Por Uma Estética Das Sensações em Deleuze e Guattari

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O INTERMEZZO RIZÍVEL EM MONTY PYTHON: BLOCOS DE

SENSAÇÕES NO FILME A VIDA DE BRIAN


Diego Frank Marques Cavalcante
Professor adjunto na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará1.
Introdução
Desde a filosofia grega, o riso vem se tornando um problema sistemático de
estudo. Na contemporaneidade, o esforço se espraia desde a filosofia até as neurociências.
Em comum, embora partindo de pressupostos diferentes, as abordagens parecem buscar
uma “essência” do risível.
Nosso propósito não é o de atingir essa “graça”. O riso pode ter uma miríade de
causas, tais como: o acaso, uma disfunção neuroquímica no cérebro, uma particularidade
antropológica ou pessoal. Em suma, o risível é complexo, sendo, ao mesmo tempo,
químico, biológico e socioantropológico e afetivo.

Assumimos a hipótese de que o humorista pode ser pensado como um artista, um


inventor de piadas, valorizando a imanência de seu pensamento. Nesse sentido, interessa
investigar a piada como bloco de sensações inventado por um artista específico, o
humorista.

Tomaremos como intercessor um grupo de humor inglês, Monty Phython2, de


forma específica, o filme A vida de Brian. Analisaremos três cenas do filme no sentido
de investigar a lógica da sensação risível.

1. Imanência e invenção do risível

A filosofia da diferença de Gilles Deleuze, segundo Machado (2009), privilegia a


diferença em detrimento da identidade e da representação, a ética, em vez da moral, as
variáveis, antes das estruturas, os encontros, em vez do sujeito ou o acontecimento, no
lugar da essência. Mas o que significa a diferença para Deleuze?

De forma simplificada, em uma sentença, dir-se-ia: tratar-se-ia de deformar as


identidades dominantes, abri-las para novas conexões por meio de encontros que

1
Coordenador do grupo de pesquisa em semiótica e micropolítica do risível (CNPq).
2
Monty Phyton é um grupo de comédia inglês formado no final da década de 1960. O grupo produziu além
de esquetes para tv, cinema, programas de rádio e livros. Ficou reconhecido por um humor do absurdo. O
filme a Vida de Brian faz uma sátira do contexto da vinda de Jesus à terra ao mesmo tempo em que faz
crítica aos extremismos, seja de esquerda, seja de direita. Interessa, portanto, investigar as piadas do grupo
enquanto bloco de sensações.
caotizam a linguagem, impedindo-a de meramente representar. Se os esquemas de
representações não dispõem de signos para expressar tais encontros, eles precisam ser
experimentados, inventados ou diferençados nos termos de Gilles Deleuze.

A produção da diferença deve ser investigada a partir do critério da imanência. A


partir da leitura de filósofos como Espinoza3, Nietzsche4, e Duns Scot5, Deleuze (2009)
destaca o privilégio da imanência na relação e eminência para pensar a diferença.

O que está em jogo é o questionamento da eminência e da analogia como


esquemas de avaliação do mundo. A eminência é pressuposta por uma hierarquia que
avalia seus termos, partindo de um dado esquema geral de valoração, eclipsando a
experiência e seu “pathos”.

3
Roberto Machado, destaca a importância de Espinoza e Duns Scot para a filosofia da imanência em Gilles
Deleuze em contraposição às ditas filosofias da analogia: como a de Aristóteles, Descartes ou mesmo
Leibniz. Segundo Deleuze (2002), em Espinoza, é possível entender a diferença entre um pensamento da
imanência em contraposição ao da eminência a partir da diferença entre ética e moral. A moral se constitui
a partir de esquemas de valoração, que julgam as ações a partir de esquemas transcendentes-eminentes. Por
outro lado, a ética é pautada nos affectio, que são entendidos como efeitos da relação entre os corpos. Bons
encontros e as paixões alegres aumentam a potência do corpo, enquanto os maus encontros decompõem o
corpo, as paixões tristes, diminuindo sua potência. É claro que as paixões ainda são ideias inadequadas, no
entanto, é, senão a partir da avaliação dos “affectios”, que se busca a adequação das ideias bem como de
seus critérios éticos. Nesse sentido, o que está em jogo é a dimensão do encontro enquanto elemento
genético da Ética. É a partir da capacidade de ser afetado do corpo que se instaura tensões que também
caracterizam a imanência. São das tensões geradas pelos encontros dos corpos que devem derivar os
critérios éticos de existência. A busca do aumento da potência do corpo ou da alegria.

