que o acompanha seriam tratadas nas escolas apresentando sugestões de
conteúdos e propostas de atividades e abordagens das mesmas.

No que se refere à história africana, de acordo com este documento, o


conhecimento e a valorização da história dos povos africanos deveria ocorrer em todos
os níveis e modalidades de ensino, mas em especial nas disciplinas de Educação
Artística, Literatura e História do Brasil (MEC, 2004, p. 18-21). A resolução também
traz a descrição pontual de objetos e temas acerca da história africana a serem tratados
nas aulas. Há uma lista extensa de diversos assuntos como tradição oral, ancestralidade,
além de aspectos específicos da história do continente desde o período pré-histórico.

As Diretrizes também buscam desconstruir a visão negativa e limitada acerca do


continente africano ainda tão presente no senso comum. Também é destacada a
importância das relações históricas e culturais entre Brasil e África:

Em história da África, tratada em perspectiva positiva não só de


denúncia da miséria e discriminações que atingem o continente, nos
tópicos pertinentes se fará articuladamente com a história dos
afrodescendentes no Brasil e serão abordados temas relativos: ao
papel dos anciãos e dos griots como guardiões da memória histórica;
da história da ancestralidade e da religiosidade africana; aos núbios e
aos egípcios como civilizações que contribuíram decisivamente para
o desenvolvimento da humanidade; as civilizações e organizações
políticas pré-coloniais , como os Reinos do Mali, do Congo e do
Zimbabwe ao tráfico e a escravidão do ponto de vista dos
escravizados (MEC, 2004, p.21-22).

Além destas questões, as Diretrizes ressaltam a importância da capacitação dos


profissionais da docência, inserindo estes conteúdos nos cursos de formação bem como
nos livros e materiais didáticos.

As Diretrizes também trazem para o âmbito escolar as discussões acerca das


relações raciais no Brasil em uma clara oposição à política homogeneizadora do
chamado "mito da democracia racial" no Brasil.

31
Neste contexto, é possível observar que o documento prevê uma valorização da
cultura afro-brasileira a partir de suas diferenças e especificidades, buscando fugir das
representações tradicionais que tratam a herança cultural africana como algo exótico,
pitoresco e muitas vezes inferiorizado. Nota-se uma tentativa de dissociar os elementos
culturais de origem africana da noção das três raças formadoras, na qual a matriz
africana seria uma pequena contribuição para aprimorar uma cultura na qual a matriz
branca/ europeia.

Também é importante destacar que esta valorização da cultura afro-brasileira


prevista pelas Diretrizes Curriculares que acompanham a lei 10639 vem acompanhada
do conceito de construção de uma identidade negra no Brasil:

É importante tomar conhecimento da complexidade que envolve o


processo de construção da identidade negra em nosso país. Processo
esse marcado por uma sociedade que, para discriminar os negros,
utiliza-se tanto da desvalorização da cultura de matriz africana como
dos aspectos físicos herdados pelos descendentes de africanos. Nesse
processo complexo, é possível, no Brasil, que algumas pessoas de tez
clara e traços físicos europeus, em virtude de o pai ou a mãe ser
negro(a), se designem negros; que outros, com traços físicos africanos,
se digam brancos. É preciso lembrar que o termo negro começou a ser
usado pelos senhores para designar pejorativamente os escravizados e
este sentido negativo da palavra se estende até hoje. Contudo, o
Movimento Negro ressignificou esse termo dando-lhe um sentido
político e positivo (MEC, 2004, p. 15).

Neste contexto as autoras Hebe Mattos e Marta Abreu chamam a atenção para a
importância de se compreender historicamente o processo de construção desta
identidade negra (ABREU, MATTOS, 2008 p. 12). Tal fator está associado
principalmente à luta desempenhada pelos membros do Movimento Negro durante
décadas em nossa sociedade. No entanto não se deve esquecer a importância da
educação, e mais especificamente da escola, como um dos espaços de construção desta
identidade negra. Movimentos como a Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental
do Negro e o Movimento Negro Unificado, tinham como característica reconhecer esta
importância, tendo a questão do ensino e da educação, de um modo geral, presentes em
seus discursos e práticas.

As Diretrizes Curriculares que acompanham a lei 10.639 não fazem uma


referência específica aos conteúdos do período Pós- Abolição, no entanto reconhecem a
importância de se tratar nas aulas do Movimento Negro ao longo de toda nossa história.
Além disto, ao propor uma abordagem que se opõe a noção de democracia racial e

32
incentiva a valorização da história da África e de nossa herança cultural africana de
forma autônoma, o documento contribui de forma direta para o processo de
ressignificação do papel social dos afrodescendentes em nossa história.

Até a publicação das Diretrizes em 2004, os Parâmetros Curriculares Nacionais


(PCNs), eram o único documento curricular oficial que apresentava este tipo de
discussão:

Os PCNs, aprovados pelo MEC em 1996, introduziram no ensino


conteúdos de história africana. Sem dúvida, precederam e prepararam
as “Diretrizes”. As conexões entre os dois textos, produzidos por
governos de orientação política distinta, revelam como esse tipo de
intervenção resultou principalmente do crescimento da força política
dos movimentos negros na sociedade brasileira pós-redemocratização,
e da formação de um novo consenso no campo pedagógico em relação
ao chamado “mito da democracia racial” no Brasil. Pelos dois
documentos oficiais, fica evidente que não é mais possível pensar o
Brasil sem uma discussão da questão racial (ABREU, MATTOS,
2008 p. 12 ).

No entanto é importante observarmos que os dois documentos tratam das


questões referentes à História e Cultura Afro-brasileira de formas distintas. Nos PCNs é
notória uma preocupação em trazer para a escola os temas referentes à diversidade
cultural. Tal fator se exemplifica a partir do eixo Pluralidade Cultural que constitui a
base do documento:

Segundo os PCNs um dos objetivos principais do Ensino


Fundamental se apoia na necessidade de que estudantes e professores
devam reconhecer e valorizar a “pluralidade do patrimônio
sociocultural brasileiro” e ao mesmo tempo, conhecer também os
aspectos socioculturais de outros povos [...] posicionando-se contra
qualquer discriminação (OLIVA, 2009, p. 145).

O texto dos PCNs também traz uma crítica à noção de uniformidade cultural
imposta pelo mito da democracia racial no Brasil. No entanto conforme observa Hebe
Mattos, o mesmo documento reforça esta visão ao encobrir, com o silêncio, uma
realidade de discriminação racial reproduzida desde cedo no ambiente escolar
(MATTOS, 2003, p. 128). Tal fator se faz presente, sobretudo, na forma como os
conteúdos referentes à história africana e à participação dos negros na História do Brasil
são apresentados ao longo do documento. O período pós-abolição, por exemplo é
praticamente ignorado no documento.

33
Os PCNs organizam os conteúdos das disciplinas a partir de grandes eixos
temáticos. Cada eixo temático corresponde a um dos ciclos de duas séries/anos no qual
foi dividido o Ensino Fundamental. Nesta organização é possível perceber a forma
como os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira estão dispostos de
forma bastante tradicional.

Apenas no tópico referente ao já citado tema da Pluralidade Cultural, podemos


observar uma postura um pouco mais reflexiva:

O estudo histórico do continente africano compreende enorme


complexidade de temas do período pré-colonial, como arqueologia;
grupos humanos; civilizações antigas do Sudão, do sul e do norte da
África; o Egito como processo de civilização africana a partir das
migrações internas. Essa complexidade milenar é de extrema
relevância como fator de informação e de formação voltada para a
valorização dos descendentes daqueles povos. Significa resgatar a
história mais ampla, na qual os processos de mercantilização da
escravidão foram em um momento que não pode ser amplificado a
ponto que se perca a rica construção histórica da África. O
conhecimento desse processo pode significar o dimensionamento
correto do absurdo, do ponto de vista ético, da escravidão, de sua
mercantilização e das repercussões que os povos africanos enfrentam
por isso (MEC, 1998, p. 130-131).

Ao longo do restante do documento, especificamente na parte destinada à


disciplina de História, os conteúdos referentes à História da África estão dispostos de
forma superficial, muitas vezes aleatória, sem que se perceba uma integração entre a
história e a cultura africana e os outros conteúdos apresentados nos diferentes períodos
históricos. Neste sentido é evidente que ainda se faz presente neste documento
curricular a matriz tradicional com viés eurocêntrico subordinando a História do
continente africano à política e economia europeias.

O mesmo se dá em relação à participação dos negros na História do Brasil.


Predomina a abordagem das contribuições culturais dos afrodescendentes no modelo
tradicional, sendo a escravidão o principal aspecto enfatizado. O protagonismo negro
neste processo não é destacado dentro do movimento abolicionista. Não há qualquer
referência relevante ao papel exercido pelos negros em nossa sociedade após o período
escravista, tão pouco a atuação do Movimento Negro ao longo do século XX.

Cabe ressaltar que apesar dos PCNs constituírem uma matriz referencial, e não
possuírem um caráter obrigatório como o Currículo Mínimo, por exemplo, têm um

34
grande peso tanto para atuação dos professores em sala quanto para a produção e
aprovação de coleções de livros didáticos.

Deste modo, concordo com professora Ana Maria Monteiro quando a mesma
afirma que os referidos documentos curriculares, ao acrescentar os conteúdos propostos
pela Lei 10.639, simplesmente trouxeram uma adequação a uma tradição. Não houve
um rompimento com a estrutura tradicional de disposição dos conteúdos e compreensão
da história da humanidade.

[...] os autores não podem se furtar da referência à Lei 10639/2003 e


11645/2008 que instituem a obrigatoriedade do ensino da História da
África, dos afrodescendentes e dos indígenas. Mas até que ponto
rompem com uma tradição inventada e instituída há cerca de um
século sobre como ensinar história? Temos aqui uma inovação ou
uma simples adequação a uma tradição. Entendemos que a segunda
opção responde melhor a esta questão uma vez que o “currículo
mínimo” reproduz a história “quadripartite”, versão que reafirma o
papel periférico e subordinado de povos e nações da África, Ásia e
América. (MONTEIRO, 2012, p.10-11).

Neste sentido, tanto a lei 10.639 quanto as Diretrizes Curriculares que a


acompanham orientaram a reformulação de diversas coleções de livros e materiais
didáticos em todo Brasil. Entretanto, esta reformulação não rompeu totalmente com os
modelos tradicionais.

Diante do que foi exposto acima, podemos perceber claramente o quão


importante e diversificada foi a participação social dos afrodescendentes em nossa
história no pós-abolição. Entretanto não se percebe uma preocupação em divulgar tal
fator ao público não acadêmico, e principalmente aos estudantes da Educação Básica.

O que predomina nos documentos curriculares até o presente momento é a


ausência dos conteúdos e de uma discussão mais ampla sobre o pós-abolição no Brasil.
O mesmo acontece nos livros e materiais didáticos e consequentemente na fala de
muitos professores.

Entretanto, isto não é uma regra geral. Existem diversas possibilidades de se


trabalhar o Pós-abolição nas aulas. O trabalho com documentos é uma delas. Os jornais
da Imprensa Negra estão disponíveis para acesso via internet e podem ser usados como
fontes para inúmeras atividades.

35
Além disso, estimular os alunos a pesquisarem sobre a atuação do Movimento
Negro também é uma estratégia interessantíssima. É algo simples, mas que possui uma
grande importância não só para promover o conhecimento sobre a temática, como
também para despertar a curiosidade e o interesse dos alunos.

Os espaços não formais de educação também podem contribuir de forma


significativa. A visitação a museus ou a locais históricos, como por exemplo, o Cais do
Valongo, o Museu do Negro e o circuito da “Pequena África” no Rio de Janeiro
possibilitam uma reflexão sobre a participação histórica e social dos negros na História
do Brasil. Além de exercer um processo de ressignificação da memória construída pelo
senso comum, que é predominante na maioria dos estudantes.

As entrevistas realizadas com professores da Educação Básica para esta pesquisa


demonstraram o quanto estas iniciativas são importantes. Os professores relataram
diversas experiências além dos exemplos citados acima tais como: ar realização de
oficinas de discussão sobre o racismo, debates em cima de textos acadêmicos sobre
tema e aulas interdisciplinares, estabelecendo um diálogo com disciplinas como a
sociologia.

Discutir o Pós-Abolição nas aulas de História contribui também para a


construção de relações de identidade e pertencimento por parte dos alunos. Ao conhecer
a história do Movimento Negro, estes estudantes tem a oportunidade de criar laços de
reconhecimento positivos. Tal fator é de suma importância, sobretudo para os alunos
negros que tem, em sua maioria, dificuldade em se identificar com a forma com os
afrodescendentes são representados em nossa história a partir dos estereótipos do senso
comum: o escravo, a vítima, o malandro etc.

Neste contexto acredito ser de suma importância conhecer e estudar a atuação


dos negros no pós-abolição, principalmente a atuação do Movimento Negro em suas
mais diversas formas e organizações. Tal fator contribui para uma visão mais ampla e
crítica de nossa história, além de desconstruir possíveis estereótipos, juízos de valores e
preconceitos que os estudantes, muitas vezes já trazem consigo para a sala de aula.

36
CAPITULO 2: O LIVRO DIDÁTICO COMO OBJETO E FONTE DE
PESQUISA.

Neste capítulo serão abordadas algumas questões e características gerais dos


livros didáticos enquanto objetos de pesquisa, seguidas da análise do livro selecionado
como fonte desta pesquisa.

Os primeiros manuais didáticos produzidos no Brasil têm origem na primeira


metade do século XIX, mesmo período em que teve início a instalação das escolas
públicas pelo Estado Nacional. Neste mesmo momento, concretizou-se também a
estruturação do Ensino Público. A partir de então a escola e todos os elementos que a
envolvem começaram a ganhar destaque entre os intelectuais e os governantes que
procuravam através do ensino legitimar determinadas ideologias e concepções de
estado, nação, pátria, entre outros, nas diversas camadas sociais.

Neste contexto, os livros e materiais didáticos foram ao longo dos séculos


assumindo um papel fundamental no processo educacional como ferramenta de estudos
e como portadores de ideologias e valores a serem difundidos através de sua utilização
por alunos e professores.

No entanto até a segunda metade do século XX foram pouquíssimos os estudos


acadêmicos dedicados aos manuais didáticos, tendo-os como fonte de pesquisa. Tais
estudos tiveram impulso a partir da década de 1960, em diversos países como França,
Alemanha, Espanha, EUA e Japão ( CHOPPIN, 2004, p. 551). No Brasil somente por
volta das décadas de 1980 e 1990 as pesquisas sobre esta temática ganharam destaque
significativo no meio acadêmico. Atualmente há uma enorme variedade de autores e
pesquisadores que se dedicam a analisar o tema das mais variadas formas.

