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Revista Científica Doctum: Multidisciplinar 1

OLIVEIRA JR, E. F., Do complexo de vira-lata ao multiculturalismo cru

DO COMPLEXO DE VIRA-LATA AO MULTICULTURALISMO CRU

Eduardo F. de Oliveira Jr 1

RESUMO

O estudo busca uma compreensão do sentimento de inferioridade, presente em


grande parte da população brasileira, o famoso “complexo de vira-lata” descrito,
inicialmente pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, que tem suas raízes fecundas no
processo cultural de formação da Nação, uma vez que, não se buscou a formação
de um país com identidade própria, mas a exploração da nova terra, onde se
valorizava apenas a cultura trazida pelos exploradores, ignorando qualquer traço
cultural nativo, assim como, os traços culturais trazidos pelos povos escravizados.

PALAVRAS-CHAVE: Sociologia Política. Multiculturalismo. Etnocentrismo cultural.

FROM THE COMPLEX OF POOCH TO THE CRUDE


MULTICULTURALISM

ABSTRACT

This paper aims at understanding the sense of inferiority present in large part of the
Brazilian population, the famous “complex of pooch”, as firstly described by the
playwright Nelson Rodrigues, which has its fecund roots in the cultural formation
process of that Nation, since, there wasn't the quest for a cultural formation, with its
own identity, but, reversely, there was the sense of exploration, of the new land,
valuing only the culture brought by its explorers and ignoring all the traces of native
culture, just like, those cultural traces introduced by enslaved people.

KEYWORDS: Political Sociology. Multiculturalism. Cultural Ethnocentrism.

INTRODUÇÃO

Dentre os países lusófonos, o Brasil se destaca por aspectos peculiares,


como a constante mania de sua população se autodepreciar frente aos demais.
A primeira ocorrência sólida da terminologia “complexo de vira-latas”, para
designar esse estado de inferioridade em que se põem os brasileiros, em face do
mundo, foi pelo dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues.

1
Bacharel em Direito pela Faculdade Doctum de Juiz de Fora, Pós-graduando em Ensino de Filosofia e
Sociologia pela FESL de Jaboticabal, Compositor e Maestro Arranjador

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O tom do dramaturgo, no artigo opinativo, de natureza esportiva, publicado no


periódico “Manchete Esportiva”, em 31 de maio de 1958, às vésperas do início da
Copa do Mundo daquele ano, evidenciava, em metáfora, o que perpassa o campo
sociológico e atinge, desde logo, a atmosfera semiótica, própria, que há no Brasil.
Para compreender a supervalorização daquilo que se origina no exterior, em
detrimento do que é da identidade do país, partimos para uma análise das raízes do
– tão mencionado –, “complexo de vira-latas”, esse sentimento de, voluntariamente,
como ressaltava Nelson Rodrigues, pôr-se em inferioridade perante o estrangeiro,
acanhar-se por sua origem sociocultural, na tentativa de adequação ao
eurocentrismo, imbuído no senso comum, banalizado. O brasileiro, em face do
universo lusófono ou de outras potências globais, insiste ainda na desvalorização de
si.
De tal, surgem as problemáticas que ora se passa a analisar. De onde vem
essa mania de rechaçar as singulares características brasileiras? Como poderão, os
brasileiros, superar tal complexo de inferioridade, transcendendo o eurocentrismo ao
qual se submete? Como traçar políticas afirmativas da identidade cultural e social,
todo campo semiótico, ímpar dessa nação?

1. O COMPLEXO DE VIRA-LATAS E O BRASIL MESTIÇO: UM PROCESSO


HISTÓRICO

O termo vira-lata, por si, é empregado, conforme a definição linguística, para


designar os animais domésticos que não possuem raça definida e os cães
ordinários, que vivem soltos pelas ruas, sem dono 2 e, assolados pela fome, tombam
as latas de lixo em busca de comida, daí se origina o termo “vira-lata”.
Já o termo “complexo de vira-latas”, mui embora, porventura, habitasse os
escaninhos do imaginário social3, solidificou-se na expressão do dramaturgo Nelson

2
BORBA, Francisco S. (org.). Dicionário UNESP do português contemporâneo. São Paulo: UNESP, 2004. p.
1434
3
O termo imaginário social entendido como aquele: "[...] elaborado e consolidado por toda uma coletividade,
como uma resposta que se dá a seus conflitos, divisões e violências reais ou potenciais; operando através dos
sistemas simbólicos, - nomeadamente o mito, a religião, a utopia e a ideologia -, os quais são construídos a
partir da experiência dos agentes sociais, dos seus desejos, aspirações e motivações. O imaginário é uma das
forças reguladoras da vida coletiva, designando identidades, elaborando determinadas representações de si,
estabelecendo e distribuindo papéis e posições sociais, exprimindo e impondo crenças comuns, construindo
modelos de bom comportamento". BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In LEACH, Edmund et al.
Antrhopos-Homen. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985. p. 311 apud XAVIER, Wilson J. F.
Razões e Sensibilidades: Um estudo sobre a construção do imaginário da docência feminina. Tese de Pós-