4
Gilles Deleuze, para consolidar sua filosofia da imanência-diferença, captura a noção de eterno retorno
de Nietzsche. Nessa trama, é a identidade que é pensada a partir da diferença, assim como o uno do múltiplo.
No eterno retorno, a repetição é a identidade, é do próprio devir, ou seja, é a partir da diferença e de sua
repetição que se pode chegar à identidade. É nesse sentido que a identidade é de segunda ordem, sendo a
diferença de primeira. Não se trata, no entanto, de estabelecer formas teóricas, mas antes pragmáticas. É a
parte seletiva do eterno retorno. Só retorna o que é extremo ou o ser comum das metamorfoses. Ou seja, o
retorno da diferença. Trata-se do que subverte sistematicamente as hierarquias evitando, as analogias
eminentes, ao mesmo tempo que permite a contínua repetição da diferença. “A roda do eterno retorno é, ao
mesmo tempo, produção e repartição a partir da diferença, e seleção da diferença a partir da repetição ”.
5
Em Duns Scot o ser é pensado como unívoco e neutro, ou seja, indiferente ao finito e ao infinito, ao
singular ou universal. É a partir da neutralização do abstrato que evita a analogia. É senão a partir de uma
distinção formal e modal que o ser unívoco de relaciona com a diferença. Em Espinosa o ser “indiferente”
de Duns Scot passa a ser o da afirmação pura a partir da divisão das substâncias, atributos e modos. O cerne
da questão é que as distinções reais não são formais (qualitativas e essenciais) enquanto as distinções
numéricas são modais (modos específicos da substância única e seus atributos). Assim, os atributos são os
elementos envolvidos com a diferença ao mesmo tempo em que são parte da substância. Cabe aos modos
o desenvolvimento da potência posto que não compartilham da mesma essência da substância. Nesse
sentido é que Gilles Deleuze propõe uma teoria da univocidade na qual os atributos e sua relação imanente
com a substância resulta em uma ontologia da potência.
A criação6, entendida, aqui, como uma produção da diferença, seria derivada de
um encontro-tensão. Por outros termos, cada encontro cria tensões específicas entre
fluxos organizados e caóticos, de modo a produzir uma expressão singular.

A criação, nesse sentido, é sempre geográfica e agenciada em consonância com


uma problemática regional. Assim, a filosofia não deve ser reflexiva ou avaliativa dos
outros saberes, mas, antes, inventa conceitos que dizem respeito ao próprio campo
filosófico.

Da mesma forma, os outros saberes não precisam da filosofia, sua criação é


imanente. Cada campo de saber teria seu próprio modo de inventar, bem como suas
expressões e máquinas específicas. Uma das questões fundamentais para Deleuze e sua
filosofia da diferença é: o que é ter uma ideia?

O cinema conta histórias com blocos de movimentos duração. A pintura


inventa todo outro tipo de blocos. Não são nem blocos nem conceitos,
nem blocos de duração-movimentos, mas blocos de linhas-cores. A
música inventa outro tipo de bloco, tão particular quanto. Ao lado de
tudo isso, a ciência não é menos criadora. Não vejo tanta oposição entre
ciências e artes (DELEUZE, 2016, p.334).

O que cria o humorista? Assumimos a hipótese de que a piada poderia ser pensada
no escopo da arte, ou seja, o humorista inventa blocos de sensações risíveis. Nesse
sentido, é importante, antes, destacar: o que são blocos de sensações?