Os livros didáticos constituem um dos principais elementos utilizados por


professores e alunos da Educação Básica no processo de ensino-aprendizagem, sendo
indispensáveis para grande parte dos profissionais que atuam nesta área. Eles também
representam para muitos alunos o primeiro e, em muitos casos, o principal contato com
o universo da leitura.

37
2.1 O LIVRO DIDÁTICO EM SUA MÚLTIPLICIDADE : CARACTERÍSTICAS
GERAIS:

A autora Circe Bittencourt compreende o livro didático como um objeto


complexo, multifacetado e de difícil definição (BITTENCOURT, 2004, p. 301). Tal
fator se deve às suas diversas características e funções, além do seu papel no processo
de ensino-aprendizagem.

A natureza complexa do objeto explica o interesse que o livro didático


tem despertado nos diversos domínios de pesquisa. É uma mercadoria
, um produto do mundo da edição que obedece a evolução das técnicas
de fabricação e comercialização pertencente aos interesses dos
mercado, mas também é um depositário de diversos conteúdos
educacionais, suporte privilegiado para recuperar os conhecimentos e
técnicas consideradas fundamentais por uma sociedade em
determinada época. Além disso, ele é um instrumento pedagógico
inscrito em uma longa tradição , inseparável tanto na sua elaboração
quanto na sua utilização das estruturas, dos métodos e condições de
ensino de seu tempo. E sem dúvida o livro didático é também um
veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma
cultura. (BITTENCOURT, 2008 p. 14).

A primeira característica presente nos livros didáticos a ser abordada se refere à


função destes materiais como instrumentos de ensino-aprendizagem. Eles são parte
integrante das aulas de praticamente todas as disciplinas apresentando os conteúdos a
serem trabalhados nas mesmas, servindo muitas vezes de guia curricular. Os livros
didáticos também fornecem um conjunto de suportes pedagógicos através de exercícios,
atividades propostas, textos complementares, entre outros. Estes elementos são de suma
importância para complementar o trabalho do professor e enriquecer o aprendizado dos
estudantes.

Os livros e materiais didáticos também podem assumir outras funções


relacionadas à sua utilização no âmbito escolar. Deste modo, autor Allain Choppin,
destacou algumas delas (CHOPPIN, 2004, p. 553).

A primeira é a função referencial, que corresponde aos conteúdos curriculares


dispostos nos livros. Os livros representariam uma tradução dos programas oficiais, a
partir do olhar, da concepção de história e tempo, de seus autores.

A função instrumental é mais técnica e diz respeito aos métodos de


aprendizagem e recursos didáticos presentes nos livros. Deste modo os exercícios,
atividades propostas, textos complementares, imagens, fragmentos de documentos,

38
indicações de filmes etc. que auxiliam na transmissão do conhecimento também devem
ser objeto de análise, juntamente com os conteúdos.

No que se refere aos elementos que envolvem a sua produção em um contexto


histórico-social, Choppin destaca a função ideológica e cultural dos livros didáticos.
Esta é, a meu ver, uma das mais importantes funções dos livros e materiais didáticos,
sendo objeto de pesquisa recorrente, sobretudo no que se refere ao Ensino de História.
Segundo o referido autor, esta é a função mais antiga dos livros didáticos e remete ao
seu papel na formação dos estados nacionais no século XIX. Os livros didáticos, desde
então, se afirmaram como um dos vetores da língua, da cultura e dos valores das classes
dirigentes. Além se ser considerado um instrumento privilegiado para a construção de
identidades, assumindo também um importante papel político (CHOPPIN, 2004, p.
553).

A última função que o autor assinala é a função documental. Esta função


corresponde aos usos dos diversos documentos (textos, imagens, entre outros) presentes
nos livros didáticos por alunos e professores durante o processo de ensino
aprendizagem.

Todas as funções abordadas acima estão relacionadas aos diversos usos que se
pode fazer dos livros e materiais didáticos dentro e fora da escola. Cada professor irá
privilegiar uma ou mais destas funções de acordo com a metodologia de trabalho
escolhida ou pelas características da coleção didática disponível. Por exemplo, a coleção
aqui analisada possuí como principal característica a parte textual extensa e com uma
abordagem mais completa de determinados conteúdos, o que favorece atividades como
estudos dirigidos, análise de fontes textuais e exercícios de fixação. A abordagem de
determinadas temáticas pouco conhecidas, como a atuação no Movimento Negro no
Pós-abolição, abre espaço para a discussão destes temas a partir de atividades nas quais
o professor pode aprofundar o conhecimento dos alunos complementando as
informações do livro didático.

Mesmo os professores que não utilizam o livro didático diretamente nas aulas
acabam sendo influenciados pelo seu conteúdo seja como consulta na preparação de
aulas expositivas, exercícios e atividades ou como guia curricular, sobretudo nas escolas
particulares. Nestas instituições os currículos oficiais instituídos pelo MEC não são

39
obrigatoriamente seguidos. Nestes casos o material didático (livro ou apostila da própria
instituição) é o principal referencial para o professor.

De acordo com o autor Kazumi Munakata, cada uma destas funções pode ser
tomada como objeto de pesquisa dentro da temática dos materiais didáticos.
(MUNAKATA, 2012, p.186). As possibilidades de análise dos livros e materiais
didáticos são as mais diversas com enfoques que vão desde características como
formato, diagramação, edição, formatação de textos e imagens entre outros, até
reflexões mais complexas acerca dos conteúdos presentes em cada capítulo.

Neste sentido, diante da multiplicidade de elementos que envolvem os livros e


materiais didáticos, serão abordadas a seguir algumas questões importantes de serem
pensadas acerca desta temática.

Os livros didáticos estão inseridos na categoria dos suportes informativos


(BITTENCOURT, 2004, p. 296), isto quer dizer que são produzidos para a escola, com
finalidades especificas e uma linguagem própria. Além disto, são elementos fundamentais
na construção dos chamados saberes escolares. Este conjunto de saberes se forja dentro
do espaço escolar na sua prática por professores e alunos. A escola é um local de
produção e de troca de conhecimento, e os livros e demais materiais e recursos didáticos
contribuem para a construção deste conhecimento, bem como a articulação destes
saberes.

Neste contexto, os livros didáticos estão inseridos na chamada cultura escolar,


descrita pela autora Dominique Juliá como:

Um conjunto de normas que definem conhecimentos a serem


ensinados e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que
permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação
desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades
que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas,
sociopolíticas ou simplesmente de socialização). (JULIÁ, 2001, p.
10)

Partindo desta definição, acredito que os materiais didáticos, em especial os


livros, são algo claramente característico desta cultura escolar, sendo um de seus
principais elementos. Os livros didáticos foram em diversos momentos de nossa história
peças-chave para a divulgação de determinadas ideologias, legitimando as concepções
das classes dominantes acerca dos mais variados aspectos como ideais de nação, pátria,
organização social, e as relações entre os diferentes grupos étnicos e religiosos.
40
Uma das questões mais importantes do universo dos livros didáticos e das relações
de poder que os envolvem se refere aos mecanismos de avaliação, controle e
distribuição destes materiais nas escolas.

Tais mecanismos envolvem diversas disputas de poder que vão desde sua
produção, até sua venda e distribuição. Além da legitimação de um conjunto de
determinadas ideias e valores a serem assimilados pelos alunos de acordo com as
demandas políticas e sociais do período. Deste modo:

Aprofundar a pesquisa sobre as avaliações dos livros didáticos permite


compreender a atuação, interesse e disputas entre os diversos sujeitos
e forças sociais que participavam deste processo, procurando por
meio das avaliações dos livros didáticos, divulgar orientações
pedagógicas e conformar práticas. (FILGUEIRAS, 2012, p.162).

Neste contexto é importante ressaltar a forma como os conteúdos presentes


nestes livros são selecionados e dispostos a partir dos documentos curriculares do
Ministério da Educação. Tal processo demonstra, entre outras coisas, o tipo de
conhecimento que se deseja construir a partir do uso destes materiais.

Em 1985 foi criado o Programa Nacional dos Livros Didáticos (PNLD) com o
objetivo de incentivar políticas públicas referentes à produção e ao consumo dos livros
didáticos em todo o país. Em 1996 foi iniciado o processo de avaliação pedagógica dos
livros inscritos para o PNLD, sendo publicado o primeiro “Guia de Livros Didáticos”.
Os livros foram avaliados pelo MEC conforme critérios previamente discutidos. Esse
procedimento foi aperfeiçoado, sendo aplicado até os dias os dias de hoje.

Neste contexto, o PNLD representa atualmente uma peça-chave no que se refere,


não somente a análise como também a produção de livros e matérias didáticos no Brasil.
As escolas são obrigadas a adotar livros aprovados pelo Ministério da Educação, ou
seja, que estão de acordo com as diretrizes estabelecidas pelos currículos oficiais e
principalmente que fazem parte do Guia do PNLD.

O Estado compra as coleções escolhidas pelos professores de acordo com o


Guia e as distribui nas escolas para uso. As coleções que não foram aprovadas são
descartadas, não podendo ser mais utilizadas.

O fato de uma coleção não estar presente no Guia publicado pelo


MEC traz efeitos financeiros indesejáveis que, em alguns casos,
culminam no desaparecimento de editoras e /ou em fusões de grupos

41
editoriais. A instituição de uma cultura avaliativa, num contexto
político democrático, acabou por desencadear poderosos mecanismos
de reajustamento e adaptação no mercado editorial. [...] Neste,
contexto, o livro didático assume claramente sua dimensão de
mercadoria, sujeita a múltiplas interferências em seu processo de
produção e vendagem. (MIRANDA, 2004, p.128).

Tal fator apontado acima põe em evidência outra característica dos livros e
materiais didáticos que deve ser levada em consideração por aqueles que pretendem se
dedicar a pesquisa sobre esta temática: o seu caráter mercadológico.

O livro didático é um produto da indústria cultural com uma


materialidade característica e um processo de elaboração diferente de
outros livros. Enquanto mercadoria, insere-se na logica de vendagem e
requer definições sobre preço e formas de consumo. Trata-se de livro
cujo destinatário principal é o professor, sujeito que decide sobre sua
compra e sua forma de utilização. O aluno, público alvo explicito,
caracteriza-se por ser seu consumidor compulsório. Sua confecção
segue os princípios do sistema de avaliação, obedecendo às normas
definidas pelo poder estatal, que assim interfere indiretamente na sua
produção e é o principal comprador desse material. (BITTENCOURT,
2004, p. 311)

Os livros didáticos são responsáveis atualmente pelo maior número de vendas


entre as editoras brasileiras. Este fato está diretamente relacionado com as políticas e
programas adotados pelo governo.

O livro como mercadoria, obedece a critérios de vendagem, e por essa


razão as editoras criam mecanismos de sedução junto aos professores.
Oferecem-lhes cursos, criam materiais anexos que acompanham as
obras e esmeram-se em apresentar o livro como um produto “novo”
seguidor das ultimas propostas curriculares mais atuais. [...] É comum
encontrar na capa dos livros as indicações sobre eles ‘estarem de
acordo” com tal ou qual proposta curricular- nos tempos mais recentes
com os PCNs. Tais informações da editora nem sempre se confirmam
no interior da obra. (BITTENCOURT, 2004, p. 311-312)

O mercado de livros e materiais didáticos está a cada dia mais competitivo.


Neste cenário as editoras têm investido pesado em divulgação, descontos e uma série de
vantagens para a sua adoção nas escolas, sem se preocupar muitas vezes com os seus
consumidores finais, os alunos e professores.

Esta visão estritamente comercial dos livros didáticos também acaba por
interferir no processo de escolha destes livros pelos professores que, em alguns casos,
não tem suas opções respeitadas pela direção das escolas.

42
Na escola estadual em que trabalho no Município de Belford Roxo, na Baixada
Fluminense, o processo de escolha dos livros didáticos para o Ensino Médio, a serem
utilizados pelos próximos três anos, ocorreu no ano passado (2015) da seguinte maneira:
As editoras enviaram amostras de suas coleções para que os professores analisassem.
Foram recebias diversas coleções das principais editoras do país. Na instituição em que
trabalho a direção estipulou um período para que as equipes de cada disciplina se
reunissem para debater sobre a escolha das coleções.

Tal fator não é muito comum, em boa parte das escolas a escolha é feita por um
ou dois professores ou de forma aleatória pela direção sem que os professores sejam
consultados. O fato de teremos tido tempo e espaço para refletir sobre a escolha deste
material foi fundamental para uma escolha de uma coleção que se adequasse o máximo
possível a nossa realidade e métodos de trabalho, mesmo para os professores que optam
por não utilizarem o livro em suas aulas.

Em seguida foi preenchido um formulário no qual indicamos por ordem de


preferência três opções de coleções. Nesse caso a coleção enviada para nossa escola foi
a primeira opção escolhida por nós. Tal fator também pode variar, há casos em que as
coleções que chegam não correspondem a primeira opção escolhida, ou sequer foram
selecionadas pelos professores.

No que se refere aos agentes envolvidos na produção dos livros didáticos, o


papel dos autores é fundamental. O livro didático é uma obra específica na qual o texto
final é fruto de um processo de transposição didática e mediação do conhecimento
histórico.

O livro didático procura universalizar leitores distintos e estabelecer


uma “cadeia de transferências” do conhecimento histórico sem
divergências. Quem elabora os manuais didáticos almeja sua
eficiência como transmissor de determinado conhecimento e para isso
recorre a uma linguagem que seja não só acessível a um público pouco
heterogêneo, e de fácil assimilação, mas, ao mesmo tempo, capaz de
sintetizar muitas informações. A operação de produção e apresentação
do conhecimento realizada pelo livro didático é assim foco de crítica,
porque resulta em um texto impositivo que impede uma reflexão de
caráter contestatório. O livro didático caracteriza-se por textos que
reproduzem as informações históricas, afirmam seus críticos, as quais
por sua vez são repetidas pelo professor e pelo aluno
(BITTENCOURT, 2004, p. 314).

43
Durante o processo de escolha do livro didático analisado, os autores foram um
ponto importante. Há uma tendência a escolher os livros de acordo com o tipo de
abordagem dos autores, nesse caso a trajetória acadêmica dos autores da coleção bem
como o estilo conteúdista, privilegiando as atividades de leitura e produção escrita
foram apontados pela maioria dos professores como algo positivo.

Este foi um aspecto de discordância entre nós durante o processo. A meu ver, o
livro é bem denso, com textos longos, com uma linguagem complexa e exercícios que
não estimulam diferentes formas de aprendizado e produção de conhecimento. É o que
chamamos de um livro pesado, o que dificulta a sua plena utilização em sala de aula,
sobretudo com alunos que tem pouco ou nenhum hábito de leitura e dificuldades de
escrita, como na maioria das escolas públicas de nosso país. Tal fator pode variar de
acordo com as características da escola e do público ao qual o livro se destina, no
entanto no que se refere aos alunos da minha escola o livro é utilizado de formas
alternativas, para consulta, estudos dirigidos ou exercícios selecionados.

