Comunidades Rurais Na Amazônia

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Revista Brasileira de Meio Ambiente, v.4, n.1.

108-119 (2018)
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JOURNAL Revista Brasileira de Meio Ambiente
SYSTEMS
ISSN: 2595-4431 Queiroz et al

Comunidades rurais ribeirinhas e as águas do rio Solimões no município de


Iranduba - Amazonas

Matheus Silveira de Queiroz ¹, Ana Paulina Aguiar Soares ², Antonio Gomes Tomaz Neto ³
1
Graduando em Geografia pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA, Brasil
2
Professora de Licenciatura em Geografia da Universidade do Estado do Amazonas –UEA, Brasil
3
Graduando em Geografia pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA, Brasil.

Histórico do Artigo: Submetido no VI Encontro de Desenvolvimento e Meio Ambiente, sendo aceito e indicado para publicação

RESUMO
Estudo sobre as relações entre homem e natureza na margem esquerda do baixo rio Solimões, no município de Iranduba – AM. Ênfase
é dada em como as comunidades lidam com os recursos hídricos, pois como que estão instaladas na unidade geomorfológica
denominada planície de inundação, ficam sujeitas à sazonalidade do rio. O objetivo é compreender e analisar como a interação com os
recursos hídricos molda a vida cotidiana das comunidades rurais ribeirinhas. Para tanto, foi feito pesquisa de campo em onze
comunidades, onde foram realizadas entrevistas com lideranças, moradores antigos e professores. Os resultados obtidos mostram que
os moradores mantêm dependência do meio hídrico fluvial. As águas do rio são importantes nas atividades domésticas e da produção,
porém apesar da grande abundância desse recurso os comunitários passam por dificuldades para obter água potável, já que nenhuma
comunidade possui um sistema eficiente de abastecimento. A erosão fluvial lateral é um risco que afeta diretamente as habitações,
aspectos da produção e da infraestrutura nas comunidades. A perda de terras faz com que se recuem as estruturas como residências,
igrejas, áreas de lazer próximas às margens, ou, no extremo, podem causar a emigração compulsória para os centros urbanos e zonas
rurais na terra firme.

Palavras-Chaves: Comunidades Rurais Ribeirinhas, Recursos Hídricos, Planície de Inundação.

Rural Riverside communities and the water of Solimões river in the municipality of
Iranduba - Amazonas
ABSTRACT
Study concerning the relations between man and nature on the coast surrounded by Solimões river of Iranduba municipality – AM.
Emphasis is given on how communities deal with water resources, since they are installed in the geomorphological unit denominated
flood plain, they may be subjected to the river seasonality. The objective is to comprehend and analyse how the interaction with water
resources shape the daily life of the rural riverside communities. For this purpose, it was made field researches in 11 communities,
where there were conversations with leaders and a bibliographic search with secondary data. The results obtained show that the local
residents have dependency on the water environment. Water is important to the residents on the housework and production, but in spite
of the big abundance of this resource the community has difficulties to obtain potable water, since no community has an efficient supply
system. The lateral fluvial erosion is a risk that affects directly the dwellings, production aspects and the infrastructure of communities.
The loss of lands ensure a retreat of the structures next to the riverside. In addition, it is caused a migration effect to the urban centers
and rural areas on the dry land.

Keywords: Rural riverside communities, Water resources, Flood plain.

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1. Introdução
O município de Iranduba está localizado ao sul da cidade de Manaus e faz fronteira fluvial e rodoviária
(através da ponte Phellipe Daou) com a metrópole. O seu território é banhado tanto pelo rio Solimões quanto
pelo rio Negro, exatamente onde um deságua no outro passando a formar o Rio Amazonas. Por se encontrar
próximo da metrópole, o município teve o incentivo de dois polos econômicos, o de cerâmicas e o
hortifrutigranjeiro para atender demandas de Manaus, nas décadas de 1970 e 80, que estava em plena expansão
populacional devido à recém-implantação do Projeto Zona Franca de Manaus (facilitações tributárias,
financeiras e creditícias às empresas industriais e comerciais que se estabelecessem no município).
Iranduba teve sua institucionalização como município em 1981. Além de sua sede urbana, possui quatro
distritos (Cacau Pirêra, Ariaú, Lago do Limão e Paricatuba) e 42 comunidades consideradas rurais, segundo o
plano Diretor do Município (IRANDUBA, 2011) em 2.216,817 km² de área territorial. O Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística – IBGE (2016) estima a população de Iranduba em 47.407 pessoas. A área delimitada
para a pesquisa compreende toda a costa do município banhada pelo rio Solimões (Mapa 1).