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Rodrigues (1993, p. 51), que expôs a sua percepção sobre tal, ao escrever sobre a
estreia do time brasileiro na Copa do Mundo de 1958: “Por “complexo de vira-latas”
entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face
do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”.
E, já naqueles tempos, o mesmo autor explicava, ligeiramente, as origens de
tal complexo, atrelando ao momento esportivo de sua crônica: “Em Wembley, por
que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe
brasileira ganiu de humildade” 4.
Para compreender as razões de tal colocação, faz-se mister rememorar as
raízes históricas do Brasil, sua constante mutagênese, que fez nascer um povo
altamente idiossincrático em atributos étnicos e socioculturais.
Assim, Hollanda (1995, p. 31), explicita a implantação das ideologias e
instituições europeias no Brasil, desde o início da dominação portuguesa. E
remetendo aos primórdios da, então Vera Cruz, expõe, nesse contexto:

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado


de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas às sua
tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e
mais rico em consqüências... Trazendo de países distantes nossas formas
de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo
isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns
desterrados em nossa terra

De tal ensinamento, aufere-se o que hodiernamente se denomina de


“eurocentrismo”, termo empregado para definir a cognição de uma “visão de mundo”,
que se apresenta em alguns países no continente europeu e que “vem sendo
imposta”, por meios implícitos e explícitos, com emprego de violência ou no campo
psíquico, de modo a priorizar certos projetos ideológicos. 5
Relatar as origens da prevalência dos moldes europeus em terras brasileiras,
em detrimento das culturas dos povos que por cá já se espalhavam – e de outros,
aqui trazidos à força –, é tarefa escarpada, como assinalava Ribeiro (1995, p. 30),
isso:

Graduação. Disponível em: <http://tede.biblioteca.ufpb.br/bitstream/tede/7749/2/arquivototal.pdf>. Acesso em


09 ago 2016.
4
RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 52.
5
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Eurocentrismo e identidade. In: SILVA, Josué Pereira da. (org.) Por uma
sociologia do século XX. São Paulo: Annablume, 2007. p. 51.

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[...] porque só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor. Ele


é quem nos fala de suas façanhas. É ele, também, quem relata o que
sucedeu aos índios e aos negros, raramente lhes dando a palavra de
registro de suas próprias falas.

Esse fato, em si, é muito revelador, das metodologias de uniformização com


os moldes europeus, a própria supressão histórica das vozes já é, em si, algo que
diz muito.
Os atributos físicos ameríndios, com seus olhos cor de açaí, amendoados e
com a pele cor de canela, aliado à identidade cultural ímpar, bastaram para que o
invasor português os subjugasse, impondo-se-lhes os padrões europeus, posto que
havia apenas o mote exploratório da novel terra dominada. Tem-se que, a priori,
Portugal não tinha interesse em estabelecer o que fosse na nova terra. Assim,
preferia, naquele tempo, o comércio com as Índias e a exploração do litoral africano.
Sendo que a única vantagem que via no Brasil era a extração do Pau-Brasil, haja
vista o valor comercial elevado deste 6.
Além da extração de riquezas naturais, a dominação do povo que cá estava e
que, muito antes das teorias raciais, já era visto pelo invasor europeu como “sub-
raça”.
Essa percepção se depreende de obra do século XVII, em qual o padre Luigi
Vincenzo Mamiani della Rovere leciona como fazer o catecismo e a conversão de
ameríndios, de modo a dominar a cultura local, explicando minúcias da língua da
Nação Kiriri, para que pudessem ser compreendidos. 7
Ribeiro (1995, p. 33-34), narra que os diversos povos indígenas foram
aliciados, tanto por portugueses como por franceses, com o escopo de defender os
interesses destes povos europeus, em confrontos cruentos dos povos ameríndios,
de acordo com a necessidade de dominação, definida pela utilidade, em suma, nas
palavras desse autor, “eles nem sabiam porque lutavam, eram atiçados pelos
europeus, explorando sua agressividade recíproca.”.
O processo de colonização dizimou diversos povos indígenas, escravizando
aqueles outros que se mostravam úteis aos interesses dos invasores europeus que
cá exploravam os recursos.

