HISTÓRIA-E-CULTURA-AFRICANA-E-AFRO-BRASILEIRA

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SUMÁRIO

3.1 As cinco características do método afrocentrismo ............................... 9

3.2 O legado roubado? Uma tese de George G. M. James ..................... 13

5.1 O multiculturalismo como base para o combate ao preconceito e


proteção das minorias. .......................................................................................... 25

6.1 Movimentos sociais e políticos na busca por igualdade racial ........... 28

6.2 Expressões culturais e artísticas afro-brasileiras ............................... 30

7.1 O ensino de história africana e cultura afro-brasileira ....................... 35

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INTRODUÇÃO

Prezado aluno!

O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante


ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um
aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma
pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é
que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a
resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas
poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em
tempo hábil.
Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa
disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das
avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora
que lhe convier para isso.
A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser
seguida e prazos definidos para as atividades.

Bons estudos!

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INTRODUÇÃO À HISTÓRIA E A CULTURA AFRICANA

O fenômeno da diáspora africana desencadeou a expropriação material dos


africanos durante o tráfico transatlântico, acarretando uma série de consequências,
incluindo exclusões multifacetadas, como a deslegitimação de sua memória e a
negação de suas raízes históricas e dos alicerces filosóficos de sua cultura.
Nesse cenário, o argumento colonial distorceu, de maneira flagrante, o
significado do retorno ancestral, convertendo-o em uma noção mítica que perpetua
um sentimento contínuo de exílio. Isso resultou em uma postura na qual os valores
africanos foram desprovidos de seu significado epistemológico e cognitivo, em prol da
promoção da hegemonia da visão antropológica e histórica moldada pelo ponto de
vista do “homem branco europeu” e sua teoria de subjetividade.
Outro efeito da expropriação da memória é a associação entre colonialismo,
escravidão e apartheid, que naturalizou a tragédia para as populações africanas. Essa
naturalização, no entendimento de Mbembe (2001), funciona como a imposição da
impossibilidade de um mundo sem "outros", atribuindo também aos próprios africanos
uma responsabilidade específica diante da tragédia histórica de sua própria
escravidão (MBEMBE, 2001, p. 188).
O impacto desse cenário se manifesta na escravização negra nas Américas,
simbolizando a fragmentação da memória e a persistência de uma ferida ativa no
âmbito psicológico das comunidades em diáspora. Essa "dominação psíquica",
manifesta pela máscara colonial, silencia os negros colonizados, transformando a
ferida em um sintoma relacional entre a população negra e a branca. Esse sintoma
surge da construção da identidade do "mundo branco", que é estabelecida pela
inferiorização do "mundo negro"(FANON, 2020).
Nesse contexto, os traumas enfrentados pelas populações negras não derivam
somente de eventos familiares, como pode ser interpretado na psicanálise freudiana,
mas também resultam do impacto traumático do contato com a brutalidade do mundo
branco, simbolizada pela irracionalidade do racismo. Podemos compreender essa
situação ao considerar o conceito de sociogenia proposto por Fanon, que auxilia na
compreensão das experiências dos povos colonizados na época, incluindo a questão
do 'homem' negro.
Conforme Faustino (2018) destaca, a análise fanoniana do colonialismo
abrange tanto o impacto do mundo social sobre a emergência dos sentidos e
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identidades humanas quanto a interconexão das situações individuais que se
relacionam com o desenvolvimento e a preservação política e social das instituições.
Nesse caso, a violência perpetrada pelo mundo branco gera um tipo peculiar de
"esquecimento" que se inscreve na psique, ocultando a ancestralidade como uma
estratégia de sobrevivência.
Portanto, o adoecimento psíquico de pessoas oriundas da tradição africana em
uma cultura dominada pelos valores de uma sociedade branca e eurocentrada é
moldado pelo apagamento da contribuição da cultura africana para a formação da
sociedade na qual essas pessoas foram 'violentamente' colocadas . Isso representa o
adoecimento de uma cultura nos corpos daqueles que são herdeiros e partes dela.
No entanto, mesmo diante da expropriação da memória e das feridas infligidas
pelo mundo branco, as comunidades negras encontram maneiras de ressurgir e
resistir. Os terreiros, por exemplo, emergem como espaços de reexistência, nos quais
a cultura africana é preservada e celebrada. Esses locais, enraizados na cosmovisão
africana, atuam como centros de resgate da memória ancestral e como espaços de
recriação histórica. No cerne dos terreiros, o axé, a força vital, nutre uma filosofia
distinta, na qual o cotidiano ganha uma profundidade extraordinária, e o aprendizado
ocorre através da observação, da imitação e da admiração pelos mais experientes
A relação com a ancestralidade permanece vívida no terreiro, onde o presente
e o passado se entrelaçam, mediados pelo corpo. A memória é constantemente
recriada, conectando a identidade coletiva à tradição e ao sagrado. A complexidade
das relações no terreiro é moldada pelo território, que se expande e contrai
flexivelmente. Nesse espaço, o corpo negro se transforma em um território de
resistência, gerando conhecimento através das expressões culturais e resistindo à
violência epistêmica. Assim, o território do corpo negro se converte em um entre-lugar,
onde a invenção, a descoberta e a rememoração são elementos fundamentais para
uma filosofia enraizada na “re-existência”.
Entende-se, assim, que a influência cultural resultante da diáspora africana é
profundamente enraizada e diversificada. Através da forçada miscigenação e
coexistência com diferentes culturas, as comunidades afrodescendentes contribuíram
significativamente para o tecido cultural de suas terras adotivas. Essa troca cultural
influenciou não apenas as artes, a música e a gastronomia, mas também contribuiu
para a formação de identidades híbridas, que se manifestam de maneira no campo

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das ciências e da filosofia, um dos aspectos mais esquecidos quando se constrói a
narrativa do conhecimento nas sociedades modernas.
Dessa forma, a desigualdade sistêmica e a exclusão resultantes da diáspora
africana têm suas raízes na supressão dos conhecimentos que os africanos
elaboraram ao longo de sua rica história. Por esse motivo, uma das estratégias da
exposição, voltada para o estudo da história e da cultura africana e afro-brasileira, é
retomar um campo do qual a cultura africana foi excluída, a saber, a filosofia, apesar
desta cultura se apresentar historicamente como uma matriz a partir da qual o
Pensamento filosófico se construiu.

A REINVINDICAÇÃO AFROCÊNTRICA E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA

Em 1974, durante uma conferência na UNESCO, mais precisamente na cidade


do Cairo, cuja temática era o povoamento do Egito, dois pesquisadores africanos, o
senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986) e o congolês Théophile Obenga, atualmente
com 86 anos, demonstraram por meio de um teste de melanina feito da pele de uma
múmia e outros artefatos culturais e linguísticos que os antigos egípcios eram negros.
Com isso, se buscava mostrar como teria sido construído uma narrativa histórico-
conceitual que buscava apagar as contribuições das pessoas de pele preta para
constituição do que chamamos de ciência e filosofia no mundo ocidental (ASANTE,
2014).
O caso do Egito é exemplar nesse sentido. Trata-se da única cultura antiga,
com disciplina específica, que se preocupa estritamente com as formações culturais
daquela civilização, entendendo-a como o ‘berço’ de diversos aspectos civilizatórios
que estão na base do mundo ocidental, incluindo considerações sobre as
contribuições técnicas e intelectuais dos egípcios na matemática, engenharia,
simbologia e mesmo no estudo das condições de aparecimento e constituição da
experiência humana no mundo, o que pode ser visto nos seus mitos e tradições
religiosas (VERCOUTTER, 1980).
No entanto, conforme estudos oriundos desta disciplina, ou seja, da egiptologia,
a riqueza da cultura egípcia é ligada ao Oriente. Trata-se de uma narrativa que busca
o "branqueamento" da civilização egípcia e pode ser elucidada se remetida à maneira
como Hegel pensou a história das culturas e das civilizações. Não houve na era
moderna um filósofo tão eurocentrista quanto Hegel. Segundo sua filosofia, a Europa
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é o centro e fim da racionalidade, tratada enquanto o cenário no qual o espírito se
descobre como potência universal e absoluta, desembocando, inclusive, na
experiência filosófica que ele mesmo expressa e representa: a filosofia idealista alemã
(DIOP, 1974).
Um dos esforços de Hegel, ao tratar da história das civilizações, foi, portanto,
retirar o Egito da África, pois considerava impossível que uma cultura sofisticada
pudesse estar assentada em tradições de origem africana. Ao olhar de Hegel (2008),
a principal característica dos povos africanos é uma consciência que não atingiu a
intuição de qualquer objetividade, tais como ela aparece no conceito de Deus ou
justiça, por exemplo. Se a Ásia é o continente das origens, a América de um futuro
hipotético, a Europa da liberdade real e da autêntica razão, a África é o da
uniformidade e da repetição. Nesse contexto, uma civilização como o Egito não
poderia ser ‘africana ou negra’, já que os africanos representam para Hegel uma
uniformidade, um devir impossível, uma inteligência à margem da lógica do espírito
absoluto, apresentando-se, assim, como um conjunto de povos sem história (HEGEL,
2008).
Essa compreensão é dada pelo filósofo alemão em seu texto ‘Filosofia da
História (2008). Ainda nesse texto, ele afirma ser inacreditável a carência de valor que
caracteriza os povos africanos, sendo, por isso, impossível que eles fossem incluídos
em uma história da civilização, tornando necessário, portanto, começar essa história
pelo Egito enquanto um momento de transição do espírito absoluto do Oriente para o
Ocidente. Na compreensão do filósofo alemão quando se considera a experiência
africana temos algo fechado, imóvel e sem história (HEGEL, 2008).
Corroborando o esforço de Cheikh Anta Diop e Théophile Obenga, que começa
a se afirmar publicamente a partir da conferência na Unesco em 1974, Jean Vercoutter
(1994) se opõe a posição de Hegel e reforça que “a civilização egípcia não foi
importada para o Egito, ela nasceu no próprio vale, é essencialmente nílica e
africana” (VERCOUTTER, 1994, p. 83). A conferência de Cheikh Anta Diop e
Théophile Obenga dá início, assim, a uma série de embates acadêmicos e políticos
que irão instigar o estadunidense Molefi Kete Asante, cujo nome de batismo é Arthur
Lee Smith, a publicar em 1980 a obra “Afrocentricity: The Theory of Social Change"
que contribuiu para o desenvolvimento de um paradigma epistemológico afrocentrado,
em diversas disciplinas, entre elas, a história da filosofia