Se, como propõe Deleuze & Guattari (2010), pensar é um modo específico de criar
expressão com o caos, na arte, desse encontro derivam blocos de sensações: um composto
de afectos e perceptos7. Perceptos não são percepções e afectos não são sentimentos: esses
últimos são da ordem da opinião, ou seja, são índices da conservação da recognição 8, e
não da diferença.

6
Em Cavalcante (2020) discutimos o procedimento de criação em Gilles Deleuze e Félix Guattari. Aqui
interessa destacar o “produto da criação: os blocos de sensações.
7
“Os perceptos não são percepções, são independentes do estado daqueles que o experimentam; os afectos
não mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles” (DELEUZE
& GUATTARI, 2010. p. 193).
8
Ora, a percepção traduz o objeto a partir de um esquema de re-cognição estabelecido: seu propósito é o
reconhecimento e a organização do ambiente “exterior”. O percepto nada tem de subjetivo. Ao ser afetado
pelo caos o artista tem seus esquemas de referências rompidos: cabe ao artista inventar um “corpo” para a
desordem e, para isso, apropria-se da matéria. Essa monstruosidade inventada, torcida, deformada é o
percepto.
Não se trata de representar, posto que o caos é desconexo: representar o quê se o
suposto objeto não tem rosto? Trata-se, antes, de inventar uma expressão para algo
indizível e impensável: “A arte luta com o caos, mas torná-lo sensível’’ (DELEUZE &
GUATTARI, 2010, p.241).

O artista, portanto, precisa de uma matéria para criar com ela: escrever com o real.
Da materialidade o artista extrai sensações específicas: “[...] não é o azul da água, mas o
da pintura líquida’’ (DELEUZE, 2010, p.196). Não se trata, no entanto, de cair no puro
materialismo9, posto que a arte opera a desmaterialização da matéria no percepto, bem
como a des-subjetivação do sujeito no affecto.

Tratar-se-ia, antes, de entender a matéria como um dos componentes da sensação,


ou seja, um dos elementos do “fazer com”, das alianças: “[...] a sensação não é idêntica
ao material [...] o que se conserva é o afecto e o percepto’’ (DELEUZE & GUATTARI,
2010, p. 197). O percepto, portanto, é a invenção de um espaço tensivo que é expresso
em uma materialidade específica que torna sensível o devir do artista diante do caos.

Deleuze & Guattari (2010, p. 194) dizem que a matéria se desmaterializa em


percepto e se torna arte quando consegue ficar em pé, só. O primeiro aspecto que mantém
a obra em pé e que caracteriza os blocos de sensações seria a composição de um
simulacro, uma monstruosidade. Não cabe ao percepto representar o objeto, mas, antes,
inventar um corpo-simulacro10 a partir das relações entre caos, objeto desfigurado e
materiais utilizados.

Daí porque, segundo Deleuze & Guattari (2013, p. 231), sensação é, senão, uma
questão. Os esquemas de re-cognição são forçados diante do simulacro, e surge o
problema: o que é isto? O percepto cria uma paisagem estranha, assim como o afecto faz
vacilar o sujeito: “[...] Os afectos são exatamente esses devires não humanos do homem,

9
“A arte é uma transmutação da matéria. Nela a matéria se espiritualiza, os meios físicos se
desmaterializam, para enfrentar a essência, isto é, qualidade de um mundo original” (DELEUZE, p. 2003,
p. 45).

10
“Para isso, é preciso por vezes muita inverosemelhança geométrica, imperfeição física, anomalia
orgânica, do ponto de vista de um modelo suposto, do ponto de vista das percepções e afecções vividas;
mas esses erros sublimes acendem a necessidade da arte, se são os meios interiores de manter em pé”
(DELEUZE&GUATTARI, 2010, p.194).
como os perceptos (entre eles a cidade) são as paisagens não humanas da natureza’’
(DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.200).