6
MARCONDES, Sandra. Brasil, amor à primeira vista. São Paulo: Petrópolis, 2005.
7
ROVERE, Luigi Vincezo Mamiani della. Catecismo da doutrina christaã na língua brasilica da Nação
Kiriri. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1698. Disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/01278800>. Acesso em 02 ago. 2016.

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É importante notar, desde logo, que nesse período histórico, usualmente


havia o emprego do termo “negros da terra”, para designar os povos ameríndios 8.
Isso acentua a percepção eurocentrada, a imposição dos padrões europeus, cuja
ideologia de superioridade dos povos brancos se estendeu ao longo da história
brasileira.
Essa questão da cor da pele remete à ideia expressada por Hofbauer (2006,
p. 35), que:
[...] durante muito tempo, a "cor de pele" não foi vista como um dado natural
objetivo (ou biológico). "Preto/negro" representava, em primeiro lugar, o mal,
o moralmente condenável, o pecado, enquanto "branco" expressava o
divino e a pureza da verdadeira fé.

Nos anos seguintes, convertida a Vera Cruz em Brasil, a Coroa Portuguesa,


ao notar o potencial das novas terras, decidiu por sua ocupação, dividindo o território
em quinze quinhões, denominados capitanias hereditárias, sob o domínio de famílias
que “possuíam ligações com a Coroa”. Embora não pudessem se despojar ou dividir
tais terras. Posteriormente as capitanias passaram a ser doadas em trechos,
9
formando sesmarias, que originaram vastos latifúndios e os poderes, ora
concedidos pela Coroa, viabilizaram a prevalência do invasor europeu sobre os
ameríndios.
Ao passo que a escravização dos povos indígenas não se mostrava
satisfatória, sob o prisma do invasor, pois tratava-se de uma sociedade imbuída de
traços culturais imediatamente opostos aos interesses do invasor europeu. Destarte,
outros povos, também em função da cor da pele, passaram a ser escravizados e,
junto ao ciclo econômico da cana de açúcar, vieram os escravos, trazidos de África
ao Brasil10.
Como dantes dito, esse aspecto do julgo pela cor da pele, consentia com a
ideia de subjugo, cujos resquícios, eternizados no imaginário popular, resvalam no
tema que ora se põe, da síndrome do vira-lata.
Hofbauer (2006, p.35) narra que desde o período clássico da Grécia o ideário
que anuía com a escravidão de povos, balizava-se na descrição de determinados
arquétipos, de conotação racial, como os traçados por Aristóteles, que passaram a
justificar, tais práticas, pois como modelo civilizacional se colocava a própria

8
CARVALHO, Maria R. de; CARVALHO, Ana M. Índios e caboclos: a história recontada. Salvador:
EDUFBA, 2012. p. 108
9
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1994. p. 43-44.
10
Cf. Idem. p. 44

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sociedade, no caso Grega e, o outro, não era dotado do logos ou quaisquer outros
atributos que lhos assemelhassem.
Oliveira (2008, p. 5-6) explica que tais doutrinas, que versam sobre as
ideologias raciais, tornaram a ganhar corpo nas palavras de pensadores do século
XIX, ocasião em que a europeus demandavam por justificativas para a manutenção
da escravatura. Nesse cenário surgem as doutrinas de Joseph-Auguste de
Gobineau, Richard Wagner e Houston Stwart Chamberlain.
Insta frisar que, em fins desse mesmo século, Francis Galton cunha sua teoria
da Eugenia, que, entre outros tantos fatores, conduziu às políticas de
branqueamento da população brasileira 11.
E assim, Hofbauer (2006, p. 35) conclui que:

Não é de estranhar, portanto, que a idéia da escravização como medida de


"(re)humanização de uma não-pessoa" associava-se a idéia de "purificar"
um infiel e um discurso que propunha "branquear" os seres "enegrecidos".
Com a naturalização (biologização e, mais tarde, genetização) das
diferenças humanas, a cor transformar-se-ia num critério de exclusão cada
vez mais essencialista: isto é, tornar-se-ia um dado cada vez menos
"contextual" e menos "negociável".

Por tais veredas, o sociólogo Gilberto Freyre (2003, p. 65), narra que:

Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura,


escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio - e mais
tarde de negro - na composição. Sociedade que se desenvolveria defendida
menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita
e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de
profilaxia social e política. Menos pela ação oficial do que pelo braço e pela
espada do particular. Mas tudo isso subordinado ao espírito político e de
realismo econômico e jurídico que aqui, como em Portugal, foi desde o
primeiro século elemento decisivo de formação nacional.