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Segundo Assante (2016), quando escreveu esses o livro, seu objetivo era
atingir com uma lança o ventre do eurocentrismo que, segundo ele, estrangulou a
criatividade intelectual dos povos africanos em uma “[...] gaiola do pensamento
imperial ocidental” (ASSANTE, 20016, p. 10). Segundo o autor, o deslocamento físico
dos africanos durante os processos de colonização europeia da África e das Américas,
baseado no comércio de escravos, resultou em um afastamento dos povos africanos
de seus centros culturais, psicológicos, econômicos e espirituais, colocando-os à força
sob a tutela de uma cosmovisão europeia, que passaria, ser vivida pelos africanos
como um modelo universal de experiência e racionalidade, em detrimento da riqueza
de sua cultura de origem (ASSANTE, 2016).
Portanto, compreende-se que por meio da escravização dos africanos ocorre
um processo de supressão da relação intrínseca dos povos negros com sua própria
cultura, a qual, sob a perspectiva eurocêntrica, é depreciativamente caracterizada
como uma cultura "inferior". Essa visão, conforme exposta no texto de Hegel,
estabelece uma representação das pessoas de ascendência africana como sendo
ontologicamente "inferiores" e desprovidas de história. Esse enfoque hegeliano
persiste como um modelo não consciente de transmissão do valor das ciências e da
filosofia, especialmente quando se vincula à maneira pela qual os europeus
assimilaram a cultura grega. Isso se reflete na discussão sobre as teses do "milagre
grego" e do "orientalismo", que frequentemente dominam os diversos materiais
instrucionais que abordam tópicos como as origens da filosofia e a origens
experiência científica humana.
Nessa linha de raciocínio, é possível identificar na cultura brasileira uma
apreciação pela música e pela arte africanas que se enriqueceram por meio do seu
encontro com outras influências culturais que contribuíram para a formação da
identidade cultural do país. No entanto, quando se trata de domínios como o
conhecimento, a ciência e a filosofia, as bases epistemológicas que fundamentam a
compreensão da realidade tendem a ser predominantemente europeias. A orientação
das nossas perspectivas de estudo, especialmente no campo da filosofia, não tem
sido igualitária no que diz respeito ao reconhecimento e à incorporação das
contribuições provenientes da filosofia africana e de outras formas de pensamento
não ocidentais. Ao contrário do tratamento conferido às tradições intelectuais
europeias, não tem havido uma abordagem efetiva e equiparada para explorar e
assimilar essas perspectivas diversas.

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Por conseguinte, a tese amplamente difundida de que a filosofia e a ciência
tiveram seu surgimento na Grécia Antiga, representada por figuras como Tales de
Mileto, tende a ser a única perspectiva abordada em aulas de filosofia antiga e história
das ciências. Consequentemente, os aspectos ancestrais e fundamentais da cultura
africana raramente são considerados quando se explora a formação intelectual da
experiência humana. Isso ilustra uma abordagem epistemológica que se baseia em
uma falsificação, visando efetivamente excluir a contribuição da experiência africana
do domínio do conhecimento e das produções de sabedoria, ou seja, da cultura em
seu sentido mais amplo.
Atualmente, existem esforços para 'remediar' essa situação, tais como estudos
de pesquisadores brasileiros como Dantas (2018). No entanto, nos cursos de filosofia
e história das ciências, as disciplinas dedicadas ao tema são escassas; tampouco
existe um concreto esforço de utilizar conceitos oriundos da cosmovisão africana para
o tratamento dos problemas contemporâneos, ainda que o debate esteja em aberto,
o que, certamente, já é um avanço se pensarmos nesses mesmos cursos na década
de 80 e 90 do século passado.
Existe inclusive o surgimento de uma perspectiva afro-brasileira da filosofia e
das formas de pensamento que se constituíram no Brasil no decorrer da sua história,
buscando por em relevo a contribuição de intelectuais negros de suma importância
como Guerreiro Ramos (1915-1982), por exemplo. No entanto, é preciso entender que
o simples identitarismo cultural não pode ser a base desta redescoberta, mas deve
ser orientada pela consideração do valor epistemológico destes trabalhos, já que eles
não são superiores ou inferiores por terem sido realizados por pessoas de pele preta,
mas, formam, como no caso de Ramos uma contribuição decisiva a filosofia e a
sociologia brasileira, no campo da administração, do estudo das organizações.
Segundo uma leitura fenomenológica das instituições brasileiras que ultrapassa
e modifica em uma perspectiva ‘sociológica’ e intercultural as bases fundacionais da
fenomenologia europeia, aquela de Husserl, mais precisamente, indicando que a
redução fenomenológica, convertida em redução sociológica, deve incluir uma
modificação do olhar daquele que pensa e da relação dele com suas circunstâncias.
O que inclui também, para um pesquisador, de quaisquer disciplinas, um
questionamento da maneira como sua ciencia está institucionalizada (RAMOS, 1996).
Guerreiro Ramos, portanto, não é um intelectual que deve ser recuperado porque tem
a pele preta, mas porque faz uma revolução em sua área de estudo. No entanto, isso

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não quer dizer que não devamos questionar porque obras escritas por pessoas negras
costumam ser rebaixadas ou esquecidas no cânone oficial das disciplinas
institucionalizadas pelas instituições de ensino.
Assim, os intelectuais negros, pessoas de pele preta, sejam homens ou
mulheres, devem ser relidos ou lidos pela primeira vez porque trazem contribuições
decisivas para o pensamento brasileiro e universal. Deve-se, certamente, apontar que
eles foram vítimas de comportamentos teóricos colonizados e violência conceitual,
principalmente por aqueles que são incapazes de pensar fora da caixa de ferramentas
conceituais eurocêntrica; mas a resposta não é adoção acrítica de nenhuma teoria;
ou a exclusão de uma forma de pensar porque ele pertence a este ou aquele território,
feito por estas ou aquelas pessoas.
Por isso, torna-se necessário também que haja pelos intelectuais, professores
e estudantes brasileiros um domínio aprofundado da caixa de ferramentas conceitual
eurocêntrica, que tem estado na base do que pensamos e da maneira como julgamos
nossa própria cultura. Por outro lado, uma perspectiva afrocentrada na história da
filosofia, configura-se como um ato epistêmico necessário à ampliação do ensino de
filosofia, um olhar sobre a caixa de ferramentas conceitual eurocêntrica e um conjunto
de instrumentos pelos quais o enfrentamento das condições de produção e
transmissão de saber podem ser compreendidas, enfrentadas e modificadas. Por isso,
corroboramos as palavras de Assante: “A Afrocentricidade é uma crítica da dominação
cultural e econômica é um ato de presença psicológica e social diante da hegemonia
eurocêntrica” (ASSANTE, 2016, p. 12).
Desta maneira, em nossa perspectiva, é um esforço válido estender a
perspectiva afrocentrada ao estudo das origens da filosofia antiga, ampliando e
modificando o cânone tradicionalmente aceito da disciplina. Por isso, apresentaremos
em que consiste um método afrocêntrico de análise e reflexão sobre a cultura,
mostrando como ele pode ser utilizado para pensar a história da filosofia antiga.

3.1 As cinco características do método afrocentrismo

O afrocentrismo representa uma perspectiva epistemológica caracterizada por


assumir uma postura política e filosófica em contraposição ao eurocentrismo. Essa
abordagem oferece uma forma alternativa de interpretar e compreender a história e a
cultura. Em essência, o afrocentrismo se posiciona como uma antítese ao

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eurocentrismo, que por sua vez é uma perspectiva que coloca a Europa como centro
de experiência e conhecimento. O eurocentrismo considera os valores e os métodos
de produção de conhecimento europeus como superiores em relação às tradições de
outros grupos étnicos, especialmente das nações africanas e, por extensão, das
culturas descendentes dessas populações.
Dentro do âmbito da história e dos estudos culturais, o afrocentrismo emerge
como uma abordagem destinada a questionar a supremacia do pensamento europeu
sobre outras maneiras de pensar presentes em diferentes culturas. Isso implica uma
avaliação crítica do entendimento que o Ocidente tem em relação à filosofia, às
ciências, à antropologia e à epistemologia (ASSANTE, 2016; NASCIMENTO, 2014).
A perspectiva afrocentrista envolve uma compreensão aprofundada do aspecto
epistemológico e ontológico do lugar na formação da experiência individual,
enfatizando a relevância da cultura africana e suas tradições. Esse método pode ser
compreendido melhor ao considerarmos um aspecto específico dos estudos culturais
e científicos, ou seja, o surgimento da filosofia e da noção de comportamento
científico, conforme abordado anteriormente.
No âmbito da história da filosofia antiga, isso seria o entendimento de que para
além do orientalismo ingênuo e da tese do milagre grego existe a remissão da filosofia
grega à cultura egípcia, enquanto há o lugar no qual o povo grego está em posição
em relação ao povo egípcio, o que é documentado por historiadores e filósofos da
antiguidade.
Além disso, entende-se, que o aparecimento deste lugar onde a filosofia grega
está remetida ao pensamento egípcio deve ser desvelado conforme a inclusão da
história do antigo Egito no território físico, político e espiritual do continente africano,
para que uma nova perspectiva possa ser alcançada em relação à história da filosofia.
Essa inserção é fundamental, já que a primeira estratégia do eurocentrismo para
negar a relação de constituição da filosofia grega pela filosofia egípcia foi a negação
da realidade africana do Antigo Egito.
Na perspectiva de Assante (2016), enquanto os africanos foram deslocados
da originalidade de sua experiência cultural, psicológica, econômica, o esforço
afrocentrico deve partir da avaliação de suas condições em qualquer país, tendo como
base uma localização centrada no continente africano e sua diáspora. Por isso, na
perspectiva de um estudo da filosofia antiga, torna-se necessária incluir o Egito no

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território africano, para em seguida incluir as formas de pensamento egípcia na
história da filosofia (ASANTE, 2016).
Enquanto posição epistemológica, o afrocentrismo deve considerar a
estruturação de um método. Nesse sentido, Assante (2016) elenca cinco
características gerais do método afrocêntrico
1. O método afrocêntrico considera que nenhum fenômeno pode ser
apreendido adequadamente sem ser localizado primeiro. Um fenômeno
deve ser estudado e analisado a partir das relações de tempo e espaço
psicológicos; entendidos como dimensões de existência na vida de um
sujeito, de uma cultura ou comunidade, enquanto constituintes do seu
espaço. Entende-se, assim, que no acontecimento do fenômeno sua
localização não é apenas física, mas espiritual e política. Desta
perspectiva, se torna possível investigar as complexas interrelações
entre ciência e arte, projeto e execução, criação e manifestação, geração
e tradição, filosofia e cultura e outras tantas dimensões atravessadas
pela teoria.
2. O método afrocêntrico considera o fenômeno como múltiplo. Ou seja, ele
não é uma substância no sentido clássico ou aristotélico. Seus atributos
não podem ser separados em contingentes e universais, já que o
fenômeno é sua multiplicidade. Assim, ele deve ser tomado em sua
dinamicidade. É importante, em uma perspectiva afrocêntrica, a
consideração, o registro e a expressão rigorosa da localização do
fenômeno em meio às flutuações que formam sua territorialidade. O que
significa ainda que o investigador (a) deve saber onde ele ou ela se
encontra em sua relação com o fenômeno. Não apenas em relação ao
acontecimento, mas da sua relação com o acontecimento.
3. O método deve se assumir como uma forma de crítica cultural, pautada
pelo esforço de examinar a ordem e o usos etimológicos das palavras e
termos, para com isso reconhecer a localização das fontes e
'orientações' de um (a) autor (a). Isso vale também para o estudo de uma
cultura e de uma tradição. Segundo Assante (2016), tratando o método
(ou fazendo o método, que significa caminho) desta maneira, é possível
articular ideias com ações e ações.

