Melvin Menoviks CONTO NÃO TENHO BOCA E PRECISO GRITAR, de Harlan Ellison

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Melvin Menoviks

Um blog para quem não tem medo do escuro.

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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

CONTO: NÃO TENHO BOCA E


PRECISO GRITAR, de Harlan
Ellison

Num futuro pós-apocalíptico, um


supercomputador senciente mantém prisioneiros
os últimos seres humanos da Terra, impondo-lhes
aflitivas torturas físicas e psicológicas. Essa é a
premissa da qual parte Harlan Ellison para narrar
sua história mais famosa, “I Have no Mouth and I
Must Scream”, de 1967, que foi usada como
inspiração para o roteiro do filme O Exterminador
do Futuro e, mais recentemente, para o episódio
USS Calister, da série Black Mirror (o qual contém
uma referência mais do que óbvia para o conto).

“I Have no Mouth and I Must Scream”, ou “Não


Tenho Boca e Preciso Gritar”, foi escrito numa
época em que a tecnologia computacional de
inteligências artificiais ainda era uma novidade
pouco conhecida, cercada de mistérios e receios,
sendo ideal para todo tipo de especulações
apavorantes. Nessa época em que o cidadão
comum ainda teria de esperar algumas décadas
até ter a oportunidade de possuir um computador
caseiro vagamente similar aos que conhecemos
hoje, Harlan Ellison concebeu uma das primeiras
histórias modernas nas quais uma máquina
tirânica e onipotente satisfaz seu sadismo com a
tortura de seres humanos (“A Semente do Mal”,
de Dean Koontz, surgiria apenas seis anos
depois, em 1973). Foi nesse contexto, com
imaginação perversa atulhada de imagens
absurdas e situações insuportáveis, que o autor
escreveu sua bizarra versão para um pesadelo
tecnológico que, olhando hoje, parece ter menos
a ver com ficção científica do que com um terror
grotesco que beira a pura psicodelia.

Seja como for, trata-se de uma leitura insólita, no


genuíno espírito weird fiction das revistas pulp,
que aqui apresento em sua primeira tradução
para o português do Brasil.

NÃO TENHO BOCA E PRECISO GRITAR –


Harlan Ellison
Tradução de Melvin Menoviks

Flácido, o corpo de Gorrister pendia da paleta cor-


de-rosa; sem suporte: suspenso bem acima das
nossas cabeças na câmara do computador. E ele
não tremia na brisa fria e oleoginosa que soprava
eternamente pela caverna principal. O corpo
estava pendurado de ponta-cabeça, preso na
parte de baixo da paleta pela sola do pé direito. O
sangue havia sido drenado por meio de uma
incisão precisa feita de orelha a orelha ao longo
do maxilar saliente. Não havia uma única gota de
sangue na superfície espelhada do chão de metal.

Quando o próprio Gorrister se juntou ao grupo e


olhou para o corpo, já era tarde demais para
perceber que, uma vez mais, AM estava nos
enganando, divertindo-se às nossas custas; o
cadáver pendurado não passava de uma
brincadeira sádica por parte da máquina. O resto
de nós havia vomitado, afastando os rostos uns
dos outros em um reflexo tão antigo quanto a
náusea que o produziu.

Gorrister empalideceu. Era quase como se ele


tivesse se deparado com um boneco de vodu e
agora temesse o futuro.

– Meu Deus – ele disse em voz baixa e saiu de


perto.

Os quatro outros de nós fomos atrás dele depois


de um tempo e o encontramos sentado em um
dos bancos gelados, a cabeça apoiada entre as
mãos. Ellen se ajoelhou ao lado dele e acariciou-
lhe o cabelo. Ele não se mexeu, mas sua voz saiu
da face encoberta com bastante clareza:

– Por que ele não liquida a gente e termina com


isso de uma vez por todas? Jesus Cristo, eu não
sei mais quando tempo eu consigo aguentar.

Era o nosso centésimo nono ano dentro da


máquina.

Gorrister estava falando por todos nós.

Nimdok (esse era o nome que a máquina nos


havia forçado a usar para nosso companheiro,
porque AM se deleitava com sons estranhos)
estava achando que existia comida enlatada nas
cavernas de gelo. Gorrister e eu tínhamos nossas
dúvidas.

