Livro - Busca Do Amor - Nora Roberts
Livro - Busca Do Amor - Nora Roberts
Livro - Busca Do Amor - Nora Roberts
Nora Roberts
A quietude despertou Serenity. Abriu os olhos e olhou a seu redor, o sol entrava pela
janela iluminando a peça e demorou uns minutos antes de recordar onde se encontrava.
Sentou-se na cama e escutou. O silêncio, a rica e profunda qualidade do silêncio,
alterada ocasionalmente pelo canto de um pássaro. Um silêncio que não existia nas
barulhentas cidades que tinha conhecido em sua vida, do qual decidiu que gostava.
O pequeno e ornamentado relógio que havia em cima da escrivaninha de mogno
escura lhe disse que eram seis horas, de modo que apoiou sua cabeça nos elegantes
travesseiros e desfrutou lentamente de sua preguiça. Apesar de em sua mente se
acumularem as acusações e os fatos que sua avó lhe tinha revelado, a fadiga produzida
pela longa viagem se impôs à sua indignação e havia dormido profundamente poucos
minutos após deitar-se, sentindo uma imensa paz naquela cama que uma vez pertencera
à sua mãe. Agora elevou os olhos ao teto e recordou cada detalhe da tarde anterior.
A condessa era uma mulher amargurada. Todo o revestimento de ensaiada
compostura não conseguia a disfarçar a amargura ou, talvez devesse admitir Serenity, a
dor. Inclusive através de seu próprio alerta de ira, ela percebeu essa dor. Embora a velha
condessa tivesse repudiado a sua filha, observava seu retrato e talvez, esta foi a
conclusão a que chegou Serenity, essa contradição significava que o coração não era tão
duro quanto o orgulho.
A atitude de Christophe, entretanto, era de ferver de raiva. Tinha a impressão de que
um arrogante conde se erguia frente a ela como o fosse um juiz parcial, disposto a
condená-la sem um julgamento prévio. "Muito bem, - decidiu ela - eu também tenho meu
orgulho e não tremerei como uma covarde enquanto o nome de meu pai é lançado à
lama e minha cabeça é colocada na guilhotina. Eu também posso praticar o jogo da
gélida cortesia. Não fugirei como um cachorrinho ferido mas, pelo contrário, ficarei aqui."
Lançando um olhar à radiante luz do sol, Serenity suspirou profundamente. "Hoje é
um novo dia, mamãe", disse em voz alta e, deslizando-se para fora da cama, caminhou
até a janela. O jardim se estendia debaixo dela como um presente precioso. "Acredito que
darei um passeio por seu jardim, mamãe, e em seguida desenharei seu castelo." Voltou a
suspirar e agarrou o roupão. "Depois, talvez, a condessa e eu possamos chegar a um
entendimento."
Lavou-se e vestiu-se depressa, escolhendo para a ocasião um vestido leve em tons
pastel que deixava nus os braços e os ombros. O castelo seguia submerso em um
profundo silêncio quando Serenity chegou ao térreo e saiu no calor da manhã estival.
Era estranho, pensou, girando sobre si mesma. Era muito estranho não ver outros
edifícios ou carros, nem sequer outro ser humano. O ar era fresco e suavemente
perfumado, e Serenity o aspirou profundamente antes de contornar o castelo em direção
ao jardim.
O jardim era ainda mais maravilhoso visto de perto que da janela. As luxuriosas
flores brilhavam em uma incrível profusão de cores, os aromas se mesclavam formando
uma fragrância exótica, forte e ao mesmo tempo doce. Havia uma diversidade de atalhos
que cruzavam os bem cuidados canteiros e as polidas lajes refletiam a radiante luz do sol.
Serenity escolheu um atalho ao acaso e pôs-se a andar com indolente prazer,
desfrutando da solidão. A artista que havia dentro dela se recreava na inundação de
formas e cores.
- “Bonjour, mademoiselle”.
Uma voz profunda quebrou a silenciosa atmosfera do jardim e Serenity se voltou,
surpreendida por esta intrusão em sua solitária contemplação. Christophe se aproximou
dela lentamente, alto e magro, e seus movimentos lhe recordaram os de um bailarino
russo que tinha conhecido durante uma festa em Washington. Elegante, seguro e
extremamente viril.
- “Bonjour”, senhor conde.
Serenity decidiu não esbanjar um sorriso, então lhe saudou com estudada
cordialidade. Christophe estava vestido informalmente com uma camisa de cor camurça e
jeans marrons, e se antes ela havia sentido a brisa de um bucanero, agora se encontrava
apanhada em uma tempestade.
Christophe chegou até ela e a observou com sua habitual expressão pensativa.
- Você levanta-se muito cedo. Espero que tenha dormido bem.
- Muito bem, obrigado - respondeu ela, irritada por ter que combater não só a
aversão mas também a atração que começava a lhe inspirar. Os jardins são formosos e
muito atraentes.
- Tenho uma queda por tudo aquilo que seja formoso e atraente.
Seus olhos eram penetrantes, a cor marrom escura apagando a tonalidade ambarina,
e Serenity se sentiu incapaz de respirar. Um momento depois baixou o olhar ante o
poder que exerciam os olhos do conde.
- Olha só! - exclamou ela. Estado falando em francês mas, ao descobrir o cão que
descansava aos pés de Christophe, Serenity voltou a falar em inglês - Qual é seu nome?
Agachou-se para acariciar a pele grosa e suave.
- Korrigan - disse ele olhando a cabeça de Serenity enquanto a luz do sol formava
um halo de pálidos cachos.
- Korrigan - repetiu ela, encantada com o cão e esquecendo a aversão que lhe
provocava seu amo - De que raça é?
- Spainel bretão.
Korrigan começou a corresponder às carícias de Serenity, lhe lambendo as suaves
bochechas. Antes que Christophe ordenasse ao cão que deixasse de fazê-lo, Serenity riu
e afundou o rosto junto ao fofo pescoço do animal.
- Devia saber. Uma vez tive um cão, estava perdido e me seguiu até em casa. -
Elevou a vista e sorriu quando Korrigan continuou de mostrando seu afeto com sua úmida
língua – Na verdade, fui eu quem o incitou a me seguir. Pus lhe o nome de Leonardo,
mas meu pai lhe chamava Horrível e esse foi o nome que finalmente ficou. O banho e a
escova jamais conseguiram melhorar seu aspecto de vagabundo.
Quando Serenity decidiu ficar de pé, Christophe estendeu a mão para ajudá-la a
erguer-se e seu contato foi firme e perturbador. Lutando contra o urgente desejo de
afastar-se dele, soltou-se de sua mão com um gesto casual e continuou seu passeio.
Tanto o amo quanto o cão se uniram a ela.
- Vejo que seu gênio se suavizou. Surpreende-me que possa existir uma
personalidade tão perigosa dentro de uma cobertura tão frágil.
- Temo que se engane. - Serenity girou a cabeça para lhe olhar de forma fugaz -
Não quanto à personalidade, mas à fragilidade. Na realidade, sou bastante forte e não
cedo com facilidade.
- Talvez ainda não encontrou a fôrma de seu sapato. - respondeu ele e Serenity
concentrou toda sua atenção em um arbusto repleto de rosas - Decidiu ficar um tempo
entre nós?
- Sim - admitiu ela e se voltou para lhe olhar - embora tenha a impressão de que
gostaria que não o fizesse.
Christophe se encolheu de ombros em um gesto muito eloqüente.
- Pois não, mademoiselle. Seja bem vinda ao castelo por todo o tempo que desejar
permanecer nele.
- Seu entusiasmo me aflige - murmurou Serenity.
- “Pardon”?
- Nada. - Deixando escapar um suspiro elevou a cabeça e lhe olhou atrevidamente -
Me diga, monsieur, não lhe agrado porque pensa que meu pai era um ladrão ou se trata
de uma questão pessoal?
A expressão indiferente do rosto do Christophe não se alterou quando sustentou
impávido o olhar de Serenity.
- Lamento ter dado essa impressão, mademoiselle, minhas maneiras devem ser as
culpadas. Tratarei de ser mais cortês no futuro.
- Às vezes se mostra tão infernalmente cortês que me parece quase desagradável -
exclamou Serenity, perdendo o controle e golpeando o chão com o pé.
- Talvez julga que a rudeza é mais de seu agrado?
O conde elevou uma sobrancelha enquanto contemplava o estado de Serenity com
absoluta indiferença.
- Ah! - Ela se voltou com veemência, lhe dando as costas e estendendo a mão para
apanhar uma rosa - Droga! Maldita seja! - exclamou ao cravar o polegar em um espinho -
Olhe o que me fez fazer! – Levou o dedo ferido à boca sem olha-lo.
- Sinto muito - respondeu Christophe com um brilhe zombador nos olhos - foi uma
estupidez de minha parte.
- Você é arrogante e pomposo, e se acha superior ao resto da humanidade - acusou
Serenity agitando seus cachos.
- E você tem mau gênio, é mimada e obstinada - respondeu ele, entreabrindo os
olhos e cruzando os braços em seu peito.
Durante um momento os dois se olharam fixamente. O verniz de cortesia se
desprendeu ligeiramente do conde e Serenity pôde ver o homem cruel e excitante que se
ocultava debaixo da capa de fria indiferença.
- Bem, parece que ambos temos uma excelente opinião do outro depois de tão
pouco tempo de nos conhecermos - observou ela enquanto ordenava seus cachos
rebeldes - Quando chegarmos a nos conhecer melhor, certamente nos apaixonaremos
profundamente.
- Uma conclusão muito interessante, mademoiselle.
Com uma leve reverência, Christophe deu meia volta e tomou o caminho de volta ao
castelo. Serenity sentiu nesse momento uma inesperada mas tangível perda.
- Christophe! - chamou-lhe obedecendo a um impulso, desejando inexplicavelmente
esclarecer coisas entre os dois. Ele se voltou com uma expressão inquisitiva no rosto e
Serenity se adiantou para ele - Por que não podemos ser simplesmente amigos?
Ele olhou-a brevemente mas com tanta intensidade que Serenity sentiu que estava
lhe despindo a alma.
- Não, Serenity, temo que nós jamais seremos simplesmente amigos.
