EBOOK - Leituras Sobre A Sexualidade Vol 18

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LEITURAS SOBRE A SEXUALIDADE:

Psicanálise e Discursividades

Coleção Sexualidade & Mídias


Volume 18

1
2
George Miguel Thisoteine
Andre Gellis
Ana Cláudia Bortolozzi
(Organizadores)

LEITURAS SOBRE A SEXUALIDADE:


Psicanálise e Discursividades

Coleção Sexualidade & Mídias


Volume 18

3
Copyright © Autoras e autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e
dos autores.

O conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu (s)


respectivo (s) autor (es).

George Miguel Thisoteine; Andre Gellis; Ana Cláudia Bortolozzi [Orgs.]

Leituras sobre a sexualidade: psicanálise e discursividades. Vol. 18. Coleção


Sexualidade & Mídias. São Carlos: Pedro & João Editores, 2023. 193p. 14 x 21 cm.

ISBN: 978-65-265-0512-0 [Impresso]


978-65-265-0513-7 [Digital]

1. Sexualidade. 2. Psicanálise. 3. Discursividade. 4. Sexualidade & Mídias. I.


Título.

CDD – 150

Capa: Petricor Design


Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana
Cláudia Bortolozzi (UNESP/ Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida (UFES/
Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello (UFF/Brasil);
Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares Zuin (USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2023

4
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 9
Andre Gellis
George Miguel Thisoteine

Capítulo 1 19
CAÇA ÀS BRUXAS: PERVERSÃO EM ANTICRISTO
Caroline Barros Amaral

Capítulo 2 33
TICK, TICK...BOOM: A SUBLIMAÇÃO COMO
EXPLOSÃO E CAMINHO DO DESEJO
George Miguel Thisoteine
Gabriel Câmara Branco
Andre Gellis

Capítulo 3 49
GAROTA INFERNAL: A SEXUALIDADE FEMININA
MAL DITA
Beatriz Almeida Gabardo Traldi
Wanderson Rodrigues Morais

Capítulo 4 65
PLEASURE: O OLHAR FEMININO SOBRE A
INDÚSTRIA DA PORNOGRAFIA
Danilo Silva Nakashima

5
Capítulo 5 83
SOBRE UMA INTENSIDADE QUE VALE SER
TRANSMITIDA: REFLEXÕES A PARTIR DAS
CRÔNICAS DE CONTARDO CALLIGARIS
Marcela Pastana
Gelberton Vieira Rodrigues

Capítulo 6 103
LEMBRE DE MIM: MEMÓRIA E TRANSMISSÃO
PSÍQUICA NO FILME VIVA - A VIDA É UMA FESTA
Bruna Bortolozzi Maia
João Pedro de Paula Menezes
Mary Yoko Okamoto

Capítulo 7 123
DISTANTE DA DOR DO OUTRO: ANÁLISE DA
VÊNUS NEGRA E A DIFERENÇA COMO MEIO DE
EXPLORAÇÃO COLONIAL
Drielly T. Lopes Silveira
Sofia Freire

Capítulo 8 141
RED: CRESCER É UMA FERA - REFLEXÕES SOBRE A
PARENTALIDADE E VINCULARIDADE
Giovana Benite dos Santos
Roseclair Keller de Oliveira Lima
Mary Yoko Okamoto

Capítulo 9 159
DE TRAVESSIA A KBELA: PSICANÁLISE NAS
ESCREVIVÊNCIAS DO CORPO EM MULHERES
NEGRAS
Christiane Carrijo
Paloma Afonso Martins

6
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 179

SOBRE OS ORGANIZADORES E A ORGANIZADORA 185

SOBRE O GEPESEC 187

OUTROS VOLUMES DA COLEÇÃO SEXUALIDADE & 189


MÍDIAS

7
8
APRESENTAÇÃO

Andre Gellis
George Miguel Thisoteine

Primeiras palavras

Apreciada ou depreciada, reduzida às infames


inclinações do corpo, de seus impulsos e instintos, ou
vinculada a subjetividades e mesmo a temperamentos
sobre-eminentes, a palavra sexualidade assombrou e
continua a visitar o imaginário coletivo, efeito típico da sua
ligação à origem do ser humano e à sua perenidade. Daí
uma primeira questão: que acepções melhor
compreendem esta palavra?
Ao longo dos tempos, as civilizações, suas religiões e
sistemas de pensamento, buscaram normalizar a
representação da sexualidade no imaginário artístico,
literário, discursivo como parte de suas tentativas de
autorizar ou proscrever a conduta sexual humana — o que
não se deu sem resistências e contestações.
Espelho de destinações tão antagônicas quanto essas,
os meios « fotográficos » e digitais 1 admitem uma crítica
sempre susceptível de perpassar teorizações baseadas em
um método de análise fílmica capaz de se associar a algum
nível historiográfico crítico que cruze a observação dos
meios específicos à disposição e a avaliação de seu
potencial político, social, estético, psicológico, etc. De fato,
convém sempre indagar que características definem o
imaginário contemporâneo da sexualidade. Hoje, impõe-se
tentativas de identificar o que é vergonhoso, banalizado ou

1 Dos filmes às fotos e vídeos, do cinema à propaganda, etc.

9
valorizado, e mesmo a existência de diferenças entre
apresentar fotográfica ou digitalmente a sexualidade no
feminino e no masculino, entre outras questões. Porém, o
esforço de algumas formas de apreender a dimensão
potencialmente crítica de um filme ou série, estimando o
seu potencial de sugestão ou de contestação mediante a
análise de suas questões, encontrará a medida de suas
limitações conforme ignore ou não a dimensão
possivelmente refratária de uma produção artística —
índice do potencial doutrinal do cinema, dos filmes, etc.
Ou seja, para melhor considerar os poderes de um
filme de tornar visível o que não se percebe natural ou
imediatamente, de trazer à luz uma dimensão oculta, uma
realidade dissimulada, é preciso atentar para a sua
dimensão proselitista, propagandista, sempre à disposição
de forças ignoradas e discursos dominantes. Para a sua
justa consideração é preciso admitir que se distinguem por
si só filme — um « objeto técnico »2 passível de interpretar
o mundo, de prover gozo e de se posicionar contra
injustiças e desigualdades sociais, capaz de reafirmá-las ou
servir-se delas — e cinema — no mais das vezes
considerado um todo, mais ou menos homogêneo, ou uma
indústria nas mãos de alguns (Walter Benjamin), e a serviço
dos mais variados interesses, deve-se acrescentar.
Não à toa, os meios fotográficos inquietaram tão logo
surgiram, tornaram-se objetos de estudos, e já no início do
século XX as abordagens de W. Benjamin, S. Kracauer e
Theodor W. Adorno acabaram por destacar, cada qual à sua
maneira, que o cinema possui todas as características de
uma fantasmagoria, em uma perspectiva de forte expressão
psicanalítica (P. Kauffmann) aplicável ao filme, inclusive.

2 KRACAUER, S. Théorie du film, Flammarion, Paris, 2010.

10
A intermedição medial

A sexualidade pelos meios cinematográficos e digitais

Na qualidade de um meio técnico particular, o filme é


uma mídia expressamente acessível a formas de análise e
de pensamento e favorável à determinação da relação que
cada qual entretém com as fantasmagorias, cujo artifício
distrativo é tanto capaz de cegar como de permitir
enxergar, de alhear como de despertar e contestar.
Em Benjamin e Kracauer, p. ex., a cegueira da distração
acompanha pari passu a redenção da realidade pelo meio
técnico (a fotografia, o cinema, etc.), mas em uma
perspectiva positiva das fantasmagorias baseada na relação
que cada qual entretém com o filme : por um lado, tais
fantasmagorias são produto do capital, dos « vencedores »,
espécies de alavanca de uma política da distração, da
sedução, ao mesmo tempo autoritária e opressiva (logo,
proveitosa para lidar com a conduta sexual humana) ; por
outro lado, essas mesmas fantasmagorias são capazes de se
comprometer contra o discurso corrente e a ideologia
dominante que as produzem. Ora, é esta reversão contra si
própria no cerne da fantasmagoria um dos elementos-chave
para a maioria das discussões e análises de filmes e do
cinema, pois hoje, mais do que nunca, a liberdade, a
liberação e a liberalização do sexo leva a questionar com
acuidade — mas também a duvidar sem consternação —, o
objetivo emancipatório de filmes e do cinema.
Uma versão de fantasmagoria bastante próxima da de
Benjamin é oferecida por Theodor W. Adorno em seu
ensaio sobre Wagner sem, no entanto, descrever um só
vislumbre de redenção ou de sua reversão contra si mesma
ou contra o fator econômico e político em sua origem: « Par
la diffamation du plaisir, qu’elle met elle-même en lumière,

11
la fantasmagorie s’associe dès l’abord l’élément de son
propre déclin. L’illusion implique la désillusion »3.
Se Adorno não parece julgar necessário se deter em
filmes e avaliar as qualidades críticas de alguns deles é por
considerar o cinema o lamentável exemplar da cultura de
massa, que, como os demais elementos da indústria
cultural e diferentemente das obras de arte de fato, não
sublima o sexual, apenas o suscita sem qualquer satisfação
ou destinação. Isso permite situar a questão da forma como
se constrói a relação entre representação sexual e os meios
fotográficos e digitais e suas técnicas. Como tais, a narrativa
e o imaginário do sexo, do erotismo e do pornográfico são
enquadrados por códigos formais precisos? A
representação de cenas sexuais, explícitas ou sugeridas,
parece apresentar algumas prerrogativas: é concebida
como, por um lado, uma questão de opressão e de
emancipação simultâneas e, por outro, um índice da
hierarquia de papéis, lugares e poderes entre os sexos.
O inescapável antagonismo que se dimensiona em
qualquer retratação cinematográfica não escapou ao
interesse de Adorno, cujas observações sobre a indústria
cultural bem convém às mídias como um todo: “a indústria
cultural] traite de conflit mais… dans les faits procède sans
conflit”, é uma forma de “représentation de la réalité
vivante » que « devient une technique pour suspendre son
développement”4.

3 ADORNO, T. W. Essai sur Wagner, Paris, Gallimard, 1966, p. 125. Tradução


sugerida: ‘Pela difamação do prazer, que ela mesma traz à tona, a
fantasmagoria associa-se desde o início ao elemento de seu próprio
declínio. Ilusão implica desilusão’. Cf. também ADORNO, T. W. e
BENJAMIN, W. Correspondance 1928-1940, Paris, Gallimard, collection
Folio essais, 2002.
4 ADORNO, T. W. The Schema of Mass Culture, The Culture Industry (1942),

p. 63 e p. 71, citado em BRENEZ, N.; ADORNO, T. W. le cinéma malgré lui,


le cinéma malgré tout. Trafic, n° 50, Qu’est-ce que le cinema?, verão de

12
Nada obstante, Adorno se permite um breve desvio de
suas considerações acerca da indústria cultural para dizer
que “le cinéma peut devenir un art” e que “le potentiel le
plus prometteur du cinéma réside dans son interaction avec
d’autres médias, émergeant eux-mêmes du cinéma”5.
De fato, o cinema não se constituiu à parte de uma
intermidialidade pletora de questões que, além de lançarem
as bases de toda a reflexão sobre a « cultura de massa » nas
décadas de 1920 e 1930, permitiram construir uma teoria do
cinema constantemente ligada aos meios [mídias] e oferecer
uma teoria do filme, que não se confunde com o cinema
(Kracauer) ou as questões da reprodutibilidade técnica da
arte (Benjamin) que implode qualquer dimensão
sublimatória na cultura de massa. Para além de uma
abordagem que associa estreitamente o cinema à indústria
cultural, legitima-se uma por escala: partir do mais « restrito
» (um filme, uma imagem, uma passagem, uma sequência,
um plano em um filme) até o geral (o cinema, uma narrativa,
um discurso, uma reflexão sobre o meio), em consideração a
esta ideia de se estar diante de « uma escrita com imagens
em movimento e sons »6.

2004, p. 289 e p. 290. Tradução sugerida: ‘trata de conflito, mas de fato


procede sem conflito’, e uma forma de ‘representação da realidade viva’
que ‘torna-se uma técnica para suspender seu desenvolvimento’,
respectivamente.
5 ADORNO, T. W. Filmtransparente (1966), citado em BRENEZ, N. T. W., le

cinéma malgré lui, le cinéma malgré tout, Trafic, n° 50, Qu’est-ce que le
cinema?, été 2004, p. 2. Tradução sugerida: ‘o cinema pode se tornar uma
arte’ e ‘o potencial mais promissor do cinema reside na sua interação
com outras mídias, elas próprias emergentes do cinema’,
respectivamente.
6 LE CINÉMATOGRAPHE EST UNE ÉCRITURE AVEC DES IMAGES EN

MOUVEMENT ET DES SONS., em maiúsculas no original: BRESSON, R.


Notes sur le cinématographe, Gallimard, Paris, 1975, p. 12. Nesta obra,
Bresson ambiciona definir o cinematógrafo, que formaria um texto visual
e auditivo, em oposição ao cinema… que reúne todos os outros filmes,

13
Um pouco nessa esteira, sem banir gratuitamente esta
dimensão da cultura de massa ou da indústria cultural, o
presente número de Mídias e Sexualidade aspirou ir além do
filme, abacar do estudo crítico do cinema até a análise do
poder crítico ou alienante em ação nos filmes e algumas
mídias. É, aliás, por este caminho que pode conduzir o
estudo da fantasmagoria proposta para o filme. Mas o
estudo da potencial cumplicidade do filme e de uma postura
crítica perpassa também por sua abordagem técnica, política
e subjetiva: se um filme é reputado mudar a imagem que
alguém tem de si próprio, de persuadi-lo de que diz coisas
verdadeiras sobre o mundo, é por falar-lhe e, antes de nada,
em comover e despertar, quiçá para uma leitura.

A análise de filmes

Perspectivas de leituras

Sob tais circunstâncias, três modalidades de leituras


fílmicas se apresentam: I. análise tipológica: que tipo de
história os filmes contam? II. análise formal: que arsenal
técnico e simbólico mobilizam? III. análise conceitual: que
interpretações são possibilitadas por disciplinas como
psicologia, psicanálise, semiologia, estética, cultural
studies, gender studies, antropologia, sociologia,
narratologia, poética histórica…?7
Quer se trate de uma investigação com vocação mais
histórica, antropológica ou estética, mais política, social ou
psicológica, merece ser realçada a dimensão crítica da
perspectiva privilegiada em cada leitura, que não negligencia
o estudo de objetos passados ou contemporâneos neste

e abre a perspectiva de uma leitura de filmes.


7 JULLIEN, Laurent. Analyser un film : De l'émotion à l'interprétation, Paris,

Flammarion, col. Champs, 2022.

14
contexto: filme, vídeo, séries televisivas, mas também
fotografia, videojogo, web series, etc.
Aberto a disciplinas (filosofia, psicologia, psicanálise,
história, história da arte, estudos literários) e domínios
(artes plásticas e visuais, Belas Artes, teatro, performances,
clip-art, mídias) próximos do cinema, este volume de Mídias
e Sexualidade não se afastou de seu epicentro, o estudo de
filmes e de discursos centrais ou marginais sobre o sexual e
a sexualidade. Sem distinção de época, prestígio ou gênero,
este volume reúne um bom número de filmes e debates
dirigidos a estudantes, professores e todos os cinéfilos.
As divergências fundamentais entre as leituras e
discussões presentes nesse volume permitem rastrear
certa heterogeneidade teórica e dissemelhanças nas
reflexões propostas, diante de autores que não se
relacionam direta ou indiretamente entre si ou com a teoria
de referência de um ou de outro texto ou argumento. Com
base na constatação da diversidade crítica, este volume de
Mídias e Sexualidade não se contentou com um balanço,
necessariamente fragmentado e vago, sobre as ligações
das mídias com o cinema, cada vez diferentes segundo os
autores ou simpatizantes desta ou daquela teoria. Com
base em propostas transportadas ou mal sustentadas por
diversas vertentes (estética, história, antropologia,
sociologia, etc.) e prioritariamente voltadas para textos
pautados em estudos fílmicos8, as comunicações também
tiveram por preocupação a reflexão sobre o contributo
metodológico de mídias, apreendidas em sua diversidade,
sobre a história do cinema e, mais particularmente, sobre a
análise de filmes, em função das questões em torno da
sexualidade. Face a estudos bastante enraizados em áreas
como a sociologia, a filosofia e a psicologia, que já

8 No caso de documentários, ficção, filmes experimentais —


indiscriminadamente e sem prevalência.

15
contribuíram largamente para perceber a complexidade
dos contornos ideológicos, políticos e filosóficos de teorias,
métodos e objetos de estudos, a inclusão da pesquisa sobre
a sexualidade e o sexo no campo particular dos estudos
fílmicos, abrangendo ou não os estudos cinematográficos,
ainda que apropriadamente, deve constituir a
particularidade desta coleção, e proporcionar em especial
neste volume de Mídias e Sexualidade uma experiência
inédita nessa direção singular de leitura.

Para ler este volume

Se é verdade que hoje o pudor e a contenção de


expressão já não são o apanágio do discurso
cinematográfico, que se apodera de toda esta parte da
intimidade, outrora silenciada, hoje evocada como
qualquer outra matéria na esfera pública, isto não acarreta
que, este número de Mídias e Sexualidade, cujo tema é a
sexualidade, se restrinja ao erótico ou à vitrine
pornográfica, embora às vezes se esteja inteiramente na
pura declinação comercial da sexualidade.
Esta edição de Mídias e Sexualidade tenta analisar
como certas obras desafiaram e colocaram em xeque as
normas de sexo, gênero e sexualidade na ficção. Essas
abordagens também permitem vislumbrar uma poética
excêntrica e descentrada que desconstrói gêneros
literários e cinematográficos, oferecendo novos pontos de
vista sobre o mundo. De certo modo, esta edição mostrar
que é pela poética que certos autores moldam uma
resistência à norma, a despeito da cultura de massa que
impõe os temas da corporeidade e da sexualidade. Esses
são analisados de perto em artigos que questionam as
designações de sexo, de gênero e de sexualidade, entre
outras. A heterogeneidade de trabalhos — de

16
fundamentos teóricos, literários e culturais muito díspares
— apresenta precisamente ao leitor uma panóplia de visões
sobre esta temática: a representação da sexualidade na
arte contemporânea por meio da diversidade de filmes e
autores escolhidos.
Nos trabalhos CAÇA ÀS BRUXAS: PERVERSÃO EM
ANTICRISTO, de Caroline Barros Amaral, e TICK, TICK…
BOOM: A SUBLIMAÇÃO COMO EXPLOSÃO E CAMINHO DO
DESEJO, de George Miguel Thisoteine, Gabriel Câmara
Branco e Andre Gellis, os autores propõe por meio de um
retorno a concepções freudianas um olhar sobre os
discursos sociais presentes nas obras e enfatizando que
esses não estão distantes das soluções que o inconsciente
traz para a sexualidade dos sujeitos.
Em GAROTA INFERNAL: A SEXUALIDADE FEMININA MAL
DITA, de Beatriz Almeida Gabardo Traldi e Wanderson
Rodrigues Morais, e PLEASURE: O OLHAR FEMININO SOBRE A
INDÚSTRIA DA PORNOGRAFIA, de Danilo Silva Nakashima,
apresentam análises que por um referencial lacaniano
trazem à tona a discursividade sobre como o feminino é
construído de forma política e material. Já o trabalho SOBRE
UMA INTENSIDADE QUE VALE SER TRANSMITIDA: REFLEXÕES
A PARTIR DAS CRÔNICAS DE CONTARDO CALLIGARIS, de
Marcela Pastana e Gelberton Vieira Rodrigues, abordam
uma análise sobre textos do psicanalista Contardo Calligaris
a fim de enfatizar como a sexualidade se entrelaça com a
vida e a intensidade da busca pela construção de sentido.
Nos trabalhos LEMBRE DE MIM: MEMÓRIA E
TRANSMISSÃO PSÍQUICA NO FILME VIVA: A VIDA É UMA
FESTA!, de Bruna Bortolozzi Maia, João Pedro de Paula
Menezes e Mary Yoko Okamoto, e RED: CRESCER É UMA
FERA: REFLEXÕES SOBRE A PARENTALIDADE E
VINCULARIDADE, de Giovana Benite dos Santos, Roseclair
Keller de Oliveira Lima e Mary Yoko Okamoto, as autoras

17
abordam a construção do desejo em meio aos grupos
familiares, enfatizando elementos sobre a transmissão
geracional e a construção de vínculos como propulsores da
formação da vida e dos laços.
Em DISTANTE DA DOR DO OUTRO: ANÁLISE DA VÊNUS
NEGRA E A DIFERENÇA COMO MEIO DE EXPLORAÇÃO
COLONIAL, de Drielly T. Lopes Silveira e Sofia Freire, e o
trabalho de Christiane Carrijo e Paloma Afonso Martins, DE
TRAVESSIA A KBELA: PSICANÁLISE NAS ESCREVIVÊNCIAS DO
CORPO EM MULHERES NEGRAS, abordam cada um temas
fronteiriços entre o que é uma psicanálise tradicional e a
crítica desta. No primeiro as autoras usam da dimensão da
fotografia e do olhar para desnudar questões estéticas e
coloniais inconscientes. Enquanto que no segundo, partem
da construção de uma narrativa sobre o racismo presente
na cultura brasileira que precisa ser elaborada e levantada
do latente simbólico.
Assim, spirar mudar a forma como nos vemos, rever
a(s) relação(ões) com o nosso corpo, enfim vislumbrar o
Outro para além da imagem ou de sua apreensão, é
provavelmente o que este número de Mídias e Sexualidade
aspirou ao eleger a sexualidade como temática e destacar
o sexo e as formas do desejo em certas fantasmagorias.

18
Capítulo 1

CAÇA ÀS BRUXAS: PERVERSÃO EM ANTICRISTO

Caroline Barros Amaral

Introdução

Perversão. Substantivo feminino: ato ou efeito de


perverter, de se contrapor às leis da vida natural e da vida
moral. Vem do latim, perversio, que significa alteração ou
depravação. Porém, na língua corrida, o perverso não é
somente o desviante, aquele que contradiz a moral e os
bons costumes. Ele é o pérfido, o corrupto, o degenerado,
o mal. Sua depravação não seria somente um ataque às
leis naturais que ditam como seria uma sexualidade
“normal”, mas uma tentativa de aniquilação da ética e da
civilização ao contrapor-se às leis e às práticas sociais.
Porém, na teoria psicanalítica, o termo perverso e
perversão ocupam um outro lugar.
A perversão, tal qual a neurose e a psicose, configuram
na teoria psicanalítica o que se chama de estrutura psíquica,
a maneira como cada sujeito se coloca no mundo, frente à
castração. O complexo de Édipo, na teoria lacaniana
(LACAN, 1999), é composto de três etapas: um primeiro
período mitológico, no qual não existe sujeito e a falta não
está inscrita nesse circuito; um segundo momento, no qual
há a constatação do desejo materno decorrente falta do
outro e, portanto, a existência de uma falta em si,
constituinte o sujeito como tal, e o terceiro momento, no
qual a falta é constatada no outro e em si e temos a
significação fálica, a nomeação do que é capaz de gerar

19
desejo ou não, o que é valioso ou não, como efeito do
complexo de Édipo.
Freud aborda o complexo de castração em diversos
momentos de sua obra. Em 1923 (1996c), no texto “A
organização genital infantil”, Freud inseriu a angústia de
castração como uma parte fundante do desenvolvimento
sexual, reconhecendo-a como universal. Para tal, utilizou-se
da teorização do estádio fálico, no qual os conteúdos
psíquicos da criança se organizam em termos de ausência e
de presença do falo e da irrepresentação do sexo feminino.
Nesse período do desenvolvimento há dois sexos: o
masculino e o castrado, os que têm ou não têm, os que são
ou não são.
No posterior “Consequências psíquicas da diferença
anatômica entre os sexos” (1996d), se debruça com maior
detalhamento sobre o tema, instaurando a teoria do
Complexo de Édipo de maneira mais robusta. A realização da
existência da falta produz efeito na triangulação mãe, pai e
criança, de modo o bebê seria impedido à relação incestuosa
com a mãe sob a ameaça de ser castrado pelo pai.
Na psicanálise e nas ciências das humanidades a
interdição ao incesto, em sua dimensão psíquica, ou o tabu
do incesto, em sua dimensão sóciocultural, possuem uma
ímpar significância, como regra fundante da cultura e do
próprio estatuto de sujeito. A interdição do incesto surge
como signo de uma impossibilidade de ser pleno, de possuir
tudo, de ser um com o outro, ao mesmo tempo que
denuncia o desejo de o ser. O desejo, agente do sujeito, só
é possível perante a essa ausência.
Frente à falta constituinte do sujeito, o infante possui
três encaminhamentos possíveis: a Verdrangung referente
ao mecanismo de defesa neurótico, a Verwerfung, o
mecanismo de defesa psicótico e a Verleugnung, o
mecanismo de defesa perverso, ou o recalque, a foraclusão

20
e a denegação, respectivamente. Importante apontar a
proximidade entre o recalque e a denegação, uma vez que
os dois mecanismos operam realizando um tratamento
palavreado da falta, a castração é inscrita em sua dimensão
simbólica. Na foraclusão, por outro lado, a castração não é
inscrita da mesma maneira, mas foracluída e a falta retorna
como real - sintomas alucinatórios, paranóides, por
exemplo -, não como palavra.
O perverso é definido por uma maneira específica de
lidar com a falta: eu reconheço que ela existe, mas realiza
uma clivagem perceptiva que a tampona por meio de um
objeto fetiche. No momento que eu estou em posse ou na
presença desse objeto tamponador, a falta não existe: eu a
denego. Em seu texto de 1927, nomeado “O fetichismo”,
Freud relata uma vinheta clínica de um paciente que
aparentava ser estruturado em uma neurose, porém, havia
um detalhe: ele só conseguia se relacionar com uma mulher
se ela tivesse um “Glanz auf der Nase” (Freud, 1996e, p.95),
ou brilho no nariz, em português.
Porém, essa não é a primeira vez que o conceito de
perversão é abordada pelo autor, sendo tratado no
primeiro dos “Três Ensaios sobre a Sexualidade” (1996a),
intitulado “As Aberrações Sexuais”:

Vamos introduzir duas expressões técnicas: se


denominarmos objeto sexual a pessoa da qual vem a atração
sexual, e meta sexual a ação à qual o instinto impele, a
observação, cientificamente filtrada, indica numerosos
desvios no tocante aos dois, objeto sexual e meta sexual, e
a relação entre eles e a norma suposta requer uma
investigação aprofundada. (FREUD, 1996a, p. 21)

Também nos "Três Ensaios", porém, o mesmo Freud


estende a disposição perverso-polimorfa ao indivíduo em
geral, renegando as definições vigentes do perverso

21
enquanto um degenerado ao afirmar todas as crianças
"perversas polimorfas", uma vez que sua sexualidade está
submetida ao funcionamento das pulsões parciais, fixada
em zonas erógenas que se desenvolveram antes da função
genital propriamente dita - função essa que só aconteceria
após a puberdade. De acordo com Queiroz (2002), o
entendimento de uma perversão polimorfa no infante dá
abertura para uma discussão menos moralizante em
direção a sua inserção nos processos sexuais e na economia
das pulsões.
Se no primeiro no primeiro momento, Freud (1996a)
escreve sobre perversão fazendo referência a uma
concepção da medicina e sexologia do século XIX,
nomeando-a de “aberrações” ou “inversões” quanto a
meta e objeto do ato sexual, ou seja, desviante de um ato
de penetração genital com uma pessoa do gênero oposto.
Neste outro momento é possível verificar uma primazia do
modo de funcionamento em detrimento dos sintomas.
O sujeito apaixonado em narizes brilhosos foi
caracterizado como perverso não por ser um ato
degenerado, um sujeito depravado, uma corrupção da
moral, mas por se estruturar de uma tal maneira que
apresenta a denegação como um mecanismo de defesa, no
qual o objeto fetiche seria um substituto para esse objeto
fálico, tal qual descrito a seguir por Freud (1996e, p.95):

Para expressá-lo de modo mais simples: o fetiche é um


substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho
outrora acreditou e que - por razões que nos são familiares
- não deseja abandonar. O que sucedeu, portanto, foi que o
menino se recusou a tomar conhecimento do fato de ter
percebido que a mulher não tem pênis. Não, isso não podia
ser verdade, pois, se uma mulher tinha sido castrada, então
sua própria posse de um pênis estava em perigo, e contra
isso ergueu-se em revolta a parte de seu narcisismo que a

22
Natureza, como precaução, vinculou a esse órgão específico
(FREUD, 1996e, p.95).

Nesse trecho podemos destacar como o fetiche


desempenharia uma função específica de gênero: o fetiche
como um substituto do pênis, órgão sexual masculino, da
mãe-mulher, que teria encarnado a falta em seu corpo. É
necessário cuidado na leitura do texto, uma vez que a falta
não é característica do feminino, mas uma condição
constitutiva do ser humano e o fetiche, ou a perversão, não
seriam um funcionamento exclusivamente masculino.

Material Analisado

Tipo de Material Filme


Título Original Antichrist
Nome Traduzido Anticristo
Gênero Drama, Terror
Ano 2009
Local de lançamento e Dinamarca, Alemanha e França;
Idioma original Inglês
Duração 1h50min
Direção Lars von Trier

Os personagens principais não possuem nome, aqui


chamados de Mulher (Charlotte Gainsbourg) e Homem
(Willem Dafoe). No início do filme somos apresentados à
cena desencadeadora da história, na qual o bebê do casal,
Nick, sai do berço e cai de uma janela, morrendo com a
queda. Enquanto isso, o casal faz sexo e não percebem a
tragédia anunciada.
Após esse acontecimento, a Mulher sucumbe ao
sofrimento, sendo internada por um mês em um hospital.
O Homem, terapeuta, não está satisfeito com o manejo da
doença de sua esposa e decide trazê-la de volta para casa,

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onde ele próprio irá ministrar seu tratamento e terapia.
Presenciamos crises de ansiedade, automutilações, brigas
entre o casal.
Em uma das sessões de análise que conduz com a
própria Esposa, o Homem conclui que a origem de seu
medo se dá por uma experiência irracional relacionada ao
Éden, casa de veraneio do casal localizado no interior da
floresta, e que eles devem retornar ao espaço para a
superação da esposa.
Já no Jardim do Éden, o Homem encontra alguns
indícios sobre o aspecto vil da Mulher, como sua tese sobre
feminicídio, no qual defendia que as mulheres eram
intrinsecamente más, e o laudo médico que aponta que
Nick tinha uma leve anomalia nos pés, causada pelos
sapatos que a Mulher colocava ao contrário no filho
propositalmente.
No clímax da obra, a Mulher está tomada por algo
sem nome, sofrendo de sintomas psicossomáticos,
vivendo cenas na qual sexo e dor se misturam e
experiências sobrenaturais. Com medo de ser
abandonada após a revelação do estado de seu filho,
ataca o Homem. Abre seus shorts para fazerem sexo e
força uma situação. Nesse momento, pega um pedaço de
madeira e bate em seu pênis, de modo que o Homem
desmaia de dor. Inconsciente, ela o masturba até que
ejacule sangue. Fura a sua perna e prende um grande peso,
escondendo a chave para que ele não se liberte.
Em seguida, o Homem acorda, tenta fugir e é
capturado pela Mulher, que pretende oferecê-lo de
sacrifício para “Os três mendigos”, um veado, uma raposa
e um corvo e representam, respectivamente, dor,
sofrimento e desespero. Nesse momento há um flashback
que desvela que a Mulher teria visto seu bebê subindo na
janela em direção à morte e o ignorou, continuando com

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seu gozo. Como resposta, corta seu próprio clitóris. O filme
acaba com o Marido se desvencilhando do peso e matando
a esposa; coloca fogo em seu corpo, como uma bruxa. No
“Epílogo”, o Homem inicia sua jornada para fora do Jardim
e no caminho cruza com centenas de mulheres pela mata,
que estão retornando para o Éden.

Análise Crítica

Em 2009, o filme Anticristo, de Lars Von Trier, é


lançado no festival de Cannes, onde concorre ao prêmio
Palma de Ouro. O filme compõe uma trilogia temática e
estilística apelidada “Trilogia da depressão”, composta por
Anticristo (2009), Melancolia (2011) e Ninfomaníaca (2013);
o diretor se propõe a expor a tragédia humana em
diferentes narrativas. Todos os três filmes são
protagonizados por mulheres, de modo que chama
atenção a forma como o diretor escolhe o feminino para
encarnar esse sofrimento, esse estar à margem da razão e
da humanidade.
De acordo com Rufinoni (2017), a obra de Lars von
Trier marca a mulher como o Outro, não semelhante ao
homem, humano, mas próximo da santidade ou da bruxaria:

O invólucro mítico remonta ao papel de objeto que


historicamente lhe foi destinado, uma vez que sobre ela
recaíram as necessidades, os anseios e os temores dos
homens: escrava, ídolo ou entidade malévola, não ascende
à categoria de sujeito (RUFINONI, 2017, p.290).

Essa arquetipização das mulheres atua como uma


destituição de subjetividade e também apontada por
Simone de Beauvoir, em seu clássico "O Segundo Sexo"
(2016, p.266):

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a mulher tem um duplo e decepcionante aspecto: ela é tudo
a que o homem aspira e tudo o que não alcança. Ela é a sábia
mediadora entre a Natureza propícia e o homem: é a
tentação da natureza indomada contra toda sabedoria. Do
bem ao mal, ela encarna carnalmente todos os valores
morais e seus contrários; é a substância da ação e o que se
lhe opõe, o domínio do homem sobre o mundo e seu
malogro; (...). Ele projeta nela o que deseja e o que teme, o
que ama e o que detesta. E se é tão difícil dizer algo a
respeito é porque o homem se procura inteiramente nela e
ela é Tudo. Só que ela é Tudo à maneira do inessencial: é
todo o Outro.

