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Melvin Menoviks
Um blog para quem não tem medo do escuro.
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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019
CONTO: NÃO TENHO BOCA E
PRECISO GRITAR, de Harlan Ellison
Num futuro pós-apocalíptico, um
supercomputador senciente mantém prisioneiros os últimos seres humanos da Terra, impondo-lhes aflitivas torturas físicas e psicológicas. Essa é a premissa da qual parte Harlan Ellison para narrar sua história mais famosa, “I Have no Mouth and I Must Scream”, de 1967, que foi usada como inspiração para o roteiro do filme O Exterminador do Futuro e, mais recentemente, para o episódio USS Calister, da série Black Mirror (o qual contém uma referência mais do que óbvia para o conto).
“I Have no Mouth and I Must Scream”, ou “Não
Tenho Boca e Preciso Gritar”, foi escrito numa época em que a tecnologia computacional de inteligências artificiais ainda era uma novidade pouco conhecida, cercada de mistérios e receios, sendo ideal para todo tipo de especulações apavorantes. Nessa época em que o cidadão comum ainda teria de esperar algumas décadas até ter a oportunidade de possuir um computador caseiro vagamente similar aos que conhecemos hoje, Harlan Ellison concebeu uma das primeiras histórias modernas nas quais uma máquina tirânica e onipotente satisfaz seu sadismo com a tortura de seres humanos (“A Semente do Mal”, de Dean Koontz, surgiria apenas seis anos depois, em 1973). Foi nesse contexto, com imaginação perversa atulhada de imagens absurdas e situações insuportáveis, que o autor escreveu sua bizarra versão para um pesadelo tecnológico que, olhando hoje, parece ter menos a ver com ficção científica do que com um terror grotesco que beira a pura psicodelia.
Seja como for, trata-se de uma leitura insólita, no
genuíno espírito weird fiction das revistas pulp, que aqui apresento em sua primeira tradução para o português do Brasil.
NÃO TENHO BOCA E PRECISO GRITAR –
Harlan Ellison Tradução de Melvin Menoviks
Flácido, o corpo de Gorrister pendia da paleta cor-
de-rosa; sem suporte: suspenso bem acima das nossas cabeças na câmara do computador. E ele não tremia na brisa fria e oleoginosa que soprava eternamente pela caverna principal. O corpo estava pendurado de ponta-cabeça, preso na parte de baixo da paleta pela sola do pé direito. O sangue havia sido drenado por meio de uma incisão precisa feita de orelha a orelha ao longo do maxilar saliente. Não havia uma única gota de sangue na superfície espelhada do chão de metal.
Quando o próprio Gorrister se juntou ao grupo e
olhou para o corpo, já era tarde demais para perceber que, uma vez mais, AM estava nos enganando, divertindo-se às nossas custas; o cadáver pendurado não passava de uma brincadeira sádica por parte da máquina. O resto de nós havia vomitado, afastando os rostos uns dos outros em um reflexo tão antigo quanto a náusea que o produziu.
Gorrister empalideceu. Era quase como se ele
tivesse se deparado com um boneco de vodu e agora temesse o futuro.
– Meu Deus – ele disse em voz baixa e saiu de
perto.
Os quatro outros de nós fomos atrás dele depois
de um tempo e o encontramos sentado em um dos bancos gelados, a cabeça apoiada entre as mãos. Ellen se ajoelhou ao lado dele e acariciou- lhe o cabelo. Ele não se mexeu, mas sua voz saiu da face encoberta com bastante clareza:
– Por que ele não liquida a gente e termina com
isso de uma vez por todas? Jesus Cristo, eu não sei mais quando tempo eu consigo aguentar.
Era o nosso centésimo nono ano dentro da
máquina.
Gorrister estava falando por todos nós.
Nimdok (esse era o nome que a máquina nos
havia forçado a usar para nosso companheiro, porque AM se deleitava com sons estranhos) estava achando que existia comida enlatada nas cavernas de gelo. Gorrister e eu tínhamos nossas dúvidas.