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4. O objetivo do método é desfazer a máscara do poder, descobrindo o que
está atrás da retórica utilizada pela figura da máscara, pelo seu ser na
cultura e na dominação da cultura do outro, questionando privilégios que
podem ser práticos e teóricos e são espirituais e políticos no seu
acontecimento (ASSANTE, 2016).
5. O método afrocêntrico quer localizar a estrutura imaginativa e
inconsciente dos sistemas econômicos, partidos políticos, política de
governo, formas de expressão cultural, voltando-se para a atitude,
direção e linguagem do fenômeno. O fenômeno pode ser entendido
como singularidade: coisa, pessoa, objetos. Mas também como eventos:
o partido em relação aos seus membros; a escola em relação ao estado;
o corpo em relação à alma.

As duas dimensões são inseparáveis quando se visa ouvir e ser direcionado


pela linguagem do fenômeno. Assim, o fenômeno pode ser dado no contexto ou
enquanto texto; como também numa personalidade ou enquanto personalidade, como
evento ou enquanto evento (ASSANTE, 2016).
Segundo a perspectiva do autor, quando se trata de uma investigação
afrocentrada é preciso questionar a separação entre tempo e espaço no sentido
cartesiano. O que se chama cronologia é considerado constituinte da sedimentação
do território. Enquanto expressão imediata de um tempo cristalizado, a cronologia
deve guiar o investigador na recuperação do sentido do tempo enquanto duração que
delimitada o lugar ocupado pelo fenômeno. Assim, o tempo cronológico deve ser
recuperado e em seguida desconstruído. A busca é fazer aparecer um tempo em
estado vivo: o tempo do sujeito quando sente e quando pensa; o tempo da cultura
quando está vivendo sua mitologia; o tempo do cientista que assume o método
científico e por isso se insere em uma temporalidade e um território onde a coisa não
depende só dos seus olhos e do seu pensamento, mas do encontro dos instrumentos
tecnológicos e de uma linguagem para compreender os fenômenos (ASSANTE,
2016).
Assim, é possível ver como um discurso se constitui e exclui outros de sua
‘existência”. Marca-se, por exemplo, um lugar para se começar a falar da filosofia:
tradicionalmente ela começa na Grécia, com Tales de Mileto e se consolida com
Sócrates e sua morte no ambiente da pólis. Temos aí uma cronologia que forma o

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espaço de um território. A filosofia é fruto da pólis; em sua existência anterior, o
pensamento não é filosofia, porque ainda não há essa territorialidade política onde a
pólis organiza o espaço. Hegel (2008) consolida essa visão quando configura o
espaço da história como um lugar que não pode englobar o povo africano, ou mais
precisamente, a história africana, porque eles são povos sem história. A questão não
é ‘desvalorizar’ a filosofia grega e sua origem. Mas entender que se trata do
nascimento da filosofia grega, não da filosofia em si ou da ‘filosofia enquanto
comportamento teórico universal (ASSANTE, 2016).
Na concepção de uma origem grega da filosofia, tal como imaginada por Hegel,
em sua história da filosofia e filosofia da história, talvez exista ainda a ideia de que a
‘cor’ da pele pode ser o sintoma que torna necessária essa exclusão. No entanto,
mesmo Hegel, talvez tenha percebido o quão é ilógico julgar uma pessoa ou um povo
a partir da cor da pele. Por isso, sem falar da cor, ele julga os africanos selvagens’,
sem história; a música deles é excessivamente sensível e corporal, ela coloca a razão
em transe porque eles não sabem se relacionar com a razão ou não tem razão.
O pensamento de Hegel sobre a história quando exclui a África se pauta pela
ideia de que não existe ‘objetividade’ se fazendo na cultura africana. O espírito
absoluto de Hegel, por outro lado, é aquele que se realiza quando pode ter de si a
ilusão de um controle “objetivo”, através de objetividades expressas, ou seja, na
formação dos conceitos (MAZAMA, 2003)
Através de um exercício do pensamento, que questiona os mestres da filosofia
ocidental, como Hegel, por exemplo, a filosofia tal como exposta por Molefi Kete
Asante e outros teóricos que estão construindo paradigma afrocêntrico, encontramos
uma maneira de inquirir questões do âmbito cultural, econômico, político e social
considerando o povo africano como protagonista, pondo em relevo um exercício de
consideração do que foi ‘excluído’ ou posto à margem do discurso filosófico.
Encontramos uma formulação precursora deste exercício na obra “O legado roubado
[..]" de George G. M. James, da qual falaremos no próximo tópico.

3.2 O legado roubado? Uma tese de George G. M. James

Na introdução ao livro Legado Roubado, de George G. M. James, na tradução


brasileira, feita pela Editora Paz e Terra, encontramos informações biográficas de
suma importância para uma contextualização de sua obra. Segundo essa introdução,

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George Granville Monah James nasceu em Georgetown, Guiana Inglesa, América do
Sul. Ele foi filho do reverendo Linch B. e Margaret E. James. Alcançou os graus de
Bacharel em Artes, Bacharel em Teologia e Mestrado em Artes pela Universidade de
Durham na Inglaterra e foi um candidato ao grau de Doutor em Letras naquela
universidade. Realizou e dirigiu pesquisas na Universidade de Londres e fez estudos
de pós-graduação na Universidade de Columbia, onde alcançou seu Ph.D. Lecionou
matemática, latim e grego em escolas de Nova Iorque; tendo posteriormente assumido
uma cadeira como professor de lógica e grego na faculdade Livingston, em Salisbury,
Carolina do Norte, trabalhando lá por dois anos (JAMES, 2008)
Em 1954, James publicou o livro Legado Roubado, que tem como subtítulo a
seguinte afirmação: “Os Gregos não foram os autores da Filosofia Grega, mas o povo
da África do Norte comumente chamados Egípcios”. O trabalho de James talvez tenha
sido o primeiro a apresentar uma tese de contestação a compreensão de que a
filosofia é uma criação dos gregos antigos. Como já indicamos, não consideramos
suficiente dizer que não haja um caráter inovador e singular na filosofia grega, mas
também entendemos que tratar o comportamento teórico inaugurado pelos gregos,
através dos pré-socráticos, como uma forma universal de manifestação da
racionalidade também é uma tese pouco consistente, que tem sido utilizada para a
manutenção de uma racionalidade europeia como base e sentido de toda
racionalidade possível, como também para exclusão do campo da filosofia de formas
de pensamento que não obedeçam os critérios dessa racionalidade.
Não teremos como aprofundar todos os aspectos da questão nesta aula; mas
é importante que o estudante compreenda que estamos diante da quarta tese sobre
as origens da filosofia na Antiguidade, que encontra no texto de James sua primeira
formulação, mas é, atualmente, disseminada, desenvolvida e debatida por inúmeros
autores e pesquisadores contemporâneos que assumem o paradigma afrocentrista e
da diversidade cultural como forma de se aproximar ao discurso filosófico, tal como
Assante (2016, 2004), do qual apresentamos algumas teses e formulações no tópico
anterior.
A tese de uma origem africana da filosofia é fundamental para uma
compreensão ampliada do que chamamos de ‘A filosofia antiga”, sendo este nosso
objetivo primeiro nessa disciplina. Por isso também a consideração deste texto de
James, onde a polêmica questão das origens da filosofia grega é deslocada para uma

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perspectiva onde se busca, segundo o seu autor, a restituição dos povos africanos do
seu valor e papel na formação da cultura humana (JAMES, 2018).
No entanto, seria também ingênuo considerar que uma forma de pensar
ambientada em um quadro de instituições tais como aquelas desenvolvidas pelos
gregos, ou seja, a cidade-estado e a democracia grega-ateniense, não teriam em seu
‘cerne’ uma maneira de pensar e investigar o mundo diferente de uma filosofia
desenvolvida em uma sociedade onde o regime político era centrado na figura de um
monarca entendido como manifestação da divindade.
No entanto, existem inúmeros debates sobre a estrutura política e cultural da
sociedade egípcia, o que não será abordado nessa aula, mas deve, pelo menos, ser
considerado no contexto do entendimento de uma cultura a qual foi negada a
compreensão de suas origens africanas pelos principais filósofos da modernidade,
como Hegel, o que já foi indicado anteriormente. Através de seus estudos de história
da filosofia e filosofia da história, Hegel fundou uma tradição de compreensão da
cultura egípcia eurocentrada, quando vinculou o desenvolvimento daquela cultura ao
oriente e entendeu que ali acontecia a passagem do ‘Espirito’ do oriente para ocidente.
As consequências desta interpretação são inúmeras na maneira como os
pensadores modernos e contemporâneos entenderam a filosofia antiga. Edmund
Husserl (1958-1938), fundador da tradição fenomenológica contemporânea, por
exemplo, em seu texto “A crise da humanidade europeia e a filosofia”, originado de
uma conferência feita pelo filósofo em 1935, não faz nenhuma menção positiva aos
povos não europeus no que tange a construção da racionalidade, mas afirma a ideia
de que o projeto humano em sentido amplo e geral dependia da realização holística e
responsável da racionalidade europeia, cada vez mais decadente, em sua perspectiva
(DEPRAZ, 2008)
Nesse sentido, os trabalhos de Jean-Pierre Vernant são exemplares. Não se
trata mais de dar aos gregos o direito ao milagre ou a suposição de que tudo que eles
fizeram veio de outro lugar. Mas acompanhar a história de um pensar que se estrutura
conforme as instituições nas quais uma experiência se torna possível. Por isso, talvez
a grande fraqueza da obra de Geoge G. M. James, que iremos estudar seja não ter
considerado que o pensamento se enraíza no mundo social, nas instituições políticas,
nas formas de produção econômica, desdobrando-se, ainda, em instituições
específicas de saber e transmissão do saber, o que nos impede de entender a filosofia
como uma prática de pensamento universal e baseada em critérios definitivos.