Ela observou a alta e magra figura que se afastava para o castelo, com o cão a seu
lado. Uma hora mais tarde, Serenity se reuniu com sua avó e Christophe para o café da
manhã, e a velha dama lhe perguntou como tinha passado a noite. A conversação
discorreu pelos caminhos corretos, embora bastante aborrecidos, e Serenity percebeu
que a condessa estava fazendo um esforço por atenuar a tensão que a confrontação da
noite anterior tinha produzido. Talvez, decidiu, não se considerava adequado iniciar uma
disputa perante um prato de croissants. "Que encantadoramente civilizados somos!"
Reprimindo um sorriso irônico, Serenity imitou a conduta de seus acompanhantes.
- Gostaria de explorar o castelo, Serenity, não é?
Elevando a vista enquanto deixava o pote de creme sobre a mesa, a condessa
revolveu seu café com uma mão perfeitamente manicurada.
- Sim, madame, eu adoraria - concordou Serenity com o esperado sorriso nos lábios
- Mais tarde me agradaria fazer alguns esboços do exterior, mas antes me fascinaria
conhecer seu interior.
- É claro. Christophe - disse, chamando a atenção do conde que bebia
displicentemente sua taça de café - esta manhã devemos acompanhar Serenity em sua
visita ao castelo.
- Nada seria mais de meu agrado, avó - disse ele, depositando a taça no pires de
porcelana a China - Mas temo que esta manhã estarei muito ocupado. O novo touro que
importamos chegará hoje e devo fiscalizar seu transporte.
- Ah, o gado! - A condessa suspirou e encolheu os ombros - Pensa muito no gado.
Tinha sido a primeira afirmação espontânea que Serenity percebeu desde sua
chegada ao castelo, e a registrou automaticamente.
- Então se dedicam à criação de gado?
- Sim - confirmou Christophe olhando-a fixamente - A criação de gado é o negócio
principal do castelo.
- É mesmo? - exclamou Serenity com exagerada surpresa - Não pensei que os
Kergallen se ocupassem de assuntos tão mundanos. Imaginava que se limitavam a
sentar-se e contar seus servos.
Os lábios de Christophe se curvaram ligeiramente e assentiu com a cabeça.
- Só uma vez ao mês. Os servos tendem a ser muito prolíficos.
Serenity riu, mas um segundo depois, quando o gesto sombrio de Christophe lançou
um sinal de alarme a seu cérebro, concentrou toda sua atenção no café que ainda ficava
dentro de sua xícara.
Finalmente, a condessa se encarregou em pessoa de acompanhá-la em seu passeio
pelo irregular castelo, lhe explicando sua história enquanto passavam de um assombroso
aposento a outro.
O castelo tinha sido construído no final do século XVII e, apesar de já ter quase
trezentos anos, não era considerado antigo segundo os cânones bretões. O castelo em si
e as propriedades circundantes tinham sido legados de geração em geração ao filho
primogênito e, embora se tivessem efetuado algumas reformas que o tinham
modernizado, era basicamente o mesmo que o primeiro conde de Kergallen viu ao
atravessar a ponte levadiça com sua esposa. Para o Serenity era a essência de um
encanto perdido e eterno. A fascinação e o imediato afeto que tinha experimentado ao ver
o castelo pela primeira vez não deixaram de aumentar à medida que avançava na
exploração de seus inumeráveis recantos.
Em uma galeria de retratos, Serenity descobriu a morena fascinação de Christophe
reproduzida ao longo dos séculos. Embora se percebessem certas variações de geração
em geração, permaneciam o inveterado orgulho, o porte aristocrático e aquele esquivo ar
misterioso. deteve-se diante de um dos antepassados do século XVIII, cuja semelhança
com Christophe era tão notável que a obrigou a aproximar-se do quadro para estudá-lo
atentamente.
- Acha Jean-Claude interessante, Serenity? - perguntou a condessa, seguindo a
trajetória de seu olhar - Christophe parece muito com ele, não acha?
- Sim, é assombroso.
Os olhos, julgou ela, eram muito seguros e muito vivos, e, a menos que se
equivocasse, a boca tinha conhecido um grande número de mulheres.
- Tinha fama de ser um pouco, digamos, selvagem - continuou a condessa com
indubitável admiração - Se diz que seu passatempo favorito era o contrabando. Era um
verdadeiro homem do mar. A história conta também que, encontrando-se na Inglaterra,
apaixonou-se perdidamente por uma mulher daquele país e, sem paciência suficiente
para manter com ela uma relação prolongada e formal, seqüestrou-a e a trouxe para o
castelo. Casou-se com ela, naturalmente, e ali pode ver seu retrato. - Assinalou uma
pintura que reproduzia os traços de uma moça inglesa de pele rosada e com uns vinte
anos - Não parece desventurada.
Depois deste último comentário, a velha condessa se afastou pelo corredor,
deixando Serenity absorta na contemplação do rosto sorridente de uma noiva raptada
fazia dois séculos.
O salão de baile era enorme e na parede mais afastada se viam grandes janelas
com vitrais. Outra parede estava totalmente revestida de espelhos e refletia os brilhantes
prismas dos três lustres que arrojavam emitindo luz como se fossem estrelas silenciosas
no teto sulcado por grosas vigas de madeira. Elegantes cadeiras de estilo Regência, de
respaldo rígido e belamente estofadas, distribuíam-se estrategicamente para aqueles
convidados que só desejam contemplar aos casais que dançassem sobre o chão
resplandecente. Serenity se perguntou se Jean-Claude tinha devotado um baile de bodas
para sua esposa Sabina, e decidiu que indubitavelmente assim o teria feito.
A condessa guiou Serenity ao longo de outro estreito corredor até uns elevados
degraus de pedra que ascendiam descrevendo uma espiral para a torre mais alta do
castelo. Embora a peça estivesse virtualmente nua, Serenity lançou uma exclamação de
alegria ao avançar para o centro da mesma e olhar a seu redor como se estivesse cheia
de tesouros. Era ampla e completamente circular, e estava bem ventilada. As altas
janelas que a circundavam permitiam que os radiantes raios do sol beijassem cada
recanto daquele espaço. Sem o menor esforço, imaginou a si mesma pintando naquele
lugar durante horas e desfrutando de uma assustadora solidão.
- Seu pai utilizava este local como estúdio - lhe informou a condessa com voz severa,
e Serenity abandonou suas fantasias e se voltou para enfrentar a sua avó.
- Madame, se seu desejo for que eu permaneça no castelo, acredito que devemos
chegar a um acordo. Se não pudermos fazê-lo, não terei nenhuma alternativa a não ser
partir. - Conseguiu manter a voz em um tom firme, controlado e severamente cortês, mas
seus olhos delatavam a luta que fazia para não discutir - Eu amava meu pai e também
minha mãe. Não vou tolerar o tom que você emprega quando se refere a ele.
- Em seu país é normal que um jovem se dirija a seus idosos como você o faz?
A régia cabeça da anciã se elevou com orgulho e sua irritação era evidente.
- Só posso falar por mim mesma, madame - respondeu Serenity, erguendo-se sob o
dourado resplendor do sol - E não compartilho a opinião de que a idade implique
necessariamente sabedoria. E tampouco sou tão hipócrita para aparentar que estou de
acordo com você, enquanto se dedica a insultar um homem a quem amei e respeitei mais
que a qualquer outra pessoa.
- Talvez seja conveniente que não falemos de seu pai enquanto viver conosco.
A réplica da condessa era, obviamente, uma ordem, e Serenity sentiu que fervia de
fúria.
- Eu acredito justamente o contrário, madame. Estou decidida a descobrir o que foi o
que ocorreu com essa Madonna do Rafael e a lavar esse estigma que você pôs sobre
seu nome.
- E como pensa consegui-lo?
- Não sei, - respondeu ela - mas o farei. - Começou a andar pela sala e estendeu as
mãos em um gesto absolutamente francês - Talvez se ache oculto no castelo ou,
possivelmente alguma outra pessoa o tenha. - voltou-se para a condessa com um
arrebatamento de fúria repentina - Ou talvez você vendeu a pintura e fez recair a culpa
sobre meu pai.
- É insultante! - exclamou a condessa e a ira se fez evidente em seus olhos azuis.
- Você chama a meu pai ladrão e diz que eu sou insultante? - replicou Serenity,
sustentando o olhar da condessa com o mesmo fogo - Eu conhecia o Jonathan Smith,
condessa, e ele não era um ladrão, mas a você não a conheço.
A condessa observou durante um momento e em silêncio a jovem, enquanto as
chamas azuis de seus olhos se convertiam em um olhar reflexivo.
- Isso é verdade - reconheceu com um leve assentimento - Você não me conhece e
eu não te conheço. E se ainda somos duas estranhas não posso fazer recair a culpa
sobre sua cabeça. E tampouco posso te culpar por algo que ocorreu antes que nascesse.
A anciã se dirigiu para uma das janelas e observou a paisagem.
- Não mudei que opinião quanto a seu pai - disse finalmente e, voltando-se, elevou
uma mão para interromper a réplica do Serenity - Mas temo que não fui justa no que
concerne a sua filha. Você, uma desconhecida, veio a meu lar porque eu te convidei, e
meu comportamento deixou muito a desejar. Peço desculpas por isso. - Seus magros
lábios se curvaram em um sorriso - Se estiver de acordo, não voltaremos a mencionar o
passado até que nos conheçamos melhor.
- Muito bem, madame.
Serenity se mostrou de acordo, sentindo que tanto a solicitude como as desculpas
eram uma espécie de bandeira de paz.
- Tem um coração sensível acompanhado de um espírito indomável - observou a
venerável anciã e no tom de sua voz se percebia certa aprovação - É uma boa
combinação. Mas também tem um gênio muito vivo, sabia?
- Evidentemente - admitiu Serenity.
- Christophe também é muito dado aos humores e aos súbitos rompantes de mau
gênio - lhe informou a condessa trocando de tema - é forte e obstinado, e necessita uma
esposa igualmente forte, mas que tenha o coração sensível.
Serenity se sentiu perplexa ante a ambígua afirmação de sua avó.
- Compadeço-a - começou a dizer Serenity, mas logo entreabriu os olhos quando a
sombra de uma dúvida cresceu em seu cérebro - Madame, o que têm que ver comigo as
necessidades de Christophe?