A sensação é o que está “entre”, ou seja, nas frestas da representação ou do


reconhecimento: é daí que deriva o vazio que compõe a sensação que mantém a obra de
arte em pé. Seria de onde saltam os “cavalos’’:

Todavia, os blocos precisam de bolsões de ar e de vazio, pois mesmo


o vazio é uma sensação, toda sensação se compõe com o vazio,
compondo-se consigo mesmo [...] uma tela pode ser inteiramente
preenchida, a ponto que mesmo o ar não passe mais por ela, mas algo
só é uma obra de arte se, como diz o pintor chinês, guarda vazios
suficientes para permitir que neles saltem cavalos (DELEUZE &
GUATTARI, 2010, p.196).

O vazio, portanto, “preenche” as sensações. São vazios singulares, produzidos


pelos simulacros que se desprenderam do intuito de representar o objeto. Interessa, antes,
fabular. É nesse sentido que obra de arte, enquanto monumento, nada tem a ver com
memória, mas com a fabulação. Trata-se de criar outras formas de existência,
monstruosidades11

As sensações seriam produzidas nas frestas, nos vazios que se formam entre
microscópios, telescópios dos simulacros artísticos. Cria-se um “entre”, um vazio
singular, que escorrega entre os binarismos dos modelos de re-cognição, ou seja, entre
um suposto objeto e seu modelo12.

Esse vazio é inventado senão pelos amálgamas criados pelo percepto que faz
coexistir mundos e ordens diferentes, deformados por seus “microscópios” e
“telescópios”, um acordo discordante entre mundos diferentes: “Cada sensação está em
diversos níveis, em diferentes ordens, ou vários domínios’’ (DELEUZE, 2007, p.45). As
sensações são as questões e os vazios singulares produzidos por essas variações.

Nesse sentido, poder-se-ia dizer que, a partir de Deleuze, é possível inferir uma
estética do entre, do intermezzo: dos vazios singulares que cada invenção é capaz de criar.

11
“Os perceptos podem ser microscópios ou telescópicos, dão aos personagens e as paisagens dimensões
gigantescas, como se tivessem repletos de uma vida a qual nenhuma percepção vivida pode atingir [...] toda
fabulação é fabricação de gigantes” (DELEUZE &GUATTARI, 2013, p. 202-203).
12
“É uma zona de indeterminação, de indicernibilidade, como se coisas animais e pessoas tivessem atingido
em cada caso esse ponto que precede sua diferenciação natural [...] é o que se chama de afecto” (DELEUZE,
2013, p. 215).
São os blocos de sensações da arte: perceptos enquanto máquinas ou corpo da arte e
afectos como devires: “sensação[...], a mestra das deformações, agente de deformações
no corpo’’ (Deleuze, 2007, p.43)

Em resumo, poder-se-ia dizer: os blocos de sensações, ou seja, os affectos e os


perceptos, são invenções de um “espaço-tempo”, a partir da manipulação de uma dada
materialidade. A invenção não tem propósito de representar algum objeto, mas, antes, de
inventar um simulacro-dessemelhança em relação aos objetos e sujeitos caotizados.

Desse modo, inventa-se vazios que estão associados às fissura dos modelos de
recognição. Perceptos são questões, paradoxos, que se passam “entre” os corpos torcidos
da obra de arte enquanto o affectos são seus devires. Nesse sentido, o que seriam os blocos
de sensações no humor? Quais os vazios característicos das questões colocadas pelo
risível? Que tipo de paisagens e monstros habitam a comédia?

2. Blocos de sensações risíveis em a vida de Brian

Antes de adentrar na investigação propriamente dita do filme, é importante


destacar alguns aspectos sobre os blocos de sensações risíveis. O território do humor tem
seus problemas específicos assim como seus clichês, que impedem a operação do
pensamento. Pensar no humor seria subverter esses modelos risíveis dominantes. Em
outro texto, discutiremos a especificidade do procedimento criativo no humor. Aqui,
interessa destacar seu bloco de sensações.

O filme a vida de Brian, do grupo de comédia inglês Monty Phyton, é uma sátira
do ascetismo e da “irrazoabilidade” humana. O filme é ambientado na idade antiga, de
forma específica, no contexto do império romano e do nascimento de Jesus Cristo. Brian,
o protagonista do filme, nasce no mesmo momento em que Jesus, sendo confundido com
este pelos reis magos.