Assim, estes pequenos excertos históricos acenam com as raízes da


síndrome de inferiorização do brasileiro, o “complexo de vira-latas”, pois, conforme
apontava Rodrigues (1993, p.61), ganimos de humildade em face do tipo físico do
estrangeiro, pois, no imaginário popular ainda vive o ranço de que o branco
representa a pureza e que um Brasil mestiço é menor, enquanto se olvida que a
multiplicidade, oriunda da mescla étnica e cultural é, justamente, o que torna esse
país lusófono dotado de caraterísticas singulares, assaz diversas dos moldes
portugueses, europeus ou de outro que seja.

11
Nesse sentido: Stepan, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Fiocruz,
2005.

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2 OUTROS ASPECTOS DO COMPLEXO DE VIRA-LATA

As questões raciais, ora suscitadas, descortinam outros muitos aspectos que,


neste estudo, convém analisar, derivadas desta, como as políticas de imigração
fomentadas pelas teorias de branqueamento da população, a segregação social, a
ascensão das favelas e bairros de baixa renda, como fatores que se imbricam no
campo perceptivo e que fomentam o complexo de vira-lata.

2.1. As teorias de branqueamento

Foi na segunda metade do século XIX, quando os regimes de escravidão já


se mostravam enfraquecidos pelas críticas da razão, que os defensores da
dominação dos povos passaram a apelar para as teorias do racismo científico 12 e da
radicalização do darwinismo social spenceriano 13.
O darwinismo social, guarda pouca relação com as teorias de Charles Darwin
e, sob os pilares de uma tentativa de justificação biológica, traçou-se a cognição no
sentido explicado por Outhwaite e Bottomore (1996, p.174), de que se tratavam de
“teorias que sustentavam que a organização social é, ou se assemelha, a um
organismo vivo, que as sociedades sofrem mudanças evolutivas”.
E assim caminhavam na mesma direção das teorias eugênicas de Galton,
sendo classificadas pelo antropólogo Renato da Silveira (1999, p.134) como a:
“ideologia de exaltação da elite loura de olhos azuis e utilização sistemática da
linguagem e dos métodos científicos com objetivos políticos.”
Neste ponto, a “síndrome do vira-lata”, que embora talvez inominada, já se
mostrava feroz, alcançou os momentos mais sincopados, quando defensores de tais
teorias, na tentativa de adequar-se aos padrões louros eurocêntricos - e livrar-se da
sociedade indígena e afrodescendente que no Brasil havia se formado -, passaram a
dotar políticas de branqueamento da população, pela miscigenação com imigrantes,
sendo o gobinismo 14 remodelado por estes darwinistas sociais 15.

12
Conforme STOLCKE, Verena. Sexo está para Gênero assim como Raça está para Etnicidade? Estudos
Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 29, pp. 101-119, jun. 1991: “[...] racismo científico, ou seja, a demonstração
pseudo científica da fundamentação física das diferenças culturais”
13
Referente às teorias de Herbert Spencer (1820-1903).
14
Referente às teorias de Arthur Gobineau (1816-1882).
15
Nesse sentido explica SEYFERTH, Giralda. Racismo no Brasil. São Paulo: Peirópolis; ABONG , 2002. p.32

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Schwartsmann (2008, p. 72) narra que:

No início da República, as ideologias racistas tiveram influência preponderante em


segmentos da elite brasileira, voltados para a análise da política imigratória. A imigração
colaboraria para o branqueamento; a preferência pelos europeus estava na evidente
legislação republicana sobre a colonização.
E no que tange ao aspecto racial do complexo de vira-latas, Seyferth (2002, p.
32-33), conta que:

A tese do branqueamento, apresentada por um de seus formuladores no


campo da ciência antropológica, João Batista Lacerda, afirmava a
inferioridade de negros, índios e da maioria dos mestiços, mas esperava
que mecanismos seletivos, operando na sociedade (a busca de cônjuges
mais claros), pudessem clarear o fenótipo no espaço de três gerações. [...]
Vários notáveis do pensamento brasileiro - entre eles Euclides da Cunha,
Sílvio Romero e, mais tarde, Oliveira Vianna - acreditaram neste mito de
caldeamento racial [...].

Hodiernamente, essas teorias perderam força ao longo do século XX,


especialmente após a segunda grande guerra, quando a nocividade de ideologias
raciais mostrou-se dantesca, contudo, tais pontos, que habitam o cerne da questão
do “complexo de vira-lata”, ainda vagam no senso comum e fazem o brasileiro se
sentir menor, diante dos tipos idealizados por tais teorias.
Convém ressalvar que, se para Arendt (1970, p.82): “O estabelecimento de
um estado soberano mundial, longe de ser um pré-requisito para cidadania mundial,
seria o fim de toda cidadania. Não seria o clímax da política mundial, mas seu fim
literal” 16 , assim, em paráfrase, no campo social, o estabelecimento de uma
uniformidade étnica, longe de ser pré-requisito de uma evolução social, seria o fim
de uma sociedade autônoma. Não seria o clímax de uma sociologia global, mas seu
fim, vez que sem as nuances multifacetadas, não se há o que analisar no campo
sociológico.