Deste modo, uma análise sobre os conteúdos dos livros didáticos deve levar em
consideração, não apenas as especificidades do texto, linguagem e transposição didática
feita pelos autores, como também o fato de que o conhecimento produzido por estes
não é totalmente neutro.

Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros


didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações
diversas, segundo uma época e local, e possui como característica
comum apresentar a sociedade mais do modo como aqueles, que em
sentido amplo, conceberam o livro didático gostariam de que ela fosse
do que como ela realmente é, Os autores dos livros didáticos não são
simples expectadores de seu tempo: eles reivindicam um outro status,
o de agente. O livro didático não é um simples espelho: ele modifica a
realidade para educar novas gerações ( CHOPPIN, 2004, p. 557)

Neste sentido, compartilho desta visão do livro didático enquanto agente


transformador que traz as demandas sociais e políticas refletidas pelos documentos
curriculares para o espaço escolar não de forma absoluta e inquestionável mas passível
de crítica e reflexão por alunos e professores.

Os modelos e formas de utilização dos materiais didáticos foram se modificando


com o passar do tempo sendo inseridos novos elementos como, por exemplo, os
recursos digitais. No entanto a figura do livro ainda se faz presente em praticamente
todas as escolas sendo um instrumento de trabalho fundamental para o professor.

44
No âmbito do Ensino de História, a importância destes materiais é ainda maior.
Os livros didáticos contribuem significativamente para a construção de memórias sobre
determinados elementos da História e da sociedade brasileira. A forma como
determinados fatos são tratados pelos livros didáticos constituem verdades absolutas
para a maioria dos alunos que não estão habituados a refletir sobre o conteúdo
trabalhado em sala, tanto nos livros didáticos quanto nas aulas expositivas.

Durante muitos anos as análises sobre livros didáticos tinham como ponto
central assinalar os pontos negativos das coleções. Muitos professores, até hoje optam
por não usar esses materiais ainda que os tenham à sua disposição, e utilizam materiais
(resumos, textos e apostilas) de sua autoria. Ao mesmo tempo também é forte
atualmente um movimento de renovação dos usos e leituras dos livros didáticos por
alunos e professores.

As falas dos professores revelam que os livros didáticos certamente


não são mais considerados os vilões da história. Instrumentos de
política educacional, são no entanto, portadores de narrativas
produzidas a partir de expectativas em relação ao público leitor e
propiciadoras de usos diferenciados ( MONTEIRO, 2009, p. 199)

Nesse contexto, cabe destacar que não existe um livro didático ideal, todos
possuem uma série de especificidades e aspectos positivos e negativos, devendo ser
pensados a partir de sua complexidade, levando em consideração cada uma de suas
características. Conforme assinala Circe Bittencourt :

As críticas em relação aos livros didáticos apontam para muitas de


suas deficiências de conteúdo, suas lacunas e erros conceituais ou
informativos. No entanto, o problema de tais análises reside na
concepção de que seja possível existir um livro didático ideal, uma
obra capaz de solucionar todos os problemas do ensino, um substituto
do trabalho do professor. O livro didático possui limites, vantagens e
desvantagens como os demais materiais dessa natureza e é nesse
sentido que precisa ser avaliado ( BITTENCOURT, 2004, p. 301)

Nesta pesquisa minha proposta não é apenas apontar possíveis erros de forma
normativa e superficial e sim compreender a forma como determinadas temáticas são
abordadas por estes livros e como este tipo de abordagem influencia a prática dos
professores e o processo de ensino-aprendizagem.

45
2.2 ANÁLISE DA COLEÇÃO :

Partindo desta perspectiva e levando em consideração a multiplicidade de


elementos que envolvem os livros e materiais didáticos, será feita a seguir análise do
terceiro volume da coleção História III O mundo por um fio: do século XX ao século
XXI destinada ao terceiro ano do Ensino Médio. O livro utilizado como fonte
corresponde a segunda edição publicada no ano de 2013. Os autores compreendem um
grupo de quatro historiadores consagrados no meio acadêmico em diferentes linhas de
pesquisa. São eles: Ronaldo Vainfas, Sheila de Castro Gomes, Jorge Ferreira e Georgina
dos Santos.

Esta coleção foi selecionada para análise por dois fatores. Primeiramente pelo
fato de ter sido a coleção escolhida pela equipe de professores da escola em que
trabalho durante o processo de escolha de livros didáticos para o Ensino Médio
realizado no ano passado. E em segundo lugar por esta ter sido a única das coleções
recebidas em nossa escola que apresentava alguma referência a Pós-abolição e a
participação dos afrodescendentes em nossa História durante o século XX. O volume
escolhido corresponde ao terceiro ano do Ensino Médio, pois seguindo uma cronologia
linear é este o volume em que as referidas informações sobre o pós-abolição se
encontram.

No que diz respeito aos aspectos técnicos gerais, a coleção apresenta uma
estrutura tradicional com um texto base e a presença de diversos boxes e textos
complementares. Cada capítulo apresenta uma estrutura fixa: texto de introdução
apontando alguma curiosidade ou problemática sobre o tema a ser desenvolvido; uma
linha do tempo dedicada às datas ou aos anos marcantes, que aparecem em todas as
páginas do livro destacadas do texto, além do texto base do capítulo.

Os livros também apresentam as seções “Puxando pela memória”, um boxe com


alguma questão/proposta de reflexão sobre a temática abordada, e as denominadas
Mundo Cruzado, Conversas com Historiador e Outra dimensão, e História em seu
lugar que trazem um conteúdo variado desde trechos de documentos, fotos e jornais de
época até breves biografias de personalidades históricas marcantes. Ao final de cada
capítulo também se fazem presentes as seções Glossário e Remissões que indicam o
vocabulário do texto ou informações sobre conceitos ou expressões utilizadas pelos
autores.

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No que se refere ao projeto editorial gráfico, o Guia do PNLD ressalta como
sendo um dos pontos de maior qualidade da coleção. O documento destaca as formas de
emprego das imagens, quase todas passíveis de serem usadas em sala de aula, como
fontes históricas e bastante eficazes na indicação do início de uma nova unidade (MEC,
2014, p. 88). Os mapas, tabelas e gráficos apresentam as informações necessárias à sua
compreensão. E as imagens por sua vez são devidamente legendadas e com referência.

De acordo com o Guia do PNLD de 2015 a coleção é de fácil manuseio e com


uma grande variedade de recursos didáticos, entretanto a densidade em relação aos
conteúdos pode exigir uma adequação por parte do professor. Sobre este aspecto, como
foi ressaltado anteriormente neste capítulo, o conteúdo apresentado no livro é de fato
bastante denso. Os textos são longos e cansativos para crianças e adolescentes,
sobretudo aqueles que não têm o hábito de leitura.

O manual do professor está presente no final de cada livro da coleção como uma
espécie de anexo e segue uma linha diferente da tradicional. De acordo com o Guia do
PNLD no manual do professor o leitor encontra os pressupostos teóricos e didáticos que
fundamentam a proposta, favorecendo a compreensão da organização curricular e das
estratégias adotadas no livro do aluno.

Ou seja, não se trata apenas de fornecer as respostas dos exercícios e atividades


propostas e sugerir outras ferramentas de ensino e métodos de trabalho. É notável uma
preocupação dos autores em demonstrar e esclarecer ao professor a forma como as mais
diversas questões referentes à disciplina história foram abordadas em cada livro da
coleção.

Logo na página de apresentação no início do livro o texto inicial deixa clara esta
perspectiva ao propor ao leitor uma breve reflexão sobre o que é a história e para que
ela serve . O livro do professor, o qual analisei, foi feito pensando nos docentes, tanto
no que refere as questões teóricas quanto a prática do trabalho em sala de aula.

O manual do professor, neste livro, é de fato bem mais extenso do que nos livros
tradicionais trazendo reflexões que não são comuns nesse espaço. Ao longo de todos
os capítulos a presença constante de sugestões e formas de trabalho do conteúdo
também são marcas desta tentativa dos autores de estabelecer um diálogo com o

47
professor, embora na prática a extensão e densidade dos conteúdos possa representar
uma dificuldade na sua utilização.

O Guia do PNLD estabelece alguns tópicos chave para caracterização e análise


das coleções. O primeiro a ser abordado aqui se refere ao componente curricular de
História que corresponde a forma como a coleção compreende as noções de história,
tempo, duração e processo bem como a disposição e abordagem dos conteúdos.

Esta coleção optou pela perspectiva da História Integrada, incorporando


conhecimentos produzidos por diferentes correntes historiográficas a partir de uma
abordagem global do saber histórico escolar que compreende conteúdos que valorizam a
formação, a problematização de fontes, a análise e narrativa sequencial (MEC, 2014, p.
86).

No manual do professor os autores enfatizam que apesar de terem optado por


uma História Integrada, houve uma preocupação específica com os conteúdos referentes
à História do Brasil que se encontram em unidades e capítulos específicos e não como
simples acessório da chamada História Geral. Deste modo os conteúdos de História do
Brasil e História Geral estariam integrados, sem que houvesse uma hierarquização entre
eles.

No que se refere às concepções de História e tempo, nota-se que a disposição


dos conteúdos é feita a partir de uma cronologia linear. Também é notório o predomínio
da História da Europa como eixo norteador, apesar de haver uma maior preocupação
com as especificidades da História do Brasil e com a inclusão de conteúdos de História
africana e indígena. Conforme ressalta o Guia do PNLD o texto base dos capítulos
apresenta uma divisão clássica dos conteúdos, prioriza a História Política, sendo
complementado por boxes, textos, seções e atividades que trazem as dimensões
culturais e socioeconômicas (MEC, 2014, p.84).

Deste modo, é possível observar que a proposta da coleção é de uma História


Integrada, que não estabeleça hierarquias entre as diferentes regiões e culturas e que
valorize a História Nacional, porém sem romper por completo com a abordagem
histórica tradicional.

No entanto, apesar desta proposta, a coleção apresenta uma divisão bastante


tradicional dos conteúdos. Os conteúdos sobre História da Europa, a chamada História

48
Geral, são muito mais extensos e centrais. A História da América e da África ainda
estão subordinadas a História europeia.

No que se refere à História do Brasil, de fato há uma abordagem diferenciada. A


existência de referências à atuação do Movimento Negro no pós-abolição é um exemplo
desta realidade. De todas as coleções recebidas em minha escola para análise, a
amplitude dos conteúdos referentes à História do Brasil presentes nesta coleção nos
chamou a atenção e foi considerada um ponto positivo.

No que se refere à proposta pedagógica, os exercícios e atividades propostas


seguem uma linha bem tradicional. Há uma grande quantidade de atividades que
valorizam principalmente a memorização e a produção de material escrito através de
elaboração de textos, estudos dirigidos, análises de fontes e debates comparativos. O
diálogo com outras disciplinas também se faz presente tanto nos exercícios quanto nos
texto dos capítulos.

Ao final de cada unidade há uma seção chamada Roteiro de Estudos na qual são
disponibilizados vários tipos de atividades. Primeiro há um questionário discursivo com
cinco a dez questões de simples fixação do conteúdo. Há também algumas questões
complementares do ENEM e dos principais vestibulares. Cada unidade também vem
acompanhada de duas propostas de estudos dirigidos denominados Conexões e
Reflexões, que também seguem a mesma linha de produção de textos ou realização de
pesquisas escritas. Há também ao final de cada unidade sugestões de sites, vídeos e
filmes relacionados à temática trabalhada.

Neste contexto, nota-se que a coleção tem como principal característica a


valorização do texto, seja na leitura ou na produção escrita, como principal método de
aprendizagem. As atividades propostas seguem sempre a mesma linha voltada para a
leitura e produção escrita. E os exercícios também têm essa característica com a
presença marcante de questionários discursivos voltados para a memorização do
conteúdo.

Tal fator pode ser considerado positivo ou negativo dependendo da abordagem


feita pelo professor. No cotidiano, dependendo do nível de letramento dos alunos, estas
atividades podem ser bastante funcionais. No entanto, para os professores que preferem

49
utilizar formas diferenciadas e mais dinâmicas de aprendizagem, o livro pouco
contribui.

Os dois outros itens considerados de grande importância pelo Guia do PNLD na


análise das coleções se referem à formação para a cidadania e aos conteúdos de História
da África e da cultura afro-brasileira e indígena em concordância com as leis 10.639 e
11.645.

Os aspectos referentes à formação para a cidadania são tratados em sua


historicidade, procurando fazer com que o aluno perceba os princípios da diversidade e
do respeito às diferenças, pela via do conhecimento histórico (MEC, 2014, p.87).
Prevalece no texto a defesa dos modelos democráticos, incluindo a liberdade de
expressão, a importância da participação política e a ampliação dos direitos sociais
(MEC, 2014, p.87).

Tanto no manual do professor quanto ao longo do livro é notória a valorização


do papel da mulher, bem como o respeito às diferenças sociais, religiosas, étnicas e
culturais.

O item referente à História Africana e Afro-brasileira é um dos mais relevantes


na análise do Guia do PNLD. As coleções para serem aprovadas tem que estar em
acordo tanto com a lei 10.639 quanto a lei 11.645 referente à História Indígena.

Na coleção analisada, de acordo com o Guia do PNLD a História e Cultura Afro-


brasileira está concentrada no período colonial, no trabalho escravo e nos debates e
movimentos abolicionistas, destacando os diversos mecanismos de resistência à
escravidão e a participação do negro na luta pela abolição. Isso ocorre de maneira que
os sujeitos sejam privilegiados em resistência e atuação sem descaracterizar a
dominação, as relações sociais conflituosas e baseadas na exploração, sem vitimização
de tais sujeitos (MEC, 2014, p. 87-88).

No que se refere ao Ensino de História da África os autores da coleção destacam


que:

Nesta coleção houve a preocupação de não somente informar sobre a


história da África, um continente tão importante para a história a
História americana e mundial, mas de poder auxiliar o combate aos
preconceitos que há séculos envolvem a abordagem de temas
africanos. Isso significa a intenção de combater os estigmas racistas,

50
de um lado, mas também os libelos “vitimizadores” que, ao construir a
História da África como a presa fácil de uma cobiça ocidental
infantiliza os povos africanos, ignorando a complexidade e a
diversidade daquelas sociedades e o protagonismo assumido por
diversos povos africanos no processo global, incluindo a escravidão o
tráfico negreiro e o colonialismo ( anexos imagem 5).

De fato quando se trata da História africana as características apontadas acima


são facilmente percebidas. No volume analisado a História recente do conteúdo é
tratada de forma bastante completa há um capítulo inteiro dedicado ao Pan-africanismo.
Os movimentos de luta pela independência são abordadas não somente as perspectivas
política e econômica como também os aspectos culturais, sociais e étnicos.

