Dissertação Profhistória - AS MEMÓRIAS DOS JOVENS SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR E A FUNÇÃO SOCIAL DO HISTORIADORE PROFESSOR - Licia Quinan PDF
Dissertação Profhistória - AS MEMÓRIAS DOS JOVENS SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR E A FUNÇÃO SOCIAL DO HISTORIADORE PROFESSOR - Licia Quinan PDF
Dissertação Profhistória - AS MEMÓRIAS DOS JOVENS SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR E A FUNÇÃO SOCIAL DO HISTORIADORE PROFESSOR - Licia Quinan PDF
RIO DE JANEIRO
2016
AS MEMÓRIAS DOS JOVENS SOBRE A DITADURA
CIVIL-MILITAR E A FUNÇÃO SOCIAL DO
HISTORIADOR/PROFESSOR
RIO DE JANEIRO
2016
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovada por:
____________________________________________________________
Profª. Drª. Alessandra Carvalho
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (Orientadora)
____________________________________________________________
Prof. Drª. Sônia Maria de Almeida Ignatiuk Wanderley
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ
____________________________________________________________
Prof. Drª. Samantha Viz Quadrat
Universidade Federal Fluminense – UFF
____________________________________________________________
O presente trabalho trata das memórias que os jovens em idade escolar têm construído sobre a
ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) e o papel do historiador/professor de história
diante disso. Entendemos a memória como um constructo a partir das demandas do presente e
fruto de intensas disputas. Sendo assim, nossa proposta é a de coletar informações a respeito
das memórias que alguns alunos de ensino médio apresentam sobre o período em que o Brasil
foi governado pelos militares utilizando a metodologia do grupo focal. A partir do discurso
dos alunos, a proposta é estabelecer uma análise que permita compreender em que medida
essas memórias se associam com a desvalorização do conceito de democracia e o desrespeito
aos direitos fundamentais da pessoa humana. Finalmente, interessa-nos compreender o papel
do historiador/professor no ensino da ditadura civil-militar, promovendo uma desconstrução
de ideias capaz de fomentar um pensamento crítico entre os alunos que, no limite, promova a
democracia e os direitos humanos como valores fundamentais ao bem da sociedade.
The present work deals with the memories that school-age youth have built on the civil-
military dictatorship in Brazil (1964-1985) and the role of historian / history teacher in this
regard. We understand memory as a construct from the demands of the present and the
result of intense disputes. Thus, our proposal is to collect information about the memories
that some high school students present about the period in which Brazil was governed by
the military using the methodology of the focal group. From the discourse of the students,
the proposal is to establish an analysis that allows to understand to what extent these
memories are associated with the devaluation of the concept of democracy and the
disrespect to the fundamental rights of the human person. Finally, it is important to
understand the role of the historian / teacher in the teaching of the civil-military
dictatorship, promoting a deconstruction of ideas capable of fostering critical thinking
among students that, in the limit, promote democracy and human rights as fundamental
values to Society.
Esse trabalho não se realizaria sem alguns auxílios fundamentais. Sem a confiança e o
trabalho duro da minha orientadora, a professora doutora Alessandra Carvalho, eu certamente
teria estagnado e desistido no meio da pesquisa.
Essenciais foram, nessa trajetória, os professores das disciplinas que cursamos, que
revelaram os caminhos que seriam percorridos por mim nesse trabalho, sempre me instigando
ao debate e à procura por aprofundar os estudos. Nesse momento, agradeço, em especial, às
professoras Juçara Barbosa e Sônia Wanderley, que me serviram e sempre servirão de grande
inspiração.
Não poderia deixar de agradecer aos companheiros dessa jornada, meus colegas de
pós-graduação, que participaram de todos os momentos. Tive a sorte de construir grandes
laços e em quantidade, de maneira que seria injusto citar nomes aqui, com o risco de deixar
alguns de fora. A esses amigos, portanto, o meu muito obrigada pelas conversas, pelos
debates enriquecedores nas aulas, pelas revisões de artigos corridas para não perder os prazos
de submissão, pela companhia nas viagens a congressos e simpósios, enfim, pelo colorido
especial que conferiram ao que vivi durante esse mestrado.
Falando de amigos, meu agradecimento especial fica à equipe do Sobre História
Podcast, projeto que nasceu dentro do curso, da reunião de historiadores mestrandos
interessados pela questão da História Pública e das novas tecnologias. Obrigada por
confiarem em mim para fazer parte desse time e me concederem a oportunidade de aprender
tanto na produção de nossos programas.
Não poderia deixar de agradecer, também, aos meus familiares e amigos de longa
data, por me auxiliarem, incentivarem, compreenderem as ausências e o desespero em certos
momentos. Obrigada, de verdade, por viverem comigo minhas loucuras.
Agradeço ainda ao meu primo Matheus Augusto Quinan, por seu apoio profissional na
diagramação e melhoria das imagens contidas no guia de atividades.
Por fim, meu agradecimento à Capes pelo financiamento desta pesquisa.
Lista de imagens
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 11
1 – O ENSINO DE HISTÓRIA E A MEMÓRIA ................................................................. 18
1.1 O ensino de história hoje ........................................................................................................... 18
1.1.1 Presentismo e história pública........................................................................................... 20
1.1.2 A justiça de transição e o ensino ...................................................................................... 23
1.2 História e Memória ..................................................................................................................... 28
2 – A MEMÓRIA DOS JOVENS SOBRE A DIATADURA CIVIL-MILITAR ........ 36
2.1 A atividade de campo ................................................................................................................. 38
2.1.1. O grupo focal ........................................................................................................................... 39
2.1.2. A aplicação da atividade ........................................................................................................ 40
2.2. A fala dos jovens ........................................................................................................................ 42
2.2.1. O que vem à memória? ......................................................................................................... 46
2.2.2. De onde vêm as informações? ............................................................................................ 48
2.2.3. Ditadura e democracia na visão dos alunos ..................................................................... 49
3 – A HISTÓRIA NA SALA DE AULA: ATIVIDADES PARA REFLEXÃO SOBRE
DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS ............................................................................. .55
3.1. Elaborando as atividades .......................................................................................................... .58
3.1.1. Atividade 1: o conceito de democracia ............................................................................. .59
3.1.2. Atividade 2: direitos humanos ............................................................................................. .70
3.2. Guia online de fontes e informações..................................................................................... ..75
3.2.1 Memórias reveladas................................................................................................................. .75
3.2.2. Memórias da ditadura ............................................................................................................ .76
3.2.3. Memorial da Resistência de São Paulo ............................................................................. 77
3.2.4. Arquivo público do estado do Rio Grande do Sul.......................................................... 77
3.2.5 Resistir é Preciso ...................................................................................................................... .78
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... .80
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. .82
Introdução
Por fazer parte de um passado tão recente e possuir testemunhas ainda vivas, a
ditadura parece sobreviver em nossa sociedade. E talvez, mais do que isso, por diversas
estruturas de seu aparato político, econômico e social ainda se fazerem tão presentes, temos a
sensação de abordar um “passado que ainda não passou”. Contudo, com um olhar mais atento,
é possível enxergar diversas permanências em nossa sociedade de elementos vindos de
tempos bem mais remotos, não apenas do regime militar.
Nesse sentido, enxergamos o ensino de história como tendo uma missão importante de
participar na construção de identidades, no empoderamento dos alunos, na construção da
cidadania. O professor é, nesse cenário, o responsável por trabalhar a questão da história e da
memória entre os jovens, participando em seu processo de construção de conhecimento, mais
especificamente, construção de conhecimento histórico. Isso, inclusive, faz parte das
diretrizes para o ensino de história na educação básica.
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construam seu conhecimento. O capítulo aborda ainda uma característica do momento
contemporâneo em que a sociedade tem uma forma peculiar de lidar com o tempo através do
conceito de regime presentista de historicidade (HARTOG, 2013) em sua rapidez de
circulação de informações. É nesse horizonte que inserimos a quantidade de informações
históricas que os jovens em idade escolar acessam cotidianamente. O historiador tem seu
papel nesse mar de informações, bem como o professor de história ao lidar com esse universo
em sua sala de aula. A partir disso, propomos situar o ensino de história no contexto da
história pública.
Outa questão interessante que envolve esse processo de escolha, é que o critério para
seleção dos aluno foi o voluntariado, e apesar de algumas intercorrências em suas rotinas, os
alunos se mostraram bastante interessados em participar da atividade, bem como orgulhosos
de poderem manifestar sua opinião sobre qualquer que fosse o tema.
14
Cabe destacar que deixamos claro tanto ais diretores como aos alunos, que, apesar de
gravarmos as atividades, as imagens e áudios seriam utilizados apenas para análise dos
pesquisadores e não seriam divulgadas. Por essa razão, apenas alguns trechos dos
depoimentos dos alunos foram transcritos, preservando suas identidades.
Apesar de alguns alunos serem identificados por nomes, não constam do trabalho seus
sobrenomes, nem as instituições de ensino a que pertencem.
Num segundo momento, promovemos uma análise dessas memórias, cruzando-as com
informações de outras pesquisas e buscando compreender de que formas elas se ancoram na
visão de mundo do presente desses jovens.
Esta etapa nos permitiu analisar a questão da ditadura e da democracia na visão dos
alunos. Foi a partir do material fornecido por essa análise que pensamos as carências de
reflexão para promover uma ação efetiva que ressignifique o ensino da ditadura civil-militar.
Finalmente, o terceiro capítulo aborda a história na sala de aula e propõe ações que
podem ser realizadas pelo professor a partir das necessidades que identificamos no capítulo
anterior. Utilizamos dois eixos temáticos: democracia e direitos humanos. O capítulo
apresenta algumas propostas de atividades e enfatiza o protagonismo dos alunos no trato com
fontes e a reflexão sobre os citados temas. Entendemos que isso pode levar a uma aula de
história baseada na desconstrução de fatores naturalizados que representam um entrave ao
alcance da democracia efetiva e do respeito à inviolabilidade dos direitos da pessoa humana.
Elaboramos, ainda, um guia online, comentando alguns sítios virtuais que fornecem
fontes interessantes para estudo e pesquisa de documentos que podem ser utilizados na
elaboração de diversas outras atividades que intentem a reflexão sobre o tema. Consideramos
importante essa indicação, visto que cada professor deve adequar atividades às necessidades e
condicionantes de suas salas de aula.