- Ele já chegou à idade em que todo homem necessita uma esposa - disse
simplesmente a condessa - E você superou a idade em que a maioria das mulheres bretã
já está casada e criando uma família.
- Só sou meio bretã - recordou-lhe ela, distraindo-se por um instante do núcleo da
conversação, e seus olhos se abriram de surpresa - Certamente você não... não estará
pensando que Christophe e eu...? Oh, que belamente ridículo! - pôs-se a rir e o estridente
riso retumbou nas paredes nuas - Madame, lamento desiludi-la, mas ao conde não
interesso absolutamente. Não lhe caí em graça do momento em que me viu na estação, e
eu também me vejo obrigada a admitir que ele me resulta indiferente.
- O que tem que ver tudo isso com o que eu disse? —perguntou a condessa,
enquanto descartava as palavras de Serenity com um leve movimento de sua mão.
Serenity deixou de rir e meneou a cabeça com incredulidade ao descobrir as
intenções de sua avó.
- Já falou com o conde de todo este assunto, condessa?
- Sim, certamente - reconheceu a condessa. Serenity fechou os olhos e se sentiu
transbordada de fúria e humilhação.
- Não me impressionaria se Christophe me rechaçasse, se apenas me viu... entre
esta absurda situação e o que ele pensa de meu pai! - Afastou o olhar de sua avó e
rapidamente se voltou para ela com crescente indignação - Você passou dos limites,
condessa. Faz já muito tempo que os matrimônios arranjados passaram à história.
- Hã! - A exclamação pretendia ignorar as palavras de Serenity—. Christophe é
muito orgulhoso para aceitar algo que tenha sido disposto por outra pessoa e vejo que
você também é feita da mesma madeira. Mas - um leve sorriso iluminou o rosto anguloso
enquanto Serenity a olhava com olhos incrédulos - é uma jovem muito atraente e
Christophe é um homem viril e encantador. Talvez a natureza... como se diz?... siga seu
curso.
Serenity só pôde observar boquiaberta o rosto inescrutável da condessa.
- Vê. - A anciã caminhou para a porta. - Ainda fica muito por ver.
Capítulo 4
- Era isso ou lhe devolver a bofetada, mademoiselle - disse Christophe e, pelo tom
de voz e a expressão de seu rosto, Serenity pôde comprovar que ele ainda não tinha
completado a transformação de pirata a aristocrata - Desgraçadamente, tenho certa
aversão a golpear a uma mulher, por mais que o mereça.
Serenity se separou dele, sentindo que as traiçoeiras lágrimas afloravam em seus
olhos e lutavam por derramar-se.
- Da próxima vez pode me esbofetear. Prefiro.
- Se voltar a me elevar a mão, querida prima, pode estar segura de que lhe
machucarei algo mais que o orgulho - prometeu ele.
- Você mereceu - replicou Serenity mas a temeridade de suas palavras se viu
atenuada por seus grandes olhos ambarinos que brilhavam tenuemente como dourados
lagos de luz - Como se atreve a me acusar de ter aceitado dinheiro para ficar no castelo?
Ocorreu a você alguma vez que eu pudesse desejar conhecer uma avó de cuja existência
não soube até uns meses atrás? Pensou alguma vez que eu pudesse desejar conhecer o
lugar onde meus pais se conheceram e se apaixonaram? Que preciso ficar e provar a
inocência de meu pai? - Grandes lágrimas escaparam de seus olhos e rodaram pelas
suaves bochechas, e Serenity desprezou cada uma das gotas de sua debilidade - Só
desejaria ter golpeado com mais força. O que teria feito se alguém tivesse acusado a
você de ter-se deixado comprar como um pedaço de carne?
Christophe observou o percurso descendente de uma lágrima até que ficou detida
na acetinada pele e um leve sorriso surgiu no canto de seus lábios.
- Teria golpeado sem duvida, mas acredito que suas lágrimas são um castigo muito
mais efetivo que os punhos.
- Eu não emprego as lágrimas como uma arma - Serenity enxugou o rosto com o
dorso da mão e desejou poder reprimir as lágrimas.
- Não, e devido a isso são muito mais potentes - Um dedo comprido e bronzeado
tirou uma gota da alva pele e o contraste de cores lhe conferiu uma aparência delicada e
vulnerável. Christophe afastou rapidamente sua mão e acrescentou com indiferença -
Minhas palavras foram injustas e lhe peço desculpas. Acredito que nós dois recebemos
nosso castigo, de modo que agora estamos... como se diz? Em paz?
Presenteou-lhe com seu estranho e encantador sorriso, e Serenity olhou-o,
fascinada por seu poder e comovida pela mudança positiva que conferia a seu rosto. Ela
respondeu com seu próprio sorriso e foi como um repentino raio de sol através do véu da
chuva. Christophe lançou um pequeno som de impaciência, como se lamentasse o
momentâneo lapso e, depois de um leve movimento de cabeça, girou sobre seus
calcanhares e se afastou pelo atalho, deixando-a só e perplexa.
Serenity calçou as fortes botas que tinham sido de sua mãe enquanto murmurava
terríveis insultos. As botas tinham sido escovadas e lustradas até lhes dar um negro
reluzente e se ajustaram a seus magros pés como se tivessem sido fabricadas para ela.
"Parece que você também está conspirando contra mim, mamãe", protestou
Serenity em meio a seu desespero. Em seguida exclamou "entre" quando alguém bateu
na porta do aposento. Não era a criada Bridget, quem abriu a porta, mas Christophe,
arrumado com despreocupada elegância e vestindo suas calças de montar cor canela e
uma camisa branca.
- Que deseja? - perguntou Serenity com manifesto mau humor, enquanto calçava a
segunda bota com um firme puxão.
- Simplesmente comprovar se é pontual, Serenity - disse Christophe com um sorriso
e seus olhos zombadores percorreram seu rosto rebelde e o corpo magro e flexível,
vestido com uma camiseta estampada e jeans franceses.
Serenity ficou em pé em atitude defensiva e desejando que ele não a olhasse
sempre como se tentasse memorizar cada traço.
- Estou preparada, capitão Bligh, mas temo que lhe decepcionarei como aluna.
- Isso veremos, “ma chérie”. —Os olhos de Christophe voltaram a deslizar por seu
corpo como se estivesse acariciando-a - Parece muito capaz de seguir umas poucas e
simples instruções.
Os olhos de Serenity se apertaram até formar duas ranhuras e se viu forçada a lutar
contra o acesso de ira que ele tinha o costume de provocar.
- Sou uma mulher razoavelmente inteligente, obrigado, mas eu não gosto que me
intimidem.
- “Pardon”?
A expressão confusa de Christophe provocou o sorriso de Serenity.
- Terei que recordar muitas expressões coloquiais, primo. Talvez, lentamente, possa
enlouquece-lo.
Serenity acompanhou Christophe às cavalariças em silêncio, alargando
deliberadamente seus passos para que coincidissem com o modo de andar do conde e
reprimindo a necessidade de ter que correr atrás dele como se fosse um cachorrinho.
Quando chegaram ao edifício anexo ao castelo, um cavalariço saiu dos estábulos
levando dois cavalos convenientemente selados e com rédeas. Um era completamente
negro e o outro era um baio quase branco e, aos olhos apreensivos de Serenity, ambos
os animais eram enormes.
Deteve-se subitamente e observou os cavalos com certa dúvida. "Certamente, ele
não me arrastará pelos cabelos", pensou.
- Se eu dissesse para dar meia volta e retornar por onde viemos, o que você faria? -
perguntou com voz sonora.
- Não teria outra alternativa que obrigá-la a retornar, “ma petite”.
As sobrancelhas escuras de Christophe se elevaram ao observar a expressão de
Serenity, revelando que já tinha previsto essa pergunta.
- O cavalo negro é, obviamente, o seu, conde - disse Serenity com um fio de voz,
lutando para controlar o pânico que se apoderava dela - Posso imaginar o galopando pelo
campo à luz da lua, e com o resplendor de um sabre no quadril.
- É você muito ardilosa, mademoiselle. - Christophe assentiu e, agarrando as rédeas
do baio das mãos do cavalariço, levou o cavalo até onde ela se encontrava. Serenity
retrocedeu involuntariamente e respirou com dificuldade.
- Suponho que deseja que eu suba nesse cavalo...
- Égua - corrigiu ele, curvando zombeteiramente os lábios.
Serenity lhe lançou um olhar flamejante, sentindo-se irritada e incomodada com sua
própria apreensão.
- Não estou interessada no sexo. - Olhou novamente o cavalo e voltou a respirar -
Ela é... é muito grande.
Sua voz soou muito mais fraca do que desejava.
- Babette é tão dócil quanto Korrigan - lhe assegurou Christophe em um tom de voz
inesperadamente paciente - Você gosta de cães, não é mesmo?
- Sim, mas...
- É uma égua tranqüila, não acredita? - agarrou a mão de Serenity e a elevou até
tocar a suave queixada de Babette - Tem bom coração e só deseja agradar a seu
cavaleiro.
A mão de Serenity ficou presa entre a pele suave do animal e a dura insistência da
palma de Christophe, e descobriu que essa combinação era estranhamente agradável.
Relaxou e permitiu que ele guiasse sua mão sobre a égua. Serenity virou a cabeça por
cima do ombro e sorriu.
- Parece mansa - começou a dizer, mas a égua soprou por suas amplas narinas e
Serenity gaguejou até apoiar-se no peito de Christophe.
- Calma, “chérie” - disse ele com voz suave enquanto a agarrava pela cintura para
acalmá-la - Babette só está dizendo que gosta de você.
- Assustei-me, isso é tudo - disse Serenity. Mas seu comentário foi defensivo e se
sentiu desgostada com ela mesma, decidindo que era agora ou nunca. Voltou-se para lhe
dizer que estava preparada para começar a aula de equitação mas se encontrou sem
palavras, olhando seus olhos escuros e enigmáticos enquanto ele seguia agarrando-a
pela cintura.
Serenity sentiu que seu coração detinha seu ritmo pausado, permanecendo imóvel
durante um instante, e então se acelerava violentamente.
Por um momento acreditou que ele voltaria a beijá-la e, ante seu próprio
desconcerto, compreendeu que desejava sentir o contato de seus lábios mais que
qualquer outra coisa no mundo. De repente, Christophe franziu o cenho e a liberou de
seu abraço com um gesto abrupto.