As protagonistas de seus filmes, encarnam a ideia de


marginalidade fundamental, sendo que em "Anticristo"
isso é representado pela perversidade da personagem
feminina, que encarna o Mal. Sobre seus estudos acerca do
feminicídio, especificamente o praticado na Idade Média,
no qual mulheres foram torturadas e mortas pelo crime de
bruxaria, a personagem diz:

M: Esse tipo de natureza [natureza humana] me interessa


muito. É o assunto da minha tese. Mas você não deveria
subestimar o Éden. Eu encontrei algo nos meus estudos. Se a
natureza humana é má... A natureza da mulher, de todas as
irmãs... Mulheres não controlam seu próprio corpo. A
natureza o controla. Eu escrevi no meu livro.

De acordo com Braz (2010), o tema de pesquisa da


personagem, o feminicídio, assim como a sua conclusão
sobre a maldade inerente à feminilidade seria uma tentativa
de explicar o suposto mal dela mesma, justificando o mito
da bruxa medieval, agente de seu próprio corpo e
sexualidade, contrariando as expectativas de que as
mulheres deveriam ser castas, inocentes.

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Dessa maneira é possível compreender a aproximação
que o diretor da obra realiza entre a personagem feminina e
a perversão. No desenrolar da obra, ela é tomada por uma
loucura primitiva, ao mesmo tempo que é desvelado as
perversidades anteriores da personagem, como calçar
errado os sapatos do seu filho e, ao final do filme, a revelação
de que a personagem, enquanto fazia sexo com seu marido,
viu Nick subindo pela janela em direção à morte, mas ignorou
o acontecimento em detrimento do próprio prazer.
Capaz das maiores atrocidades, seria perversa ao
depravar as leis morais que regem a cultura: por exemplo,
uma mãe deveria zelar por e amar seu filho, acima de tudo.
Nos contorcemos com os seus atos e sua justificativa, de ser
mais natureza do que sujeito, pois tomamos como natural
o cuidado de uma mãe com seu filho, de maneira que sua
negação é uma afronta tanto às leis naturais quanto aos
costumes sociais.
Seriam tais fatos o suficiente para atribuirmos a
personagem uma estrutura perversa? Essa pergunta possui
uma trapaça em si mesma, uma vez que já foi estabelecido
que o lugar da personagem na obra não é de uma pessoa,
mas de uma bruxa, da besta que nomeia a obra. No entanto,
há no filme um personagem humano, racional e faltoso: o
Homem. E há um diretor que repetidamente escolhe
colocar mulheres em lugares malditos em seus filmes.
Rufinoni (2017) descreve as personagens femininas do
diretor Lars von Trier da seguinte maneira, essencialmente
definidas como "seres" fora da norma, alheias aos pactos
sociais, à Lei:

As protagonistas dos filmes de Trier têm em comum a aura


da excepcionalidade. Transitam pelos extremos, não lhes
convêm a normalidade. São seres de exceção cuja
particularidade de comportamentos põe em xeque a ordem
vigente por meio de algumas constantes que dão às

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personagens o contorno da heroicidade ou da vilania. A
catástrofe as espreita como um mecanismo incontornável a
cujas penas elas se atiram, contraditando o senso comum
do patriarcado, da religiosidade, dos estereótipos de
inserção social (RUFINONI, 2017, p.285).

Retomemos nossa atenção para o outro personagem


da película, o Homem. Tomado como a norma, o
semelhante desde os primórdios, aqui no filme ele encarna
a racionalidade, oferece ações práticas frente à loucura
feminina (BRAZ, 2010). Enquanto a Mulher definha de dor e
culpa, logo após a morte do filho do casal, ele defende que
o luto dela não é anormal, tenta argumentar frente ao
sofrimento da esposa.
Insatisfeito com o tratamento ministrado para a
Mulher, retira a esposa do hospital e decide ser ele mesmo
seu terapeuta. Se segue o diálogo:

M: Wayne [o médico da Mulher] sabe que você é um terapeuta.


Ele diz que você não devia tratar sua própria família.
H: Um princípio que eu concordo, mas-
M: Mas você é tão mais inteligente.
H: Nenhum terapeuta pode saber mais sobre você do que eu.

Percebe-se na posição masculina um ideal de


onipotência, de ser detentor de todo saber em detrimento
do conhecimento de um outro. Chama atenção, da mesma
maneira, uma fusão dos papéis: terapeuta e marido. Frente
a um avanço sexual que a Mulher realiza durante uma crise
de ansiedade, o Homem diz:

H: Com calma. Nunca transe com seu terapeuta, não importa


o quanto ele possa gostar.

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Na película não é dita uma lei factual que proíba o
atendimento de psicólogos e psicanalistas a amigos e
familiares, porém percebe-se, tal qual na realidade que nos
encontramos, a existência de uma lei simbólica que
interdita esta prática, reconhecida tanto pela Mulher-
paciente quanto pelo Homem-terapeuta. "Um princípio
que eu concordo, mas- " ele diz. Eu sei, mas. Eu reconheço,
mas. Existe o reconhecimento que ele, enquanto sujeito,
não é todo, que um psicoterapeuta é faltoso no
atendimento da própria família, porém o mas prevalece, o
ideal imaginário que é possível tamponar essa falta.
A proibição do incesto, de acordo com Lévi-Strauss
(1982), em seu clássico "As Estruturas Elementares do
Parentesco", "Constitui o passo fundamental no qual se
realiza a passagem da natureza à cultura (LÉVI-STRAUSS,
1982, p.62)". É natural da humanidade, uma vez que é
universal, pertencendo a todas as culturas; e cultural, uma
vez que essa proibição estrutura fenômenos
independentes dela e dita modos de construir alianças e
relações interpessoais (LÉVI-STRAUSS, 1982).
Na teoria freudiana, o tabu do incesto também ocupa
lugar semelhante na constituição da cultura, como aborda
Freud em "Totem e Tabu" (1996b), e na constituição do
sujeito. De acordo com o autor (FREUD, 1996b), a partir
dos estudos antropológicos sobre as configurações do
parentesco é possível imaginarizar uma origem mitológica
da cultura a partir da organização de uma horda primeva,
no qual existiria um pai onipotente e seus filhos,
submissos à vontade paterna. Os irmãos aliam, matam e
devoram o pai, e criam uma lei de que tal ação, o parricídio,
torna-se crime, um tabu. De Acordo com Namba (2018), é
a partir desse assassinato que se tem a ciência dialética de
que algo pode ser e de algo que não é possível ser. Tal qual
o tabu do incesto. O tabu do infanticídio. O tabu de

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atender alguém de sua família, lei denegada pelo
personagem masculino do filme.
De acordo com Silva (2003) há duas maneiras pelo qual
o perverso relaciona-se e fixa-se em seu trato com as
mulheres: “o horror ante essa criatura mutilada ou bem um
triunfante desprezo pela mesma” (SILVA, 2003, p. 126) e
assim, cria-se uma cena masoquista fetichista, repetida
inúmeras vezes no filme, inúmeras vezes na obra de Lars von
Trier: a mulher natural extranormal, arquétipa, mística, e, no
filme escolhido, maléfica, insana, perversa. Nessa cena não
temos uma mulher e um homem, o encontro de dois sujeitos,
mas o embate de um mero homem frente à uma força da
natureza, e que agência teria um simples homem frente à
natureza essencialmente má e feminina? O Homem é
agredido, subjugado, oferecido como sacrifício não por uma
pessoa, mas pelo Anticristo, e a falta no Homem permanece
tamponada frente ao horror do profano.

Considerações Finais

Com o presente texto, buscamos abordar o


mecanismo de defesa da perversão enquanto estrutura na
teoria psicanalítica, diferenciando-a da concepção de
perversão no senso comum, através de um recorte de
leitura específico. E acreditamos que o filme "Anticristo",
de Lars von Trier, é um bom objeto de estudo de caso para
tal objetivo.
Não tínhamos como principal intuito realizar um
diagnóstico dos personagens da película, mas sim ressaltar
a maneira como, no trabalho com a psicanálise, sintomas
não definem a estrutura clínica: a compreensão da posição
do sujeito frente à falta o faz. Tal compreensão se faz
necessária na medida que nos afasta de um olhar
moralizante do sujeito e de sua sexualidade.

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"Anticristo" conta a história de um homem e uma
mulher frente a situações limítrofes: à morte de um filho,
em um primeiro momento, à dessubjetivação total da
mulher, no segundo, culminando na morte da mesma.
Filme duro, difícil, cheio de simbolismos e interpretação. A
partir do recorte de análise apresentado, que não encerra
as possibilidades de outras pesquisas sobre esta película,
buscamos convidar o leitor a um olhar crítico frente ao que
significa ser mulher, ser homem e perversão.

Referências

BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 3. ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
BRAZ, W. A. Anticristo - feminilidade e loucura na obra de
Lars von Trier. Tese (Mestrado em Psicologia) - Instituto de
Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, 2010.
FREUD, S. Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. In:
Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.7 1996a.
FREUD, S. Totem e Tabu. In: Obras psicológicas completas.
Edição Standard Brasileira de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, v.13, 1996b.
FREUD, S. A organização genital infantil. In: Obras
psicológicas completas. Edição Standard Brasileira de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.19 1996c.
FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da diferença
anatômica entre os sexos. In: Obras psicológicas completas.
Edição Standard Brasileira de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, v.19 1996d.

31
FREUD, S. O fetichismo. In: Obras psicológicas completas.
Edição Standard Brasileira de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, v.19 1996e.
LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do
inconsciente (1957-1958). 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LÉVI-STRAUSS, C. As Estruturas Elementares do
Parentesco. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.
NAMBA, J. A proibição do incesto em Lévi-Strauss e Freud:
algumas aproximações. Revista De Antropologia, v. 61, n.1,
p. 176-190, 2018. Disponível em: https://doi.org/
10.11606/2179-0892.ra.2018.145521. Acesso em: 07 out. 2022.
QUEIROZ, E. F. A perversão no feminino. Rev. latinoam.
psicopatol. fundam., São Paulo , v. 5, n. 3, p. 92-108, 2002.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/1415-471420020030
08. Acesso em: 07 out. 2022.
RUFINONI, S. R. Figurações da Mulher no Cinema de Lars
von Trier. Via Atlântica, São Paulo, v. 1, n. 31, p. 285-300,
2017. Disponível em: https://doi.org/10.11606/va.
v0i31.129626. Acesso em: 07 out. 2022.
SILVA, A. D. C. A estátua viva – corpo e temporalidade na
perversão. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo , v.
6, n. 3, p. 120-143, 2003 . Disponível em: https://doi.org/10.1
590/1415-47142003003009. Acesso em: 07 out. 2022.

32
Capítulo 2

TICK, TICK… BOOM: A SUBLIMAÇÃO COMO


EXPLOSÃO E CAMINHO DO DESEJO

George Miguel Thisoteine


Gabriel Câmara Branco
Andre Gellis

Johnny has no guide


Johnny wants to hide
Can he make his mark,
if he gives up his spark?
Johnny can't decide

Introdução

A dessexualização da vida é um fenômeno


sistematicamente promovido pela lógica capitalista.
Começa por dar ênfase para os objetos de desejo
(pulsionais); em seguida os promete com qualidades ideais,
e mais chamativas possíveis em prol de uma suposta
satisfação perfeita que estaria atrelada unicamente a eles;
porém, o que resulta disso é a mesma condição que deu
início: a insatisfação do desejo, ou a parcialidade da
satisfação pulsional (MARCUSE, 1975).
Herbert Marcuse (1975) está debatendo algo que pode
ser visto em diálogo com a proposição do psicanalista
Jacques Lacan acerca do discurso capitalista: “que não faz
laço”. A ideia de que o discurso capitalista não faz laço
social remete a uma falência do desejo, por conseguinte, do
sujeito, que não se sustenta diante dos objetos promovidos

33
pela cultura e que coloca o discurso em um curto-circuito
de ausência de satisfação e subjetividade (SOLER, 2016).
Porém, seria a lógica capitalista detentora de uma
lógica excepcional de organização dos objetos de desejo?
Freud (1996e) enfatiza que é necessário ter cuidado em
pensar que apenas mudando os regimes sociais algo
poderia ser feito efetivamente sobre a insatisfação dos
indivíduos. Porém, ainda em Mal-estar na civilização (1996e)
é sugerida a importância última de ser considerada sobre a
sexualidade de que “é impossível desprezar o ponto até o
qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao
instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-
satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?)
de instintos poderosos” (FREUD, 1996e, p.103-104).
Sobre isso, está o que se diz sobre o destino pulsional,
inevitável para Freud tal qual a dimensão sexual do
inconsciente. Porém, qual a importância da pulsão na vida
sexual humana? Seria possível pensar um lugar comum
entre a repressão e a produção de objetos socialmente
valorizados? Em primeiro, esse trabalho abordará uma
reflexão sobre a relação entre a pulsão e a sublimação, um
de seus destinos possíveis, depois buscará relacionar as
modalidades dessa conjunção em um estudo cinebiográfico.
Joel Birman (1993) aponta que o desejo está atrelado
ao drama pulsional, que o torna impossível de ser
completamente satisfeito, e que é a sina da existência do
sujeito do inconsciente o qual necessita constantemente se
refazer para existir. Essa insistência do sujeito está
orientada pela finalidade (meta) da pulsão, a força
explicativa da vida humana, que em sua origem sempre é
sexual uma vez que a libido, como aponta Freud (1996a), é
a energia pulsional.
Desse modo, para compreender como a pulsão
mobiliza a vida, e mesmo o desejo, Freud (1996c) a

34
organiza em quatro elementos: fonte (Quelle), “processo
somático que ocorre num órgão ou parte do corpo e cuja
excitação é representada na vida mental pela pulsão”
(FREUD, 1996c, p.143); finalidade ou meta (Ziel), “é
sempre satisfação” (FREUD, 1996c, p.142); objeto (Objekt),
“a coisa em relação à qual ou através da qual a pulsão é
capaz de atingir seu objetivo (...) é o que há de mais
variável numa pulsão” (FREUD, 1996c, p. 143); e força ou
pressão (Drang), por fim “seu fator motor, a quantidade
de força ou a medida da exigência de trabalho que ela
apresenta” (FREUD, 1996c, p. 142) .
Como indicado, a pulsão sempre tem origem sexual,
pela natureza da sua energia, porém, ela pode se
manifestar em três formas diferentes: recalque, inversão
(sobre o eu ou o seu oposto) e sublimação. Nesse último
caso, é necessário se considerar, como aponta Garcia-Rosa
(2009), que há um desvio na meta que gera uma
dessexualização do objeto pulsional, ou seja

É o que ocorre quando excitações excessivamente fortes,


que surgem de determinadas fontes sexuais, encontram
uma saída em outros campos que não o sexual. Essa é,
segundo Freud, uma das fontes da criação artística em
particular e da cultura em geral. (p.111)

A sublimação, como destino da pulsão, exibe um


problema levantado por Freud em seu artigo sobre as
pulsões (1996c, p.143), onde ele diz que a “experiência nos
permite também falar de instintos que são ‘inibidos em sua
finalidade’, no caso de processos aos quais se permite
progredir no sentido da satisfação instintual, sendo então
inibidos ou defletidos”. Com isso, é possível compreender
que a sublimação ainda está ligada a sua origem sexual:
somática e psíquica.

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Clarissa Metzger (2019) aponta que é justamente o
caráter sexual da pulsão que produz as formas de
sociabilidade e, acompanhando Freud, que a sublimação
ocuparia desde a infância um papel fundamental na
construção da civilização e dos objetos culturais. Uma vez
que a sublimação é entendida como um elemento
intrínseco à sexualidade, mesmo que dessexualizada em
sua finalidade, novamente como aponta Freud (1996c,
p.111), a “sublimação é um processo que diz respeito à libido
objetal e consiste no fato de o instinto se dirigir no sentido
de uma finalidade diferente e afastada da finalidade da
satisfação sexual; nesse processo, a tônica recai na
deflexão da sexualidade”, qual seriam as consequências
desse modo de destino pulsional para a vida adulta?
Alguns autores (BIRMAN, 1993; GARCIA-ROSA, 2009)
e mesmo Freud (1996b) apontam que a sublimação é
característica da vida dos artistas, mas que a atribuição
dessa explicação para os produtos culturais ou a vida
desses devem ser feitas com ressalvas, pois nada de
conclusivo se pode tirar de um caso no qual não haja
material clínico suficientemente organizado. Ainda assim,
muito pode ser de interesse da psicanálise pensar a
sexualidade dos artistas e mesmo as consequências da
sublimação, uma vez que essas investigações permitem
discutir a validade das hipóteses que se constroem na
prática clínica.
Dois aspectos importantes são enfatizados por Freud
(1996b), ao analisar o caso de Leonardo da Vinci, para
pensar na capacidade de sublimação: 1) a condição de
grande repressão das finalidades sexuais, que permitiria 2)
a sublimação de desejos primitivos. Em consequência disso
estaria proposto a possibilidade de uma forma de
existência mais baseada na sublimação do que na formação
de sintomas neuróticos, histéricos e obsessivos. A

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consequência dessa grande repressão é a possibilidade de
produção de objetos de grande valor social (FREUD, 1996c),
de onde sairia a força de manutenção do destino
sublimatório. Assim, a repressão se mostra de acordo com
o avanço civilizatório como “motor social” e explica por
que mesmo em condições extremas pode produzir mais do
que “doentes nervosos”.
Além de doentes nervosos, Marcuse (1975, p.86)
aponta que “a principal esfera da civilização aparece-nos
como uma esfera de sublimação” por que é o aspecto
moral que primeiro se apresenta na sublimação e é do
mesmo modo que essa moral definirá como podem ser
sublimados os desejos primitivos. Portanto, um fator que
terá duas variáveis: 1) como cada momento histórico
definirá aquilo que é bom e aquilo que pode se tornar um
bem; como também 2) cada indivíduo se constituirá em um
sujeito desejante dadas essas condições históricas.
Assim, para pensar a sublimação como um dos
destinos possíveis na sexualidade humana é fundamental
considerar três aspectos: 1) considerar aquilo que define a
dimensão moral histórica que atinge o indivíduo em sua
forma mais íntima; 2) o que surge inconsciente e, por
consequência, conscientemente que ele necessita reprimir;
3) quais as produções de valor que se destinam como vias
de repetição para a sublimação. Por isso, esse capítulo
escolheu a análise do filme Tick, tick… boom para pensar
nas consequências da sublimação na dimensão social e
sexual do desejo humano.

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Material Analisado

Tipo de Material Filme


Título Original Tick, Tick… Boom!
Nome Traduzido Não há
Gênero Drama
Ano 2021
Local de lançamento e Estados Unidos/Inglês
Idioma original
Duração 1h55min
Direção Lin-Manuel Miranda

O filme Tick tick… Boom! é uma adaptação


cinematográfica do musical de mesmo nome que foi escrito
e produzido inicialmente por Jonathan Larson, compositor
e dramaturgo americano que faleceu em 1996. O filme
coloca músicas que foram escritas para o musical original e
conta a história de Jonathan na semana em que fará 30
anos, semana na qual ele terá a apresentação de seu
primeiro musical, intitulado Superbia.
Durante essa semana, Jonathan se demitiu de seu
trabalho de garçom no restaurante moondance diner,
acreditando que após sua apresentação ele terá o sucesso
que sempre sonhou. Então, é mostrada uma série de
quebras de laços de Jonathan,que focado apenas em seu
trabalho, se distancia de sua namorada e melhor amigo.
A namorada é uma dançarina que ganhou um
trabalho em outra cidade, mas que gostaria de construir
uma vida com Jonathan. Apesar disso, nessa semana, ele
adia a todo momento a conversa com sua parceira, o que
leva a por seu relacionamento de lado até um término
inevitável sem diálogos. O filme, então, caminha na
direção da apresentação do piloto do musical enquanto
Jonathan se esforça para escrever a última música de seu
show e, ao mesmo tempo, negligencia a tudo e a todos,

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acreditando que a apresentação será a solução de todos
os seus problemas.
Porém, ocorre ao mesmo tempo o afastamento com
Michael, seu amigo de infância, que com um novo emprego
e um novo apartamento vive um padrão de vida distante de
sua realidade econômica. O afastamento de Jonathan de
seus amigos leva ele a se perceber completamente só e sem
apoio; e ao mesmo tempo, descobre que seu amigo, um
homem homossexual que vive em conflito devido aos
perigos da epidemia de Aids que ocorre no momento e a
proibição das relações LGBTs naquele momento nos
Estados Unidos da America, precisa dele após descobrir
que têm HIV.
Ao final do filme, o musical não foi o sucesso que
Jonathan esperava, nem o bilhete premiado que garantiria
sua passagem para a fama na Broadway. Então, ele precisa
decidir seguir ou não o caminho de roteirista, que por fim
se dá na decisão de começar a escrever novamente outro
musical, depositando novamente todos os sonhos no
próximo projeto.

Análise Crítica

A análise do material se dará a partir do enfoque na vida


de Jonathan, percorrendo o caminho que a sublimação levou
sua vida, e até sua sexualidade de modo que esta acaba de
lado em prol de uma produção cultural, ou seja, seu musical,
e as consequências disso para suas relações. Para isso, o
enfoque recairá principalmente na fundamentação teórica e
nas músicas, que contam sua história por permitirem uma
alegoria de parte da sua angústia retratada no musical e da
sua relação com a sublimação.
Como visto anteriormente, a sublimação é destino
específico da pulsão, que em alguma medida está ligada

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com uma mudança sobre o objetivo (finalidade) da pulsão,
porém, o que isso quer dizer? Se o objeto da pulsão não é
determinante na sublimação é porque ela está operando
sobre outro aspecto, o sexual, do sujeito do inconsciente.
Dito de outro modo, pode-se pensar que o objeto em jogo
na sublimação é uma atualização de outra coisa que está
sendo operada. Isso se compreende melhor ao retomar o
que Freud enfatiza ao longo de toda sua obra: que a
excitação sexual se transforma em angústia. Ou seja, que a
representação se desliga do afeto pela perda de energia
sexual que ocorre no processo de repressão, mas que no
caso da sublimação se liga à construção de outra
representação e, portanto, de outro objeto dessexualizado.
Nesse sentido, Clarissa Metsgerz (2021) indica que a
sublimação é um processo que está operando sobre um
objeto específico, o das Ding, “ao objeto enquanto perdido
e, portanto, impossível de ser reencontrado (...) [objeto
que] se configure como o vazio em torno do qual o
simbólico se organiza” (p.59). Esse objeto, seria diferente
de quando Freud se referiria ao objeto como die Sache, “à
coisa enquanto produto ou ação humana no campo da
linguagem e, portanto, passível de ser explicitado”
(METZGER, 2021, p.59).
Essa diferença é fundamental para pensar na
operatividade da sublimação e na sua produção de valor.
Em primeiro lugar, se existem dois objetos aos quais a
pulsão se liga, pode-se pensar junto com Jacques Lacan
(2005) que um deles, die Sache, seria resultado de uma
relação imaginária, ou seja, produtos de uma reflexão da
realidade, da consciência, do sujeito. Em segundo, há o
objeto do vazio, das Ding, o qual a pulsão só acessa pela
fantasia, ou seja, de forma indireta. A não relação com esse
segundo objeto, coloca a pulsão em uma posição de maior

40
ou menor fixação, e consequentemente, de satisfação
maior ou menor.
Desse modo, engendra-se o segundo ponto sobre a
sublimação, a questão do valor. Não se trata apenas de uma
questão de algo que possa ser valorizado mercantil ou
financeiramente. Na realidade, os objetos produzidos pelo
capitalismo, possuem inclusive um teor antisublimatório
(SOLER, 2016), pois imaginarizam esse objeto que organiza
o vazio e o simbólico de forma imaginária, o que gera
inevitavelmente frustração – entretanto e diante da
imensidão de objetos oferecidos – e fixação em uma lógica
de consumo. Assim, o valor da sublimação está na criação
de algo que possa relacionar o vazio do objeto perdido com
o vazio de um objeto que possa ser perdido, mas possuidor
de um valor socialmente reconhecível.
Voltando a análise do percurso de Jhonatan, de
antemão, pode-se assumir que ao longo do filme é tratado
um esvaziamento das suas relações, onde ele fica cada vez
mais sozinho. Em outro ponto, é a medida que ele fica cada
vez mais sozinho, sem objetos (pessoas) ao seu convívio,
que justamente ele vai conseguir produzir a última música
de sua peça. Ou seja, um processo que diante de grande
quantidade de angústia, de uma dessexualização da
finalidade da pulsão, leva a uma criação de algo que não
está em relação com os objetos imaginários de Jhonatan. A
partir disso, é possível observar que a sexualidade e
afetividade de Jhonatan poderão ser relacionadas com a
sua produção artística, na medida em que se puder
observar as consequências das relações que ele toma em
prol de sua criação.
As duas primeiras músicas apresentadas, 30/90 e boho
days, servem de contextualização da vida de Jonathan,
apresentando seus laços e sua condição material. A música
30/90 mostra que seu aniversário se aproxima e como isso

41
causa uma sensação de inutilidade de tudo que ele havia
conquistado até ali, com falas como “os anos estão
diminuindo, as rugas do seu rosto estão aumentando” e
“faça outra tentativa, tente outra abordagem antes de
acabar o gás”, mas, em contrapartida, parece haver uma
valorização dos laços, como quando diz “pelo menos vc
nao esta sozinho, seus amigos estão lá também". A música
boho days segue na mesma direção, mas foca mais no
apartamento de Jonathan, um apartamento antigo e
pequeno que tem problemas estruturais, ele traz também
que “o tempo voa, tudo está morrendo. Eu pensei que já
teria um cachorro, um filho e uma esposa. O navio está
afundando, portanto, comecemos a beber antes que
pensemos, é essa a vida?”
Nesse ponto do filme, Jonathan parece valorizar ainda as
pessoas a sua volta, estando rodeados de amigos e
principalmente de sua namorada Susan, que ele achou que já
seria sua esposa a essa altura. Esse ponto, no entanto,
contrasta com a cena seguinte, na qual ele conversa com
Susan e esta diz que arrumou um emprego em outra cidade,
mas que espera uma resposta de Jonathan para aceitar ou
não, ele não responde a questão e deixa Susan em espera.
Embora Jonathan diga que achou que já teria uma esposa e
uma família nesse ponto de sua vida, a pergunta de Susan, que
poderia ser interpretada como o primeiro passo nessa direção,
é deixada em suspenso por Jonathan, não sabendo responder.
Logo à frente no filme, uma outra cena, é quando
Michael, Susan e Jonathan estão assistindo a um musical e
Michael diz “não entendo por que ele não pode dizer que a
ama, por que ele não pode ser um artista e amá-la?”, Susan,
então, olha para Jonathan e ele não percebe, ela diz “mas
ele a ama”, Michael diz “mas ele não consegue expressar”,
Jon “isso é um problema pessoal”, Suzan dá uma risada
olhando para ele. Esse diálogo se aproxima do que é

42
apresentado na próxima música mostrada, johnny can't
decide, que trata desse tema, da percepção de Jon e da
escolha que ele acha que tem de fazer, entre sua produção,
sua carreira como diretor, e sua namorada que quer
construir uma vida ao seu lado.
A música traz falas como “Susan quer viver comigo,
Johnny tem uma decisão difícil a tomar”, “será que ele
pode se fixar sem se afogar?” e “Johnny está imprensado
contra a parede, será que ele consegue adaptar o seu
sonho, como fez seu amigo?”, essa canção marca o ponto
de virada na vida de jonathan, momento de sua indecisão
entre seguir com sua produção, o que implica abrir mão de
alguns de seus laços, ou abraçar a vida ao lado de seus pares
e adaptar o seu sonho a algo menos "glamouroso", mas ele
não consegue se decidir.
Nesse ponto, jonathan descobre que um de seus
amigos que estava internado está piorando, ele fica na
indecisão de ir visitá-lo ou não, pois precisa escrever a
última música de seu show, ele se sente incomodado com
esse pensamento, mas já demonstra que começa e deixar
de lado seus laços em prol de uma produção que seria
socialmente valorizado. Uma próxima música importante é
playgame, que traz o campo que ele quer acessar – o mundo
dos musicais – é muito injusto e subordinado ao capitalismo,
onde o que importa é o lucro e não o conteúdo. Nesse
ponto ele indaga, “é esse o jogo, deve ser loucura querer
jogá-lo. É esse o jogo, por que eu me importo?”. Ou seja,
embora saiba as injustiças e as dificuldades que o
capitalismo impõe nesse campo, ele ainda assim se importa
e quer alcançar o sucesso mesmo que isso custe seus laços
e a vida que Susan que com ele.
Em algumas cenas seguinte, Jonathan explica que seu
musical, sendo

43
uma sátira ambientada no futuro do planeta Terra
envenenado, no qual a maioria dos seres humanos passa
toda a sua vida olhando fixamente para as telas de seus
transmissores de mídia, observando a minúscula elite dos
ricos e poderosos que filmam suas próprias vidas fabulosas
como programas de Tv. Um mundo onde a emoção humana
foi declarada ilegal. Será o primeiro musical escrito para a
geração MTV (grifo nosso).

A própria descrição de seu musical já traz um mundo


no qual seus sentimentos são deixados de lado, em troca
de um sucesso social e cultural grande parte do que torna
o ser humano, é abandonado.
O filme avança e continua mostrando os momentos
em que Susan quer conversar e resolver a situação de seu
emprego, partindo ou não para a nova vida com Jonathan,
mas ele sempre diz que está ocupado demais, que não pode
parar para ter essa conversa. Então, em uma conversa em
que Susan fala que ele pode tirar 10 minutos para resolver
a situação e Jonathan fala “obrigado por apoiar o meu
trabalho” ela diz “ por que você apoia tanto o meu?” ele diz,
“ o que quer dizer?’ ela “o que você acha?”.
Assim, começa a música therapy, que é intercalada
com a conversa entre os dois. Algumas falas interessantes
de Susan são: “você é o artista e eu, a namorada. É assim
que você pensa, certo?”, "não sei como contatá-lo. você me
isola, colocando cercas” e “e se o workshop ocorrer e nada
mudar? nenhum produtor com um cheque, você não vai
para a broadway. ainda será um garçom, vivendo neste
apartamento, ainda duro. E ai, Jonathan? e quanto a mim?”
Essa música mostra o momento em que Jonathan
finalmente abandona a conversa e Susan demonstra que já
sabia que não teria um resultado, falando inclusive que ela
apenas gostaria que ele falasse para ela ficar, para não ir
embora. Esse seria o ponto em que a decisão que antes

44
pairava sobre Jonathan agora não é mais uma indecisão, a
decisão foi tomada, não por ele, mas por Susan, que vai
embora sabendo que Jonathan prefere seu musical a ela.
Mais à frente, Jonathan entra em uma discussão com
Michael, no qual este diz que Jonathan descarta tudo que
ele gostaria de ter, que Jonathan poderia viver com o
amor da sua vida mas ele recusa isso. Tudo isso ocorre
após Michael ter tentado contar algo a Jonathan a algum
tempo, o que é mostrado mais tarde que esse algo é seu
resultado de HIV positivo, mas Jonathan sempre dizia que
não tinha tempo.
A próxima música é a que faltava no musical de John,
que serviria para trazer o protagonista de volta, retomar
sua vida e continuar com sua parceira, o que coincide com
o momento que John está vivendo. John vê Susan
cantando música e ela traz falas como: “Finalmente me
abro, por você eu faria qualquer coisa, mas você abaixou o
volume exatamente quando eu comecei a cantar.” ; “Pense
com clareza, as defesas não são o caminho a seguir e você
sabe, ou pelos menos sabia. Não se lembra quando tudo
começou, éramos só você e eu, éramos só eu e você.” e
“Amor, seja real. Você pode sentir novamente, você não
precisa da melodia de uma caixa de música para entender o
que estou dizendo.”.
Esse é o ponto de virada do filme, trazendo falas que
descrevem o quanto Jonathan se afastou e o quanto a sua
dedicação ao musical o impede de sentir, de manter sua
conexão com seus amigos e com sua namorada, pensando
na poesia da música, ele parou de sentir e só consegue se
comunicar através de sua música.
As duas últimas músicas marcam que Jonathan voltou.
Após uma conversa em que Michael finalmente conta seu
diagnóstico, ele começa a cantar em um anfiteatro a céu
aberto sozinho, sem ninguém na platéia, e reflete sobre seu

45
laço com o amigo e o momento em que decidiu o seu sonho
de cantar e escrever musicais, fato que estava ligado à
Michael desde o início. Ou seja, seu sonho sempre esteve
lado a lado com seu amigo e com seus outros afetos, mas
isso foi deixado de lado na busca por um sucesso que é
determinado por um mundo capitalista no qual apenas
aquilo que é vendido na Broadway pode ser considerado
como válido e bom.
A última música, então, mostra o retorno de Jonathan
para sua banda, se apresentando novamente com seus
amigos e colocando suas dúvidas em forma de música,
trazendo falas como “medo ou amor, querida? não dê a
resposta, ações falam mais alto que palavras.” e “por que
devemos traçar um caminho novo, quando o caminho
batido parece seguro e tão convidativo?”, marcando um
retorno para uma incerteza, mas agora uma incerteza que
o permite caminhar, junto a seus pares.

Considerações Finais

De certo modo, relacionar a sublimação com a


angústia e o sofrimento vivido pelo personagem poderia
parecer contraditório, porém ao compreender que a
sexualidade possui uma função análoga com o que Freud
(1996e) identificou sobre a civilização, quer seja, a busca
por: utilidade e prazer. Desse modo, mesmo diante do
sofrimento vivido, há um grande prazer na criação das
músicas. Todas as relações que Jonathan teve de abrir mão,
se tornam pouco diante da possibilidade de criar um
musical que o leve ao seu desejo.
Pensar na sublimação como um destino da pulsão que
produza desprazer e sofrimento, não a exime de produzir
prazer, o que retorna esse ensaio, mesmo que em um
solavanco, a hipótese central de Além do princípio de prazer

46
(FREUD, 1996d), onde aquilo que produz desprazer,
também produz a sexualidade.