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CAPÍTULO 1: O ENSINO DE HISTÓRIA
E A MEMÓRIA
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1.1. O ensino de história hoje
Essa reforma curricular concebe a educação escolar como tendo um papel fundamental no
desenvolvimento das pessoas e da sociedade, sendo um dos elementos essenciais para
favorecer as transformações sociais necessárias. […] Além disso, as transformações científicas
e tecnológicas, que ocorrem de forma acelerada, exigem das pessoas novas aprendizagens, não
somente no período de formação, mas ao longo da vida. Há também a questão da necessidade
de aprendizagens ampliadas – além das novas formas de aprendizagem. […] Com relação ao
mundo do trabalho, sabe-se que um dos fatores de produção decisivo passa a ser o
conhecimento e o controle do meio técnico-científico-informacional, reorganizando o poder
advindo da posse do capital, da terra ou da mão-de-obra. O fato de o conhecimento ter passado
a ser um dos recursos fundamentais tende a criar novas dinâmicas sociais e econômicas […].
(BRASIL, 2001: 9)
17
Como recorte temático, trabalharemos com o ensino da ditadura civil-militar no Brasil
(1964-1985), partindo da memória que os jovens têm construído desse processo e da função
do professor de história em meio a isso.
Para aprofundar essa ideia e antecipar o debate que iniciaremos em torno da questão
da memória construída, vale mencionar a citação de Boaventura Souza Santos:
A história existe em diferentes instâncias, independentemente da produção sobre ela. Ela existe
como espaço de experiência e como campo de conhecimento sobre esse espaço. Em ambas as
instâncias, em termos discursivos, a história se constitui em linguagem natural, não
formalizada. Em ambas, estabelece narrativas sobre esse mundo da experiência, ao ser
“narrativizada”, a história se aproxima da memória social [...] (ROCHA, 2014:38)
18
Muitos autores trabalham com o conceito de cultura histórica para explicar essa
interação entre as diversas formas de divulgação do conhecimento histórico, dentre eles a
escolar. A ideia de cultura histórica seria a de que o aluno aprende história não só na sala de
aula, mas fora dela. E a interação entre essas informações que vêm do contexto escolar e
extraescolar resultam na formação de um universo cultural no qual ele está imerso e a partir
do qual elabora sua própria visão da história. De qualquer maneira, nos atendo ainda ao artigo
de Helenice Rocha, ressaltamos as seguintes ideias:
Trabalhamos nesse texto com o pressuposto de existência de uma cultura histórica que abarca
diferentes esferas de produção e usos do passado que mobilizam história e memória. Uma
diversidade de manifestações e produtos, de diversos agentes, resultam dessas esferas em
busca de democratização de conhecimentos históricos. (ROCHA, 2014:49).
Tais estudos chegaram ao Brasil, sobretudo, pelos escritos de Jörn Rüsen sobre cultura
histórica e consciência histórica e ganharam força com a produção de autores como Oldimar
Cardoso, Luis Fernando Cerri e Rafael Saddi, por exemplo, sendo apropriados pela maioria
dos estudiosos do ensino de história. A proposta desses autores é aproximar a história
acadêmica da história escolar, não entendendo que os alunos da educação básica se
comportarão como pequenos historiadores, mas estimulando-os a compreender a dimensão de
construção a partir do presente no ofício do historiador. As palavras de Fernando Seffner
deixam uma grande pista do que ora afirmamos, em seu artigo O que pode o ensino de
história?, quando o autor cita o uso do documento e sua finalidade na sala de aula, por
exemplo:
Partimos da suposição de que o uso de fontes no ensino de história pode ser uma estratégia
adequada e produtiva para ensinar história a indivíduos que não têm como objetivo se tornar
historiadores, mas para os quais o conhecimento da história pode fazer muita diferença na
compreensão do mundo em que vivem e, portanto, na construção de seus projetos de vida.
(SEFFNER, 2008:114)
19
Alinhavando tudo isso, defendemos que essa nova dinâmica de circulação de
informações da nossa sociedade, tributária da globalização e das novas tecnologias, coloca
questões ao historiador/professor de história. É necessário compreender que o aluno constrói
sua compreensão da história baseado nas informações que recebe tanto no espaço escolar
como fora dele. E é dever do historiador trabalhar com as mais diversas fontes históricas
fornecendo elementos para que esse aluno se posicione de forma crítica diante das múltiplas
possibilidades de verdade possíveis, a fim de se inserir na sociedade como cidadão e construir
sua identidade.
20
autores, então, é possível entender melhor essa ideia de regime de historicidade presentista ou
presentismo e de um fetichismo pela história.
Todo o processo que deve ser examinado cuidadosamente pelo historiador ocorre
quando aquilo que era produto midiático torna-se “fato histórico”. Se já se produz um
significado ao se produzir a fonte, outro ainda é produzido ao se analisá-la. Tornamos a
21
enfatizar: “Elementos simbólicos são colocados em ação tanto no momento da escritura do
novo evento na cena pública, como em sua inscrição no tempo. ” (MENESES, 2014: 240).
Ainda assim, é necessário lembrar que a escolha do que vai ser transformado em
história, aquilo que vai ser lembrado como marco memorial, não é ingênua e nem
despretensiosa. Repetimos aqui a ideia de que toda memória é marcada por lembranças e
esquecimentos seletivos.
Não se pretende chegar a conclusões finais frente a um tema tão complexo, que já
suscitou tantos trabalhos importantes na historiografia. A proposta é uma reflexão sobre a
função social do historiador nesse contexto. Na realidade, pode-se entender que essa função
está diretamente relacionada à questão da História Pública.
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Cabe compreender que o fazer história não é mais trabalho exclusivo do historiador,
fazendo emergir a ideia de circularidade na produção do conhecimento histórico. Poderíamos
nos perguntar. Trocando em miúdos, qualquer sujeito produz conhecimento histórico a partir
das informações que possui. O que cabe ao historiador é trazer sua chancela para esse
conhecimento produzido a partir da dimensão crítica, inserindo mesmo a ideia da criticidade
sobre a veracidade das fontes e, principalmente, sobre a intencionalidade por detrás de cada
fonte. Cabe, enfim, ao historiador, preparar cada sujeito para historicizar uma fonte, dentro
das suas possibilidades como leigo. E a sala de aula de história é espaço privilegiado para o
desenvolvimento desse trabalho.
1
Segundo Renan Honório Quinalha, justiça de transição seria o termo concebido pela Ciência Política e pelo
Direito Internacional que envolve todas as medidas políticas e jurídicas tomadas durante o período de troca de
um regime autoritário e ditatorial para um regime democrático. Cf: QUINALHA, Renan Honório. Justiça de
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governamentais nos níveis federal, estadual e municipal. Entre essas iniciativas públicas, está
a Comissão Nacional da Verdade (CNV)2, responsável por apurar graves violações de
Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Segundo
seu relatório final,
É interessante observar que a CNV “ampliou a agenda por memória, verdade e justiça
no interior da sociedade, buscando alcançar, especialmente, os oitenta por cento da população
que nasceram depois do golpe militar” (BRASIL, 2014: 28). O relatório final enfatizou, ainda,
a importância de promover ações voltadas para a construção da memória sobre os anos
ditatoriais através de atividades pedagógicas. Isso fica claro na recomendação número 16, das
29 propostas pelo relatório: “Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na
educação” (BRASIL, 214:970)
2
A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. Em
dezembro de 2013, o mandato da CNV foi prorrogado até dezembro de 2014 pela medida provisória nº 632.
24
desconhecimento ou alienação de boa parte da sociedade brasileira” (PADRÓS;
GASPAROTTO, 2010) em relação aos ocorridos durante o regime militar e seus
desdobramentos, tanto nos campos financeiro e social como, e principalmente, no que tange
às perseguições e punições impetradas contra a resistência. Segundo Padrós e Gasparotto:
nesse processo não só o historiador, mas também o professor de história da educação básica,
no espaço escolar, é instado a responder e se posicionar diante de variados questionamentos.
Em alguns momentos os alunos demandam informações e explicações; em outros, esperam
que o professor enuncie a “verdade” em meio a conflitantes histórias advindas de diferentes
fontes como sites de internet, filmes, programas de TV ou conversas com familiares. [...]
(CARVALHO, 2014)
Por certo é difícil, senão impossível, definir com precisão o quanto a experiência social de
regimes autoritários do passado se presentifica de modo a obstaculizar, ainda hoje, a melhora
na qualidade da democracia nesses países. [...]. Contudo, é forçoso admitir que o presente
dessas nações ainda se apresenta bastante marcado pelo signo da violência, nos mais diversos
âmbitos da vida social e não apenas na relação do Estado com a sociedade civil. Um dos
exemplos mais notórios é o modus operandi e as torturas praticadas pelas polícias brasileiras,
mas não se pode olvidar das microrrelações de autoritarismo imersas no cotidiano, que
perpetuam violações sistemáticas aos direitos fundamentais de diversas minorias.
(QUINALHA, 2013:133)
3
Vale ressaltar que o processo de transição democrática no Brasil se deu não por uma transformação da
sociedade, mas por uma “conciliação pelo alto” entre os setores da burguesia que já ocupavam o poder e os
militares. Cf. FERNANDES, 1986
26
O papel de garantir a consolidação democrática e a superação desses “entraves”
herdados da experiência de autoritarismo ficaria a cargo da Justiça de Transição, que segundo
Ruti Teitel, pode ser “definida como uma concepção de justiça associada a períodos de
mudança política, caracterizada por respostas legais para confrontar abusos dos regimes
repressivos anteriores. ” (TEITEL, 2013:134) Seguindo os caminhos da justiça de transição,
ficam estabelecidos alguns direitos das vítimas de graves violações durante o regime
autoritário, bem como os deveres de reparação por parte do Estado. Cabe ressaltar que a
dimensão da reparação é parte essencial da ideia de justiça de transição.
Quinalha identifica alguns eixos principais em torno dos quais se articulariam esses
direitos das vítimas dos regimes. O objetivo aqui é conferir destaque a alguns desses eixos,
que dizem respeito, respectivamente, ao direito à reparação, à memória e à verdade. Isso
afeta, sobretudo, as gerações mais jovens e é exatamente nesse ponto que a escola atinge a
máxima importância. Como entender o ensino de história envolvido nesse processo de disputa
pela construção da memória sobre a ditadura militar, sendo esse processo tão importante para
a sociedade como um todo e tão complexo de ser tratado com a juventude?
Já de saída definimos que não podemos falar mais em ensino escolar de História como uma
variável independente e capaz de equacionar sozinha a questão das aprendizagens históricas. A
história não-escolar, não–formal, é um fator no centro das preocupações e análises, se não
queremos continuar num esforço inócuo de entender e intervir no que vemos e ouvimos.