– É outra baboseira – eu falei. – Igual aquela


porcaria de elefante congelado que AM inventou
para a gente. Benny quase perdeu a cabeça
naquela vez. Nós vamos nos arrastar por todo o
caminho e a comida vai estar apodrecida ou
alguma merda desse tipo. Temos que esquecer
isso. Vamos ficar por aqui mesmo, ele vai ter que
nos trazer alguma coisa para comer logo-logo ou
então nós vamos morrer.

Benny deu de ombros. Fazia três dias desde a


última vez em que havíamos comido. Minhocas.
Grossas e pegajosas.

Nimdok já não tinha mais certeza. Ele sabia que


era palpável a chance de aquilo ser uma pilhéria
da máquina, mas seu corpo estava ficando
esquelético. Lá nas cavernas não poderia ser
muito pior do que aqui. Estaria mais frio, é claro,
mas isso não importava tanto. Quente, frio,
granizo, lava, furúnculos ou pragas – não fazia
diferença: a máquina se masturbava e nós
tínhamos que suportar ou então morrer.

Ellen decidiu por nós:

– Eu preciso comer alguma coisa, Ted. Talvez


haja alguma fruta por lá. Por favor, Ted, vamos
tentar.

Eles me venceram com facilidade. Que inferno.


Mas eu estava pouco me lixando. A Ellen ficou
agradecida. Ela aceitou “me receber” duas vezes
fora da ordem. Mas até isso tinha deixado de
importar. Ela nunca gozava, então por que eu
deveria dar valor a isso? A máquina, porém,
soltava risadinhas todas as vezes em que a gente
transava. Bem alto, do teto, pelas costas, por
todos os lados, debochando da gente. Aquela
coisa rindo sem parar. Na maior parte das vezes
eu pensava em AM como uma coisa, um objeto
sem alma; mas no resto do tempo eu pensava
nele como alguém, e alguém no masculino... algo
paternal... patriarcal... um homem muito egoísta e
ciumento. Ele. Deus como um Papai Degenerado.

Partimos na quinta-feira. A máquina sempre nos


mantinha atualizados quanto à data. A passagem
do tempo era importante; não para nós, com toda
certeza, mas para ele... AM. Quinta-feira.
Obrigado.

Nimdok e Gorrister carregaram Ellen durante um


tempo, suas mãos segurando firme os punhos um
do outro para formar um assento. Benny ia atrás e
eu ia na frente, só para assegurar que, se
acontecesse alguma coisa, seria só com um de
nós, e pelo menos Ellen sairia ilesa. Ilesa,
imaginem! Como se fizesse qualquer diferença.

As cavernas de gelo ficavam a cerca de mil e


quinhentos quilômetros dali. No segundo dia de
viagem, quando estávamos descansando sob
aquela forma parecida com sol que AM havia
materializado, ele nos enviou uma gororoba
fétida, nosso maná. Tinha gosto de urina de porco
fervida. Comemos tudo.

No terceiro dia nós atravessamos o vale da


obsolescência, um lugar cheio de carcaças
oxidadas de computadores antiquados. AM foi tão
impiedoso com sua própria vida quanto com as
nossas. A luta pela perfeição era uma marca forte
de sua personalidade. Se se tratava de uma
questão de eliminar elementos improdutivos de
sua própria massa ou de aperfeiçoar métodos
para nos torturar, AM era tão meticuloso quanto
poderiam sonhar aqueles que o inventaram – os
quais há muito já haviam virado poeira.

Notamos que certa luminosidade estava se


infiltrando naquele local, então chegamos à
conclusão de que deveríamos estar bem próximos
da superfície. Mas era de conhecimento geral que
nenhum de nós deveria escalar para confirmar.
Não havia absolutamente nada lá fora; por mais
de cem anos, não havia nada que pudesse ser
considerado alguma coisa. Somente os destroços
carbonizados do que antes foram as casas de
bilhões de pessoas. Agora havia apenas cinco de
nós, esquecidos aqui dentro, sozinhos com AM.

Ouvi Ellen dizer de modo frenético:

– Não, Benny, não! Por favor, Benny, não faça


isso!