Referências

BIRMAN, J. Ensaios de teoria psicanalítica, I. parte:


metapsicologia, pulsão, linguagem, inconsciente e
sexualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
SOLER, C. O que faz laço? São Paulo: Escuta, 2016.
FREUD, S. Três ensaios para uma teoria da sexualidade. In:
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas
de Sigmund Freud. v. 7, Rio de Janeiro: Imago, 1996a.
FREUD, S. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua
infância. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. v. 11, Rio de Janeiro: Imago,
1996b.
FREUD, S. Pulsão e suas vicissitudes. In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud. v. 14, Rio de Janeiro: Imago, 1996c.
FREUD, S. Para Além do princípio de prazer. In: FREUD, S.
Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. v. 18, Rio de Janeiro: Imago, 1996d.
FREUD, S. Mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud. v. 21, Rio de Janeiro: Imago, 1996e.
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. ed.24, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1975.
METZGER, C. A sublimação. São Paulo: Aller, 2021.

47
48
Capítulo 3

GAROTA INFERNAL: A SEXUALIDADE FEMININA


MAL DITA1

Beatriz Almeida Gabardo Traldi


Wanderson Rodrigues Morais

Introdução

Uma das maiores contribuições da psicanálise foi o


desvelamento do papel da sexualidade na organização
psíquica dos seres humanos. Isso só foi possível a partir da
escuta e da análise de mulheres histéricas e do conteúdo de
sua sexualidade implícito ou explícito naquilo que era
narrado por elas. Paradoxalmente, a sexualidade feminina
foi um tema muito enigmático e pouco desenvolvido nos
primórdios da psicanálise. Sendo este, ainda hoje,
promotor de grandes discussões na área.
Em sua releitura de Freud, Lacan introduz uma
perspectiva completamente modificada da teoria da
sexualidade, bastante extensa, complexa e que não
objetivamos em esgotá-la aqui. Para ele o significante
mestre, S1, é o significante do gozo fálico que determina a
castração ao enunciar as proibições do incesto. O pai real,
operador estrutural e não uma pessoa em si, passa a pai
simbólico na medida que encarna a lei da proibição do
incesto. Logo, a castração implica em renunciar a uma
parcela de gozo. Portanto, o sujeito, independente do sexo
biológico, se confronta com a castração e com a falta no

1Gostaríamos de agradecer as agências de fomento à pesquisa FAPESP


e CAPES.

49
Outro que inscreve no sujeito a sua própria divisão (LACAN,
1969-1970/1992; DIAS, 2008).
Essa perda primordial oriunda da castração
circunscreve uma falta que é a mola do desejo do sujeito do
inconsciente. A relação castração, falta e desejo elege o falo
enquanto significante desta falta, que é dialeticamente o
nome próprio e pronunciável ao passo que é causa indizível
de tal desejo (DIAS, 2008).
Desta maneira, o falo é elevado a condição de
significante, sem nenhuma relação com nenhum órgão, que
simboliza o lado homem, enquanto em relação à mulher, o
registro simbólico carece de material possível para tal
simbolização. Neste sentido, independente da condição
biológica cromossômica (XX ou XY), os seres falantes se
situam em um dos dois polos da sexuação, homem ou
mulher (LACAN 1972-1973/1993; POLI, 2007).
O homem então é aquele circunscrito à função fálica,
limitado a um gozo fálico e finito em relação ao simbólico.
Já do lado da mulher, apesar de alienada ao significante, ela
não é completamente balizada pela função fálica, a falta de
um significante sexual a coloca como não toda frente ao
assujeitamento da ordem simbólica. Desta forma, a mulher
experimenta tanto o gozo fálico, portanto limitado, quanto
um gozo suplementar, que é infinito, sem limites, fora do
registro do simbólico, tocando o inominável: o real (LACAN
1972-1973/1993; POLI, 2007; DIAS, 2008).
Como já apontado por Freud e ressaltado por Lacan, o
artista sempre precede o psicanalista, desbravando-lhe o
caminho (LACAN, 1965/2003). O inominável do gozo
feminino tem sido metaforizado, ou seja, enquanto
produção de sentidos a partir do “não senso” (LACAN, 1966,
p. 512), em criações artísticas das mais diversas formas.
Entretanto, decidimos por direcionar nosso olhar para as
produções cinematográficas dos filmes de terror, onde a

50
representação da sexualidade feminina é um tema
amplamente trabalhado.
O cinema de horror teve ser início no século XX, os
monstros, personagens que ocupam as produções deste
gênero, são seres antinaturais, violam as estruturadas
ordenadas sociais. São as personificações de medos e
ameaças particulares de uma sociedade. Os monstros são
antagonistas que possuem uma ressonância psicossocial
com seus espectadores, sendo assim, o tipo, forma e
composição de tais monstros do cinema de horror vão
modificando de acordo com sua época e com a sociedade
que os assiste (LAROCCA, 2016; LAROCCA 2018).
O horror cinematográfico vem sendo objeto de estudo
em diversas áreas como Filosofia, Psicologia, História e
Comunicação Social. Estes estudos apontam que este
gênero possui grande impacto, pois captura e representa
nos filmes inseguranças, medos e temores culturais
coletivos. Os filmes de terror afetam e causam grande
repercussão social, movimentando a indústria
cinematográfica financeiramente e socialmente com uma
legião de fãs (LAROCCA, 2016; ACOSTA-JIMENEZ, 2018).
Ademais, essas produções são objetos de estudos pois
carregam práticas políticas e culturais do horizonte
histórico em que foram produzidas. Apesar disso, as
produções cinematográficas do cinema de horror muitas
vezes são interpretadas e consideradas como mero
entretenimento, sem validade artística e cultural, sendo por
vezes consideradas obras de mau gosto. Ou seja, o cinema
de horror é mal dito apesar de seu impacto e sua
importância (LAROCCA, 2016).
A revolução sexual dos anos 60 e 70 deixaram marcas
no gênero do horror. Os filmes a partir dessa época
passaram a trazer em suas tramas as possibilidades e os
conflitos da libertação sexual. A sexualidade, o erotismo, o

51
corpo feminino, a sexualidade feminina e as ansiedades
frente aos novos papeis sociais desempenhados pelas
mulheres reverberaram e fizeram sua marcação nas
produções daquela época, assim como nos filmes mais
atuais (LAROCCA, 2016).
A partir disso, compreendemos que o filme se coloca
como um encontro de distintas materialidades, como a
imagem, o som e o texto. O trabalho analítico que se volta
ao mecanismo de produção de efeitos de sentidos
demanda perspectivas multifacetadas, que reconheçam
suas especificidades e forneçam gestos de leitura que
busquem compreender o estabelecimento de relações
significativas entre os variados elementos significantes
(LAGAZZI, 2009). Dessa forma, encontramos possibilidades
de trabalho a partir dos estudos de Suzy Lagazzi, acerca de
materialidades significantes.
Assim, a relação entre as distintas materialidades
significantes e a história, pode ser compreendido como um
discurso. Trabalhar com recortes heterogêneos impõe a
consideração da noção de composição (LAGAZZI, 2010), em
que imagem, som e texto relacionam-se derivando sentidos
na incompletude constitutiva da linguagem e suas distintas
formas materiais. Dessa forma, ao nos voltarmos sobre o
filme procurando analisá-lo, nosso gesto se faz no sentido
de considerá-lo como um discurso inscrito na história, cuja
produção de efeito de sentidos surge dessa imbricação de
sobreposições.
Temos nos voltado à dimensão do dito quando
destacamos o texto e a palavra. Mas o silêncio é a iminência
do sentido (ORLANDI, 2007), e assim, é indispensável
reconhecer a esfera do não dito, e em decorrência disso, do
mal dito (FATIMA, 2020) no processo constitutivo dos
efeitos de sentidos. Compreendemos que há “[...] um ritmo
no significar que supõe o movimento entre o silêncio e

52
linguagem” (ORLANDI, 2007, p. 25), e assim, há um
processo de produção de efeito de sentidos silenciados, no
qual ao se dizer uma palavra, apaga-se outras. No entanto,
sendo o silêncio fundador, se o reprime de um lado,
explode-se de sentidos em outro, podendo vir a significar
em outras materialidades, revelando sua natureza
constitutiva.
A partir de leituras de Orlandi (2007), Fatima (2020)
propõe o conceito de mal dito, como algo que foge ao dito
e ao não dito em sua relação de produção de efeitos de
sentidos. Assim, “diz-se de um certo modo, e ao dizer
apaga-se que tal dizer está em relação com a história e com
o sujeito” (FATIMA, 2020, p. 119), ou seja, direciona-se um
sentido para determinado lado, que não aquele em que se
considera a relação do dizer em sua historicidade. Para
ilustrar sua proposição, Fatima (2020) analisa sequências
discursivas em um jornal evangélico a respeito da
sexualidade, em que por um efeito metafórico a
bissexualidade é mal dita, sendo referida por expressões
como “orgias com homens e mulheres” e negativada ao ser
associada com “aborto”, “sexo com animais” e “relação
com traficantes”. Aponta-se o sentido em outro rumo,
estilhaçando sua relação com a história em um processo
cínico que advoga a respeito da diferença e contra o
preconceito.
A partir do exposto, este trabalho tem como objetivo
analisar a produção de efeitos de sentidos sobre a
sexualidade em um filme de terror que julgamos atender à
temática da sexualidade feminina. Buscaremos realizar
nossas análises considerando as materialidades discursivas
em sobreposições da dimensão do dito, do não dito e do
mal dito, buscando traçar compreensões sobre a temática
a partir da perspectiva da psicanálise.

53
Material Analisado

Tipo de Material Filme


Título Original Jennifer’s Body
Nome Traduzido Garota Infernal
Gênero (terror/comédia)
Ano 2009
Local de lançamento e Estados Unidos, inglês
Idioma original
Duração 1h47min
Direção Karyn Kusama

A trama de Garota Infernal (2009) se desenvolve na


cidade de Devil’s Kettle, Minnesota, a partir de
acontecimentos sinistros envolvendo mortes de alunos do
colegial e a fama ascendente de uma banda indie. A história
é narrada por Needy, que é apresentada logo no início do
filme em regime carcerário, como forma de epílogo ao
desenrolar do enredo.
Como personagens centrais do filme, estrelam a já
referida Needy, seu namorado Chip, e sua melhor amiga,
Jennifer, ambas protagonistas 2 . Tudo aparentemente
caminhava bem até que as duas amigas vão à um show da
banda Low Shoulder, iniciante, em um bar afastado da
cidade. Após um incêndio no local causar uma série de
mortes, Jennifer é levada pela banda numa van, deixando
Needy aflita sobre seu paradeiro. Mais tarde na mesma
noite, Jennifer aparece na casa de sua amiga toda
ensanguentada e com um comportamento bem estranho,
assustando Needy, fugindo imediatamente. No dia
seguinte, Jennifer aparece na escola como se nada tivesse

2 Conforme pode ser lido na entrevista da première em Toronto,


disponível em: https://www.reuters.com/article/us-toronto-cody-idINTR
E58C0ZI20090914 . Acesso em 19 ago. 2022.

54
acontecido, mas esse é apenas o início de uma série de
mortes aos alunos homens da escola.
A partir dos acontecimentos sombrios, mas com uma
pitada de humor, descobrimos que Jennifer fora feita de
sacrifício em um ritual satânico pela banda indie, como
forma de obterem fama e sucesso. No entanto, algo dá
errado e Jennifer volta dos mortos. Needy passa a
questionar suas relações com a amiga, culminando com um
ataque de Jennifer à Chip. O filme procede à conclusão com
o fim da amizade entre as duas, Jennifer sendo libertada da
maldição e Needy sendo presa, voltando as cenas iniciais.
Mas a história não se encerra aí: Needy consegue pôr um
fim aos responsáveis pela tragédia.

Análise Crítica

O início de nossas análises sobre o filme Garota


Infernal (2009) se dá após algumas cenas do epílogo
narrado pela personagem Needy, descrito anteriormente.
Na cena que se inicia a partir dos 5m30s, nos é contado
como a vida dos personagens centrais da trama era normal,
como a de qualquer outro estudante da época. Nosso
primeiro recorte se faz nas cenas que tem início em 6m15s,
em que ocorrem dois eventos importantes que dizem
respeito à sexualidade: Em um primeiro momento,
presenciamos a seguinte conversa entre Needy e outra
estudante:

[Aluna 1] You’re totally lesbi-gay.


[Needy] What? She’s my best friend.

Nesse momento, as personagens estão assistindo uma


apresentação das garotas da torcida para um jogo de
futebol. Needy se encontra na arquibancada, junto à
referida estudante, e Jennifer está dançando. As duas

55
cruzam olhares e se cumprimentam. Após o diálogo mais
acima descrito, a Aluna1 debocha do gesto de saudação de
Needy à Jennifer. Apesar de escapar a dimensão do dito, o
comentário da Aluna1 associado ao seu comportamento de
reprovação, produz um efeito de desaprovação quanto à
uma suposta orientação homossexual. Detalhe que ao
enunciar “lesbi-gay” nomeia-se apenas duas orientações do
espectro da sexualidade, excluindo-se, por exemplo, a
bissexualidade. Voltaremos nesse ponto mais adiante.
Mas outro evento ocorre nessa mesma cena: Ao fundo
do cenário e sobrepondo-se ao diálogo das personagens, é
tocada uma canção repetindo a seguinte sequência: “You
are the girl that I've been dreaming of ever since I was a
little girl3”, enquadrando os olhares de Needy à Jennifer. A
sobreposição das imagens e som em um primeiro momento
passa despercebida, mas a escolha da canção não é trivial:
Ao longo do filme nos é contado que Needy e Jennifer são
amigas de infância e cresceram juntas, sendo recorrente
cenas de duas crianças ao longo do filme. Com o desenrolar
do enredo, tomamos ciência de um afeto/desejo silenciado
de Needy a sua melhor amiga.
É uma composição interessante pois contrasta o dito
de reprovação de qualquer orientação fora a heterossexual,
e o enquadro da canção e os olhares entrecruzados entre
as duas protagonistas. Além disso, o trecho da música em
análise não tem sujeito, isto é, não enuncia de onde parte,
sendo aplicável a qualquer um. A elipse joga com o sentido
aqui, provoca aberturas no enunciado deixando-o aberto.
Mais adiante no filme, tomamos ciência dos planos da
banda indie Low Shoulder de fazer um sacrífico ritualístico
a Satan como forma de se tornarem famosos, sendo
necessário como oferenda uma mulher virgem. Apesar da

3Trecho da canção “I’m not gonna teach your boyfriend how to dance
with you” de Black Kids.

56
própria Jennifer afirmar que não é mais virgem em uma
conversa com Needy, na cena que tem início em 1h02m é
exibido o seguinte diálogo entre a protagonista, feita refém,
e os músicos:

[Jennifer] Are you guys rapists?


[Músico1] Oh god I hate girls.
[Músico2] Are you sure if she is fucking virgin, man?
[Jennifer] Yes. Yes, I’m a virgin, I’m a virgin. I’ve never even
done sex. I don’t know how. So you guys should find
somebody who does… Know how.

Jennifer é levada até uma floresta e assassinada como


oferenda em troca de fama e sucesso. Porém, não sendo
uma virgem conforme requerido, o ritual se fratura: a banda
indie passa a ser reconhecida e ganha um espaço crescente
no mundo do filme, mas Jennifer retorna dos mortos
transformada. Needy ao saber do que houve com a amiga,
começa a investigar sobre rituais e ocultismo, encontrando
uma explicação “[...] If the human sacrifice is impure, the
result may still be attained, but a demon will forever reside the
soul of the victim. She must forever feed on flesh to sustain the
demon” (KUSAMA, 2009, 1h15m35s-42s).
A partir da sobreposição das cenas descritas e do
diálogo, é possível afirmar, por um efeito metafórico que o
enredo coloca em construção, que a mulher que tem uma
vida sexual ativa é impura. A composição das cenas produz
efeitos de sentidos que apontam que a possessão
demoníaca só ocorre quando o sacrifício é impuro, e aqui a
impureza se traduz na mulher que não é mais virgem. A
sexualidade feminidade é barrada pelo discurso religioso, a
sexualidade é mal dita.
Por ser impura, isto é, por praticar sua sexualidade,
Jennifer é possuída pelo Diabo. Um diabo que lhe concede
força, beleza e encanto a troco de que devore a carne

57
humana para sustentá-lo. Jennifer literalmente devora os
homens no filme, mas comer da carne também pode ser
uma metáfora do ato sexual. Em vão Jennifer tenta se
salvar dos músicos, adotando um discurso ingênuo: Se
afirma virgem e impossibilitada de atender à suposta
demanda de sexo, sugerindo que alguém experiente tome
seu lugar. Outra composição interessante se constrói nessa
mesma cena, em que uma canção se sobrepõe às vozes da
vítima e seus assassinos: “[...] Teach the mean girls how to
be feared, And turn the weak ones into servants, You can’t be
satisfied, you just want what you can’t have 4 ”. Jennifer é
transformada pelo ritual à busca de algo que (eternamente)
não pode ter.
Escolhemos mais um conjunto de recortes que
produzem efeitos de sentidos sobre a sexualidade feminina.
Momentos antes de saber o que ocorrera com a melhor
amiga, Needy e Chip tentam ter a primeira relação sexual.
As cenas se tornam um conjunto de sobreposições entre
Jennifer e sua próxima vítima, e o casal praticando o ato. O
jogo de imagens entre comer a carne (da vítima) e prática
do ato sexual (pelos namorados) funciona como um efeito
parafrástico anteriormente comentado. A intensidade é
tanta, que Needy passa a sentir e ver imagens de sangue e
corpos mutilados, interrompendo o ato, deixando Chip na
mão e voltando para casa assustada. A sequência de cenas
que se coloca é ainda mais interessante.
Needy ao chegar em casa se depara com Jennifer em
sua cama. Após alguma resistência, ambas se beijam em
uma cena calorosa, para além de Needy e seu namorado.
Após Jennifer contar sobre o que passou, Needy a manda
embora e recebe em resposta: “We can play boyfriend-
girlfriend like we used to” (KUSAMA, 2009, 1h10m).

4 Trecho da canção “FInishing School” de Dashboard Confessional.

58
Considerando as cenas anteriores e a frase de Jeniffer, é
possível afirmar que há um dito sobre como é ou deve ser a
sexualidade: um homem e uma mulher.
No início de nossas análises, trouxemos a ocorrência
da expressão “lesbi-gay” ao se referir à Needy. Como o
filme se trata de uma sobreposição de camadas que
imbricam distintas materialidades, como sons, imagens e
dizeres, compreendemos aí um jogo de mal-dito: A
bissexualidade é interditada na palavra, se mostrando, no
entanto, pelo negativo. Alguns exemplos: O sexo
interrompido com o namorado; o beijo envolvente com a
melhor amiga; o comentário fóbico de um outro; uma
possível relação entre dois iguais somente à partir do
binário homem-mulher.
Por fim, cabe dizer sobre o próprio nome de uma das
personagens: Needy. Needy, apesar de ser nome próprio,
na língua inglesa também pode ser traduzido como
“carente”. É possível perguntar: “Is Needy, needy?”. Do
que Needy é carente? A sexualidade feminina ao longo do
filme é colocada manca, faltante e má desenvolvida... Em
outras palavras, carente. Por um silenciamento do que é
dito, há uma produção de efeitos de sentidos sobre um mal
dito das relações sexuais da mulher: Se ocorre, é impuro.
Quando ocorre, carece de algo. Assim, a sexualidade
feminina se inscreve negativamente, não havendo lugar
para a diversidade, sendo colocado como digna apenas do
próprio diabo.

Considerações Finais

A partir das análises desenvolvidas sobre o filme, é


possível traçar algumas reflexões. Conforme afirma Diablo
Cody, escritora da obra, o princípio do filme era subverter o
horror clássico de mulheres sendo aterrorizadas, de contar

59
histórias sob uma perspectiva feminina (KWAN, 2009).
Compreendemos que o horror se apresenta aqui em duas
camadas: uma mais superficial, ao nível do dito e do visto,
isto é, o sinistro, a mutilação, a morte. E outra menos
evidente, ao nível do não dito e do mal dito, o horror (de
viver a) da sexualidade feminina.
A cultura ocidental influenciada por uma tradição
antifeminista associada às doutrinas cristãs conserva um
corolário de ideias da união do mal com o feminino. A
representação da sexualidade feminina é apresentada a
partir da associação do corpo e da sexualidade feminina
com o maligno (LAROCCA, 2018). A representação da
sexualidade feminina aqui destacada nesses recortes é
herdeira das representações cinematográficas do cinema
de horror.
O estereótipo do qual a personagem de Jennifer faz
parte vai de encontro com o que se tem analisado em
outras obras. A sexualidade de Jennifer e de Needy, pós
transformação, representam o medo das estruturas
masculinas de poder, pois estas personagens subvertem a
hierarquia tradicional dos gêneros ao subjugar homens
transformando-os em servos e amantes (LAROCCA, 2018)
ou enquanto aquilo que elas matam e se alimentam.
O filme joga nas dimensões do dito, não dito e mal dito
imbricando efeitos metafóricos e parafrásticos por meio de
composições de imagem, som e enunciado; no qual se
coloca uma produção de efeitos de sentidos que atinge
variados públicos se voltando à dimensão da sexualidade.
Tal jogo permite que se trate, por exemplo, do ato sexual
metaforizado em comer da carne. Mas esse é posto no
papel da impura, a que foi possuída pelo Diabo.
A questão corpo tem papel importante no cinema de
horror, e o corpo feminino mais ainda. A construção do
ideário da mulher enquanto entidade maligna também é

60
remetida às diferenças corporais. O corpo feminino é
sempre visto enquanto faltoso em relação ao corpo
masculino, ao passo que também excede em beleza e
tentação. A capacidade feminina fisiológica de gerar filhos
e a própria menstruação adiciona mais uma camada de
perigo e mistério que ronda o corpo feminino. São
incontáveis os exemplos de personagens femininas que
condensam esses estereótipos, como: Circe, Medéia, e as
bruxas em geral. (LAROCCA, 2016; KAMITA, 2017; LAROCCA,
2018). No filme aqui analisado o corpo feminino é sua maior
arma, sendo através dele que ela atrai suas vítimas.
Reforçando assim o que se vê nas análises da literatura,
personagens como Jennifer servem de alerta para o perigo
da sexualidade e do feminino encarnado em um corpo
sedutor e destruidor.
Percebemos que sexualidade também é posta como
faltante (needy?), uma vez que se joga no campo do desejo
mal compreendido e interditado: não é possível a
bissexualidade, sendo referido apenas o binário: “we can
play boyfriend-girlfriend like we used to”, sendo o homem
e a mulher apenas como pontos de referência do que seria
aceitável e funcional.
Compreendemos assim, um horror (d)à sexualidade
feminina que se apresenta a partir daquilo que é impossível
de se inscrever no simbólico, como observado no gozo
feminino não restrito a função fálica. Lemos que o horror
da sexualidade de Jennifer e Needy é sempre mal dita, pois
é aquilo que escapa a simbolização do gozo não todo
feminino.
O uso que Jennifer faz, metaforicamente, dos homens
que ela come, parece apontar para a parceria que a mulher
(enquanto aquele não subjugado à função fálica) faz com o
falo, significante do gozo fálico, do qual tem acesso por
meio de um homem (aquele subjugado à função fálica).

61
Desta forma, em uma camada mais profunda no jogo do
que é dito, não dito e mal dito nesta produção
cinematográfica, subjaz o horror da proximidade com o real
presente na condição da mulher. O filme parece jogar com
o horror que invade os seres de linguagem todo momento
que este se aproxima daquilo que não cessa de não se
inscrever na linguagem: o mal dito da sexualidade feminina
naquilo impossível de se dizer do real.

Referências

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64
Capítulo 4

PLEASURE: O OLHAR FEMININO SOBRE A


INDÚSTRIA DA PORNOGRAFIA

Danilo Silva Nakashima

Introdução

Em uma pesquisa divulgada no final de 2022 um dos


maiores sites de pornografia do mundo, o Pornhub,
publicou um balanço dos seus conteúdos mais acessados e
buscados em sua plataforma. Segundo o site, o Brasil ocupa
a 10ª posição em um ranking dos top 20 que mais
consomem os conteúdos de entretenimento adulto. Os
três primeiros lugares são ocupados por Estados Unidos,
Reino Unido e França, respectivamente. Em termos de
América Latina, o Brasil fica atrás apenas do México. A
idade média dos visitantes brasileiros ao site apontou que
41% tem idades entre 18 e 24 anos1.
O termo “hentai”2 destaca-se como o mais procurado
no mundo e no Brasil, seguido por “milf” 3 , “anal” e
“lésbica”. O termo “Transgênero” foi a categoria mais
buscada e mais vista pelos brasileiros, à frente de “lésbica”
e “brasileira”. Conforme a plataforma, “transgênero” é a

1PORNHUB. The year in Review, 2022. Disponível em: <https://www.porn


hub.com/insights/2022-year-in-review>. Acesso em: 4 de fev. de 2023.
2 Termo em japonês que faz referência a animações ou a quadrinhos

japoneses com temática de sexo explícito.


3 Acrônimo de Mother I’d Like to Fuck (“Mãe eu gostaria de foder”).

Refere-se a um subgênero pornográfico com mulheres mais velhas


tendo relações sexuais com parceiros mais jovens.

65
categoria que teve 75% de aumento nas buscas, tornando-
se a sétima mais popular do mundo.
Esse dado é surpreendente quando constatamos viver
no país que mais assassina trans e travestis no mundo. O
dossiê da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e
Transexuais), publicado em janeiro de 2023, divulgou que
130 mulheres trans e travestis foram assassinadas em 20224.
O número é mais que o dobro do segundo colocado,
México, com 56 mortes, e Estados Unidos, com 51
assassinatos. O que esses dados parecem nos dizer? Como
pensar a correlação entre o país que mais consome
conteúdo pornográfico trans e o assassinato alarmante
dessa população em nosso território?
Para além dos casos de violência, os relatos de vício em
pornografia vêm crescendo anualmente, sobretudo após o
fim do período de isolamento em função da pandemia de
Covid-19. A insidiosa presença da pornografia manifesta-se
em nosso cotidiano e nas formas de seu consumo para além
das formas imediatas e privadas de prazer individual. Sua
presença tem impactos e consequências diretas no
cotidiano (relações sociais, educação, trabalho, lazer). Qual
a relação da indústria da pornografia com alguns desses
números ou constatações?
Tomando como base a película Pleasure (2021),
pretendo articular como a obra dialoga e problematiza as
formas simbólicas de perpetuação do androcentrismo e sua
conexão com a indústria da pornografia. A tese sobre a
dominação masculina de Pierre Bourdieu (1998), as
reflexões da psicanalista Maria Rita Kehl (2004) e da crítica
britânica Laura Mulvey (1983) servirão de base para

4 BENEVIDES, B. G. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e


transexuais brasileiras em 2022. Disponível em: <https://antrabrasil.
files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf>. Acesso em: 4 de fev.
de 2023.

66
problematizar a dominação masculina e a sua reprodução
na indústria cinematográfica pornô.
Um primeiro aspecto a ser pensado é o atual
movimento global de denúncia de casos de assédio e abuso
no mercado da comunicação. Uma série de depoimentos
corajosos e exposições públicas a respeito de assédio e
violência sexual têm vindo à tona. Mesmo Hollywood teve
que lidar com as suas consequências envolvendo o ex-
produtor Harvey Weinstein, condenado por abusos
sexuais5. A forte repercussão do caso ganhou destaque na
mídia e gerou o movimento Me Too (#MeToo)6. Além dos
inquéritos, os estúdios tiveram que organizar compliances
para lidar com esses casos, além da contratação de
profissionais responsáveis por supervisionar cenas de
intimidade entre atores e garantir o respeito às condições
de consentimento.
No nosso país, muitas outras denúncias chegaram ao
nosso conhecimento por meio da imprensa, incluindo a
própria Rede Globo que precisou lidar com um caso
semelhante envolvendo Marcius Melhen7.
Nesse tsunami de denúncias, a indústria pornográfica
parece surfar tranquilamente. Chama-nos a atenção a
sobrevivência e a intocabilidade desse mercado ao longo
dos anos. Ainda que haja reações e denúncias ao modelo de

5 Harvey Weinstein responde por onze acusações de estupro e agressão


sexual. Atualmente cumpre pena em Nova York.
6 A hashtag tornou-se viral após um twitter da atriz Alyssa Milano. Em

sua conta ela sugeriu que mulheres que haviam passado por situações
de abuso sexual ou assédio respondessem usando a hashtag #MeToo
(“Eu também”). Em pouco tempo, milhares de denúncias inundaram a
rede, tendo como uma das principais consequências a acusação e a
investigação de homens ligadas à indústria do entretenimento
americano.
7 Ex-diretor da Globo foi acusado de assédio sexual por mulheres no final

de 2020. O caso ainda está em investigação.

67
negócio das companhias e produtoras, nada parece abalar
as suas estruturas e os alicerces produtivos e econômicos
desse grande negócio que é a pornografia.
Obviamente há formas de silenciamento, sobretudo
quando o campo da discussão a respeito da indústria
pornográfica é permeado por uma suposta ideia de ser
“consensual” e de estar “no contrato” devidamente
assinado pelas atrizes e atores. Sob a norma jurídica do
“consentimento” e nas condições das letras minúsculas
dos contratos, camufla-se as relações de abuso nos sets,
onde a masculinidade tóxica se faz onipresente. A ex-atriz
Mia Khalifa, em entrevista à BBC Londres, comentou a
respeito do tema:

BBC – Você diz que o conceito de consentimento não faz


sentido na dinâmica do poder entre os homens que
controlam a indústria pornográfica e uma jovem atriz de 21
anos [à época] como você.
Khalifa – Quando há quatro produtores homens brancos na
sala e você diz, por exemplo, alguma coisa nesse sentido a
eles [sobre consentimento] e todos começam a rir é horrível.
Você não quer mais abrir a boca. É a mesma coisa quando
você assina o contrato: você conhece os executivos, eles
estão
na sala esperando que você leia e assine, e você não
entende nada do que está escrito, porque você está muito
nervosa8.

Em um caso recente no Brasil, uma contaminação de


HIV entre atores e atrizes alarmou a indústria nacional e
tomou certa proporção na mídia9. A contaminação ocorreu

8HARDTALK. Mia Khalifa: Former adult actress. BBC, 2019. Disponível em:
<https://www.bbc.co.uk/sounds/play/w3csy985>. Acesso em: 4 de fev.
de 2023.
9 FELTRIN, Ricardo. Casos de HIV positivo paralisam a indústria pornô do

país, avessa à camisinha. Folha de S. Paulo, 2022. Disponível em:

68
por conta de cenas sem o uso de preservativos. Tais cenas
são mais valorizadas na hora da venda do produto,
conforme a fala de um CEO da indústria: “[…] ninguém
compra lá fora se tiver camisinha. Essa prática ocorre não
só no Brasil, mas na produção de filmes eróticos em todo o
mundo”10. Como pensar em consentimento se o imperativo
do mercado é quem dita as regras de atuação e
comercialização das cenas?
O caso levantou questões a respeito dos protocolos de
saúde e da segurança dos atores e atrizes, entretanto não
vimos nenhum movimento de condenação, prejuízos ou
abalos nas estruturas fundamentais.
Diante desse cenário estamos frente a uma indústria
do entretenimento fortemente enraizada na própria lógica
do capital, no qual as sucessivas crises não a enfraquece,
mas sim a fortalece. Para se ter a noção em números, a
indústria pornográfica mundial vale por volta de 4.9 bilhões
de dólares. Somente nos Estados Unidos essa mesma
indústria arrecada 2.84 bilhões de dólares 11 . Mesmo em
menor escala de valores, a pornografia caseira tem crescido,
sobretudo pelo barateamento de equipamentos multimídia
e suas formas de distribuição pela internet.
A lógica do follow the money leva à concentração
desse dinheiro nas mãos de grandes conglomerados com
forte lobby no mercado, escancarando um negócio
bastante rentável e de difícil controle.

<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/02/casos-de-hiv-positivo-
paralisam-industria-porno-do-pais-avessa-a-camisinha.shtml>. Acesso
em: 4 de fev. de 2023.
10 Ibid.
11 TORRES, Juliana. Indústria do entretenimento adulto supera sites

como CNN, Netflix e outros, 2022. Disponível em: < https://


respostas.sebrae.com.br/industria-do-entretenimento-adulto-supera-
sites-como-cnn-netflix-e-outros/>. Acesso em: 4 de fev. de 2023.

69
Material Analisado

Tipo de Material Filme


Título Original Pleasure
Nome Traduzido Não há
Gênero Drama
Ano 2021
Local de lançamento e Suécia, Países Baixos e França,
Idioma original inglês e sueco
Duração 1h49min
Direção Ninja Thyberg

Em Pleasure acompanhamos a vida de Linnéa


(doravante Bella), sueca de 19 anos, cujo nome artístico é
Bella Cherry, em Los Angeles. Seu desejo é se tornar a
próxima estrela pornô. Seu motivo “oficial” para estar na
cidade é fazer um estágio, conforme ficamos sabendo no
seu diálogo com a mãe por telefone. Entretanto, não há a
exploração de uma motivação mais clara. A obra conta com
atrizes, atores e produtores do próporo ramo da
pornografia, além de uma atriz protagonista estreante,
Sofia Kappel.
A obra utiliza-se de uma linguagem que transita entre
a ficção e o documentário. As tomadas usadas pela diretora
destacam uma série de elementos pouco usuais que vão
quebrando o imaginário das produções desse gênero. No
lugar dos gritos de êxtase, dos gozos, dos homens e das
mulheres em frenesi, surgem os testes de doenças
infecciosas, o distanciamento dos atores, a falsa sensação
de consentimento, os exercícios nada estimulantes para
dilatação da região anal, duchas, protocolos de limpeza e a
impotência fálica masculina que precisa ser maquiada por
meio de substâncias que estimulam a ereção.
As tomadas utilizadas dão um tom documental à obra,
como se a diretora fosse uma insider filmando as filmagens.

70
Uma linguagem metalinguística do próprio fazer do cinema.
Essa perspectiva traz um frescor para o gênero que outros
longas de mesma temática não lograram em transmitir,
como por exemplo, Boogie Nights: Prazer sem limites (1997)
e Lovelace (2013)

Análise Crítica

I.