– É outra baboseira – eu falei. – Igual aquela
porcaria de elefante congelado que AM inventou para a gente. Benny quase perdeu a cabeça naquela vez. Nós vamos nos arrastar por todo o caminho e a comida vai estar apodrecida ou alguma merda desse tipo. Temos que esquecer isso. Vamos ficar por aqui mesmo, ele vai ter que nos trazer alguma coisa para comer logo-logo ou então nós vamos morrer.
Benny deu de ombros. Fazia três dias desde a
última vez em que havíamos comido. Minhocas. Grossas e pegajosas.
Nimdok já não tinha mais certeza. Ele sabia que
era palpável a chance de aquilo ser uma pilhéria da máquina, mas seu corpo estava ficando esquelético. Lá nas cavernas não poderia ser muito pior do que aqui. Estaria mais frio, é claro, mas isso não importava tanto. Quente, frio, granizo, lava, furúnculos ou pragas – não fazia diferença: a máquina se masturbava e nós tínhamos que suportar ou então morrer.
Ellen decidiu por nós:
– Eu preciso comer alguma coisa, Ted. Talvez
haja alguma fruta por lá. Por favor, Ted, vamos tentar.
Eles me venceram com facilidade. Que inferno.
Mas eu estava pouco me lixando. A Ellen ficou agradecida. Ela aceitou “me receber” duas vezes fora da ordem. Mas até isso tinha deixado de importar. Ela nunca gozava, então por que eu deveria dar valor a isso? A máquina, porém, soltava risadinhas todas as vezes em que a gente transava. Bem alto, do teto, pelas costas, por todos os lados, debochando da gente. Aquela coisa rindo sem parar. Na maior parte das vezes eu pensava em AM como uma coisa, um objeto sem alma; mas no resto do tempo eu pensava nele como alguém, e alguém no masculino... algo paternal... patriarcal... um homem muito egoísta e ciumento. Ele. Deus como um Papai Degenerado.
Partimos na quinta-feira. A máquina sempre nos
mantinha atualizados quanto à data. A passagem do tempo era importante; não para nós, com toda certeza, mas para ele... AM. Quinta-feira. Obrigado.
Nimdok e Gorrister carregaram Ellen durante um
tempo, suas mãos segurando firme os punhos um do outro para formar um assento. Benny ia atrás e eu ia na frente, só para assegurar que, se acontecesse alguma coisa, seria só com um de nós, e pelo menos Ellen sairia ilesa. Ilesa, imaginem! Como se fizesse qualquer diferença.
As cavernas de gelo ficavam a cerca de mil e
quinhentos quilômetros dali. No segundo dia de viagem, quando estávamos descansando sob aquela forma parecida com sol que AM havia materializado, ele nos enviou uma gororoba fétida, nosso maná. Tinha gosto de urina de porco fervida. Comemos tudo.
No terceiro dia nós atravessamos o vale da
obsolescência, um lugar cheio de carcaças oxidadas de computadores antiquados. AM foi tão impiedoso com sua própria vida quanto com as nossas. A luta pela perfeição era uma marca forte de sua personalidade. Se se tratava de uma questão de eliminar elementos improdutivos de sua própria massa ou de aperfeiçoar métodos para nos torturar, AM era tão meticuloso quanto poderiam sonhar aqueles que o inventaram – os quais há muito já haviam virado poeira.
Notamos que certa luminosidade estava se
infiltrando naquele local, então chegamos à conclusão de que deveríamos estar bem próximos da superfície. Mas era de conhecimento geral que nenhum de nós deveria escalar para confirmar. Não havia absolutamente nada lá fora; por mais de cem anos, não havia nada que pudesse ser considerado alguma coisa. Somente os destroços carbonizados do que antes foram as casas de bilhões de pessoas. Agora havia apenas cinco de nós, esquecidos aqui dentro, sozinhos com AM.
Ouvi Ellen dizer de modo frenético:
– Não, Benny, não! Por favor, Benny, não faça
isso!