15
Desta maneira, poderemos, talvez, constatar ao final desta exposição a
impossibilidade de tratar o pensamento antigo (ciencia, cultura e filosofia) como uma
forma universal de experiência, seja pelo seu conteúdo ou sua forma, em suas
manifestações gregas ou africanas. A universalidade possível à filosofia, talvez,
encontre-se na sua existência como uma prática de pensamento possível a qualquer
ser humano segundo suas circunstâncias e ser-no-mundo.
O pensamento, assim, surge como uma práxis, dada como um esforço de
compreensão, sistematização e interpretação pela qual, como considerava Gramsci
(1999), uma classe social, uma cultura ou indivíduo, passam de uma visão
fragmentada do mundo, da sociedade e do seu ser-no-mundo para uma visão unitária
e crítica, algumas vezes aberta, outras, fechada, mas estruturada como devir no
ambiente de sua cultura (GRAMSCI, 1999).
A obra de James começa com uma afirmativa extremamente provocativa. "O
termo filosofia grega, para começar, é um equívoco, pois não há tal, tal filosofia (2018).
Com esse começo, ele visa questionar a compreensão de uma filosofia de origem
puramente grega e constrói seu texto Stolen Legacy (O Legado Roubado) nos
contando como teria sido a trajetória e as circunstâncias que levaram a formação da
filosofia grega.
O caminho realizado pelo autor não é ortodoxo. Segundo alguns de seus
críticos, ele desenvolve sua história do pensamento tomando como base uma tradição
esotérica oriunda da maçonaria, da qual participou e fundou uma loja para pessoas
de pele preta nos Estados Unidos. Desta maneira, sua remissão ao Egito teria como
base sua formação maçônica. No entanto, James possuía uma ampla formação
intelectual e seu livro tem ainda um segundo aspecto importante: ele aponta que a
primeira distorção em relação à história da filosofia antiga é dada quando se esquece
das raízes africanas do mundo egípcio.
Assim, em uma perspectiva diferente da hegeliana, James (2018) afirma desde
o primeiro capítulo de seu livro que a filosofia grega teria sido fruto do roubo de um
legado, o legado egípcio, que, no que lhe concerne, está assentado no continente
africano e na cultura africana, através de sua longa história. O interesse do autor é,
justamente, apontar a tamanha negligência e violência que se consolidou na história
das civilizações contra as produções intelectuais africanas, quando seus traços e
expressões foram retirados da história da filosofia, um processo orientado e

16
consolidado pelo tratamento da cultura egípcia como uma cultura branca e de origem
oriental.
A análise de James (2018) começa por reconstruir um ambiente geopolítico,
onde, segundo sua leitura, teria ocorrido a construção da narrativa pela qual os gregos
tomaram para si o papel de inventores de um saber universal sobre a mitologia e
cosmogonia, questões políticas, filosofia natural e existencial. Segundo James
(2018), os fatos históricos que atravessam o território grego, nos séculos de
nascimento da filosofia, o século VII, apontam para a impossibilidade do surgimento
da filosofia.
Trata-se, de um ambiente marcado por constantes disputas de caráter militar e
econômico. Segundo sua posição, em um ambiente fragmentado, marcado pela
guerra não haveria espaço, para o que próprio Aristóteles entendia como condição do
filosofar: o ócio. Não se trata do não precisar trabalhar simplesmente, já que o sistema
de escravidão de estrangeiros era vigente em várias cidades gregas, mas da
inexistência de uma 'comunhão' entre as comunidades que teriam dado origem ao
discurso filosófico. Ele indica, nesse sentido, que a ideia de uma filosofia de origem
puramente grega começa a se forjar quando Aristóteles tem acesso a textos de origem
egípcia, na ocasião da tomada do Egito por Alexandre, o grande.
Segundo James (2018), no drama a partir do qual se constitui uma ‘uma filosofia
grega’ existem três atores, que desempenharam funções distintas e determinantes. O
primeiro é Alexandre, o Grande, que através de seu projeto expansionista invadiu o
Egito em 333 a.C., criando as condições para um grande saque da Biblioteca Real de
Alexandria, a partir do qual foram usurpados um espólio de livros científicos, filosóficos
e religiosos de grande relevância, mas ainda desconhecido pelos gregos. Assim, o
Egito foi roubado e anexado como parte do império de Alexandre. No entanto, como
indica o autor, “ [...] o plano de invasão incluiu muito mais do que a mera expansão
territorial; pois ele preparou o caminho e o tornou possível para a captura da cultura
do Continente Africano” (JAMES, 2018, documento online).
Assim, o outro grande ator desta história é a Escola de Aristóteles cujos alunos
se mudaram de Atenas para o Egito e converteram a biblioteca real, primeiro em um
centro de pesquisa; posteriormente em uma universidade e compilaram aquele vasto
corpo de conhecimento científico que eles tinham adquirido com a pesquisa da
tradição egípcia, juntamente com as instruções orais que receberam dos Sacerdotes
Egípcios, criando, assim, as condições discursivas e práticas para o que será,

17
posteriormente, chamado de filosofia grega e para difusão de teses como o milagre
grego e orientalismo, já que essa apropriação terminou na formação de uma narrativa
sobre a formação da filosofia grega que mencionava a importância deste contato para
o modo como os gregos do era helenista interpretaram seu passo filosófico e cultural.
A tese de James aponta em outra direção. Em sua perspectiva, os Gregos
roubaram o legado do Continente Africano, retirando do povo africano o direito de ser
entendido como berço de muitas das maiores criações intelectuais dos seres
humanos. O resultado dessa desonestidade tem sido, segundo o autor, o
fortalecimento de uma “opinião mundial errônea”, segundo a qual o continente
Africano [...] não fez nenhuma contribuição para a civilização, porque seu povo é
atrasado e pobre em inteligência e cultura” (JAMES, 2018).
Podemos entender, partindo desta perspectiva, que é na formulação das bases
de uma primeira história da filosofia grega, que pode ser mapeada as origens de uma
exclusão, que, na perspectiva afrocentrista terá consequências políticas e
epistemológicas relevantes para história do pensamento e as vivências intelectuais e
afetivas dos povos africanos (ASSANTE, 2016).
Um dos aspectos mais interessantes do livro de James é o objetivo da sua
pesquisa em temos civilizatórios. Ele acredita que a consideração da origem africana
da filosofia proporcionaria uma reeducação dos povos negros e brancos. Ou seja, se
a origem do eurocentrismo e sua maneira de tratar a cultura e a vida das pessoas de
pele preta tem como um de seus alicerces um falseamento das origens da filosofia, é
essencial que tal narrativa seja questionada e desconstruída.
Assim, segundo sua posição, o entendimento de que a filosofia grega não é
nada mais que um roubo do que foi cultivado por sacerdotes egípcios e africanos do
norte da África, mudaria a mentalidade das pessoas negras e brancas, pois iria
determinar uma transformação no modo como elas se situam no campo da cultura e
da história humana. Nas palavras de James, com a restituição do sentido africano da
origem da filosofia aconteceria “[…] a mudança na mentalidade do povo preto e
branco, grandes mudanças também são esperadas em suas respectivas atitudes em
relação ao outro, e na sociedade como um todo (JAMES, 2018).

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A EXPERIÊNCIA AFRICANA E SUA MULTI-TEMPORALIDADE: O OLHAR
CONTEMPORÂNEO DE CHIMAMANDA ADICHIE

A trajetória da África ao longo da história até o século XXI é permeada por uma
narrativa rica em diversidade, sendo lamentável que a maioria dessas histórias esteja
marcada por conflitos e atos de violência. Isso se deve ao fato de que o continente
africano, desde suas origens, carrega o ônus de ter sido alvo de saques e abusos
perpetrados por outras culturas e suas instituições políticas imperialistas. Nesse
contexto, explorar a história africana exige uma análise das diversas narrativas que
compõem esse complexo cenário de dinâmicas, categorizado sob o nome "África". É
inquestionável, portanto, a importância de reconhecer a África como um continente
em que a característica predominante é a pluralidade sócio-cultural.
Através da perspectiva sugerida pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie
em seu ensaio "O Perigo de uma Única História", fica claro como as narrativas
simplistas podem distorcer e limitar nossa compreensão da diversidade e riqueza das
culturas e trajetórias africanas. A visão de uma única história sobre a África é um
equívoco, que negligencia a multiplicidade de vozes, experiências e conquistas que
compõem a complexa tapeçaria do continente.
É crucial, portanto, transcender os estereótipos e preconceitos que, por vezes,
cercam a representação da África e mergulhar nas inúmeras facetas de sua história e
cultura. Somente assim podemos apreciar plenamente a profundidade e a riqueza das
narrativas africanas, reconhecendo que as muitas histórias que se entrelaçam
contribuem para a identidade multifacetada do continente.
Se adotarmos a definição de cultura como o conjunto de expressões e
experiências vivenciais manifestadas por um grupo na sua interação com o mundo,
podemos considerar que a África abriga uma notável diversidade de culturas.
Portanto, seria inadequado reduzir seu perfil cultural a uma identidade singular, como
se houvesse uma "essência africana" universal. De fato, como afirma Appiah (1997),
é importante ressaltar que todas as identidades humanas são construídas de forma
histórica.
Contudo, é frequentemente disseminada a concepção de que a África é um
continente marcado por conflitos incessantes, mergulhado em situações de pobreza
extrema, fome e doenças devastadoras. Da mesma forma, propagam-se imagens de
paisagens naturais exóticas e intocadas, caracterizando o continente africano como
19
um cenário de desertos desabitados e savanas habitadas por leões e elefantes, um
lugar de aventuras e safáris emocionantes. Essas representações, muitas vezes
veiculadas por meio de documentários, veículos de notícias e revistas, e até mesmo
incorporadas no currículo escolar, são embasadas na desinformação e no
etnocentrismo que historicamente permearam as relações, especialmente entre a
Europa e a África, ao longo dos últimos séculos (APPIAH, 1997).
Tais representações estereotipadas acerca do continente e de seus habitantes
são sintomáticas da simplificação que ocorre por meio da seleção de eventos isolados
como sendo emblemáticos de toda a história e cultura africanas. Essas
representações frequentemente se baseiam em eventos como guerras civis, doenças
e fome, que simbolicamente são interpretados como a "face" da África, a sua essência.
Entretanto, embora seja inegável que desafios sociais, políticos, econômicos e
culturais existam na África, é essencial evitar a armadilha de enxergar essas questões
como a única forma de compreender o continente em sua totalidade.
Infelizmente, algumas perspectivas erroneamente atribuem à África uma
tendência intrínseca à guerra civil, o que carece de fundamento; outras chegam até
mesmo a imputar uma maldição a populações de origem africana. Esses estereótipos
simplificadores refletem uma visão distorcida e prejudicial que não captura a riqueza
e a complexidade das múltiplas experiências e identidades que compõem a África.
Essas ideias infundadas continuaram a ser disseminadas, especialmente após
a intensificação das relações entre a Europa e o continente africano, durante o longo
processo de colonização da África. Essas noções negativas foram propagadas como
forma de justificar a violência que foi imposta ao continente.
Por várias razões, algumas pessoas chegaram a supor que as populações
africanas não possuíam uma cultura ou história significativas, ou no máximo, teriam
desenvolvido apenas formas primitivas de organização social, política e cultural. No
entanto, essa visão contrasta com uma análise mais aprofundada das guerras civis
que afetaram e ainda afetam o continente. É possível entender a maioria desses
conflitos como resultantes de um complexo processo de agressão cultural, política e
material enfrentado pelas populações africanas ao longo de séculos, especialmente
durante o período de colonização (APPIAH, 1997).
A história africana é marcada por uma série de eventos traumáticos, desde a
colonização até a escravidão e o subsequente neocolonialismo. Durante o processo
de colonização, as potências europeias impuseram seu domínio sobre vastas áreas