Bella vem de um país desenvolvido (Suécia) e não está


pressionada por razões econômicas ou qualquer outro tipo
de trauma ou enrascada para se meter na indústria
pornográfica. A Suécia conta com um dos melhores
sistemas de educação, assim como a possibilidade de uma
vida razoavelmente segura financeiramente. Bella,
portanto, não tem motivações mais urgentes para estar no
ramo. A protagonista não esconde nenhuma razão
“profunda” ou “traumática” para se aventurar na indústria.
Não há vitimização e/ou maniqueísmo de seus
protagonistas e antagonistas.
Ainda que possam existir figuras inescrupulosas, a
película de Thyberg não foca nisso. Há uma cena em que
essa questão é posta em destaque quando um dos
produtores pergunta a Bella:

Produtor: O que está fazendo aqui afinal? Está muito longe de


casa.
Bella: Tipo, de verdade?
Produtor: Sim.
Bella: Meu pai me estuprou quando eu era criança, e acho que
não posso…
Produtor: Não tem graça…
[risadas]

71
Produtor: Todos pensam: “Todas elas têm problemas com o
pai!”, mas isso não é verdade, então…
Bella: Só estou aqui porque quero foder! E tipo… Não, eu
estou aqui porque os suecos são um saco! São entediantes.
Tipo eles gostam de sentir pena de si mesmos…

Mesmo uma garota com possibilidades educacionais e


financeiras pode entrar na indústria pornográfica
simplesmente por querer. E o querer é um dos aspectos
mais explorado no filme, visto que todos os abusos sofridos
pela protagonista são justificados pelos seus abusadores
que fazem questão de frisar e lembrá-la de sua vontade e
do seu consentimento.
Nesses termos, a quebra de expectativa de Pleasure
nos deixa atento para ver até onde a diretora quer nos
conduzir. As poucas motivações de Bella que o filme
minimamente explicita é dela se provar boa o suficiente, ter
acesso a maior quantidade de trabalhos, seguidores e fama.
Sonhos razoáveis para maioria de nós, com a diferença de
que poucos estão dispostos aos sacrifícios (do seu próprio
corpo) par obter tais coisas.
O fenótipo da protagonista pertence ao imaginário da
economia libidinal masculina, isto é, é uma mulher branca,
loira, olhos claros, magra e sem deficiência. Outro
estereótipo explorado pelo filme são as Spiegler Girls. O
nome faz referência ao produtor Mark Spiegler (produtor
real que interpreta a si mesmo) e às mulheres agenciadas
por ele. Pertencer a esta categoria significa “topar fazer de
tudo”, passaporte para a ascensão como estrela da
indústria. O “fazer de tudo” envolve sexo anal, dupla
penetração, tripla penetração, Gang bang 12 , blowbang 13 ,

12 Categoria de cena de sexo geralmente heterossexual no qual uma


mulher interage sexualmente com mais de um homem.
13 Categoria de cena de sexo no qual geralmente uma mulher realiza sexo

oral em mais de um homem.

72
simulação de cenas de estupro, sufocamento, entre outras
cenas que são as mais bem pagas na indústria.
Boa parte das atrizes que alcançam o estrelato e se
tornam celebridades nesse meio aceitam a maior variedade
possível de cena. Todas elas submetendo-se a um
imaginário masculino de dominação e fantasia sobre o
corpo feminino. Não à toa, as cenas – em sua maioria – tem
a norma heterossexual como padrão e homens
comandando e dirigindo a ação.
Na busca pelo estrelato, Bella começa a se aventurar
em novas cenas para ganhar os olhares dos protutores.
Topa participar de subgêneros cada vez mais “hardcores”.
Em uma dessas será penetrada por dois homens e
submetida as mais variadas humilhações. Tapas no rosto,
cuspidas, xingamentos, puxões de cabelos, penetração de
forma violenta e muitas outras em que Bella é
transformada em uma boneca erótica. Esse momento em
específico torna-se uma das mais perturbadoras do filme,
uma vez que a diretora equaliza dois planos para tensionar
a narrativa.
O primeiro plano é a montagem da cena em si, na qual
três homens – dois atores e o cameraman – combinam com
Bella as cenas com tranquilidade e com profissionalismo,
como se tratasse de uma banalidade corriqueira. O segundo
pano é a atuação em si, na qual há uma transformação e a
brutalização das personagens masculinas. Bella manifesta
diversos sinais de incômodo e pede para parar. Neste
momento voltamos para o primeiro plano, com os homens
suspendendo a ação e adotando uma preocupação e
profissionalismo humano em tom excessivamente paternal,
em uma ambígua tentativa de dizer que “tudo está bem”,
“vai ficar bem”. Pressionada a concluir a cena, Bella volta e
os atores recomeçam as agressões.

73
Essa ambiguidade de planos gera certo mal-estar. Qual
deles é o “verdadeiro”? Será somente uma atuação dos
atores masculinos que estão no “papel” de abusadores
violentos? Será que a verdadeira atuação não estaria no
primeiro plano no qual os atores fingem a preocupação e o
profissionalismo? Suas reais naturezas não seriam a de
abusadores? Não existiria aqui um espaço criado para a
produção e a comercialização de uma peça cinematográfica
de violência sexual juridicamente protegido por contratos?
Na cadeia produtiva e na lógica da demanda para
abastecimento do mercado pornográfico, quem demanda
essas cenas? Quem as consome? A cena é de tal forma
limítrofe que a fronteira entre o que é atuação e o que é
estupro é borrada.
Ao tentar abandonar a cena, Bella é coagida pelos
três homens a respeito de ter assinado o contrato e da
necessidade de concluir a cena para receber o pagamento.
Neste ponto voltamos ao termo consentimento e como na
indústria essa ideia é problemática e no fundo esvaziada
de qualquer sentido. Há pressões de todos os tipos para
as atrizes concluírem as tomadas, sobretudo como já
revelou Khalifa a respeito da presença de homens lidando
com mulheres muitas vezes jovens e sem possibilidades de
sentirem-se seguras para se negarem a fazer
determinadas cenas.
Esse é um dos pontos explorados pelo filme, o desejo
masculino como motor da indústria e a prevalência do
androcentrismo na submissão dos corpos das mulheres. A
posição objeto feminino é aquele que deve ser possuído
pelo masculino ativo e dominante. Mesmo quando a
relação lésbica é tematizada, cena na qual Bella vai penetrar
a Spiegler Girl Ava com um dildo, ela encarna o polo da
dominação e da subjugação por meio da incorporação dos
mesmos hábitos da posição androcêntrica. Não à toa, a

74
cena deixa um amargo em nós, justamente por trazer à
tona uma Bella na posição de abusadora, assim como os
homens que a violentaram.
O antropólogo Pierre Bourdieu (1998) em A dominação
masculina sublinha como as estruturas de dominação
androcêntrica se naturalizam e perdem o seu lastro
histórico, ou seja, tornam-se ideológicas. Questionar os
mecanismos de des-historização é uma das formas que o
autor utiliza para desmascarar o trabalho incessante e
contínuo da cultura e suas instituições na (re)produção da
violência simbólica da dominação masculina. Sendo a
norma oculta, esse poder subterrâneo – paradoxalmente à
vista – valida o homem na posição de determinar a divisão
social dos corpos e dos sexos.
Em Pleasure essa naturalização dos abusos masculinos
é protegida por uma estrutura jurídica, comercial e
financeira que apaga a história de violência e subjugação de
corpos femininos. O filme acerta ao mostra essa
perspectiva de forma limítrofe entre ficção e documentário,
sem tematizar conteúdos psicológicos mais profundo da
protagonista.
Há elementos no filme que nos possibilitam indicam a
dupla forma de manutenção da indústria da pornografia,
sobretudo porque ela articula de maneira muito forte a
ordem patriarcal e suas manifestações simbólicas na
cultura, naturalizando os modos da lógica de dominação
masculina. Aliado ao poder financeiro e a demanda pelo
olhar masculino, cíclica dentro da lógica de produção-
reprodução-consumo, temos uma receita forte para a sua
continuidade e imunidade frente aos debates de igualdade
de gênero e os escândalos de abuso sexual.

75
II.

Em muitas passagens Bella alimenta sua conta do


Instagram. O olhar do outro fornecer subsídios para a
sustentação de sua existência. Qual imagem Bella e muitas
meninas e mulheres oferecem em sacrifício para o Deus-
visibilidade? É um Deus cruel que cobra uma determinada
imagem no palco do espaço midiático. Esse corpo e essa
imagem são potencialmente garantidoras de uma
oportunidade de trabalho, de ascensão social e do desejo
do outro. Na mesma entrevista à BBC, Mia Khalifa comenta:

E, de repente, no meu primeiro ano de faculdade, comecei


a perder muito peso fazendo pequenas mudanças. Quando
me formei, estava pronta para fazer a diferença. Eu sentia
muita vergonha dos meus seios, porque foram a primeira
coisa que perdi ao emagrecer quase 23 quilos. Então, minha
maior insegurança eram os meus seios e queria recuperá-los.
Quando fiz isso (Khalifa passou por uma cirurgia plástica),
comecei a chamar muita atenção dos homens e nunca me
acostumei com isso. Sentia que, a menos que me apegasse
a isso e cumprisse as expectativas que tinham de mim, seria
insignificante. E depois de conquistar essa aprovação e os
elogios, eu não queria mais perder isso.

Maria Rita Kehl (2004) é precisa em diagnosticar a


atual condição:

[...] o corpo é ao mesmo tempo o principal objeto de


investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos
outros – promovida, nas últimas décadas, ao mais fiel
indicador da verdade do sujeito, da qual depende a
aceitação e a inclusão social. O corpo é um escravo que
devemos submeter à rigorosa disciplina da indústria da
forma (enganosamente chamada de indústria da saúde), e
um senhor ao qual sacrificamos nosso tempo, nossos

76
prazeres, nossos investimentos e o que sobra de nossas
suadas economias (KEHL, 2004, p. 175).

Bella precisa encontrar na indústria do olhar a sua


forma de existência. A Suécia é descrita pela personagem
como um país “doente”, de pessoas doentes. É um país
com bons indicadores de qualidade de vida, com uma
social-democracia estável e baixa desigualdade social. O
diagnóstico da protagonista contradiz a nossa experiência
sul-americana em relação aos distantes países
escandinavos, sobretudo quando nossa realidade é quase
oposta. Como uma jovem crescida em um país próspero e
com ótimas chances de formação foi parar na pornografia?
Essa pergunta esconde algumas armadilhas, além da
conotação moral que afeta nossa perspectiva de
compreender algo mais profundo sobre a condição
contemporânea de todos nós.
A ida de Bella a Los Angeles, o epicentro da indústria
pornográfica, arrisco a dizer, é movida por esse mal-estar
contemporâneo de precisarmos aparecer para ser. Não é
esse o trajeto de muitos adolescentes e adultos, mulheres
e homens, que se engajam nas contas de Instagram, TikTok
e outros para obter o seu séquito de admiradores e angariar
a própria consistência subjetiva?
O olhar do outro como garantia ontológica de nossa
existência não é uma formulação recente. Freud e Lacan já
apontava para a importância da constituição do olhar para
a nossa subjetividade. Como que se nossa prematuridade
cognitiva e física, enquanto recém-nascido, somente
encontrasse no ver e ser visto pelo objeto-cuidadora a
imagem adiantada de nosso corpo, antecipando a nossa
captura nessa ilusão. No cinema esse complexo jogo ganha
um giro a mais no parafuso.
Laura Mulvey (1983) em seu texto Prazer Visual e
Cinema Narrativo destrincha essa relação propondo uma

77
análise fecunda a respeito do olhar patriarcal e sua
manifestação estética no cinema narrativo, tendo a figura
da mulher como seu objeto erótico por excelência, ou nas
suas palavras: “A mulher desta forma existe na cultura
patriarcal como significante do outro masculino”. (MULVEY,
1983, p. 438).
Partindo da ideia da pulsão escópica, isto é, o prazer
de ver e ser olhado, a autora estabelece essa pulsão como
um dos alicerces da indústria cinematográfica. O voyerismo
latente do expectador é uma de suas armas para atrair o
público. Aliado a isso, forma e conteúdo se organizam para
a posse do objeto-corpo-sexuado-feminino. Nesse sentido,
o erótico foi codificado e submetido a ordem patriarcal
dominante (MULVEY, 1983).
Quando Bella contracena com Ava utilizando um dildo,
faz assumindo a posição ativa e masculina de objetificação
e posse daquele corpo. Ao final, ela é tomada por uma culpa
e um mal-estar, como se o seu ato indicasse-lhe ter
cumprido com sucesso o passo a passo para o estrelato da
pornografia, ou em outras palavras: ela materializou,
perante o olhar dos diretores/consumidores masculinos, a
condição estilizada das fantasias patriarcais.
Bourdieu (1998) conceitua o termo habitus para
explicitar uma espécie de “lei social incorporada”,
esquemas e percepções de um trabalho coletivo, difuso e
contínuo. Essa matriz que impele os indivíduos a práticas
conforme as condições sociais. Belle incorpora o habitus da
dominação masculina sedimentada culturalmente na cena
com Ava. Essa materialização do habitus da posição
masculina é o que causa o mal-estar subsequente.
Tendo subjugado a concorrente ao final da cena, ela
não se sente melhor, ao contrário, seu mal-estar tensiona-
se indicando uma possível abertura da protagonista frente
ao androcentrismo e suas formas predatórias. O filme não

78
indica um final para Bella, é suspenso no seu pedido de
desculpas a Ava no carro em que ambas percorrem a cidade
como passageira. Como que desperta de um sonho, salta
do carro e adentra a cidade dirigindo-se rumo ao anonimato
da multidão.
Em um momento de reflexão de Bella junto com as
outras atrizes, elas articulam a possibilidade de um cinema
adulto feito por mulheres:

Joy: Sabe, eu queria… Devíamos abrir nossa própria


companhia. Achar um investidor rico, ou um suggar daddy. E
tipo, você sabe, todas as garotas ficarem gordas e feias… Se
os caras quiserem trabalhar, terão que chupar nossas bucetas
debaixo de nossa pelancas, enquanto comemos comida
chinesa…
Bella: Pelanca? Onde está sua pelanca eu me pergunto.
Ashley: Ela está dizendo que as mulheres devem ter mais
poder sobre o que acontece com elas no trabalho.

Será uma utopia? Seria possível dentro da lógica


androcêntrica um cinema pornográfico feminino destituído
do olhar patriarcal? Se sim, seria possível estar fora da
lógica do produto mercadoria? Ou do lucro? Ou da demanda?

Considerações Finais

Como produto, o pornô traz em si marcas de uma


mercadoria de consumação de massas. Sua formatação de
imagem repetidas a exaustão tem o caráter e o ritmo da
produção em larga escala. Sua gramática traz ad infinitum a
economia dos corpos em contato. Ainda que variado os
seus arranjos, o modelo de pornografia enquanto gênero
comercial é extremamente empobrecedor e violento.
Qualquer narrativa pornográfica comercial acaba por
ser obrigada a reduzir a ossatura dramática para o plano da

79
fricção dos corpos. Não há ação possível senão na
conjunção das genitálias e na dessubjetivação dos corpos.
O material pornográfico esgota-se muito rapidamente,
torna-se enfadonho na medida em que sua única função é
a excitação, daí a necessidade constante de sua
(re)produção.
Os códigos cinematográficos da indústria
pornográfica acabam por se espraiar para muito além do
consumo privado. Eles reforçam e se retroalimentam de
práticas e habitus da dominação masculina, sendo a
violência contra o gênero feminino uma delas. Pode e deve
haver uma resposta política e estética para essas
representações. Laura Mulvey (1983) propõe a destruição e
o desafio de responder ao cinema dominante e às suas
formas de manutenção do patriarcado. Gostaria de
encerrar com suas palavras:

O cinema constrói o modo pelo qual ela [mulher] deve ser


olhada dentro do próprio espetáculo […] os códigos
cinematográficos criam um olhar, um mundo e um objeto, de
tal forma a produzir uma ilusão talhada à medida do desejo.
São estes códigos cinematográficos e sua relação com as
estruturas formativas externas que devem ser destruídos no
cinema dominante, assim como o prazer que ele oferece
deve também se desafiado. (MULVEY, 1983, p. 452).

Referências

BENEVIDES, B. G. Dossiê: assassinatos e violências contra


travestis e transexuais brasileiras em 2022. ANTRA
(Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Brasília:
Distrito Drag; ANTRA, 2023.

80
KEHL, M. R. Com que corpo eu vou? In: BUCCI, E.; KEHL, M.
R. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo:
Boitempo, 2004, pp. 174-179.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Trad. Maria Helena
Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2022.
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função
do eu tal como nos revela a experiência psicanalítica. In:
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2020, pp.
96-103.
MULVEY, L. Prazer visual e cinema narrativo. Trad. João Luiz
Vieira. In: Xavier, I. A experiência do cinema. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1983, pp. 437-454.
PORNHUB. The year in Review, 2022. Disponível em:
<https://www.pornhub.com/insights/2022-year-in-review>.
Acesso em: 4 de fev. de 2023.

81
82
Capítulo 5

SOBRE UMA INTENSIDADE QUE VALE SER


TRANSMITIDA: REFLEXÕES A PARTIR DAS
CRÔNICAS DE CONTARDO CALLIGARIS

Marcela Pastana
Gelberton Vieira Rodrigues

Introdução

“Espero estar à altura”. De acordo com Max Calligaris,


essa foi a frase de seu pai, Contardo Calligaris, diante da
iminência de morte. Calligaris, psicanalista e prolífico
escritor, morreu em trinta de março de 2022 aos 72 anos,
nos deixando, além de uma vasta obra literária, uma última
questão: à altura de quê ele esperava estar? Qualquer
certeza em relação à resposta desta pergunta seria, no
mínimo, leviana. Em nossa leitura, a ética do psicanalista
mencionado se aproxima das dúvidas, nunca das certezas.
Por ter escrito uma coluna semanal para a Folha de São
Paulo por mais de vinte anos (entre 1999 e 2021), as crônicas
de Contardo Calligaris nos parecem um interessante
material de análise para um volume desta coleção que se
propõe a refletir sobre psicanálise e discursividades. Nosso
intuito, neste texto, é escrever sobre a experiência de
escrever a partir das ideias de Contardo Calligaris. Mais
especificamente, sobre como a experiência de contar sobre
a vida tem efeitos nas formas de viver. Em suas crônicas
para a Folha, Calligaris conta tanto sobre a vida quanto
sobre os modos de contar.
Antes de adentrarmos em nossas reflexões
propriamente ditas e seguindo uma epistemologia

83
engajada com o valor do conhecimento situado, pensamos
ser necessária uma breve apresentação dos motivos que
nos levam a escrita deste capítulo e, embora certamente
menos necessária, uma apresentação daquele que é a
inspiração para nossa escrita. No que diz respeito à autoria,
somos dois profissionais da psicologia e da educação que
vivem a partir do que escutam e do que dizem. Respiramos
narrativas trabalhando com a formação de psicólogas/os e
na clínica psicanalítica. A parceria entre uma doutora em
educação escolar e de um mestre em educação sexual para
a escrita deste capítulo se dá devido ao modo como a
escrita de Calligaris tem mobilizado e inspirado nossos
próprios discursos e práticas, no trabalho e na vida.
Contardo Calligaris realmente foi inspirador! Nascido
em 1948 em uma Itália ainda assombrada pelo fascismo
pós-guerra, passou sua juventude entre grandes cidades
europeias, graduando-se em epistemologia e letras em
Genebra e doutorando-se em psicopatologia clínica na em
Paris, onde também realizou sua primeira análise e
formação em psicanálise na Escola Freudiana de Paris.
Calligaris viveu momentos de efervescência política nas
décadas de 60 e 70 nos Estados Unidos e na França,
tornando-se um entusiasta pelas lutas pela liberdade sem
deixar de ser um crítico (no sentido kantiano) da
modernidade. Para o Brasil, mudou-se em 1989 “por
acidente”, dizia, quando passou a transitar entre grandes
cidades da América, como Nova Iorque e São Paulo. Nesta
última, viveu até sua morte.
Nas palavras de Rafael Cariello (2013), organizador da
coletânea Todos os reis estão nus, as colunas de Contardo
tratam de temas tais como “dilemas individuais,
dificuldades para lidar com os próprios desejos, alegrias e
frustrações da vida cotidiana” (p. 11). De maneira muito
geral - pois, somente desta forma é possível fazer

84
afirmações de maneira sucinta sobre pensadores tão
complexos - Calligaris escreveu sobre os sentidos do existir
humano, sempre insistindo que o sentido da vida está na
vida concreta.
Como nos ensina a psicanálise, a busca de prazeres
possíveis na vida concreta, ou seja, naquilo em psicanálise
que chamamos de realidade, nos remete a uma ética que
contrapõe idealizações e ilusões aos necessários
movimentos em busca dos prazeres (sempre parciais) na
concretude da vida (FREUD, 2006). Na atualidade, o ideal
de felicidade é um bom exemplo de como nossa sociedade
se organiza a partir de imperativos que nos levam a ter uma
relação enganosa e alienada em relação aos nossos
próprios desejos (CALLIGARIS, 20081). Uma vida feliz, nos
lembrou Calligaris em diversas ocasiões, não é o mesmo
que uma vida interessante. Mas afinal, o que pode ser uma
vida interessante na concepção deste autor?
Relacionando a pergunta que encerra o parágrafo
acima com o tema das discursividades, tentaremos
respondê-la considerando nosso material de consulta e
análise: as crônicas de Contardo Calligaris. Para esta
empreitada, partimos das crônicas publicadas pelo autor
entre 2000 e 2013 que foram reunidas em três coletâneas:
Terra de ninguém, lançada em 2004 pela PubliFolha, Quinta-
coluna, lançada pela mesma editora em 2008 e Todos os reis
estão nus, lançada pela Três estrelas em 2014. Dividiremos
nossa análise em quatro tópicos complementares que
abordam diferentes aspectos de como a interpretação, a
construção narrativa e a transmissão discursiva da vida
podem mudar a própria vida, ou, ao menos torná-la mais
interessante.

85
Materiais Analisados

Tipo de Material Coletâneas


Títulos Originais Terra de ninguém; Quinta
Coluna; Todos os reis estão nus
Editoras de publicação PubliFolha; PubliFolha, Três
Estrelas
Anos 2004; 2008; 2014.
Idioma original Português

Análise crítica

Sobre uma intensidade que vale ser transmitida

Como ponto de partida para abordarmos a escrita de


Contardo Calligaris, escolhemos o relato trazido por ele
sobre a experiência de ser um autor de crônicas,
apresentado na introdução ao livro Terra de Ninguém. É um
momento em que Calligaris (2004) se expressa sobre o
efeito transformador que o exercício de criação de uma
coluna semanal teve em sua vida:

convivo com a exigência de que alguma experiência da


semana (um encontro, a leitura de uma notícia ou de um
livro, um espetáculo teatral etc.) tenha uma intensidade que
valha a pena ser transmitida. Como nunca sei de antemão
qual será a experiência escolhida, a exigência transforma
toda a minha vida (CALLIGARIS, 2004, p. 17)1.

O exercício de viver as experiências sem saber qual


será a escolhida para o texto a ser publicado, mas
acompanhado pela expectativa de que uma seja escolhida
remete, segundo Calligaris (2004), a uma exigência com

1 As
reflexões foram apresentadas na crônica Você quer mesmo ser feliz?,
publicada originalmente em 25 de janeiro de 2007.

86
que se deparou em sua adolescência. Aos 13 anos, quando
tentou ler Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust,
pela primeira vez, deixou de lado a tentativa, incomodado.
O incômodo não se deu por não ter gostado da leitura, pelo
contrário, mas pelo estranhamento que sentiu com toda a
intensidade da escrita do autor. Não conhecia sobre
recursos da escrita literária, então chegou a pensar que se
tratava de um retrato fiel de como as experiências eram de
fato vividos por Proust.
Calligaris (2004) descreve o incômodo como uma
mistura de frustração, birra e inveja: enquanto comia pães
e omeletes sem pensar em absolutamente nada, ao ler Em
busca do tempo perdido acreditou que, para Proust, cada
mordida em uma madeleine se desdobrava
espontaneamente em uma espécie de iluminação, com
aqueles pensamentos e lembranças tão especiais capazes
de preencher páginas e páginas, envolvendo e fascinando
quem lesse. O trecho a seguir é sobre suas reações à leitura:

Fiquei consternado. Minha experiência cotidiana me


parecia, de repente, espantosamente vazia. (...) Minha vida
era um deserto: uma sucessão de gestos sem espessura.
Para que minha experiência ganhasse em intensidade, eu,
no mínimo, tinha que parar, sentar e me forçar a pensar.
Algo estava errado comigo: eu era uma ameba, sem vida
interior (CALLIGARIS, 2004, p. 17).

Que interessante imaginar Contardo Calligaris, com


toda uma obra dedicada à riqueza da intimidade e ao e ao
carinho pelo cotidiano, como um adolescente, aos 13 anos,
ao mesmo tempo decepcionado e inquieto pelo contraste
gerado com a leitura, entre uma vida cotidiana
“espantosamente vazia”, uma vida interior percebida como
ausente. A decepção e a inquietude, transformaram-se,

87
segundo o autor, em uma exigência não satisfeita, exigência
retomada anos depois no exercício de escrever crônicas.

Durante algum tempo, tentei me “proustianizar”.


Esforçava-me para que cada gesto prosaico de meu
cotidiano fosse acompanhado de alguma riqueza de
reflexão e pensamento. Levou algumas semanas, durante
as quais vivi em câmera lenta. Logo, esqueci Proust, enterrei
minha birra e retomei uma vida “normal”. Mas ficaram a
frustração e a sensação de um dever mal cumprido.
Escrever crônicas me ajuda a cumprir, enfim, esse dever. (...)
(CALLIGARIS, 2004, p. 16-17).

Diante da lembrança da sensação inicial de escassez,


Contardo retoma como a escrita pode transformar: não foi
a intensidade da experiência vivida que levou à exigência
de escrever, mas foi a exigência de escrever, com um prazo
de entrega, com um combinado sobre publicações
semanais, que trouxe para a sua vida uma atenção especial
às experiências vividas, considerando o que haveria nelas
que poderia ser contado.
“Ganho, nesse exercício, a chance de viver o ordinário
da semana como se fosse sempre extraordinário”, é a
síntese de Calligaris (2004, p. 17) sobre os efeitos da
experiência da escrita nas experiências vividas. Nos
deparamos aqui com uma ideia que se repetirá em outras
reflexões do autor: a relação transformadora entre como a
vida é contada e como a vida é vivida.

A vida concreta e o mérito radical de ser o que existe

No relato sobre o efeito transformador que escrever


crônicas teve em sua experiência, Calligaris (2004)
menciona também o que espera na relação com seus
leitores e leitoras:

88
Minha ambição é apenas (mas já é muito) que, ao dialogar
comigo (concordando ou protestando, tanto faz) o leitor
tome o tempo necessário para descobrir ou inventar uma
espessura e uma intensidade possíveis de sua própria
experiência.
No fundo, escrevo crônicas na esperança de que, ao lê-las,
os leitores sintam vontade de tornar-se cronistas de suas
próprias vidas (CALLIGARIS, 2004, p. 17-18).

Tornar-se cronista de sua vida: o autor conta quão


especial foi esse processo para ele e deseja então que uma
experiência similar possa ser instigada em quem o lê. O
mais importante, diz Calligaris (2004), não é que a leitura
convença, leve a uma adesão de suas opiniões e
posicionamentos, favoreça um consenso. Podem haver
reações de discordância, ou mesmo de protesto, ainda
assim o propósito que lhe interessa se preservará: a
descoberta ou invenção da intensidade da experiência.
Contardo relata, inclusive, que prefere ideias que vêm
acompanhadas de questionamentos, que provocam e
sejam provocadas por dúvidas, que carregam
consigo a possibilidade de levar a outras perspectivas,
perspectivas novas, contrastantes, divergentes. Afinal, na
vida como é vivida, na vida concreta, não é a irredutibilidade
de uma ideia, o poder de convencimento de uma opinião ou
a firmeza de uma convicção que prevalecem, mas a
complexidade do que é vivido a partir do modo singular
como é vivido.
Calligaris (2004) recorda que, quando criança, por
volta de cinco ou seis anos de idade, seu pai dizia que havia
errado no cartório: não deveria ter dado a ele o nome de
Contardo, mas sim, de Contrário. Essa afirmação de seu pai
vinha das conversas com o filho, parecia que ele só
conseguia começar uma frase se usasse um “mas...”.

89
Não mudou muito: ainda hoje, posso acalentar uma idéia
durante um bom tempo, mas, no fundo, espreito o
momento em que surgirá a dúvida que deixará uma chance
ao pensamento oposto. Claro, sou capaz de ter opiniões,
mas, quando isso acontece, sempre me acompanha uma
sensação de teimosia e vulgaridade. Pensar, para mim,
significa circular entre ideias, usando como meio de
transporte as adversativas que cada ideia levanta
(CALLIGARIS, 2004, p. 14).

Ainda sobre a afinidade com as adversativas, Calligaris


(2004) comenta que, por mais grandiosa que uma ideia
pareça, não é essa grandiosidade que o atrai, mas sim, a
possibilidade de que essa ideia leve ao reconhecimento e
ao respeito pela vida tal como ela é vivida.

Minha regra é a seguinte: a vida concreta sempre tem o


direito de condenar as idéias, enquanto as idéias podem
criticar e querer mudar a vida concreta, mas não têm o
direito de condená-la. Pois a vida concreta tem o mérito
radical de ser o que existe (CALLIGARIS, 2004, p. 14).

O fascínio pela vida concreta também é evocado em


uma lembrança de infância, de quando ia ao circo e pedia
aos pais para que pudesse ficar para uma segunda
apresentação do espetáculo. Seu pedido era tanto por ter
gostado muito da apresentação, quanto pela oportunidade
de circular nos bastidores durante o intervalo. Calligaris
(2008) conta:

gostava de passear, meio às escondidas, entre os


reboques que serviam de casa ao povo do circo. Tinha
cheiro de sopa caseira, de roupa lavada e de malhas
suadas, risos, gritos de brigas, portas entreabertas que
mostravam espelhos, maquiagem e panelas. As duas
coisas juntas, o espetáculo e os bastidores, eram, para

90
mim, uma única experiência. Foi ali que aprendi para
sempre, acho, que é possível sonhar sem deixar de gostar
da vida concreta (CALLIGARIS, 2008, p. 58)2.

Em outras crônicas em que aborda a vida concreta,


Calligaris (2004) se refere aos prazeres; aos momentos
considerados mais banais; às glórias e misérias da vida
cotidiana; aos desejos sexuais; às fantasias realizadas ou
não; aos pequenos segredos; às raivas; às vergonhas; às
transgressões; aos namoros e amizades; às brigas; aos
jogos; às refeições; às conversas na calçada em frente à
casa. Nas palavras do autor, a importância da vida concreta
corresponde à importância do terreno comum:

onde imagino que todos os humanos se encontrem – aquela


parte da experiência cotidiana que talvez se situe aquém
das diferenças: tomar a febre do filho com a mão, preparar
a comida do cachorro, desejar aquele ou aquela que não
deveríamos, chorar os defuntos (CALLIGARIS, 2004, p. 147)2.

O cotidiano, as experiências do dia-a-dia, são, assim,


temas que recebem especial atenção de Contardo Calligaris
em suas crônicas. Falar sobre a vida como é vivida não
corresponde a apenas descrever a vida como acontece: a
vida vivida se relaciona intimamente em como cada pessoa
cria sentidos para o que acontece, como as circunstâncias e
os fatos se inserem em uma história a ser contada e que
poderá ser transmitida. Neste campo, há interessantes
pontos em comum entre duas áreas de fértil atuação de
Contardo Calligaris: a escrita e a clínica.

Há uma estranha proximidade entre o trabalho do


terapeuta e do escritor (...) que tem a incumbência de

2 Trechoextraído da crônica Caro Silvio Santos, publicada originalmente


em 15 de abril de 2004.

91
escutar, talvez decriptar (ou, por que não, inventar) as
histórias que os outros são impedidos de contar
(CALLIGARIS, 2008, p. 311)3.

Nunca somos apenas o efeito daquilo que nos


acontece. Entre o que somos e o que acontece, há sempre
nossas interpretações, nossos modos de agir e de reagir ao
que acontece, os modos como vivemos e como contamos
sobre o que vivemos para outras pessoas e para nós
mesmos.

Sobre a grandeza possível da vida como ela é

Ouvir como cada pessoa conta sobre si mesma e sobre


a sua vida é um processo que inclui entrar em contato com
as idealizações e comparações: como a pessoa acredita que
deveria ser, como imagina que poderia viver, como
considera que sua história poderia ter sido. Há uma
construção de uma versão de si e da vida que é acalentada
como mais especial, mais desejada. Como se houvesse uma
verdade oculta sobre si em um potencial ainda não
realizado, uma oportunidade que ainda não chegou, um
reconhecimento que tornaria tudo diferente.
O que alguém vive de fato e como alguém é,
concretamente, em suas experiências e relações do dia-a-
dia, parece sempre pouco, desinteressante e insuficiente em
comparação com as aspirações e ambições. Emerge um teor
depreciativo em relação ao que de fato se consegue, ao que
cotidianamente é vivido, como se no máximo fosse um
rascunho das realizações e fruições de uma vida para valer.
Em outros momentos históricos, as possibilidades de
uma vida eram determinadas pelo nascimento, pela família

3Trecho extraído da crônica O sol se põe em São Paulo, publicada


originalmente em 03 de maio de 2007.

92
de origem, pela classe social a que se pertencia, os valores
religiosos e outras referências da tradição a que se devia
obedecer. Hoje, com o ideal moderno de que as
possibilidades dependem de escolhas e esforços
individuais, o movimento de imaginar uma vida diferente da
que é vivida se torna um elemento central da experiência
subjetiva. Como afirma Calligaris (2008, p. 327): “A
modernidade nos encoraja a querer mais do que já temos e
a sonhar em vir a ser mais do que somos. Ela aposta na
nossa capacidade infindável de fantasiar”. O ideal de que
cada pessoa invente livremente a sua vida é, ao mesmo
tempo, estimulante e angustiante.
Calligaris (2014) chega a questionar se os ideais que
predominam atualmente correspondem, de fato, a ideais
de felicidade, a uma centralidade do hedonismo em nossa
cultura. Tal questionamento se deve ao fato de que ser
feliz, buscar prazer e aproveitar intensamente são mesmo
enunciados frequentes, especialmente nos
apelos publicitários, mas, no que diz respeito a como
as pessoas concretamente vivem suas vidas, a centralidade
da fruição aparece menos do que uma constante sensação
de insuficiência, uma exigente comparação entre como a
vida é e como supostamente deveria ser.

o ideal de uma vida intensa como um único grande e curto


fogo de artifício, mal tem existência própria, mas é apenas
o efeito da nossa nostalgia de “outra coisa”. Só há uma vida:
a que estamos vivendo. É óbvio. Mas por que mal
conseguimos viver sem imaginar que ela possa ou deva ser
“outra”? (CALLIGARIS, 2014, p. 247)4.
Obviamente, o anseio de outra coisa é necessário para
transformar o mundo. Mas talvez nenhuma mudança valha

4 Trechoextraído da crônica Então, era só isso?, publicada originalmente


em 10 de janeiro de 2013.