E então eu percebi que eu estava ouvindo Benny


murmurar, sob a respiração, por vários minutos.
Ele dizia, repetindo e repetindo e repetindo: “Eu
vou sair daqui, eu vou sair, vou sair daqui...”. Seu
rosto de macaco estava deformado em uma
expressão beatífica de tristeza e prazer, tudo
misturado. As cicatrizes de radiação que AM lhe
dera durante o “festival” foram desenhadas em
uma massa de rugas brancas e rosadas cujas
partes pareciam se mexer umas independentes
das outras. Benny talvez tenha sido o mais
sortudo de nós cinco: ele havia pirado de vez,
tendo enlouquecido alguns anos atrás.

Acontece que, apesar de nós podermos xingar


AM com o nome que quiséssemos e ter qualquer
pensamento ultrajante sobre chips derretidos,
placas-mãe corroídas, circuitos queimados e
painéis de controle estraçalhados (pois a máquina
aceitava isso tudo), ela, por outro lado, não
tolerava que tentássemos escapar. Benny saltou
para longe de mim quando eu tentei agarrá-lo. Ele
se arrastou trepando em um cubo de memória
entortado e infestado de componentes
apodrecidos e ficou ali por um tempo, de cócoras,
como o primata com que AM pretendia que ele se
parecesse.

Então ele pulou bem alto, segurou um maço de


metais corroídos e subiu, mão após mão feito um
chipanzé, até chegar à borda uns 6 metros acima
da gente.

– Ted, Nimdok, por favor, ajudem-no, façam-no


descer antes que... – Ellen parou. Lágrimas
acumulavam-se em seus olhos. Ela mexia as
mãos sem rumo.

Era tarde demais. Nenhum de nós queria estar


perto dele quando o que quer que fosse acontecer
de fato acontecesse. Além disso, todos
percebemos a preocupação da Ellen. Quando
AM, em sua fase histérica, completamente
irracional, metamorfoseou Benny, não foi apenas
o rosto dele que o computador transformou na de
um símio gigantesco. Benny ficou grande também
nas partes íntimas, e ela amou aquilo! Ela se
entregava à gente, como era de se esperar, mas o
que ela adorava mesmo era receber dele. Oh,
Ellen, Ellen, doce Ellen que colocávamos num
pedestal. Ellen pura e imaculada, Ellen tão
límpida. Vadia imunda!

Gorrister a estapeou. Ela caiu no chão, erguendo


logo os olhos para o pobre Benny enlouquecido, e
desatou a chorar. Seu maior escudo era chorar.
Nós havíamos nos acostumado com isso setenta
e cinco anos atrás. Gorrister a chutou na costela.

Nessa hora o som começou. Era um som leve, no


início. Metade som, metade luz, algo que
começou a brilhar para fora dos olhos de Benny e
a pulsar com estridência crescente, sonoridades
enturvecidas que cresciam cada vez mais,
colossais e fulgurantes, conforme a luz/som
aumentava em ritmo. Deve ter sido doloroso, e a
dor provavelmente estava crescendo na mesma
proporção da intensidade da luz e do volume do
som, pois Benny passou a choramingar em
miados como um animal ferido. Primeiro bem
baixo, quando a luz estava fraca e o som ainda
era quase inaudível, mas crescendo conforme
seus ombros se retorciam e se engrunhiam,
aproximando-se um do outro: as costas se
encurvando como se ele estivesse tentando
escapar da própria corcunda. Suas mãos meio
que atrofiadas se dobravam sobre o peito como
se fossem as patas de um esquilo. A cabeça
inclinava-se torta para o lado. A pequena e triste
cabeça de macaco comprimindo-se em agonia.
Então ele começou a berrar e a uivar, e os sons
vindos de seus olhos ficavam mais altos. Mais e
mais altos. Eu tampei os ouvidos com as mãos,
mas não dava para impedir aquele som, ele
atravessava tudo com facilidade. A dor fez minha
carne estremecer como se uma chapa de
alumínio estivesse sendo esfregada em um dente.

Na sequência Benny foi subitamente puxado para


ficar ereto. Ficou de pé sobre a viga em que
estava e rodou na ponta dos pés à maneira de
uma marionete. A luz agora era lançada para
além dos olhos em dois grandes feixes cônicos. O
som continuava aumentando insuportavelmente,
chegando a atingir uma escala incompreensível, e
Benny caiu para a frente, direto para baixo,
esborrachando-se no chão de aço com uma
pancada estrondosa. Ele ficou estirado,
sacudindo-se espasmodicamente de um lado para
o outro, os feixes de luz girando em ângulos
desnorteados e o som crescendo num espiral
ruidoso para fora de quaisquer níveis normais.