- Agora começaremos a aula.
Com atitude fria e controlada assumiu sem esforço sua condição de instrutor.
O orgulho se impôs sobre Serenity e decidiu ser uma aluna modelo. Reprimindo sua
ansiedade, permitiu que Christophe a ajudasse a montar. Com certa surpresa, comprovou
que o chão não estava tão longe como ela tinha imaginado em princípio e prestou
atenção às instruções de Christophe. Fez tudo o que ele dizia e se concentrou em
obedecer exatamente suas indicações, decidida a não ficar novamente como uma parva.
Serenity observou Christophe quando ele montou em seu corcel e invejou sua
elegância e sua economia de movimentos. O brioso alazão harmonizava perfeitamente
com o cavaleiro moreno e altivo, e Serenity pensou, com certo desgosto, que nem sequer
Tony nos momentos mais ardentes a tinha impressionado como o tinha feito este homem
estranho e remoto com seus perturbadores olhares.
Não podia sentir-se atraída por ele, refletiu com irritação, Christophe era muito
imprevisível e, Serenity compreendeu subitamente que ele podia feri-la como nenhum
homem tinha sido capaz de feri-la em toda sua vida. "Além disso, pensou, eu não gosto
de sua atitude dominante e altiva."
- Decidiu dormir uma pequena sesta, Serenity? - A voz zombadora de Christophe a
tirou de suas especulações e sentiu que se ruborizava apesar de seus esforços por evitá-
lo - Em marcha, “chérie”.
A cor de suas bochechas se tornou mais intensa ao perceber o sorriso de
Christophe quando ele dirigiu seu cavalo afastando-se das cavalariças e precedendo-a
com passo lento.
Ambas as cavalgaduras partiam ao mesmo tempo e, à luz de uns minutos, Serenity
relaxou sobre arreios. Guiou a égua segundo as instruções que lhe transmitia Christophe,
e o animal respondeu com suave obediência. Sentia-se cada vez mais segura,
permitindo-se admirar a paisagem e desfrutar da carícia do sol sobre seu rosto e o
cadencioso ritmo da égua debaixo dela.
- Agora trotaremos um pouco - ordenou Christophe de repente, e Serenity voltou a
cabeça para lhe observar seriamente.
- Talvez meu francês não seja tão bom quanto supunha. Você disse trotar?
- Seu francês é excelente, Serenity.
- Estou desfrutando plenamente deste passeio - disse ela com um leve encolhimento
de ombros - Não tenho nenhuma pressa.
- Você deve mover-se você seguindo o ritmo da égua - a instruiu ele, ignorando
deliberadamente suas palavras.
- Eleve-se com cada passo do animal. Faça pressão com os calcanhares.
- Escute...
- Tem medo? - perguntou Christophe com tom zombador.
Antes que o bom senso pudesse suplantar seu orgulho, Serenity meneou a cabeça
apertou os calcanhares contra o flanco do animal.
"Isto é o que se deve sentir quando se utiliza um desses malditos martelos
perfuradores que sempre estão fazendo buracos nas ruas", pensou Serenity ofegando,
bamboleando-se desajeitadamente com o trote da égua.
- Deve seguir o ritmo do trote – recordou-a Christophe, e Serenity estava muito
concentrada em sua difícil situação para perceber o amplo sorriso que acompanhou as
palavras de Christophe.
Passados uns minutos abrandou o passo do animal.
- Como se sente? - perguntou ele enquanto cavalgavam juntos pelo enlodado atalho.
- Bom, agora que meus ossos deixaram estalar, não é tão mau quanto eu tinha
imaginado. De fato, é bastante divertido - acrescentou com um sorriso.
- Bem. Agora já podemos nos lançar a um meio galope - disse ele simplesmente, e
Serenity lançou um olhar implorante.
- Realmente, Christophe, se quer me assassinar por que não tenta algo mais
simples, como veneno ou uma apunhalada nas costas.
Christophe riu e um som rico e pleno alagou a quieta manhã reverberando na brisa.
Quando voltou a cabeça e lhe sorriu, Serenity sentiu que o mundo dava voltas e que seu
coração, ignorando as advertências do cérebro, estava irremediavelmente perdido.
- “Allons”, valente amazona. - Sua voz era alegre, despreocupada e contagiosa -
Aperte os calcanhares e lhe ensinarei a voar.
Seus pés obedeceram instantaneamente e a égua respondeu, lançando-se a um
suave e fácil galope. O vento jogava com o cabelo de Serenity e acariciava suas
bochechas com dedos frios. Sentiu que cavalgava sobre uma nuvem e não estava segura
se a leveza era o resultado do vento ou da vertigem do amor. Fascinada pela novidade
de ambas as sensações, não lhe deu nenhuma importância.
Obedecendo a ordem dada por Christophe, puxou das rédeas obrigando a égua a
diminuir a velocidade e que trotasse uns metros antes de deter-se. Elevou o rosto para o
céu e suspirou profundamente de prazer, antes de voltar-se para Christophe. O vento e a
excitação tinham tingido de rosa suas bochechas, seus olhos tinham reflexos dourados e
estavam muito abertos, e tinha o cabelo revolto, como se fosse um turbulento halo que
rodeava sua felicidade.
- Você apreciou, mademoiselle?
Serenity lhe olhou com olhos brilhantes e um amplo sorriso distendeu seus lábios.
Sentia-se intoxicada pelo potente vinho do amor.
- Vamos, diga que já tinha me avisado. Tem toda a razão.
- “Mais non, chérie”, é simplesmente o prazer que produz comprovar que uma aluna
progride com tanta velocidade e talento. - Christophe lhe devolveu o sorriso e a barreira
invisível que se levantou entre eles se esfumou repentinamente - Você se move com
naturalidade sobre a sela. Enfim, é provável que o talento seja algo genético.
- Oh, monsieur! - Serenity fez vibrar as pestanas com um olhar travesso - Devo
crédito às palavras de meu professor.
- Seu sangue francês começa a aparecer, Serenity, mas sua técnica necessita
prática.
- Não é muito boa, não é mesmo? - Afastando franja, Serenity lançou um profundo
suspiro - Suponho que nunca o conseguirei totalmente, houve muitos puritanos entre os
antepassados de meu pai.
- Puritanos? - a risada de Christophe voltou a alterar a quietude da manhã – “Chérie”,
nunca houve um puritano tão cheio de fogo.
- Tomarei como um elogio embora, sinceramente, duvido que essa tenha sido a
intenção. - Voltando a cabeça, Serenity olhou do topo da colina para o vale que se
estendia debaixo deles - Oh, que paisagem tão maravilhosa!
Uma cena de cartão postal se avistava à distância: suaves colinas salpicadas de
gado que pastava tranqüilamente, contra um fundo formosas casas de campo. Um pouco
mais à frente, Serenity descobriu um pequeno povoado, uma diminuta cidade de
brinquedo colocada ali por uma mão gigante, dominada por uma igreja branca cujo
campanário se elevava para o céu.
- É perfeito - exclamou - É como retroceder no tempo. - Seus olhos voltaram a
posar-se no distante gado - Esses animais são seus? - perguntou, abrangendo-os com
um amplo gesto de sua mão.
- Sim -disse Christophe.
- Então, todas estas terras formam parte da propriedade? - voltou a perguntar,
sentindo um súbito sufoco.
- Isto só é uma parte de nossa propriedade.
A resposta de Christophe foi acompanhada de um leve encolhimento de ombros.
"Cavalgamos durante vários quilômetros, - pensou Serenity enrugando a testa - e ainda
estamos em suas terras. Só Deus sabe quanto se estendem em outras direções. Por que
não pode ser um homem como todos os outros?" Voltando a cabeça, estudou o perfil
aquilino do altivo conde de Kergallen. “Mas ele não é um homem comum – recordou - É o
conde de Kergallen, amo de tudo o que se divisa desde esta colina, e não devo esquecê-
lo." Seu olhar voltou a posar-se no vale. "Não quero me apaixonar por ele." Engolindo
para eliminar a súbita secura da garganta, Serenity utilizava as palavras com uma defesa
contra os desejos de seu coração.
- Que maravilhoso é possuir tanta beleza.
Christophe a olhou e franziu o cenho para ouvir as palavras que Serenity acabava
de pronunciar.
- A gente não pode possuir a beleza, Serenity; somente pode cuidá-la e apreciá-la.
Serenity lutou contra a calidez que emanava de suas suaves palavras, mantendo os
olhos fixos no vale.
- É mesmo? Eu tinha a impressão de que vocês, os aristocratas, davam todas essas
coisas por fatos. - Serenity fez um amplo gesto que varreu a paisagem – Além do mais,
isto só é seu direito.
- Você não gosta da aristocracia, Serenity, mas também leva sangue de aristocrata
em suas veias. - Sua expressão severa se alterou ligeiramente com um lento sorriso que
suavizou seus traços sombrios e o tom de sua voz era tranqüilo - O pai de sua mãe era
conde, embora todas suas propriedades tenham sido destruídas durante guerra. A
Madonna de Rafael foi um dos poucos tesouros que sua avó pôde salvar quando fugiram.
"O maldito Rafael outra vez!", pensou Serenity com aparente melancolia.
Christophe estava irritado. Serenity pôde percebê-lo pelo duro brilho de seus olhos e
se sentiu estranhamente agradada. Seria muito mais fácil controlar seus sentimentos
para ele se ambos mantivessem suas divergências.
- De modo que essa circunstância me converte em meio camponesa e meio
aristocrata - replicou ela, encolhendo os ombros - Bem, querido primo, eu prefiro minha
metade camponesa. Deixarei a você o sangue azul que corre nas veias de minha família.
- Mademoiselle, você faria muito bem em não esquecer que não existem laços de
sangue entre nós. - A voz de Christophe era grave e, observando seus olhos
entrecerrados, Serenity sentiu temor - Os Kergallen são famosos por seu costume de
tomar tudo aquilo que desejam, e eu não sou precisamente uma exceção. Sugiro-lhe que
cuide a forma em que utiliza seus olhos ambarinos.
- Essa advertência é absolutamente desnecessária, monsieur. Posso cuidar muito
bem de mim mesma.