93
a pena se não pudermos curar uma alienação fundamental
da nossa subjetividade: a incapacidade de viver no presente.
De que adianta um futuro melhor se, quando ele chega, só
sabermos matutar sobre mais um tempo vindouro?
(CALLIGARIS, 2008, p. 367).

O trecho acima foi extraído da crônica Paulinho da


Viola e nosso uso do tempo, publicada originalmente em 14
de agosto de 2003. Nela, Contardo Calligaris comenta
sobre o documentário Paulinho da Viola: meu tempo é hoje,
produzido por Izabel Jaguar com o roteiro de Zuenir
Ventura. Na análise o autor se refere a dois grupos de
documentários: um primeiro em que o principal propósito
é a denúncia, instigar um olhar crítico para a realidade; e
um segundo grupo, em que o documentário em questão
se insere, cujo propósito é o de apresentar a realidade
como algo a ser apreciado. A apreciação não é por uma
perfeição idealizada, pelo contrário: há o convite de que
entremos em contato com as vidas como são vividas, sem
idealizações nem comparações. É incentivado o olhar, nas
palavras de Calligaris (2004, p. 367), para: “(...) a
dignidade, o valor e a grandeza possíveis da vida como ela
é, na hora em que ela acontece”.

Uma história, um conjunto que somos nós

Como alguém conta sobre si? Como conta sobre o que


acontece? Como conta sobre a sua forma única de viver o
que acontece? Contardo traz como aí está um elemento
chave do processo psicoterapêutico: uma vida vivida não é
a soma dos fatos que aconteceram, mas fruto de como
aqueles fatos foram significados por quem viveu, como os
acontecimentos se tornaram ou podem vir a se tornar
integrados em uma história. E é este o movimento que tem
uma importância fundamental para a terapia: o de

94
construção de sentidos a partir do que foi vivido. Como diz
Calligaris (2000), no livro Cartas a um jovem terapeuta:

reconstituir (melhor dito, inventar) um sentido que ligue o


presente ao passado é uma obra incessante, que nos
oferece um conforto necessário, nos dá a sensação de que
atos e fatos se inserem numa história, num conjunto, que
somos nós.
Aliás, reinterpretar o passado, descobrir (ou inventar)
novos sentidos para o que aconteceu é quase sempre uma
maneira de mudar o nosso presente. Pois, no fim dessa
empreitada, sendo o resultado de uma narração diferente,
somos mesmo diferentes (CALLIGARIS, 2004b, p. 138-139).

Calligaris (2004b) demonstra como nas histórias que


contamos e nos nossos modos de contar há processos de
especial importância para reconhecermos quem somos,
como vivemos e como nossos modos de ser e de viver
podem se transformar.

Ora, uma tarefa essencial do terapeuta poderia ser


resumida assim: ajudar cada um a dar significação à sua vida,
sem que, por isso, ele deva acreditar num sentido do
mundo. Ou seja, permitir que cada um descubra que,
mesmo que não faça parte de um grande esquema (divino
ou humano), sua vida vale a pena. E por que valeria a pena?
Simplesmente porque cada vida pode ser um romance que
merece ser contado. Se soubermos atribuir à nossa vida a
qualidade de uma história, reconheceremos sua dignidade
(CALLIGARIS, 2004, s/p)5.

Aqui chegamos novamente a um ponto que Calligaris


traz de diferentes formas em suas crônicas: a defesa de que

5 Trechoextraído da crônica A Dona da História, publicada originalmente


em 21 de outubro de 2004.

95
há uma relação entre a vida que vale a pena ser vivida e a
vida que vale a pena ser contada.
Com os modos de contar, o que é ordinário pode se
tornar extraordinário. E essa transformação diz menos
respeito ao que acontece, tal como acontece e tem uma
relação maior ao olhar que cada pessoa dirige ao que
acontece, a atenção especial ao que é vivido, o modo como
o que é vivido é contado: “Para romancear a vida, não é
preciso encontrar destinos grandiosos. Basta enxergar o
detalhe que sempre está presente num canto escuro da
realidade cotidiana” (CALLIGARIS, 2008, p. 332).
Os modos de narrar se tecem com o olhar a partir de
como cada vida é vivida, uma a uma, com o
reconhecimento, no cotidiano, dos detalhes que lá
habitam, do que pode haver mesmo nos cantos mais
discretos de precioso, de especial.

A vida que vale a pena ser contada e a vida que vale a pena
ser vivida

A partir das ideias de Contardo Calligaris sobre a


experiência da escrita e sobre a experiência da clínica,
identificamos um ponto em comum: nossos modos de
contar mudam nossos modos de viver.
Em Estilos da vida, publicada originalmente em 21 de
abril de 2011, Contardo diferencia a expressão “estilos de
vida”, relacionada a um modelo de identidade que cada
pessoa constrói e mostra às outras pessoas, da expressão
“estilo da vida”, que se refere à forma como cada pessoa
narra a sua vida para si mesma e para outras pessoas.

Pois bem, nós todos adotamos ou inventamos um estilo


singular para a história de nossa vida – é o estilo graças ao
qual nossa vida se transforma em uma história. Cada um

96
escolhe, provavelmente, o estilo narrativo que torna a vida
mais digna de ser vivida (e contada). (CALLIGARIS, 2014, 157).

O que faz com que a vida tenha sentido? O que faz com
que alguém tenha a impressão de que vale a pena viver? O
que desperta o gosto pela vida? Em diferentes momentos
de suas crônicas, Contardo Calligaris discute como não há
um motivo único a ser descoberto, um sentido único a ser
revelado: os motivos e sentidos são construídos a cada
experiência, conforme as vidas são vividas, uma a uma. Ali
onde as pessoas procuram um sentido a ser encontrado, ao
viverem, o que encontram são os sentidos a serem
inventados. E como inventamos os sentidos para o que
vivemos? Nas histórias que ouvimos e que contamos. “As
histórias que nos ensinam a degustar a experiência são
aquelas que não nos iludem, mas conhecem e respeitam a
dificuldade atrapalhada nos sentimentos e desejos”
(CALLIGARIS, 2008, p. 128)6.
Calligaris (2008) afirma prezar pela qualidade da
experiência vivida. A qualidade diz menos respeito ao que
nos agrada ou nos desagrada e está mais relacionada à
intensidade com que alguém se permite viver. Como se
diante de pratos variados, não fosse tão importante
separar quais são doces de quais são amargos: o mais
importante é a possibilidade de saboreá-los: “Na vida,
como na cozinha, o pecado capital é o insosso”
(CALLIGARIS, 2008, p. 128), conclui.
Em Peixe Grande e a paixão pela vida, publicada
originalmente em 26 de fevereiro de 2004, ao comentar as
histórias contadas por um pai para um filho no filme Peixe
Grande (2003), de Tim Burton, Contardo aborda a
importância das histórias na transmissão sobre o que faz

6 O trecho foi extraído da crônica Calcinha no Varal, publicada


originalmente em 12 de maio de 2005.

97
com que a vida tenha algum sentido, que haja o gosto por
viver. Menciona a sua experiência como pai:

sou pai de três rapazes. Gostaria de lhes transmitir uma


paixão pela vida que não dependesse da realização de
sonho algum, ainda menos de um sonho meu. Gostaria que
eles encontrassem sua razão de viver não alhures (numa
obrigação ou mesmo nos grandes princípios que dirigem
suas ações), mas na própria existência da vida que levam,
em seus momentos felizes ou tristes, jocosos ou outros
(CALLIGARIS, 2008, p. 38).

Contardo fala também como filho. Conta que seu pai


manteve um diário durante 50 anos. Quando era criança, se
escondia atrás da porta para escutar, em alguns
momentos, quando o pai ditava o que seria escrito para a
mãe, com o pretexto de que sua letra seria ilegível. A forma
como seu pai contava acontecimentos que ele também
havia presenciado, mas que não percebia da mesma forma
lhe chamava a atenção:

Odiava (e me fascinava) a transformação que as palavras do


diário impunham a acontecimentos que eu tinha
presenciado e que foram, a meu ver, insignificantes. Na
descrição do meu pai, a banalidade do cotidiano se tornava
uma vasta produção teatral cujo tema maior era sempre,
aliás, o seu amor pela minha mãe (CALLIGARIS, 2008, p. 38).

Contardo conta que, após a morte do pai, ficou com


seus diários. Foram escritos entre 1936 e 1994, quase 60
volumes. Ele diz: “Leio de vez em quando. Não procuro
informações sobre sua vida, apenas o segredo de sua
paixão de viver e de amar” (CALLIGARIS, 2008, p. 39-40).
Em Anjos, demônios e chocolate, publicada
originalmente em 21 de maio de 2009, Contardo conta
sobre como o seu pai, em sua infância, preparava Caças ao

98
Tesouro para que ele brincasse com outras crianças nas
comemorações de aniversário. O autor lembra das caças ao
tesouro para comentar sua relação com os livros, em que
cada leitura traz pistas para novas leituras, para novos
lugares e novas experiências a ser descobertas. A
brincadeira da caça ao tesouro remete a uma postura
diante do mundo: uma postura investigativa, com o desejo
de saber mais, cada novo encontro é um novo universo a
ser explorado, com a sede de conhecer de quem se
interroga sobre a vida e seus mistérios. É uma postura
investigativa que ajuda a atribuir encantamento à
existência: “(...) Afinal, na falta de inquietantes sinais
divinos ou conspiratórios, resta o enigma de nosso desejo.
Não é pouca coisa (...)” (CALLIGARIS, 2014, p. 80).

Considerações Finais

A constatação psicanalítica de que somos seres de


linguagem nos leva a reconhecer que nossas relações com
os outros e com a própria realidade externa se dão por
intermédio de representações. Tais relações, portanto,
estão sujeitas à literabilidade da linguagem e do plano
simbólico que a sustenta. Em suma: não há acesso imediato
a um objeto final, total ou ideal na realidade que possa
aplacar de vez nossa busca por satisfação. O que podemos,
seguindo as ideias de Calligaris apresentadas neste
capítulo, é encontrar prazer na própria busca.
Levando a sério a compreensão lacaniana de que
nossa realidade humana tem estrutura de ficção, Calligaris
(2013) provocou hipocrisias e moralismos quando afirmou,
por exemplo, que em uma realidade de sujeitos
mascarados com suas identidades, “os melhores conhecem
sua impostura e sabem que não estão à altura de sua
máscara. Os piores se identificam com sua máscara” (p.

99
149). Constatação ao mesmo tempo prazerosa e
angustiante: há um quinhão de responsabilidade
incontornável na escolha (ainda que inconsciente) de
nossas máscaras.
Tendo enunciado pistas na própria obra de Calligaris
sobre o quê pode tornar a vida mais interessante, podemos
concluir que o reconhecimento de nossa condição
desejante e, portanto, errática e instável, é importante. A
psicanalista Maria Rita Kehl (1990) tenta traduzir esta ideia
com a expressão “fome de mundo”, relacionando a
experiência do desejo ao sentir fome, e não à saciedade.
Para esta autora, continuar desejando é continuar vivendo
enquanto sujeito diferenciado, pois, “A manutenção do
desejo é a manutenção de uma fala” (p. 372).
Em uma de suas últimas crônicas para a Folha,
Calligaris (2021) escreve que:

Quando o desejo começa a frequentar seus limites efetivos,


ou seja, quando sonha com uma forma de realização que
ameaça aboli-lo (ou abolir a falta que o justifica), ele se torna
propriamente triste, melancólico. É um paradoxo, mas, de
fato, o desejo que se mantém é aquele que procura “outra
coisa” - ou seja, algo além da falta que o justifica como
desejo (s/p.).

Em conclusão: O que pode fazer que uma vida seja


interessante e que tenha uma intensidade que vale ser
transmitida? Que possamos seguir buscando!

Referências

CALLIGARIS, C. Brasil morre afogado numa mistura de


incompetência e interesses. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20
de janeiro de 2021. Disponível em: https://www1.folha.

100
uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2021/01/brasil-mor
re-afogado-numa-mistura-de-incompetencia-e-interesses.
shtml. Acesso em: 26 jul. 2022.
CALLIGARIS, C. Todos os reis estão nus. São Paulo: Três
Estrelas, 2013.
CALLIGARIS, C. Quinta-coluna. São Paulo: Publifolha, 2008.
– (101 crônicas).
CALLIGARIS, C. Terra de ninguém. São Paulo: Publifolha,
2004. – (101 crônicas).
CALLIGARIS, C. Cartas a um jovem terapeuta: reflexões
para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos. Rio de Janeiro:
Elsevier: 2004b. – (Cartas de um jovem).
FREUD, S. O Futuro de uma ilusão. In: Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 21, 2006.
KEHL, M. R. O desejo da realidade. In: NOVAES, A. (org.) O
desejo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1990.

101
102
Capítulo 6

LEMBRE DE MIM: MEMÓRIA E TRANSMISSÃO


PSÍQUICA NO FILME VIVA - A VIDA É UMA FESTA!

Bruna Bortolozzi Maia


João Pedro de Paula Menezes
Mary Yoko Okamoto

Introdução

Antes mesmo do nascimento de um bebê já são nele


depositados uma série de expectativas, sonhos e desejos a
serem realizados. Além disso, este novo membro de uma
família chega envolto em um grupo que o precede: um
grupo com suas tradições, cultura e história, enfim, sua
origem genealógica que atravessa o tempo. Todas esses
aspectos compõem as histórias e memórias que são
transmitidas de geração em geração, na medida em que
podem ser rememoradas e recontadas. Nesse sentido, têm
valor estruturante nos processos de subjetivação do
psiquismo da família e de cada novo indivíduo que surge.
René Kaës (2011), grande expoente francês da
psicanálise pensada a partir dos grupos, defende que as
aberturas para a passagem do sujeito singular para um
sujeito do grupo permaneceram especulativas na obra de S.
Freud e, só mais tarde, foram construídos modelos para a
abordagem do psiquismo baseado no grupo. Segundo este
autor, o sujeito do inconsciente é, antes de tudo, um sujeito
do grupo, já que desde a sua origem, ele está inserido em
um berço psíquico grupal (KAËS, 2011).
Kaës (2011) explicita que todo psiquismo singular se
constitui num contexto grupal, portanto, intersubjetivo. A

103
intersubjetividade refere-se ao mundo interpessoal,
privilegia os vínculos do sujeito com o outro, um conector,
um “entre” que une os psiquismos envolvidos. Ao
construir-se a partir da dinâmica entre dois ou vários
sujeitos, compreende processos, formações, experiências
específicas que pressupõe a presença de leis, pactos e
contratos inconscientes que vinculam os sujeitos a uma
aparelhagem familiar e posteriormente, a outros grupos
(KAËS, 2001; KAËS, 2011).
Kaës (2011) concede grande importância às
considerações introdutórias de Freud acerca do narcisismo,
já que, é a partir daí que se formula a ideia de que “o
indivíduo leva uma dupla existência: é o fim para si próprio
e encontra-se submetido a ‘uma cadeia’ da qual ele é elo,
beneficiário, servidor e herdeiro” (KAËS, 2011, p.26). O
processo de investimento no bebê, de acordo com Kaës
(1998; 2001), é o primeiro momento no qual a família se
ocupa de inscrevê-lo na família.
Kaës (2001) aponta que o sujeito do inconsciente está
intimamente envolto a um conjunto intersubjetivo de
outros sujeitos do inconsciente. Esse sujeito do
inconsciente torna-se um elo na cadeia genealógica da qual
faz parte. Além disso, ele é herdeiro dos mecanismos
constitutivos do inconsciente: recalques e negações em
comum, as fantasias e os significantes partilhados, os
desejos inconscientes e as proibições fundamentais que
organizam o grupo. Ou seja, o sujeito herda mecanismos
que precedem a sua existência e, assim, as formações do
inconsciente são transmitidas entre as gerações (KAËS,
2001; KAËS, 2011).
Portanto, o sujeito chega ao mundo com a missão de
assegurar a continuidade do conjunto ao qual ele pertence,
e em troca, recebe os investimentos narcísicos do conjunto,
constituindo o passo inicial da transmissão psíquica.

104
Aulagnier (1979) conceitua como pacto narcísico, o grupo
determina um lugar específico para cada novo membro,
transmitindo os desejos e expectativas relacionados à
cultura na qual aquele grupo se encontra. Kaës (2011)
acrescenta que este pacto funcionaria como uma aliança
inconsciente estruturante. A partir dele, atribui-se um lugar
para cada pessoa dentro de um grupo, transmitindo ideias,
valores e mitos fundadores daquela família e conferindo
pertencimento ao grupo.
O conceito de pertencimento diz respeito a sentir-se
parte integrante de um conjunto, seja ele grupal, familiar,
comunitário ou social, tendo como ponto de partida
crenças e hábitos compartilhados, ritos sociais e costumes.
O sentimento de pertencer ao conjunto faz emergir uma
percepção ilusória de homogeneidade dentro de um grupo,
por isso, salienta-se a importância da pertença, uma vez
que ocupa o cerne do reconhecimento da inserção social do
sujeito em sua família ou em instituições (NUNES, 2021).
A partir dos investimentos narcísicos e do
pertencimento ao conjunto, a criança passa a ter por
missão a continuidade e perpetuação da linha geracional,
mantendo a identidade familiar, fortalecendo os espaços
narcísicos e se ligando ao ancestral fundador (CORREA,
2000b; PAIVA, 2016). Destaca-se, dessa maneira, a
importância do narcisismo para a subjetivação e para a
estruturação vincular do bebê em seu grupo primário de
pertencimento, ou seja, o grupo que exerce esta função de
investimento narcísico, coloca o novo membro do grupo
como elo, beneficiário e herdeiro.

O indivíduo não pode construir completamente sua própria


história: ele se ancora em uma história familiar que o
precede, da qual vai extrair a substância de suas fundações
narcísicas, e tomar um lugar de sujeito. Uma herança

105
psíquica é transmitida pelas gerações precedentes (ANDRÉ-
FUSTIER; AUBERTEL, 1998, p. 134).

Para Kaës (2001), o espaço psíquico do grupo familiar


é detentor de uma herança genealógica que fundamenta a
subjetividade do sujeito a partir de aspectos inconscientes.
Deste modo, existe uma trama de alianças inconscientes
previamente estabelecidas que precedem a chegada do
sujeito ao mundo da vida psíquica. O autor coloca ainda que
as alianças inconscientes possuem a função de constituir a
realidade psíquica do sujeito singular, ao passo que ele é
sujeito do vínculo. As alianças inconscientes são
construídas para reforçar certos processos ou estruturas
das quais todos se beneficiam, ligando uns aos outros,
como uma formação psíquica intersubjetiva (KAËS, 2011).
A transmissão psíquica genealógica já é imposta ao
sujeito desde o seu o nascimento, assim como o seu
pertencimento a uma filiação. Kaës (2001) coloca que os
primeiros momentos da transmissão psíquica compõem
desde a inscrição do bebê na família, demandando a
construção de uma matriz de objetos psíquicos -
representações, afetos, fantasias e imagens significativas
- que se apresentam de forma organizada e munidos de
seus vínculos. Entretanto, durante a transmissão, alguns
desses objetos psíquicos são marcados pelo negativo, ou
seja, aquilo que se transmite, mas não foi contido ou
mesmo que foi esquecido, como doenças, vergonha, falta
ou objetos pelos quais ainda há um processo luto que
necessita de elaboração. Portanto, o que se transmite é
tudo aquilo que compete às experiências psíquicas
daqueles que precedem o sujeito na ordem geracional,
desde aquelas aceitas e metabolizadas, até aquelas
proibidas e encriptadas (KAËS, 2001).
Granjon (2000, p. 20) aponta que “o projeto do grupo
familiar é transmitir a herança psíquica e fundadora de

106
cada um e do conjunto”, perpetuando-se e conservando
sua identidade, por meio das gerações e das alianças.
Desta forma, a família é o lugar e o aparelho da
transmissão psíquica. Para Correa (2000a), a base do
fenômeno da transmissão é o mecanismo de repetição de
processos inconscientes que tem como motor os vínculos
afetivos, em especial os mais intensos na primeira infância
(CORREA, 2000b).
Há duas modalidades de transmissão, a intergeracional
e a transgeracional. Na primeira, tratam-se dos valores e
investimentos narcísicos das gerações anteriores que se
inscrevem na pré-história do sujeito, e que, portanto, têm
valor estruturante nos processos de subjetivação, fazem
parte de uma herança (PUGET, 2000). Em outras palavras,
na transmissão intergeracional a herança familiar é
memorizada, historicizada, transformada, elaborada e, por
fim, transmitida de uma geração à outra (BENGHOZI, 2010).
Granjon (2000) afirma que o sujeito seria “herdeiro forçado,
beneficiário, mas também pensador e até mesmo criador,
daquilo que lhe foi transmitido” (GRANJON, 2000, p. 18).
Por outro lado, na transmissão psíquica
transgeracional, os materiais psíquicos transmitidos não
são simbolizados, e portanto, não podem ser falados,
rememorados ou lembrados conscientemente (PUGET,
2000). Este conteúdo transmitido em estado bruto, sem
elaboração ou metabolização, sobre os quais não há
possibilidade de pensamento, podem, segundo Granjon
(2000), levar a intensos sofrimentos ou até psicopatologias
nas gerações seguintes, uma vez que os significados não
podem ser herdados, mas mesmo assim são carregados ao
longo da vida de uma pessoa. Neste âmbito, o sujeito pode
não ter a possibilidade de tornar próprios os significados
transmitidos devido a obstáculos na transmissão.

107
Esta impossibilidade se dá porque determinados
conteúdos psíquicos não foram elaborados nas gerações
anteriores. Mesmo não pensados ou ditos explicitamente,
esses conteúdos são transmitidos em modalidades de
relações de objeto, sintomas ou mesmo afetos. Isso
acontece, em geral, quando há algum acontecimento com
potencial traumático ou alienante para os descendentes
que não foi elaborado e que, em geral, estão associados a
vergonhas e conflitos vividos pela família (IGNEZ-
MAZZARELLA, 2006).
Benghozi (2000; 2010) traz contribuições a respeito
destes acontecimentos vividos pelas famílias que podem se
tornar obstáculos para a transmissão. A partir de sua
experiência clínica, constatou que lutos não elaborados e
experiências em situações de trauma e violência, tanto
familiares quanto sociais, podem levar a transmissão
genealógica do impensável, do indizível ou inominável.
Essas experiências traumáticas podem se manifestar como
ressurgência espectrais através de expressões sintomáticas.
O autor coloca que “enquanto a culpa é transgressão no
tocante ao superego, a vergonha é enfraquecimento no
tocando ao ideal do ego” (BENGHOZI, 2010, p.21). Benghozi
(2010) ainda reforça a necessidade do trabalho de
ritualização para que seja possível sobreviver ao
traumatismo.
Além disso, Benghozi (2010) acrescenta que o vínculo
é o suporte da transmissão psíquica, e difere-os em vínculos
de filiação ou de afiliação. No nível vertical da ascendência
(filhos, netos, bisnetos), os vínculos de filiação formam uma
malhagem genealógica, tecendo e construindo/
desconstruindo os vínculos familiares num plano vertical.
Por outro lado, os vínculos de afiliação são aqueles situados
no plano horizontal, e dizem respeito aos vínculos grupais
de pertencimento ou alianças conjugais. Para o autor

108
(BENGHOZI, 2010) é a malhagem grupal que permite a
manutenção da integridade do grupo, desempenhando a
função de continente. Se há fragilidades vinculares, a malha
fica com falhas, furos e com risco de rompimento e, por
consequência, a função continente da malhagem grupal
pode ficar precária, exigindo um trabalho psíquico para a
elaboração destes conteúdos.

Material Analisado

Tipo de Material Filme


Título Original Coco
Nome Traduzido Viva - a vida é uma festa
Gênero animação
Ano 2017
Local de lançamento e Estados Unidos da América,
Idioma original inglês
Duração 1h45 min
Direção Lee Unkrich

Viva – A Vida é Uma Festa (no título original, Coco) é um


filme musical de animação estadunidense do ano de 2017,
produzido pela Pixar Animation Studios e distribuído pela
Walt Disney Studios Motion Pictures.
A história do filme ocorre na cidade fictícia de Santa
Cecília, no México. Aconteceu que, no passado, Amélia
Rivera e sua filha Inês, foram abandonadas pelo músico
Hector, com quem Amélia havia se casado, pois ele decidiu
seguir a carreira musical. Amélia, por sua vez, decidiu banir
a música em sua família e inaugurou uma fábrica familiar de
sapatos. No presente, o tataraneto da já falecida Amélia,
Miguel, mora com a sua família, inclusive sua bisavó, Mamá
Inês. O garoto é apaixonado por música e deseja ser como
o músico famoso Ernesto de la Cruz, também já falecido e

109
que teve seu auge na época em que Amélia havia sido
abandonada.
Certo dia, a partir de uma foto da Mamá Amélia em
que o rosto de seu marido havia sido rasgado, Miguel
descobre que sua tataravó havia sido casada com um
músico e este segurava o mesmo violão que era usado por
Ernesto de la Cruz. Assim, o garoto presume que é parente
de Ernesto e conta isso a sua família juntamente com a
notícia de que estava inscrito em um show de talentos que
aconteceria no Dia dos Mortos na vila em que moravam.
Sua avó, irritada, quebra o violão de Miguel que havia sido
escondido por todo esse tempo, já que o garoto quebrou a
regra familiar acerca da proibição da música.
Miguel foge de sua família e vai até o show de talentos,
mas para se apresentar era necessário seu próprio
instrumento. Sem conseguir um violão emprestado, o
garoto decide ir até o memorial de Ernesto de la Cruz e
pegar emprestado o violão de seu suposto tataravô.
Entretanto, ao roubar um pertence de um morto, Miguel é
amaldiçoado e passa a ser invisível aos vivos, porém, visível
aos mortos, inclusive a seus familiares que já haviam
morrido. Para retomar ao Mundo dos Vivos, é necessário
que Miguel receba a bênção de um familiar. É na busca
dessa bênção que o garoto passa a descobrir e revirar
diversos segredos e traumas vividos pelos seus familiares
ascendentes.

Análise Crítica

Miguel nasceu em uma família de sapateiros. É uma


família grande, unida e que vive em torno da fábrica de
sapatos que sua tataravó construiu quando foi abandonada
pelo marido, fato que foi extremamente marcante para os
Rivera. A vida da família e suas casas gira em torno desta

110
fábrica de sapatos na qual todos os membros trabalham.
Nesse sentido, o investimento narcísico dos pais de Miguel
caminhava nesta direção, esperando que ele seguisse a
tradição familiar, conforme sugere Kaës (2011). Para o autor,
o sujeito está inscrito inevitavelmente numa ordem
intersubjetiva que, de certa forma, o constitui (KAËS, 2011).

O indivíduo leva de fato uma dupla existência: uma em que


persegue seus próprios fins e outra em que é o elo de uma
corrente, à qual serve involuntariamente e, às vezes, contra
sua vontade (FREUD, 2004, p. 101).

Esta imposição da família de Miguel em relação ao


ofício de sapateiros pode ser compreendida a partir da ideia
de um pacto narcísico, segundo os termos de Aulagnier
(1979). Ao promover cuidado e idealizações à vida do
pequeno Miguel mesmo antes de seu nascimento, sua
família investiu narcisicamente neste novo membro do
grupo. Este, por sua vez, tem como dever perpetuar a
história e a genealogia deste grupo e de seu modelo
sociocultural. No filme, é possível notar que se espera de
Miguel, que ele continue a tradição da família de sapateiros,
como se pode observar na cena em que a avó, querendo
que o neto não toque mais músicas nem frequente a praça
da cidade, oferece ao menino que ele comece a aprender o
ofício da família.
Na transmissão psíquica entre as gerações, existe uma
maneira de compreender o lugar que o sujeito ocupa e que
traz consigo uma pré-história, que se constitui nas vivências
psíquicas daqueles que o precederam na ordem geracional
a partir de uma formação psíquica intersubjetiva (CORREA,
2013). Kaës (2001) afirma que o sujeito faz parte de um
espaço intersubjetivo, pois ao bebê não é possível a escolha
de pertencer ou não a um grupo, uma vez que, ao nascer, é
inserido nele. Assim, ao se constituir através de um Outro e

111
ser tomado pela história alheia, existe a possibilidade de
marcar uma diferença que passa pelo pertencimento ao
grupo familiar, mas fazer dessa herança genealógica algo
pensado, transformado, simbolizado e, com isso,
apropriado (IGNEZ-MAZZARELLA, 2006).
Se, por um lado, o sujeito chega de forma mais passiva
e dependente, é necessário que, de forma ativa, ele
historicize sua herança, do contrário, ele torna-se alienado à
história familiar sem conseguir se posicionar sobre ela (KAËS,
2001), como coloca Freud (1996, p. 160) “aquilo que herdaste
de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”. Dessa forma,
cada um tem como tarefa, a partir de experiências novas,
transformar heranças não elaboradas (GRANJON, 2000).
Ao não corresponder à vontade da família de que ele
seja sapateiro, Miguel sente-se preso nessas regras
familiares que lhe são feitas implícita e explicitamente: ele
não pode gostar de música. Miguel sempre se sentiu
diferente, sem compreender o que se passava com ele.
Afirma, logo nos primeiros minutos do filme: “Às vezes,
acho que estou amaldiçoado…. Por causa de uma coisa que
aconteceu antes mesmo de eu nascer”. Esta fala indica que o
personagem, ao gostar de música e enfrentar a família,
chama atenção para uma transmissão, uma “maldição” que
não foi incorporada, e que não pode ser dita.
Pode-se hipotetizar que o abandono do tataravô de
Miguel foi um evento traumático para a tataravó. Pelo
caráter de excesso, esse conteúdo foi expulso da memória,
negando a música na família e rasgando seu rosto da foto
que ficava no altar dos antepassados dos Rivera (Figura 1).
Diante de tamanha dor, Mamá Amélia deu origem à fábrica
de sapatos como uma forma possível de seguir caminhando,
seguir sua genealogia protegida das memórias traumáticas,
como um sapato que protege os pés das pedras no
caminho. A partir disso, constitui-se na família um pacto

112
denegativo: organizando os vínculos, por um lado, e
defendendo-se do conteúdo traumático, por outro.
De acordo com Kaës (2001), o pacto denegativo diz
respeito a um pacto grupal sobre o negativo da transmissão.
Neste tipo de aliança defensiva, exige-se que as pessoas do
vínculo recalquem, recusem ou rejeitem algo para que o
vínculo se mantenha. Um exemplo claro deste pacto no
filme está na negação da música e da recusa de todos os
membros da família da possibilidade de Miguel tocar na
praça da cidade. A música é denegada por todo o grupo,
mantendo-o unido e defendendo-o a memória traumática.

Constituir-se herdeiro desta herança negativa implica,


também, que o sujeito seja convidado para isto, que isto lhe
seja imposto, e que, então, se ele não puder modificá-lo,
torná-lo seu, ele se aliene e renuncie, em parte ou totalmente,
à sua própria subjetividade (GRANJON, 2000, p. 27)

Foi no Dia dos Mortos, celebração tradicional


mexicana, na qual os entes queridos próximos podem
visitar seus parentes vivos, que Miguel percebeu que há
uma parte de sua história que pode não ter lhe sido contada
propriamente. Em meio a confusão, quebra o vidro do
porta retrato de sua tataravó, Mamá Amélia, com sua
bisavó, ainda bebê e o seu tataravô, de rosto desconhecido.
O recorte da foto pode estar relacionado a algum fato da
história dos Riveira que tentou ser apagado - o abandono
de Papá Hector. A tentativa de apagar aquela pessoa da
história na família gerou um buraco, uma lacuna na
transmissão, assim como a lacuna da fotografia (Figura 1).
Embora fosse de conhecimento de todos que a
tradição de fazer sapatos tenha vindo após o abandono
desse tataravô, Miguel não sabia que a família já havia
gostado de música: fato impensável diante do pacto
denegativo vigente. Ao olhar a foto em sua totalidade

113
(Figura 1.), revelando o violão que tinha sido escondido, o
menino sente-se impelido a buscar tal lacuna de sua história.

Figura 1. Retrato dos tataravós e a bisavó de Miguel.