Então lentamente a luz esmaeceu de volta para


dentro da cabeça, o som foi diminuindo e Benny
foi deixado lá, chorando copiosamente.

Seus olhos eram duas bolas úmidas e moles de


uma geleia parecida com pus. AM o havia deixado
cego. Gorrister, Nimdok e eu... nós olhamos para
o outro lado. Mas não antes de termos notado a
expressão de alívio no rosto de Ellen.

Uma luz verde-marítima inundava a caverna onde


havíamos montado acampamento. AM
providenciou quinquilharias e nós as utilizamos
como lenha. Sentamos amontoados ao redor de
um fogo patético de tão fraco e ficamos contando
histórias para evitar que Benny voltasse a chorar
em sua noite permanente.

– O que significa “AM”, afinal?

Gorrister respondeu. Nós já havíamos repetido


essa conversa milhares de vezes antes, mas era
a história favorita do Benny.

– No começo significava Allied Mastercomputer


[Computador-mestre Aliado], depois passou a
significar Adaptative Manipulator [Manipulador
Adaptativo], mas mais tarde ele se tornou
consciente e passaram a chamá-lo de Agressive
Menace [Ameaça Agressiva], só que aí já era
tarde demais e, por fim, ele mesmo, com sua
inteligência emergente, passou a se chamar de
AM, dizendo que isso significa “I am”, ou seja, “eu
sou”... I think, therefore I am... Penso, logo existo.

Benny deixou uma baba escorrer, depois riu para


si mesmo.

– Havia o AM chinês, o AM russo e o AM


americano... – Ele se deteve. Benny estava
esmurrando o chão com o punho cerrado. Benny
não estava feliz. Gorrister não havia começado do
começo.

Gorrister voltou ao início:

– A Guerra Fria cresceu, tornou-se a Terceira


Guerra Mundial e foi se expandindo. Aquilo virou
uma guerra enorme, uma guerra muito complexa,
de modo que os envolvidos precisaram de
computadores para lidar com os problemas que
iam aparecendo. Eles passaram a construir os
AMs. Havia o AM chinês, o AM russo e o AM
americano. Tudo ia bem, até que eles resolveram
interligar tudo no planeta inteiro. Um dia AM
despertou e percebeu quem ele era. Ele
estabeleceu novas conexões e foi alimentando os
dados para fazer novas matanças, e foi assim até
que todo mundo estivesse morto, exceto por nós
cinco. E aí AM nos trouxe para cá.

Benny sorria satisfeito. Ele babava de novo. Com


a bainha da saia, Ellen enxugou-lhe a saliva no
canto da boca. Gorrister sempre tentava contar a
história de forma cada vez mais sucinta, mas a
verdade é que, além dos fatos nus e crus, não
havia nada mais para ser dito. Nenhum de nós
sabia por que motivo AM havia preservado cinco
pessoas ou por que escolhera a gente em
específico. Também não sabíamos por que ele
passava o tempo todo nos atormentando ou
sequer por que ele havia nos tornado virtualmente
imortais...

Na escuridão, um dos centros de processamento


de dados começou a zunir. A quase um
quilômetro de distância através das entranhas da
caverna, outro fez o mesmo, acompanhando o
tom. Então, uma a uma, cada parte da máquina
foi entrando em atividade, vibrando excitada com
um estremecimento que lhe percorria por inteira.

O som aumentou e as luzes foram se acendendo


nos painéis como se fossem relâmpagos. O
barulho cresceu tanto que soava como um milhão
de insetos metálicos fervilhando numa ameaça
furibunda, tresloucada, sem controle.

– O que é isso? – Questionou Ellen, com a voz


cheia de pavor. Mesmo depois de tanto tempo, ela
ainda não estava acostumada com aquilo.

– Vai ser terrível desta vez – Nimdok falou.

– Ele vai agir – Gorrister disse. – Eu sei que vai.

– Vamos fugir daqui! – Gritei de repente, pondo-


me em pé.

– Não, Ted. Sente-se... Ele pode ter colocado


fossos por aí ou alguma outra armadilha qualquer.
Não vai dar pra ver, está escuro demais –
Gorrister falou com resignação.

Foi aí que nós ouvimos... Eu não sei...