20
do continente africano, muitas vezes dividindo grupos étnicos e culturas previamente
estabelecidas para atender às suas próprias necessidades econômicas e políticas. As
fronteiras arbitrárias traçadas pelos colonizadores não levaram em consideração as
identidades étnicas, culturais e territoriais das populações locais, o que
frequentemente resultou em conflitos internos e rivalidades (MATTOS, 2009).
Além disso, o sistema colonial explorou brutalmente os recursos naturais e
humanos da África, resultando em desigualdades socioeconômicas profundas. Essas
dinâmicas persistentes de exploração e opressão frequentemente se transformaram
em tensões internas e disputas por recursos escassos, contribuindo para conflitos
civis. Um exemplo notável é a Guerra Civil na República Democrática do Congo, que
tem raízes em parte nas disputas por recursos naturais valiosos, como minerais
usados na fabricação de produtos eletrônicos. Esses conflitos são alimentados não
apenas por fatores internos, mas também por interesses externos que buscam
controlar e explorar os recursos da região (APPIAH, 1997).
Portanto, a compreensão das guerras civis na África não pode ser simplificada
como resultado de uma suposta propensão inata para a violência, mas sim como um
desdobramento complexo das experiências históricas, culturais e políticas que as
populações africanas enfrentaram ao longo do tempo. A compreensão desses
conflitos requer uma análise profunda das causas subjacentes, incluindo a herança
do colonialismo e as estruturas de poder globais que ainda impactam o continente.
Isso não significa que não existissem conflitos anteriores à chegada dos
europeus em África. No entanto, ao examinarmos com mais cautela muitos dos
conflitos recentes, percebemos que suas raízes não estão em uma suposta
predisposição inata para a guerra, mas sim no resultado das experiências de violência
sofridas pelos africanos em decorrência do contato com outras culturas e povos.
Diversos desses conflitos têm origem no aprofundamento de antigas disputas
travadas entre grupos africanos, historicamente envolvidos em rivalidades por
territórios e recursos, como ocorre também em outros continentes. Contudo, na África,
esses conflitos frequentemente persistiram ou se intensificaram devido aos sistemas
de dominação e expropriação impostos ao continente. A compreensão dessas
dinâmicas complexas é fundamental para uma visão mais completa e precisa da
história africana ( APPIAH, 1997)
O mesmo exercício de discernimento vale para o caso das expressões culturais
africanas, frequentemente consideradas como inferiores, atrasadas ou primitivas em

21
comparação com as culturas europeias. No entanto, tais avaliações são baseadas em
preconceitos e falta de compreensão das ricas e diversas manifestações culturais do
continente africano. As culturas africanas não devem ser julgadas a partir de
parâmetros eurocêntricos, pois essas avaliações desconsideram sua autenticidade e
complexidade.
As culturas africanas são distintas e diversas, variando não apenas entre
diferentes regiões do continente, mas também ao longo do tempo. Essas culturas são
movidas por formas expressivas próprias, que refletem as histórias, valores e modos
de vida das diversas comunidades. O erro está em rotular essas expressões como
inferiores com base em padrões culturais estrangeiros. O que pode parecer primitivo
ou atrasado em um contexto eurocêntrico muitas vezes é profundamente significativo
e sofisticado dentro das próprias culturas africanas.
É fundamental reconhecer que todas as culturas possuem intrínseca validade
e valor. A diversidade cultural enriquece nosso entendimento do mundo e contribui
para a riqueza da experiência humana. Portanto, ao se deparar com imagens, textos
ou representações sobre a África e suas culturas, é importante questionar as
suposições embutidas nessas representações e buscar uma compreensão mais
profunda e informada da diversidade e complexidade das culturas africanas.

CULTURA AFRO-BRASILEIRA: POVOS ORIGINÁRIOS, BRASIL, ÁFRICA E


EXPERIÊNCIA.

Na construção do que entendemos como cultura brasileira, encontramos


representações das culturas africanas e das culturas originárias do país em diversas
manifestações culturais. No entanto, é importante notar que quando nos referimos à
"cultura brasileira", não estamos exclusivamente abordando a cultura afro brasileira.
O termo engloba os elementos culturais e comportamentos que são percebidos por
grupos sociais como representativos da história, vida e identidade do povo brasileiro
como um todo (PROENÇA FILHO, 2004).
Contudo, é fundamental reconhecer que o processo de determinar o que é
digno de reconhecimento não é sempre uma prerrogativa da população em geral.
Muitas vezes, esse processo passa por uma seleção cultural na qual as elites
desempenham um papel significativo. Elas podem influenciar quais elementos
culturais são valorizados e celebrados, moldando assim a maneira como a cultura é
22
percebida e transmitida. Isso pode levar a uma distorção da representatividade
cultural, excluindo ou marginalizando certas expressões que não se enquadram nas
visões valorizadas pelas elites.
Portanto, ao abordar a cultura brasileira, é importante reconhecer a diversidade
de influências e contribuições das culturas africanas, indígenas e originárias, ao
mesmo tempo em que se questiona as dinâmicas de poder que moldam a percepção
e o reconhecimento cultural. Nesse contexto, é crucial compreender, por exemplo,
que a literatura ( estamos falando agora da literatura brasileira) frequentemente
apresenta representações da cultura africana e das populações africanas que revelam
mais sobre a perspectiva do próprio autor e sua posição na sociedade do que
propriamente sobre o que está sendo retratado (PROENÇA FILHO, 2004).
Em outras palavras, os relatos de escritores podem funcionar como
testemunhos de uma cultura e de uma determinada visão sobre ela, porém, é
importante não os tomar como reflexos autênticos da vivência dos povos originários e
afrodescendentes. Essas narrativas literárias não podem ser consideradas como
representações verdadeiramente autênticas da experiência das culturas em questão,
mas sim como modos pelos quais essas culturas são representadas dentro do
contexto da nossa própria cultura. A literatura serve como um espelho da sociedade
em que é produzida, refletindo não apenas a realidade retratada, mas também as
influências e preconceitos do autor, bem como as percepções dominantes da época.
Além disso, tais obras ganham notoriedade por meio de dois aspectos que se
relacionam entre si. O primeiro é o alcance dos leitores a serem atingidos pelas
páginas dos romances, tendo mais facilidade para o leitor conhecer uma obra de
ficção do que uma obra acadêmica. O segundo é que, não obstante, sejam obras de
ficção, compartilham a semelhança com a realidade tornando possível analisar
concretamente as formas pelas quais uma determinada da cultura é produzida e como
essa imagem forma o que chamamos de experiência (PROENÇA FILHO, 2004).
Essas obras tornam possível imaginar e refletir o quanto foi difícil a vida dos
indígenas e negros naquela época, o que eles sofreram com estas represálias; logo,
é necessário a introdução do combate as diversas formas de racismo nas escolas que
deve considerar o perfil e a história dos povos e seus respectivos grupos em visita ao
ambiente escolar. Para que este processo seja implementado de forma eficiente, a
escola deve ampliar a definição de currículo, avaliação e material didático e formas de
ação entre professores e alunos. Em geral, o foco está no debate sobre o preconceito