E então eu percebi que eu estava ouvindo Benny
murmurar, sob a respiração, por vários minutos. Ele dizia, repetindo e repetindo e repetindo: “Eu vou sair daqui, eu vou sair, vou sair daqui...”. Seu rosto de macaco estava deformado em uma expressão beatífica de tristeza e prazer, tudo misturado. As cicatrizes de radiação que AM lhe dera durante o “festival” foram desenhadas em uma massa de rugas brancas e rosadas cujas partes pareciam se mexer umas independentes das outras. Benny talvez tenha sido o mais sortudo de nós cinco: ele havia pirado de vez, tendo enlouquecido alguns anos atrás.
Acontece que, apesar de nós podermos xingar
AM com o nome que quiséssemos e ter qualquer pensamento ultrajante sobre chips derretidos, placas-mãe corroídas, circuitos queimados e painéis de controle estraçalhados (pois a máquina aceitava isso tudo), ela, por outro lado, não tolerava que tentássemos escapar. Benny saltou para longe de mim quando eu tentei agarrá-lo. Ele se arrastou trepando em um cubo de memória entortado e infestado de componentes apodrecidos e ficou ali por um tempo, de cócoras, como o primata com que AM pretendia que ele se parecesse.
Então ele pulou bem alto, segurou um maço de
metais corroídos e subiu, mão após mão feito um chipanzé, até chegar à borda uns 6 metros acima da gente.
– Ted, Nimdok, por favor, ajudem-no, façam-no
descer antes que... – Ellen parou. Lágrimas acumulavam-se em seus olhos. Ela mexia as mãos sem rumo.
Era tarde demais. Nenhum de nós queria estar
perto dele quando o que quer que fosse acontecer de fato acontecesse. Além disso, todos percebemos a preocupação da Ellen. Quando AM, em sua fase histérica, completamente irracional, metamorfoseou Benny, não foi apenas o rosto dele que o computador transformou na de um símio gigantesco. Benny ficou grande também nas partes íntimas, e ela amou aquilo! Ela se entregava à gente, como era de se esperar, mas o que ela adorava mesmo era receber dele. Oh, Ellen, Ellen, doce Ellen que colocávamos num pedestal. Ellen pura e imaculada, Ellen tão límpida. Vadia imunda!
Gorrister a estapeou. Ela caiu no chão, erguendo
logo os olhos para o pobre Benny enlouquecido, e desatou a chorar. Seu maior escudo era chorar. Nós havíamos nos acostumado com isso setenta e cinco anos atrás. Gorrister a chutou na costela.
Nessa hora o som começou. Era um som leve, no
início. Metade som, metade luz, algo que começou a brilhar para fora dos olhos de Benny e a pulsar com estridência crescente, sonoridades enturvecidas que cresciam cada vez mais, colossais e fulgurantes, conforme a luz/som aumentava em ritmo. Deve ter sido doloroso, e a dor provavelmente estava crescendo na mesma proporção da intensidade da luz e do volume do som, pois Benny passou a choramingar em miados como um animal ferido. Primeiro bem baixo, quando a luz estava fraca e o som ainda era quase inaudível, mas crescendo conforme seus ombros se retorciam e se engrunhiam, aproximando-se um do outro: as costas se encurvando como se ele estivesse tentando escapar da própria corcunda. Suas mãos meio que atrofiadas se dobravam sobre o peito como se fossem as patas de um esquilo. A cabeça inclinava-se torta para o lado. A pequena e triste cabeça de macaco comprimindo-se em agonia. Então ele começou a berrar e a uivar, e os sons vindos de seus olhos ficavam mais altos. Mais e mais altos. Eu tampei os ouvidos com as mãos, mas não dava para impedir aquele som, ele atravessava tudo com facilidade. A dor fez minha carne estremecer como se uma chapa de alumínio estivesse sendo esfregada em um dente.
Na sequência Benny foi subitamente puxado para
ficar ereto. Ficou de pé sobre a viga em que estava e rodou na ponta dos pés à maneira de uma marionete. A luz agora era lançada para além dos olhos em dois grandes feixes cônicos. O som continuava aumentando insuportavelmente, chegando a atingir uma escala incompreensível, e Benny caiu para a frente, direto para baixo, esborrachando-se no chão de aço com uma pancada estrondosa. Ele ficou estirado, sacudindo-se espasmodicamente de um lado para o outro, os feixes de luz girando em ângulos desnorteados e o som crescendo num espiral ruidoso para fora de quaisquer níveis normais.