No entanto quando se trata da História afro-brasileira, o principal aspecto tratado


ainda é a escravidão, conforme o próprio PNLD ressalta (MEC, 2014, p.87). O período
pós-abolição não é sequer citado como conteúdo relevante tanto no Manual do Professor
quanto no Guia do PNLD.

Contudo, ao se observar o conteúdo do livro nota-se algumas referências bem


interessantes sobre a participação dos negros em nossa História ao longo do século XX.
O que sem dúvida é um diferencial em relação a grande maioria das demais coleções
presentes no Guia do PNLD, nas quais a única referência é a participação do marinheiro
João Cândido na Revolta da Chibata.

Deste modo, será abordado a seguir o modo como a questão racial, bem como a
participação dos afrodescendentes na História do Brasil é tratada no livro analisado.

A primeira referência presente no livro sobre a participação dos


afrodescendentes em nossa História se encontra logo no primeiro capítulo da unidade I,
dedicado a Primeira República brasileira (1891 a 1930).

Neste capítulo, os afrodescendentes aparecem no trecho referente à Revolta da


Chibata na página 24. Trata-se de um trecho curto que narra de forma simples e factual
os acontecimentos da revolta que está inserida no conjunto dos movimentos sociais
urbanos do período. Ao lado do texto encontra-se uma imagem de um prédio na Rua
Marechal Floriano que teria sido atingido durante a revolta. É apenas citada a
participação do marinheiro João Cândido, com pouquíssimo destaque.

51
Como foi colocado anteriormente, há próximo ao texto base em vermelho, uma
orientação dirigida aos professores com uma sugestão de atividade utilizando a edição
da Revista da Biblioteca Nacional que traz um dossiê sobre a Revolta da Chibata e a
transcrição da entrevista dada por João Cândido em 1968.

Este fator não exclui a abordagem superficial do texto base. A participação


social dos negros neste período foi muito além do que apenas a Revolta da Chibata,
única referência citada neste capítulo.

No entanto, nos capítulos seguintes o livro traz outras referências à participação


social e política dos negros em diferentes momentos históricos, não se limitando apenas
a referida Revolta da Chibata ou ao Dia da Consciência Negra. O capítulo sete Brasil:
a República Nacional Estadista, que trata sobre a chamada era Vargas traz na página
117 um boxe informativo sobre a Frente Negra Brasileira.

52
O texto corresponde a um fragmento do livro A formação das tradições ( 1889-
1945 , as esquerdas no Brasil escrito por Elio Chaves Flores. Neste trecho é abordado
de forma breve o contexto de criação da FNB, sua trajetória e importância no cenário
político da época. Também são citados outros grupos e instituições que marcaram o
Movimento Negro no período como a União Negra Brasileira, o Clube Recreativo
Palmares, além do Movimento Brasileiro Contra o Preconceito Racial e a Associação
dos Homens de Cor. No fim do texto há uma questão proposta, tanto para um exercício
escrito quanto para um debate, referente aos objetivos centrais dos líderes da Frente
Negra em 1930.

Seguindo este mesmo modelo, no capítulo 12: O Brasil e a República


Democrática que trata do período de 1945 a 1964, também há um boxe informativo
sobre atuação do Movimento Negro. O pequeno texto descreve de forma breve a
fundação e trajetória do Teatro Experimental do Negro e destaca outros marcos, como
a Convenção Nacional do Negro Brasileiro em 1945. Dentre as principais
reivindicações foram destacadas a origem étnica do povo brasileiro escrita na
Constituição, a criminalização do preconceito racial e a garantia de acesso ao ensino
público aos afro-brasileiros. Também é citada a Conferência Nacional do Negro
realizada em 1949 destacando a participação de Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos.
Ao final do texto os autores apontam a união em torno de ideais comuns, o direito de
participar da vida política e de usufruir os direitos sociais, bem como a elevação da
autoestima dos afro-brasileiros como sendo as grandes lutas do Movimento Negro neste
período.

53
Por fim, a última referência feita à participação dos
afrodescendentes em nossa história no pós-abolição se encontra no capítulo
10, referente aos processos de independência das colônias africanas e
asiáticas. Ao lado do texto base sobre o Apartheid na África do Sul na
página 164, encontra-se um box com um texto complementar sobre a Dia
da Consciência Negra no Brasil. Logo em seguida há uma proposta de
atividade na qual os alunos devem se dividir em grupos para participar e
registrar atividades e eventos referentes ao Dia da Consciência Negra
realizados em sua cidade (bairro, escola etc.) .

O conteúdo exposto acima está longe de ser o ideal. Apresenta uma


descrição bastante superficial, e fora do texto base (com exceção da Revolta
da Chibata), em boxes como uma informação complementar e não como
parte do conteúdo referente à História do Brasil nos diversos períodos
abordados. O texto sobre o Dia da Consciência Negra se encontra em um
capítulo referente à História da África. O texto base não possui qualquer
conexão com a realidade brasileira, levando uma discussão importante em
nossa sociedade a ser vista pelo leitor como algo aleatório e isolado dentro
de um conteúdo referente à África do Sul.

Em todo o livro não é citado, por exemplo, o Movimento Negro Unificado,


criado durante o regime militar e que teve uma atuação importantíssima em nossa
sociedade, tão pouco as conquistas do Movimento Negro nos dias atuais. As relações
étnico-raciais são abordadas em diversos momentos, mas nunca tratando do contexto
brasileiro atual.

No entanto, ao observar o panorama geral das produções didáticas no Brasil,


estas pequenas referências representam um avanço. No que se refere ao período Pós-
abolição, os afrodescendentes costumam ter pouco ou nenhum destaque. Em geral,
apenas o marinheiro João Candido é citado nos textos referentes à Revolta da Chibata,
bem como Lima Barreto citado entre os grandes nomes da literatura brasileira do início
do século XX.

A perspectiva informada pela obra de Gilberto Freire sobre a convivência


harmoniosa das três raças formadoras do brasileiro e da ausência de conflitos ligados às
questões de raça, bem como da perspectiva marxista, que dominou a produção de livros

54
e materiais didáticos nos anos 1980 e 90, e que enfatiza a luta de classes como principal
motor das dinâmicas sociais, contribuíram de forma significativa para este quadro.

A maioria dos livros didáticos só trata da participação dos afrodescendentes na


História do Brasil, no máximo até o início do século XX, pois nas primeiras décadas da
República os negros passaram a integrar a sociedade de classes, representados de forma
homogeneizante dentro da classe operária e das camadas populares e não mais com sua
identidade ligada à raça e a cultura. O Movimento Negro tão ativo neste período passou
a ser praticamente ignorado e os elementos culturais de origem africana a integrar a
chamada cultura nacional.

Não se pode deixar de levar em consideração, o fato de que a maioria dos


profissionais docentes não tiveram contanto com estes conteúdos em sua formação. O
desconhecimento sobre a história e cultura africana foi, e ainda é, algo alegado por
muitos professores, sobretudo nos primeiros anos de implementação da lei 10639. O
mesmo se dá em relação à História e Cultura Afro-brasileira. Os livros didáticos muitas
vezes demonstram a visão predominante no senso comum da sociedade como um todo
sobre a participação política social e cultural dos afrodescendentes em nossa história.

Neste contexto, deve-se levar em consideração que a escola é um espaço de


referência fundamental para a construção destas múltiplas identidades, notadamente
quando se trata de grupos marginalizados socialmente.

No que diz respeito ao papel social dos negros na História do Brasil, a ênfase
dada ao fator escravista como exclusivo exemplo de sua participação em nossa história,
feita por alguns livros didáticos, contribui para o reforço de estereótipos e construção de
uma identidade negativa por parte dos alunos.

Os materiais didáticos não são os únicos responsáveis pela formação indentitária


de crianças e adolescentes, porém constituem uma importante referência para estes
jovens, assim como todo o conhecimento adquirido a partir de diferentes maneiras ao
longo de sua trajetória escolar.

Além das relações de identidade e pertencimento, a forma como os conteúdos


estão dispostos nos livros didáticos também constituem elementos formadores de
memória. Os estudantes trazem para a sala de aula diversas memórias oriundas das
várias esferas de sua vida cotidiana. A estas memórias se unem os saberes escolares, o

55
conhecimento construído nas aulas, a partir não somente do conteúdo ensinado pelo
professor, como também do que está presente nos materiais didáticos e suportes
pedagógicos utilizados.

O discurso presente nos livros seja através dos textos, das imagens ou
simplesmente na organização das temáticas, priorizando determinados fatos e
personagens em detrimento de outros, contribuí para estabelecer o que deve ou não ser
lembrado e de que forma. Sobre este aspecto, a autora Circe Bittencourt ressalta que:

O livro didático não é responsável de forma isolada por essa


sedimentação de uma memória histórica; na maior parte das vezes,
serve como veículo de reprodução de uma historiografia responsável
pela produção dessa mesma memória e que renova interpretações, mas
sempre em torno dos mesmos consagrados fatos, que se tornam os
nós explicativos de todo o processo histórico. (BITTENCOURT,
2004, p. 304)

Deste modo é possível concluir que a forma como grande parte dos livros trata
as questões referentes à participação dos negros na História do Brasil, reflete o
predomínio de uma historiografia tradicional, linear e eurocêntrica, que tem o
escravismo colonial como principal eixo.

Nestes casos, os estudos sobre o pós-abolição tem pouco ou nenhum destaque, o


que dificulta a criação de novas memórias por parte dos alunos. Memórias estas não
mais baseadas no sofrimento, na vitimização e na passividade e sim na luta social e
política bem como na valorização cultural e histórica dos afrodescendentes.

Mais uma vez ressalto que os saberes produzidos em sala de aula bem como os
conteúdos presentes nos livros e materiais didáticos não são os únicos elementos
formadores de uma memória. Entretanto, eles representam uma importante contribuição
para imagem que crianças e adolescentes terão sobre determinado assunto, bem como a
forma com este assunto será compreendido, assimilado e lembrado até a vida adulta.

Os alunos, em sua grande maioria, tendem a assimilar os saberes aprendidos nas


aulas de História e principalmente o conteúdo escrito presente nos livros didáticos como
verdades incontestáveis. Neste sentido cabe a nós professores promover uma reflexão
crítica sobre estes conteúdos.

56
CAPITULO III: O LUGAR DO NEGRO NA HISTÓRIA ENSINADA

Este capítulo traz as entrevistas realizadas com professores que atuam na


Educação Básica e que adotaram a coleção analisada em suas escolas. Foram
entrevistados quatro professores: dois que atuam na rede estadual na Baixada
Fluminense e Região dos Lagos, uma professora que atua na rede estadual e na rede
FAETEC ambas no munícipio de Niterói e um professor que atua em uma escola
técnica federal na região da Tijuca.

As entrevistas foram feitas no ano de 2015 entre os meses de junho e novembro.


Mesmo tendo sido devidamente autorizada, optei por dar nomes fictícios aos
entrevistados, já que dentre eles há professores bastante conhecidos no meio docente e
também alunos deste programa de mestrado.

Os professores escolhidos ministraram ano de 2015 aulas de história em turmas


do terceiro ano do Ensino Médio. E não somente tiveram a coleção adotada em suas
escolas, como em sua maioria fazem uso do livro de diferentes formas. Estes
professores também representam a diversidade de estrutura, público, condições e
métodos de trabalho em diferentes redes de Ensino Básico: estadual, municipal, federal,
regular e técnico, bem como as diversas realidades vivenciadas em diferentes regiões do
Rio de Janeiro.

O objetivo principal das entrevistas é perceber como as questões raciais são


tratadas nas aulas a partir da prática dos professores de um modo geral e não apenas no
que se refere ao uso do livro didático. Neste sentido, os professores puderam relatar
suas experiências a partir de quatro eixos: a formação do professor; a forma como os
conteúdos previstos pela lei 10.639 sobre História Africana e Afro-brasileira e o Pós-
abolição são trabalhados tanto no cotidiano das aulas quanto nos projetos
interdisciplinares; a crítica de cada professor ao livro didático, destacando os pontos
positivos e negativos e as formas de utilização em sala de aula; além do racismo e do
preconceito e suas formas de manifestação na escola.

3.1 TRAJETÓRIAS, SABERES E EXPERIÊNCIAS :

A formação do professor é algo fundamental quando se pretende compreender a


nossa atuação em sala de aula. A lei 10.639 apesar de dirigida a Educação Básica
também influenciou o ensino nas universidades. A grande maioria dos professores não

57
estava preparada para ensinar os conteúdos previstos na lei por que não tiveram uma
formação que abordasse a História da África, e a História Afro-brasileira fora do eixo
do sistema escravista. Muito se avançou neste sentido. Atualmente estes temas já fazem
parte da grade obrigatória da maioria das universidades e os centros de estudos e
núcleos de pesquisa tanto sobre História da África quanto sobre História Afro-brasileira
vem crescendo em todo o país. Tal fator representa um ganho bastante significativo para
o meio acadêmico e para os futuros professores.

No entanto este movimento é bem recente. Entre os professores entrevistados,


apenas um afirmou ter tido contato com estes conteúdos em sua graduação (UFRJ em
2011). Os demais, um professor Pós-doutor em ciências sociais pela UFF e duas
professoras que estão cursando atualmente o mestrado (Graduação em História pela
UFF e pela Universidade Gama Filho) afirmaram não ter tido nenhum contanto com
História da África ao longo de sua formação. No que se refere à participação dos negros
na História do Brasil, todos os quatro professores foram unânimes em afirmar que a
única referência que tiveram na universidade foi o negro enquanto parte do sistema
escravista. O pós-abolição não foi sequer mencionado em suas trajetórias acadêmicas.

Neste sentido a fala da professora Cristina Lima, que atua na rede estadual e na
rede FAETC é bastante pertinente :

Eu sou formada em História pela UFF e tenho uma graduação em


Pedagogia também, pela UERJ. Durante a graduação não tive esse
contato. Quando eu estava para me formar, a história da África estava
iniciando ainda, não havia uma importância para o departamento de
História, era uma matéria eletiva, não tinha esses debates que estão
acontecendo atualmente e eu acabei não fazendo e não tendo nenhuma
formação em História da África. Só que quando eu iniciei no
magistério, o tempo que eu tenho de magistério é quase o mesmo
tempo que a lei, e eu lembro perfeitamente que quando a lei veio os
professores reclamavam, não achavam importante, não se sentiam
preparados. Eu também não me sentia preparada, mas eu reconhecia a
importância. Não tem como não reconhecer a importância de se
trabalhar a História da África já que a maioria dos nossos alunos são
negros. E aí a gente vê uma história totalmente europeia sendo
trabalhada. Quando saiu a lei a principal questão era como trabalhar
isso ? Com um currículo em que você não tinha nem um vislumbre de
como trabalhar essa História, sendo que você já não tinha formação.