Christophe sorriu, lenta e confidentemente, e seu sorriso foi mais enervante que uma
resposta colérica. Então, fazendo girar seu alazão, tomou o caminho de volta para o
castelo.
A cavalgada de volta foi acompanhada de um incômodo silêncio, quebrado só
ocasionalmente pelas instruções de Christophe. Os dois haviam tornado a cruzar suas
espadas e Serenity se viu obrigada a admitir que ele tinha evitado sua estocada com
absoluta facilidade.
Quando chegaram à cocheira, Christophe desmontou com sua elegância habitual,
entregou as rédeas ao cavalariço e a ajudou a descer da égua antes que Serenity
pudesse imitar seus movimentos.
Com gesto desafiante, Serenity ignorou a rigidez de suas extremidades quando ele
rodeou sua cintura com os braços e a depositou brandamente no chão. As mãos fortes e
magras de Christophe permaneceram em sua cintura durante um momento e ele a olhou
intensamente antes de libera-la de um contato que parecia queimá-la através do fino
tecido da camiseta.
- Vá tomar um banho quente - ordenou ele - Isso ajudará a relaxar a rigidez que
certamente sente em suas pernas.
- Você tem uma assombrosa capacidade para dar ordens, monsieur.
Os olhos de Christophe se apertaram ligeiramente antes que seu braço a
envolvesse com incrível rapidez, atraindo-a para ele e cobrindo seus lábios com um beijo
intenso e prolongado que não lhe deu tempo para protestar ou debater-se, mas sim
provocou uma resposta similar com a mesma facilidade com que uma mão faz girar uma
torneira.
Ele a manteve prisioneira durante uma eternidade afundando-a cada vez mais
dentro de seu beijo. A tórrida intensidade de seus lábios despertou em Serenity uma nova
e primitiva necessidade e, abandonando o orgulho em altares de amor, submeteu-se a
uma exigência que não podia resistir. O mundo pareceu esfumar-se, a suave paisagem
bretã se mesclou como se fosse uma aquarela abandonada sob a chuva, deixando só
uma pele cálida e uns lábios imperiosos que procuravam sua rendição. As mãos de
Christophe deslizavam pela leve curva de seu quadril para ascender então pela coluna
vertebral com segura autoridade, esmagando-a contra ele com uma força que teria
destroçado todos os seus ossos se não estivessem dissolvidos já no calor que emanava
de seu corpo.
Amor. A mente de Serenity era um torvelinho impulsionado por essa mágica palavra.
O amor eram passeios sob a tênue chuva, um anoitecer tranqüilo ante a luz. Como era
possível que fosse uma tormenta violenta e palpitante que a deixava sem fôlego,
debilitada e vulnerável? Como podia ser que se implorasse essa debilidade tanto como a
vida mesma? Tinha sido assim com sua mãe? Foi isto o que desenhou em seus olhos a
sonolenta névoa do saber? "Não me soltará alguma vez?", perguntou-se com desespero
e seus braços rodearam o pescoço de Christophe em um gesto em que seu corpo
contradizia claramente a sua vontade.
- Mademoiselle - murmurou ele com tom suave e zombador, mantendo seus lábios
separados dos do Serenity só pelo fôlego e acariciando sua nuca - tem você uma
assombrosa capacidade para provocar o castigo. Sinto necessidade de lhe dar algumas
aulas de disciplina.
Christophe se separou dela e se afastou com calculada indolência, detendo-se tão
somente para corresponder às boas-vindas de Korrigan que trotava fielmente junto a ele.
Capítulo 5
- Tem umas mãos maravilhosas - sussurrou ela enquanto uma letargia começava a
invadi-la ao tempo que a dor desaparecia e era substituída por uma sensação cálida e
prazerosa - Dedos fortes e formosos; a qualquer momento começarei a ronronar.
Serenity não soube quando se produziu a transição, quando o suave relaxamento se
transformou em um lento incêndio em seu estômago e a massagem de Christophe em
uma insistente carícia, mas elevou a cabeça sentindo uma onda de calor.
- Já está melhor, muito melhor - balbuciou e tratou de erguer-se.
As mãos de Christophe voaram para a cintura dela e a imobilizaram enquanto seus
lábios procuravam a zona vulnerável de sua nuca com um beijo ligeiro como uma pluma.
Serenity estremeceu e logo deu um salto como se fosse uma lebre assustada, mas antes
que conseguisse escapar Christophe a fez girar e uniu seus lábios aos dela com um beijo
ardente que sossegou todos os protestos.
A luta terminou antes de converter-se em uma realidade, a lenha se fez chama e
seus braços rodearam o pescoço de Christophe enquanto sentia seu corpo esmagado
contra o colchão. Sua boca parecia devorá-la, firme e segura, e suas mãos seguiam as
curvas de seu corpo como se tivessem feito amor inumeráveis vezes. Com febril
impaciência, Christophe fez deslizar o fino tecido por cima dos ombros de Serenity,
procurando e encontrando a suavidade acetinada de seus peitos. O contato de seus
dedos quentes despertou nela uma tempestade de desejo e começou a mover-se
debaixo dele. As demandas de Christophe se tornaram mais urgentes e suas mãos mais
insistentes enquanto deslizavam com um murmúrio de sedas, e seus lábios
abandonavam a boca de Serenity para assaltar seu pescoço com insaciável voracidade.
- Christophe - gemeu ela, sabendo-se incapaz de combater contra ele e também
contra sua própria debilidade - Christophe, por favor, não posso lutar contigo aqui. Nunca
poderia te derrotar.
- Não lute, "ma belle" -sussurrou ele em seu pescoço. - E os dois venceremos.
Sua boca ardente voltou a descansar sobre a dela, suave e ofegante, fazendo com
que o desejo ganhasse ainda mais força e começasse a ascender desmesuradamente.
Os lábios de Christophe exploraram lentamente seu rosto acariciando as covinhas de
suas bochechas, estimulando a vulnerabilidade de seus lábios entreabertos antes de
dedicar-se a outras conquistas. Uma mão cobriu seu peito esquerdo com um gesto de
preguiçosa posse, os dedos riscaram o curvo perfil, atrasando-se em uma cálida carícia
sobre o túrgido mamilo até que uma dor apagada e persistente estendeu-se por todo o
corpo. A dor, doce e enervante, a fez gemer de prazer e suas mãos começaram a
percorrer os músculos das costas de Christophe como se desejasse acentuar o poder
que exercia sobre ela.
A lenta exploração de Christophe voltou a fazer-se imperiosa como se a submissão
de Serenity tivesse exacerbado loucamente a paixão que embargava seus corpos
palpitantes. As mãos percorriam a pele suave e a boca era um animal selvagem que se
abatia sobre os lábios de Serenity, os dentes que tinham mordiscado com suavidade o
lábio superior foram substituídos por uma boca que enlouquecia seu sentido e exigia algo
mais que submissão, exigia paixão.
A mão abandonou o aceso seio e deslizou pelo flanco de seu corpo, detendo-se
brevemente no quadril antes de seguir seu caminho, reclamando a pele suave e fresca de
suas coxas, e a respiração de Serenity se converteu em uma sucessão de suspiros
quando ele percorreu seu pescoço com os lábios até afundá-los entre seus peitos.
Um último relâmpago de lucidez lhe confirmou que se encontrava à beira de um
precipício e que um só passo a mais a precipitaria em um vazio infinito.
- Christophe, por favor. - Serenity começou a tremer, embora estivesse virtualmente
sufocada pelo incêndio que sentia dentro do corpo - Por favor, você me assusta, e sinto
medo de mim mesma. E nunca... nunca estive com um homem.
Ele deteve suas carícias e o silêncio se fez espesso quando elevou o rosto para
olhá-la. Brilhos de luar dormiam sobre o pálido cabelo de Serenity, enfraquecido em cima
do travesseiro branco, e seus olhos estavam nublados pelo temor e a paixão recém-
nascida.
Com um som áspero e breve, Christophe separou seu corpo do dela.
- Serenity, tenho que reconhecer que sua habilidade para escolher o momento
oportuno é verdadeiramente incrível.
- Sinto muito - se desculpou ela.
- Por que pede desculpas? - perguntou Christophe e a ira era percebida por debaixo
de sua fria calma geada - Por sua virgindade ou por ter permitido que me aproximasse de
reclamá-la?
- Esse comentário me parece de muito mau gosto! - exclamou Serenity, lutando para
acalmar o ritmo da respiração - ocorreu tão depressa que não pude pensar. Se tivesse
estado preparada, você nunca poderia se aproximar desse modo.
- Você acha que não? - Obrigou-a a erguer-se até ficar ajoelhada sobre a cama e,
uma vez mais, apertada contra seu corpo - Agora está preparada. Julga que não posso
fazê-la minha neste mesmo minuto, se você deseja que o faça?
Christophe a olhou fixamente. O homem que a abraçava cintilava de fúria e absoluta
segurança em si mesmo, e Serenity foi incapaz de dizer algo, sabendo que se encontrava
indefesa perante o poder dele e sua própria urgente necessidade. Os olhos pareciam
maiores em seu rosto pálido, o temor e a inocência brilhavam como faróis no âmbar de
suas formosas pupilas. Christophe lançou uma maldição e a afastou com violência.
- Pelo amor de Deus! Olha-me com os olhos de uma menina. Seu corpo encobre a
perfeição de sua inocência; é um disfarce muito perigoso. - dirigiu-se para a porta e logo
se voltou para olhar a figura quase despida e que parecia ainda mais pequena na
vastidão da cama - Durma bem, pequena - disse com tom zombador - A próxima vez que
for levar por diante os móveis, será mais prudente que feche a porta com a chave, porque
não voltarei a partir.
O frio recebimento que Serenity dispensou Christophe durante o café da manhã foi
retribuído com um olhar gentil que procurou seus olhos por um instante e que não
evidenciava sinal da paixão ou a ira que tinha mostrado na noite anterior. Ela se sentiu
confusa por sua perversa falta de reação enquanto ele conversava com a condessa e se
dirigia a ela só quando era estritamente necessário, e com uma cortesia formal que
somente podia ser detectada por um ouvido muito sensível.
- Não terá esquecido que Geneviéve e Yves deverão jantar conosco esta noite? -
perguntou a condessa dirigindo-se a seu neto.