2.2. A face social

16
Tradução do autor para o trecho: “The establishment of one sovereign world state, far from being the
prerequisite for world citizenship, would be the end of all citizenship. It would not be the climax of world
politics, but quite literally its end.”. ARENDT, Hannah. Men in dark times. Nova Iorque: harvest Books, 1970.
p. 82.

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As questões raciais apresentaram divisores desde os tempos das sesmarias,


com os senhores de terras, brancos, em suas casas grandes, aos moldes e réplicas
da cultura europeia e, de outro lado, apartado, as senzalas paupérrimas para os
negros e mestiços, escravizados 17.
No decorrer de séculos com tal estrutura, com o advento da abolição da
escravatura, atinge-se uma nova etapa, de urbanização. Freyre (1961, p. 153),
expõe que:

Com a urbanização do país, ganharam tais antagonismos uma intensidade


nova; o equilíbrio entre brancos de sobrado e pretos, caboclos e pardos
livres dos mucambos não seria o mesmo que entre os brancos das velhas
casas-grandes e os negros das senzalas.

É também da estilística social que se forma, desde então, que se envergonha


o brasileiro que se põe em situação de inferioridade. Dos mucambos, nasceram os
cortiços das grandes cidades e, dos cortiços, vieram as favelas, com sua arquitetura
social inigualável.
É também a pobreza, que tanta riqueza cultural possui, que faz ganir o
brasileiro, em face do eurocentrismo que ostenta no imaginário o luxo sociocultural,
ignorando as características negativas do que é exterior, em detrimento de si
mesmo.
As raízes do complexo de vira-lata, fincadas na chegada do invasor europeu,
compreende, além da questão racial, todo campo semiótico, abarcando a linguagem,
não apenas dos códigos e símbolos, mas de todas as coisas que, por si, atribui-se
significado e, portanto, aqui falamos na linguagem sociocultural construída 18, cuja
percepção por si, de alguns brasileiros, ainda se dá no sentido de inferiorização, ou
como explicava Eco (1991, p.18): “Poderes substituem as livres escolhas pelas
opiniões pré-fabricadas.”
E assim tem sido, os poderes de imbuir nos agentes sociais a opção pelo pré-
fabricado, pela cognição que mantém o sentido de que as coisas modeladas com
eurocentrismo são melhores.

17
Cf. FREYRE, Gilberto. Casa grande e Senzala. São Paulo: Global, 2003. p. 94-95.
18
Cf. ECO. Umberto. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2000.

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Grande influência possuem, no imaginário social brasileiro, a publicidade e


mídia, especialmente a televisiva, considerando que 97,1% da população possuem
televisores 19.
Assim, em crítica pela mania de sucumbir aos padrões europeus, Toscani
(2000, p. 32-33), critica e evidencia a natureza “vira-lata” da publicidade e mídia, em
buscar padrões estrangeiros:

Procure o leitor encontrar numa propaganda de nossos dias pobres,


imigrantes, acidentados, revoltados, ladrões de apartamentos, baixos,
inquietos, gordos, barrigudos, entediados, céticos, desempregados,
espinhentos, drogados, vítimas de engarrafamento, doentes, países do
quarto mundo, loucos, artistas obcecados, excessivos, estridentes, pessoas
que sofrem de herpes, provocadores, grandes problemas sociais, uma crise,
desastres ecológicos, explosões da juventude e o pânico dos idosos! Foi
tudo substituído por Claudia Schiffer [...].

A representatividade, na grande mídia, de afrodescendentes, indígenas e,


também, de pessoas de baixa renda é minúscula. Um fato inquietante, uma vez que
apenas 47,7% da população brasileira é branca, de acordo com dados do Censo de
2010 20, bem como a renda média per capta se fixou, em 2015, no patamar de R$
1.113,00, segundo dados do mesmo instituto 21.
E corroborando com tal proposição, Araújo (2000, p. 38-39), expõe:

Os interditos do tabu racial, que rejeitam a negritude e promovem a


branquitude, com seus modelos de estética e bom gosto calcados nas
construções do mundo branco, trouxeram também problemas
discriminatórios no meio e na imagem da televisão... ...Além da telenovela,
podemos ver os reflexos dessa realidade nos comerciais de tevê. Aí
percebemos as conseqüências do desinteresse histórico da elite brasileira
em formar um mercado consumidor amplo, em seu próprio país, e da
preferência pela imigração da mão-de-obra européia no período final da
escravidão, em detrimento do trabalhador negro.