23
racial e como combatê-lo apenas em 19 de abril para a população indígena e em 20
de novembro dia da consciência negra.
Esses marcos simbólicos, se não devidamente relatados, podem ser usados
para demostrar estereótipos e amplificar opiniões péssimas sobre a população,
transformando a escola em um local fútil para determinados agrupamentos e a
anulação de sua função social que permite o acesso a direitos e autonomia das
pessoas. Ao verificar as ações dos movimentos da sociedade que visam por uma
sociedade mais justa e igualitária, observar-se que a legislação avançou,
possibilitando a materialização de um aparato legal capaz de reduzir e prevenir a
prática do racismo no país (PROENÇA FILHO, 2004).
No entanto, o trabalho contra o racismo deve superar o aspecto apenas jurídico,
por isso a escola é tão importante. É preciso que seja descrito e enfatizado, via
processos pedagógicos, que no decorrer da trajetória brasileira, os afrodescendentes
e nativos americanos criaram várias táticas para driblar a ordem atual e realizam suas
multiculturalidades, resistindo a política de destituição cultural e violência dos
colonizadores. Esses truques se materializaram em diferentes aspectos do cotidiano
dessas pessoas, também na área religiosa, com a geração de associações religiosas
negras e pardas nas quais orixás e divindades africanas foram aceitas no culto dos
santos católicos (IANNI, 2011).
Na área da cultura, enfatiza-se a capoeira, mistura de luta e dança, previamente
vedada e depois declarada patrimônio histórico, cultural nacional. No reino do
sagrado, as religiões afro-brasileiras se incorporaram como práticas de crença. Nesse
contexto, as irmandades negras, associado ao catolicismo; umbanda integrada ao
espiritismo; ou candomblé; o culto dos orixás; tambor de mina (Maranhão); e o culto
congo-angola (Rio de Janeiro e Bahia) (CAMPOS, 2011).
A linguagem do vocabulário, que suavizou o português europeu e desenvolveu
uma nova língua para se ter uma melhor compreensão. Panoramas do
comportamento africano foram introduzidos no Brasil por meio da aquisição de
diferentes indumentárias impregnadas de herança, memória e resistência étnica e
culturais.
Interação racial e cultural no Brasil era tão profunda que surgiram também
reverências afro-indígenas, como: candomblés de caboclo (Bahia), jurema (Paraíba e
Pernambuco), barba-soeira (Amazonas e Pará) e terecô (Maranhão), popularmente
conhecida como catimbó, macumba e canjerê. As festas dos reis negros, também

24
chamadas sarau do rosário, são exposições da cultura que implicam a forte presença
do ritual africano no Brasil.
Essas manifestações culturais têm origem nas divindades religiosas de
escravos, em fraternidade de ato de fé, escolhiam um rei que era popular pelos
inseridos na irmandade e tinha sua liderança reconhecida até mesmo pelos
colonizadores, apresentando como a vida social perante a escravidão era complexa.
Esses conceitos aqui no Brasil alteraram consoante o lugar de origem, mas possuem
simetrias entre si (IANNI, 2011).
Lutas pela apropriação e manutenção do território, seja por comunidades
tradicionais indígenas ou remanescentes de quilombos, externam a disputa para
aquisição à posse no Brasil limitado a restritos grupos com capital necessário e que
havia herdado a propriedade das terras dos antigos donos da região. Todos esses
temas ilustram a luta pela sobrevivência dos negros e indígenas no Brasil
contemporâneo, onde a resistência dos índios e negros não cessou, porque ainda
extremamente necessário em contexto onde ainda são tratados de modo não
igualitária e muitas vezes violento; não ficou somente no passado a luta desses
grupos, ainda está em evidência e permanecendo no que é hoje o Brasil atual,
enquanto há uma sociedade racista tentando eliminar pessoas que pensam e
comportam-se de maneira distinta, faz com que a luta contra o racismo seja de forma
continuada (.(PROENÇA FILHO, 2004).

5.1 O multiculturalismo como base para o combate ao preconceito e proteção


das minorias.

O interesse crescente pelos temas de multiculturalismo evidencia-se na


atualidade, abarcando discussões sobre identidade, diferenciação e os direitos das
minorias. As minorias, caracterizadas por serem grupos humanos ou sociais
subordinados ou em situação de inferioridade em relação a outro grupo majoritário ou
dominante, ocupam uma posição de destaque nesse contexto. Os movimentos afro-
brasileiro e indígena se destacam por sua ênfase nas características étnico-culturais,
as quais constituem elementos essenciais para os seus integrantes. Minorias, por
definição, representam grupos não dominantes que partilham características
relacionadas à nacionalidade, etnia, religião ou língua.

25
A Constituição Federal de 1988, ao consagrar o Estado Democrático de Direito,
fundamentado na dignidade da pessoa humana, introduziu e reconheceu direitos
antes negligenciados ou não incorporados ao âmbito constitucional (BRASIL, 1988).
A expressão "dignidade humana", embora com nuances, refere-se a um atributo
intrínseco e inalienável de cada indivíduo, constantemente em processo de
construção e evolução. A autoestima, por sua vez, representa a manifestação da
autonomia individual e estatal, especialmente em situações de fragilidade ou
incapacidade de autodeterminação (SARLET, 2008).
O princípio da igualdade, destacado na Constituição, enfatiza a oposição à
discriminação no âmbito trabalhista, na disparidade salarial e na responsabilidade
estatal em garantir o direito à educação, inclusive para pessoas com deficiência. Esse
direito à igualdade permeia outras esferas, incluindo a própria liberdade.
A Carta Magna de 1988 (BRASIL, 1988) deu voz e reconhecimento aos
movimentos sociais e minorias que por muito tempo foram marginalizados tanto pela
sociedade quanto pelo Poder Público. Isso conduziu a debates com implicações
jurídicas e à obrigação do Estado de adotar posicionamentos distintos, também no
que tange à legislação. Esse panorama foi moldado por meio de lutas e
manifestações, especialmente durante a década de 1990, por parte de movimentos
que enfatizavam a identidade e a cultura.
Os povos indígenas possuem conhecimento sobre a natureza e as florestas,
vivenciando e compartilhando seu habitat natural, com uma conexão com a terra que
não implica posse. Quando abordamos o movimento indígena no Brasil, é imperativo
não negligenciar as diferenças entre este e os movimentos de povos indígenas de
outras nações latino-americanas. Historicamente, a maior parte da população
indígena brasileira foi dizimada ou confinada em áreas remotas. O trabalho mais árduo
foi frequentemente executado por afrodescendentes e pardos.
Nesse contexto, a segunda metade do movimento modernista (a partir de 1924)
trouxe uma mudança de ênfase do ataque ao passado para a valorização da
elaboração de uma cultura nacional. Surgiu uma redescoberta do Brasil pelos próprios
brasileiros. Apesar de uma certa tendência regionalista paulista, os modernistas
rejeitaram o regionalismo em prol do nacionalismo, acreditando que a afirmação da
brasilidade era o caminho para o alcance do universal.
Nas nações latino-americanas onde a escravidão africana não foi tão
predominante, a maioria da população era composta por indígenas ou seus

26
descendentes, que frequentemente viviam em condições precárias nas vilas e
cidades. No Brasil, a organização dos negros evoluiu gradualmente, à medida que a
sociedade passou a reconhecer a necessidade de políticas específicas para combater
a discriminação e a desigualdade. As lutas por cotas ainda são uma realidade
evidente, e a proposta de um Estatuto da Igualdade Racial introduz cotas para
ingresso no serviço público para negros que contribuem para a produção cultural e
participação na mídia.
Na área da educação, merece destaque a fundação da primeira universidade
para afrodescendentes em São Paulo: a Universidade da Cidadania Zumbi dos
Palmares. Apesar disso, há sugestões para aprimorar a ação afirmativa, defendendo
critérios sociais em vez de raciais para evitar a introdução de outra forma de
discriminação oficial. Essas medidas buscam corrigir as disparidades existentes na
estrutura socioeconômica do país, as quais impedem que os menos favorecidos
tenham acesso ao ensino superior e a uma formação adequada para o
desenvolvimento profissional.
Tópicos polêmicos também emergem, incluindo a discussão sobre a concepção
de raça e racismo no Brasil. É imperativo mudar a cultura e as percepções dos
brasileiros em relação aos negros e aos mestiços. Não se trata apenas de apagar os
crimes do passado relacionados à escravidão; é necessário abordar a gravidade
desse passado e buscar alternativas para que erros anteriores não se repitam no
presente nem no futuro. A igualdade é um direito incontestável: o direito de não ser
discriminado.
De acordo com os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), o censo de 2010 revela que os pretos e pardos, que representam
50,7% da população brasileira, são mais prevalentes em situações de desigualdade
social. O censo indica que 70% dos 16,2 milhões de pessoas em situação de extrema
pobreza em 2010 eram pretos e pardos. Além disso, relata que os negros continuam
a receber salários inferiores aos brancos, enquanto os amarelos ganham duas vezes
mais. A discrepância também persiste entre os analfabetos, com 13% dos negros com
15 anos ou mais sendo analfabetos em 2010. No Brasil, a prática de exclusão baseada
na cor da pele ou na raça persiste, assim como a atribuição de valores pejorativos a
indivíduos de determinada etnia. Esse processo de opressão e desigualdade é
denominado racismo.

27
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA

Ao longo dos séculos, desde o período colonial até os dias atuais, a cultura
africana desempenhou e continua a desempenhar um papel fundamental na formação
do Brasil. Apesar da existência de um sistema de segregação racial historicamente
estabelecido no país, a resistência dos afrodescendentes, juntamente com o grande
número de escravizados, resultou na presença inquestionável de laços históricos e
culturais com a África.
Conforme mencionado por Trindade (2010), alguns estados brasileiros foram
mais influenciados pela cultura africana do que outros. Embora o Brasil seja um país
de dimensões geográficas vastas, a cultura africana deixou sua marca em todo o
território nacional. Estados como Maranhão, Pernambuco, Minas Gerais, Alagoas,
Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul foram
diretamente influenciados, tanto pela migração interna dos escravizados quanto pela
quantidade de africanos que chegavam a cada região.
Nesse sentido, é essencial que os aspectos da cultura brasileira de origem
africana sejam devidamente valorizados e reavaliados. A realidade da pobreza no
Brasil tem uma cor, a periferia tem uma cor, assim como os presídios e o genocídio
de jovens. Essa cor é negra. É fundamental reconhecer as notáveis contribuições
histórico-culturais dos afrodescendentes, buscando promover a integração plena de
indivíduos na sociedade e devido ao reconhecimento de suas contribuições para a
construção do país.
Além disso, é relevante enfatizar que o Brasil possui a segunda maior
população negra do mundo, ficando atrás apenas da Nigéria (MATTOS, 2009). No
entanto, é importante notar que as teorias eugênicas de Pinto (1996) e Paula (2008),
que abordavam ideias e práticas relacionadas ao "aperfeiçoamento da raça humana",
perpetuaram a concepção de superioridade e inferioridade racial, refletindo uma
perspectiva de racismo científico. Neste contexto, é essencial compreender e
reconhecer os impactos históricos dessas teorias na sociedade brasileira.