(CERRI, 2010:267)
27
construção da memória do período. Em suma, é preciso repensar o lugar da sala de aula de
história como espaço de produção de conhecimento e contribuição para o entendimento do
processo de construção da memória. E, nesse sentido, repensar o papel do professor de
história no ensino da ditadura como um braço importante da dimensão de garantia da
reparação, da memória e da verdade.
Josep Fontana apresenta a ideia de que toda análise do passado está calcada em um
projeto social de presente/futuro. (FONTANA, 1998) O mesmo autor, em sua obra História
dos homens, dedica importante espaço à questão das “guerras da história”, às rivalidades e
disputas pelos usos do passado. (FONTANA, 2004) Fica claro, a partir dessas observações,
que o conhecimento do passado é uma construção, e uma construção do presente - as
demandas do presente e suas disputas orientam o “olhar para o passado”.
Seguindo essa trilha, mais que lidar com a memória, cabe ao historiador lidar com a
forma como a memória é construída na sociedade. Segundo Paul Ricoeur 4, a memória
histórica seria o que qualifica algo para um grupo ou sujeito, ainda que ele(s) não tenha(m)
vivido, ou seja, a memória “oficial” de um fato para sujeitos, comunidades ou para toda uma
sociedade. Entretanto, discutiremos esse conceito melhor mais à frente. Vale lembrar que a
memória é marcada por lembranças e esquecimentos seletivos e, por isso, fruto de intensas
disputas em seu processo de construção.
Diante de tudo isso, procuraremos explicar melhor essa relação do historiador com a
memória a partir da observação mais detalhada do que constitui a memória e do que a
diferencia da história.
4
Observação do pensamento de Ricoeur a partir da leitura de RÜSEN, 2010.
28
faz necessário deixar claro sob que definição(ões) de memória seguiremos nossa trilha. É
importante que não restem dúvidas acerca de nossa compreensão do caráter construído e não
essencial da memória.
29
poderia até mesmo deixar de ser quem é por uns instantes, para depois retornar a si mesmo
com os pontos de referência que traz prontos de fora. Para ele,
se pela memória somos remetidos ao contato direto com algumas de nossas antigas
impressões, por definição a lembrança se distinguiria dessas ideias mais ou menos precisas que
a nossa reflexão, auxiliada por narrativas, testemunhos e confidências dos outros, nos permite
fazer de como teria sido nosso passado. Não obstante, ainda que seja possível evocar de
maneira tão direta algumas lembranças, é impossível distinguir os casos em que assim
procedemos e aqueles em que imaginamos o que teria acontecido. Assim, podemos chamar de
lembranças muitas representações que, pelo menos parcialmente, se baseiam em testemunhos e
deduções – mas então, a parte do social, digamos, do histórico na memória que temos de nosso
próprio passado, é bem maior do que podemos imaginar. Isso, porque desde a infância, no
contato com os adultos, adquirimos muitos meios de encontrar e reconhecer muitas lembranças
que, sem isso, teríamos esquecido rapidamente, em sua totalidade ou em parte.
(HALBWACHS, 2003: 91)
Assim, apenas é possível falar em uma interação entre as lembranças do que vivemos
e aquilo que é possível rememorar com a ajuda do testemunho dos outros. A memória coletiva
só existe, sobrevive e influencia na seleção de lembranças e reflexões que cada indivíduo faz
do seu passado quando é relevante para si ou seu grupo, do ponto de vista do presente. Em
suma, o que há de “social ou histórico” na memória do passado do próprio indivíduo é sim,
maior do que podemos imaginar, mas está relacionado ao quão significativo vem a ser para
ele. Explicando melhor, o indivíduo tende a enxergar como história aquelas construções
memoriais que lhes dão a sensação de pertencimento. E tende a dar maior ou menor peso a
questões do passado que atendam às demandas da sua experiência no presente ou do presente
de seus grupos mais próximos, aos quais se sinta pertencendo.
São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que tomaram tamanho
relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não.
Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os
eventos que não se sintam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É
perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica,
ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que
podemos falar numa memória quase que herdada. (POLLAK. 1992: 201)
Um último elemento que não podemos deixar de considerar para definir os contornos
que desejamos dar ao conceito de memória para esse trabalho é que, além disso, ela mantém
estreita ligação com a ideia de identidade. Se a memória está ligada à identidade, está ligada à
imagem que um indivíduo tem de si, para si e para os outros. Nesse caso, a identidade é
negociada, bem como a memória pode perfeitamente ser negociada, não sendo, portanto, um
fenômeno passível de ser compreendido como essência de uma pessoa ou um grupo. Dessa
maneira, a memória está em constante disputa. Como aponta Pollak, “memória e identidade
são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que
opõem grupos diversos.” (POLLAK, 1992: 205).
quando falamos de grupos sociais, devemos estar cientes de que existem projetos de
esquecimentos, coisas e fatos não devem ser lembrados, sob pena de ser ameaçada a unidade
do grupo, questionada sua identidade, fragilizando e/ou colocando em questão o interesse
comum. (MOTTA, 2003: 186)
Para Halbwachs,
a memória coletiva não se confunde com a história e [... ] a expressão memória histórica não é
muito feliz, pois associa dois termos que se opõem em mais de um ponto. A história é a
compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens. No entanto, lidos
nos livros, ensinados e aprendidos nas escolas, os acontecimentos passados são selecionados,
comparados e classificados segundo necessidades ou regras que não se impunham aos círculos
dos homens que por muito tempo foram seu repositório vivo. Em geral a história só começa no
ponto em que termina a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social.
(HALBWACHS, 2003: 100/01)
Desde o início desse capítulo, vem se desenrolando uma questão importante em torno
da memória, que nesse momento
A história seria, então, uma operação intelectual que, ao criticar as fontes e reconstruí-las à luz
de uma teoria, realiza uma interpretação do passado, na qual não só a noção de um consenso é
importante, mas também a noção do conflito o é. Nesse sentido, ela não nos serve para
glorificarmos o passado. O que ela realiza é, na maioria das vezes a deslegitimação de um
passado construído pela memória. (MOTTA, 2003: 183)
Seguir esse pensamento nos coloca diante de mais uma necessidade de definição: que
seriam as memórias nesse contexto em que a história tem a missão de legitimar ou
32
deslegitimar aquilo que elas constroem. Para Motta, as memórias funcionam como as fontes
históricas que nos permitem saber o que tem sido lembrado pelos grupos sociais e constituem
alguma expressão dos fenômenos históricos. Vale ainda pensar que, apesar de a história
realizar “na maioria das vezes a deslegitimação de um passado construído pela memória”,
como dito no último trecho citado, fazer história passa também por compreender os elementos
constitutivos da memória e aquilo que está em disputa em sua confecção.
O historiador, diante disso, passa a ter que trabalhar com o aspecto flutuante da
memória e, como dito anteriormente, na maioria das vezes, se dedicando a “deslegitimar um
passado construído pela memória”. Nos casos em que determinada memória é construída
como intuito de legitimar um projeto de governo ou de nação, por exemplo, o caráter
intencional pode ser mais facilmente percebido. O mesmo ocorre nos momentos em que
grupos sociais que ocupam a posição de minorias políticas no presente buscam resgatar os
fatos sobre si que foram silenciados na história pelos grupos dominantes, também deixando
interesses do presente em evidência.
Analisando toda essa dinâmica, é possível falar num trabalho de atribuição de “sentido
ao passado”. O trecho do capítulo de mesmo nome da obra Sobre História, de Eric
Hobsbawm, deixa bem claro esse movimento de atribuição de sentido:
33
própria memória em si (POLLAK, 1992), onde a memória é rearrumada para a manutenção
de uma coerência ao longo do tempo, suavizando os conflitos.
Faz parte da citada tarefa entender os possíveis interesses por trás do esquecimento de
determinadas memórias (daquilo que Motta chama de amnésia social): que sujeitos querem
que se esqueça, o que se quer que seja esquecido e com que objetivos, não deixando de
observar o contexto social em que as memórias são construídas e a amnésia ocorre,
indissociavelmente. (MOTTA, 2003)
Se uma das principais funções da história é, então, estabelecer uma análise que
deslegitime as memórias, se desvencilhar de uma memória consagrada por determinado grupo
requer um posicionamento crítico e um distanciamento que nos permita contrapô-la a outras
análises historiográficas. Como Motta chama a atenção,
o confronto entre história e memória muitas vezes revela novas possibilidades de pesquisas,
trazendo para a luz do dia embates e lutas, antes esquecidos no processo de constituição da
memória nacional. Afinal, somos ou não identificados como “os guardiões de fatos
incômodos”, os que retiram do armário os esqueletos da memória social? (MOTTA, 2003:
195)
34
vezes, querem silenciar o que não poderia ser calado, ou, ainda que não o queiram, suas
memórias sucumbem ante algum projeto maior e dominante. Assim, de acordo com Pollak,
Fato é que, para que uma determinada memória ou conjunto de memórias sejam
considerados validados, algo ou alguém deve exercer esse trabalho de “validação”. Vale
lembrar que o mesmo deve acontecer quando há a necessidade de rearrumação das memórias
em novos contextos. Nas instâncias mais particulares ou individuais, esse controle da
memória que pode ser considerada verdadeira fica a cargo das “testemunhas autorizadas”. No
caso da memória nacional ou de organizações mais formais, a credibilidade é atribuída ao
testemunho de pesquisadores que têm acesso a arquivos e historiadores.
nenhum grupo social, nenhuma instituição, por mais estáveis e sólidos que possam parecer,
têm sua perenidade assegurada. Sua memória, contudo, pode sobreviver a seu
desaparecimento, assumindo em geral a forma de um mito que, por não poder se ancorar na
realidade política do momento, alimenta-se de referências culturais, literárias ou religiosas. O
passado longínquo pode então se tornar promessa de futuro e, às vezes, desafio lançado à
ordem estabelecida. (POLLAK, 1989:11)
35
2. A MEMÓRIA DOS JOVENS SOBRE A
DITADURA CIVIL-MILITAR
36
No capítulo anterior, abordamos as questões conceituais que ofereceram o balizamento
teórico deste trabalho. A proposta deste segundo capítulo é caracterizar e analisar, à luz de
tais conceitos, as memórias que um grupo de jovens em idade escolar têm construído sobre a
ditadura civil-militar no Brasil.