O complexo do vira-lata é a negação de um povo multicultural, do qual nasceu


22
o samba e se criou o chorinho , onde as penas dos artefatos indígenas

19
De acordo com dados de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Disponível em
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95753.pdf> Acesso em 09 ago. 2016. p. 26.
20
Cf. Portal Brasil. Censo 2010 mostra as características da população brasileira. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/educacao/2012/07/censo-2010-mostra-as-diferencas-entre-caracteristicas-gerais-da-
populacao-brasileira>. Acesso em 09 ago. 2016.
21
Cf. Agência Brasil. IBGE: renda per capita média do brasileiro atinge R$ 1.113 em 2015.
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-02/ibge-renda-capita-media-do-brasileiro-atinge-r-1113-
em-2015> Acesso em 09 ago. 2016.
22
O choro, ou chorinho, estilo musical brasileiro, originado em fins do Século XIX. "O flautista Joaquim
Antônio Callado, considerado o "pai do chorões", os pianistas Ernesto Nazaré e Chiquinha Gonzaga, e o
maestro Anacleto de Medeiros [...] compuseram quadrilhas, polcas, tangos, maxixes, xotes e marchas,

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encontraram a avenida e pariram o Carnaval, onde o football virou futebol, juntou o


preto e o branco, cores todas, onde Nosso Senhor do Bonfim encontrou Oxalá 23, na
Bahia de todos os santos, da literatura de Jorge Amado e até a própria lusofonia
tornou-se autônoma 24, pois sabemos “pão ou pães, é questão de opiniães”25, claro,
“copos a fora, mel de melhor” 26, o que se demanda então é a negação da negação,
na completude dialética.

3 A NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO: DO VIRA-LATA AO SUI GENERIS PELAS AÇÕES


AFIRMATIVAS.

Um dos primeiros e mais aparentes aspectos que ora surgem em face, é que
para se transcender as ideologias que vagam no imaginário social do brasileiro, há
que deixa-las decair. Decair tendo em mente o “Devir”, que explica Deleuze e Parnet
(1998, p.10-11):

Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele
de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao
qual se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A
questão "o que você está se tornando?" é particularmente estúpida. Pois à
medida que alguém se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele
próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação,
mas de dupla captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos.
[...] Os devires são o mais imperceptível, são atos que só podem estar
contidos em uma vida e expressos em um estilo.

Nelson Rodrigues (1993, p. 60-61), narrava dos espasmos que faziam


esvaecer o complexo de vira-latas, finalmente reconhecer que, se há problemas por
resolver, este não se resolverão com a autodepreciação e que, nos momentos de
exultação com sua identidade, torna-se bem outro povo:

estabelecento os pilares do choro e da música popular carioca da virada do século XIX para o XX.” Conforme
DINIZ, André. Almanaque do Samba. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 22.
23
Em razão do sincretismo, termo originado em Plutarco, que associa elementos de religões diversas. Conforme
MIRANDA, Mário de França. Inculturação da Fé. São Paulo: Loyola, 2001. p. 109. No Brasil, especialmente
na Bahia: "Oxalá, o maior dos orixás [...] É Nosso Senhor do Bonfim e as festas do Bonfim são festas de Oxalá",
conforme AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos. Rio de Janeiro: Record, 1991. p.132.
24
Tem-se que a linguagem coloquial corrente foi influenciada pelas línguas ameríndias tupí e guaraní, ao cortar
as terminações, como ao empregar “fazê”, ao invés de “fazer”, ou “vamo”, ao invés de “vamos”. Assim explica
RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Diferenças fonéticas entre o Tupí e o Guaraní. Revista Brasileira de Linguística
Antropológica. Periodicos UnB. Volume 3, Número 2, Dezembro de 2011. p. 141.
25
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 8.
26
Idem. p. 84;

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OLIVEIRA JR, E. F., Do complexo de vira-lata ao multiculturalismo cru

Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto, vejam vocês: —


a vitória final, na Copa da Suécia, operou o milagre. Se analfabetos
existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. [...] Já ninguém tem mais
vergonha de sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as
comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana
d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: — o brasileiro
tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de
suas imensas virtudes pessoais e humanas.

Assim, apresenta-se que o caminho para superar a humildade dickensiana 27


reside na aceitação e na afirmação de seus modos multiculturais.
A teoria multiculturalismo, há que se dizer, pode ser entendida no sentido de
Baumann (2013, Seção 4), como sendo:

[...] inspirada pelo postulado da tolerância liberal e do apoio aos direitos das
comunidades à independência e à aceitação pública das identidades que
escolheram (ou herdaram). Na realidade, contudo, o multiculturalismo age
como uma força socialmente conservadora. Seu empreendimento é a
transformação da desigualdade social, fenômeno cuja aprovação geral é
altamente improvável, sob o disfarce de "diversidade cultural", ou seja, um
28
fenômeno merecedor do respeito universal e do cultivo cuidadoso.