- É obvio que não, avó - respondeu ele, depositando a taça no prato - Sempre é um
prazer estar com eles.
- Estou certa de que os achará encantadores, Serenity. - A condessa voltou seus
olhos azuis para sua neta - Geneviéve é uma jovem de sua idade, talvez um ano menos,
e é muito doce e educada. Seu irmão, Yves, é um jovem adorável e muito atraente. - Um
sorriso iluminou seu rosto – Você achará a companhia deles... divertida. Não acha,
Christophe?
- Estou certo de que Serenity achará Yves extremamente divertido.
Serenity olhou brevemente Christophe. Havia em sua voz certa brutalidade? Mas ele
bebia o café com indiferença e Serenity pensou que se equivocou.
- Você tem uma capacidade natural para agradar - disse Christophe e ela se voltou
para ele, visivelmente emocionada.
- Ela também é minha avó.
Christophe percebeu o véu que cobria os olhos de Serenity e ficou em pé.
- Meu comentário pretendia ser um elogio.
- É mesmo? Pensei que era uma censura.
Desprezando a umidade de seus olhos Serenity sentiu, simultaneamente, o desejo
de estar sozinha e de reclinar-se contra seu ombro.
- Sempre está na defensiva comigo, não é, Serenity?
Os olhos de Christophe se entrecerraram, como o fazia cada vez que estava irritado,
mas Serenity se sentia muito preocupada em combater suas próprias emoções para lhe
dar importância.
- Você me deu muitos motivos - replicou ela - Do momento em que desci do trem,
seus sentimentos por mim foram absolutamente transparentes. Condenou o meu pai e o
mesmo fez comigo. É frio e autocrático e não demonstra ter um pingo de compaixão ou
de compreensão. Eu gostaria que você partisse e me deixasse sozinha. Vá açoitar os
camponeses ou algo assim. Isso combina muito bem com sua personalidade.
O movimento de Christophe foi tão veloz que Serenity não teve possibilidade de
afastar-se. Seus poderosos braços estiveram a ponto de parti-la em dois ao abraçá-la
com veemência.
- Tem medo? - perguntou ele e seus lábios esmagaram a pequena boca de Serenity
antes que ela pudesse atinar a responder, e qualquer sinal de razão se esfumou
repentinamente.
Serenity choramingou ante a mescla de dor e prazer que lhe produziam os lábios de
Christophe ao queimar os seus, enquanto o abraço se fazia mais intenso, conquistando
inclusive seu fôlego.
"Como é possível amar e odiar ao mesmo tempo?" perguntou seu coração a seu
confuso cérebro, mas a resposta se perdeu em um mar de paixão turbulenta e vitoriosa.
Os dedos se enredavam sem piedade em seu cabelo loiro, obrigando-a a inclinar a
cabeça para trás para deixar exposta a rosada pele do pescoço e Christophe reclamou a
pele vulnerável com lábios quentes e vorazes. O fino tecido da blusa dela não constituiu
nenhuma barreira contra o calor abrasador do corpo dele, e ele superou com facilidade
o obstáculo deslizando uma mão por debaixo da blusa, acariciando a carne febril e
apoderando-se de seu peito túrgido em um alarde de absoluta e consumada posse.
A boca de Christophe voltou a devastar lábios, varrendo toda suavidade com uma
urgência a que ela não podia resistir. Serenity deixou de questionar a complexidade de
seu amor e, como se fosse um salgueiro na tormenta, cedeu às súplicas de seu próprio
desejo.
Christophe elevou o rosto dela e seus olhos se mostraram escuros, quase negros
pelos fogos de paixão e ira que ardiam dentro deles. Ele a desejava, os olhos de Serenity
se abriram desmesuradamente devido ao terror que significava este descobrimento.
Nenhum homem a tinha desejado nunca com esta intensidade e nenhum tinha tido o
poder de tomá-la com tão pouco esforço. Porque inclusive sem o amor de Christophe, ela
sabia que se entregaria. E inclusive sem sua entrega voluntária, Christophe a faria dela.
Ele leu o medo nos olhos de Serenity e a voz dele se fez ouvir, grave e perigosa.
- Sim, pequena prima, tem motivos para estar assustada, porque sabe perfeitamente
que cederá. No momento está a salvo, mas cuidado a próxima vez que for me provocar.
Liberando-a de seu abraço, Christophe partiu pelo atalho que tinha tomado sua avó,
e Korrigan, depois de olhar Serenity com olhos de desculpa, seguiu-lhe de perto.
Capítulo 6
Serenity vestiu-se com delicioso cuidado para o jantar que teria lugar naquela noite
no castelo, empregando o tempo para pôr em ordem seus sentimentos e decidir um plano
de ação. Nenhum argumento e tampouco raciocínio algum podia alterar o fato de que se
precipitou temerariamente no amor com um homem que tinha conhecido fazia apenas
uns dias, um homem que era terrivelmente excitante mas que, por sua vez, produzia-lhe
verdadeiro pânico.
Um homem arrogante, autoritário e audaciosamente obstinado, acrescentou,
subindo o zíper do vestido. E também um homem que tinha acusado meu pai de ser
ladrão. "Como pude permitir que isto ocorresse? -repreendeu-se com veemência - Como
poderia tê-lo impedido? refletiu com um profundo suspiro - É provável que meu coração
tenha me abandonado, mas ainda conservo a cabeça sobre os ombros e vou ter que usá-
la. Me recuso a permitir que Christophe descubra que me apaixonei por ele e me
submeter, deste modo, a suas zombarias." Sentada em frente à penteadeira de madeira
de cerejeira, Serenity passou repetidamente a escova por seus suaves cachos e deu os
últimos retoques a sua maquiagem. "Pintura de guerra - pensou, e sorriu ao reflexo - É
uma expressão que se ajusta perfeitamente, já que preferiria estar em guerra e não
apaixonada por Christophe. Além disso - o sorriso se converteu em um gesto sombrio -
esta noite também terei que lidar com mademoiselle Dejot."
Ficou em pé e observou atentamente a figura que se refletia no grande espelho de
provas. A seda ambarina harmonizava com a cor de seus olhos e acrescentava um
quente resplendor à sua pele rosada. Os magros tirantes do vestido revelavam seus
ombros suaves e o decote baixo e redondo realçava a sutil curva de seus peitos. A saia
vincada flutuava graciosamente até lhe roçar os tornozelos e sua cor diáfana e apagada
tornava a sua beleza frágil maravilhosa, quase etérea.
Serenity franziu a testa ao efeito que o produzia sua imagem no espelho,
demonstrando fragilidade ali onde desejava que houvesse sofisticação e aprumo. O
relógio lhe informou que não havia tempo para trocar de vestido, de modo que, calçando-
os sapatos e lançando uma nuvem de perfume a seu redor, abandonou rapidamente o
quarto.
O murmúrio de vozes que chegava do salão principal confirmou a uma irritada
Serenity que os convidados já tinham chegado. Seu olho de artista desenhou
imediatamente a cena que a recebeu ao entrar no salão: o chão reluzente e as paredes
com seus painéis de madeira lustrada, as janelas altas e com formosos vitrais, a enorme
chaminé de pedra com seu exterior cuidadosamente esculpido, todos os detalhes se
conjugavam para formar a cortina de fundo dos elegantes ocupantes do salão principal do
castelo, com a condessa em primeiro plano, vestida regiamente de seda vermelha.
O severo smoking negro de Christophe ressaltava a imaculada brancura da camisa
e acentuava maravilhosamente a cor bronzeada de sua pele. Yves Dejot também estava
vestido de negro e sua pele era mais dourada que bronzeada, enquanto que o cabelo era
de cor castanha. Mas foi a mulher que estava entre os dois homens a que chamou a
atenção do Serenity e também sua imediata admiração. Se sua avó era a rainha, ali
estava a princesa herdeira. A cabeleira, de um negro de azeviche, emoldurava um rosto
pequeno e encantado de comovente beleza. Os olhos amendoados, de cor marrom,
dominavam o rosto perfeito e o vestido verde intenso destacava contra a pele dourada.
Os dois homens ficaram em pé quando ela entrou no salão e Serenity concentrou
toda atenção em Yves, consciente do intenso olhar que lhe dedicou Christophe. Uma vez
feitas as apresentações de praxe, ela se encontrou olhando os olhos castanhos, da
mesma cor do cabelo, que tinham um olhar de franca aprovação masculina e uma
aparente luz picardia.
- “Mon ami”, não me havia dito que sua prima era uma deusa loira. -inclinou-se para
roçar seus lábios à mão de Serenity - Terei que visitar o castelo com mais freqüência,
senhorita, enquanto você se encontrar aqui.
Serenity sorriu com autêntico prazer, classificando Yves Dejot como um homem
encantador e inofensivo.
- Estou certa de que minha estadia no castelo será muito mais agradável com essa
perspectiva, “monsieur” - respondeu com o mesmo tom que ele tinha empregado e se viu
recompensada com um luminoso sorriso.
Christophe continuou com as apresentações e a mão de Serenity ficou prisioneira
em um apertão pequeno e vacilante.
- Sinto-me feliz de conhecê-la finalmente, mademoiselle Smith, - Geneviéve a
saudou com um cálido sorriso – Você é idêntica ao retrato de sua mãe; é como se a
pintura tivesse criado vida.
A voz era absolutamente sincera e Serenity pensou que, embora o tentasse, seria
impossível ter aversão àquela mulher que parecia uma fada e que agora a olhava com os
olhos aquosos de um cocker spaniel.
A conversação discorreu por leitos informais e agradáveis durante os aperitivos e o
jantar, composto de umas deliciosas ostras ao champanha, que dispuseram os ânimos
para desfrutar de uma comida preparada e servida com deliciosa elegância. Os Dejot se
mostraram ávidos por conhecer detalhes sobre os Estados Unidos e sobre a vida que
levava Serenity em Washington, e ela tratou de descrever aquela cidade de contrastes
enquanto o pequeno grupo desfrutava o “ris de veau au Chablis”.
Serenity começou a desenhar com palavras os velhos edifícios do governo e as
linhas e colunas da Casa Branca.
- Infelizmente, modernizaram bastante a cidade, incluindo enormes monstruosidades
de aço e cristal para substituir algumas das antigas construções. São edifícios vastos,
pulcros e carentes de todo encanto. Mas há dúzias de teatros, do Ford, onde foi
assassinado o presidente Lincoln, até o Kennedy Center.