Mapa 1 - Localização do município de Iranduba e sua situação geográfica entre os rios Negro e Solimões – Estado do
Amazonas - Brasil

Elaboração: Magnus Magalhães (2018).

Este artigo trata da complexidade das relações homem-natureza e como a dinâmica fluvial impacta as
áreas de várzea município de Iranduba no contexto micro (familiar) e macro (municipal, regional) das
comunidades rurais e regiões adjacentes. Considera-se importante esse estudo, concordando com Ross (1995,
p. 16), ao afirmar que “é objeto de preocupação da Geografia de hoje conhecer cada dia mais o ambiente

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natural de sobrevivência do homem, bem como entender o comportamento das sociedades humanas, suas
relações com a natureza e suas relações socioeconômicas e sociais”.
O uso da água sempre foi essencial ao homem e ao longo das épocas ele foi aprimorando as formas de
manejá-la. Campos (2003, p. 13) afirma que a Política de Águas Brasileira é fundamentada na prerrogativa de
que a água é um domínio público. No entanto, na área estudada, a falta de tratamento adequado para torná-la
potável e a impossibilidade de construir poços em áreas sujeitas à inundação deixa os ribeirinhos irandubenses
a mercê da água densamente carregada de sedimentos do rio Solimões e seus afluentes.
A bacia hidrográfica amazônica tem uma superfície estimada em 6,5 milhões de km², sendo a maior do
mundo, além de possuir grande variedade de diversidade mineral e vegetal. Seus habitantes estão
historicamente ligados às águas seja para subsistência, exploração de recursos ou deslocamento fluvial. Pereira
(2007) observa que desde as primeiras incursões feitas por Francisco Orellana (1541-1542) já se notava uma
dependência do meio hídrico dos povos nativos e que, até meados do século dezessete, os navegadores
registram a existência de imensos povoados com “verdadeiras cidades” às margens do Amazonas; falam ainda
da “fartura” de alimentos e de uma sofisticada organização político-social. Ou seja, as águas eram
extremamente importantes para transporte, produção, caça, dentre outros fatores determinantes para as
interações sociais.
As comunidades rurais ribeirinhas estão alocadas na unidade geomorfológica denominada planície de
inundação estão sujeitas à sazonalidade anual dos rios amazônicos. Fraxe (2000) salienta que a várzea possui
um caráter “anfíbio”, porque coube ao homem se adaptar a essa realidade. Segundo Viera (1992, citado por
PEREIRA, 2007, p. 13) “a várzea do complexo Solimões-Amazonas corresponde a aproximadamente 1,5 a
2% do território da Amazônia brasileira (75 a 100 mil km²), contrastando em variados aspectos com a maior
parte da região constituída de terras secas e altas, denominadas de terra firme”. Apesar de reduzida
territorialmente, comparada com a terra firme, a várzea atrai um grande número de residentes devido às suas
vantagens econômicas decorrentes do solo fertilizado pelas águas.
Essas vantagens, no entanto, estão limitadas pelos riscos. Risco para Veyret e Richemond (2007, p. 23)
“é uma construção social. A percepção que os atores têm de algo que representa um perigo para eles próprios,
para os outros e seus bens [...]”. Na várzea é possível observar os riscos de grandes enchentes e de erosões
laterais fluviais (conhecidas popularmente como terras caídas). Carvalho (2006) caracteriza terras caídas como
qualquer processo, simples ou complexo, que envolva deslocamento de terra por meio natural
(escorregamento, deslizamento, desmoronamento e desabamento). O fenômeno das terras caídas é natural,
porém a ocupação humana pode acelerar esse processo, de forma que é necessário um esquema de adaptação
das habitações e da produção.
A várzea amazônica tem como característica seu solo fértil devido à deposição de sedimentos
transportados pelas enchentes e fixados no solo nas vazantes, facilitando o plantio de hortifrútis e a engorda
dos animais. Entretanto, Pereira (2007, p. 12) considera que “a alternância de fases terrestres e aquáticas devido
às variações do nível do rio é um fator ecológico limitante para a vida nos ambientes das várzeas do rio
Solimões-Amazonas”. Há limitantes para a agricultura familiar que, segundo Castro et al. (2007, p. 56), “[...]
caracteriza-se como uma importante forma de organização da produção que associa família, produção e
trabalho nos diversos ambientes de produção terrestres e aquáticos”, pois a sazonalidade dos rios impossibilita
a prática agropecuária nas épocas de cheia, limitando as possibilidades de produção em média três a quatro
meses por ano.
O objetivo desse trabalho é compreender e analisar como a interação com os recursos hídricos influi na
vida cotidiana das comunidades rurais ribeirinhas.