É imprescindível lembrar que a memória construída por esses jovens contempla vários
aspectos em sua formação. Primeiro, a ideia de que a história não é mais produzida apenas
pelos historiadores, mas está disponível na mídia, nas redes sociais, nas revistas, nos filmes,
como bem demostra o conceito de história pública. Segundo, é da interação entre a história
ensinada e aprendida no espaço escolar e essa “história apreendida” nesses outros espaços
diversos que se forma essa memória. E, finalmente, na observação dessas interações,
percebemos que esses jovens estão imersos num universo de informações sobre a história, o
qual podemos chamar de cultura histórica, que sustenta a formação do posicionamento deles
diante dos fatos históricos.
Escolher esse recorte histórico foi uma forma de abordar um período de ausência
democrática e graves violações de direitos humanos mais próximo da realidade
contemporânea, visto a pouca distância temporal e a existência de atores históricos do período
ainda vivos. Entendemos que, em diversos outros momentos da história brasileira, a
democracia não se estabeleceu e os direitos da pessoa humana foram em grande medida (e
gravemente) desrespeitados, mas decidimos delimitar nosso recorte temporal a uma história
mais recente, para melhor observar a questão da memória, já discutida no capítulo anterior.
37
que foram vítimas de violações dos direitos humanos e, de outro, os que afirmam que, em
nome da estabilidade da democracia, é melhor que se passe uma borracha sobre as feridas do
passado ditatorial, ressaltando ainda que houve avanços na sociedade em tal período. Fica
claro, a partir disso, uma espécie de polarização. A partir da observação dos testemunhos dos
alunos e, por conseguinte, do que eles concatenam a partir de informações vindas de suas
redes de sociabilidade, entendemos que em meio a essa polarização, a memória seja talvez,
pendente para um dos lados.
Sendo assim, nossa proposta foi coletar dados sobre ideias, discursos e informações
que diferentes jovens têm sobre o período ditatorial e analisar essas falas em consonância com
o contexto atual.
Dessa maneira, não nos afastamos da ideia dos depoimentos – gravações oralmente
proferidas pelos alunos –, mas uma técnica nos pareceu mais apropriada no sentido de
motivá-los nessa questão do discurso e com a mínima intervenção do pesquisador: o grupo
focal.
como uma técnica de pesquisa que coleta dados por meio das interações grupais ao se discutir
um tópico especial sugerido pelo pesquisador. Como técnica, ocupa uma posição intermediária
entre a observação participante e as entrevistas em profundidade. Pode ser caracterizada
também como um recurso para compreender o processo de construção das percepções, atitudes
e representações sociais de grupos humanos (Veiga & Gondim, 2001 apud GONDIM,
2003:151)
Outra questão é de importante reflexão nesse momento: a ideia de que o grupo focal
não precisa se comportar apenas como uma metodologia de coleta de dados isolada, mas
como uma ponte para uma ação de intervenção na realidade. Há uma proposta de ação
emancipatória e, com isso, de que o papel do pesquisador se confunda, em nosso trabalho,
com o que estamos entendendo por função social do historiador. Esse momento, por assim
39
dizer, mais propositivo, ficará reservado ao próximo capítulo de nosso texto. Terminamos este
item, chamando Gondim para uma reflexão:
para aqueles que optam pela abordagem qualitativa os critérios são a compreensão de uma
realidade particular, a auto-reflexão e a ação emancipatória. O conhecimento do mundo, para
os adeptos desta última, não deve ser um fim em si mesmo, mas um instrumento para a
autoconscientização e ação humana. Com isto há uma diminuição da distância entre a
produção e a aplicação do conhecimento, bem como um aumento da exigência do
comprometimento do pesquisador com a transformação social. (GONDIM, 2003: 150)
A atividade foi realizada com as duas turmas no dia 19 de maio de 2016, a partir da
autorização dada pela direção de duas escolas do município de Petrópolis, que receberam bem
a proposta e não colocaram qualquer interferência para sua realização.
40
O procedimento foi estruturado em dois momentos. O primeiro consistiu na
apresentação da proposta às turmas de Ensino Médio, em que os alunos foram informados de
que participariam de uma pesquisa que tinha o objetivo de conhecer a memória que possuíam
de determinado fato histórico. Ressaltamos que o critério de seleção dos alunos foi o
voluntariado, visto que nossa proposta inicial era a de realizar os debates no contraturno, de
forma a não atrapalhar suas atividades escolares. Assim, abrimos oportunidade para que cerca
de dez alunos de cada escola se oferecessem a participar do projeto. Foram informados da
garantia de não terem suas identidades expostas durante as gravações do debate.
A turma 2, da escola pública, foi formada por nove alunos pertencentes à rede
estadual, duas meninas e sete meninos. Esse grupo compôs-se de alunos de todo o Ensino
Médio, do 1º ao 3º ano. Houve um novo problema nesta escola: não foi possível exibir o
vídeo inicial, de maneira que iniciamos o debate pela pergunta inicial: “O que vem à memória
quando falamos em ditadura militar? ”
De acordo com nossa análise, a turma 1 nos pareceu mais acostumada à dinâmica de
debates. Em alguns momentos, os participantes mencionaram projetos realizados na escola,
pois esta já trabalha com uma pedagogia de participação ativa, conforme eles próprios
afirmaram. Mostraram-se desenvoltos e bastante animados em emitir suas opiniões; muitas
vezes, até inflamados. Em comparação, na turma 2, talvez até por contar com alguns alunos a
menos, vimos que o debate se desenvolveu de forma mais organizada e os estudantes falavam
com mais calma e interrompiam menos as falas alheias. Três alunos se destacaram entre os
demais, que iam apenas complementando seu raciocínio, por vezes concordando, outras
fazendo observações, mas, em geral, a turma tinha uma ideia mais ou menos homogênea. Isso
não foi observado na turma 1, em que o debate se mostrou mais polarizado.
5
Tanto o vídeo exibido como motivador do debate como as gravações dos dois grupos focais encontram-se em
anexo, em DVD, para que sejam verificadas a forma como os debates foram conduzidos e as informações
contidas neste capítulo.
42
2.2.1. O que vem à memória?
Jefferson – “Na memória não vem nada, só o que a gente sabe vendo”.
Aluna 2: “Eu penso também que foi um momento em que a economia levantou.”
Lucas: “Foi bom para a economia brasileira, mas para a sociedade foi ruim.”
Acima, estão algumas das respostas à questão que iniciou o debate, da qual podemos
apontar dois aspectos importantes. O primeiro deles indica a diferenciação que o aluno fez
entre aquilo que teria sido vivido por ele – a memória – e o que se aprende em diferentes
instâncias sociais – o que ele “vai vendo”. O segundo aspecto indica os principais elementos
que os alunos reconhecem como característicos do período ditatorial: a repressão e o
crescimento econômico, entendidos quase como que se a repressão fosse um preço ser pago
pelo crescimento econômico. Explicando melhor, independentemente de serem contra a
repressão, ela seria um “mal necessário” para a organização e crescimento do país. Isso fica
ainda mais claro no diálogo a seguir:
Daniel: “Todo mundo fala em ditadura e só pensa em porrada, sangue, tortura, mas sempre
tem a parte boa.”
Daniel: “Mas é sim, mas o Brasil crescer não justifica várias pessoas morrerem”.
nesse processo [de selecionar eventos, grupos e experiências a serem divulgados e relegar
outros ao esquecimento] a mídia emerge como um ator social específico, que articula, à sua
maneira e de acordo com suas visões e projetos, as diferentes opiniões, posições e discursos
6
Os alunos da turma 1 identificaram-se pelo nome, já os da turma 2 não o fizeram, de maneira que serão
abordados no texto como aluno 1, 2, 3 e, assim, sucessivamente, como aparecem no vídeo, da esquerda para a
direita.
43
existentes na sociedade. (LATTMAN – WELTMAN, CARNEIRO & RAMOS Apud
CARVALHO, 2015: 396)
De acordo com o artigo, nos trinta anos do golpe, o que se percebe é a tentativa de se
fazer balanços históricos “imparciais”, muito calcados em testemunhos da época, destacando
“erros” e “acertos” do regime, em que os acertos são identificados com o aspecto econômico e
os erros se relacionam com a repressão política. Nesse momento, quase não se discute as lutas
relativas aos direitos humanos. Nas comemorações dos quarenta anos do golpe, a tônica foi
um pouco diferente: manteve-se a ideia de balanço de “erros” e “acertos”, mas os artigos se
basearam mais em análises de especialistas do que em testemunhos.
Luis Fernando Cerri, em entrevista a Rafael Saddi para a Revista de Teoria da História
da Universidade Federal de Goiás, apresentou o projeto Jovens e a História, feito em escala
bem maior e contemplando jovens de 5 países, cujos resultados dialogam diretamente com os
encontrados em nossa pesquisa. Quando perguntado sobre alguns dados que indicariam uma
diferença preocupante entre a estrutura de consciência histórica dos jovens brasileiros e dos
demais jovens de outros países, Cerri respondeu o seguinte:
44
Creio que o dado mais importante que levantamos até agora é a relativa indiferença, e em
alguns casos até mesmo apoio médio, a argumentos favoráveis ao papel que a ditadura militar
brasileira teve. Em todos os outros países que pesquisamos, percebe-se uma rejeição clara à
experiência ditatorial por parte dos jovens. No caso brasileiro, embora a posição dos
professores de história seja nitidamente contrária às afirmativas que defendem a ditadura, entre
os alunos há uma parte importante de indiferentes, um grupo levemente majoritário que se
posiciona favoravelmente à ditadura, e outro grupo levemente minoritário que confronta
nitidamente os argumentos favoráveis à experiência do regime militar brasileiro. (SADDI,
2014:385)
O que percebemos é que uma pronta rejeição ao regime não é possível porque a ideia
de crescimento econômico como grande ponto positivo parece estar enraizada no pensamento
também dos jovens quando se referem ao tema. E o mesmo também é percebido na pesquisa
de Cerri:
Infelizmente, não só o ensino de história, mas a educação em geral vem colecionado vários
fracassos ao longo da nossa história, ao lado de algumas vitórias. Então, a falta de
conhecimento sobre fatos, processos, conceitos, e a falta do saber fazer da leitura crítica, da
análise de documentos e contextos, por exemplo, devem ser entendidos dentro de um conjunto
de círculos viciosos cujo diagnóstico e solução são muito mais lentos do que gostaríamos.