Não se deve, com efeito, descartar a observação de Bauman, contudo, há


que destacar que da desigualdade social, auferível na realidade sociocultural
brasileira, surgem manifestações culturais que, quando valorizadas e reforçadas,
têm o condão de afastar o maniqueísmo destes que insistem em se por do lado ruim
e depreciado, enquanto o resto do mundo é bom e evoluído. Assim foi com o futebol
e o carnaval, e outras as tantas manifestações que, uma vez realizadas no devir, de
modo autoral, bem-sucedidas, envaidece de tal sorte que afasta aquele brasileiro
que sucumbe de humildade perante o mundo não apenas lusófono, mas como um
todo.
Portanto o que se pretende não é a afirmação pelo multiculturalismo, do qual
versa Bauman, mas um multiculturalismo que, "no contexto de um mundo
globalizado pode assumir tantas facetas semânticas" 29 , e num plano polissêmico
torna-se um multiculturalismo cru.

27
Referente à obra de Charles Dickens (1812-1870), mais específicamente, ao trecho: “O brasileiro fazia-me
lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo no peito: — “Eu sou humilde! Eu sou o sujeito mais
humilde do mundo!””. Assimconforme narrava RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 61.
28
BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, Seção 4 da versão
digital disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=MTQJAQAAQBAJ&pg=PT23#v=onepage&q&f=false>. Acesso em 10
ago. 2016.
29
BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá: Eduem, 2012. p. 61.

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OLIVEIRA JR, E. F., Do complexo de vira-lata ao multiculturalismo cru

Por multiculturalismo cru, capaz de se exteriorizar em ação, afirmativa de uma


existência sociocultural, livre de vergonha de si, entende-se aquilo que, tomando por
paradigma o pensamento cru - que Brecht e Benjamim chamavam de “plumpes
Denken” 30 - , não é aquele que serve de “disfarce de diversidade cultural” para
ofuscar a desigualdade social, mas a efetiva diversidade cultural, que, uma vez
originada em, seja qual for a camada social, ganha força como algo próprio,
inimitável, fruto do devir: o sui generis.
Assim, o multiculturalismo cru não se ocupa de conceitos teóricos e abstratos,
mas de iniciativas, ações efetivas de todos os agentes sociais - e também o Poder
Público e a Mídia têm seus papeis -, em imbuir no imaginário social o valor das
manifestações sui generis, que já não precisam copiar moldes externos, que não
representam sua identidade. Esse é ponto fulcral e, o desafio perene, para o
fortalecimento de uma identidade liberta do complexo de vira-lata.
E, assim, os moldes que formaram, ao longo de séculos, uma ideologia de
marginalizar a identidade própria, que vem dos párias, em prol de imitar o que vem
de fora do país, culminando no prisma sociocultural autopoiético 31 que temos,
devem ser entendidos como mecanismos dessa mudança de paradigma capaz de
romper com tal complexo, pelos mesmos caminhos, uma vez que, conforme
Luhmann (1998, p. 27 apud RODRIGUES, 2008, p. 113): “nos sistemas
autopoiéticos, tudo o que é usado como uma unidade pelo sistema, incluindo as
operações elementares, é também produzido como uma unidade pelo sistema”.
Assim se aufere que uma modificação dos agentes sociais, sem uma
alteração no sistema, como um todo, mostrar-se-ia inócua, vez que a sociedade é
produzida em harmonia com o sistema existente.
A proposta que se apresenta, assim, nesse processo de ações afirmativas é
aquela outrora defendida por Oswald de Andrade, no seu “Manifesto Antropófago”,
de devorar as manifestações vindas do estrangeiro e uma vez devoradas,

30
"Brecht dizia que, em nome das urgências da ação, há sempre um momento no qual é preciso chegar a uma
formulação rude, “grosseira” (plumpes Denken). Benjamin gostava dessa idéia". Conforme KONDER,
Leandro. Benjamin e o marxismo. ALEA. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas,
Faculdade de Letras -UFRJ Volume 5, Número 2, Julho – Dezembro, 2003. p. 165-174.
31
Aqui no sentido de Niklas Luhmann que: "Etim.: Do gr. autos, próprio + poien: fazer, ou o substantivo
poiésis: autofazer-se. [...] Niklas Luhmann [...] apropria-se dessa definição para ampliá-la aos sistemas sociais
ao vislumbrar no conceito de autopoiese a chave para explicar a autorreferencialidade dos sistemas sociais."
Conforme explica MARCONDES FILHO, Ciro. (org.). Dicionário da comunicação. São Paulo: Paulus, 2014.
Seção 13. Disponível em <https://books.google.com.br/books?id=pf-
5DAAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false>. Acesso em 10 ago. 2016.

