Por Uma Estética Das Sensações em Deleuze e Guattari
Por Uma Estética Das Sensações em Deleuze e Guattari
Por Uma Estética Das Sensações em Deleuze e Guattari
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Coordenador do grupo de pesquisa em semiótica e micropolítica do risível (CNPq).
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Monty Phyton é um grupo de comédia inglês formado no final da década de 1960. O grupo produziu além
de esquetes para tv, cinema, programas de rádio e livros. Ficou reconhecido por um humor do absurdo. O
filme a Vida de Brian faz uma sátira do contexto da vinda de Jesus à terra ao mesmo tempo em que faz
crítica aos extremismos, seja de esquerda, seja de direita. Interessa, portanto, investigar as piadas do grupo
enquanto bloco de sensações.
caotizam a linguagem, impedindo-a de meramente representar. Se os esquemas de
representações não dispõem de signos para expressar tais encontros, eles precisam ser
experimentados, inventados ou diferençados nos termos de Gilles Deleuze.
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Roberto Machado, destaca a importância de Espinoza e Duns Scot para a filosofia da imanência em Gilles
Deleuze em contraposição às ditas filosofias da analogia: como a de Aristóteles, Descartes ou mesmo
Leibniz. Segundo Deleuze (2002), em Espinoza, é possível entender a diferença entre um pensamento da
imanência em contraposição ao da eminência a partir da diferença entre ética e moral. A moral se constitui
a partir de esquemas de valoração, que julgam as ações a partir de esquemas transcendentes-eminentes. Por
outro lado, a ética é pautada nos affectio, que são entendidos como efeitos da relação entre os corpos. Bons
encontros e as paixões alegres aumentam a potência do corpo, enquanto os maus encontros decompõem o
corpo, as paixões tristes, diminuindo sua potência. É claro que as paixões ainda são ideias inadequadas, no
entanto, é, senão a partir da avaliação dos “affectios”, que se busca a adequação das ideias bem como de
seus critérios éticos. Nesse sentido, o que está em jogo é a dimensão do encontro enquanto elemento
genético da Ética. É a partir da capacidade de ser afetado do corpo que se instaura tensões que também
caracterizam a imanência. São das tensões geradas pelos encontros dos corpos que devem derivar os
critérios éticos de existência. A busca do aumento da potência do corpo ou da alegria.
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Gilles Deleuze, para consolidar sua filosofia da imanência-diferença, captura a noção de eterno retorno
de Nietzsche. Nessa trama, é a identidade que é pensada a partir da diferença, assim como o uno do múltiplo.
No eterno retorno, a repetição é a identidade, é do próprio devir, ou seja, é a partir da diferença e de sua
repetição que se pode chegar à identidade. É nesse sentido que a identidade é de segunda ordem, sendo a
diferença de primeira. Não se trata, no entanto, de estabelecer formas teóricas, mas antes pragmáticas. É a
parte seletiva do eterno retorno. Só retorna o que é extremo ou o ser comum das metamorfoses. Ou seja, o
retorno da diferença. Trata-se do que subverte sistematicamente as hierarquias evitando, as analogias
eminentes, ao mesmo tempo que permite a contínua repetição da diferença. “A roda do eterno retorno é, ao
mesmo tempo, produção e repartição a partir da diferença, e seleção da diferença a partir da repetição ”.
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Em Duns Scot o ser é pensado como unívoco e neutro, ou seja, indiferente ao finito e ao infinito, ao
singular ou universal. É a partir da neutralização do abstrato que evita a analogia. É senão a partir de uma
distinção formal e modal que o ser unívoco de relaciona com a diferença. Em Espinosa o ser “indiferente”
de Duns Scot passa a ser o da afirmação pura a partir da divisão das substâncias, atributos e modos. O cerne
da questão é que as distinções reais não são formais (qualitativas e essenciais) enquanto as distinções
numéricas são modais (modos específicos da substância única e seus atributos). Assim, os atributos são os
elementos envolvidos com a diferença ao mesmo tempo em que são parte da substância. Cabe aos modos
o desenvolvimento da potência posto que não compartilham da mesma essência da substância. Nesse
sentido é que Gilles Deleuze propõe uma teoria da univocidade na qual os atributos e sua relação imanente
com a substância resulta em uma ontologia da potência.
A criação6, entendida, aqui, como uma produção da diferença, seria derivada de
um encontro-tensão. Por outros termos, cada encontro cria tensões específicas entre
fluxos organizados e caóticos, de modo a produzir uma expressão singular.
O que cria o humorista? Assumimos a hipótese de que a piada poderia ser pensada
no escopo da arte, ou seja, o humorista inventa blocos de sensações risíveis. Nesse
sentido, é importante, antes, destacar: o que são blocos de sensações?