58
Os próprios PCNS não te davam caminhos. Você tinha buscar a
experiência e os caminhos sozinha.3

Neste sentido, o ensino de História Africana e Afro-brasileira nas escolas foi


sendo construído, principalmente, a partir da ação dos professores que foram buscando
caminhos para construir esse conhecimento até então inédito, tanto na sua formação
quanto nos currículos e materiais didáticos. Este é um processo que envolve diversos
fatores que vão desde o interesse do professor em ampliar seu conhecimento sobre o
assunto até a realização de trabalhos que estimulem a troca de experiências e
conhecimento entre professores e alunos.

Neste sentido, ao abordar a experiência prática dos professores tanto em relação às


questões referentes ao Pós-abolição e a utilização dos livros didáticos quanto às relações
étnico-raciais no espaço escolar é necessário compreender o processo de mobilização
dos diversos saberes, presentes no chamado saber escolar, bem como as estratégias
utilizadas por estes profissionais. Neste sentido, a professora Ana Maria Monteiro
compreende a categoria saber escolar como:

Aquela que designa um conhecimento com configuração cognitiva


própria, relacionado, mas diferente do saber científico de referência e
que é criado a partir das necessidades e injunções do processo
educativo, envolvendo questões relativas à transposição didática e às
mediações entre conhecimento científico e conhecimento cotidiano,
bem como as dimensões histórica e cultural em uma perspectiva
pluralista (MONTEIRO, 2007, p. 14).

Deste modo, o segundo ponto abordado nas entrevistas se refere à mobilização


destes diversos saberes na prática dos professores durante as aulas. Foi questionado a
cada um dos entrevistados de que forma os conteúdos de História da África e História
Afro-brasileira eram trabalhados em suas escolas, e todos afirmaram existir um projeto
interdisciplinar em que este tema era abordado. A Secretaria Estadual de Educação do
Rio de Janeiro ( SEEDUC/RJ) tem um projeto anual e obrigatório a ser realizado nas
escolas na semana do feriado do Dia da Consciência Negra. No entanto, este tipo de
projeto não ocorre só nas escolas estaduais como destaca a fala do professor Alberto
Silva, que atua em uma escola técnica federal : :

Esse ano teve na semana de ciência e tecnologia sobre isso, foi


organizado por uma das professoras daqui do Departamento de
História, e pra ano que vem nós estamos pensando um projeto
3
Entrevista concedida por Cristina Lima professora de História da rede estadual no município de
Niterói/RJ e da rede FAETEC também no munícipio de Niterói /RJ. Entrevista realizada em 16/09/2015.

59
unificado. Além de compartilhamento de textos e materiais didáticos
entre os professores de História.4

Esta iniciativa apesar de simples representa um grande avanço. Na maioria das


escolas técnicas que possuem o Ensino Médio concomitante, as disciplinas do curso
regular da área de humanas, principalmente a História, são pouco valorizadas. As
escolas federais possuem autonomia para criar seu próprio currículo. No currículo desta
escola havia poucas referências a História Africana e Afro-brasileira, ainda que estes
temas fossem discutidos pelos professores nas aulas. Sobre este caso em especial o
professor destaca:

O programa da nossa escola é um programa diferenciado e que deve


passar por mudanças no ano que vem. É um programa muito reduzido
o que da minha parte gera muitas críticas. A gente sofre uma pressão
muito grande, a qual a gente tem resistido, pra fazer uma História mais
instrumental submetida aos cursos técnicos coisa que eu me oponho
radicalmente. É basicamente um programa de Brasil e História
Moderna e Contemporânea que ás vezes a gente nem consegue
cumprir por que a nossa carga horária já é muito pequena.5

Durante minha licenciatura fiz meu estágio de prática de ensino nesta escola, e
pude acompanhar esta realidade. Sendo assim é um ganho significativo para os alunos
que os professores de História se dediquem a trabalhar estas questões, em um ambiente
onde o ensino desta disciplina é tão desvalorizado.

Ainda no que se refere à realização dos projetos interdisciplinares envolvendo a


História da África e a Cultura Africana e Afro-brasileira duas outras experiências
merecem destaque. A primeira diz respeito ao professor Jorge Oliveira que atua na rede
estadual nos municípios de Nova Iguaçu e Paracambi.

Na escola em Paracambi eu tenho experiências muito legais. Tem um


orientador pedagógico que faz parte do GT de discussões justamente
das questões étnico-raciais africanas e indígenas. Esse GT é próprio da
regional centro-sul com sede em Vassouras. Então há dois anos, esse
ano vai para o terceiro, em novembro no Dia da Consciência Negra,
naquela semana a gente sempre faz um evento a semana inteira
discutindo essas questões. Então por exemplo na primeira semana a
gente fez uma série de mesas com palestras e seminários com diversos
professores, eu participei, também fiz uma fala. Ele é do candomblé
então ele trouxe pessoas pra falar sobre a religiosidade, trouxe
estudantes de História pra falar sobre as suas pesquisas sobre questões
4
Entrevista concedida por Alberto Silva professor de História do IFRJ Campus Maracanã no município
do Rio de Janeiro. Entrevista realizada em 11/11/2015.
5
Alberto Silva 11/11/2015

60
étnicos raciais. Então foi uma semana inteira falando sobre essas
questões. Mais no turno da noite. Lá o turno da noite tem se saído
melhor que o turno da manhã. E ano passado foi feita uma amostra
com filmes documentários e debates sobre isso. Então a gente passou
aquele filme o Amistad, passamos o documentário do projeto
Memórias do Cativeiro do pessoal da UFF, e fazendo os debates. É
uma coisa que a gente encontra resistência dos próprios professores
que questionam: Pra que falar sobre isso? É uma época que estão
chegando as provas no final de novembro então muitos professores
resistem um pouco. Até por que tem outras forças envolvidas. Isso vai
demandar tempo do professor, demanda um certo investimento, a
gente passa um pouquinho do horário, enfim, bagunça a rotina da
escola um pouco. Acho que a resistência de alguns professores está
exatamente aí, e não por não acharem que é importante. Mas acho que
até os professores coordenação e direção viram que foi dando certo o
primeiro ano foi muito legal, o segundo ano mais ainda e acho que até
a própria direção foi se empenhando em fazer a escola toda se
empenhar nesse projeto. Acho que é um exemplo que dá+ pra fazer
alguma coisa.6

O segundo relato se refere à experiência da professora Cristina Lima. Sua fala se


refere a uma escola estadual do Município de Niterói.

Os projetos que tem são iniciativas de alguns professores e não da


escola. Eu acho que a lei na minha escola avançou muito pouco, as
pessoas até reconhecem a importância, mas elas não se envolvem.
Então quando eu fiz esse ano o projeto sobre o racismo com o terceiro
ano onde os alunos montaram uma exposição sobre a História do
racismo, a escola toda parabenizou mas ninguém se envolveu. A ideia
surgiu através das conversas com os alunos sobre as cotas. Eu percebi
que eles consideram as cotas como algo que os menospreza. Eles não
conseguem perceber as cotas como uma medida da reparação. Por que
eles não sabem essa história e essa memória de resistência. Isso não
foi trabalhado então eles não associam. Eles acham que é um passado
que não tá relacionado com eles. No trabalho que eles fizeram uma
parte dos alunos trabalhou com “O racismo tem História” que era
pegar fontes que eu selecionei sobre como se construiu o pensamento
racial no Brasil. A partir de algumas aulas teóricas que eu dei eles
tiveram que trabalhar com essas fontes. De inicio eu senti que foi
muito difícil por causa do letramento deles e diante da dificuldade eu
resolvi partir pro áudio visual. Fui pegar vários documentários e
vídeos para mobilizá-los sobre a questão racial. A outra parte dos
alunos foi trabalhar o seguinte: se o racismo tem História, a luta do
Movimento Negro também tem História. E aí eu selecionei fontes
onde eles pudessem observar que nas primeiras décadas do século XX
existiam jornais negros que reivindicavam a inclusão social. Outro
grupo foi trabalhar a Frente Negra Brasileira na década de 30 que

6
Entrevista concedida por Jorge Oliveira professor de História da rede estadual nos municípios de Nova
Iguaçu e Paracambi na Baixada Fluminense. Entrevista realizada em 25/06 de 2015.

61
também foi um movimento político de reivindicação, até chegar nos
dias de agora. Eu enfatizei muito o discurso do Kabengele Munanga.
Eu passei um vídeo dele falando sobre a violência dos jovens negros e
sobre a questão das cotas. E aí nos fizemos um grande mural pegando
até as leis mais recentes, alguns alunos pesquisaram sobre o Estatuto
da Igualdade Racial, eles fizeram vários gráficos sobre as
desigualdades entre brancos e negros e nós fizemos uma exposição a
céu aberto7.

Os dois projetos descritos acima demonstram a amplitude de questões que os


chamados saberes escolares envolvem. De acordo com Jean Claude Forquin:

O próprio de uma reflexão sociológica ou histórica sobre os saberes


escolares é o de contribuir para dissolver esta percepção natural das
coisas , ao mostrar como os conteúdos e os modos de programação
didática dos saberes escolares se inscrevem , de um lado, na
configuração de um campo escolar caracterizado pela existência de
imperativos funcionais específicos (conflitos de interesses
corporativos, disputas de fronteiras entre as disciplinas, lutas pela
conquista da autonomia ou da hegemonia no que concerne o controle
do currículo), de outro lado a configuração de um campo social
caracterizado pela coexistência de grupos sociais com interesses
divergentes e com postulações ideológicas e culturas heterogêneas,
para os quais a escolarização constitui um trunfo, social político e
simbólico. (FORQUIN, 1992, p. 43-44)

Neste sentido, ao realizar estes projetos os profissionais envolvidos trazem para


dentro do espaço escolar questões que envolvem as diversas disputas de poder e de
conhecimento simbólico que se fazem presentes nas relações étnico-raciais e em nossa
sociedade como um todo. Os alunos tiveram a chance de discutir temas como o racismo,
as medidas de reparação, a atuação do movimento negro, além da história do continente
africano a partir de um olhar crítico e reflexivo, diferenciado do conhecimento do senso
comum que muitas vezes é predominante.

Estes são exemplos de que é possível realizar ações que mobilizem os alunos e
levando-os a reflexão, a desconstrução de estereótipos e preconceitos e à ampliação de
sua visão de mundo. Tal fator também demonstra que os estudantes, quando
estimulados, se envolvem nas discussões e participam das atividades propostas, sendo
um importante elo na construção do conhecimento histórico dentro do espaço escolar.

No entanto, em ambas as falas é possível perceber que mesmo após 13 anos da


lei 10.639 e tantas discussões em todos os âmbitos da sociedade sobre a importância do
ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira na formação dos estudantes e

7
Cristina Lima 16/09/2015

62
para a sociedade de um modo geral, ainda há uma certa resistência em relação a estas
temáticas. Não há dúvidas de que a lei trouxe o reconhecimento da importância destes
conteúdos, mas não de forma prioritária.

No primeiro relato o professor enfatiza a importância da figura do Orientador


Pedagógico, do seu envolvimento no GT fora do espaço da escola e da sua experiência
religiosa pessoal, para o êxito do projeto. Tal fator serviu de estímulo para que os outros
professores e demais funcionários se envolvessem, fazendo com que o projeto ganhasse
um âmbito coletivo envolvendo a comunidade escolar. O mesmo se dá no segundo
relato no qual a professora ressalta o não envolvimento dos professores e da equipe
pedagógica durante a realização do projeto, no entanto ao final, o êxito do mesmo
levou a um reconhecimento do trabalho desenvolvido tanto pela professora quanto
pelos alunos.

Neste sentido, observa-se que a obrigatoriedade de se trabalhar estas questões, ainda


que apenas durante um certo período do ano, imposta pela SEEDUC/RJ não deixa de
ser algo positivo e fez com que alguns profissionais da educação buscassem sair de sua
zona de conforto ao se envolver nos projetos de escolas, mas estes ainda representam
uma minoria, conforme é destacado no segundo relato. Portanto ainda há um longo
caminho a percorrer.

As experiências relatadas são interessantíssimas e representam uma grande


conquista para o Ensino de História. No entanto elas se referem à projetos realizados em
um período específico e fora do cotidiano das aulas. Quando questionados sobre a forma
como a História Africana e Afro-brasileira, em especial o Pós-abolição eram tratados
nas aulas de história ao longo de todo o ano letivo, os professores relataram outra
realidade.

A professora Cristina Lima afirma não ter o mesmo resultado obtido no projeto
nas aulas, onde encontra dificuldade em tratar estes conteúdos:

Não! Nas aulas da disciplina não, só nos projetos. Só no sexto ano que
consegui trabalhar com os reinos africanos e desconstruir um pouco a
história do Egito, enfatizando que o Egito faz parte da África, que
existiam faraós negros etc.. No terceiro ano é difícil por que o
conteúdo é enorme e com dois tempos de História por semana e tantos
feriados fica difícil. O que eu toquei com eles quando fui trabalhar
Vargas foi a Frente Negra. Inclusive eu pedi pra que eles mesmos
pesquisarem sobre. Eles na verdade já conheciam por causa do
63
projeto, então foi mais fácil. No oitavo ano eu vou trabalhar
escravidão agora e quero fazer isso apontando as resistências. Tô
pensando em partir do cais do Valongo, das Irmandades... 8

Mesmo com todas as dificuldades em relação ao tempo e as limitações do


currículo, a professora tem conseguido tratar dos temas propostos pela lei 10.639
incluindo o Pós-abolição, mesmo que de forma superficial. O professor Alberto Silva
também afirma conseguir tratar da temática em suas aulas :

Essas questões tem aparecido sim. De forma mais intensa nos últimos
dois ou três anos. Além da pressão legal a gente resolveu se mobilizar
e estudar mais pra isso então esses temas tem estado bastante
presentes sim tanto nas minhas aulas quanto nas aulas dos meus
colegas. No caso do pós-abolição e da Primeira República a questão
da identidade nacional e racial, o cientificismo, as teorias raciais e
como o pensamento brasileiro se posicionava em relação à raça
sobretudo, nas primeiras décadas do século XX. Eu tenho feito isso
muito nas minhas aulas e todo ano eu tenho trabalhado isso. Eu por
exemplo trabalhei essa temática usando um livro da Lilia Schwarcz.
Nem preto nem branco muito pelo contrário. Eu trabalhei com os
alunos os quatro últimos capítulos do livro e o resultado foi bem legal
eles responderam muito bem. Mas olha só o aluno daqui, ele tem uma
diferenciação em relação aos alunos de outras redes. Eu não estou
dizendo que seja uma diferenciação social, mas são alunos muito
aplicados, eles tem um ethos de estudo e de aplicação, e eles leram o
material e isso faz uma diferença enorme.9

As instituições de ensino federais tanto de Ensino Técnico quanto de Ensino


Regular apresentam de fato um público diferenciado principalmente pelo fato destes
estudantes terem passado por um processo seletivo antes de seu ingresso. No entanto
isto não significa de forma alguma que os alunos de outras redes sejam menos capazes,
ou que não possam atingir resultados tão bons quanto ou até mesmo melhores. Este
professor tem como lugar de fala uma realidade muito específica, são alunos que já
foram pré-selecionados e são escolas que possuem maiores investimentos financeiros, o
que se converte em uma melhor infraestrutura, e melhores condições de trabalho e
remuneração para os professores.