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2. Material e Métodos

O método aqui proposto transitou entre as abordagens dialética e fenomenológica. Na concepção de


Alves (2008, p 239) “A utilização de apenas um método para uma complexidade diversa, como é o caso do
espaço geográfico, não dá conta ou suporte para o geógrafo”.
A fenomenologia busca evidenciar as essências repondo-as na existência, na medida em que o palpável
sempre existiu “ali”, numa forma prévia ao pensamento. A abstração intelectual espaço-temporal do mundo
“vivido” materializou-se no exercício descritivo da experiência da maneira como ela ocorre, uma vez que o
real deve ser registrado e não construído ou constituído (MERLEAU-PONTY, 1999, citado por PEREIRA et
al., 2010, p. 174).
O método dialético segundo Japiassu e Marcondes (1990, p. 167) “procede pela refutação das opiniões
do senso comum, levando-as à contradição, para chegar então a verdade, fruto da razão”.
Sobre os procedimentos metodológicos foram visitadas onze (11) comunidades rurais ribeirinhas (7 de
Setembro, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora de Fátima, Santa Luzia da Ilha do Baixio, Santo Antônio do
Furo do Paracuúba, São Francisco, São João Batista, São Sebastião, Costa do Catalão, Santa Luzia e Bom
Jesus do Paraná do Xiborena), todas localizadas na margem esquerda do baixo rio Solimões (Figura 1), entre
agosto de 2017 e março de 2018, quando foram coletados coordenadas, registros fotográficos e entrevistas
semi-estruturadas com lideranças, moradores antigos e professores, acerca do espaço vivido, buscando-se
apreender a sua concepção e sua memória afetiva, condizendo com a fenomenologia.

Figura 1: Localização das comunidades visitadas ao longo da costa de Iranduba, margem esquerda do baixo
rio Solimões

Elaboração: Antonio Tomaz Neto. Fonte: Google Earth (2018).

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Todas as comunidades estão assentadas próximas ao nível de base do rio Solimões, conhecido como
encontro das águas e são territorialmente pertencentes ao município de Iranduba, no estado do Amazonas. Seus
moradores, por estarem em uma área de planície de inundação, adaptaram o seu meio social e os fatores
econômicos à dinâmica das águas. As comunidades possuem características de várzea com a tipologia de
moradias próprias (as palafitas) e um sistema econômico, que tem como principais meios de obtenção de renda
a agricultura familiar e a pecuária.
Além da observação empírica foram feitos levantamentos bibliográfico e de dados secundários - em
órgãos federais, estaduais e municipais -, a fim de entender os fenômenos socioeconômicos e físicos que
interferem direta ou indiretamente na vida cotidiana das comunidades.
3. Resultados e Discussão

A relação homem-natureza é um sistema complexo, por isso, este tópico está dividido em três partes: A
importância do rio Solimões para a vida ribeirinha; O problema do abastecimento de água para o consumo
doméstico; e O risco das terras caídas. Considera-se, com isso, contribuir para um melhor entendimento das
diferentes formas de interação entre os recursos hídricos e a vida rural amazônica .

3.1 A importância do rio Solimões para a vida ribeirinha

A dinâmica fluvial é importantíssima para a vida varzeana e a adaptação às peculiaridades naturais é um