Penso que o melhor exemplo que eu poderia dar refere-se à posição dos estudantes brasileiros
que pesquisamos sobre a ditadura militar. A maioria concordava, por exemplo, com a
afirmação de que a ditadura foi um tempo de desenvolvimento econômico e bem-estar; essa
afirmação só é possível se desconhecemos o que ocorria com a economia brasileira no
conturbado período de 1964 a 1969, e de 1974/ 75 em diante. Ou seja, a maior parte do tempo
da ditadura foi de crise econômica e carestia, mas a imagem que parece estar na mente de boa
parte dos nossos pesquisados é a do restrito período do chamado “milagre econômico”. Isso é
claramente falta de conhecimento sobre o período. A mesma coisa acontece com a afirmação
que associa, no questionário, a ditadura com a tortura e assassinato de opositores. A maioria
discordou dessa evidência histórica, ou seja, de novo, falta de conhecimento. (SADDI,
2014:388)
Aluna 9: “Embora esse investimento tenha criado uma grande dívida externa pro Brasil”
45
Mais adiante, os alunos também perceberam uma diferenciação entre a situação das
elites e das pessoas mais pobres. Assim, eles identificam a presença de desigualdade social
naquela sociedade apesar do crescimento econômico.
Hugo: (referindo-se às elites quando Leonardo afirma que para eles era melhor) “Eu
acredito que sim, por causa que o Brasil tava crescendo e para eles era melhor, mas pro
pessoal mais pobre era bem mais complicado”
Essa questão, porém, não é enfatizada ou adquire um caráter central, sendo citada
somente em um momento. Não há menção a arrocho salarial nem aos poucos investimentos
em áreas sociais. O que verificamos é que impera um discurso que dissocia a economia da
sociedade, como se não fosse necessário haver uma relação entre desenvolvimento econômico
e bem-estar social. Essa operação discursiva, por sua vez, possibilita uma valoração positiva
da ditadura que é cotejada com aquilo que seria seu aspecto negativo, a repressão política.
Hugo: “Meu avô contou para mim que por um lado era bom, mas por outro era ruim”
Nessa turma, há um momento em que é possível perceber que dois alunos colocaram
em xeque ideias diferentes a respeito de um possível “toque de recolher”. Eles não
conseguiam se decidir sobre se era ou não permitido circular pelas ruas livremente à noite, e
um deles usou como argumento o fato de ter perguntado a uma pessoa mais velha, enquanto a
outra disse ter aprendido nas aulas exatamente o contrário.
46
viveram o período. Eles destacaram que as fontes podiam não ser totalmente fidedignas e que,
mesmo aqueles que presenciaram o período, poderiam ser influenciados por seu lugar de fala,
embora não utilizassem claramente essa expressão.
A partir dessa assertiva, a maioria concordou que são mais confiáveis as informações
de quem viveu o período. Entretanto, um aluno da turma 2 reconheceu a necessidade de um
olhar cuidadoso para os depoimentos de pessoas que viveram o período como fonte:
Aluno 7: “E eu penso também o seguinte: por exemplo, das pessoas que viveram naquela
época e passam alguma informação daquilo também, as informações delas não são
manipuladas. Mas, por exemplo, nós temos sentimentos, então quem sofreu naquela época
nunca vai dizer que aquilo foi uma coisa boa pro país. Vai sempre dizer que aquilo foi ruim.
Então assim: as informações das pessoas são sempre influenciadas pelos sentimentos”.
Vittoria: “Tinha uma menina [na escola] ano passado que o avô dela era militar e ela
defendia a ditadura, assim, com um orgulho que a gente ficava assim: para! Tá feio já! ”
Fechando essa visão das fontes, observemos as seguintes falas de alunos da turma2:
Aluno 3: “Até porque a mídia era bastante oprimida. Você não pegava a informação por
completo. Quem sofria é que via o que aquilo realmente era. Aqueles que estavam, por
exemplo, nem aí, por exemplo, o pessoal daqui não sabia o que acontecia em São Paulo”.
Aluno 3: “A mídia televisiva, jornalística, eles, por exemplo, por ter um comandante que vai
escolher o que vai ter publicado, escrito, ele pode ser um subordinado, pode chegar um
cargo público, que representa o nosso país, porque é um país bem corrupto, né, sofre com
isso. Ele pode chegar lá e falar: ‘eu quero isso’, ‘eu quero isso’ ou ‘você tem que ter essa
visão’. ‘olha, aconteceu isso, isso e isso. Quero que você bote só isso, porque isso vai me
prejudicar’. Então acho que sofre a influência de quem tá no poder nessas, nessas redes, que
são comandadas por alguém maior. Isso aconteceu, por exemplo, na ditadura. Por exemplo,
47
o cara tava lá e eu aqui. Já com a internet você pode colocar qualquer coisa lá [...] já na
ditadura não. Você absorvia o que eles passavam.
Aluno 1: “Hoje em dia você pode opinar tanto que esse exemplo do impeachtment foi um
exemplo: tem pessoas contra – a grande maioria do país – e outras a favor. Ninguém morreu
por isso. As pessoas entre si é que se agridem, mas não tem uma “força maior” obrigando
eles a seguir um sentido só: ‘vai ser assim’. Hoje em dia você pode escolher”.
Vale ressaltar que, da perspectiva da construção de uma cultura histórica, que viemos
trabalhando até aqui, há um constante cotejamento entre aquilo que se aprendeu na escola e
outras fontes de informação. Isso se coloca como questão para o professor e para as práticas
em sala de aula. É preciso trabalhar com o que os alunos trazem de seus outros espaços de
sociabilidade, do que coletam na internet, na mídia, no discurso das famílias e pessoas
próximas, por exemplo. Informações sobre censura, ação dos militares, crescimento
econômico, tudo isso precisa ser levado para a sala de aula de história, historicizado e
analisado de forma crítica.
48
2.2.3. Ditadura e democracia na visão dos alunos
As falas a seguir nos remeteram a outro tema que serviu como fio condutor de análise:
a questão da ordem. A democracia não é vista, pelos estudantes, e quiçá para a sociedade que
os cerca em suas redes de convivência próximas, como um valor absoluto, que defina que os
direitos dos cidadãos devem ser respeitados acima de efeitos desagradáveis da conjuntura que
possam estar vivendo. Há uma concepção da democracia subordinada à garantia da ordem,
sobretudo no que diz respeito à contenção da criminalidade, citada algumas vezes como
justificadora de políticas autoritárias. Na fala dos alunos, os direitos humanos, da mesma
forma, não são considerados naturais e inerentes à pessoa humana, qualquer que seja a
condição dela. Há uma clara “desclassificação dos criminosos” como não mais possuidores
desses direitos, o que é extremamente preocupante.
49
durante o período ditatorial civil-militar e ainda o é. Para ele, não necessariamente pode-se
considerar a permanência do aparato repressivo – jurídico e policial-militar – como uma
permanência de elementos da ditadura na democracia, mas talvez como um novo regime que,
mesmo parcialmente ou aparentemente democrático, revela uma face de disputa classista, de
manutenção de privilégios de uma classe sobre outra, que se assenta na ideia de segurança
nacional. Para esse autor,
para sustentar a ofensiva dos grupos dirigentes do Estado contra os direitos, tem sido
necessária a mobilização dos instrumentos de força, o que impôs certas continuidades no plano
das estruturas estatais. Nestas condições, o aparato repressivo – jurídico e policial-militar –
vem assumindo importância progressivamente maior. [...] A ideia de “ordem” foi destacada
por Lênin como a categoria central da concepção de Marx sobre o Estado enquanto órgão de
classe. Diz o líder bolchevique em seu resumo: “Segundo Marx, o Estado é um órgão de
dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, e é a criação da ‘ordem’
que legaliza e afiança esta opressão […]” Neste sentido, a perspectiva de dominação classista
está embutida na noção de ordem como sinônimo de harmonia no interior de uma sociedade
heterogênea e hierarquizada. (LEMOS, 2014)
Isso ilustra o que vamos observar mais à frente sobre o discurso dos alunos, que
parecem obcecados pela ideia citada por Lemos de ordem como sinônimo de harmonia na
sociedade. E é dessa maneira que conseguem flexibilizar a noção de democracia, bem como a
de direitos humanos, quando sua violação é acionada em nome de um bem maior, que seria a
garantia da ordem. A partir dessa constatação, fica muito difícil dissociar a visão dos alunos
acerca desses conceitos de uma possível construção ideológica (da grande mídia, de seus
familiares e outros círculos de convivência) presente e propagada quase que de forma
naturalizada em nossa sociedade.
Essa visão de que uma intervenção autoritária pode representar uma possibilidade de
garantir a ordem se agrava, sobretudo, se pensarmos que esses jovens constroem uma
memória do período de governo autoritário baseados nas demandas do presente. E esse
presente se constitui, atualmente, num clima de insatisfação generalizada em que os
telejornais de grande circulação assim como notícias de grande circulação na internet,
veiculam a todo momento índices de aumento da criminalidade, escândalos de corrupção
entre os políticos nas diversas esferas, índices de decréscimo na economia e outras
informações que lhes provocam uma grande sensação de desordem.
Nas falas dos alunos, aparece de maneira clara que a garantia da ordem era um ponto
positivo do regime militar e, em alguns momentos, eles sugerem ser um “ponto positivo a ser
aproveitado”. Quando perguntados sobre o que vem à memória ao se falar em ditadura,
50
muitos falam em repressão e opressão e perda de direito à liberdade de expressão. Contudo,
algumas falas chamaram a atenção para outro pensamento.
Rafael: “As pessoas não tinham medo de andar pela rua e serem assaltadas como tem hoje
em dia. Os militares não deixavam bandidagem, assalto como é hoje em dia. Era mais sério”.
Rafael: “Porque na época da ditadura não tinha corrupção. O Figueiredo morreu pobre,
pedindo esmola para os amigos. Olha os luxos do Lula [ex-presidente do Brasil] hoje?”
Lucas: “Ter corrupção até tinha, mas era bem menos do que hoje”.
Rafael: “Não tinha casos de corrupção. Nem investigados pela esquerda não tem”.
Aluno 1: “Embora eu ache muito errado, a gente tem que pensar que a ditadura, ela fez
muita coisa que a gente pode aproveitar porque impediu muitos jovens de fazer o que fazem
hoje. Por exemplo, naquela época os jovens não podiam ficar soltos na rua que nem hoje em
dia. [...] Se hoje em dia tivesse essa rigorosidade, não do jeito da ditadura, essas coisas... Sei
lá... Uma lei, alguma coisa que... Um controle desses jovens soltos na rua”.
Aluno 1: “Mas eles [os militares] assumiram por conta da bagunça que tava”.
Aluno 7: “Em tese a gente colocou [os militares no poder], mas em tese não colocamos
porque eles tiveram que intervir por causa da forma como a sociedade agia”.