Porém no caso das escolas técnicas em geral, como já foi abordado neste capítulo,
estas privilegiam uma formação mais tecnicista voltada para as disciplinas exatas e a
formação profissional. Neste caso a importância dada ao Ensino de História é
praticamente nenhuma, o que torna o trabalho dos professores da área, que buscam

8
Cristina Lima 16/09/2015
9
Alberto Silva 11/11/2015

64
estimular o pensamento crítico e a ampliação da visão de mundo destes jovens, ainda
mais importante.

No entanto, a maioria dos professores que atuam na Educação Básica encontram uma
realidade bem diferente da relatada a cima. A professora Ana Morais, que atua nas redes
estadual e municipal dos municípios de Araruama e Saquarema, ao ser questionada
sobre a forma como trata da História Africana e Afro-brasileira em suas aulas afirma:

Trabalhava muito pouco. Eu comecei a trabalhar essas questões


melhor agora a partir das aulas, dos diálogos e das leituras que a gente
tem aqui no mestrado. Porque a gente em sala de aula não tem contato
com essa historiografia mais recente. O que é fruto da nossa formação
que é falha e que agora que está sendo revisada. Então só agora que eu
tô começando a inserir essas questões, trabalhando a resistência e
negra e o movimento. Inclusive essa foi uma questão que a gente
debateu na reunião sobre a reforma curricular na rede de Araruama.
Essa questão da afirmação do negro tem que ser inserida pra eles
desde pequeninhos. Pra eles entenderem que não foi só a escravidão e
que a História do negro inclusive no pós-abolição foi sim uma
História de resistência de valorização e de luta e não de submissão
como vem sendo contada todos esses anos. Essas coisas levam a
gente a pesar o que que é realmente importante ensinar? O que é
relevante pra esse aluno? Se a gente tem um quantitativo bem
expressivo de alunos negros por que a gente não conta essa História
do negro? A gente fica bem preso ainda a um currículo que a gente
tem que dar conta e a gente não enxerga que esse negro não tá
aparecendo ainda nesse currículo que é muito falho. E a gente tem que
encontrar saídas pra isso10.

Neste sentido, a fala do professor Jorge Oliveira também traz diversas questões a
serem consideradas :

Pensando no sistema de Educação do Estado do Rio, a gente tem que


cumprir lá o famoso currículo mínimo e a própria história e cultura
africana está diluída em outros temas. A não ser no sétimo ano que
tem lá uma bimestre de África que você pode trabalhar mais a fundo
não só na África já pós século XV colonial mas na África anterior. O
que sempre é um problema por que aí entra a nossa dificuldade. O
que nós tivemos em nossa formação sobre a África antes do século
XV ? Nada, então a gente vai lendo e aprendendo junto.11

No que se refere aos conteúdos do pós-abolição o professor afirma :

10
Entrevista concedida por Ana Morais professora de História da rede estadual no município de
Saquarema e na rede estadual no município de Araruama. Entrevista realizada em 06/07/2015
11
Jorge Oliveira 25/06/2015

65
... Então é difícil até pela própria obrigatoriedade do currículo mínimo
onde quando acaba a escravidão o negro desaparece um pouco. Eu
consigo falar um pouco desse Pós-abolição, quando acaba a
escravidão esse negro que é liberto o que ele faz, então tento mostrar
um pouco isso, que vai no máximo até Primeira República e acaba por
ai. Depois já vem Vargas, Ditadura, João Goulart e o negro vai se
diluindo nisso aí. E aí entra muita coisa também, tempo etc.. Eu
sempre falo pros meus alunos, isso eu deixo bem claro que a gente
faz escolhas. Não da pra falar de tudo essa semana eu tive dois
tempos pra falar de Vargas. O que eu escolho pra falar de Vargas? Aí
a gente acaba indo só no básico.12

A fala dos dois professores acima traz algumas das principais questões
enfrentadas pela maioria de nós professores em nosso cotidiano ao lidar com o ensino
de História da África e da Cultura Afro-brasileira. Além das deficiências em nossa
formação, os currículos oficiais também são falhos, pois não apresentam estas questões
ou quando apresentam é de forma superficial com a História da África sempre
submetida a História europeia e a participação dos negros na História do Brasil sempre
ligada a escravidão.

O tempo também tem sido um grande obstáculo. Conforme ressaltou o professor


Jorge Oliveira, nós fazemos escolhas. O nosso trabalho exige uma seleção prévia do que
vamos ou não privilegiar nas aulas. Tomando este processo de escolha em um sentido
mais amplo cabe ressaltar o que a professora Ana Maria Monteiro chama de processo de
axiologização do conhecimento:

No caso da História, esse processo de axiologização é inerente


também ao processo de produção do saber acadêmico, expressando
opções e afinidades dos pesquisadores. A axiologização representa a
opção feita no que tange a dimensão educativa, podendo expressar-se
através da seleção cultural- ênfases – omissões-negações, através de
aspectos inerentes ao chamado currículo oculto e também as formas
como os professores mobilizam os saberes que ensinam
(MONTEIRO, 2003, p. 9).

Este processo se faz presente em diversos momentos desde a elaboração dos


currículos oficiais e o estabelecimento da carga horária das disciplinas até as escolhas
feitas pelo professor em sala de aula. Os professores conseguem tratar de certas
temáticas em projetos específicos fora da rotina escolar, mas no cotidiano costumam
deixar de lado estes mesmos temas por não considerá-los tão importantes. A História da
África fora da dominação europeia e o pós-abolição, são recorrentemente

12
Jorge Oliveira 25/06/2015

66
negligenciados dentro deste contexto, pois estamos habituados a privilegiar uma
História Política, eurocêntrica e protagonizada pelos brancos. Reconhece-se a
importância do negro mais não se valoriza o seu protagonismo.

Diante desta realidade a fala da professora Ana Morais é bastante pertinente ao


chamar atenção da necessidade de se construir um currículo no qual a História ali
presente seja uma História com a qual o aluno se identifique.

3.2 O LIVRO DIDATICO: CRÍTICAS E FORMAS DE UTLIZAÇÃO:

Neste sentido, trabalhar o pós-abolição nas aulas de História, destacando o


protagonismo negro nas lutas pela abolição e ao longo de todo o período republicano até
os dias atuais é uma forma de criar laços de identidade e pertencimento entre os alunos,
através da ressignificação da memória que eles trazem desde a educação infantil
baseada no senso comum.

Um dos principais instrumentos utilizados para isto é o livro didático. Foi pedido
para que cada um dos professores entrevistados desse a sua opinião sobre o livro
analisado tendo em vista os seguintes aspectos: Se houve processo de escolha e se o
professor participou; pontos positivos e negativos do livro; a forma como utiliza o livro
em sala de aula em geral e em relação aos conteúdos do pós-abolição.

Durante as entrevistas houve uma divergência de opiniões em relação ao livro


analisado. O professor Alberto Silva afirmou não utilizar o livro didático e sim um
material próprio e tão pouco participou do processo de escolha. O mesmo ocorreu com
o professor Jorge Oliveira, que fez a seguinte crítica:

A impressão que eu tenho desse livro é que ele é bom demais.


Passou do limite da realidade que a gente tem de escola
principalmente na escola pública. Mas o livro é excelente, tanto que
eu indico ele para um grupo, que eu tenho lá na escola de Paracambi,
de estudos dos alunos do terceiro ano que se reúne sempre depois das
aulas para estudar. Então eu indico a leitura desse livro para eles. O
livro tem muito conteúdo, é um conteúdo atualizado, mais ou menos
reflexivo, não gosto muito dos exercícios. Você tem exercícios ali
diretos, aquela parte com perguntas bem diretas e depois alguns
exercícios com fontes e as questões de vestibular, mas a aplicabilidade
dentro de sala de aula no cotidiano pra mim é zero. Não funciona. Nas
turmas que eu uso fica apenas como indicação de leitura, um ou outro
exercício, uma ou outra fonte. O livro tem poucas reproduções de
fontes históricas dentro dele e eu gosto muito de trabalhar com isso.

67
Então em sala de aula, se tratando do contexto da escola pública ele é
absolutamente inviável. Mas no sentido oposto, ele é inviável por que
é muito bom vamos dizer assim. Ele não tem uma linguagem muito
fácil, muito simples. Tem muito texto, o que pra gente é ótimo mas
para os alunos não chega até eles. Eu não estava na escolha do livro,
se não teria optado por livros com uma linguagem mais simples e mais
direta. Esse livro ele talvez tenta mudar as coisas por cima, eu acho
que primeiro a gente tem que começar a tentar mudar o aluno para
depois ele conseguir receber um livro desse.13

Já a professora Ana Morais apresentou uma opinião oposta :

Um dos motivos que me fez escolher esse livro junto com os


professores também, porque eu não escolhi sozinha, foram as
atividades propostas do livro que é um critério importante. Eu também
gosto de avaliar muito as imagens que tem que ser claras também e no
geral o aluno rejeita o livro muito pesado com muitas páginas então os
principais critérios foram esses. Mas com relação ao uso do livro em
sala de aula ele é um livro que atende as minhas necessidades. Eu faço
um uso diferenciado do livro, eu utilizo mais as atividades extras, a
seção reflexões e alguns exercícios. Eu não faço os alunos lerem o
livro na sala de aula só pequenas partes do livro e pra isso ele me
atende bem. Inclusive a gente tem discutido bastante essa questão do
Movimento Negro aqui no mestrado. Aí como eu quis dialogar com
os alunos rapidamente sobre a Frente Negra e eu vi que tinha um box
lá na seção reflexões era um breve texto falando sobre o que era a
Frente Negra Brasileira e qual participação deles na política e na
sociedade. E aí tinha uma questão de reflexão logo abaixo do texto e
eu pedi que eles fizessem essa leitura e respondessem essa questão.
Para que eles pelo menos tivessem esse conhecimento, porque a gente
também passa muito rápido e costuma trabalhar só o integralismo, o
PCB e a ANL e a Frente Negra nunca aparecia. Esse inclusive é um
fator que eu sempre observo nos livros que atividades alternativas que
ele pode me oferecer além do texto principal.14

Na primeira crítica nota-se uma clara dificuldade do professor em utilizar o livro


no cotidiano devido principalmente a dificuldades encontradas pelos alunos em lidar
tanto com a leitura quanto com os exercícios. Este professor tem uma abordagem que
envolve atividades mais reflexivas como a análise de fontes e que ao mesmo tempo
sejam simples na linguagem, um dos principais pontos de crítica em relação à coleção.

No entanto a forma como a História Africana e Afro-brasileira é tratada na


coleção, bem como as referências feitas ao Movimento Negro no pós-abolição não são
mencionadas por este professor. Este é um aspecto bastante positivo do livro, pois

13
Jorge Oliveira 25/06/2015
14
Ana Morais 06/07/2015

68
mesmo se tratando de referências simples e superficiais em boxes, estas podem ser
utilizadas como ponto de partida para uma discussão mais ampla ou para introdução
desse conteúdo. A fala da professora Ana Morais exemplifica isto. Quando o conteúdo
está presente no livro, ainda que de forma simples e resumida, e o professor faz uso
deste conteúdo, isto contribui para que os alunos o considerem legítimo pois a discussão
está inserida na sua rotina de atividades.

Ao comparar as duas opiniões observa-se que a funcionalidade do livro varia


de acordo com o público, o perfil do aluno, que é diferente em cada escola e cada
região. Alguns alunos respondem melhor a certos tipos de atividades do que outros.
Além disso, o hábito de leitura e o nível de letramento também conta muito. De fato este
livro possui um conteúdo extenso e denso o que pode ser uma dificuldade para certos
alunos. Os exercícios são bem simples e diretos, porém são bem tradicionais, ligados à
memorização e à produção escrita, o que dependendo da abordagem do professor pode
ser considerado pouco produtivo.

Um exemplo destas diferenças se faz presente na fala da professora Cristina Lima:

Houve um processo de escolha sim. Todos os professores


concordaram pela linguagem, eu achei uma linguagem mais fácil. Ele
é rico em conteúdos sim, mas o que me influenciou também foi o fato
dos autores serem todos professores da UFF, já que fui aluna de todos
eles. Então eu concordei, claro pelo conteúdo em si e pelos exercícios
também. Na verdade a minha primeira opção seria o livro do Ademar,
esse seria minha segunda opção. Mas em relação aos outros eu achei
que esse tinha uma linguagem um pouco melhor. Ainda não
corresponde ao letramento dos nossos alunos. De qualquer forma tem
horas por exemplo que acho ele muito resumido, tem hora que ele da
mais importância a certos temas o que acho que tem muito haver com
as linhas de pesquisa dos próprios autores. Esse livro é bom porque
traz já a Frente Negra Brasileira, é num box . Em relação ao uso do
livro eu tenho duas realidades. No Paulo de Assis, a escola estadual,
eu não consigo usar o livro mas na Faetec sim. No estado além de não
ter livros suficientes pra todos, eles tem muita dificuldade na leitura e
eu acabo produzindo um material, uma apostila minha e levando pra
eles. Já a Faetec tem uma cultura de se trabalhar o livro inteiro e isso
eu não sei se é tão bom. Lá o livro é o principal instrumento e isso
deixa a gente meio preso. Eu costumo usar o livro para eles
pesquisarem e também os exercícios do próprio livro principalmente
os questionários e os exercícios do ENEM. Lá os alunos tem uma boa
aceitação, o livro funciona, os alunos gostam de usar ele na sala e lá o
livro realmente faz parte da cultura da escola. Embora eu tenha tido
resultados bem melhores na escola do estado, onde o livro não é
presente do que na FAETEC. No geral os alunos são mais apáticos
69
em relação às aulas, e a própria escola não da muita abertura para as
discussões, diferente do Estado onde você acaba tendo mais liberdade
pra trabalhar. Eu dei o livro todo? Sim, mas em questão de
aprendizagem eu não gostei muito do resultado.15

Deste modo a atuação dos professores, a mobilização de saberes e suas


ferramentas e estratégias de ensino não são de forma alguma homogêneas. A mesma
professora atua de formas distintas em cada uma das instituições de ensino em que
trabalha buscando adequar seus métodos de trabalho as características e necessidades
dos alunos. A professora destaca uma questão levantada pelo professor Jorge Oliveira
referente ao despreparo dos alunos. O êxito no uso de qualquer livro didático está
diretamente relacionado aos hábitos de leitura dos estudantes, o que pode variar de uma
escola para outra ou até mesmo dentro de uma mesma turma.