fator limitante para as populações ali abrigadas. Santos e Ribeiro (1988) afirmam que todos os rios de água
barrenta da Amazônia formam várzeas, e estas são formadas pelos sedimentos aluviais provenientes dos Andes
ou Pré-Andes; essas várzeas são ricas em sais minerais. Um rio tem como base geomorfológica as seguintes
unidades: terraço, leito maior, leito menor, leito de vazante e dique marginal (TRICARD, 1966). Nos
ambientes estudados, os moradores sobrevivem plantando ou/e criando animais nas áreas do leito maior, onde
o solo é mais rico devido aos depósitos de sedimentos carregados pelo rio durante as enchentes.
Os rios são corpos dinâmicos que trabalham moldando o ambiente em macro e microescalas e em tempo
que pode variar de alguns segundos até eras geológicas. Pereira e Witkoski (2012) consideram que o trabalho
mecânico das águas do rio Amazonas, e consequentemente, do rio Solimões, ao longo dos séculos soterrou
braços de afluentes, estreitou ou alargou canais, comprimiu florestas, aumentou terras, alterou o traçado do rio,
criou obstáculos pelo depósito de seus sedimentos, revelou ilhas depois das cheias ou atalhos pelos furos,
erodiu terras e expulsou habitantes de suas margens. A dinâmica fluvial anual passa por quatro períodos:
enchente, cheia, vazante e seca, referidos a cotas que variam entre máximas (cheia) e mínimas (seca). Durante
a cheia os ribeirinhos enfrentam dificuldades impostas pela natureza, mas, ações antrópicas também afetam o
seu cotidiano durante os meses de cheia, como relata um ribeirinho da comunidade Nossa Senhora de Fatima:

Tudo que Deus faz é bem feito, eu não reclamo de nada, mas só tem uma coisa, enquanto não alaga o
assoalho, porque o assoalho da minha casa é alto, mas já foi duas vezes que a água cobriu. Enquanto
não cobrir o assoalho tudo bem, porque os banzeiros dessas embarcações que passam aqui, barco
grande, tudo passa aqui, aí pega uma casa dessa aí, que nem a minha, chega treme tudo! Se não alagar
o assoalho, tá bom (Morador antigo da Comunidade N. Sra. De Fátima, 16/02/2018).

Esse relato demonstra o quanto as cotas do rio variam de ano para ano e como as embarcações que
navegam em alta velocidade causam o que é chamo de “Banzeiro” que é a sucessão de ondas provocadas pela
movimentação de embarcações. Durante as cheias os banzeiros se tornam mais violentos podendo até mesmo
derrubar casas que estão no nível do rio.
As comunidades estudadas possuem íntima relação tanto com as paisagens aquáticas quanto com as

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terrestres, e dependem da sazonalidade da dinâmica fluvial amazônica. Das onze visitadas, oito possuem acesso
por estrada durante as épocas da vazante, no período de seca e durante parte da enchente do rio, porém devido
ao estado das estradas vicinais e a qualidade dos transportes os comunitários preferem o transporte fluvial para
se deslocar tanto à sede do município de Iranduba, quanto a Manaus. Devido a ponte sobre o rio Negro
(Phelippe Daou), inaugurada em 2011, houve mudanças em toda a dinâmica de locomoção rural-urbano.
Quando o deslocamento é para Manaus o transporte rodoviário, principalmente para os que possuem veículo
próprio, é mais viável economicamente, nos períodos em que as estradas não estão submersas (enchentes
sazonais).
A questão da renda se anuncia como uma rede complexa de produção e escoamento. Os moradores
que não possuem veículo próprio precisam dos comerciantes “atravessadores” para escoar a produção. As
plantações na várzea só acontecem na vazante e na seca do rio, por isso, os cultivos são apenas de ciclo curto
(Fig. 2a e 2b).

Figuras 2a e 2 - Plantação de hortaliças em comunidades nas margens do Rio Solimões

2a 2b

Fotos: 2a - Antonio Tomaz Neto, plantio de cebolinha, comunidade Divino Espírito Santo; 2b - Matheus Queiroz, plantio
de couve, comunidade São Sebastião. Período de enchente, margem esquerda do baixo rio Solimões, fevereiro 2018.

Nas comunidades visitadas são cultivados alface, cebolinha, cheiro verde, couve, mandioca, pepino,
pimenta. Na várzea o escoamento da produção, em sua maioria, é feito por via fluvial.
A pecuária se faz presente nas comunidades (Figura 3), porém, assim como na agricultura, também para
a criação de gado, a sazonalidade das águas é um fator limitante. Os animais geralmente são criados em dois
ambientes: a várzea e a terra firme. Quando as águas estão baixas os animais são criados na várzea e são postos
para pastar nos campos naturais, pois a qualidade do pasto é superior e a engorda ocorre mais rápido devido à
fertilidade do solo varzeano. Quando as terras estão submersas, o gado é transportado para a terra firme, porém
alguns comunitários utilizam as tradicionais “marombas”, que são estruturas suspensas acima do rio para
comportar os animais.