Rafael: “Mas vocês estão falando como se eu defendesse a ditadura, eu não defendo a
ditadura. Eu acho que deveria entrar um militar, um cara sério, mas eleito, normal”.
51
Luís: “Eu acho que podia voltar a ditadura, não do jeito que era, pode voltar em termos, se
ajustando à sociedade atual, não oprimindo tanto”.
Na fala de Rafael, fica evidente uma visão negativa e uma descrença nos políticos
atuais. Nesse sentido, ele revela a entrada de um militar no poder como uma possibilidade de
alguém com seriedade para governar o país. Por isso ele diz: “um cara sério, mas eleito,
normal”.
Lucas: “Músico!”.
Rafael: “Músico que era contra o país! Era torturado quem era a favor do comunismo.”
Rafael: “Aí o cara estupra, fica cinco anos na cadeia, sai e estupra de novo”.
Logo em seguida, Rafael diz que não defende a tortura, mas que em casos de crimes
da gravidade, como o de um estupro, a pena de morte é a solução. Alguns alunos concordam
com esse pensamento.
Aluno 7: “Eu penso que matar em momento nenhum é certo, assim, tirar a vida de uma
pessoa. Mas aquelas pessoas que eram mortas, torturadas e tudo o que acontecia. Será que
aquelas pessoas eram boas? Será que elas eram pessoas boas ou será que aquilo tudo
acontecia porque elas não estavam fazendo a coisa certa? Eu acho que eles não iam pegar as
pessoas boas e torturar”.
52
Aluno 7: “A Dilma, na época da ditadura, ela foi torturada. Todo mundo quando fala ‘a
Dilma foi torturada’ fala ‘pô, bateram na mulher, fizeram de tudo com a mulher’, mas não
param pra pensar no que ela tava fazendo pra ser torturada. Não que ela devesse ser
torturada, eu discordo disso. Não acho que ela devesse ser torturada pelo que ela fez.
Discordo completamente disso. Mas o que eu quero dizer é que ela foi torturada pelo que ela
fez de errado e que sabia que seria torturada porque era errado naquela época”.
Necessário se faz deixar bem claro que não deduzimos aqui que os jovens não saibam
o que é democracia ou direitos humanos, mas que sua definição desses conceitos é fruto da
compreensão que nossa sociedade constrói atualmente, como valores cambiáveis a serviço de
algo maior, a saber a garantia da lei e da ordem. Essa influência do presente é latente em seu
discurso, sobretudo se observarmos o caminho conservador que tem tomado os discursos da
grande imprensa e do senso comum – muito visível nas redes sociais, por exemplo – no
momento político que vivemos atualmente.
Essa análise calcada na conexão com o presente vem ao encontro de tudo que
teorizamos no capítulo anterior sobre a questão da construção da memória. Se entendemos
que a memória é construída com base nas demandas do presente, é mais fácil compreender
uma ligação entre as expectativas de solução pela ordem que os alunos têm para nossa
sociedade e a ideia de que o regime ditatorial foi um período onde esse a “desorganização”
inexistia. Cabe ainda lembrar o quanto o fato desse processo ser catalisado pelo quadro de
caos político econômico e social que vêm sendo pintado de nossa sociedade atualmente ilustra
o conceito de cultura histórica, também mencionado no capítulo um. Se, como observamos,
inclusive nos estudos de outros autores apresentados, a visão que os alunos têm da história é
construída de acordo com a interação entre o que aprendem na escola e fora dela, é provável
que os jovens caracterizem como pontos positivos do regime ditatorial aquilo que eles
acreditam que minimizaria ou solucionaria na sociedade os problemas que eles vêem na
atualidade.
Diante disso, apontar aqui as contradições que estão presentes nas falas dos alunos -
sou contra a tortura, mas a pessoa fazia algo errado para ser perseguida, torturada ou presa;
sou contra a ditadura, mas um militar sério é necessário de forma eleita - é importante. Isso
corrobora nossa análise no que diz respeito a um apoio parcial dos jovens à ditadura, um
estabelecimento de fatores “positivos” e fatores “negativos”. Essa visão parece se basear na
ideia que fazem de que muitos problemas da atualidade não existiam e que isso pode ser
atribuído a um maior controle da sociedade, que se materializava no autoritarismo. Em suma,
apesar da perda de liberdades, havia um controle daquilo que eles enxergam como “problemas
sociais”.
O ensino de história precisa, com urgência, ser usado como ferramenta para
estabelecer a garantia da democracia como valor absoluto e dos direitos humanos como
inerentes à pessoa humana, qualquer que seja sua condição – inclusive nos casos de
transgressores das normas legais. A ação do historiador/professor de história, valendo-se de
conteúdos como o da ditadura militar, torna-se muito importante para a consolidação dessas
questões.
Finalizamos, então essa parte de nossa reflexão, com o pensamento de Candau &
Sacavino sobre o posicionamento que acreditamos ser necessário tomar ante a questão dos
direitos humanos na educação:
55
No capítulo anterior, analisamos a memória que os jovens em idade escolar - portanto,
alunos da sala de aula de História - têm construído sobre o regime ditatorial no Brasil.
Entendemos que os fatores que os levam a valorizar determinados aspectos da ditadura,
considerando-os “positivos” e dignos de permanência em nossa sociedade, partem das
demandas do presente. Percebemos, ainda, que, entre essas demandas, destaca-se a
relativização da democracia frente a necessidade de garantia da “ordem”.
Apresentar uma memória que “aceita” e, até mesmo, valoriza a perda de liberdades
individuais7 e a violação dos direitos humanos em troca de uma sociedade mais ordenada é
prova de que as memórias dos jovens são construídas com base no presente. Sob essa ótica, os
jovens tendem a encarar a democracia e os direitos humanos não como valores absolutos, mas
cambiáveis e flexíveis, de acordo com o contexto em que são evocados. No jogo de disputas
de memória, talvez uma valorização do período da ditadura civil-militar ainda seja muito
presente no discurso do senso comum.
7
É importante ressaltar que, em seus depoimentos, os jovens valorizaram muito a questão da liberdade de
expressão. É também digno de atenção que eles têm a perspectiva de que outra pessoa vai perder direitos – os
ladrões, os estupradores, os corruptos – mas não eles.
56
O historiador e professor, na sala de aula de história, tem a oportunidade de elaborar
atividades reflexivas que promovam a discussão acerca do processo de justiça de transição
para a sociedade como um todo, assegurando a importância do acesso à memória das vítimas
e à reparação. A sala de aula é também um espaço potencial para colocar em debate e
problematizar a ideia de que o autoritarismo representa a garantia de ordem, almejando
fortalecer a democracia como valor absoluto, não negociável mediante variáveis de contexto.
E, finalmente, é de suma importância que os alunos construam uma concepção de que os
direitos da pessoa humana não podem ser desrespeitados, uma vez que nenhuma circunstância
alija o indivíduo da condição de humano. Como já enfatizado no primeiro capítulo, o trabalho
do professor com essa temática é uma recomendação inclusive da Comissão Nacional da
Verdade, principalmente no que concerne à abordagem da questão dos direitos humanos.
A partir disso, nas próximas páginas apresentamos atividades que foram elaboradas
com o objetivo de abordar as duas questões que consideramos mais relevantes, a saber, a
democracia e os direitos humanos. Em seguida, organizamos um guia online no qual os
professores de história podem encontrar fontes relacionadas ao período da ditadura civil-
militar no Brasil e, assim, elaborar novas e variadas atividades a partir de nossa reflexão.
57
ELABORANDO AS ATIVIDADES
Acreditamos que toda a teorização acerca da memória que os jovens têm construído da
ditadura seria inócua se não culminasse numa ação efetiva do historiador/professor de
história. Essa ação deve buscar, sobretudo, uma transformação da nossa sociedade a partir
da intervenção na forma como os alunos percebem o seu mundo e planejam seu futuro.
Aqui, fica claro o que entendemos por função social do historiador como professor de
história. Vale lembrar que essa função social também ocorre em outros espaços de pesqui-
sa e divulgação. Contudo, nosso trabalho focaliza a questão do ensino de história como
espaço privilegiado de ação.
Dessa maneira, nossa proposta nesse tópico é elaborar atividades explicitando seus
objetivos, os documentos utilizados e a realização em sala de aula, considerando que sem-
pre são necessárias e importantes adaptações e mudanças que os professores fazem de
acordo com as características de suas turmas e o tempo disponível, entre outros condicio-
nantes. É uma ação propositiva baseada em toda a reflexão que se desenrolou ao longo do
presente trabalho.
58
Atividade 1
O conceito de democracia
A partir da análise do discurso dos jovens realizada no capítulo anterior, percebemos que,
para eles, o conceito de democracia não se apresenta como um valor absoluto. Em vários
momentos, observa-se uma justificação da diminuição das liberdades quando se trata de
garantir a ordem ou o “bem maior para a sociedade”. Nesse sentido, consideramos fun-
damental a intervenção do historiador/professor, que, valendo-se das aulas de história,
pode propor uma reflexão acerca da eficácia dessa garantia de ordem. É preciso ter em
vista o que os alunos consideram como “pontos positivos” no regime ditatorial. Segundo
nossa análise, a partir dos grupos focais, foram elencados, principalmente: o crescimento
econômico, a ausência de corrupção – ou pelo menos, a existência em níveis mais baixos –
e, da mesma maneira, níveis mais baixos de criminalidade. Para problematizar esses aspec-
tos, propomos as ações que se seguem, pensadas tendo em tela alunos do Ensino Médio:
Objetivos gerais
Tema 1
A Documentos:
Para concretizar o primeiro objetivo, elaboramos uma atividade inicial trabalhando a análise
e o cruzamento de algumas fontes. Propomos a utilização dos seguintes documentos:
59
Documento I – Tabela Dados relativos à economia brasileira (1963-1975)
(Fig. 1)
Documento II – Gráfico
(Fig. 2)
60
Documento III – Tabela
(Fig. 3)
Documento IV – Gráfico
(Fig. 4)
61
B Descrição da atividade:
Num primeiro momento, a turma será dividida em três grupos. O documento I será en-
tregue a todos os grupos e os alunos devem ser orientados a observar, principalmente, as
taxas de crescimento econômico e da dívida externa. O grupo 1 receberá como material de
63 trabalho o documento II e deve ser orientado a elaborar uma análise do gráfico. Assim
deverá também proceder o grupo 2, com o gráfico presente no documento III, e o grupo
3, diante do documento IV.