Se, como propõe Deleuze & Guattari (2010), pensar é um modo específico de criar
expressão com o caos, na arte, desse encontro derivam blocos de sensações: um composto
de afectos e perceptos7. Perceptos não são percepções e afectos não são sentimentos: esses
últimos são da ordem da opinião, ou seja, são índices da conservação da recognição 8, e
não da diferença.
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Em Cavalcante (2020) discutimos o procedimento de criação em Gilles Deleuze e Félix Guattari. Aqui
interessa destacar o “produto da criação: os blocos de sensações.
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“Os perceptos não são percepções, são independentes do estado daqueles que o experimentam; os afectos
não mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles” (DELEUZE
& GUATTARI, 2010. p. 193).
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Ora, a percepção traduz o objeto a partir de um esquema de re-cognição estabelecido: seu propósito é o
reconhecimento e a organização do ambiente “exterior”. O percepto nada tem de subjetivo. Ao ser afetado
pelo caos o artista tem seus esquemas de referências rompidos: cabe ao artista inventar um “corpo” para a
desordem e, para isso, apropria-se da matéria. Essa monstruosidade inventada, torcida, deformada é o
percepto.
Não se trata de representar, posto que o caos é desconexo: representar o quê se o
suposto objeto não tem rosto? Trata-se, antes, de inventar uma expressão para algo
indizível e impensável: “A arte luta com o caos, mas torná-lo sensível’’ (DELEUZE &
GUATTARI, 2010, p.241).
O artista, portanto, precisa de uma matéria para criar com ela: escrever com o real.
Da materialidade o artista extrai sensações específicas: “[...] não é o azul da água, mas o
da pintura líquida’’ (DELEUZE, 2010, p.196). Não se trata, no entanto, de cair no puro
materialismo9, posto que a arte opera a desmaterialização da matéria no percepto, bem
como a des-subjetivação do sujeito no affecto.
Daí porque, segundo Deleuze & Guattari (2013, p. 231), sensação é, senão, uma
questão. Os esquemas de re-cognição são forçados diante do simulacro, e surge o
problema: o que é isto? O percepto cria uma paisagem estranha, assim como o afecto faz
vacilar o sujeito: “[...] Os afectos são exatamente esses devires não humanos do homem,
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“A arte é uma transmutação da matéria. Nela a matéria se espiritualiza, os meios físicos se
desmaterializam, para enfrentar a essência, isto é, qualidade de um mundo original” (DELEUZE, p. 2003,
p. 45).
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“Para isso, é preciso por vezes muita inverosemelhança geométrica, imperfeição física, anomalia
orgânica, do ponto de vista de um modelo suposto, do ponto de vista das percepções e afecções vividas;
mas esses erros sublimes acendem a necessidade da arte, se são os meios interiores de manter em pé”
(DELEUZE&GUATTARI, 2010, p.194).
como os perceptos (entre eles a cidade) são as paisagens não humanas da natureza’’
(DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.200).
As sensações seriam produzidas nas frestas, nos vazios que se formam entre
microscópios, telescópios dos simulacros artísticos. Cria-se um “entre”, um vazio
singular, que escorrega entre os binarismos dos modelos de re-cognição, ou seja, entre
um suposto objeto e seu modelo12.
Esse vazio é inventado senão pelos amálgamas criados pelo percepto que faz
coexistir mundos e ordens diferentes, deformados por seus “microscópios” e
“telescópios”, um acordo discordante entre mundos diferentes: “Cada sensação está em
diversos níveis, em diferentes ordens, ou vários domínios’’ (DELEUZE, 2007, p.45). As
sensações são as questões e os vazios singulares produzidos por essas variações.
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que, a partir de Deleuze, é possível inferir uma
estética do entre, do intermezzo: dos vazios singulares que cada invenção é capaz de criar.
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“Os perceptos podem ser microscópios ou telescópicos, dão aos personagens e as paisagens dimensões
gigantescas, como se tivessem repletos de uma vida a qual nenhuma percepção vivida pode atingir [...] toda
fabulação é fabricação de gigantes” (DELEUZE &GUATTARI, 2013, p. 202-203).
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“É uma zona de indeterminação, de indicernibilidade, como se coisas animais e pessoas tivessem atingido
em cada caso esse ponto que precede sua diferenciação natural [...] é o que se chama de afecto” (DELEUZE,
2013, p. 215).