Algo estava se movendo próximo da gente, oculto


pelas trevas. Enorme, trôpego, peludo, gosmento,
avançando em nossa direção. Não conseguíamos
nem ao menos vislumbrar seu vulto, mas havia
aquela forte impressão de que se tratava de algo
corpulento, de uma massa volumosa, um peso
enorme, saindo da negrura de breu para nos
atropelar. Era mais uma sensação de pressão, de
ar comprimido num espaço limitado e fazendo
força para escapar, expandindo as paredes de
uma esfera invisível. Benny lamuriava. Nimdok
mordeu o lábio inferior para fazê-lo parar de
tremer. Ellen deslizou pelo piso metálico para se
aninhar no abraço do Gorrister. Havia cheiro de
carpete embolorado na caverna. Havia cheiro de
madeira empenada. Havia cheiro de veludo sujo.
Havia cheiro de orquídeas apodrecidas. Havia
cheiro de leite estragado. Havia cheiro de enxofre,
de manteiga azeda, de óleo viscoso, de graxa, de
pó de giz, de cadáveres escalpelados.

AM estava nos atiçando. Nos provocando. Havia


cheiro de...

Escutei a mim mesmo guinchar de dor e percebi


que sentia uma pontada terrível e persistente na
articulação da mandíbula. Sai correndo de quatro,
escorregando na frigidez do metal, o fedor me
sufocando, a cabeça estalando com uma dor
trovejante que me fazia fugir horrorizado. Fugi
feito uma barata, devorado pela escuridão, aquela
coisa me perseguindo, inexorável, sempre ao meu
encalço. Os outros continuavam lá atrás,
aglomerados ao redor da fogueira, soltando
risadinhas... o coro histérico de gargalhadas
dementes revolteando na escuridão como fumaça
enfeitiçada. Afastei-me o mais depressa possível
e me escondi.

Nunca me disseram quantas horas, dias, ou até


anos, eu fiquei assim. Ellen esbravejou por eu ter
ficado amuado e de mau humor e Nimdok tentou
me convencer de que aquelas risadas foram
apenas atos-reflexos resultantes do nervosismo
deles.

Mas eu sabia que não se tratava daquele alívio


que um soldado sente quando a bala atinge o
homem ao seu lado. Eu sabia que não se trava de
um ato-reflexo. Eles me odiavam, isso sim. Eles
com certeza estavam em conluio de ódio contra
mim, e AM podia sentir esse ódio, fazendo tudo
piorar para o meu lado justamente por causa da
profundidade do sentimento. Nós estávamos
sendo mantidos vivos de tal forma que
permanecíamos sempre com a mesma idade que
tínhamos quando AM nos trouxe aqui para baixo,
de modo que eles me odiavam porque eu era o
mais jovem e, também, porque eu era aquele a
quem AM havia afligido menos.

Eu sabia. Deus, como eu sabia! Aqueles


bastardos. Aquela puta suja da Ellen. Benny havia
sido um teórico brilhante, um professor
universitário; agora ele era pouco mais do que
meio-homem, meio-símio. Ele havia sido bonito, e
a máquina arruinou isso. Ele fora lúcido, e a
máquina o levou à loucura. Ele sempre fora gay, e
a máquina lhe presenteou com um órgão do
tamanho do de um cavalo. É, AM fez um belo
serviço em Benny. Gorrister, por sua vez, era um
homem antenado e consciencioso. Pacifista,
promovia marchas contra a guerra; era um cara
que não sabia ficar parado – era um planejador,
um empreendedor, alguém que via mais longe.
Nas mãos de AM ele se tornou indiferente, um
morto-vivo sem ânimo, como se lhe tivessem
sugado os sonhos e as energias. Nimdok passava
longos períodos sozinho no escuro. Eu não sabia
o que ele fazia nesses momentos de reclusão, AM
nunca nos deixou saber. Mas, seja lá o que fosse,
Nimdok sempre voltava pálido como se o sangue
tivesse lhe fugido do corpo, deixando-o abalado,
trêmulo. AM o atingiu em cheio de uma maneira
toda especial, muito embora nós não
soubéssemos como. E Ellen. Aquela babaca. AM
não mexeu com ela, deixou que ela mesma se
tornasse por si só uma vadiazinha ainda mais
vulgar do que ela já era. Todo aquele discurso
doce sobre luz e esperança, todas as memórias
de amor verdadeiro que ela dizia ter, todas
aquelas mentiras em que ela queria que a gente
acreditasse: aquele papo de que ela era virgem
até cair nas garras de AM. Conversa fiada! A
pequena Ellen, minha pequena Ellen. Ela adorava
aquilo, quatro homens só para ela. Não, não, eu
sabia que AM lhe dava prazer, mesmo ela
dizendo que não era legal fazer aquilo tudo.