Então lentamente a luz esmaeceu de volta para
dentro da cabeça, o som foi diminuindo e Benny foi deixado lá, chorando copiosamente.
Seus olhos eram duas bolas úmidas e moles de
uma geleia parecida com pus. AM o havia deixado cego. Gorrister, Nimdok e eu... nós olhamos para o outro lado. Mas não antes de termos notado a expressão de alívio no rosto de Ellen.
Uma luz verde-marítima inundava a caverna onde
havíamos montado acampamento. AM providenciou quinquilharias e nós as utilizamos como lenha. Sentamos amontoados ao redor de um fogo patético de tão fraco e ficamos contando histórias para evitar que Benny voltasse a chorar em sua noite permanente.
– O que significa “AM”, afinal?
Gorrister respondeu. Nós já havíamos repetido
essa conversa milhares de vezes antes, mas era a história favorita do Benny.
– No começo significava Allied Mastercomputer
[Computador-mestre Aliado], depois passou a significar Adaptative Manipulator [Manipulador Adaptativo], mas mais tarde ele se tornou consciente e passaram a chamá-lo de Agressive Menace [Ameaça Agressiva], só que aí já era tarde demais e, por fim, ele mesmo, com sua inteligência emergente, passou a se chamar de AM, dizendo que isso significa “I am”, ou seja, “eu sou”... I think, therefore I am... Penso, logo existo.
Benny deixou uma baba escorrer, depois riu para
si mesmo.
– Havia o AM chinês, o AM russo e o AM
americano... – Ele se deteve. Benny estava esmurrando o chão com o punho cerrado. Benny não estava feliz. Gorrister não havia começado do começo.
Gorrister voltou ao início:
– A Guerra Fria cresceu, tornou-se a Terceira
Guerra Mundial e foi se expandindo. Aquilo virou uma guerra enorme, uma guerra muito complexa, de modo que os envolvidos precisaram de computadores para lidar com os problemas que iam aparecendo. Eles passaram a construir os AMs. Havia o AM chinês, o AM russo e o AM americano. Tudo ia bem, até que eles resolveram interligar tudo no planeta inteiro. Um dia AM despertou e percebeu quem ele era. Ele estabeleceu novas conexões e foi alimentando os dados para fazer novas matanças, e foi assim até que todo mundo estivesse morto, exceto por nós cinco. E aí AM nos trouxe para cá.
Benny sorria satisfeito. Ele babava de novo. Com
a bainha da saia, Ellen enxugou-lhe a saliva no canto da boca. Gorrister sempre tentava contar a história de forma cada vez mais sucinta, mas a verdade é que, além dos fatos nus e crus, não havia nada mais para ser dito. Nenhum de nós sabia por que motivo AM havia preservado cinco pessoas ou por que escolhera a gente em específico. Também não sabíamos por que ele passava o tempo todo nos atormentando ou sequer por que ele havia nos tornado virtualmente imortais...
Na escuridão, um dos centros de processamento
de dados começou a zunir. A quase um quilômetro de distância através das entranhas da caverna, outro fez o mesmo, acompanhando o tom. Então, uma a uma, cada parte da máquina foi entrando em atividade, vibrando excitada com um estremecimento que lhe percorria por inteira.
O som aumentou e as luzes foram se acendendo
nos painéis como se fossem relâmpagos. O barulho cresceu tanto que soava como um milhão de insetos metálicos fervilhando numa ameaça furibunda, tresloucada, sem controle.
– O que é isso? – Questionou Ellen, com a voz
cheia de pavor. Mesmo depois de tanto tempo, ela ainda não estava acostumada com aquilo.
– Vai ser terrível desta vez – Nimdok falou.
– Ele vai agir – Gorrister disse. – Eu sei que vai.
– Vamos fugir daqui! – Gritei de repente, pondo-
me em pé.
– Não, Ted. Sente-se... Ele pode ter colocado
fossos por aí ou alguma outra armadilha qualquer. Não vai dar pra ver, está escuro demais – Gorrister falou com resignação.
Foi aí que nós ouvimos... Eu não sei...