Os reis magos, sem qualquer critério, confundem Brian com o escolhido. A falta
de critério racional permeia todo o filme. Essa sendo antes uma necessidade do “rebanho”
do que uma construção fundamentada na crítica. O que fundamenta as crenças é,
sobretudo, o acaso.

A “tinta” usada pelo grupo na aludida criação é a do cinema: planos, músicas,


montagem, edição etc. Por outro lado, captura-se aspectos da história antiga, de suas
maquinarias, como, por exemplo, os espaços de apedrejamento, os “palcos” onde o
messias pregava o espaço da crucificação.

Brain, o personagem principal, é um afecto risível que atravessa todo o filme. Que
tipo de questões derivam do personagem? Quais vazios? Intermezzos? Poder-se-ia dizer
que há um devir-idiota do Messias? É preciso lembrar: o devir sempre é minoritário. O
messias eloquente, manipulador, sedutor é um modelo maior.

Brian é um tipo social: o idiota. Um sujeito que não é capaz nem de arrumar o
quarto, nem de gerir sua própria vida. É senão a mãe de Brian que comanda todas as suas
ações. No entanto, Brain é eleito o Messias por seu povo. É claro, um Messias menor,
idiota. Brian não prega qualquer ideologia ou mesmo tem um plano revolucionário. Ele
apenas não “curte” os Romanos. Ele nem mesmo tinha planos de ser o messias: é senão
por um conjunto de acasos que o povo passa a segui-lo.

O personagem Brian, enquanto bloco de sensações, seria o que se passa entre um


modelo de messias dominante e um idiota: é um devir-idiota do messias. É daí que
derivam os blocos de sensações que produzem a questão: como pode um idiota ter a
solução para a humanidade? Suas ações se assemelham a de um adolescente intimidado,
no entanto, os efeitos sobre seus seguidores são de um grande messias. É o paradoxo
risível do devir-idiota do Messias.

Vejamos a cena que se desenvolve na varanda da casa da mãe de Brian. Na aludida


cena, Brian leva uma moça escondido para dormir em seu quarto. Ao acordar, pelado,
Brian saí na varanda para se “espreguiçar” e encontra a multidão dizendo: “Vejam, ali
está ele! O Escolhido acordou.”

Interessante destacar os perceptos, a paisagem risível produzida, o corpo nu de


Brian com suas partes expostas- compõe-se com a varanda. Ao mesmo tempo faz uma
conjunção com os corpos dos fiéis que se amontoam na rua. Esse encaixe transforma a
sacada em um palco no qual Brian passa a ser observado pela multidão. Fluxos de nudez
se conectam com de louvação.

Esses corpos são agenciados de modo a produzir o risível. Nem a varanda, o corpo
nú ou a multidão em si não são risíveis. O modo como são agenciados é que produz uma
máquina risível. Por um lado, o close up de Brian pelado se reveza com um grande plano
do povo. No plano fechado nas nádegas, Brian é um idiota, ao mesmo tempo, no plano
geral, na varanda, Brian se torna o grande Messias. Inventa-se um percepto risível, uma
questão, tensão, um paradoxo que produz fluxos de riso. Esses perceptos são as paisagens
do devir idiota do messias.

São os afectos criados pelo personagem Brian. É um monstro formado pela


colagem de atitudes idiotas, mas que produzem efeitos de um grande líder. São senão os
hiatos, vazios, tensões criadas entre o modelo de representação do que deveria ser um
grande líder em sua combinação com o idiota que promove tensões risíveis. É o simulacro
do messias em seu devir-idiota.

Vamos a outro bloco de sensações risíveis produzido no filme. Na cena, Brian é


designado pelo grupo revolucionário contra os romanos a escrever um protesto nas
paredes de Roma. Deveria ser escrito: romanos vão embora! Quando Brian começa a
escrever, chega um Soldado Romano. De princípio, vamos destacar os perceptos risíveis.