A partir desta descoberta, Miguel parte para uma


aventura no Mundo dos Mortos. Vai buscar junto aos seus
antepassados que retornam no Dia dos Mortos, a história
que ficou apagada e escondida na genealogia de sua família.
Isso se passou após o garoto negar as imposições de sua
avó, pai, mãe e demais familiares e ir atrás do seu desejo de
participar do show de talentos da vila em que morava,
repetindo os passos de seu tataravô que abandonou a
família em busca da música.
A repetição de sintomas entre as gerações, ocorre
devido ao que Benghozi (2010) define como transmissão de
um roteiro genealógico inter e transgeracional que envolve
os membros da família. O roteiro genealógico, segundo o

114
autor, remete a uma incapacidade de metabolização
psíquica incorporada; é a expressão inconsciente ocorrida
através de uma encenação transmitida de geração em
geração. A expressão da repetição é a expressão sintomática
de uma tentativa de preencher as lacunas inconscientes
deixadas pelos segredos dos outros no grupo familiar.
Ao contrário da memória intersubjetiva, ou seja,
espaço dos conteúdos que foram simbolizados e podem
ser passados e evocados, confirmando o sentimento de
pertencimento, Miguel está em busca de uma memória que
foi “rasgada” e “escondida” da história de sua família.
Diante de um evento traumático, o conteúdo pode não ser
elaborado (no caso, o abandono do músico), criando um
traço na genealogia sobre o qual não se pode pensar ou
simbolizar. Esses conteúdos não subjetivados, entretanto,
continuam insistindo em se inscrever, numa repetição
(BENGHOZI, 2000). Assim, as dificuldades de
estabelecimento de processos simbólicos, se relacionam,
na transmissão, não somente com o conteúdo negativo em
si, mas com a impossibilidade de elaboração deste
conteúdo (GRANJON, 2000).
O abandono do tataravô de Miguel, Papá Hector,
parece ter sido um evento tão traumático na família Rivera,
que formou o que estudiosos da transmissão psíquica
chamam de cripta. Abraham e Torok definem a cripta como
um sintoma da patologia da transmissão psíquica, em um
luto não efetuado ou uma vergonha sepultada, sem
possibilidade de elaboração, através de uma introjeção
impossível, em uma dimensão transgeracional (REHBEIN,
CHATELARD, 2013; FÉRES-CARNEIRO, 2005).
Em contato com uma mãe ou pai portador de cripta,
pode ocorrer a determinação de um fantasma inconsciente
no filho. A cripta, portanto, é um mecanismo de clivagem
para evitar o sofrimento através de um pacto denegativo,

115
organizando os laços através da defesa em relação a um
conteúdo traumático, mantendo isolado aquilo que
ameaça o funcionamento psíquico dos sujeitos do grupo
(CORREA, 2000a; GRANJON, 2000; IGNEZ-MAZZARELLA,
2006). No caso da família Rivera, foi justamente o
desaparecimento do tataravô, vivido por sua esposa como
um doloroso abandono, que constitui um luto traumático,
não elaborado, que deu origem à transmissão
transgeracional. A música remetia a este conteúdo
traumático, e por isso foi abolida, expulsa da família,
evitando a dor a qual aquele conteúdo remete.
Em suma, se participar da produção de sapatos dita o
pertencimento à família, ao reivindicar que não gosta de
fazê-lo, Miguel se sente impelido a buscar a história rasgada,
cortada da memória de sua família. Movido pela necessidade
de enfrentar esta transmissão que não foi incorporada e para
a qual não há história, Miguel pôde descobrir as lacunas da
família Rivera que não lhe foram contadas. Ao ir para o
mundo dos mortos, o garoto consegue decifrar o enigma: o
tataravô não abandonou a família, mas foi assassinado pelo
famoso cantor, Ernesto de la Cruz. Ao saber da verdade,
Miguel pôde recontar a história, trazendo à tona o
verdadeiro motivo pelo qual seu tataravô nunca retornou
para casa. Dessa maneira, o conteúdo antes denegado e
encriptado pode ser contato, elaborado.
Isto remete a importância da memória na construção
da subjetividade. A música tema do filme trata justamente
a este aspecto:

Lembre de mim
Hoje eu tenho que partir
Lembre de mim
Se esforce pra sorrir
[..]
Lembre de mim

116
Não sei quando vou voltar
Lembre de mim
Se um violão você escutar

Ao longo da jornada de Miguel no Mundo dos Mortos,


buscando um encontro com seu tataravô, os personagens
correm contra o tempo para restituir a memória familiar.
Nesta corrida, buscam a benção de algum ascendente para
que Miguel possa tornar-se músico e desta forma, volte ao
Mundo dos Vivos. É a memória de sua bisavó, Mamá Inês (a
única que ainda se lembrava de Papá Hector), o que o
mantém vivo no Mundo dos Mortos. É, também, a partir do
momento que sua tataravô (filha de Papá Hector) pode
contar as memórias que têm de seu pai e que Miguel pode
dizer o que realmente aconteceu com seu tataravô, que a
história da família pode ser recontada, e a imagem rasgada
da foto, pode ser restituída.
Pode-se notar, diante do descrito, a importância da
memória na transmissão psíquica. A transmissão,
sobretudo aquela sobre a qual se pode falar e representar
(transmissão intergeracional) se faz a partir dos traços de
memória das gerações ascendentes, e da possibilidade de
contar essas histórias (PUGET, 2000). É a partir das histórias
contadas entre uma geração e outra que se formam as
crenças partilhadas, os mitos familiares e o pertencimento,
subjetivantes para o sujeito. Diferem-se, portanto,
daquelas memórias que foram “rasgadas”, apagadas. Isso
fica claro na voz de Miguel a sua tataravó, Mamá
Amélia: ”Você pode não perdoar, mas não pode esquecer”.
Se num primeiro momento repetiu exatamente o que
o tataravô fez sem o sabê-lo: abandonou sua família em
busca de seu sonho com a música, após tomar
conhecimento da história de seus tataravós, faz dela uma
herança, tornando-a parte de sua história. Com a
possibilidade de lembrança e recordação mantém as

117
pessoas e as memórias, de alguma maneira, vivas (no
Mundo dos Mortos porque presentes no Mundo dos Vivos).
Em uma das últimas cenas do filme, o personagem principal
pode, no Dia dos Mortos, cantar junto a sua família, e narrar
sua história para as próximas gerações.

Considerações Finais

O estudo da transmissão psíquica geracional a partir


do filme “Viva: a vida é uma festa” permite ilustrar os
mecanismos de repetição geracional decorrentes de
traumas, lutos e vergonhas familiares. A animação nos
mostra que sofrimentos “rasgados” da história da família
não são completamente apagados, mas sim transmitidos
como um negativo.
À guisa de síntese conclusiva, vale reforçar que a
família torna-se responsável por transmitir a preservação
do material psíquico, de maneira inconsciente, para as
gerações seguintes, por meio da linguagem, do simbólico e
de dimensões imaginárias nos vínculos familiares. Dessa
forma, a transmissão psíquica, tem caráter estruturante
para o bebê e busca inscrevê-lo de forma física e psíquica
em uma história familiar, por meio dos afetos,
representações e fantasias. Portanto, a transmissão
psíquica geracional pressupõe considerar a história e a pré-
história de cada sujeito em seu processo de singularidade e
subjetivação.
Essa transmissão pode ser distinguida em duas
modalidades: a transmissão intergeracional em que o
conteúdo é memorizado, transformado e elaborado para,
assim, transmitir a próxima geração, ou seja, um processo
de apropriação e; a transmissão transgeracional em que o
material não é transformada nem simbolizado, em geral,
por meio de segredos, não-ditos, interditos, histórias

118
lacunares. Sem haver a possibilidade de transformação,
elaboração e apropriação do conteúdo transmitido, estes
acontecimentos não terão continência e representação,
tornando-os, assim, em processos patológicos,
sintomáticos e traumáticos, sujeitos à repetição. Durante o
filme, na família Rivera, o abandono do tataravô em busca
do desejo de viver da música tornou-se tão traumático, que
a música precisou ser abolida daquela família a fim de evitar
o sofrimento que o conteúdo ecoava.
É durante a celebração do “Dia dos Mortos” que o
personagem Miguel percebe uma parte de sua história que
pode ser contada, um conteúdo transgeracional que requer
de uma transcrição transformadora. Com isso, sem
perceber, Miguel repete os passos do tataravô em busca da
realização de seu sonho, viver da música, uma repetição de
conteúdo não metabolizado. Esta busca acaba levando-o
ao Mundo dos Mortos, onde o garoto consegue restituir a
memória familiar, percebendo que, na verdade, Papá
Hector havia sido assassinado, e obter a redenção familiar
a seu tataravô, tornando possível que a história da família
seja recontada.
Pode-se concluir que o filme, sob a ótica da psicanálise,
revela a importância da elaboração e simbolização de
conteúdos potencialmente traumáticos. Para tal, estes
conteúdos precisam ser ditos, contados e recontados
através das gerações. Miguel, ao encontrar as lacunas de
sua família, abre esta possibilidade de memória, de
narrativa. É somente a partir das histórias transmitidas de
uma geração a outra que se formam as crenças partilhadas,
os mitos familiares e o pertencimento, que são
subjetivantes para os sujeitos do grupo.

119
Referências

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WEISSMANN, L. Interculturalidade e Vínculos Familiares.
Blucher, 2019.

122
Capítulo 7

DISTANTE DA DOR DO OUTRO: ANÁLISE DA


VÊNUS NEGRA E A DIFERENÇA COMO MEIO DE
EXPLORAÇÃO COLONIAL

Drielly T. Lopes Silveira


Sofia Freire

Introdução

O título deste ensaio baseia-se na obra de Susan


Sontag: Diante da dor do Outro, em que a autora busca
demonstrar, especialmente a partir de descrição de
imagens de guerra, como o retrato do sofrimento nos
desperta sentimentos de horror, a partir da identificação
com um outro corpo ferido, esquartejado, ensanguentado.
Esse outro humano, que se assemelha a mim, comove e nos
movimenta a partir do reconhecimento das semelhanças.
No desenvolvimento de sua obra, Sontag (2003) nos
afirma sobre o distanciamento existente entre as
fotografias de países colonizadores, e dos países
colonizados, sendo os segundos passíveis de serem
fotografados em condições mais ultrajantes e de maior
violência. Para a autora, há algo da construção de um
inimigo desumanizado, tratado como um selvagem. Neste
sentido, tal como a epígrafe que inicia esse trabalho, a
autora desenvolverá este raciocínio ao nos dizer:
Quanto mais remoto ou exótico o lugar, maior a
probabilidade de termos imagens frontais completas dos
mortos e dos agonizantes. Assim, a África pós-colonial
existe na consciência do público em geral no mundo rico —
além da sua música sensual — sobretudo como uma

123
sucessão de fotos inesquecíveis de vítimas com olhos
esbugalhados, desde as imagens da fome em Biafra, no fim
da década de 1960, até os sobreviventes do genocídio de
quase 1 milhão de tútsis em Ruanda, em 1994 e, poucos
anos depois, as crianças e os adultos cujas pernas e braços
foram amputados durante a campanha de terror em massa
promovida pela ruf, um movimento rebelde de Serra Leoa.
(SONTAG, 2003, p. 44)
Não muito distante do texto construído por Sontag, a
estética dos corpos “incomuns” disseminar uma lógica
colonial, a partir do que viria a ser definido como “shows de
aberrações” ou Freak Shows, na Europa e USA. O uso da
estética corporal como definidora de padrões sustentaria
junto ao imaginário europeu uma relação de animalidade
diante dos corpos distantes do padrão branco europeu.
Assim, é a partir do distanciamento da identificação com
um corpo africano que uma das principais figuras destes
períodos é conhecida: Sarah Bartmaan.
Sarah Bartmaan ou Saartije Bartmaan em sua língua
nativa, seria uma representante do povo coisaã, nativos do
território que hoje chamamos de África do sul. Pela
estranheza e desconforto causado por seu corpo diante de
um britânico visitante em sua terra natal, é convidada à Grã-
Bretanha para exposição naqueles que ficaram conhecidos
como Freak Shows – ou show de aberrações, em outras
palavras corpos que deveriam determinar a distância
possível entre o humano e o monstro – inumanos.
Balizados por um ideal hegemônico, ao final do século
XIX e início do século XX os corpos que escapam aos
padrões de normalidade são relegados à posição do Freak,
lucrativos shows de aberrações que expunham corpos
dissidentes no cenário europeu e norte-americana.
A proposta dos Freak Shows seria composta por uma
hiperbolização de características corporais que se

124
distanciam do ideal hegemônico. Circundada por
explicações de especialistas e encenação dos
participantes expostos, buscava construir uma espécie de
monstruosidade aos corpos acima do palco, os
animalizando e construindo assim um modelo de
“humano”, dos quais as ditas “aberrações” se
distanciaram. Desta maneira, à plateia observadora era
conferida certa homogeneidade determinada pelo lugar
do observador que, ao distanciar-se do palco, distanciara-
se também dos modelos de monstruosidades construídos
pela exposição.
A exposição da estética de corporalidades
dissidentes é uma característica de considerável
relevância na história do ocidente, tomando esses corpos
a partir de um trânsito entre diferentes posições: o risível
e o temível, o que desperta curiosidade, desejo ou
estranheza. Para Tom Shakespeare (1994), autor inglês
dos disability studies, há uma objetificação da
corporalidade dissidente, a transformando em alvo de um
olhar que projeta sobre ele emoções particulares ou
representações de valores e males específicos.
A aberração despertaria medo, desejo e curiosidade
ao ser exposta ao olhar. Como explora Rosemarie Garland-
Thomson (1996) é circundado por explicações místicas, os
corpos “anômalos” dão espaço à construção da
“monstruosidade”, e vazão a questionamentos sobre o que
competiria aos domínios do “humano” e o que seria
exterior a esse domínio.
Tal como a exposição a partir dos Freak Shows
oportunizaram uma representação desses corpos que nos
aproxima do que Sousa-santos explora como o Eu Ideal a
partir das teorias freudianas, no início dos anos 90,
também conferem um lugar de extimidade, de

125
estrangeirismo à diferença, a partir da ideia da
composição do inumano na aberração.
Neste sentido, este trabalho retoma o longa
metragem “A Vênus Negra” (2010) em uma tentativa de
amarração com os conceitos de inteligibilidade de Butler
(2003), bem como no uso do Unheimlich freudiano e do
Estrangeiro de Sousa Santos (1983), de modo a oferecer
amparo a se pensar uma psicanálise que vise a constituir-se
também a partir de uma diferença pré-determinada pelo
contexto histórico-social, pois como mencionado por
Ayouch(2019):
A alteridade fica no centro do processo: a escuta
analítica só ocorre se ela não procurar reduzir o outro ao
mesmo, trazer o estranho para aquilo que é familiar ao
analista, nem abafar o ininteligível do inconsciente com
modelos de inteligibilidade historicamente situados.
Como podemos ouvir o ininteligível? Como não o
descartar, à primeira vista, enquanto alteridade total e
inacessível nem, ao contrário, reduzi-lo a modelos
familiares? (AYOUCH, 2019, p. 20)
A importância da retomada recente dos debates acerca
das possibilidades de uma psicanálise, bem como demais
ciências humanas, fora dos moldes europeus, permite-nos a
reflexão sobre os lugares de nossos corpos e sexualidades
quando representados a partir de um padrão hegemônico.
Nesse sentido, refletir padrões sobre a sexualidade,
inevitavelmente incidiria sobre a reflexão de padrões
estético-corporais, afinal, a sexualidade se inscreve no
corpo, na história, na construção dos sujeitos, para além da
noção tantas vezes questionada de feminilidade e
masculinidade ou para além das definições diagnósticas
daquilo que deve ser considerado normal ou patológico.
Para Michel Foucault (1988) ou Butler (2001) o corpo se

126
constrói diante de disputas determinadas por relações de
poder que atravessariam os corpos colonizados.

Material Analisado

Tipo de Material Filme


Título Original Vénus Noire
Nome Traduzido Venus Negra
Gênero Drama, Histórico
Ano 2011
Local de lançamento e França, Francês.
Idioma original
Duração 2h40min
Direção Abdellatif Kechiche

Baseado na história de Saartjie Baartman, mulher


africana levada à Londres e obrigada a se expor em shows
de aberrações, o filme a Vênus negra relata a percepção
europeia dos corpos colonizados, a partir de um retrato dos
freak shows europeus e do nascente eugenismo que a
mantém sob detalhadas avaliações clínicas, comparando
sua anatomia a dos macacos.
Na Europa do século XIX, Saartjie Baartman deixa a
África do Sul e é levada por Hendrick Caeza à Londres e
Paris, com intuito de realizar a exposição de seu corpo em
feiras e shows de aberração por essas cidades. Circundadas
por encenações diversas, que iriam desde a jaula de onde
sairia Saartjie à sua animalização e sexualização através de
danças e exposição de seu corpo em tecidos bastante
justos, as apresentações tinham como intuito a
demonstração de sua anatomia corporal como “atípica”,
permitindo que seu corpo fosse dado ao olhar e ao toque
do espectador.

127
Saartije é levada à França para algumas apresentações
e torna-se objeto de observação de teratologistas 1 e
anatomistas que desejam realizar detalhadas medições e
observações acerca de seu corpo. Diante de sua recusa de
ser sua genitália analisada, Saartije retorna às apresentações
e é convocada a shows nos quais seu corpo passa a ser
extremamente sexualizado. Termina seus dias prostituindo-
se, adoecendo e falecendo pouco tempo depois.
Após sua morte, seu corpo torna-se posse do governo
francês, com o direito à detalhada avaliação por parte de
anatomistas e seus restos mortais são conservados em
formol e expostos em Paris.

FREAK SHOWS: o olhar como determinante da dissidência


do Humano

O termo freak, segundo Garland-Thomson (1996), era


utilizado na Inglaterra desde o século XVII como
representação do “esquisito”, sendo em 1847 associado às
anomalias físicas, transformando-as no termo “aberração”.
Os Freak Shows tornaram-se um lucrativo negócio no
século XIX unindo uma plateia bastante democrática, de
nobres aos representantes das classes mais baixas, a
população se reunia em torno do desejo de vislumbrar
corpos distintos sob a marca da “aberração”. No palco, a
busca por exagerar características “monstruosas” do
indivíduo exposto encontrava auxílio em cenários,
adornos corporais, vestimentas ou no discurso
sensacionalista do apresentador, que reinventava

1Teratologia (do grego “terato” – anomalia/monstruosidade), ciência


que se debruçaria sobre a tentativa de descobrir a origem e tratamento
das “deformidades corporais” humanas e que tem seu nascimento
(GARLAND-THOMSON, 1996).

128
histórias acerca das deformidades corporais na tentativa
de hiperbolizar a diferença.
Assim, figuras como a mulher barbada, os gigantes
chineses, anões, gêmeos siameses, hermafroditas,
tatuados ou mesmo pessoas de “etnias exóticas”, foram
envoltos em um processo de exposição física e discursiva,
distanciando-se dos padrões de normalidade a partir dos
“exageros” que marcaram a essência dos espetáculos de
aberrações. Na mesma medida, médicos e especialistas
subiam ao palco para se pronunciarem cientificamente
sobre os fenômenos corporais, enquanto o indivíduo
exposto encenava contradições que remetiam às histórias
relatadas sobre sua origem e condição.
Os limites do humano fazem dos corpos diferentes
objeto do olhar, e os espetáculos que constantemente os
comparavam a animais, através de cenários, encenações e
indagações de “especialistas” transformam-se em um
mercado lucrativo a partir do século XIX. No palco, a busca
por exagerar características “monstruosas” do indivíduo
exposto encontrava auxílio em cenários, adornos corporais,
vestimentas ou no discurso sensacionalista do apresentador,
que reinventava histórias acerca das deformidades corporais
na tentativa de hiperbolizar a diferença.
O trabalho cultural de um Freak Show é tornar a
particularidade física do “anormal” em um texto hipervisível
contra o qual o corpo indistinguível do espectador se
desvanece em um instrumento aparentemente neutro,
intratável e invariável da vontade autônoma. (GARLAND-
THOMSON, 1996, p.10, tradução nossa2)

2 No original: “A freak show's cultural work is to make the physical


particularity of the freak into a hyper visible text against which the viewer's
indistinguishable body fades into a seemingly neutral, tractable, and
invulnerable instrument of the autonomous will”.

129
De acordo com Shakespeare (1994), o “exagero” na
exposição de determinadas características busca
principalmente despertar uma resposta emocional no
espectador. Na mesma medida, as encenações,
performances e histórias que criaram o contexto destes
shows, tinham também o intuito de despertar reações,
sublinhando uma mensagem nas entrelinhas, diante da
qual, a “aberração” seria não apenas não humana, mas
muitas vezes, perigosa. O “olhar”, como enunciado por
Shakespeare (1994), torna-se o ponto de apoio para o
estabelecimento de uma relação de poder, marcada pela
assimetria entre o corpo exposto e o do espectador.
Não muito distante às questões apresentadas por
esses autores, Rago (2008) pontua a exposição dos ditos
“corpos exóticos” nas feiras, circos e freak shows, sendo
estes, geralmente, mulheres de tribos africanas ou
americanas “capturadas” por europeus e levados à
exposição nos espaços mencionados, a partir de um
discurso que visava especialmente produzir “(...) um
estereótipo por meio de uma forma de conhecimento e
identificação ambivalente, com efeitos de verdade que
tornam possíveis os processos de sujeição” (RAGO, 2008,
s/p). É ainda no mesmo texto que a autora se utiliza da
mesma referência de Preciado.
Durante todo o século XIX, homens e mulheres das
tribos africanas foram levados à Europa para serem exibidos,
ao lado dos animais, como lembra o narrador-símio de Kafka,
no conto “Relatório para uma Academia”, nas feiras, teatros
de variedades, espetáculos circenses e exposições
universais, e para serem observados e estudados a fim de
comprovarem-se as teorias médicas eugenistas sobre a
superioridade da raça branca. (RAGO, 2008, s/p)
Rago tem como intuito, demonstrar o forte vínculo
que existiria entre essas exposições e um discurso

130
colonizador que sustentaria uma naturalização de todo
grupo que fuja ao ideal universal do homem branco
europeu.
Os Freak Shows permitiram, não apenas a exposição
corporal a uma plateia atenta ao espetáculo conduzido por
apresentadores, médicos e performatizado por corpos
“desviantes”, mas também o auxílio na delimitação de um
espaço que diferenciava o que era considerado atípico
corporalmente do que, mais tarde, denominou-se
“normalidade”. Para Garland-Thomson (1996):
O trabalho cultural de um Freak Show é tornar a
particularidade física do “anormal” em um texto hipervisível
contra o qual o corpo indistinguível do espectador se
desvanece em um instrumento aparentemente neutro,
intratável e invariável da vontade autônoma(...) (GARLAND-
THOMSON, 1996, p.10, tradução nossa).
Desta forma, como corpos expostos sob a alcunha da
“aberração” ou “monstros”, mais que tornar-se objeto de
espetacularização diante do outro, são envoltos em um
discurso de hiperexposição e “exagero” do que se colocava
como atípico na estética corporal. Como já mencionado em
Shakespeare (1994), o “exagero” na exposição de
determinadas características busca principalmente
despertar uma resposta emocional no espectador. Na
mesma medida, as encenações, performances e histórias
que criaram o contexto destes shows, tinham também o
intuito de despertar reações, sublinhando uma mensagem
nas entrelinhas, diante da qual, a “aberração” seria não
apenas não humana, mas muitas vezes, perigosa.
Diante do corpo sexualizado e animalizado de Saartije,
o expectador se permite ao toque não-consentido, à
erotização, à aproximação da diferença como inumano, o
Outro, distante de mim, o aberrante, o ininteligível ou abjeto.

131
A ideia de abjeção é utilizada por Judith Butler (2002)
ao refletir corpos que, não estando ‘corretamente’
generificados, transforma-se em algo a ser excretado da
sociedade, de maneira a compor as fronteiras da diferença
entre o humano e o inumano. Segundo a autora:
O abjeto designa aquilo que foi expelido do corpo,
descartado como excremento, tornado literalmente Outro.
Parece uma expulsão de elementos estranhos, mas é
precisamente através dessa expulsão que o estranho se
estabelece. A construção do -não eu como abjeto
estabelece as fronteiras do corpo, que são também os
primeiros contornos do sujeito. (BUTLER, 2003, p. 190)
Butler, leitora de Foucault, refere-se à construção de
um exterior constitutivo que delimitaria fronteiras e
permitiria disseminar um ideal de normalidade que
estipularia quais seriam, em nossa sociedade, os "corpos
que importam”. Conforme a autora:
A formação de um sujeito requer identificação com o
fantasma normativo do “sexo”, e essa identificação toma
lugar mediante um repúdio que produz um domínio de
abjeção, um repúdio sem o qual o sujeito não pode emergir.
Esse é um repúdio que cria uma valência de “abjeção” e sua
condição para o sujeito como um espectro ameaçador.
(BUTLER, 2019, p. 23)
Embora a autora defina os termos para reflexões
sobre gênero, desloca-se ocasionalmente suas definições
para refletir outras concepções da abjeção, aqui dada pela
noção de aberração como abjeto. Note-se ainda a
importante posição da abjeção como uma posição
definidora da diferença, como um “espectro ameaçador”,
no sentido de permitir que, sendo seu reconhecimento
possível, possa emergir também enquanto sujeito. Nesse
sentido, o silenciamento de grupos abjetos encontra

132
espaço diante de uma lógica dada pela diferença como
definidora do inaceitável.
Não muito distinto deste sentido, Freud (2019) nos
apresenta a definição de Unheimlich, como um estranho
familiar, algo que deve permanecer oculto, ou nas palavras
do próprio autor: “é uma espécie do que é aterrorizante,
que remete ao velho conhecido, há muito íntimo.” (p.33)
Seguindo por esta questão, aponta-se que é
curiosamente em uma nota de rodapé de seu texto Das
Unheimlich, de 1919 que Freud apresenta uma das possíveis
primeiras definições do termo. Conforme relata,
encontrava-se em uma viagem de trem quando
inesperadamente a porta do toalete próximo a ele se abre
de modo que entra em seu vagão um senhor mais velho, de
pijama. Ao se levantar para informar ao estranho o
equívoco de entrar na cabine errada, Freud percebe
espantado se tratar de sua própria imagem, refletida na
porta que se abriu inesperadamente, conforme escreve:
“Sei ainda que essa aparição me deixou, no fundo,
descontente” (FREUD, 2019, p.103). Lima (2019, p.22)
retorna a esse relato, na tentativa de descrição do ocorrido:
Freud se vê objeto do olhar antipático do Outro,
afetado pela estranha aparição de algo do íntimo que ele
não pôde reconhecer. Esse breve relato da experiência
freudiana nos transmite o cerne da sensação do unheimlich:
a irrupção desconcertante de algo que não se acomoda na
imagem especular, um objeto infamiliar que foge ao
narcisismo pelo qual o sujeito organiza seu mundo.
Lima (2019) remete à aproximação da experiência de
unheimlich à relação com o olhar, ponto nodal do
estabelecimento da diferenciação entre os corpos na
história do continente europeu, exemplificado tal nas
experiências da clínica médica, como exposto por Foucault
(1988), na experiência dos shows de aberrações que

133
denotam a expressão da monstruosidade junto ao
imaginário ocidental.
Márcia Arán, em sua obra O Avesso do Avesso, se
pergunta sobre os possíveis destinos da diferença na
cultura contemporânea. Como psicanalista, feminista e
brasileira, a autora se volta a questionar certas posições da
psicanálise diante das mudanças sociais ocorridas no século
XXI. Para a autora, o potencial subversivo da ideia de
alteridade na psicanálise encontra-se principalmente no
conceito de pulsão e na possibilidade de positivação da
feminilidade, de maneira a pensar formas de subjetivação
que não necessite de um lugar transcendente, universal e
vertical para se referir ao outro. De acordo com a autora:
Assim, o outro só se faz presente como diferença na
teoria psicanalítica quando traz consigo a noção de
indeterminação, contingência, e estranheza, que se
apresenta na maior parte das vezes a partir de uma
metáfora econômica. Isto porque, tendo sido
historicamente excluído tanto de uma certa noção de
cultura como também de formas de subjetivação
ancoradas no princípio de identidade, só pôde retornar
como trauma e, neste sentido, preservar o mal-estar
constitutivo da sociabilidade moderna. (ARAN, 2006, p.
180, grifos nossos)
Retomando a citação ao conceito de Das Unheimliche
do início do texto, e sua potencial aproximação com a ideia
da aberração, aponta-se que essa autora resgata o mesmo
conceito ao qual chama de “condensador da experiência
alteritária na modernidade”. Como bem apontado por
Freud (2019) o sentimento de estranheza desperta angústia
e terror, porém, nem tudo que angustia nessa experiência
seria estranho, pois este traz consigo a noção de familiar.
Como apontado anteriormente, Freud definiria o
conceito de Unheimlich especialmente como algo que,

134
devendo permanecer oculto, saiu a luz, não muito diferente
às questões apresentadas: o obsceno, não deveria ser
exposto e torna-se ridicularizável3. Porém, como bem posto
por Arán, a ideia do escondido que sai a luz, seria talvez uma
das melhores definições do destino da alteridade na
contemporaneidade, considerando ainda pela própria
autora algo que nos é caro: o próprio autor, segundo ela,
busca pelo texto o tempo todo presentificar a violência do
gesto de exclusão do outro, este outro que só poderia
retornar como terror. Gesto este, que não diz apenas do
outro, mas talvez, também daquele que o observa e escuta.
Ainda segundo Arán (2006, p. 184, grifos nossos):
Assim, como afirmamos anteriormente, a experiência
psicanalítica é uma tentativa de abertura em direção à
alteridade. (...) o conceito de estranho-familiar sugere dois
caminhos para a realização deste ato; pensar o outro como
diferente – a realidade externa – e pensar o outro como
uma marca da alteridade dentro de si. Porém, desde já, é
importante que se diga que a possibilidade de distinção de
um ‘exterior – irredutível' e um ‘interior-pulsional’ é sempre
provisória, pois na medida em que a alteridade como
diferença é tudo aquilo que abala as fronteiras do eu, isto
significa pressupor um movimento, uma mescla pulsional,
em que nem sempre estas distinções fazem sentido.
É refletindo possíveis perspectivas de se pensar a
alteridade diante das situações expostas que também Neusa
Sousa Santos (1998) traz a concepção de estrangeiro dentro
do âmbito psicanalítico, assemelhando-se a análise fornecida
por Butler sobre o abjeto, se tratar da projeção do mal para

3 Talvez seja possível aproximar também algumas questões


apresentadas do “posto em cena” a partir do riso com outro texto
freudiano: O chiste e sua relação com o inconsciente (1905), encontra-se
uma “maneira possível” para que esse outro que também habita em mim
seja “exposto”.

135
grupos sociais oprimidos. Souza capta nessa situação a
perda do sentido simbólico que permite a integração no
discurso, o que carrega a duplicidade do estrangeiro
enquanto invisível, mas ao mesmo tempo presente, o que
retorna, ou faz-se enfim visível. A autora define o estrangeiro
a partir do infamiliar freudiano e afirma:

Esse estrangeiro que, desde sempre, vive em nossa casa é o


que há de mais exterior e íntimo, de mais estranho e
familiar. Sendo o mais opaco, o mais escondido, é, ao
mesmo tempo, o mais estranho e o mais interior. O mais
íntimo não se conjuga com a transparência - ao contrário,
ele se diz no mesmo sentido que a opacidade. É capaz de
suscitar angústia e horror justamente porque nos concerne,
convive conosco, e por estar tão em nós, tão escondido em
nós, se perde aí tal qual um bem precioso que, de tão bem
guardado, se perde. (SOUZA, 1998, p. 122)

Considerações Finais

Pensar a construção dos corpos a partir de um


distanciamento do imaginário comum europeu tornou-se
um desafio à psicanálise contemporânea, pois, considera-
se a importância da constituição do sujeito como
representado por seu atravessamento histórico-social na
constituição de seu desejo. Como afinal, nos dirá Ayouch
(2019, p.19):
Cabe, ao contrário, interrogar-se sobre as relações de
poder articuladas no contexto ocidental, que definem o
posicionamento social e psíquico de sujeitos alterizados.
Esse termo diz respeito ao mecanismo de identificação
projetiva que constitui um grupo minoritário como ‘outro’,
numa polissemia: o ‘outro’ do Ocidente tal como foi
definido pelo orientalismo, o outro interiorizado apontado

136
por F. Fanon, mas também a alteridade concebida como
inferior e ameaçadora.
A representação trazida no filme Vênus Negra
demonstra o imaginário relacionado à mulher africana que
reverbera de diversas formas ainda no contemporâneo. O
laço social atravessado por esse imaginário faz com que a
representação monstruosa projete esse infamiliar, esse
estrangeiro nessas representações (SOUZA, 1998). O
caráter de inteligibilidade da categoria de humanidade, a
possibilidade de representação enquanto sujeito desejante
e a performatividade de gênero dentro da norma é
impossibilitada para esses sujeitos, que são marginalizados
no local da abjeção.
O abjeto, a aberração, refere-se ao desvio impensável,
à exposição de uma norma que se impõe silenciosa e
representaria, de maneira geral, diversas faces da diferença
ao imaginário comum europeu. Ao inscrever sua incoerência
com as leis de inteligibilidade hegemônica desafiaria os
padrões estipulados criando resistência e, ao afrontar as
normas, “exporia” a própria norma, bem como suas
possíveis fragilidades. Um corpo, para a psicanálise, bem
como outras teorias como Queer e Crip, inscreve-se não
apenas a partir do corpo físico, o corpo é também linguagem,
discurso. O que diz esse corpo a partir da linguagem? E como
bem posto, sendo a linguagem audível, o que se escuta nesta
ordem do “mostrado”? O que, do escutado, deve
permanecer no “obsceno”, na “outra cena” e o que diz não
daquele que mostra, mas daquele que se reconhece?
Nesse sentido, a pergunta que retorna à psicanálise,
frente à tantos corpos que não importam, denunciados por
um monstro àqueles que “o escutam” (ou não), poderia ser
resumida à afirmação presente neste antigo texto em que
Freud nos descreveria esse Estranho e ou Incômodo
(respeitadas as traduções ao nosso português):

137
O leigo tem aqui, diante de si, a expressão de forças
que ele não imaginara à volta dele, mas cujo movimento
podia ser percebido, obscuro, num canto remoto da
própria personalidade. (...) Não me admiraria ouvir que a
psicanálise, ocupada em descobrir essas forças misteriosas,
tornou-se, ela mesma, unheimlich para muitas pessoas.”
(FREUD, 2019, p. 91)
Diante da atual conjuntura sócio-política, atravessada
pelo decurso das manifestações dos estudos decoloniais e
demais marcadores sociais da diferença
poderia a psicanálise abrir-se a escuta do monstro ou deve
permanecer ensandecida, permitindo-lhe um único lugar: o
de estranho familiar?