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transformar em algo novo e singular. E ao dizer: "Contra todos os importadores de


consciência enlatada. A existência palpável da vida" 32 , já elucidava como a
importação dos moldes europeus, que faz o complexo de vira-latas, oprime a “vida
palpável”, dos excluídos.
E nessa “deglutição”33, que propôs Oswald de Andrade, o resultado não é um
multiculturalismo como o apontado por Bauman, mas no multiculturalismo que
valoriza as variadas culturas conviventes no mesmo espaço e se orgulha dela, sem
o complexo de vira-lata - em qual há certo desconhecimento de si -, que, é superado
pois, assim como o analfabeto, de que versou Freire (1963, p. 17):

“Descobriria que ele, como o letrado, ambos têm um ímpeto de criação e


recriação. Descobriria que tanto é cultura um boneco de barro feito pelos
artistas, seus irmãos do povo, como também é a obra de um grande
escultor, de um grande pintor ou músico. Que cultura é a poesia dos poetas
letrados do seu país, como também a poesia do seu cancioneiro popular.
Que cultura são as formas de comportar-se. Que cultura é toda criação
humana.”

E, assim, por fim, com essa consciência reconheceria o valor das culturas
deglutidas, sem medo de que estas pareçam menores que as estrangeiras. Foi
deglutindo que os ritmos da África que nasceu o samba, e os sons do funk
estrangeiro, tornaram-se o funk carioca que reflete a identidade do povo, divido, com
efeito, não mais em casas grandes e senzalas, mas em asfalto e morro, contudo,
dando voz aos excluídos e, tal voz, se impõe não como cultura inferior, mas como
produtos do devir, criações singulares.
E percebendo o valor do que produz por si, o brasileiro poderá enfim ter
continuadamente aquele efeito que relatou Nelson Rodrigues após a vitória da Copa
do Mundo de 1958, na Suécia. De não “ter mais vergonha de sua condição nacional”
e se livrar, vez por todas, desse complexo de vira-latas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

32
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofago. In: Revista de Antropofagia. Ano 1, Nº 1, maio de 1928. p. 3.
Disponível em <http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/060013-01#page/1/mode/1up>. Acesso em 10 ago.
2016.
33
Idem. p. 7.

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OLIVEIRA JR, E. F., Do complexo de vira-lata ao multiculturalismo cru

Quando o dramaturgo Nelson Rodrigues disse da “síndrome do vira-lata”,


apontou um aspecto da natureza de alguns brasileiros, que é, em verdade, fruto da
construção histórica, social e cultural.
Esse hábito de se inferiorizar, quando se insere, não apenas no universo
lusófono, mas em especial, vez que se compreendem com acinte mor, tem suas
raízes na segregação racial e social, em especial, como visto. E tal realidade é fruto
da continuada perpetração do ideário eurocêntrico, que por cá, no imaginário social,
fixou-se nos padrões socioculturais.
Há, nesse complexo, o derrotismo, a ideia de que, por não se tratar de uma
sociedade igual às estrangeiras, o que cá se tem é pior, quando, na contramão,
ignora a realidade sociocultural ímpar que foi capaz de criar, bem como, o valor de
tal.
Conforme apontava Nelson Rodrigues, existem ocasiões, quando exitosos os
feitos nacionais, em que se ergue a cabeça e deixa a excessiva humildade nos
escaninhos. Contudo, retorna ao complexo, pois, enquanto há na sociedade tais
ideologias de adequação, sendo esta autopoiética, o indivíduo é harmonizado com o
que produz o sistema.
A transcendência possível, de tal estado de humildade, opera-se,
potencialmente, por meio de ações afirmativas, no senso de reconhecer e valorizar o
multiculturalismo cá existente, devendo, tais ações, ser tomadas por todos os
agentes sociais, incluindo o poder público e a mídia, que possuem papéis
determinantes no imaginário social.
O multiculturalismo necessário para tal não é aquele de que versa Bauman,
capaz de mascarar a desigualdade social, mas um multiculturalismo cru, em sua
forma primitiva, que reconhece a coexistência pacífica de diversas culturas em um
mesmo ambiente, mescla-lhes e alcança o devir, ora explicado por Deleuze e
Parnet, gerando algo sui generis e original, por meio, não da assimilação da cultura
estrangeira, mas de sua “deglutição”, como sugeriu Oswald de Andrade.
E valorizado o originado no devir, estando consciente de sua singularidade,
poderá, enfim, superar o “complexo de vira-lata”.
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