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Figura 3 - Criação bovina na comunidade Santo Antônio – Iranduba / AM

Foto: Matheus Queiroz (Fevereiro, 2018). Margem esquerda do baixo Rio Solimões, período de enchente.

A pesca não é uma fonte de renda explorada pelos ribeirinhos, os peixes pescados essencialmente para
autoconsumo e, às vezes, quando se tem um excedente na produção, venda em pequena escala. Quando começa
a enchente e não é possível plantar ou criar em larga escala, os moradores das comunidades ficam sem outra
fonte de renda, por isso, alguns sobrevivem com o auxílio de programas governamentais, enquanto familiares
vão para outras localidades para obter renda e enviar para aqueles que permaneceram durante a cheia.
As habitações, sobre palafitas, são tradicionais na cultura ribeirinha, pois são adaptadas para a
sazonalidade do rio, de forma que os residentes podem viver na região durante o ano todo, embora não possam
praticar agricultura e pecuária tendo em vista que as terras ficam submersas. As comunidades são dotadas de
energia elétrica proveniente de programas governamentais ou com a estrutura custeada pelos próprios
moradores. O lazer é realizado com jogos em campos de futebol e eventos de igrejas, ou promovidas por
iniciativas familiares, ou escolas. As comunidades estudadas possuem a característica de se organizar em
associações de moradores/produtores, a fim de facilitar as relações comerciais e as reivindicações feitas ao
governo.

3.2 O problema do abastecimento de água para consumo doméstico

As comunidades rurais ribeirinhas amazônicas estão assentadas em áreas de grande disponibilidade de


água. Segundo Dourado (2011, p. 23) a bacia amazônica possui uma produção hídrica que corresponde a 78%
do total brasileiro para uma densidade populacional variável de 2 a 5 hab/km². Porém nenhuma das
comunidades visitadas possui sistema de abastecimento de água próprio. O rio Solimões tem a característica

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barrenta, por ser um grande transportador de sedimentos, dentre outros fatores, inviabiliza o consumo humano
direto.
As comunidades usam como alternativa para não disponibilidade de água potável, a compra de garrafões
de água na sede do município ou de outros moradores que possuem poços nas áreas de terra firme. Mas essa
alternativa vale apenas para alimentação, mas demais necessidades domésticas e de apoio à produção, como a
irrigação (Figura 4), são usadas águas do rio Solimões captadas com o apoio de bombas.

Figura 4 - Sistema de irrigação na comunidade Bom Jesus do Paraná do Xiborena – Iranduba / AM

Foto: Matheus Queiroz (Fevereiro, 2018). Irrigação com águas extraídas do rio por bombeamento.

Com a tecnologia atual é possível instalar poços em áreas de planície de inundação, porém não é um
local apropriado devido à sazonalidade do rio que faria com que, em média, cerca de metade do ano eles
ficassem submersos; além disso as águas do lençol freático ficaram expostos à contaminação.

3.3 O risco das terras caídas

A água dos rios serve como um catalisador no sentido da modificação física dos relevos que circundam
o corpo d’água. Segundo Conti e Furlan (1995, p. 126) o sistema hidrológico das bacias hidrográficas
transporta materiais erodidos do relevo da bacia de uma região para outra sempre do sentido de montante para
jusante. As terras caídas se enquadram nos processos erosivos provocados pela água que, segundo Rebello
(2010), estão relacionados com a erosividade da chuva, as propriedades do solo, a cobertura vegetal e as
características da encosta, posteriormente, depois de erodidos, os sedimentos serão transportados pelo rio.
Terra caída é o nome popular de erosão fluvial. Para Christofoletti (1981, citado por CARVALHO,
2012, p. 22) é definida “como sendo os processos que resultam na retirada de detritos do fundo do leito e das
margens, fazendo com que passem a integrar a carga sedimentar”. Esse processo erosivo é um fator redutor.
Portanto as pessoas que possuem terrenos afetados pela erosão fluvial lateral, instalados nessas áreas, sofrerão
com a perda de parte de suas terras. Todas as comunidades estudadas, exceto Santa Luzia da Ilha do Baixio

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(Iranduba / AM), onde a comunidade está assentada, por se localizar em uma área que funciona como depósito
de sedimentos, sofrem com o fenômeno das terras caídas (Figuras 5).