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SOUSA SANTOS, N. Tornar-se Negro: as vicissitudes da
identidade do negro brasileiros em ascensão social. Rio de
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140
Capítulo 8

RED: CRESCER É UMA FERA - REFLEXÕES SOBRE A


PARENTALIDADE E VINCULARIDADE

Giovana Benite dos Santos


Roseclair Keller de Oliveira Lima
Mary Yoko Okamoto

Introdução

O recém lançado filme Red: crescer é uma fera


possibilitou analisar e empreender uma reflexão acerca do
tema relacionado ao vínculo familiar e as ressonâncias no
exercício da parentalidade. A análise do filme foi realizada,
a partir da Família e dos vínculos, ao se considerar a
importância da transmissão psíquica entre gerações e ao se
propor a pensar de que maneira se constitui o vínculo na
vida psíquica do sujeito em sincronia com o casal, a família
e outro grupo.
Além do aparato psíquico individual, a psicanálise que
estuda os vínculos considera os laços que se organizam em
torno de dois ou mais sujeitos, influenciando diretamente
na subjetividade. Compreendemos que o grupo produz
efeitos específicos sobre o sujeito e este possui uma lógica
de funcionamento diferente quando está em grupo, eis que:
“não temos como não nos deixar afetar pelo outro”
(WEISSMANN, 2019, p.91).
O vínculo se constitui através das alianças
inconscientes, que segundo Kaës (2011), implica no
processo de ligação entre duas ou mais pessoas, com um
objetivo e comprometimento em comum. É por intermédio
das alianças que é estruturado o vínculo, através de

141
contratos e pactos, que exigem concessões, mas também
possibilita satisfações a partir do que ele chamou de custos
psíquicos. O vínculo da mãe-bebê, bem como o do grupo
familiar inauguram o espaço chamado de intersubjetivo, e
é constituído por uma tecelagem psíquica grupal que
atravessa gerações (CORREA, 2003).
A transmissão psíquica entre gerações é um
importante aspecto que compõe o psiquismo familiar e um
dos principais autores que se dedicou a estudar tal questão
foi René Kaës (2001), a partir da análise do uso do termo
transmissão ao longo das obras freudianas. Kaës (2010)
afirma que o grupo precede o sujeito, isto é, antes mesmo
dele nascer já existe uma pré-história de sua família a qual
ele torna-se herdeiro a partir da transmissão psíquica.
Afetos, representações, fantasias, traumas de uma geração
que antecede são inscritos no espaço intersubjetivo após o
nascimento. Há uma urgência em transmitir, pois nada que
foi retido permanecerá totalmente inacessível para a
geração seguinte. O que está em jogo na transmissão
segundo o autor, é a formação do inconsciente através
daquilo que o sujeito vai herdar e os efeitos das
subjetividades que são produzidos na intersubjetividade.
Este processo solicita um importante trabalho psíquico que
engloba mecanismos de identificação e uma série de
projeções-introjeções, ocorrendo sobre o recalque e a
culpa e envolvendo também diversas categorias de
interdição (CORREA, 2003).
De acordo com Kaës (2001) a transmissão pode
ocorrer de maneiras distintas entre gerações e podemos
caracterizá-las por intergeracional quando o conteúdo a ser
transmitido pode ser simbolizado e representado, podendo
ser retomado e reelaborado. Por outro lado, o
"transgeracional” é aquilo que foi transmitido sem ter sido
simbolizado ou representado, impossibilitando que a

142
geração subsequente reelabore. Isso pode vir a implicar em
uma compulsão à repetição no grupo familiar,
representando uma falha na simbolização. O que vai ser
transmitido engloba as tradições familiares, fantasias,
traumas, valores, segredos, o que pode ser dito e aquilo
que não foi dito, por não conseguir ser elaborado pelo
psiquismo das gerações anteriores. Portanto, ao falarmos
da transmissão psíquica estamos nos remetendo à
formação do sujeito, o modo como ele se subjetiva dentro
e a partir da história familiar, através dos vínculos
responsáveis por transmitir a história (SCHOLZ et al., 2015).
Em nossa análise, iremos nos debruçar no espaço
intersubjetivo, com o intuito de compreender os vínculos
da família Lee, as transmissões psíquicas bem como o
exercício parental. Benghozi (2010) vai nos dizer que o
vínculo é o suporte para a transmissão psíquica,
assegurando que a história familiar seja transmitida para as
gerações subsequente
Levando em consideração que a parentalidade ocorre
no espaço da intersubjetividade, Rojas (2010) nos lembra
que a função parental é de extrema importância para
constituição psíquica do indivíduo, servindo como
sustentação para os impulsos da criança. Para que tal
função possa ocorrer, a autora diz ser necessário a
existência da assimetria adulto-criança, referindo-se aos
diferentes graus de conformação subjetiva entre um e
outro, ao mesmo tempo que existe uma responsabilidade
singular dos adultos. Quando essa simetria entre pais e
filhos se inverte e o poder é entregue às crianças, isso leva
a situações de verdadeiro desamparo. O psiquismo dos pais,
portanto deve servir como apoio e auxílio para a criança
construir suas próprias experiências psíquicas, processar as
angústias infantis, conter impulsos arcaicos e assim

143
contribuir para a estruturação do seu mundo interno
(SCHOLZ et al., 2015).
Para Sólis-Ponton (2004) a parentalidade é “um tipo
de estrutura que se instala em ação e evolui com o
desenvolvimento do indivíduo e a evolução do grupo
familiar” (p. 29). É construída no seio do aparelho
intrapsíquico como produto da intersubjetividade e
transgeracionalidade, organizando o pensamento dos pais
e das crianças, evidenciando que eles têm atribuições,
lugares e obrigações diferentes. A criança contribui
ativamente para a estruturação da parentalidade, sendo o
elemento responsável por inaugurar a tríade. Ela encontra
“seu lugar na família a partir do confronto do bebê
imaginário com o bebê real e da adaptação dos pais às
necessidades do recém-nascido” (p.32). Ao mesmo tempo
em que a criança se constitui, ela parentaliza seus pais que
têm a função de capacitar psiquicamente a criança a viver
em sociedade, ajudando a renunciar à satisfação pulsional,
inserindo-a dentro das leis da cultura. Portanto, os
“interditos e as regras que formam o núcleo da
parentalidade são o alicerce da organização social” (p.36).
Em “Introdução ao Narcisismo”, Freud (1996)
conceitua e discute o termo narcisismo primário e sua
função na constituição psíquica do sujeito, enfatizando o
papel e a importância da relação afetuosa dos pais com seu
filho. Para o autor, quando o bebê nasce os pais retornam
ao seu próprio narcisismo primário colocando o bebê no
necessário lugar de “Sua majestade, o bebê”, ocupando um
lugar de “elo, servidor, beneficiário e herdeiro da cadeia
intersubjetiva que o precede” (KAES, 2001, p. 12). Isto
significa que o filho vem a tornar-se herdeiro dos sonhos e
desejos irrealizados dos seus pais e, portanto, o sujeito do
inconsciente é o sujeito da herança.

144
Do ponto de vista do infans, este momento é
fundamental para a constituição do eu, até então
inexistente, pois possibilita a união das diversas zonas auto
erógenas, servindo como base da constituição do ideal do
eu e contribuindo para a sensação de autoestima do sujeito
ao longo de sua vida. Do ponto de vista dos pais,
entendemos que o investimento feito no bebê seria pelo
retorno ao próprio narcisismo primário, abandonado há
tempos e agora retomado no nascimento do filho,
possibilitando depositar no bebê seus próprios desejos
irrealizados (CASTANHO, 2015).
Para Castanho (2015), existe uma relação entre o
investimento parental e o modo como é vivido o narcisismo
primário pelo bebê: este último é sustentado pelo
investimento parental. Só existe a “Sua majestade, o bebê”
porque existem os pais (os súditos) que possuem seus
ganhos psíquicos e assim proporcionam o reinado do
pequeno rei/rainha. Esta experiência teorizada por Freud,
segundo o autor, indica a lógica das alianças inconscientes,
através do caráter grupal e contratual que sustenta o
narcisismo primário.
Dando continuidade à teoria freudiana, Piera
Aulagnier (2007) afirma que ao receber o investimento
libidinal dos pais o sujeito recebe um lugar de
pertencimento e a possibilidade de se constituir como Eu.
A autora denomina este processo de “contrato narcísico”,
cuja função refere-se à transmissão e preservação dos
valores e ideais de um grupo social, assegurando a
continuidade do grupo. Posteriormente, Kaes (2014)
desenvolve o conceito ao dizer que existem contratos
narcísicos originários, primários e secundários. A vertente
originária seria a entrada do bebê na espécie humana,
enquanto a primária estaria relacionada aos investimentos
parentais. Por último, a vertente secundária estaria

145
baseada no narcisismo secundário, desenvolvendo-se nos
grupos e nas instituições aos quais o sujeito pertence ao
longo da vida (CASTANHO, 2015).
Não podemos pensar a parentalidade sem levar em
conta o momento histórico e cultural no qual estamos
inseridos. No século XX, localizado em um centro político
estratégico e fustigado por duas grandes guerras mundiais,
o psicanalista inglês Donald Winnicott pensou a
parentalidade e sua função diretamente relacionada à
promoção de cuidados necessários para o desenvolvimento
do potencial do bebê. Em seu texto “O bebê como
organização em marcha” (1949) o autor faz uma analogia
entre o cuidado parental e aquele que deve ter no
desenvolvimento de um bulbo. Ao plantarmos um bulbo,
não precisamos interferir para que ele se desenvolva e se
converta em um narciso, para isso, é necessário providenciar
o tipo exato de terra, a dose certa de água e o
desenvolvimento ocorrerá naturalmente, uma vez que o
bulbo possui vida, potencial em si mesmo. Apesar de muito
mais complexo do que o cultivo de um bulbo, para Winnicott
(1949), o cuidado parental tem o mesmo objetivo, ou seja,
fornecer os cuidados necessários para a criança, já que ela
não é autônoma, mas possui seu potencial singular que será
desenvolvido de acordo com os cuidados ambientais,
fornecidos pelos pais. Sendo assim, Winnicott concebia que
a parentalidade deveria ser pensada como responsável por
prover o necessário para o desenvolvimento do bebê. Na
concepção do autor inglês, a mulher se voltaria quase
exclusivamente para a maternidade, enquanto pai assumia o
lugar de sustentação da dupla mãe-filho. Se estes pais
estivessem em boas condições de saúde psíquica e física, o
autor acreditava que conseguiria prover os cuidados
necessários para o desenvolvimento de uma criança
saudável. Caso contrário, a redução destes cuidados, seja por

146
motivos individuais ou sociais, acarretaria na falha em uma
capacidade importante, a capacidade de ficar só. Tal
capacidade incide em muitas outras como a de se concentrar,
criar, o enfrentamento de separações afetivas e a aquisição
da autonomia. (PITLIUK, 2020).
Atualmente, o contexto e a configuração familiar se
alteraram. Por um lado, as tarefas não são mais tão estritas
ao gênero, o homem realiza as tarefas que antes eram
exclusivas da mulher e a mulher em muitas famílias é a
provedora do lar. Por outro lado, os pais geralmente
trabalham em tempo integral e as crianças iniciam a vida
escolar em idade cada vez mais precoce e muitas das
funções que antes Winnicott dizia ser dos pais estão sendo
exercidas por equipe de pessoas ou instituições. As creches,
escolas, babás, profissionais da saúde fazem parte do
ambiente que a criança se desenvolve, fazendo parte
também do processo de subjetivação.
De acordo com Klinko e Carvalho (2021) a experiência
escolar é muito importante no processo de subjetivação da
criança, pois não é constituída apenas pela transferência de
conhecimento, mas também por ser “um espaço e um
tempo de transição entre âmbitos privado e público”, bem
como “uma forma de separação da ordem produtiva e
como anteparo ao universo familiar” (KLINKO E CARVALHO,
2021, p. 58). Além de ser o local onde a criança desenvolve
seu processo de aprendizagem, a escola é também uma
instituição responsável por promover a transição do
ambiente familiar e privado em que a criança vive, para um
mundo plural e compartilhado, podendo conviver com
outras pessoas além de seus familiares. Dessa forma,
“enquanto os alunos experienciam a escola, suas narrativas
individuais e privadas são suspensas por um intervalo de
tempo, o que permite a eclosão de novos modos de se
posicionar frente aos outros e ao mundo'' (p. 62.)”. Além

147
de possuir este caráter de transição e separação, os autores
apontam a escola como um anteparo diante do narcisismo
parental, retomando o que Freud (1996) elucidou,
permitindo outras formas de relação que incluem novas
regras válidas para todos que convivem naquele espaço,
independente de prioridades estabelecidas em suas casas.
Portanto, “a escola assegura uma abertura em relação à
inevitável bolha familiar, criando respiros e
desacomodações a partir da imersão na cultura e das
potencialidades do laço social (p. 64).”

Material Analisado

Tipo de Material Filme


Título Original Turning Red
Nome Traduzido Red: crescer é uma fera
Gênero Comédia
Ano 2022
Local de lançamento e Estados Unidos, inglês
Idioma original
Duração 1h40 min
Direção Domee Shi

O filme Red: crescer é uma fera nos conta a história de


Meillin Lee, a Mei-Mei, uma adolescente de 13 anos de
origem chinesa, que vive com seus pais Jin e Ming, na
cidade de Toronto, no Canadá. Iniciando sua fase de
adolescência, o filme retrata algumas características
próprias deste momento como a identificação com um
grupo, a idealização da banda e mudanças nas relações com
os pais, principalmente com Ming, uma mãe extremamente
exigente com relação à rotina e, principalmente com o
cumprimento dos deveres escolares, sobretudo porque o
ideal projetado pela mãe em sua filha diz respeito ao
sucesso escolar e subsequentemente profissional. No

148
entanto, para o cumprimento de tal ideal, a mãe estabelece
uma rotina rígida, com horários pré-estabelecidos para que
a filha cumpra todos os deveres escolares, doméstico, além
de auxiliar a família no templo religioso administrado pela
família.
No entanto, para o cumprimento desta agenda
estabelecida rigidamente pela mãe, não resta espaço para
o lazer, festas, brincadeiras, apenas o cumprimento de
obrigações. Mas Mei-Mei integra um grupo de amigas e
compartilham as experiências vividas nesse momento da
vida: músicas, ídolos, jogos e festas, as primeiras
experiências amorosas e de amizades.
Em um certo dia, a mãe de Mei-Mei encontra desenhos
feitos pela filha, os quais declararam toda a paixão pelo
garoto que trabalha no mercado. Assustada com a
possibilidade do desenho ser um retrato da realidade, a
mãe se enfurece com o garoto e vai até o local em que ele
trabalha culpabilizando-o, na frente da filha e de seus
colegas. Totalmente envergonhada e assustada com o que
a mãe acabara de fazer, Mei- Mei chora e se desespera ao
longo de toda a noite, sentindo muitas emoções como a
vergonha, raiva e tristeza. Após esta noite, ela acorda
transformada em um panda gigante vermelho e agora
precisa aprender a lidar com esse seu novo temperamento
feroz. A partir de então, em todas as ocasiões nas quais se
sente muito irritada ou muito emocionada, ela se
transforma no Panda Vermelho.
Esta transformação é fruto de uma tradição familiar
até então desconhecida por Mei-Mei que acomete as
mulheres daquela família, e que surgiu nas gerações
antepassadas como uma forma de proteção da prole.
Inconformada com esta tradição familiar, ela vai encontrar
nas amigas uma importante rede de afeto, sentindo-se

149
aceita e estabelecendo uma relação mais espontânea,
diferente daquela que possui com sua família.
No entanto, após a transformação, a mãe torna-se
ainda mais apreensiva com as atitudes da filha, com receio
do que poderia acontecer com Mei-Mei enquanto estava na
forma de panda. Ming estava disposta a fazer tudo que
estava em seu alcance para que o panda desaparecesse e a
tradição familiar fosse cumprida. Mas, o pai percebe que
para isso acontecer, Mei-Mei precisaria se desprender de
um lado dela, que na verdade todos possuem, e seria
preciso aprender a lidar com este desafio. A partir deste
diálogo, Mei-Mei passa a perceber aquela tradição de uma
forma diferente de sua mãe, tias e avó e resolve cumprir tal
legado transgeracional de outra maneira, diferindo das
escolhas realizadas nas gerações anteriores, que
escolheram abrir mão do formato panda. Mas Mei-Mei
decide mantê-lo, o que ocorre em algumas situações e
enfrentando essa ambivalência afetiva. O filme nos mostra
nuances da adolescência junto com a importância do grupo
e das identificações neste momento da vida, além de
mostrar o lugar que os filhos ocupam diante da história
familiar que o precede.

Análise Crítica

Red: crescer é uma fera é um filme que nos apresenta


questões importantes de modo lúdico e animado e que nos
provoca inúmeras emoções ao ponto de nos capturar às
vivências mais íntimas e genuínas, pois nos remete aos
sentimentos de vínculos afetivos no laço familiar e nas
relações com grupos de amigos.
Há uma diversidade de possíveis abordagens temáticas
de interesse para análise a partir da perspectiva psicanalítica,
entretanto, iremos eleger alguns pontos voltados à

150
discussão do tema da parentalidade, tão em voga nos dias
atuais, possivelmente frente às inúmeras transformações e
necessária construção contínua do conceito.
Logo nas cenas iniciais fica evidente a necessidade da
contextualização tempo/espaço, pois trata-se do ano de
2002, logo após o bug do milênio e a consequente explosão
tecnológica e avanço da globalização, e nos deparamos com
o intercâmbio cultural, haja vista se tratar de uma família de
origem asiática residindo na América (Toronto/Canadá),
além do que, no transcorrer das cenas, nota-se a presença de
diferentes nacionalidades dos personagens.
Com relação ao conceito de parentalidade, que na
abordagem apresentada, nos interessa destacar a
importância do outro na constituição da subjetivação
humana, pois sabemos que nascemos e no decorrer de
todo o desenvolvimento vamos nos constituindo a partir do
vínculo entre um e mais um e outros, no primeiro grupo
vincular e pertencimento, a família.
Nota-se que a família Lee se apresenta por meio de
fotos, histórias e tradições, num enredo contextualizado a
partir da narrativa da adolescente Mei-Mei de 13 nos (1994-
2002), mas que inicialmente já adverte que é preciso
respeitar e ter gratidão aos pais, porém é necessário honrar
a si mesmo, com isso demarca a sua singularidade.
E é assim que Kaës (1997), nos apresenta a
perspectiva vincular da intersubjetividade onde a lógica é
do dois, da presença e da imprevisibilidade, muito bem
retratada no transcorrer do filme em que Mei Mei seria o
elo de ligação entre duas gerações demarcadas por
segredos e marcas não simbolizadas, tampouco elaboradas
nas figuras das matriarcas, demonstrando a constituição do
sujeito enquanto herdeiro. No caso do filme, trata-se de
uma herança transgeracional, mantido em segredo pela
família materna.

151
Compreende-se que ao chegar num grupo familiar, o
filho já tem ali o seu lugar sonhado, o que fora inicialmente
apontado por Freud (1996), em que aborda o necessário
retorno ao narcisismo primário dos pais com o nascimento
do filho que necessariamente viverá o momento de “Sua
majestade o bebê”, o que será importante para o sujeito na
formação da sua autoestima por toda a vida.
Para tanto, é importante que haja o investimento
parental, o que é claramente colocado no filme com a mãe
que se sente cobrada em ser perfeita e exige da filha
também a perfeição, demonstrando o investimento
narcísico parental para a constituição da filha, sobretudo
dos ideais compartilhados com uma família. Nota-se que
até mesmo o jeito de se vestir de Ming segue o mesmo
padrão de sua mãe, além do comportamento nas escolhas
das amizades, namoro, profissão e o futuro de Mei Mei. O
filme aponta a intensidade de exigência, de certa rigidez de
uma família culturalmente caracterizada por uma cultura
oriental, além de portadora de um legado ao qual Mei-Mei
terá que enfrentar ao longo do enredo apresentado.
Em relação ao contrato narcísico, conceito enunciado
por Piera Aulagnier (1979), e que, de acordo com Kaës
(1997), trata-se de uma aliança inconsciente estruturante e
de fundamental importância ao processo de identificação
do sujeito, pois é por meio dele que o grupo familiar irá pré
investir na criança, com a esperança de se preservar a
história e para a criança, é fundamental o sentimento de
pertença. Nota-se que no caso da família Lee, o Panda
Vermelho possibilita o acesso à historicidade familiar,
fundamental ao processo identificatório, bem como à
necessária autonomia do Eu. Observa-se que no transcorrer
de toda trama, as diferentes posturas de Mei Mei quando
sozinha, junto aos pais, às amigas e demais grupos, até
mesmo em diferentes lugares.

152
Outro ponto interessante a ser destacado, é a
transmissão psíquica transgeracional, a questão do
segredo familiar e o quanto isto impossibilita ou limita a
comunicação mais espontânea e transparente, pois a todo
tempo é perpassada por um medo/vergonha e o “ não dito”
familiar, havendo a necessidade de uma vigilância
constante e com isso muitos afetos são recalcados. A todo
instante seja a mãe, a avó ou as tias tentam fazer com que
Mei-Mei esconda o Panda Vermelho, pois para a família o
que era uma dádiva teria se tornado um martírio a cada
nova geração, porém a adolescente escolhe fazer o
contrário, ou seja, exibir o Panda Vermelho.
O enredo, muito bem apropriado do momento da
adolescência, período predisposto à reacomodação das
identificações e à emergência de traços de memórias
inconscientes com valor traumático da história familiar
(CORREA, 2013, p. 46) explora o tema da transmissão
psíquica, demonstrando o surgimento do segredo e,
sucessivamente, até que a personagem é confrontada no
portal e, num diálogo entre a mãe e a filha, é revelado o
motivo do medo e culpa de sua mãe, que, ao se transformar
no panda, em sua juventude, feriu a avó em função de sua
escolha amorosa. O encontro pode evidenciar igualmente,
a excessiva preocupação e investimento da mãe, temendo
pelo encaminhamento do futuro da filha.
No transcorrer de toda trama fica evidente que o
processo de transmissão psíquica entre gerações não é
passivo e se dá de modo contínuo e dinâmico, e, no caso de
Mei Mei, é possível observar que como a única herdeira
genealógica naquele núcleo familiar, pode se reconhecer
como parte de uma geração e propor a metabolização e
transformação dos mitos e segredos de sua família, através
da transformação e integração do legado familiar ilustrado
pela transmutação em Panda.

153
Em relação à figura paterna, o Sr. Jim, observa-se que
ele funciona como um ponto nodal da discordância entre
Ming e sua mãe a partir do momento que se rebelou ao
assumir o relacionamento afetivo com ele, a contragosto
da matriarca. Nota-se que o pai se apresenta sempre mais
sereno, porém não menos ativo, pois além de ser o
responsável pelo alimento (perfeito) é ele quem faz as
grandes revelações à filha, marcando a diferenciação entre
Mei Mei e Ming, ou seja, desempenha a função do terceiro
e interditor que coloca os dados de realidade na relação
idealizada da mãe.
A partir do momento que o segredo familiar pode ser
colocado em palavras, vivenciado com afetos, atuado, bem
como valorizado no grupo social e cultural, há uma
transformação em tais conteúdos até então
fantasmagóricos e o Panda Vermelho pode ser simbolizado
e elaborado, desmitificando o mito familiar e o grupo pode
se colocar de modo mais livre e autônomo, sobretudo a
jovem Mei-Mei, que fica mais livre para realizar suas escolhas.

Considerações Finais

A parentalidade, conceito amplamente estudado na


atualidade, tendo em vista toda a sua complexidade e
necessária construção frente ao modo de subjetivação do
humano inserido no contexto sócio histórico cultural, nos é
apresentado nesta animação.
Ao se tornar “pai e “mãe”, ou melhor dizendo, ao
exercer as funções parentais, se vivencia a própria
experiência inicial de vida, pois a parentalidade, é
resultante de um processo maturativo, marcado não
apenas pela constituição intrasubjetiva do sujeito, mas com
as representações parentais constituídas através de mitos
e traumas familiares (Magalhães, 2021).

154
Compreendemos que tal perspectiva vem ao encontro
para o estudo do campo das relações parentais, visto que o
ser humano ao nascer carece de cuidados de um outro para
se desenvolver, revelando a dependência do ambiente e
dos outros que o compõe, indicando a necessidade de que
estes ofereçam os cuidados básicos iniciais incluindo o
afeto, como nos mostrou Winnicott (1967). Destacamos a
importância da constituição intersubjetiva do sujeito,
responsável pela constituição vincular numa trama familiar,
o conjunto que recebe, investe e atribui funções e lugares a
todos os seus novos membros.
Assim compreende-se que a parentalidade se constitui
no espaço intersubjetivo, onde se constitui o vínculo por
meio das alianças inconscientes, que segundo Kaës (2014)
são descritos como o cimento dos vínculos os quais
estabelecem ligação direta com espaço intrapsíquico, bem
como com o tempo e espaço do sujeito inserido em sua
cultura, considerando a inter-relação com o espaço
transubjetivo.
Conclui-se que a parentalidade, a partir da perspectiva
da psicanálise vincular, é um contínuo, complexo e
paradoxal processo de parentalização e suas diversas
funções, dentre as quais assinalamos além dos cuidados
iniciais essenciais, engloba a interdição e a manutenção das
alianças e o legado que constitui a família.

Referências

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fundamento para o trabalho vincular em psicanálise. Est.

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157
158
Capítulo 9

DE TRAVESSIA A KBELA: PSICANÁLISE NAS


ESCREVIVÊNCIAS DO CORPO EM
MULHERES NEGRAS

Christiane Carrijo
Paloma Afonso Martins

Introdução

Contribuições da Psicanálise: Corpo, Racismo e


Sexualidade em Mulheres Negras

Podemos falar da contribuição da Psicanálise para


pensar o racismo no cerne do psiquismo, na sociedade e na
cultura. No caso de mulheres negras, suas questões com o
corpo, com as representações psicossociais originadas nos
processos identificatórios inconscientes e com a própria
sexualidade são perpassadas pelo racismo, em processos
de intenso sofrimento psíquico. Devido à complexidade
desses temas, discorreremos, em linhas gerais, um campo
reflexivo e conceitual, de preferência, com as contribuições
de três mulheres negras que utilizaram o referencial
psicanalítico nas suas histórias de vida e profissional, como
fonte de compreensão e apropriação de si mesmas e do
mundo: estamos falando de Neusa Santos Souza, Lélia
Gonzalez e Isildinha Baptista Nogueira. Entretanto, antes
de iniciar essa intenção, situaremos especificidades do
corpo e da sexualidade na psicanálise.
O corpo em psicanálise, lugar de inscrição do psíquico
e do somático, como decorrência do conceito de pulsão,

159
desde Freud, problematiza a diferença entre o desejo e a
necessidade (FERNANDES, 2011). O corpo do qual a
psicanálise fala, apesar de levar em consideração o
orgânico, as necessidades, enfatiza o libidinal, o erógeno,
logo, o desejo inconsciente. Dessa forma, o corpo objeto da
anatomia não é o corpo todo. Muito pelo contrário, ele tem
limites e ganha seus contornos e expressão apenas com e
no corpo erógeno e esse é tecido numa trama significante
fantasmática pelos diversos discursos circulantes no tecido
social, mais especificamente pelo Outro e esse, inicialmente,
na infância, são os cuidadores, mãe e pai ou quem realiza as
funções maternas e paternas. O corpo é atravessado pelo
simbólico e ele também é fantasístico, histórico e singular,
único em cada pessoa, marcado pela presença e ação do
Outro, no banho de linguagem da Cultura. À relação da
pulsão sexual com o corporal soma-se com o conceito de
sexualidade como proposto pela psicanálise.
No artigo Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade,
Freud (1996) introduziu a ideia da sexualidade infantil como
gênese das neuroses em um caminho para explicar a
histeria, pois as fantasias das pacientes histéricas
confirmavam a existência de uma sexualidade na infância.
A pulsão sexual percorre os estágios do corpo em
construção e se divide em pulsões sexuais parciais, no oral,
anal e fálico. Assim, a sexualidade humana é expressa, num
primeiro tempo, na infância, nas vivências do autoerotismo
das pulsões parciais. Apenas, no segundo tempo, com a
adolescência, a sexualidade humana se expressa na pulsão
genital e, por isso, a proposta freudiana defende a
existência de uma bitemporalidade sexual para os seres
humanos. A latência, intervalo após a passagem pelo fálico,
de interrupção temporária da busca pela satisfação das
pulsões sexuais parciais, situa a divisão temporal e
possibilita o deslocamento pulsional para atividades sociais

160
e culturais. A bitemporalidade do sexual e os diques
educacionais e culturais para barrar a pulsão sexual junto
ao processo de recalcamento psíquico não apenas
produzem arte, ciência e cultura, mas, também geram a
possibilidade da eclosão de sofrimentos psíquicos e de
neuroses. Não temos a pretensão de discutir e passar pela
amplitude desse texto. Gostaríamos de destacar a
intrínseca relação da sexualidade com o conceito de pulsão
e esse com o corpo na psicanálise.
Também é interessante destacar a importância das
fantasias na construção da sexualidade humana e da
subjetividade, porque a pulsão sexual estaria, desde o
início da vida do indivíduo, submetida a um sistema de
representações inconscientes. Isso devido ao
autoerotismo ser estruturado pelos objetos de satisfação
originais, a mãe, outro imprescindível, cuja
presença/ausência e palavra erotiza e nomeia significantes
ao corpo do bebê. As zonas erógenas são construídas na
relação com o outro e como coloca Freud (1996) ninguém
duvida que a mucosa dos lábios e da boca é uma zona
erógena primária que, devido e após a interdição do
mamar no seio, conserva o prazer do beijo; da intensa
atividade na idade precoce fica, a posteriori, uma
exigência somática de prazer dessa parte do corpo. As
fantasias que acompanham a vivência de satisfação da
pulsão parcial oral advindas na relação com o outro dotará
as particularidades do prazer em cada pessoa, em
experiências singulares e confirmando a plasticidade do
objeto da pulsão sexual. A sexualidade humana se amplia
em definitivo e não está limitada a atividade reprodutiva,
ela objetiva o prazer e este pode ser alcançado de
múltiplas maneiras já que o corpo é habitado por muitas
zonas erógenas e perpassado por um sistema
representacional inconsciente.