Serenity continuou seu relato e lhes levou da assombrosa elegância do Embassy
Row até os bairros pobres e os apartamentos de aluguel que se elevavam fora do
enclave federal, através de museus e galerias de arte e da sede do Congresso dos
Estados Unidos.
- Mas nós vivíamos em Georgetown, que é um mundo completamente separado do
resto de Washington. A maioria dos lares são casas geminadas ou apenas separadas, de
dois ou três pisos, com pequenos pátios pavimentados e debruados com azaléias e
maciços de flores. Algumas das ruas laterais ainda estão pavimentadas com os
paralelepípedos originais e toda a zona conserva seu antigo encanto.
- Deve ser uma cidade excitante - comentou Geneviéve - Certamente, acha nossa
vida aqui bastante tranqüila. Sente falta de animação, da atividade de sua cidade?
Serenity franziu o cenho à sua taça de vinho e então meneou a cabeça.
- Não - respondeu, surpreendendo-se pela resposta - Suponho que é bastante
estranho. - Seu olhar se encontrou com os olhos marrons da outra mulher - Passei toda
minha vida ali e me senti muito feliz, mas não sinto falta de absolutamente nada. Quando
cheguei ao castelo, senti que tinha com ele uma inexplicável afinidade, algo assim como
uma sensação de reconhecimento. Sinto-me muito bem aqui.
Deu uma olhada a seu redor e encontrou o olhar de Christophe, intenso e penetrante,
sentiu um acesso de pânico.
- Certamente, é um verdadeiro alívio não ter que enfrentar uma batalha a cada dia
para encontrar um local onde estacionar - acrescentou com um sorriso tentando romper o
ambiente de solenidade que havia na mesa - Em Washington os locais de
estacionamento são mais valiosos que o ouro e, atrás de um volante, inclusive a pessoa
mais civilizada do mundo é capaz de cometer um assassinato para conseguir uma vaga.
- Você recorreu a tais táticas, “ma chérie”? - perguntou Christophe, elevando sua
taça e olhando-a fixamente.
- Tremo ao pensar nos crimes que cometi - respondeu Serenity, aliviada por
mudança de tema de conversação - Não me atrevo a confessar a que extremos cheguei
para me assegurar uns poucos metros de espaço livre. Posso ser terrivelmente agressiva.
- Julgo totalmente impossível acreditar que a agressividade seja parte de uma flor
tão delicada - disse Yves, acolhendo-a com seu encantador sorriso.
- Você se surpreenderia, "mon ami", - comentou Christophe inclinando levemente a
cabeça - Esta flor tão delicada possui algumas qualidades insuspeitadas.
Serenity olhou-o com expressão desgostada e a condessa interveio trocando de
tema.
O salão estava suavemente iluminado, conferindo ao enorme ambiente um clima de
intimidade. Enquanto o grupo desfrutava do café e do conhaque que seguiram ao jantar,
Yves se sentou junto a Serenity e começou a desdobrar seu abundante encanto francês.
Serenity percebeu, com crescente desgosto em seu coração, que viu obrigada a
reconhecer como um puro ataque de ciúmes, que Christophe se dedicava a entreter
Geneviéve. Os dois falavam dos pais dela, que estavam realizando um cruzeiro pelas
ilhas gregas, de amizades comuns e de velhos amigos. Christophe escutou atentamente
enquanto Geneviéve lhe contava uma anedota e sorriu, adulou à preciosa jovem e
brincou com ela, com uma atitude tenra e encantadora que Serenity nunca tinha visto
nele. A relação entre ambos era tão obviamente especial, tão próxima e antiga que
Serenity sentiu que o desespero invadia seu corpo.
"Christophe a trata como se ela fosse feita de fino e delicado cristal, pequena e
preciosa, e me trata como se eu fosse feita de pedra, forte, tenaz e rústica."
Se Serenity pudesse sentir aversão pela outra mulher, tudo teria sido muito mais
singelo, mas um natural sentimento de amizade se impôs aos ciúmes e, conforme
passava o tempo, se deu conta de que os irmãos Dejot eram dois seres verdadeiramente
encantadores.
Geneviéve, depois de uma cortês insistência por parte da condessa, aceitou
interpretar algumas peças ao piano. A música se pulverizou pelo salão com a mesma
doçura e fragilidade dos dedos de sua intérprete.
"Suponho que é uma mulher perfeita para ele - concluiu Serenity, sentindo-se
terrivelmente desventurada - Eles têm muitas coisas em comum e ela desperta em
Christophe uma ternura que impedirá que lhe cause algum dano." Elevou a vista e olhou
em direção a Christophe, que estava sentado e relaxado contra as almofadas da poltrona,
com seus olhos escuros e fascinantes fixos na mulher que tocava o piano. Uma série de
emoções encontradas afetou seu ânimo: desejo, desesperança, ressentimento, unindo-se
em uma irremediável névoa de depressão ao compreender que, independentemente de
quão perfeita Geneviéve pudesse ser para ele, ela jamais poderia observar com
indiferença Christophe quando cortejasse a outra mulher.
- Como a artista que é, mademoiselle - disse Yves quando a música cessou e todos
reataram a conversação - Você deve necessitar de inspiração, não é?
- Certamente - disse Serenity e lhe sorriu.
- Os jardins do castelo constituem um belo motivo de inspiração à luz da lua -
assinalou Yves.
- Esta noite, me sinto inspirada - decidiu Serenity com um repentino impulso - Talvez
consiga lhe convencer para que me acompanhe.
- Mademoiselle - respondeu ele alegremente - para mim será uma honra.
Yves comunicou ao resto dos presentes sua intenção de sair ao jardim, e Serenity
aceitou seu braço sem perceber o sombrio olhar que Christophe lhe lançou.
O jardim era, indubitavelmente, uma bela causa de inspiração, as brilhantes cores
luziam apagadas sob o resplendor prateado da lua. Os aromas das flores se mesclavam
formando um perfume embriagador, adoçando a cálida noite estival e convertendo-a em
um abrigo para apaixonados. Serenity suspirou profundamente quando seus
pensamentos se voltaram para homem que ainda permanecia no salão do castelo.
- Foi um suspiro de prazer, mademoiselle? - perguntou-lhe Yves enquanto
caminhavam por um atalho sinuoso.
- Naturalmente - respondeu ela gentilmente, sacudindo os pensamentos sombrios e
presenteando seu acompanhante com um de seus melhores sorrisos - Esta assustadora
beleza me perturba.
- Ah, mademoiselle. - Ele agarrou sua mão e a levou aos lábios para beijá-la - A
beleza de cada uma destas flores empalidece perante a sua. Que rosa poderia comparar-
se com esses lábios, que gardênia com essa pele?
- Como é que os homens franceses aprendem a fazer o amor com palavras?
- É algo que se aprende do berço - disse com suspeita sobriedade.
- A uma mulher resulta verdadeiramente difícil resistir a este cenário. - Serenity
voltou a suspirar - Um jardim banhado pela luz da lua junto a um castelo bretão, o ar
perfumado pelo aroma das flores, um homem atraente com poesia nos lábios.
- Ora! - Yves suspirou por sua vez - Temo que saberá encontrar a força para resisti-
lo.
Serenity meneou a cabeça com fingido pesar.
- Eu, desgraçadamente, sou uma mulher extremamente forte e você - acrescentou
com um sorriso - é um encantador lobo bretão.
A risada de Yves alterou a quietude da noite.
- Ah, já aprendeu a me conhecer bem. Se não fosse pela sensação que
experimentei ao vê-la pela primeira vez, quando soube que estávamos destinados a ser
amigos e não amantes, tentaria-o com maior afinco. Mas nós, os bretões, acreditamos
cegamente no destino.
- E é tão difícil ser amigos e amantes.
- Exato.
- Então seremos amigos - afirmou Serenity estendendo a mão - Eu te chamarei Yves
e você pode me chamar Serenity.
Ele agarrou sua mão e a sustentou durante uns instantes.
- "C'est extraordinaire" que possa me sentir honrado ao conquistar uma amizade
com alguém como você. Possui uma beleza esquiva que impressiona vivamente a mente
de um homem e lhe mantém caído por ti. - Seus ombros se moveram em um típico gesto
francês que expressava mais que três horas de conversação - Bom, assim é a vida -
disse com tom fatalista.
Serenity ainda estava rindo quando entraram novamente no castelo.
Serenity se reuniu com Christophe à hora prevista, decidida a dedicar cada resquício
de energia ao desenvolvimento da técnica eqüestre adequada. Procedeu montando a
égua com concentrada segurança e então seguiu seu silencioso instrutor quando este
dirigiu seu alazão em direção oposta a que tinham tomado em sua última saída. Quando
Christophe impulsionou a sua montaria a um ligeiro galope, Serenity fez o mesmo e
experimentou a mesma intoxicante liberdade que havia sentido antes. Não obstante, nos
traços de Christophe não apareceu o súbito e brilhante sorriso e de seus lábios não saiu
nenhuma frase zombadora, e Serenity disse a si mesma que na verdade estava melhor
sem essas demonstrações. Christophe lhe deu algumas instruções ocasionais e ela
obedeceu imediatamente porque precisava lhe provar, e provar-se a si mesma, que era
perfeitamente capaz de fazê-lo. Assim Serenity se contentou seguindo as instruções e
observando ocasionalmente o aquilino perfil de Christophe.
"Que o Senhor me ajude - suspirou Serenity sentindo-se frustrada - Ele vai obcecar-
me pelo resto de minha vida. Terminarei sendo uma solteirona excêntrica e comparando
todos os homens que encontrar com aquele que não pude ter. Quisera nunca o tivesse
conhecido."
- "Pardon"?
A voz de Christophe a tirou de suas silenciosas meditações e Serenity se
sobressaltou, dando-se conta de que talvez tinha murmurado algo em voz alta.