Algo estava se movendo próximo da gente, oculto
pelas trevas. Enorme, trôpego, peludo, gosmento, avançando em nossa direção. Não conseguíamos nem ao menos vislumbrar seu vulto, mas havia aquela forte impressão de que se tratava de algo corpulento, de uma massa volumosa, um peso enorme, saindo da negrura de breu para nos atropelar. Era mais uma sensação de pressão, de ar comprimido num espaço limitado e fazendo força para escapar, expandindo as paredes de uma esfera invisível. Benny lamuriava. Nimdok mordeu o lábio inferior para fazê-lo parar de tremer. Ellen deslizou pelo piso metálico para se aninhar no abraço do Gorrister. Havia cheiro de carpete embolorado na caverna. Havia cheiro de madeira empenada. Havia cheiro de veludo sujo. Havia cheiro de orquídeas apodrecidas. Havia cheiro de leite estragado. Havia cheiro de enxofre, de manteiga azeda, de óleo viscoso, de graxa, de pó de giz, de cadáveres escalpelados.
AM estava nos atiçando. Nos provocando. Havia
cheiro de...
Escutei a mim mesmo guinchar de dor e percebi
que sentia uma pontada terrível e persistente na articulação da mandíbula. Sai correndo de quatro, escorregando na frigidez do metal, o fedor me sufocando, a cabeça estalando com uma dor trovejante que me fazia fugir horrorizado. Fugi feito uma barata, devorado pela escuridão, aquela coisa me perseguindo, inexorável, sempre ao meu encalço. Os outros continuavam lá atrás, aglomerados ao redor da fogueira, soltando risadinhas... o coro histérico de gargalhadas dementes revolteando na escuridão como fumaça enfeitiçada. Afastei-me o mais depressa possível e me escondi.
Nunca me disseram quantas horas, dias, ou até
anos, eu fiquei assim. Ellen esbravejou por eu ter ficado amuado e de mau humor e Nimdok tentou me convencer de que aquelas risadas foram apenas atos-reflexos resultantes do nervosismo deles.
Mas eu sabia que não se tratava daquele alívio
que um soldado sente quando a bala atinge o homem ao seu lado. Eu sabia que não se trava de um ato-reflexo. Eles me odiavam, isso sim. Eles com certeza estavam em conluio de ódio contra mim, e AM podia sentir esse ódio, fazendo tudo piorar para o meu lado justamente por causa da profundidade do sentimento. Nós estávamos sendo mantidos vivos de tal forma que permanecíamos sempre com a mesma idade que tínhamos quando AM nos trouxe aqui para baixo, de modo que eles me odiavam porque eu era o mais jovem e, também, porque eu era aquele a quem AM havia afligido menos.
Eu sabia. Deus, como eu sabia! Aqueles
bastardos. Aquela puta suja da Ellen. Benny havia sido um teórico brilhante, um professor universitário; agora ele era pouco mais do que meio-homem, meio-símio. Ele havia sido bonito, e a máquina arruinou isso. Ele fora lúcido, e a máquina o levou à loucura. Ele sempre fora gay, e a máquina lhe presenteou com um órgão do tamanho do de um cavalo. É, AM fez um belo serviço em Benny. Gorrister, por sua vez, era um homem antenado e consciencioso. Pacifista, promovia marchas contra a guerra; era um cara que não sabia ficar parado – era um planejador, um empreendedor, alguém que via mais longe. Nas mãos de AM ele se tornou indiferente, um morto-vivo sem ânimo, como se lhe tivessem sugado os sonhos e as energias. Nimdok passava longos períodos sozinho no escuro. Eu não sabia o que ele fazia nesses momentos de reclusão, AM nunca nos deixou saber. Mas, seja lá o que fosse, Nimdok sempre voltava pálido como se o sangue tivesse lhe fugido do corpo, deixando-o abalado, trêmulo. AM o atingiu em cheio de uma maneira toda especial, muito embora nós não soubéssemos como. E Ellen. Aquela babaca. AM não mexeu com ela, deixou que ela mesma se tornasse por si só uma vadiazinha ainda mais vulgar do que ela já era. Todo aquele discurso doce sobre luz e esperança, todas as memórias de amor verdadeiro que ela dizia ter, todas aquelas mentiras em que ela queria que a gente acreditasse: aquele papo de que ela era virgem até cair nas garras de AM. Conversa fiada! A pequena Ellen, minha pequena Ellen. Ela adorava aquilo, quatro homens só para ela. Não, não, eu sabia que AM lhe dava prazer, mesmo ela dizendo que não era legal fazer aquilo tudo.