Após a análise dos documentos, será proposto aos alunos discutirem em seus gru-
pos sobre o conteúdo da fonte específica que lhes foi confiada em diálogo com o docu-
mento I, distribuído a todos os grupos.
Num terceiro momento, cada grupo apresentará suas conclusões ao restante da
turma. E, finalmente, toda a turma será convocada a um debate sobre a questão do cresci-
mento econômico motivada pela reflexão apresentada acima, a saber: Até que ponto o
crescimento econômico do período representou um avanço para a sociedade?
Após essa discussão coletiva, cada grupo será orientado a preparar uma apresen-
tação livre para toda a turma, a partir da reflexão sobre uma segunda questão: O que é
“crescimento econômico” e quando ele representa um avanço para a sociedade?
C Objetivos específicos:
62
TEMA 2
A Documentos:
Documento I – Charge
Documento II - Texto
63
diações, sem eleições. Havia um cenário ideal para o seu desenvolvimento: a ampla
reforma econômica aumentou recursos públicos disponíveis para investimentos e
mecanismos legais restringiram gastos para a saúde e educação e direcionaram essas
verbas para obras públicas, apropriadas pelas empreiteiras. [...]
Essas empresas têm saudades da ditadura, já que não existiam mecanis-
mos de fiscalização de práticas corruptas. Elas não eram alvos de escândalos
nacionais, porque isso não era investigado. [...]
As empreiteiras mantêm práticas da época da ditadura militar, como por exem-
plo o descuido com a segurança do trabalhador. Isso acontece porque elas precisam
ter uma margem de lucro maior. [...]
Na ditadura a gente não tinha acesso aos casos de corrupção. Eles não vinham
à tona, o que não quer dizer que não existiam. Eu diria que, em relação ao aparelho
de Estado, a apropriação era ainda maior. Hoje essas empreiteiras estão sujeitas a
órgãos de fiscalização e volta e meia são alvo de denúncias. [...]
São as instituições da democracia que conseguem revelar os casos de corrupção:
o Ministério Público e a Polícia Federal. É um mérito dos governos recentes o inves-
timento nesses mecanismos. [...]
Muitos empreiteiros atuaram no Ipes – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais,
que teve participação ativa no golpe, e financiaram os que buscavam desarticular o
governo João Goulart. [...]
Hoje, assim como na ditadura, as empreiteiras não atuam de forma individual.
Claro que alguns dos maiores empreiteiros têm relação direta com alguns políticos.
Mas a maioria dessas empresas tem sindicatos e organizações que levam ao Estado
projetos de obras, tentam pautar políticas públicas e forçam o direcionamento do
orçamento. [...]
Mas muito mudou. Se elas têm saudade da ditadura, é porque eram ainda mais
poderosas naquela época. Hoje, há menos obras e elas não têm acesso tão fácil ao
Estado. O mecanismo de atuação política dos empresários, que era mais direcionado
ao Executivo e às agencias, foi diversificado. O trabalho passou a ser junto ao Legis-
lativo e aos partidos, por meio de financiamento das campanhas.” [Grifos meus]
Disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/12/1555676-empreiteira-quesoube-usar-a
corrupcao-cresceu-mais-diz-historiador.shtml.
Acesso em 20/10/2016
64
Documento III – Gráficos
(Fig. 6)
B Descrição da atividade:
Os alunos serão convidados a analisar as três fontes e produzir uma reportagem para um
jornal com o seguinte roteiro: • Por que muitas pessoas afirmam que “bom era no tempo
da ditadura, que não existia corrupção”?
• Quais são as comparações que o autor faz entre a atuação das empreiteiras no período
ditatorial e no regime democrático?
• O que você pensa da seguinte afirmação: Um governo autoritário é mais capaz de
controlar a corrupção do que uma democracia?
• Quais são os mecanismos mais eficientes para combater a corrupção?
C Objetivos específicos:
O objetivo dessa atividade é que os alunos lidem com informações sobre casos de cor-
rupção expressivos durante o regime militar, representados aqui pela relação das em-
preiteiras, hoje muito enriquecidas, com o Estado, bem como pelo grande crescimento
delas no período. Espera-se, ainda, que reconheçam que alcançar um regime verdadeira-
mente democrático pode permitir maior divulgação e controle do Estado sobre o poder
privado, o que, consequentemente, encoraja punições para os casos de corrupção.
65
TEMA 3
A Documentos:
Tendo em vista os depoimentos que revelam que os alunos acreditavam que era mais se-
guro viver durante o regime militar devido a menores índices de criminalidade, propomos
uma terceira atividade para refletir sobre o tema. Nas memórias dos jovens, paira a ideia
de que havia poucos criminosos pelas ruas e isso representava o tal bem maior para a so-
ciedade, como já discutimos anteriormente. Essa questão tangencia o tema dos direitos
humanos, uma vez que, de acordo com a memória construída, muitos jovens sugerem
que a solução para o problema seria mais repressão ao crime. Essa visão, inclusive, os faz
afirmarem que os baixos
índices de criminalidade são um “ponto positivo” da ditadura e, nesse ponto, retoma-se a
ideia, que se quer questionar nesse trabalho, de que determinados aspectos podem justifi-
car a ausência de liberdades e o desrespeito aos direitos humanos.
Documento I – Gráfico
(Fig. 7)
66
Documento II – Texto
O texto abaixo foi escrito por Karla Sampaio, especialista em ciências penais da Pon-
tificia Universiade Católica do Rio Grande do Sul.
67
Documento III – Texto
“A desigualdade social que deixou o Brasil em primeiro lugar durante a ditadura mi-
litar gerou, também, a criação desenfreada de periferias nas grandes cidades. Segun-
do o pesquisador da Fespsp, os bolsões de miséria foram criados naquele momento
– embora os índices de criminalidade fossem menores que os de hoje – o que, de
acordo com Del Vecchio, motivou o cenário de violência atual.
Na verdade, havia extermínios de pobres e pretos nas periferias levado a cabo
pelo famoso esquadrão da morte. Os ricos tinham uma aparência de maior segurança
porque os problemas sociais somente se agravavam e foram tratados durante toda a
ditadura como caso de polícia e não como uma questão social de responsabilidade de
toda a sociedade”, explica Gennari.
O pesquisador da Unesp acredita que a Doutrina de Segurança Nacional, cri-
ada naquele momento como forma de repreender os crimes, “apenas criava uma
sensação de segurança para as elites e a maior parte do povo vivia na tensão de ser
morto”.
Del Vecchio lembra que é preciso fazer uma comparação. “Naquele momento a
sensação de segurança também era maior porque havia menos pessoas – São Paulo
era um terço do que é hoje”. O mesmo, segundo o especialista, pode ser levado em
consideração na educação.
“Havia menos acesso à educação pública do que há hoje, a sensação de que o
ensino era melhor, assim, era maior. Hoje, o acesso ao ensino público é massificado,
mas a qualidade não mudou, só não conseguiu acompanhar este crescimento”, final-
iza o cientista político.”
Disponível em:
http://noticias.band.uol.com.br/brasil/noticia/100000673057/ditadura-militar-entenda-cinco-
pontos-polemicos-do-periodo.
Acesso em 21/10/2016
68
B Descrição da atividade:
Os alunos serão divididos em grupos. Para a realização da atividade, cada um dos grupos
deverá analisar as fontes e pesquisar outras, se julgarem necessário. Após a análise das fon-
tes se estabelecerá um debate sobre as mesmas em sala mediado pelo professor.
Com a orientação do professor, cada grupo construirá parte de um caderno in-
formativo em forma de jornal, ou em ambiente virtual, caso a escola tenha um espaço
adequado ou eles consigam criar. O informativo poderá tratar da “criminalidade no Brasil
na ditadura e nos dias atuais”. Cada grupo se responsabilizará por elaborar uma seção,
guiada pelos seguintes tópicos: relação entre distribuição desigual de renda e criminali-
dade; relação entre os investimentos no período dos militares e a desigualdade social e
sensação de segurança entre as elites e entre os mais pobres durante o regime militar.
Sugerimos que os alunos sejam incentivados a coletar depoimentos de pessoas de
diferentes idades que aceitem ser entrevistadas, perguntando-lhes sobre a sensação que
possuem em relação ao índice de criminalidade durante a ditadura. Dessa forma, eles
poderão “experimentar a atividade de coletar a opinião das pessoas” e confrontá-las com
os documentos que receberão. É importante abordar com os alunos, ainda que superficial-
mente, visto que não são historiadores, a metodologia do trabalho com depoimentos8.
C Objetivos específicos:
Espera-se que os jovens possam cruzar dados dos documentos e das entrevistas e pro-
blematizem a questão da criminalidade como um caso social e não “de polícia”. Dessa
forma, é possível caminhar em direção a uma visão que não enxergue o autoritarismo
como meio de controlar a criminalidade, entendendo que retirar as liberdades do povo
não significa garantia de ordem. Espera-se ainda que seja possível perceber o quanto a
desigualdade social que experimentamos na atualidade foi promovida pelos investimentos
seletivos/desiguais feitos durante o regime militar e que essa desigualdade está muito liga-
da aos altos índices de criminalidade contemporâneos. Decorre daí a proposta de diferen-
ciar o “problema social” do “problema de polícia” quando se fala em resolver a questão
da criminalidade.
8Fazê-los compreender que os testemunhos são marcados pela emoção e o ponto de vista de cada
depoente, mas são fontes importantes quando cruzadas com outras informações, por exemplo.
69
Atividade 2
Direitos Humanos
Objetivos gerais
70
A Documentos:
Documento I – Texto
Documento II – Vídeo9
9 Todos os vídeos listados nesta atividade encontram-se em anexo, em DVD, junto com os demais
vídeos, as gravações dos grupos focais e o material utilizado nos grupos focais.
71
Documento III – Vídeos
Documento IV – Cartazes
(Fig. 8)
72
(Fig. 9)
B Descrição da atividade:
A atividade deve ser aplicada após aulas ou outras atividades que problematizem a ideia
de que a ditadura promoveu um bem para a sociedade10. Os documentos deverão ser pre-
viamente analisados em sala, com a ajuda do professor. Sobretudo o documento I, precisa
ser trabalhado com cuidado. Sua análise será fundamental, pois o texto é de difícil com-
preensão para os alunos e propõe os conceitos fundamentais para a defesa da existência
de direitos humanos.
Feita a análise do primeiro documento, serão exibidos os vídeos dos documentos
II e III. O documento II possibilitará aos alunos perceber a tortura praticada contra um
jornalista e a simulação de seu suicídio, fato que tornou seu caso famoso. Vale ressaltar o
fim do vídeo, que mostra a família recebendo sua nova certidão de óbito, corroborando a
ideia da farsa do suicídio.