Além disso, a professora Cristina Lima destacou a importância do livro


didático como parte da cultura escolar. Este fator é de suma importância. Durante muito
tempo o livro didático foi um dos elementos mais importantes desta cultura e a principal
ferramenta de ensino-aprendizagem. Esta realidade ainda é predominante na maioria das
escolas, sobretudo no ensino privado. No entanto, há um número cada vez maior de
professores que tem optado por desenvolver um material próprio e utilizado o livro
didático de formas diferenciadas e não como mais como a principal ferramenta.

Ao afirmar que os resultados obtidos na escola em que o uso do livro era


constante e obrigatório eram piores do que os da escola em o livro não era utilizado, a
professora chama atenção para um outro fator. O livro didático não é uma ferramenta
autossuficiente, ele necessita da mediação do professor.

Neste sentido reafirmo a importância de se discutir criticamente o conteúdo


presente nos livros didáticos. Cabe ao professor este papel de promover entre os alunos
a reflexão sobre os conteúdos destacando a perspectiva histórica adotada e levando
informações complementares que ampliem o conhecimento dos alunos.

Ainda no que se refere à fala da professora Cristina Lima, ela foi a única das
entrevistadas a reconhecer a importância dos autores no processo de escolha dos livros.
O fato de conhecer o trabalho dos autores e suas linhas de pesquisa fez com que ela
tivesse um olhar diferenciado sobre a forma como os conteúdos foram abordados e

15
Cristina Lima 16/09/2015

70
distribuídos. Tal fator merece destaque. Os livros didáticos, não são produções neutras
e a formação e perspectiva dos autores influencia diretamente em seu conteúdo.

3.3 O RACISMO NO COTIDIANO ESCOLAR :

Por fim a última questão a ser abordada se refere a as relações étnico-raciais no


cotidiano escolar. Foi perguntado aos professores entrevistados se eles identificavam
casos de racismo em suas escolas e todos afirmaram que sim. Este é um dado bastante
significativo e demonstra que apesar de todas as conquistas do Movimento Negro dentro
e fora do âmbito da educação ainda há um longo caminho a percorrer. Neste sentido
cabe destacar o relato da professora Ana Morais :

Eu faço um trabalho com os meus alunos desde o ano passado de


formar um grupo no Whatsapp de História e ali a gente contribui um
pouco com o material do curso, a gente discute algumas coisas no
grupo e deixo liberado também para que eles dialoguem brinquem e
eu fico lá quieta na minha não fico chamando atenção não. Eu não fico
fazendo aquela mediação inclusive por que eu uso como instrumento
pra conhecer essa cultura desses jovens então eu fico mais observando
do que outra coisa. Eu lanço lá as informações da aula, um link de
vídeos, alguma coisa assim e fico lá observando o que eles estão
conversando. E no ano passado eu identifiquei sim um caso de
racismo sim numa turma de terceiro ano 3002. Eu nunca tinha
identificado isso na turma na sala de aula, mas identifiquei no grupo
nas brincadeiras com esse aluno. Tinha coisas bem pesadas na
brincadeira e aí eu comecei a observar esse aluno na sala de aula. Ele
tina sido meu aluno no segundo ano também e eu pude identificar que
ele aceitava aquele tipo de brincadeira pra não ser excluído do grupo.
E assim foi muito tarde, eu identifiquei isso muito tarde e aí já era o
quarto bimestre a gente já estava finalizando as atividades. Como eu
comecei a usar esse instrumento nas turmas esse ano logo no início a
gente pode sim fazer um trabalho de identificar ações de bulling e
racismo. E nós discutimos nas nossas ultimas aulas em que nós
trabalhamos essas questões de valores. Eles tocaram nesse assunto e
eu até inclusive compartilhei essa história com os alunos pra deixar
claro pra eles o quanto é prejudicial para uma pessoa carregar essa
marca desse preconceito ao longo da vida. 16

O relato desta professora demonstra que os conflitos vivenciados em nossa


sociedade são os mesmo vivenciados nos espaço escolar. O racismo ainda persiste e
precisa ser discutido. Nós professores observamos este tipo de situação todo o tempo,
no entanto ainda somos poucos os que se propõem a discutir, a problematizar e a fazer
com que os alunos reflitam sobre isso.

16
Ana Morais 06/07

71
É neste contexto que o Ensino de História tem um importante papel. A escola deve
ser um espaço de aprendizagem, mas também de problematização, de desconstrução de
estereótipos, de construção e ressignificação de memórias, bem como de combate ao
preconceito, à violência e à intolerância.

72
CAPITULO 4 : O PÓS-ABOLIÇÃO NAS AULAS DE HISTÓRIA: SUGESTÕES
DE COMO TRABALHAR ESTE CONTEÚDO.

Neste capítulo serão apresentadas algumas sugestões de atividades nas quais os


professores podem inserir o conteúdo e as discussões sobre o Pós-abolição e o
Movimento Negro no cotidiano de suas aulas. Todas as atividades aqui propostas foram
realizadas por mim na escola da rede estadual em que trabalho, portanto ao
compartilhar estas experiências procurei reforçar a ideia de que é possível trabalhar
estes conteúdos a partir de atividades simples e que estes exemplos podem contribuir de
alguma forma para o trabalho de outros professores em suas aulas.

As atividades aqui propostas foram realizadas com turmas de terceiro ano do


Ensino Médio, pois de acordo com o Currículo Mínimo seguido pelos professores da
rede estadual, é nesta série que estes conteúdos estão inseridos. No entanto todas estas
sugestões podem ser utilizadas com turmas de nono ano do Ensino Fundamental cujo
conteúdo e períodos históricos abordados são semelhantes, ou em qualquer momento
em que o professor achar oportuno introduzir estas discussões independente da série ou
currículo.

A primeira experiência a ser abordada corresponde a um plano de aula feito e


avaliado para uma disciplina cursada por mim durante minha trajetória neste curso de
Mestrado. A proposta foi colocada em prática com resultados bastante positivos.

Em artigo escrito em 2012 para a Revista História Hoje, a professora e


pesquisadora Verena Alberti traz diversas possibilidades de atividades a serem
realizadas nas aulas de História que tratam de questões como: as relações raciais no
Brasil, os significados do sistema escravista e a História e cultura afro-brasileira de um
modo geral . Foram várias as propostas que considerei interessantes, porém uma em
especial chamou minha atenção : o uso de biografias de africanos escravizados e seus
descendentes como fontes de pesquisa e desenvolvimento de atividades com os alunos
da Educação Básica ( ALBERTI, 2012, p. 73-76) .

Esta proposta é interessante pois desperta nos alunos o interesse pela pesquisa,
bem como pela forma como a História e a memória são construídas através do contato e
da análise de fontes históricas, neste caso as informações biográficas. O uso das
biografias também se destaca pela fácil aplicabilidade no cotidiano das aulas, na

73
medida em que não requer grandes recursos materiais, que muitas vezes não estão
disponíveis nas escolas. Trata-se de uma atividade simples, porém riquíssima e que
possibilita inúmeros temas para discussão e reflexão.

Deste modo, foi a partir desta proposta que elaborei esta sugestão de atividade,
adaptando-a para a realidade da escola estadual em que atuo e neste caso ao conteúdo da
série escolhida. Segue abaixo o plano de aula com as informações especificas:

Unidade: A Era Vargas No Brasil

Bimestre: 2º Série : 3º ano do Ensino Médio

Aula/tema: O movimento negro no Brasil na primeira metade do século XX

Carga Horária Prevista das aulas: 1h e 40 min ( 2 tempos )

Objetivo Geral: Promover a reflexão acerca da atuação do Movimento Negro no Brasil


no século XX à partir da análise de biografias de seus membros.

Objetivos Conteúdos Procedimentos Recursos e Duração


Específicos didáticos Equipamentos

-Caracterizar o -Principais grupos políticos - Aula expositiva. -Ficha com 30 min

cenário político-social atuantes entre eles a Frente resumo do

durante o Governo de Negra Brasileira (FNB). conteúdo

Getúlio Vargas. distribuída aos


alunos.

-Analisar as fontes -Fontes pesquisadas pelos -Preenchimento de uma -Uso do material

escolhidas grupos. Biografias de ficha de análise das fontes pesquisado


membros atuantes no escolhidas por cada grupo. pelos alunos e a 20 min
permitindo reflexões
Movimento Negro Brasileiro. Os grupos foram ficha fornecida
acerca de sua
organizados e suas pelo professor.
construção e
respectivas fontes
características.
escolhidas na aula anterior.

74
- Promover a troca de - Material produzido e - Apresentação das -Uso do material 30 min
informações sobre as exposto pelos alunos durante informações pelos grupos pesquisado
para turma seguido de pelos alunos e a
fontes bem como a a realização da atividade.
debate mediado pelo ficha fornecida
importância de
professor pelo professor.
conceitos como o Pós
Abolição no Brasil e
a construção da
memória.

20 min

- Refletir acerca não - Material escrito elaborado - Produção de um texto - Texto escrito
só da importância do pelos alunos ( texto). escrito pelos grupos no produzido
movimento no Brasil qual são colocadas as pelos alunos.
no século XX do que impressões sobre a
foi exposto e atividade realizada e
debatido na aula . sobre os temas
abordados ao longo da
aula.

Observação : Os alunos serão avaliados ao longo de toda a aula em cada etapa de


desenvolvimento das atividades propostas.

Roteiro para a análise das Fontes :

Personalidade Histórica pesquisada:

I- Identificação :

1- Tipo da fonte :
2- Data :
3- Local :
4- De onde a fonte foi retirada ? Cite os livros ou sites utilizados na pesquisa :

75
II- Caracterização :

1- A qual personalidade a biografia se refere e por quem foi escrita?

2- Destaque três elementos presentes na biografia que o grupo considerou


interessantes:

3- Que contribuições a personalidade analisada trouxe para o Movimento Negro ?


Você/ grupo já tinha ouvido falar sobre a personalidade pesquisada?

A turma foi divida em quatro grupos, cada grupo focou responsável por trazer
informações sobre uma personalidade que se destacou no Movimento Negro durante o
século XX seguindo a seguinte divisão : grupo 1 : Abdias Nascimento; grupo 2 : Ruth
de Souza; grupo 3 : José Correia Leite e grupo 4 : Lélia Gonzalez. A escolha destas
personalidades foi feita levando em consideração não somente sua importância
histórica e atuação política, social e artística, como também a quantidade de
informações disponíveis a respeito de suas trajetórias. Desta forma foi possível que os
alunos realizassem a pesquisa proposta sem grandes dificuldades.

A experiência que tive ao realizar esta atividade trouxe resultados bem


positivos. As informações pesquisadas pelos alunos consistiram basicamente em
material retirado da internet de sites variados. Neste sentido, na prática, a pesquisa
acabou sendo realizada a partir de um único tipo de fonte ( textos escritos e algumas
imagens ). No entanto isto não comprometeu o objetivo principal da atividade.

A grande maioria dos alunos nunca tinha ouvido falar das personalidades
pesquisadas, nem dos grupos e instituições das quais elas fizeram parte. Neste contexto,
tanto o preenchimento da ficha quanto o debate, no qual eles puderam trocar as
informações pesquisadas, permitiram que os alunos ampliassem a sua perspectiva
acerca do que é o Movimento Negro e de como este movimento continuou se mantendo
ativo após a abolição. Os alunos demonstraram surpresa e bastante curiosidade em
conhecer esta História que não é contada pelos livros didáticos e pela grande maioria
dos professores.

Neste sentido, esta atividade é bem interessante para introduzir as discussões


sobre o papel dos afrodescendentes em nossa História no Pós-Abolição. A maioria dos

76
alunos não tem nenhum conhecimento sobre estas personalidades históricas, tão pouco
o fato de que os negros continuaram a ter um papel importantíssimo em nossa sociedade
ao longo do período republicano. Grande parte dos alunos traz consigo a visão do senso
comum de que o papel dos negros na História do Brasil termina com a escravidão. Neste
sentido, esta atividade serve para, em um primeiro momento, desconstruir esta visão.

Cabe ressaltar que este é um modelo organizado para um trabalho acadêmico,


mas que pode ser facilmente colocado em prática pois não demanda muitos recursos, e
os alunos, pelos menos na minha experiência, conseguem realizar com certa facilidade.

Também é possível adaptar esta mesma estrutura para a realização de outra


atividade utilizando diferentes tipos de fontes como, por exemplo, os jornais da
Imprensa Negra. Neste caso a proposta seria basicamente a mesma só que a partir de um
olhar diferenciado, proporcionando ao aluno um contato mais direto com documentos
históricos, o que geralmente desperta bastante interesse.

Um dos problemas alegados pelos professores entrevistados para esta pesquisa


se refere à questão do tempo. De fato, a carga horária dedicada à disciplina de História
na rede estadual é muito pequena. Tal fator exige que nós professores façamos escolhas.
No entanto há formas bem simples de introduzir estes conteúdos utilizando inclusive o
próprio livro didático.

Um exemplo que costumo utilizar com frequência são os estudos dirigidos.


Nestes casos disponibilizo um texto informativo simples sobre determinado tema
seguido de questões a serem respondidas sobre o texto de forma discursiva. O teor das
questões bem como grau de dificuldade ou reflexão pode variar de acordo com o tema,
nível de letramento e/ou interesse da turma bem como os objetivos a serem atingidos
pelo professor.

Como já foi destacado, esta atividade pode ser realizada a partir de textos do
próprio livro didático. Neste caso a coleção que foi analisada no segundo capítulo desta
dissertação apresenta inúmeras possibilidades. Os textos sobre o Movimento Negro
presentes no livro podem ser trabalhados mais detalhadamente neste formato de estudo
dirigido, servindo como um exercício cotidiano ou como uma forma de avalição
pontuada. Os estudos dirigidos podem também ser seguidos de um debate mediado pelo

77
professor. Esta é uma atividade base que poder ser utilizada das mais diferentes formas
dependo da abordagem do professor.

Outro exemplo de atividade realizada por mim no ano passado com as turmas do
terceiro ano do Ensino Médio se refere a um seminário sobre o Movimento Negro. A
ideia de realizar esta atividade se deu a partir das aulas expositivas em que mencionei o
tema e percebi que os alunos se interessaram em saber mais a respeito. A pesquisa para
esta dissertação também contribuiu para realização deste trabalho. As pesquisas e a
apresentação dos trabalhos possibilitaram o enriquecimento da minha análise a partir,
também, de minha experiência com os meus alunos.

A principio este seria um trabalho avaliativo para a minha disciplina, porém os


professores de Geografia e Sociologia se interessaram pela ideia e as apresentações dos
trabalhos se tornaram uma aula interdisciplinar em que cada professor avaliou os
trabalhos dentro das suas disciplinas e participou do debate com considerações sobre a
questão racial e atuação do Movimento Negro a partir de suas respectivas áreas.