6.1 Movimentos sociais e políticos na busca por igualdade racial

A atuação dos movimentos sociais exerce um papel fundamental no Brasil,


especialmente na luta pela consolidação e garantia dos direitos civis, políticos,
28
culturais e sociais. Nas últimas décadas, esses movimentos têm se destacado como
uma arena política significativa, onde ativistas e grupos coletivos defendem agendas
antigas e emergentes. Apesar da consolidação democrática no país após a
promulgação da Constituição Federal de 1988, ainda enfrentamos desafios no século
XXI que ameaçam a democratização desses movimentos sociais e perpetuam
práticas antidemocráticas presentes na sociedade brasileira.
Nesse contexto, conforme descreve Rancière (2014), observamos uma grande
heterogeneidade de movimentos sociais no Brasil, compostos por atores coletivos que
buscam participação social e defendem projetos políticos diversos. Esses movimentos
se manifestam de maneira diferenciada nas lutas sociais, expressando insatisfação e
indignação diante dos retrocessos nos direitos sociais. No entanto, o debate atual
sobre a participação desses movimentos sociais na sociedade gera um paradoxo. Por
um lado, ainda existem movimentos organizados por trabalhadores, negros,
indígenas, mulheres, membros da comunidade LGBT, sem-teto, sem-terra, entre
outros. Por outro lado, a criminalização dessas ações está em ascensão, refletindo
uma tendência global neoconservadora e reacionária.
No século XXI, a busca pela democratização dos movimentos sociais tornou-
se crucial, manifestando-se pelo reconhecimento e fortalecimento da identidade
coletiva desses grupos, tanto no âmbito global quanto na sociedade em geral. A luta
pelo reconhecimento, conforme descrito por Nancy Fraser (2007), é um desafio
contínuo para preservar os direitos conquistados como um aspecto de status social,
superando a subordinação e assegurando sua manutenção frente às ameaças às
práticas democráticas já consagradas na agenda política do Estado. É imperativo
destacar a importância desses esforços em promover uma sociedade mais igualitária
e inclusiva, onde os direitos e a identidade das minorias sejam respeitados e
valorizados.
Esses diversos movimentos sociais reafirmam sua luta coletiva pelo
reconhecimento de identidade e, principalmente, pela defesa de ações afirmativas que
se expandiram no Brasil, ampliando seus direitos por meio da participação social e
das lutas sociais em busca de democratização e igualdade em suas agendas políticas.
As demandas são variadas, abrangendo desde questões amplas e relevantes
relacionadas à garantia e expansão de direitos sociais até a necessidade de reafirmar
políticas públicas que promovam redistribuição e/ou reconhecimento. Esse novo
cenário está intrinsecamente ligado a duas questões centrais: a interação entre cultura

29
e política no contexto dos movimentos sociais e a busca por sua democratização na
sociedade civil.
No cenário brasileiro, as ações afirmativas são consequência das demandas e
esforços dos movimentos sociais, em resposta às reivindicações de grupos sociais
diversos, como negros, mulheres, pessoas LGBTQ+, pessoas com deficiência, entre
outros. Essas comunidades têm batalhado por direitos que historicamente foram
negados a elas, bem como pelo reconhecimento de suas particularidades enquanto
grupos sociais. Nas últimas décadas, mudanças significativas ocorreram nas políticas
afirmativas, especialmente nas áreas da educação e do trabalho. Essas
transformações compõem um cenário em constante evolução e análise.
As ações afirmativas apresentam complexidade tanto em relação à sua
implementação efetiva quanto ao reconhecimento de sua relevância, o que gera
debates. Essa complexidade justifica a necessidade de novas investigações e a
organização de publicações temáticas. Atualmente, há uma experiência expandida no
campo das políticas de ação afirmativa, que inclui a reserva de vagas em
universidades para estudantes negros, trabalhadores, indígenas, pessoas com
deficiência e outros grupos. No entanto, ainda há muito a ser conquistado, seja no
acesso ao ensino superior público ou privado (conforme estabelecido por lei) ou na
garantia da permanência desses estudantes em seus cursos

6.2 Expressões culturais e artísticas afro-brasileiras

A cultura afro-brasileira possui raízes que remontam ao período colonial,


quando milhões de africanos foram trazidos como escravizados para o Brasil por meio
do tráfico transatlântico. Essa diáspora resultou na formação da maior população de
origem africana fora do continente africano. A cultura afro-brasileira é caracterizada
por sua interação com outras culturais, principalmente indígenas e europeias. Não é
uma realidade estática, mas está em constante desenvolvimento, conforme as
condições históricas do país.
Uma das particularidades marcantes da cultura afro-brasileira é sua diversidade
em todo o território nacional. A origem dos africanos trazidos para o Brasil levou-os a
apropriar-se e adaptar-se, garantindo a sobrevivência de suas práticas e
representações culturais. Como resultado, é comum encontrarmos a herança cultural
africana manifestada em novas formas de expressão cultural.

30
Durante muitos anos, as manifestações, rituais e trajes africanos foram
reprimidos e proibidos por lei. Somente a partir da década de 1930, durante o período
do Estado Novo de Getúlio Vargas, essas práticas passaram a ser toleradas e
valorizadas. Esse reconhecimento ganhou ainda mais força com a promulgação da
Lei nº 10.639, em 2003, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que
estabelece a inclusão obrigatória da história e cultura afro-brasileira e indígena nos
currículos escolares.
Dessa forma, a cultura afro-brasileira, com sua rica diversidade e resiliência,
ganha cada vez mais espaço e valorização, garantida para a construção de uma
sociedade mais inclusiva e respeitosa com as múltiplas identidades culturais
presentes no Brasil.
A Lei nº 10.639, promulgada em 2003, estabeleceu a obrigatoriedade do ensino
da história e da cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio do
Brasil. Essa medida busca promover o reconhecimento e a valorização da
contribuição dos africanos e afrodescendentes para a formação da sociedade
brasileira.
Dentre os grupos africanos trazidos para o Brasil, destacam-se os Bantos,
originários de regiões como Angola, Congo e Moçambique, e os Sudaneses, vindos
da África Ocidental, Sudão e Costa da Guiné. Esses grupos tiveram uma influência
significativa na formação da cultura afro-brasileira e deixaram marcas importantes na
música, dança, religião e outras expressões culturais.
É importante ressaltar que determinadas regras do Brasil receberam uma maior
concentração de escravizados africanos. Entre as áreas mais povoadas por essa mão
de obra estão a Bahia, Pernambuco, Maranhão, Alagoas, Minas Gerais, Rio de
Janeiro, Espírito Santo, São Paulo e Rio Grande do Sul. Essa distribuição está
relacionada tanto à demanda por escravos dessas regiões, como é o caso do
Nordeste, quanto à migração dos escravizados após a queda do ciclo econômico da
cana-de-açúcar, como ocorreu no Sudeste do país.
Essa distribuição geográfica da população africana e afrodescendente no Brasil
contribuiu para a diversidade cultural e étnica do país, enriquecendo suas tradições e
identidades. A compreensão desses aspectos é fundamental para uma abordagem
completa e inclusiva da história e cultura afro-brasileira nas instituições de ensino.
A cultura afro-brasileira desempenha um papel fundamental na memória e na
história do Brasil, indo além das fronteiras deste texto. Ela abrange costumes,

31
tradições, mitologia, folclore, língua (falada e escrita), culinária, música, dança, religião
e todo o imaginário cultural do país.
A influência afro-brasileira é evidente em expressões como o Samba, Jongo,
Carimbó, Maxixe, Maculelê e Maracatu. Essas manifestações musicais utilizam uma
variedade de instrumentos, destacando-se o Afoxé, Atabaque, Berimbau e Tambor.
Além disso, essas expressões estão intrinsecamente aplicadas à dança, como no
caso do Maculelê, uma dança folclórica brasileira, e do samba de roda, uma variação
musical do samba (MENDES, 2023)
Outras formas de música e dança também são importantes, como as danças
rituais, o tambor de crioula e estilos mais contemporâneos, como o samba-reggae e o
axé baiano. Um destaque especial é dado à Capoeira, uma combinação de dança,
música e artes marciais que foi proibida no Brasil por muitos anos e reconhecida como
Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade em 2014.
A culinária também desempenha um papel significativo na cultura afro-
brasileira, introduzindo técnicas como o uso de panelas de barro, o leite de coco, o
feijão preto, o quiabo, entre outros ingredientes. Os pratos mais conhecidos são
encontrados na culinária baiana, preparados com azeite de dendê e pimentas, que
conferem sabores marcantes.
Esses elementos da cultura afro-brasileira enriquecem a diversidade cultural do
país e são expressões importantes da identidade brasileira. Reconhecer, defender e
estudar essa rica herança cultural é essencial para uma compreensão mais ampla e
inclusiva da sociedade brasileira.
Na culinária afro-brasileira, destacam-se pratos como o Abará, Vatapá e o
Acarajé, além do Quibebe nordestino, preparado com carne-de-sol ou charque. Os
doces de pamonha e cocada também são bastante conhecidos e apreciados.
Um prato emblemático da culinária brasileira é a feijoada, que teve origem na
criatividade dos escravos ao apropriarem-se da feijoada portuguesa e utilizarem os
restos de carne que os senhores de engenho não consumiam.
A religião afro-brasileira se caracterizou pelo sincretismo com o catolicismo,
unindo aspectos do cristianismo às suas tradições religiosas. Essa fusão permitiu que
os africanos escravizados praticassem suas crenças africanas de forma secreta,
associando santos católicos aos orixás. Surgiram assim manifestações como
Batuque, Xambá, Macumba e Umbanda, ao mesmo tempo em que foram preservadas
variações africanas como Quimbanda, Cabula e Candomblé. (MENDES, 2003).