161
Podemos afirmar que a capacidade de submeter e
associar a sexualidade a um sistema de representações
inconscientes é uma característica da espécie humana. O
outro (e o Outro) sempre está lá na presença e/ou na
vivência fantasmática de prazer-desprazer do corpo e
através dos processos de identificação inconscientes.
No primeiro dualismo pulsional freudiano (pulsões
sexuais e pulsões de autoconservação), o corpo situa-se na
esfera do representacional; ele é atravessado pela energia
pulsional ligada, permitindo que os sintomas sejam
decifrados nas formações do inconsciente. No segundo
dualismo pulsional, pulsões de vida (Eros) e pulsão de
morte (Tânatos), o corpo não está restrito à representação,
amplia-se com o conceito de pulsão de morte e se coloca
também como o impossível de ser simbolizado; o ponto de
vista econômico é acentuado e na constituição subjetiva é
dada maior importância a alteridade. Por causa da pulsão
de morte que não é ligada, passa a circular no corpo um
resto pulsional que, por não ser representado
psiquicamente, busca constantemente uma saída. Assim, o
corpo se converte, ele mesmo, na descarga desse excesso
(SALES; HERZOG, 2019).
Fernandes (2011) denomina o estatuto corporal do
segundo dualismo pulsional de “corpo do
transbordamento”, onde pessoas podem apresentar
sintomas corporais que não expressam conflitos simbólicos,
mas, sim, que utilizam o corpo como descarga para o
excesso da pulsão de morte, afastando-se da
representação.
Pensamos que, se o que não pode ser representado,
escapa pelo corpo, este se torna o palco e o ato da pulsão.
Consideramos, em relação ao corpo e a sexualidade em
mulheres negras, que as representações inconscientes e

162
aquilo que não pode ser representado e escapa no corporal
possa estar, em parte, sobredeterminado ao racismo.
Segundo Nogueira (2021), a análise da representação
social do corpo permite compreender a estrutura de uma
sociedade. O corpo como signo de reprodução da estrutura
social condensa, por exemplo, atributos físicos, morais e
intelectuais atribuídos, de certa forma, hegemonicamente
para todos, embora contenham variações, pois captura
pelo imaginário social representações da ideologia
dominante. Nesse contexto, a aparência física de uma
pessoa pode garantir ou não a sua própria integridade e
sentido de pertencimento no tecido social. Nogueira (2021)
trabalha com a perspectiva de que a realidade histórico-
social determina configurações psíquicas para a população
negra de forma que a atinge em diferentes posições
econômico-sociais. Assim, o indivíduo negro seria, para a
autora, resultado da interação dialética de questões sociais
(representações sociais ideologicamente estruturadas,
mais estruturas sócio-econômicas que as produziram e
seguem reproduzindo) e configurações que constroem o
psiquismo. Esse olhar alerta para o fato de que a luta
política contra a discriminação racial e a consciência racial
do negro acerca da sua condição são necessárias, mas,
insuficientes para modificá-la uma vez que o racismo se
inscreve também psiquicamente e necessita ter esses
conteúdos elaborados e ressignificados.
À época da escravidão, o corpo negro não era visto
como “pessoa”, e sim como peça, propriedade de
“indivíduos humanos”. Eram usados argumentos que,
inclusive, se diziam científicos para justificar de forma
“biológica” a desumanização desse grupo. Nogueira (2021)
descreve essa experiência de ter o seu corpo atrelado a um
passado tão difícil e significações tão dolorosas como
“sofrer o próprio corpo”. Nesse contexto, destituído da sua

163
condição humana, o corpo da mulher negra, na condição de
posse dos seus senhores, era alvo de muita perversidade.
Eram desejadas para satisfazer o apetite sexual, mas depois
repudiadas, pois vistas como criaturas repulsivas e
descontroladas sexualmente. Na condição de mercadoria,
não podiam se relacionar afetivamente, eram enxergadas
como máquinas reprodutoras. Seus filhos não lhes
pertenciam, eram vendidos pelos senhores. Maternar
somente na função de ama de leite dos filhos da Casa
Grande (NOGUEIRA, 199?).
Nas amarras sociais e inconscientes do racismo
estrutural, como mulheres negras podem lidar com as
questões do corpo e da própria sexualidade? Entendemos
não existir resposta única devido a plasticidade do objeto
da pulsão sexual e aos seus diversos e plurais caminhos
possíveis, tornando a sexualidade singular em cada pessoa.
Contudo, a sexualidade e o corpo recebem representações
do Outro. Em mulheres negras isso implica lidar com a
história do racismo impressa na memória e em seus corpos.
Como ressignificar e se apropriar destes processos
inconscientes?
Escrever a própria história, pensamento ou produção
torna possível para pessoas negras a construção de uma
nova identidade, que não seja uma correspondente a de um
ideal de ego branco veiculada pela cultura dominante.
Buscar seus próprios traços identitários, tecer
considerações a partir de suas próprias vozes, mesmo com
contradições, porém com o pertencimento e manutenção
de seus interesses e com possibilidades de transformações
psicológicas e sociais, eis uma das propostas da psicanalista
Neusa para pensar uma maneira de lidar com o racismo no
cerne do psiquismo do negro, no seu livro Tornar-ser Negro.
As pessoas vivem na sociedade brasileira dominada por
uma ideologia que impõe o branco como ideal. Para os

164
negros, o processo de dominação acontece pela introjeção
dessas representações pela identificação inconsciente com
o opressor, logo, com a introjeção do ideal de ego branco
(SOUZA, 1983).
A negação e o expurgo do negro e de tudo o que se
refira a negritude como algo a ser evitado, mesmo
eliminado, podem provocar a rejeição do próprio corpo
físico e provocar atos de violência sobre os negros e na
reprodução desta dos negros para com eles mesmos.
Neusa apresentou uma proposta de análise pela escuta das
histórias de vida e do conhecimento advindo de relatos de
experiências e, principalmente, dos sujeitos negros se
compreenderem a partir de seus próprios discursos; o
objetivo era dar a palavra e tecer os significados da
experiência de ser negro em uma sociedade branca. Este
trabalho conduziu à percepção dos corpos negros estarem
submetidos à negação e ao aniquilamento pela ideologia do
branqueamento cultural e permeados por estereótipos
culturais. Como consequência, adviria um sofrimento
psíquico contínuo e angústias como uma reação ao
sentimento de opressão de se viver em uma sociedade com
uma falsa ideologia da democracia racial (SOUZA, 1983).
Alguns trechos das entrevistadas de Neusa marcam as
representações do corpo diretamente atreladas à vivência
da sexualidade: “... Eu tinha vergonha do meu corpo. Eu
queria transar no escuro… Eu não gostava do meu corpo,
dentro de uma coisa de ser negra. Corpo de negra, corpo
de mulher tipo operário. Isso sempre me grilou pra burro…”
(Carmem) (SOUZA, 1983, p. 63).
Para Neusa Souza, a consciência quanto à identidade
negra não vem apenas da cor da pele preta e nem da
história da escravidão e discriminação, mas, também do
processo de tomada de consciência de se estar alienado
numa imagem de si mesmo dada e enredada por

165
significantes culturais de dominação ideológica. A analista
pontuou, ao longo da sua vida, a necessidade de cada
pessoa passar por um processo de elaboração singular de
suas próprias questões com a negritude e o racismo e,
nesse sentido, acreditava no valor do trabalho psicanalítico,
por sua radicalidade no concernente ao singular, a
alteridade. E quando se trata da luta política? Para Neusa,
esta se faz no coletivo. Como afirma a psicanalisa, não se
nasce negro; torna-se negro.
Nogueira (2021), como psicanalista negra, também
reflete sobre o impasse de se debruçar sobre um tema que
lhe é tão próximo e em como ter o distanciamento
necessário para entender os processos que se dão em uma
análise: guardar a sensibilidade enquanto analista negra
que trabalha com os sintomas que falam do paciente que o
traz, mas também daquela que o escuta.
Afirmamos ser preciso viabilizar aos negros espaços
de fala e escuta diante do Outro, testemunha, para
possibilidades de ventilação dos afetos, elaboração e
ressignificação das experiências e sofrimentos vividos.
Também pensamos ser imprescindível a experiência racial
negra ser contada a partir de seus próprios referenciais e da
visibilização de seus conhecimentos científicos e artísticos.
O fazer e compartilhar essas produções é uma maneira de
combater o racismo estrutural e o epistemicídio.
Outra pensadora e ativista negra, Lélia Gonzalez, a
partir da psicanálise também traz contribuições para
pensar em como a mulher negra é situada no discurso
racista; Lélia deseja compreender quais os processos
implicados no racismo que possibilitam a identificação do
dominado com o dominador.
Ela afirma que o racismo é uma neurose cultural
brasileira. E como ela se instala como traço cultural? Pelo
recalcamento e pela dinâmica do sexismo. No caso da

166
mulher negra, o racismo articulado com o sexismo produz
efeitos violentos sobre ela; Lélia propõe as noções de
mulata, doméstica e mãe preta (GONZALEZ, 2018).
Inicialmente, temos a análise da dupla imagem da mulher
negra, a da doméstica e a mulata. Esta nomeação como
lugares de qualificação profissionais possíveis dados pela
sociedade e que carregam estereótipos, com a
internalização da diferença, subordinação e inferioridade,
conduz à violência do corpo subalternizado ao outro, no
trabalho braçal e servil e na alienação de corpos femininos
referidos a uma exposição/olhar voyeurista como objeto
sexual, a mulata “produto de exportação”: “Não se
apercebem que constituem uma nova interpretação do
discurso racista: ‘preta pra cozinhar/mulata pra fornicar/ e
branca para casar’” e “reprodução/perpetuação de um dos
mitos divulgados a partir de Freyre: o da sensualidade
especial da mulher negra” (GONZALEZ, 2018, p. 46-47).
Lélia volta a refletir sobre a figura da mãe preta (como
um tipo de resistência passiva ao racismo e, ao mesmo
tempo, ativa quanto à uma eficácia simbólica), uma
representação da mulher negra introjetada no psiquismo a
partir das apropriações do papel social de dominação
atribuído a ela pelo colonialismo; ela é a figura materna que
cuidou dos homens brancos, com o aleitamento, com os
cuidados corporais e os cafunés, com cantigas de ninar e
palavras, inclusive as de seu dialeto africano e que também
denuncia a exploração da mulher negra pela mulher branca.
Contudo, Lélia diz que é essa figura que dará uma rasteira
no branco dominante, porque ela não é o exemplo de amor
e dedicação como eles querem e nem a traidora da raça,
como para alguns negros. Ela é a mãe. A outra, a branca,
legítima esposa do senhor, serviu para parir os filhos, mas a
função materna foi exercida pela negra que, assim, passou
seus valores e língua para a criança brasileira, interpretada

167
como a própria cultura brasileira e a internalização da mãe
preta fez com que a rasteira fosse dada no colonizador e
nossa língua seja o português (Gonzalez, 2018).
Lélia coloca a vivência do complexo de Édipo como
catalizador do recalcamento que conduz à proibição do
desejo pelo negro: o menino não pode desejar o outro, mãe,
e deve renunciar aos impulsos incestuosos em direção a ela;
assim não pode desejá-la e, logo, também não pode desejar
a mãe negra. O racismo tornaria o desejo duplamente
proibido. O desejo negado aparece como sintoma, o
racismo, eis a neurose cultural brasileira.
Pensamos que a mulher negra, suas representações
psicossociais conscientes e inconscientes estão no centro
da produção sintomática do racismo. O colonialismo e o
patriarcado, racismo e sexismo, perfazem juntos o
processo de criação e de formação da mulher negra nesses
lugares subalternizados, assim sendo, de um corpo
submetido a apagamentos, violência e a uma estética de
exclusão. A sexualidade humana advém de um corpo
atravessado pela linguagem, com fantasias e
representações inconscientes e estruturada pelo Outro, só
se faz e refaz no e pelo laço social. A sexualidade humana,
por causa da pulsão de morte que não é ligada e não é
representada psiquicamente, que precisa descarregar a
tensão, nos conta que escapa pelo corpo o que não pode
ser representado pelo sujeito e pela cultura. A sexualidade
em mulheres negras é indissociável do corpo preto; precisa
da visibilização dos corpos negros, do desvelamento dos
processos de opressão, subalternização e da valorização de
uma estética identitária negra.

168
Materiais Analisados

Tipo de Material Filme


Título Original Travessia
Nome Traduzido -
Gênero Documentário
Ano 2017
Local de lançamento e Brasil, português
Idioma original
Duração 0h05min
Direção Safira Moreira

O curta começa com a narração do poema “Vozes


Mulheres”, de Conceição Evaristo. Enquanto a voz de uma
mulher lê o poema, são mostradas partes de uma fotografia
em preto e branco, na qual é possível ver, aos poucos, uma
mulher preta segurando um bebê branco. No verso da foto,
os dizeres “Tarcisinho e sua babá. Dias D’ávila, 15-11-63”. O
poema que complementa a cena narra a história das
mulheres de uma família negra atravessada pela escravidão.
Após essa cena que nos introduz de forma tão crua ao tema,
o curta tem como sequência uma narração em primeira
pessoa. Enquanto são apresentadas fotos de pessoas
negras, a narradora conta que tem apenas um registro
fotográfico onde aparece a mãe e sua avó, pois fotografia
na época era algo muito caro, pertencente às famílias
brancas. Para as negras, quando havia uma foto, era
colocada na parede da casa, em destaque: “a foto da vida
toda”. A terceira cena volta para o presente e mostra uma
jovem negra fazendo poses contra um muro, enquanto
toca uma canção: Juana, de Mayra Andrade, cantada em
uma língua nativa da África. Em seguida, continua uma
sequência de pessoas negras sorrindo, brincando, também
fazendo pose para foto.

169
Tipo de Material Filme
Título Original Kbela
Nome Traduzido -
Gênero Documentário
Ano 2015
Local de lançamento e Brasil, português
Idioma original
Duração 0h22min
Direção Yasmin Thayná

Kbela (2015) parece ilustrar e contrastar olhares sobre


o corpo e a experiência de ser mulher negra, com destaque
para o cabelo. Em algumas cenas, o corpo aparece coberto
com saco de lixo, saco de papel, marcando uma
inadequação e invisibilização; vê-se uma mulher negra
chorando. Em outras, temos um corpo desmembrado da
cabeça que tenta alisar, amassar, “amansar” o cabelo
crespo com uma quantidade imensa de produtos químicos.
A música de fundo, em alguns momentos, é do som de
vários instrumentos, de forma não harmônica, aumentando
a tensão. Essas cenas são intercaladas por bocas brilhantes
que reproduzem os xingamentos usados contra pessoas
negras: pixaim, assolan, cabelo duro, beição... Mas é difícil
ouvir, porque um barulho de cacofonia vai tornando a
imagem caótica, produzindo uma experiência estética de
mal-estar e estranhamento. Como uma espécie de
transição, vemos a mulher negra que chorava agora pintar
o corpo com tinta branca, e nesse momento a cacofonia
cessa. Em um segundo momento, inverte-se o movimento,
a cena é passada ao contrário, onde os gestos, na verdade,
retiram a tinta branca do corpo negro: escuta-se uma
melodia pela primeira vez. Depois, outra cena, na qual
mulheres negras de corpos distintos vão se tocando, nuas,
tirando a tinta branca e como se tentassem reconhecer
umas às outras. Uma mulher penteia o cabelo crespo de

170
uma menina e canta uma música para Iemanjá. Em outra
cena, uma mulher negra lava os cabelos e os esfrega em
uma panela, escuta-se o som de um atrito. Várias mulheres
negras aparecem colocando turbantes coloridos.

Análise Crítica

Do que os filmes falam para a Psicanálise

Safira, a diretora de Travessia, conta que o produziu “a


partir da memória estilhaçada, fruto do apagamento histórico
da população negra no Brasil”, e que as fotos garimpadas
utilizadas na obra provinham de álbuns de famílias brancas
(MOREIRA, 2017). Em suas palavras encontramos a mesma
denúncia que Nogueira (2021): em função do passado
histórico marcado pela desumanização, o negro encontra um
obstáculo na construção da sua individualidade social. Esse
passado continua presente na memória social e se encontra
atualizado no preconceito racial.
Em apenas 120 segundos do curta já temos o tom da
denúncia do apagamento ao qual as mulheres negras são
submetidas; o conhecido estereótipo da babá ou a
empregada doméstica que trabalha na mesma casa há
gerações, aquela que, até hoje, é “quase da família”, na
foto, não tem nem nome: fica registrada apenas a sua
função, que é servir. Esse apagamento costuma ser
rodeado por uma atmosfera “familiar”, com um tom que
nos induz a interpretar como afetivo, mas que revela uma
dinâmica perversa de poder.
É possível pensar se a subalternização também se
expressa na vivência de famílias inter-raciais. Corsino,
Verceze e Cordeiro (2022) construíram, em sua pesquisa, a
categoria “Sobre ser Familiar e Estranho” para descrever
narrativas de mulheres negras que relataram suas

171
percepções sobre sensações de estranhamento na própria
família, precisando validar seu pertencimento ao grupo
para pessoas externas ou de seu núcleo familiar: da avó que
se sente compelida a imaginar que precisará de
documentos para passear na rua com a neta que é branca,
da mãe que é questionada se ela é a babá de sua filha
branca. A mulher negra é indagada sobre sua progenitura e
descendência. Retomando o pensamento de Gonzalez, fica
subentendida a mensagem da negra para cozinhar, aleitar,
cuidar (mãe preta) e transar (mulata), mas, a branca é para
casar e gerar os filhos brancos, logo, como assim a filha
branca ter sido gerada por uma mulher negra?
A mulher negra ainda encontra dificuldade para se
livrar desse lugar subalternizado e de opressão,
principalmente em relação à sexualidade, pois se encontra
presa nos estereótipos de sambista, mulata, doméstica
(NOGUEIRA, 199?).
Os trabalhos inseridos nos ambientes domésticos,
como babá ou empregada, continuam sob a sombra da casa
grande e da senzala. Não é raro relatos de violência sexual
e moral sofrido por parte das trabalhadoras, em sua maioria,
mulheres negras e de baixa escolaridade. Tal fenômeno é
encontrado tanto no relato das vítimas quanto em
produções artísticas, como no filme “Que horas ela volta?”,
de Anna Muylaert, e na história em quadrinhos “Os Santos”,
de Leandro Assis e Triscila Oliveira. Nesses casos, é possível
observar como a herança do passado, em que os corpos
negros eram vistos como peças e propriedade reverbera e
repercute até os dias atuais, de modo que os “patrões” se
sentem muito à vontade para tais violências, como se de
fato tivessem o direito àquele corpo.
Já nas cenas iniciais de Kbela podemos observar o
que Nogueira (2021) afirma: a rede de significações
atribuiu ao corpo negro àquilo que é indesejável,

172
inaceitável, recusado, negativo, em contraste com o corpo
branco. Com isso, não é incomum que negros se utilizem
de tratamentos estéticos para mudar suas características
negroides, bem como mães que se utilizam de métodos
domésticos em seus filhos com a mesma finalidade, como
nas imagens dos cabelos crespos no filme.
Examinando as relações que mulheres negras
estabelecem com seus cabelos crespos, com o objetivo de
verificar como o cabelo interfere na construção da
identidade negra, Rosa (2014) apontou importantes relatos
de mulheres para nossa análise. Eles confirmam o quanto
os cabelos crespos significam vivências de sofrimentos,
dores e privações - nos cabelos alisados que refletem a
busca pelo ideal de branquitude - e resistência à opressão e
valorização de uma identidade negra já hoje visibilizada
pela existência de profissionais e espaços voltados para a
beleza negra. Em sua pesquisa, Rosa (2014) utilizou
consideração de Gomes (2002) que afirma ser o cabelo
crespo “um dos principais símbolos utilizados no processo
de impressões e representações sobre o corpo negro (...)
(ROSA, 2014, p. 34). Na cena em que a mulher preta cobre
(ou des-cobre) seu corpo de tinta branca, parece que,
simbolicamente, depois de tanto sofrer as duras
significações impostas sobre esse corpo, depois de,
consciente ou inconscientemente, perseguir-se e procurar
a anulação da própria negritude, a solução encontrada foi
“desembranquecer”: limpar-se das condições que a
branquitude impôs, observando que o impuro está na
violência que busca apagar/homogeinizar a alteridade.
“Nesse processo em que a cultura o captura, o negro
recusa sua própria imagem e permanece cativo do
fantasma da inferioridade, de que seu corpo é, socialmente,
a marca” (NOGUEIRA, 2021).

173
Corsino, Verceze e Cordeiro (2022) também nos falam,
em sua pesquisa, da categoria “Questões sobre
feminilidade, sexualidade e corpo”, na qual observamos
relatos das mulheres negras com histórias sobre
discriminação de atributos físicos de seus corpos e a
reflexão de Braga (2016, apud CORSINO; VERCEZE;
CORDEIRO, 2022) sobre o corpo da mulher negra ser
marcado pela vergonha de não se sentir atraente. Temos
narrativas desde a unha ter sua beleza invalidada por ser de
uma mulher negra, até a experiência de estar em
relacionamento amoroso e o parceiro explicitar que a
entrevistada seria mais bonita se fosse loira, ela mesma
conta ter sido trocada por mulheres brancas em outros
relacionamentos.
Nogueira (2021) marca duas dificuldades do indivíduo
negro, sendo ambas subproduto do “não-lugar” social do
escravo: dificuldade de formar sua identidade social
enquanto negro e também de indivíduo no interior do
corpo social pela identificação com seus semelhantes.
Olhar um outro negro remete a um sentido insuportável,
doloroso, o qual tenta-se recalcar: o passado histórico no
qual seus semelhantes tinham o papel de peça/objeto na
sociedade. Essa experiência, de identificar-se com um igual,
é vivida como um horror. Na narrativa do filme, pelo
contrário, a cor/signo preta do corpo e cabelo aparece com
as mulheres tocando seus corpos negros, após a cena do
“desembranquecimento” e constrói a ideia de que
encontrar e se reconhecer entre os iguais é o segundo
passo no caminho de uma libertação.

Considerações Finais

Quando Nogueira (2021) alerta para o fato de que a


luta política dos negros contra o racismo pode ser

174
comprometida e limitada devido a não elaboração dos
conteúdos inconscientes que formaram e impregnaram,
simbólica e imaginariamente sua psique acerca do corpo
negro, nós estamos diante de um desafio: a desconstrução
precisa acontecer dentro (psiquicamente) e fora
(politicamente).
Para a Psicanálise, uma das formas de elaboração é
através da palavra. Pensando nisso, trazemos o conceito
“escrevivência” de Conceição Evaristo: “a escrita que nasce
do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida da
própria autora e do seu povo” (ITAÚ CULTURAL, 2016).
Evaristo escreveu romances, poemas e contos que falam
sobre a condição dos negros brasileiros. Escrevivência é
uma narrativa em que a pessoa se utiliza das suas memórias
e coloca visibilidade para experiências individuais que são
também coletivas. Foi feita por Conceição para se referir a
“um modo de escrita do corpo, da condição e da
experiência negra no Brasil” (PENNA, 2019). Além de
reconhecer a herança do passado histórico e a dor que tais
significações trazem, entendemos que construir uma
narrativa sobre essas e outras vivências, em primeira
pessoa, seja um caminho possível de elaboração e
superação de traumas.
As imagens culturais de subalternização em torno da
mulher negra servem como mecanismo de exclusão social
e a colocam num lugar de oprimida/vítima, de força de
trabalho/serviçal ou estabelecem com o seu corpo um
erotismo sexual desenfreado e sem ligação com a
afetividade e construção de vínculos duradouros.
Nos filmes apresentados, as imagens positivas das
mulheres negras com seus cabelos crespos e corpos
enfeitados, músicas com letras referidas as suas histórias
ancestrais, fotos de famílias negras unidas, desconstroem
os estereótipos que lhes foram impostos. As produtoras de

175
Travessia e KBela tecem suas escrevivências nas imagens
de seus filmes. Em Kbela encontramos cenas de mulheres
negras furando o olhar da branquitude e tecendo para si um
olhar de cuidado, resgate e amor. A cena em que uma
mulher trança o cabelo da outra enquanto trocam histórias
de orixás, falam sobre iorubá e cantam, remete a ideia de
que escrevivência não tem a ver com o mito de Narciso, pois
a beleza da mulher negra não é refletida nesse espelho, mas
sim no espelho de Iemanjá e de Oxum, como diz Conceição
Evaristo (RODA VIVA, 2021). Espelhos esses que permitem
contemplação, percepção e reconhecimento, além de
proteção (ITAÚ CULTURAL, 2016).
O corpo é somato-psíquico, libidinal e atravessado
pela linguagem. O eu é um corpo e é uma miríade de
múltiplos processos de identificação, porém a psicanálise
referenda que ele só existe na experiência e dependência
de outros eus que o percebam e falem dele; é preciso a
experiência no laço com o Outro. A memória, emaranhado
de imagens psíquicas, possibilita o registro das vivências,
numa maneira do vir-a-ser experiência, pela elaboração da
recordação. Construir uma memória e a luta pelo direito à
memória no tocante ao racismo é uma maneira de vencer o
esquecimento/apagamento no coletivo e o recalcamento
individual e cultural.

Referências

CORSINO, D. L. M.; VERCEZE, F. A.; CORDEIRO, S. N. “Minha


cor não desbota, não deixa se abater por qualquer coisa”:
o Hiato entre força e sofrimento em histórias de mulheres
negras. Revista Subjetividades, 22(1), 2022. e11777.
Disponível em: http:// doi.org/10.5020/23590777.rs.v22i1.e11
777. Acesso em: 07 out. 2022.

176
FERNANDES, M. H. Corpo. Coleção Clínica Psicanalítica.
11.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.
FREUD, S. Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. In:
Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.7 1996.
GONZALEZ, L. Lélia Gonzalez - primavera para as rosas
negras. São Paulo: Editora Filhos da África, 2018. (Coletânea
organizada e editada pela UCPA União dos Coletivos Pan-
Africanistas).
ITAÚ CULTURAL. Ocupação Conceição Evaristo:
Escrevivência. 2016. Disponível em: < Escrevivência -
Ocupação Conceição Evaristo (itaucultural.org.br) >.
Acesso em: 31 de jul. 2022
MOREIRA, S. Travessia. 2017. Disponível em: https://
vimeo.com/236284204. Acesso em: 30 jul. 2022.
NOGUEIRA, I. B. A cor do inconsciente: significações do
corpo negro. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2021. 192 p.
NOGUEIRA, I. B. O corpo da mulher negra. 199? . Disponível
em: http://www.ammapsique.org.br/baixe/o-corpo-da-
mulher-negra.pdf. Acesso em: 01 jul. 2022.
PENNA, W. P. Escrevivências das memórias de Neusa Santos
Souza: apagamentos e lembranças negras nas práticas Psis.
Dissertação (Mestrado). Instituto de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense. Niterói: 2019.
RODA VIVA. Conceição Evaristo explica o conceito de
“escrevivência” e relação com mitos afrobrasileiros.
Youtube, set. 2021. Disponível em: < https://www.youtube.
com/watch?v=J-wfZGMV79A>. Acesso em: 30 jul. 2022.
ROSA, C. S. Mulheres negras e seus cabelos: um estudo
sobre questões estéticas e identitárias. Dissertação
(Mestrado). Centro de Educação e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Carlos. São Carlos: 2014.

177
SALES, J. L.; HERZOG, R. O estatuto do corpo na obra de
Freud pós-1920. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 35,
p. 1-9, 2019.
SOUZA, N. S. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

178
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Andre Gellis. Psicólogo. Formado pela Universidade


Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Assis
(1988), Mestre e Doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto
de Psicologia da USP (1994-2000). Professor Assistente
Doutor, 244 lotado junto ao Departamento de Psicologia
(FC/UNESP Bauru). Atua na graduação no Curso de
Psicologia da UNESP Bauru e na Pós-Graduação no Curso de
Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras (FCLar)
da UNESP (Araraquara). Atualmente é Supervisor do
Centro de Psicologia Aplicada (FC, UNESP, Bauru) e
Professor Visitante do Département de Psychanalyse de
l'Université Paris 8, Vincennes - Saint Denis. Possui
experiência na área de Psicologia Clínica, com ênfase em
Psicanálise, atuando principalmente nos seguintes temas:
Clínica Psicanalítica, Teoria e Técnica da Psicanálise.
Psicanálise e Sexualidade.
E-mail: [email protected]

Bruna Bortolozzi Maia. Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto Universidade de São Paulo (FFCL-USP-RP).
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior - CAPES (Demanda Social, N.
88887.666863/2022-00). Membro do Laboratório de
Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-
USP-CNPq) e do Laboratório de Estudos e Pesquisas em
Psicanálise e Vincularidade (LaPsiVi- Unesp- CNPq).
Psicóloga voluntária do Grupo de Assistência em
Transtornos Alimentares (GRATA), do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HC-FMRP-

179
USP). Membro do Grupo de Ação e Pesquisa em
Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO (FFCLRP-USP).
E-mail: [email protected]

Beatriz Almeida Gabardo Traldi. Professora, Psicanalista e


Psicóloga especialista em Saúde Pública e em
Psicopedagogia Clínica. Mestranda em Ciências da Saúde na
linha de Psicanálise e Saúde Mental pela FEnf-UNICAMP.
E-mail: [email protected]

Caroline Barros Amaral. Psicóloga graduada na


Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho",
Campus de Bauru. Especialista em “Teoria Psicanalítica”
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Psicóloga clínica, supervisora e professora universitária.
E-mail: [email protected]

Christiane Carrijo. Possui graduação em Psicologia pela


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(UNESP), mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutorado
em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Departamento de Psicologia da Faculdade de
Ciências - Unesp Bauru.
E-mail: [email protected]

Danilo Silva Nakashima. Graduado em Letras e Psicologia.


Pós-graduando em Psicologia Fenomenológica e
Hermenêutica. Psicólogo clínico. Atualmente trabalha
como psicólogo no atendimento à população LGBTQIAP+.
Áreas de atuação principais: Psicologia Fenomenológica e
Hermenêutica, Sexualidade, Gênero e Saúde Mental.
E-mail: [email protected]

180
Drielly T. Lopes Silveira. Mestra pela UNESP Araraquara,
Doutoranda em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.
Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise e
Laço Social no Contemporâneo (PsiLacs UFMG).
E-mail: [email protected]

Gabriel Câmara Branco. Graduando do curso de Psicologia


da UNESP, Bauru. Participante do Grupo de Estudo e
Pesquisa "Sexualidade, Educação e Cultura" (GEPESEC).
Estagiário em Educação Sexual e Orientação Profissional.
Monitor da matéria de Clínica Psicanalítica II. Bolsista do
projeto de extensão e-care sentinela pela PROEC. Áreas de
atuação principais: psicanálise lacaniana, sexualidade e
mídias, psicanálise e sexualidade.
E-mail: [email protected]

George Miguel Thisoteine. Psicólogo. Mestrando em


Educação Sexual, UNESP-Araraquara. Graduando em Letras
pela USP. Membro do grupo de Estudos e Pesquisa
"Sexualidade Educação e Cultura" (GEPESEC). Docente no
curso de psicologia da Faculdade Campos Salles (São Paulo-
SP). Atuação principal: Clínica Psicanalítica, Análise do
Discurso e Surrealismo.
E-mail: [email protected]

Giovana Benite dos Santos. Psicóloga e mestranda no


Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade da
Faculdade de Ciências e Letras - FCL/Assis - UNESP.
E-mail: [email protected]

Gelberton Vieira Rodrigues. Psicólogo e mestre em


Educação Sexual pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho - UNESP. Doutorando em Educação pela
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar e professor do

181
curso de Psicologia da Universidade de Sorocaba – UNISO.
Atua como pesquisador nas áreas de Sexualidade, Gênero,
Educação Sexual e Psicanálise.
E-mail: [email protected]

João Pedro de Paula Menezes. Mestrando no Programa de


Pós-Graduação em Psicologia Clínica pelo Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. Psicólogo
formado pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de
Mesquita Filho", Campus de Assis. Integrante do
Laboratório de Casal e Família: Clínica e Estudos
Psicossociais (LabCaFam-IPUSP). Interesse nos seguintes
temas: vínculos, famílias, grupos e psicanálise.
E-mail: [email protected]

Marcela Pastana. Psicóloga e doutora em Educação Escolar


pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
– UNESP. Professora do curso de Psicologia do Instituto
Municipal de Ensino Superior de São Manuel – IMES-SM.
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Sexualidade,
Educação e Cultura – GEPESEC. Atua como pesquisadora
nas áreas de Sexualidade, Gênero, Educação Sexual e
Psicanálise.
E-mail: [email protected]

Mary Yoko Okamoto. Departamento de Psicologia Clínica e


Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de
Ciências e Letras - FCL/UNESP/Assis. Coordenadora do
Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia e
Vincularidade - LAPSIVI. Doutora em Psicologia Clínica.
E-mail: [email protected]

Paloma Afonso Martins. É psicóloga formada pela Unesp


Bauru e especialista em Infância pela UNIFESP, e membro

182
do Laboratório e Núcleo de Estudos, Extensão e Pesquisas
em Psicanálise (NEEPPSICA/FC-UNESP). Foi bolsista FAPESP
de iniciação científica com a pesquisa “A Violência do
Racismo Contra Mulheres Negras Vítimas de Violência
Doméstica: Rasgando os Véus”; participante do Projeto de
Extensão “Saraus e Contação de Histórias: Psicanálise e
arte como estratégia clínica e política na atenção à infância”,
de 2014 a 2017, sendo bolsista PROEX nos anos de 2015 e
2017. Atualmente atua na área clínica com psicanálise e
comunicação não violenta.
E-mail: [email protected]

Roseclair Keller de Oliveira Lima. Psicóloga no Tribunal de


Justiça de São Paulo - TJSP; Mestranda no Programa de Pós-
graduação em Psicologia pela UNESP - Campus de Assis;
Especialista em Psicoterapia Psicanalítica pelo Núcleo de
Marília e Região/UNIVEM; Especialista em Violência
Doméstica contra crianças e adolescentes pelo Instituto de
Psicologia da USP - IPUSP; Especialista em Psicologia Clínica
pelo Conselho Federal de Psicologia- CFP.
E-mail: [email protected]

Sofia Freire. Graduanda em Psicologia pela Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisadora do
Laboratório de Pesquisa em Psicanálise e Laço Social no
Contemporâneo (PSILACS) e Núcleo de Direitos Humanos e
Cidadania (NUH).
E-mail:

Wanderson Rodrigues Morais. Licenciado em Ciências


Biológicas (Unesp/ Ilha Solteira), Mestre em Educação para
a Ciência (Unesp/ Bauru), Doutor em Ensino de Ciências e
Matemática (Unicamp) e atualmente em estágio pós-

183
doutoral em Educação (Linha Educação Ambiental) no
Instituto de Biociências da Unesp/ Rio Claro.
E-mail: [email protected]

184
SOBRE OS ORGANIZADORES E A
ORGANIZADORA

Ana Cláudia Bortolozzi. Psicóloga. Docente no Curso de


Psicologia da Faculdade de Ciências da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP. Livre
docente em Educação Sexual, Inclusão e Desenvolvimento
Humano. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa
em Sexualidade, Educação e Cultura (GEPESEC) e do
Laboratório de Ensino e Sexualidade Humana (LASEX).
Áreas de atuação principais: Psicologia do
Desenvolvimento Humano. Educação Sexual. Sexualidade
e Deficiências.
E-mail: [email protected]

Andre Gellis. Psicólogo. Formado pela Universidade


Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Assis
(1988), Mestre e Doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto
de Psicologia da USP (1994-2000). Professor Assistente
Doutor, 244 lotado junto ao Departamento de Psicologia
(FC/UNESP Bauru). Atua na graduação no Curso de
Psicologia da UNESP Bauru e na Pós-Graduação no Curso de
Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras (FCLar)
da UNESP (Araraquara). Atualmente é Supervisor do
Centro de Psicologia Aplicada (FC, UNESP, Bauru) e
Professor Visitante do Département de Psychanalyse de
l'Université Paris 8, Vincennes - Saint Denis. Possui
experiência na área de Psicologia Clínica, com ênfase em
Psicanálise, atuando principalmente nos seguintes temas:
Clínica Psicanalítica, Teoria e Técnica da Psicanálise.
Psicanálise e Sexualidade.
E-mail: [email protected]

185
George Miguel Thisoteine. Psicólogo. Mestrando em
Educação Sexual, UNESP-Araraquara. Graduando em Letras
pela USP. Membro do grupo de Estudos e Pesquisa
"Sexualidade Educação e Cultura" (GEPESEC). Docente no
curso de psicologia da Faculdade Campos Salles (São
PauloSP). Atuação principal: Clínica Psicanalítica, Análise do
Discurso e Surrealismo.
E-mail: [email protected]

186
SOBRE O GEPESEC

O Grupo de Estudos e Pesquisa em Sexualidade,


Educação e Cultura (GEPESEC) foi fundado no ano de 2006
pela Professora Assoc. Ana Cláudia Bortolozzi, junto à
Faculdade de Ciências da UNESP campus Bauru. Realiza
atividades de ensino, pesquisa e extensão em Sexualidade
e Educação Sexual, das quais participam discentes do curso
de Graduação em Psicologia e dos Programas de Pós-
graduação em “Psicologia do Desenvolvimento e
Aprendizagem” (UNESP Bauru) e em “Educação Escolar”
(UNESP Araraquara), entre outros/as alunos/as e
pesquisadores/as associados/as de outras áreas do
conhecimento. O grupo reúne uma extensa produção
coletiva, publicada na “Coleção Sexualidade e Mídias”1, na
qual analisa diversos aspectos da Sexualidade e da
Educação Sexual presentes em filmes e outras mídias. Além
disso, apresenta relevante protagonismo na produção de
saberes e práticas em Sexualidade e Educação Sexual2, bem
como, na difusão destes por meio de eventos e de
publicações como esta.
Os encontros de estudo e pesquisa do GEPESEC são
realizados no Laboratório de Ensino e Pesquisa em
Educação Sexual (LASEX), inaugurado em 2012 no campus
da UNESP Bauru, possibilitando a reunião de
orientandos/as e demais interessados/as no estudo e
pesquisa de áreas da sexualidade e correlatas.
Para acompanhar o grupo e ter mais informações
sobre reuniões de estudo e publicações, sigam nossas
redes sociais ou entre em contato conosco:

1 Publicados pela Pedro & João Editores (São Carlos-SP).


2 Publicados pela Padu Aragon Editor (Araraquara-SP).

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OUTROS VOLUMES DA
COLEÇÃO SEXUALIDADE & MÍDIAS

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