Figuras 5a e 5b - Processo de terras caídas

5a 5b

Fotos: 5a – Matheus Queiroz, Comunidade Santo Antônio; 5b – Antonio Tomaz Neto, Comunidade Espírito Santo.
Margem esquerda do baixo Solimões, Iranduba - AM (Fevereiro, 2018).

A perda do solo causa diversos infortúnios para os comunitários, porém a memória afetiva que os
moradores possuem da terra e os fatores econômicos de plantação e criação de gado faz com que eles não
queiram sair das áreas de várzea. Os ribeirinhos precisam constantemente recuar as casas, postes de
eletricidade, plantação e estradas. Os seguintes relatos exprimem como os ribeirinhos lidam com o fenômeno
das “terras caídas”:
Depois que eu cheguei aqui, essa já é a quinta casa que eu faço, toda vez vindo mais pra trás, então os
bananais, os seringais, isso tudo já foi embora pro meio do rio. O campinho do Barcelona era lá pra
frente, agora tá pra aqui do lado. Nossa sede também já mudamos. Todo ano a terra cai e a gente vem
mudando. Na época que meu pai veio pra cá o terreno media 450 metros de frente por 1.000 de fundo,
agora não dá 600 metros da beira do rio até o final (Morador da Comunidade São João Batista -
17/02/2018). A estrada já foi mudada três vezes por causa das terras que caíram, já caíram muito, é uma
“caição” medonha de terra. (Moradora da Comunidade N. Sra. De Fátima - 16/02/2018)

O ribeirinho se considera dono de sua terra, no entanto para a natureza ele não passa de um inquilino
efêmero, pois quem decide o tempo de sua moradia é o rio, por meio do fenômeno natural de erosão de margem,
designado pela terminologia regional como “terras caídas”.
Quanto mais se aproxima da foz do rio Solimões (encontro das águas) pode-se notar que a severidade
das terras caídas aumenta. Em comunidades como Costa do Catalão e 7 de setembro ocorre emigração
compulsória, proporcionada pela perda de terras, para Manaus ou para a terra firme no próprio município de
Iranduba.

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4. Conclusão

Na várzea, observa-se que as comunidades ribeirinhas atuam dependendo quase que inteiramente dos
recursos hídricos superficiais. Portanto, estudar a relação entre as águas e o homem torna-se importante no
contexto social e natural, visto que ocorrem interações complexas entre esses reguladores ambientais.
O rio Solimões, com suas águas ricas em sedimentos, é um importante fator de construção social. Os
comunitários adaptam todos os elementos socioeconômicos à dinâmica fluvial. A agropecuária para consumo
próprio e para o mercado é importante, porém os moradores ficam socioeconomicamente limitados pela
sazonalidade das águas. Apesar de a alternativa rodoviária para o escoamento da produção e transporte, estar
presente em algumas comunidades, a qualidade das vias está em má estado de conservação ficando inutilizadas
durante a época que as águas do rio sobem (enchente e cheia). Desse modo, os ribeirinhos ficam ainda mais
dependentes dos recursos hídricos.
O abastecimento de água é um percalço para os moradores, fazendo-os buscar alternativas por iniciativa
própria. O governo tanto do estado quanto do município não apresentam formas reais e constantes de atender
à demanda de água potável, portanto a compra individual, o tratamento caseiro e o deslocamento geográfico
são alternativas encontradas. A interferência do poder públicos com políticas próprias para o morador rural
ribeirinho a fim de solucionar as suas carências torna-se importante no contexto da produção, moradia,
qualidade de vida, dentre outros.
O risco das terras caídas é um importante limitador da vida ribeirinha. A queda das terras acarreta em
diversas mudanças socioeconômicas no contexto familiar e comunitário. Observa-se uma migração rural-rural
e rural-urbano, porém os moradores apresentam resistência de sair de suas casas para uma realidade diferente.
Por fim, é importante analisar as sócioespacialidades das comunidades rurais ribeirinhas amazônicas com o
intuito de entender como se relacionam com o espaço.

5. Agradecimentos
Agradece-se à Universidade do Estado do Amazonas pelo incentivo com a bolsa do Programa de
Iniciação à Pesquisa – PAIC e ao Núcleo de Pesquisa Urbano e Regional – NPUR pelos momentos de discussão
e aprendizado coletivo.

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