32
MOVIMENTO NEGRO E EDUCAÇÃO: UM BREVE HISTÓRICO

A conquista da cidadania entre a população negra não se deu de forma


imposta, inclusive no âmbito educacional. Na década de 1930, o movimento negro
enfrentou um desafio complexo, trabalhando para alcançar a igualdade entre
indivíduos negros e brancos (GONÇALVES, 2003).
Nesse contexto, nos primórdios do século XX, a educação representava uma
das principais demandas dos movimentos sociais negros brasileiros. Em São Paulo,
especialmente, esses movimentos alcançaram dimensões significativas. A herança do
passado escravista deixou uma marca profunda nas vivências da população negra no
campo educacional. Naquela época, crianças negras eram afastadas das salas de
aula para contribuir financeiramente com suas famílias (GONÇALVES E SILVA,
2000).
De acordo com Pinto (1993), o movimento negro sempre buscou e continua
buscando transformar a situação em que esse grupo da sociedade se encontra em
termos sociais e educacionais. Essa busca por mudanças sempre teve a educação
como foco central de preocupação.
Gonçalves (2000) destaca que a educação foi consistentemente uma das
principais demandas dos movimentos negros. Embora tenha sido entendida com
nuances diferentes, ela era percebida como uma estratégia para equipar os indivíduos
negros aos brancos, proporcionando igualdade de oportunidades no mercado de
trabalho. Além disso, a educação era vista como um meio de ascensão social e
integração, bem como um instrumento de conscientização que permitiria aos negros
aprender sobre a história de seus ancestrais, sua cultura e valores. A partir desse
conhecimento, poderiam reivindicar seus direitos políticos, sociais e o respeito
humano.
O movimento negro e suas organizações da época contaram com o apoio da
imprensa negra, ativa e engajada, que divulgava suas atividades e proporcionava um
espaço para a produção literária negra, além de debater questões educacionais e a
importância da educação para superar os desafios enfrentados pela comunidade
negra.
De acordo com Domingues (2006), esses jornais abordavam as várias
dificuldades que afetavam a população negra, incluindo trabalho, moradia, educação
e saúde. Eles se tornaram um canal privilegiado para discutir soluções concretas para
33
o problema do racismo na sociedade brasileira. Além disso, esses jornais
denunciavam práticas de segregação racial em várias cidades do país, que impediam
os negros de frequentar hotéis, clubes, cinemas, teatros, restaurantes, entre outros
locais.
Durante a década de 1930, a educação era vista como um meio para combater
a situação de desvantagem e pobreza vivida pela população negra. Esse período foi
marcado por ativismo, no qual a educação era associada à instrução, visando reverter
a situação de inferioridade dos negros. Conforme Pinto (1993, p. 29), críticas
começaram a surgir contra as autoridades por não terem se preocupado com a
educação dos negros após a abolição da escravidão.
A criação da Frente Negra Brasileira, segundo Ianni (1987), visava promover a
elevação moral, artística, técnica, profissional, intelectual e assistencialista da
população negra, procurando moldar o comportamento negro conforme os padrões
da sociedade branca dominante. Durante as décadas de 1940 e início de 1950, os
eventos promovidos pelo movimento negro revelaram uma crescente preocupação
com a cultura específica e a identidade dos negros. Nesse período, surgiram críticas
em relação a escolas que discriminavam crianças negras e professores que tratavam
essas crianças de forma preconceituosa.
Esse engajamento prosseguiu nas décadas de 1970 e 1980, quando o
movimento negro se esforçou para introduzir a disciplina de Estudos Africanos nos
currículos de ensino fundamental e médio. A partir dos anos 1980, pesquisas
específicas sobre a presença de negros na escola começaram a revelar outras razões
para o fracasso escolar. Além das questões socioeconômicas, descobriu-se a
inadequação do currículo, a postura dos professores e a inadequação dos temas nos
livros didáticos como fatores relevantes para o insucesso escolar.
Essa falta de identificação da criança negra com a escola resultava em fracasso
escolar, que tinha como origem a incongruência entre os currículos e os valores,
crenças, história de vida e identidade sociocultural dos alunos negros. Assim, a
História passou a ser vista como central para a formação da identidade individual e
coletiva, fundamental para a construção de memória positiva e autoestima elevada.
Esse conjunto de ações continuou até as décadas de 1970 e 1980, quando o
movimento negro se empenhou em realizar sua antiga demanda de incluir a disciplina
de Estudos Africanos nos currículos de ensino fundamental e médio. Estas
transformações na educação ao longo do século XX foram fundamentais para

34
construir uma identidade e autoestima positivas entre a população negra, buscando
superar os resquícios do passado de discriminação e exclusão.

7.1 O ensino de história africana e cultura afro-brasileira

A gradual valorização da História como disciplina central no processo de


formação da “identidade” e de uma perspectiva crítica a partir da década de 1980,
resultou no desenvolvimento de inúmeras pesquisas sobre a temática africana no
ensino brasileiro.
Apesar desse contexto de mudanças, de acordo com Oliva (2009), o ensino
sobre a história da África no Brasil, até meados da década de 1990, pode ser
considerado insignificante, pois o continente africano foi sempre retratado de forma
secundária, associado ao período marítimo dos séculos XV e XVI, ao tráfico de
escravos, processos do imperialismo e colonialismo no século XIX e da independência
dos países africanos, na segunda metade do século XX, mas esquecendo de como
concepções de mundo africanas e formas de resistência oriundas desta tradição
marcam a formação da sociedade brasileira.
Contudo, a partir de 1996 o ensino de História passa por uma evidente
modificação com a entrada em vigor da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB), de 1996 - Lei nº . 9394/96 - e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
da área de História, em 1998, que indicavam uma aproximação, mesmo que frágil,
com os estudos africanos.
No PCN de História (BRASIL, 1997, p.5), um dos objetivos gerais do ensino
fundamental que os alunos sejam capazes de “conhecer e valorizar a pluralidade do
patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos
e nações, posicionando- se contra qualquer discriminação baseada em diferenças
culturais (...)”.
O artigo 26, § 4º, da LDB, estabelece, assim, a diretriz de que o ensino de
História do Brasil nas escolas deve considerar as valiosas contribuições das diversas
culturas e etnias para a formação da identidade do povo brasileiro, com especial
destaque para as matrizes indígena, africana e europeia. Entre os objetivos
específicos deste avanço progressivo, destaca-se a promoção da compreensão da
construção identitária.

35
Nesse contexto, compreende-se, ainda que de modo incipiente como é
fundamental que o ensino de História estabeleça relações entre as identidades
individuais, sociais e coletivas, incluindo aquelas que moldam a identidade nacional
(BRASIL, 1997). Assim, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
de História para o segundo ciclo do Ensino Fundamental, no eixo temático
"Organizações e Lutas de Grupos Sociais e Étnicos", é sugerido que os alunos
explorem as "diferenças e semelhanças entre grupos étnicos e sociais que, no
passado, empenharam-se em batalhas por causas políticas, sociais, culturais ou
econômicas" (BRASIL, 1997, p. 69).
Para Oliva (2009), essas são pequenas aproximações que o PCN faz para o
estudo da História da África. Em vários trechos, essas indicações podem ser
caracterizadas como abordagens superficiais, insuficientes e pouco específicas sobre
esta temática. No entanto, ainda segundo o autor, essas mudanças devem ser
valorizadas em seu contexto, já que os objetivos presentes no PCN reforçam a
construção do aluno cidadão, valorizando o respeito ao outro, a solidariedade, o
repúdio às injustiças, a pluralidade cultural e condenam qualquer forma de
discriminação.
Para potencializar esse processo, em janeiro de 2003 o então presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei nº. 10.639, que tornou obrigatória
a inclusão do ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nos currículos
dos estabelecimentos públicos e privados da educação básica. Esta Lei trata-se de
uma alteração da Lei 9.394/96, e deve ser compreendia como uma vitória das lutas
do movimento negro em prol da educação (GOMES, 2008).
Desta forma, desde 2003, a LDB passou a vigorar com a seguinte alteração:

Art. 26-A - Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos
referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de
todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileira (BRASIL, 2003).

A Lei 10.639/03 também introduziu na LDB o artigo 79-B, que estabelece que
"o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como o ‘Dia Nacional da
Consciência Negra’" (BRASIL, 2003). Segundo Oliva (2009, p. 154), os conteúdos

36
relacionados aos estudos africanos, que até então eram abordados de forma limitada,
passaram por uma transformação significativa com a promulgação da Lei Federal que
alterou a Lei 9394/1996 e, especialmente, com o parecer emitido pelo Conselho
Nacional de Educação (CNE) (CNE/CP 03, 2004, de 10.03.2004), que posteriormente
se converteu na resolução 1, de 17 de junho de 2004.
No ano de 2004, ocorreu a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais no Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (DCN), a qual foi fruto da aprovação do parecer redigido pela
conselheira Petronilha Beatriz Gonçalves Silva e posteriormente transformado em
resolução na mesma data do parecer mencionado anteriormente. Os autores dessas
diretrizes enfatizam que a obrigação de incluir a História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana nos currículos escolares da Educação Básica é uma decisão política com
profundas implicações pedagógicas (MORAES, ROSA, LOBATO, 2020).
Para efetivar a implementação da Lei 10.639/03 no contexto pedagógico, é
crucial compreender que o Art. 26-A, inserido na Lei 9.394/1996, transcende a mera
inclusão de novos conteúdos. Ele demanda uma reavaliação das relações étnico-
raciais, sociais e pedagógicas, além de uma reflexão sobre os métodos de ensino e
as condições proporcionadas para a aprendizagem. Por meio dessa ação, reconhece-
se que o objetivo vai além de assegurar vagas nas escolas para a população negra,
abrangendo a necessidade de conferir uma devida valorização à História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana, a fim de corrigir as injustiças sofridas ao longo de cinco
séculos (BRASIL, 2004)
Além disso, é crucial destacar que o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana não visa substituir um foco etnocêntrico predominantemente eurocêntrico
por uma perspectiva unicamente africana. Em vez disso, o propósito é expandir o
enfoque dos currículos escolares para abarcar a riqueza da diversidade cultural, racial,
social e econômica brasileira como um todo. Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares
Nacionais (DCN) para o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
oferecem diretrizes para instituições e sistemas educacionais de todos os níveis,
incluindo o Ensino Fundamental. Isso abrange a necessidade de fornecer materiais
didáticos que registrem a "História não contada" dos brasileiros negros, incluindo a
história das comunidades remanescentes de quilombos, bem como territórios urbanos
e rurais de ascendência negra (BRASIL, 2004, p.23).

37
Para concretizar essa abordagem educacional conforme preconizado pela Lei
10.639/03, é essencial empreender uma série de ações. Uma delas consiste na
produção de livros e materiais didáticos, abrangendo diversos níveis e modalidades
de ensino, que estejam em consonância com as diretrizes delineadas nesse contexto.
Isso implica em aderir ao teor do Art. 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB), assegurando a exploração da riqueza da pluralidade cultural e da diversidade
étnico-racial que caracteriza a nação brasileira.
Além disso, esses materiais devem empreender esforços para retificar
distorções e equívocos presentes em obras já publicadas que abordam a história,
cultura e identidade dos afrodescendentes. Tais correções devem ser efetuadas sob
a orientação e supervisão dos programas de disseminação de recursos educacionais
do Ministério da Educação (MEC), notadamente o Programa Nacional do Livro
Didático e o Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE) (c.f BRASIL, 2004,
p. 25). Esta ação conjunta visa promover uma narrativa mais fiel e inclusiva da história
do país, em prol da construção de uma consciência crítica e culturalmente
diversificada.

38
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