São os blocos de sensações da arte: perceptos enquanto máquinas ou corpo da arte e
afectos como devires: “sensação[...], a mestra das deformações, agente de deformações
no corpo’’ (Deleuze, 2007, p.43)
Desse modo, inventa-se vazios que estão associados às fissura dos modelos de
recognição. Perceptos são questões, paradoxos, que se passam “entre” os corpos torcidos
da obra de arte enquanto o affectos são seus devires. Nesse sentido, o que seriam os blocos
de sensações no humor? Quais os vazios característicos das questões colocadas pelo
risível? Que tipo de paisagens e monstros habitam a comédia?
O filme a vida de Brian, do grupo de comédia inglês Monty Phyton, é uma sátira
do ascetismo e da “irrazoabilidade” humana. O filme é ambientado na idade antiga, de
forma específica, no contexto do império romano e do nascimento de Jesus Cristo. Brian,
o protagonista do filme, nasce no mesmo momento em que Jesus, sendo confundido com
este pelos reis magos.
Os reis magos, sem qualquer critério, confundem Brian com o escolhido. A falta
de critério racional permeia todo o filme. Essa sendo antes uma necessidade do “rebanho”
do que uma construção fundamentada na crítica. O que fundamenta as crenças é,
sobretudo, o acaso.
Brain, o personagem principal, é um afecto risível que atravessa todo o filme. Que
tipo de questões derivam do personagem? Quais vazios? Intermezzos? Poder-se-ia dizer
que há um devir-idiota do Messias? É preciso lembrar: o devir sempre é minoritário. O
messias eloquente, manipulador, sedutor é um modelo maior.
Brian é um tipo social: o idiota. Um sujeito que não é capaz nem de arrumar o
quarto, nem de gerir sua própria vida. É senão a mãe de Brian que comanda todas as suas
ações. No entanto, Brain é eleito o Messias por seu povo. É claro, um Messias menor,
idiota. Brian não prega qualquer ideologia ou mesmo tem um plano revolucionário. Ele
apenas não “curte” os Romanos. Ele nem mesmo tinha planos de ser o messias: é senão
por um conjunto de acasos que o povo passa a segui-lo.
Esses corpos são agenciados de modo a produzir o risível. Nem a varanda, o corpo
nú ou a multidão em si não são risíveis. O modo como são agenciados é que produz uma
máquina risível. Por um lado, o close up de Brian pelado se reveza com um grande plano
do povo. No plano fechado nas nádegas, Brian é um idiota, ao mesmo tempo, no plano
geral, na varanda, Brian se torna o grande Messias. Inventa-se um percepto risível, uma
questão, tensão, um paradoxo que produz fluxos de riso. Esses perceptos são as paisagens
do devir idiota do messias.
Brian, então, vai produzir protesto ao conectar pincel, tinta e muro ao escrever:
Romanos vão embora! Outro corpo, então, é maquinado: o do soldado Romano. O corpo
transgressor se encontra com o corpo repressor. No entanto, o grupo inventa uma outra
produção maquínica. O soldado percebe o erro de escrita em Latin, então, e o muro se
desmaterializa e se torna, também, um quadro negro, soldado devém professor e Brian,
aluno. O soldado faz as correções e manda Brian escrever corretamente a frase cem vezes.
Vira uma máquina de ensino altamente disciplinar. É um percepto lousa-muro.
Considerações finais
O grupo Monty Phyton ficou conhecido pelo seu estilo de humor do absurdo.
Assim como em filosofia, em que grandes conceitos são apropriados por outros filósofos,
deslocando-os em consonância com seu interesse, também os blocos de sensações risíveis
são capturados por outros pensadores do riso, operando a re-criação.
Nesse sentido, a obra do grupo Monty Phyton ainda continua “em pé”, posto que
suas ideias vêm sendo “bricoladas” por diferentes grupos de humor ao redor mundo. Tais
como Casseta e Planeta, TV Pirata ou mesmo o grupo Porta dos fundos no Brasil. Em
Portugal, o gato fedorento é um outro exemplo de reverberações da ideia desenvolvida
por Monty Phyton.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo. Editora 34, 1992.
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Escuta, 2002.
___. Proust e os signos. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro.
Forense Universitária, 2003.
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___. Francis Bacon. Lógica da sensação. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Zahar,
2007.
___. Diferença e repetição. Tradução de Luís Orlandi e Roberto Machado. São Paulo. Graal,
2009.
___. Dois regimes de loucos. Tradução de Guilherme Ivo. São Paulo. Editora 34, 2016.
Deleuze, Gilles & Guattari, Féliz. O que é filosofia? Tradução de Bento Prado Jr e Alberto
Alonso Muñoz. São Paulo, Editora 34, 2010.
__.O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo.
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___.Kafka. Por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte.
Autêntica Editora, 2014.
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Relógio d`água,1996.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro. Zaar, 2009.