Eu fui o único a conservar a sanidade e a


integridade. Fui sim!

AM não mexeu na minha cabeça, de jeito


nenhum.

Eu só tinha que suportar os castigos que ele


inventava para a gente. Todas as ilusões, os
pesadelos, os tormentos... Mas aqueles porcos,
todos os quatro, eles estavam alinhados e
arranjados contra mim. Se eu não precisasse
mantê-los à distância o tempo todo, se eu não
precisasse ficar em guarda a cada segundo,
então provavelmente teria sido mais fácil lutar
contra AM.

A essa altura a dor passou e eu comecei a chorar.

Ah, Jesus, meu bom Jesus, se algum dia houve


algum Jesus e se existir algum Deus, eu imploro,
eu suplico, tire-nos daqui, ou pelo menos nos
deixe morrer, porfavor-porfavor-porfavor. Pois
agora eu acho que compreendi tudo por completo,
compreendi tão bem a ponto de conseguir
expressar em palavras: AM pretende nos manter
em seu estômago para sempre, nos retorcendo e
nos torturando pela eternidade. A máquina
sempre nos detestou com um ódio tão grande que
chega a atinjir um tamanho que nenhuma outra
criatura dotada de sensibilidade jamais
experimentou antes. E nós estávamos indefesos.

Assim, outra verdade se tornou horrorosamente


clara para nós: se existiu um Jesus e se existe um
Deus, então esse Deus só pode ser AM.

O ciclone nos atingiu com a força de uma geleira


rachando estrondosamente no oceano. Era uma
presença palpável. Ventos que rasgavam a nossa
pele, forçando-nos a voltar pelo caminho pelo qual
havíamos vindo, descendo pelos meandros dos
corredores escuros forrados de painéis de
computador. Ellen gritou ao ser levantada no ar e
arremessada de encontro a um entulho de
máquinas ruidosas, cada uma delas mais
estridente do que revoada de morcegos. Mas ela
não conseguiu sequer cair. O vento ululante a
manteve flutuando, esbofeteando-a, batendo-lhe o
corpo contra os objetos, jogando-a de um lado
para o outro, para trás, para o fundo, para longe
de nós, sumindo de repente de vista assim que o
redemoinho a fez virar na esquina de um beco
cuja escuridão a devorou. O rosto estava
ensanguentado; os olhos, fechados.

Nenhum de nós conseguiu alcançá-la. Esforçamo-


nos para nos agarrar com tenacidade em
qualquer saliência que se mostrasse ao nosso
alcance: Benny se enfiou num vão entre dois
armários de aço escovado. Nimdok ficou com os
dedos em forma de garra fincados à grade de
uma passarela a mais de dez metros do chão.
Gorrister se manteve colado de cabeça para baixo
na reentrância de umas paredes formadas por
duas grandes máquinas com mostradores de
vidro que oscilavam entre linhas vermelhas e
amarelas cujos significados nós não
conseguíamos nem adivinhar.

Ao deslizar pelas chapas de aço do pavimento, as


pontas dos meus dedos foram cortadas. Eu
estava tiritante, tremelicando, balançando
conforme o vento me batia, me açoitava, gritava
comigo, vindo de lugar nenhum, e me arrancava
da fenda da chapa em que eu me prendia para
então me arrastar à outra, à qual eu me segurava
para logo em seguida ser desprendido
novamente. Minha mente era uma mixórdia
embaralhada de resíduos cerebrais turbulentos,
fragmentados e estilhaçados que trinavam e
retiniam, tudo se expandindo e se contraindo num
frenesi palpitante.

O vento era o grito de um enorme pássaro


enlouquecido batendo asas imensas.

E assim fomos todos erguidos e lançados para


longe dali, de volta para os locais de onde
tínhamos vindo, dobrando curvas, depois
adentrando em escuridões nunca antes
exploradas, seguindo por becos sem luz que nos

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