O corpo do soldado Romano produz, sobretudo, violência, intimidação para


manter a ordem. Espadas, armaduras, escudos: há toda a produção de violência em favor
da ordem. Por outro lado, é conectado com o corpo de Brian que, por sua vez, porta um
pincel e tinta. Outra máquina é a parede que produz proteção, separa o interior (privado)
do exterior (público).

Brian, então, vai produzir protesto ao conectar pincel, tinta e muro ao escrever:
Romanos vão embora! Outro corpo, então, é maquinado: o do soldado Romano. O corpo
transgressor se encontra com o corpo repressor. No entanto, o grupo inventa uma outra
produção maquínica. O soldado percebe o erro de escrita em Latin, então, e o muro se
desmaterializa e se torna, também, um quadro negro, soldado devém professor e Brian,
aluno. O soldado faz as correções e manda Brian escrever corretamente a frase cem vezes.
Vira uma máquina de ensino altamente disciplinar. É um percepto lousa-muro.

Por outro lado, há todo um esquema de contaminações, afectos e devires. Estes se


produzem no devir-professor do soldado e no devir-aluno do revolucionário. A tensão se
desenvolve: Soldado e professor? Será que o soldado não vai perceber que o enunciado
é uma afronta à Roma? Ou só o professor vai perceber a escrita errada? A sensação é uma
questão. O soldado estúpido coexiste com o professor educador-letrado. Punindo o aluno,
está potencializando a transgressão que é a de pintar o muro com a palavra de ordem dos
revolucionários.
Outro distinto bloco de sensações digno de nota é o da cena final. Em uma
referência à crucificação de Jesus, Brian está pregado na cruz, acompanhado de ladrões,
assassinos e de um rapaz que foi pego por engano. A crucificação é uma máquina de
matar muito utilizada pelos romanos. Além de conferir uma dor contínua até a morte,
compõe uma paisagem macabra que atualiza o poder do imperador sobre a vida.

O fluxo de morte produzido pela crucificação é cortado e deslocado para a


produção de fluxos de alegria de um musical. Os corpos dos crucificados começam a
balançar alegremente a cabeça, cantando uma canção feliz. As variações entre o plano
geral, que mostra o panorama de crucificação, e o close up, que produz, que mostra corpos
felizes assoviando, produzem uma tensão entre a morte e a dança.

Por outro lado, há toda uma produção de um devir-alegre da morte. Os condenados


se tornam personagens felizes de um musical em que assoviam alegremente diante da
morte certa. Afectos que passam entre e fazem coexistir condenados e felizes personagens
de um musical.

Considerações finais

O grupo Monty Phyton ficou conhecido pelo seu estilo de humor do absurdo.
Assim como em filosofia, em que grandes conceitos são apropriados por outros filósofos,
deslocando-os em consonância com seu interesse, também os blocos de sensações risíveis
são capturados por outros pensadores do riso, operando a re-criação.

Nesse sentido, a obra do grupo Monty Phyton ainda continua “em pé”, posto que
suas ideias vêm sendo “bricoladas” por diferentes grupos de humor ao redor mundo. Tais
como Casseta e Planeta, TV Pirata ou mesmo o grupo Porta dos fundos no Brasil. Em
Portugal, o gato fedorento é um outro exemplo de reverberações da ideia desenvolvida
por Monty Phyton.

Interessou a este trabalho um primeiro esforço no sentido de investigar os blocos


de sensações risíveis que seriam inventados pelos humoristas. Como funciona as tensões,
os vazios, as monstruosidades risíveis? Trata-se ainda de um trabalho emergente, mas que
apresenta um leque de possibilidades de desenvolvimento que já estão em processo. O
que significa ter uma ideia no humor? Como esse processo poderia ser investigado? Qual
a relação entre a invenção da piada e a questão ética? Como a piada pode ser
revolucionária? Reacionária? Narcótica? São aspectos que interessa desenvolver.
Referências bibliográficas

CAVALCANTE, Diego. O procedimento de criação: imanência e produção da diferença em


Gilles Deleuze e Félix Guattari. Trágica: revista de filosofia da imanência, 2020.

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