Eu fui o único a conservar a sanidade e a
integridade. Fui sim!
AM não mexeu na minha cabeça, de jeito
nenhum.
Eu só tinha que suportar os castigos que ele
inventava para a gente. Todas as ilusões, os pesadelos, os tormentos... Mas aqueles porcos, todos os quatro, eles estavam alinhados e arranjados contra mim. Se eu não precisasse mantê-los à distância o tempo todo, se eu não precisasse ficar em guarda a cada segundo, então provavelmente teria sido mais fácil lutar contra AM.
A essa altura a dor passou e eu comecei a chorar.
Ah, Jesus, meu bom Jesus, se algum dia houve
algum Jesus e se existir algum Deus, eu imploro, eu suplico, tire-nos daqui, ou pelo menos nos deixe morrer, porfavor-porfavor-porfavor. Pois agora eu acho que compreendi tudo por completo, compreendi tão bem a ponto de conseguir expressar em palavras: AM pretende nos manter em seu estômago para sempre, nos retorcendo e nos torturando pela eternidade. A máquina sempre nos detestou com um ódio tão grande que chega a atinjir um tamanho que nenhuma outra criatura dotada de sensibilidade jamais experimentou antes. E nós estávamos indefesos.
Assim, outra verdade se tornou horrorosamente
clara para nós: se existiu um Jesus e se existe um Deus, então esse Deus só pode ser AM.
O ciclone nos atingiu com a força de uma geleira
rachando estrondosamente no oceano. Era uma presença palpável. Ventos que rasgavam a nossa pele, forçando-nos a voltar pelo caminho pelo qual havíamos vindo, descendo pelos meandros dos corredores escuros forrados de painéis de computador. Ellen gritou ao ser levantada no ar e arremessada de encontro a um entulho de máquinas ruidosas, cada uma delas mais estridente do que revoada de morcegos. Mas ela não conseguiu sequer cair. O vento ululante a manteve flutuando, esbofeteando-a, batendo-lhe o corpo contra os objetos, jogando-a de um lado para o outro, para trás, para o fundo, para longe de nós, sumindo de repente de vista assim que o redemoinho a fez virar na esquina de um beco cuja escuridão a devorou. O rosto estava ensanguentado; os olhos, fechados.
Nenhum de nós conseguiu alcançá-la. Esforçamo-
nos para nos agarrar com tenacidade em qualquer saliência que se mostrasse ao nosso alcance: Benny se enfiou num vão entre dois armários de aço escovado. Nimdok ficou com os dedos em forma de garra fincados à grade de uma passarela a mais de dez metros do chão. Gorrister se manteve colado de cabeça para baixo na reentrância de umas paredes formadas por duas grandes máquinas com mostradores de vidro que oscilavam entre linhas vermelhas e amarelas cujos significados nós não conseguíamos nem adivinhar.
Ao deslizar pelas chapas de aço do pavimento, as
pontas dos meus dedos foram cortadas. Eu estava tiritante, tremelicando, balançando conforme o vento me batia, me açoitava, gritava comigo, vindo de lugar nenhum, e me arrancava da fenda da chapa em que eu me prendia para então me arrastar à outra, à qual eu me segurava para logo em seguida ser desprendido novamente. Minha mente era uma mixórdia embaralhada de resíduos cerebrais turbulentos, fragmentados e estilhaçados que trinavam e retiniam, tudo se expandindo e se contraindo num frenesi palpitante.
O vento era o grito de um enorme pássaro
enlouquecido batendo asas imensas.
E assim fomos todos erguidos e lançados para
longe dali, de volta para os locais de onde tínhamos vindo, dobrando curvas, depois adentrando em escuridões nunca antes exploradas, seguindo por becos sem luz que nos