Esta foi uma atividade realizada em duas aulas, além do tempo que os alunos se
dedicaram as pesquisas e a elaboração das apresentações. Este não é um trabalho tão
simples quanto as outras opções apresentadas, na medida em que exige mais tempo e
dedicação tanto do professor quanto dos alunos. Porém é algo que pode ser feito em
qualquer escola, basta que haja interesse em desenvolver estas questões.

Aula/tema: O Movimento Negro no Brasil no pós-abolição

Carga Horária Prevista das aulas: 1h e 40 min ( 2 tempos )

Objetivo Geral: Promover a reflexão acerca da atuação do Movimento Negro no Brasil


ao longo do século XX e nos dias atuais.

Descrição da atividade : Os alunos foram divididos em quatro grupos e cada grupo


ficou responsável por pesquisar um tema referente ao Movimento Negro no Pós-
Abolição ( Frente Negra Brasileira, Movimento Negro Unificado, Teatro Experimental
do Negro e a Imprensa Negra ). As apresentações foram seguidas de um debate
mediado pelos professores sobre a atuação do Movimento Negro nos dias atuais. Cada
grupo teve direito a vinte minutos de apresentação e também foi exigida a entrega de

78
um resumo escrito, para as três disciplinas envolvidas ( História, Geografia e
Sociologia).

Aula 1 : A primeira aula foi uma aula expositiva sobre o Pós-Abolição a partir dos
trechos presentes no livro didático sobre este tema.

Recursos utilizados e procedimentos didáticos: livro didático, resumo do conteúdo no


quadro, exposição e debate mediado pelo professor.

Aulas 2 : Apresentação dos trabalhos de cada grupo, seguido por uma debate mediado
pelos professores de História Geografia e Sociologia

Recursos utilizados : Equipamentos de mídia ( data show, som, computador etc.. ) e


recursos visuais ( confecção de cartazes ), exposição do conteúdos sobre os temas
pesquisados pelos alunos e debate mediado pelo professor.

Seguem abaixo algumas imagens das apresentações realizadas pelos alunos

79
80
As imagens se referem aos grupos que apresentaram pesquisas mais completas e
que foram melhor avaliados pelos professores. A atividade em si foi bastante proveitosa.
Embora, neste caso os alunos já tinham um conhecimento prévio sobre a temática
introduzido em aulas anteriores, em cada etapa ( pesquisa, apresentação e debate ) era
possível observar um interesse crescente por parte destes alunos. O Movimento Negro
no Pós-abolição não é um conteúdo comum dentro da História do Brasil que é ensinada
no cotidiano. Deste modo, quando é dado aos estudantes a oportunidade de descobrir
estas Histórias, refletindo e descontruindo estereótipos, há geralmente uma reação bem
positiva. Eles se encantaram com este conteúdo até então desconhecido, e manifestaram
interesse e curiosidade em saber mais não somente sobre a História do Movimento
Negro como também as relações pelas quais eles não haviam aprendido sobre isso nos
anos anteriores.
Ao realizar este trabalho, a grande maioria dos alunos, sobretudo os alunos
negros, puderam criar relações de identitárias com outras figuras históricas que não
estão ligadas diretamente a memória da escravidão. Tal fator tem uma grande
importância para estes estudantes no processo de construção e ressignificação de
memórias, no qual o Ensino de História é fundamental.

A Secretária Estadual de Educação do Rio de Janeiro ( SEEDUC/RJ ) possui em


seu calendário fixo diversos projetos com temas que devem ser obrigatoriamente
trabalhados nas escolas. Dentre estes está o projeto relativo à Semana da Consciência
Negra realizada sempre no mês de novembro. Esta iniciativa é sem dúvida muito
importante. Os relatos dos professores vistos no capítulo anterior demonstram o quanto
esses projetos podem contribuir para a reflexão dos alunos.

No entanto as experiências mostradas neste capítulo se referem a formas simples


de se trabalhar o conteúdo referente ao pós-abolição nas aulas de História ao longo de
todo o ano letivo. Os projetos tem sua importância, mas é preciso que tanto a História
da África quanto a História Afro-brasileira sejam abordadas também nas aulas de
História com a mesma importância e profundidade que os demais conteúdos. Tal fator
ainda representa um grande desafio para os professores da Educação Básica.

81
CONSIDERAÇÕES FINAIS :

A publicação da lei 10.639 em 2003 representou uma grande mudança na


Educação Brasileira ao trazer a obrigatoriedade do Ensino de História da África e da
Cultura Africana e Afro-brasileira. Houve de fato uma modificação nos materiais
didáticos e nos documentos curriculares, no entanto quando se trata do cotidiano escolar
ainda são encontradas certas dificuldades na aplicabilidade da referida lei.
No que se refere aos materiais didáticos, a análise da coleção História - O
mundo por um fio: do século XX ao século XXI. vol.3 (terceiro ano do Ensino Médio),
trouxe algumas questões interessantes de serem discutidas.
Primeiramente, é notório que apesar de uma proposta diferenciada, o que se
observa na prática é que a coleção mantém aspectos bastante tradicionais. Os autores
mantiveram a concepção de História e tempo baseados na cronologia e na linearidade.
Os marcos temporais são vistos a partir de uma cronologia que ordena e
hierarquiza o progresso das civilizações. E ainda que não seja de forma explícita a
disposição dos conteúdos segue a divisão em grandes períodos ou idades (Antiga,
Média, Moderna e Contemporânea).

A visão eurocêntrica de compreensão da realidade também é predominante. Os


conteúdos das Histórias da África, da Ásia e da América são dispostos nas brechas
deixadas pela História da Europa, tida como geral. O que acontece no mundo europeu
influencia diretamente as outras sociedades, porém o contrário não ocorre. Há uma clara
relação de subordinação entre a História da civilização europeia, mais valorizada, e as
demais, reproduzindo a relação entre colonizador e colonizados.
No que se refere especificamente ao conteúdo, de fato trata-se de um livro
denso, pesado, com textos longos e com uma linguagem difícil para o público a qual se
destina, sobretudo os estudantes da rede estadual que em sua maioria possuem graves
deficiências de leitura e escrita, mesmo estando no terceiro ano do Ensino Médio.
Os exercícios e atividades também seguem esta mesma linha privilegiando os
exercícios discursivos de memorização de conteúdo bem como questões de vestibulares
e do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) . As atividades extras tem o mesmo
padrão, um texto reflexivo seguido de uma atividade que envolve a produção textual
escrita.

82
Na minha experiência enquanto professora da rede estadual, este tipo de
abordagem tradicional não é de todo ruim. Tanto o conteúdo quanto os exercícios e
atividades podem ser adaptados pelo professor para realidade de seus alunos em
diferentes escolas. O livro é um instrumento relativamente fixo, mas que pode ser
utilizado de diferentes formas de acordo com o interesse do professor e da turma.
No que se refere à História e Cultura Afro-brasileira, a participação dos
afrodescendentes em nossa História presente na maioria dos livros didáticos é marcada
por dois elementos: o primeiro diz respeito ao estereótipo do escravo e o segundo as
ausências do pós-abolição.
Neste contexto, partindo do princípio de que os livros didáticos são o principal
instrumento de ensino-aprendizagem de professores e alunos, a forma como os
afrodescendentes são tratados nestes livros influencia a memória a ser construída sobre
a participação destas populações na História do Brasil.
O desconhecimento da multiplicidade e da importância da atuação do
Movimento Negro, bem como das diversas experiências bem sucedidas de
personalidades negras em nossa História, legitima não apenas a memória da violência,
da exclusão e da passividade, como também dificulta a construção de uma identidade
positiva por parte dos alunos.
Tal fator pode inclusive contribuir para a presença do racismo nas escolas. Em
geral, crianças e adolescentes acabam por reproduzir uma atitude preconceituosa, ou
uma visão negativa acerca dos afrodescendentes simplesmente por não compreender a
importância do seu papel enquanto agentes construtores de nossa História.
No entanto, esta coleção apresenta uma realidade um pouco diferente. Foi a
única das coleções entregues para análise em minha escola que apresentou referências a
atuação do Movimento Negro no século XX. De fato se tratam de referências simples,
em boxes, separadas do texto base e como uma informação complementar. Não há a
profundidade e o destaque dado a outros conteúdos considerados mais relevantes e
legítimos, tão pouco constam do conteúdo principal referente à História do Brasil.
Porém, não se pode deixar de lado a importância destes conteúdos se fazerem
presentes ainda que de forma superficial. Isto pode significar o inicio de um processo
ressignificação da História afro-brasileira e da forma com o esta é abordada no âmbito
escolar. Com o passar do tempo esses conteúdos irão ganhar cada vez mais espaço tanto
nos livros e materiais didáticos quanto na fala dos professores durante as aulas.

83
As entrevistas para realizadas para esta pesquisa trouxeram diferentes
profissionais utilizando-se de diferentes métodos e ferramentas de ensino para trabalhar
a História Africana e Afro-brasileira em suas escolas, seja nas aulas, com o uso do livro
didático ou de materiais próprios, seja nos projetos fora da rotina escolar. Tal fator
também é um importante sinal de que estes conteúdos estão conquistando cada vez mais
espaço e legitimidade dentro do Ensino de História.
A maioria dos professores entrevistados apontou a necessidade de se fazer
escolhas em relação ao conteúdo devido ao tempo reduzido das aulas de História,
sobretudo no Ensino Médio. Estas escolhas sempre acabam por privilegiar determinados
conteúdos que são considerados mais relevantes e em sua maioria correspondem a uma
História Política de matriz europeia e protagonizada por brancos.
Tal fato está relacionado às diversas disputas de poder que envolvem a
construção e a legitimação da memória coletiva. A História que se deve lembrar e
consequentemente aprender está ligada a memória de certos grupos sociais e instituições
de poder, excluindo na maioria das vezes o que Michael Pollack denomina de memórias
silenciadas ou subterrâneas. ( POLLACK, 1992 p. 200-2012).
Durante muito tempo a História da África e a História Afro-brasileira foram
relegadas ao esquecimento, presas a estereótipos ligados a pobreza, violência e
submissão. Essas memórias de africanos e afrodescendentes não eram consideradas
legitimas e sua História não era relevante no ensino da disciplina.
No entanto, desde a publicação da lei 10.639 é possível observar um processo
de transformação desta realidade. Gradativamente estas memórias estão se
reconfigurando como positivas e os estereótipos desconstruídos. Contudo, em relação
ao papel dos afrodescendentes na História do Brasil, há bem poucos avanços.
O principal aspecto abordado ainda é a escravidão. O Movimento Negro no Pós-
Abolição ainda é muito pouco destacado nas aulas. O papel dos afrodescendentes em
nossa História enquanto protagonistas de suas lutas e conquistas ainda é desconhecido
por muitos professores não sendo considerado como um conteúdo legítimo da História
do Brasil.
Neste sentido, as noções de dever de memória e reparação (HEYMANN, 2006)
são fundamentais para o processo de ressignificação da memória relacionada à
participação dos afrodescendentes na História do Brasil. Os estudos sobre o pós-
abolição e sobre o Movimento Negro estão inseridos nesse contexto pois representam

84
memórias que ainda são desconhecidas de grande parte da população e que devem ser
resgatadas.

Ao negligenciar toda a participação política, social e cultural dos negros no pós-


abolição e valorizar as experiências ligadas unicamente à condição de escravo e com
pouco ou nenhum protagonismo nos processos históricos, estamos contribuindo para a
legitimação de uma memória negativa e desvalorizada a respeito desse grupo,
dificultando que os alunos criem relações de reconhecimento e pertencimento.
Cabe reforçar que as identidades, assim como a memória não são unificadas e
estão em constante transformação, fragmentação e ressignificação, sendo construídas a
partir da diferença e da relação com o outro (HALL, 2000, p. 108). Deste modo, as
identidades devem ser pensadas como múltiplas e dinâmicas, além de serem construções
históricas que estão constantemente submetidas às disputas no campo do poder. Neste
caso a diferença, peça-chave para a construção identitária, deve deixar de ser vista pelo
prisma da negatividade e da inferioridade.
É importante ressaltar que não parto do princípio de que os saberes produzidos
em sala de aula bem como os conteúdos presentes nos livros e materiais didáticos são os
únicos elementos formadores de uma memória ou construtores de relações de
identidade, diferença e pertencimento. Entretanto, eles representam uma importante
contribuição para imagem que crianças e adolescentes terão sobre determinado assunto
ou grupo social, bem como a forma com estes serão compreendidos, assimilados e
lembrados até a vida adulta.
Diante disto acredito ser suma importância introduzir a participação histórica,
política e social dos afrodescendentes na História do Brasil no Pós-abolição nas aulas,
ainda que através de atividades mais simples ou aproveitando as referências presentes
ou não nos livros didáticos. O conteúdo do livro bem como suas ausências pode servir
de ponto de partida para a reflexão.
Ao trazer o conhecimento sobre a História do Movimento Negro e suas
memórias para a escola no cotidiano das aulas como um conteúdo legítimo de nossa
História estamos contribuindo para o processo de ressignificação da História do Brasil e
para a desconstrução dessa memória negativa em relação aos afrodescendentes que
ainda persiste.

85
REFERÊNCIAS :

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Ana Morais
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89
ANEXOS

90
Roteiro das entrevistas a serem realizadas com os professores para a
dissertação:

- Nome do professor :

- Local onde trabalha :

- Formação do professor / se teve contanto com história e cultura afro-


brasileira durante a formação - como a participação política e social dos
negros na História do Brasil foi abordada?

- Como as questões raciais são tratadas na sua escola , há casos de


preconceito racial no seu cotidiano por alunos e professores

- De que forma a Lei 10.639 é tratada na sua escola , existe algum projeto que
envolva todas as disciplinas ou cada professor trabalha a história e cultura
afro-brasileira de forma individual.

- Quais são os conteúdos trabalhados de história e cultura afro-brasileira pelo


professor ?

- O Professor costuma trabalhar o Pós-abolição? Quais conteúdos e de que


forma?

- O professor costuma utilizar o livro didático? Caso não, justificativa :

- De que forma o professor trabalha o conteúdo referente ao Pós-abolição


presente no livro didático? Caso não trabalhe justificativa

- Como foi o processo de escolha do livro didático na sua escola. A questão


étnico racial teve peso nessa decisão ?

- Possíveis observações/sugestões :

91
Imagem 1- Capa/Folha de Rosto do Livro Didático

92
Imagem 2 – Sumário

93
Imagem 3- Apresentação Manual do Professor p.289

94
Imagem 4 - Apresentação Manual do Professor p.290

95
Imagem 5 – Manual do Professor p. 306

96
Exercícios e atividades propostas

Imagem 6
p. 107

97
98
99
100

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