Quanto ao documento três, será importante explicar que os vídeos são depoimentos
de pessoas que sofreram a repressão durante o regime militar. Sendo relatos de memórias
vividas, são marcados pelas emoções e pelo lugar de fala daqueles que o narram. São
testemunhos colhidos pela produção de uma novela que tratava do tema da ditadura na
rede SBT entre os anos de 2011 e 2012 que eram levados ao ar após cada capítulo. Os
alunos devem ser levados a observar as condições em que se deu a prisão das vítimas, por
que acreditam terem sido presas, qual seu envolvimento com algum tipo de crime e que
tipo de consequências se pode perceber terem ficado a partir de suas falas. Por fim, os car-
10 Essas atividades podem ser inspiradas nas propostas de atividades sobre democracia listadas ante-
riormente, por exemplo.
73
tazes do documento IV mostram que o governo caracterizava explicitamente os procura-
dos políticos como terroristas. Isso também deve ser problematizado com os alunos ao se
apresentar essa fonte: quem era considerado terrorista e por que?
Após o contato com as fontes, os alunos deverão elaborar, sob orientação do pro-
fessor, uma encenação do julgamento atual de casos envolvendo prisões e torturas no
período do regime militar, desconsiderando a existência da Lei da Anistia, de 1979. Dessa
maneira, deverão opor num tribunal torturados e torturadores com respectivos advogados
de defesa e acusação, construindo argumentos para a defesa de cada proposta.
Um segundo julgamento pode ser feito a partir de um caso atual, fazendo com que
se estabeleça um uso do que se discutiu sobre a ditadura militar para os dias atuais. Pode-
se sugerir aos alunos que pesquisem casos de possíveis violações de direitos humanos por
parte do Estado e tragam para a discussão em sala para que seja elaborada essa parte da
tarefa11.
C Objetivos específicos:
Com essa atividade, pretende-se que os alunos desenvolvam argumentação com base na
legislação e, dessa forma, possam confrontar os pontos em defesa e contrários aos direitos
à vida e à dignidade humanas. Espera-se que, a partir dessa reflexão, as teses elaboradas
tenham em consideração a questão da criação da categoria de crime de terrorismo contra
o Estado por parte do regime através de seu esquema de propaganda. Além disso, que seja
considerada a centralidade do respeito à vida e dignidade da pessoa humana do ponto de
vista legal, independentemente de considerações morais e éticas.
74
3.2. Guia online de fontes e informações
Nossa proposta, nesse tópico, é elaborar um guia para que o professor tenha à
disposição fontes sobre o período da ditadura civil-militar em espaço digital. São algumas
sugestões de ambientes na internet onde o professor encontra documentos, depoimentos,
cartazes, entre outros materiais. A partir disso, é possível elaborar diversas outras atividades
que visem a assegurar uma reflexão eficiente acerca da importância da democracia e dos
direitos humanos na sociedade. Cabe lembrar que o presente trabalho veio se orientando pela
seguinte premissa: o trabalho na sala de aula para promover a garantia de uma democracia de
qualidade e do respeito aos direitos da pessoa humana são passos largos para que se
consolidem os objetivos de uma justiça de transição. Listamos a seguir alguns sites que
consideramos interessantes no que diz respeito a fontes e informações.
o centro de referência das lutas políticas no Brasil, denominado ‘Memórias Reveladas”, foi
institucionalizado pela Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo
Nacional com a finalidade de reunir informações sobre os fatos da história política recente do
país. [...] O “memórias reveladas” coloca à disposição de todos os brasileiros os arquivos
sobres o período entre as décadas de 1960 e 1980 e das lutas de resistência à ditadura militar,
quando imperaram no país censura, violação dos direitos políticos, prisões, torturas e morte.
(www.memoriasreveladas.gov.br. Acesso em: 22/10/16 )
75
Reveladas” hospedado no site youtube.com.br. Da mesma maneira, há gravações em áudio,
também disponíveis nesse setor do site.
O site conta ainda com livros e periódicos disponíveis em formato pdf e um banco de
dados em que se pode pesquisar documentos disponíveis de forma digital ou escrita em várias
instituições participantes. Por fim, conta com uma aba denominada sala de aula, na qual
encontram-se dois vídeos de aulas, ambos com professores da UFRJ.
O site traz uma boa quantidade de informações resumidas com textos divididos em
abas sobre o golpe, o governo, a abertura, os movimentos sociais, a arte e a cultura e a questão
do acesso à memória e à verdade na atualidade - abordando a questão da Comissão Nacional
da Verdade. Um ponto bastante interessante do site é a última das abas – apoio ao educador –
, que traz algumas sugestões de atividades para o professor utilizar com seus alunos.
Encontramos, ainda, a sugestão de três minidocumentários para entender a ditadura, uma linha
do tempo, mapas e um memorial de mortos e desaparecidos.
É interessante ressaltar que, por ter linguagem bastante acessível, é um bom espaço a
ser indicado para alunos que desejarem navegar ou como material de apoio.
O endereço é www.memoriasdaditadura.org.br.
76
3.2.3. Memorial da Resistência de São Paulo
O Memorial da Resistência de São Paulo, uma iniciativa do Governo do Estado de São Paulo
por meio de sua Secretaria da Cultura, é uma instituição dedicada à preservação de referências
das memórias da resistência e da repressão políticas do Brasil republicano (1889 à atualidade)
por meio da musealização de parte do edifício que foi sede, durante o período de 1940 a 1983,
do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – Deops/SP, uma das
polícias políticas mais truculentas do país, principalmente durante o regime militar. O
Memorial da Resistência é vinculado à Pinacoteca do Estado de São Paulo, um museu público
e sem fins lucrativos. Desde 2005, e a partir da assinatura de contrato de gestão com a
Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, a Pinacoteca é administrada pela Associação
Pinacoteca Arte e Cultura, qualificada como Organização Social da Cultura. Desde 2009 o
Memorial da Resistência de São Paulo é Membro Institucional da Coalizão Internacional de
Sítios de Consciência, uma rede mundial que agrega instituições constituídas em lugares
históricos dedicados à preservação das memórias de eventos passados de luta pela justiça e à
reflexão do seu legado na atualidade. O programa museológico do Memorial da Resistência
está estruturado em procedimentos de pesquisa, salvaguarda (documentação e conservação) e
comunicação patrimoniais (exposição e ação educativo-cultural), orientados para os enfoques
temáticos sobre resistência, controle e repressão política, por meio de seis linhas de ação que,
atuando articuladamente, têm como objetivo fazer dessa instituição um espaço voltado à
reflexão e que promova ações que contribuam para o exercício da cidadania, o aprimoramento
da democracia e a valorização de uma cultura em direitos humanos”.
(www.memorialdaresistenciasp.org.br. Acesso em: 22/10/16)
Essas informações são da própria página do Memorial. Para os fins que desejamos
alcançar com o presente trabalho, o setor mais interessante do site se refere ao projeto de ação
educativa da instituição. Nele, encontra-se uma aba com material de apoio pedagógico
disponível para download gratuito. Outra questão que vale ser observada com cuidado é um
curso oferecido pelo Memorial da Resistência sobre educação em direitos humanos, já que o
material do curso das edições de 2012 e 2013 também se encontra disponível.
O site é o www.memorialdaresistenciasp.org.br
No site do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, há, na tela inicial, um
link que redireciona o usuário ao blog Resistência em arquivo, parte que mais nos interessa
sob a perspectiva deste trabalho:
77
Segundo o blog,
considerando o contexto atual, momento em que se intensifica a busca por memória e verdade
através de ações como a promulgação a Lei de Acesso à Informação e a criação das Comissões
Nacional e Estadual da Verdade, a equipe do APERS se propôs a dar maior visibilidade ao
acervo oriundo do trabalho da Comissão Especial de Indenização, criando o Projeto
Resistência em Arquivo, que se desdobra nas seguintes ações: elaboração de um catálogo de
descrição do acervo, produção da Oficina de Educação Patrimonial “Resistência em Arquivo:
Patrimônio, Ditadura e Direitos Humanos”, incentivo à realização e participação em eventos
sobre o tema e criação deste blog. (www.apers.rs.gov.br. Acesso em: 22/10/16)
78
A página conta, ainda, com uma linha do tempo que seleciona acontecimentos
relevantes do ponto de vista da resistência e um grande acervo disponibilizando os principais
jornais alternativos do período do regime militar no Brasil. Eis alguns exemplos: O Pasquim,
Opinião, Pif Paf, entre outros.
Esse breve espaço não nos permitiria detalhar toda a riqueza de documentação que é
oferecida hoje em formato digital e online. O objetivo desse capítulo é aconselhar uma busca
por fontes e sugestões de atividades. Nossa proposta é que, atendendo aos princípios da
justiça de transição, o nosso processo de transição democrática seja efetivamente consolidado
e que o professor/historiador assuma sua função em meio a isso.
79
Considerações finais
Nossa pesquisa revelou, destacadamente, que o principal fator que leva os jovens a
justificarem a perda de liberdades e o desrespeito aos direitos da pessoa humana, por
exemplo, é a ideia de garantia da ordem. Existe uma determinada construção memorial
hegemônica entre eles que revela que o momento da ditadura militar promoveu um
crescimento econômico positivo para a sociedade, a quase ausência de corrupção e taxas
baixíssimas de criminalidade. Pudemos observar em seu discurso uma valorização da
liberdade de expressão e uma condenação da tortura, por exemplo. Contudo, democracia e
direitos humanos não aparecem como um valor absoluto, mas como algo flexível, que
consideram passível de negociação em determinados contextos desde que se destine à garantia
de uma “ordem social”. Observamos que isso é motivado principalmente por uma sensação de
desordem econômica, política e social na atualidade, fruto das informações que processam a
todo momento advindas de seus vários espaços de sociabilidade, da mídia, das redes sociais
etc.
80
possíveis e que elas estão em constante disputa. O ensino da ditadura civil-militar possibilita
problematizar algumas dessas “versões da história” (ou da memória) e auxiliar num processo
de construção da democracia e dos direitos humanos como valores absolutos.
Cabe lembrar que a educação em direitos humanos é recomendação das diretrizes para
o ensino de história na educação básica. Da mesma maneira, a consolidação da democracia e
do respeito aos direitos humanos deve ser trabalhada por meio de atividades pedagógicas,
conforme recomenda o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em consonância
com o processo de justiça de transição pós ditadura civil-militar no Brasil.
81
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