- Nada - balbuciou - não era nada. - Lançou um profundo suspiro e franziu o cenho -
Poderia jurar que cheiro o mar. - Christophe reprimiu seu cavalo e ela fez o mesmo com a
égua até que ambos os animais caminharam no mesmo ritmo. de repente, um ruído
surdo alterou o silêncio. - Foi um trovão? - perguntou Serenity elevando a vista ao céu
azul, mas o ruído não cessou - É o mar! - exclamou, esquecendo toda animosidade -
Estamos perto? Poderei vê-lo? - Ele se limitou a deter seu cavalo e desmontar -
Christophe, pelo amor de Deus! - Serenity lhe observou com recente exasperação
enquanto ele atava as rédeas a uma árvore - Christophe! - repetiu Serenity, saltando dos
arreios com mais velocidade que graça. Ele a agarrou por um braço quando ela caiu
desajeitadamente no chão e segurou a égua junto ao alazão antes de pôr-se a andar por
um atalho - Pode escolher o idioma que desejar - convidou ela generosamente - mas fale
comigo antes que eu enlouqueça!
Christophe se deteve, deu meia volta e, atraindo-a para ele, cobriu-lhe a boca com
um beijo breve e perturbador.
- Você fala muito - disse, simplesmente, e continuou seu caminho.
- Realmente, acredito...
Serenity tentou lhe responder mas desistiu disso quando Christophe se voltou para
olhá-la. Satisfeito, aparentemente, com seu silêncio, ele a guiou através da campina
enquanto o rumor do mar se fazia mais insistente. Quando Christophe se deteve, Serenity
conteve a respiração perante o panorama que se estendia a sua frente. O mar ocupava
toda a distância que podia abranger seu olhar e os raios do sol dançavam sobre a
superfície verde da água. As ondas chegavam a acariciar as rochas e sua espuma
parecia um laço em um vestido de veludo. Com ar provocador, a água se retirava da
areia só para retornar um momento depois como se fosse um amante caprichoso.
- É maravilhoso - suspirou Serenity, recreando-se no ar salino e na brisa que
brincava com seu cabelo loiro - Suponho que você já deve estar acostumado a tanta
beleza, mas duvido de que eu possa fazê-lo.
- Sempre desfruto da contemplação do mar - respondeu ele, enquanto seus olhos
pareciam perder-se no horizonte longínquo, onde o céu azul beijava o verde intenso da
água - Tem um caráter volúvel e, talvez por isso, os pescadores digam que é uma mulher.
Hoje o vê tranqüilo e aprazível, mas quando está irritado constitui um espetáculo
irrepetível.
Christophe deslizou uma mão pelo braço de Serenity em um gesto simples e íntimo
que ela não esperava dele e seu coração pareceu dar um tombo dentro do peito.
- Quando eu era um menino, pensava em escapar ao mar e viver minha vida na
água e navegar com suas mudanças de humor.
Seu polegar acariciou a palma da mão de Serenity e ela se viu obrigada a respirar
antes de poder falar.
- Por que não fez isso?
Christophe se encolheu e ela se perguntou se recordaria que estava ali.
- Descobri que a terra também tinha sua própria magia..., pastos de brilhantes cores,
um chão rico, vinhedos de cor púrpura e gado que pastoreia placidamente sob o sol.
Lançar-se ao galope e percorrer estas terras é tão excitante quanto navegar sobre as
ondas do mar. A terra é meu trabalho, meu prazer e meu destino.
Ele a olhou até o fundo de seus olhos ambarinos, abertos e assombrados no rosto
rosado, e algo ocorreu entre eles, algo que brilhava tenuemente e se expandia, até que
Serenity se sentiu sobressaltada por seu poder. Então, encontrou-se esmagada contra
ele e o vento assobiava em torno deles como se fosse cordas que pretendessem enlaçá-
los intimamente enquanto a boca de Christophe exigia uma rendição absoluta. Serenity
se agarrou a ele quando o rugido do mar se intensificou até tornar-se ensurdecedor e, de
repente, encontrou-se se apertando contra seu peito musculoso e lhe exigindo mais e
mais.
Se o humor do mar era tranqüilo e aprazível, o de Christophe absolutamente não
parecia assim. Indefesa por sua própria necessidade, Serenity se recreou na selvagem
posse de seus lábios ardentes e na urgente insistência das mãos que a reclamavam
como se ela lhes pertencesse por direito. Tremendo, embora não de temor mas sim pelo
desejo de entregar-se, apertou-se ainda mais contra ele, desejando febrilmente que ele
tomasse o que lhe estava oferecendo.
A boca de Christophe se afastou ligeiramente por um instante e Serenity meneou a
cabeça rechaçando a momentânea liberdade, atraindo sua cabeça novamente para ela
com lábios que imploravam a fusão com os dele. Os dedos de Serenity se cravaram na
lustrosa pele dos ombros de Christophe quando ele voltou a abraçá-la com paixão
enquanto sua boca a buscava, presa de uma nova voracidade, como se precisasse
mordê-la para não morrer de fome. Uma de suas mãos deslizou por debaixo da seda de
sua blusa para reclamar um peito que se estremeceu ante a febril carícia, os dedos
quentes vagavam como brasas acesas sobre a pele suave e, embora sua boca tenha
sido conquistada, a língua de Christophe exigia agora a íntima e profunda umidade,
fazendo que Serenity murmurasse uma e outra vez seu nome até que tudo pareceu
esfumar-se.
Os poderosos braços de Christophe voltaram a envolvê-la contra ele, as mãos
abandonaram sua exploração e o fôlego desapareceu e foi esquecido ante essa força
nova e entristecedora. Os seios suaves estavam esmagados contra a dura rocha de seu
torso, as coxas se acoplavam geometricamente, os corações pulsavam em uníssono e
Serenity soube que tinha dado o passo para o precipício e que jamais retornaria à
segurança da terra.
Christophe a soltou tão abruptamente que ela teria caído se ele não a tivesse pego
por um braço.
- Agora devemos retornar - disse como se nada tivesse ocorrido - Já é tarde.
Serenity elevou as mãos para afastar os rebeldes cachos que caíam sobre seu rosto
e olhou Christophe com olhos implorantes e confusos. - Christophe.
Pronunciou seu nome com um sussurro, incapaz de articular nenhum outro som, e
ele a olhou com expressão sombria e, como sempre, insondável.
- Já é tarde, Serenity - repetiu e a ira que se percebia em sua voz não fez a não ser
aumentar sua perplexidade.
Serenity sentiu um súbito golpe de frio e rodeou o corpo com os braços para
controlar o tremor de seu corpo.
- Christophe, por que está zangado comigo? Não fiz nada de mau.
- Não?
Seus olhos se entrecerraram, obscurecendo-se com sua habitual mudança de
humor e, através da dor que lhe produzia seu rechaço, Serenity sustentou seu olhar.
- Não. O que eu poderia fazer a você? É tão insuportavelmente superior, sentado em
seu trono de ouro. Uma meio-aristocrata como eu dificilmente poderia subir a seu nível
para causar-lhe dano.
- Sua língua lhe causará muitos problemas, Serenity, a menos que aprenda a
controlá-la.
Agora a voz de Christophe era precisa e muito controlada, mas Serenity descobriu
uma pontinha de prudência enterrada sob uma crescente montanha de fúria.
- Bem, até que resolva fazê-lo é provável que a empregue para dizer exatamente o
que penso a respeito de sua atitude arrogante, autocrática, dominante e exasperadora
para a vida em geral e para mim em particular.
- Para uma mulher com seu gênio, - começou a dizer ele com um tom de voz que ela
julgou muito suave e muito meloso - minha querida prima, deve recordar
permanentemente que há um só amo. - Agarrou-a pelo braço com veemência e pôs-se a
andar afastando-os do mar - Digo que retornamos ao castelo.
- Você retornará ao castelo, monsieur - replicou ela, mantendo-se firme e olhando-o
com fúria - Ou a qualquer outro lugar que desejar.
Sua retirada, furiosamente digna, só alcançou uns três passos antes que uns dedos
de aço a agarrassem pelos ombros e a obrigassem a voltar-se para encontrar-se com
uma explosão de ira que fez com que seu próprio estado de ânimo parecesse tranqüilo.
- Obriga-me a pensar novamente na sabedoria que implica golpear uma mulher.
Sua boca voltou a beijá-la com maior violência que se tivesse empregado os punhos
e Serenity sentiu pânico ao encontrar em seus lábios somente ira e nenhum vestígio de
desejo. Os dedos de Christophe se cravaram em seus ombros mas ela decidiu não lutar
contra ele, permanecendo passiva entre seus braços enquanto toda sua coragem se
dissolvia em pura indefensibilidade
Quando, finalmente, ele a soltou, Serenity o olhou, vencendo o véu de lágrimas que
começava a cobrir seus olhos.
- Você tem todas as vantagens, Christophe, e sempre me derrotará fisicamente.
Sua voz era tranqüila e cuidadosamente modulada e percebeu que ele franzia o
cenho com um gesto de assombro ante sua reação. Christophe estendeu uma mão para
enxugar uma lágrima rebelde que tinha rodado pela lisa bochecha de Serenity e ela se
afastou rapidamente, passando uma mão por seu rosto e piscando para reprimir o pranto.
- Por hoje já tive minha cota de humilhação e não penso me jogar a chorar para que
se sinta satisfeito de sua obra. - Sua voz se tornou mais firme quando pôde controlar
suas emoções, e seus ombros ficaram rígidos enquanto Christophe observava em
silêncio a transformação que se operava nela - Como disse, está ficando tarde. - Dando
meia volta, pôs-se a andar em direção aos cavalos.
O sol voltou a sorrir docemente no dia das bodas de Bridget. O céu estava
incrivelmente azul e pequenas nuvens brancas salpicavam a uniformidade da cor.
Com o correr dos dias, a depressão que sentia Serenity se transformou em um frio
ressentimento. O comportamento distante de Christophe avivava o fogo de seu
temperamento mas, com firme determinação, ela o tinha enterrado sob um gelo
igualmente desdenhoso. Em conseqüência, suas conversações se limitaram a umas
frases breves e formalmente corteses.
Serenity estava entre a condessa e Christophe no cuidado canteiro da igreja do povo,
esperando a procissão nupcial. O vestido de seda natural que tinha eleito
deliberadamente por seu aspecto frio e intangível tinha sido rechaçado categoricamente
por sua avó com uma gesto régio de sua enfeitada mão. Como resultado disso, se
apresentou à cerimônia com um conjunto que tinha pertencido a sua mãe e o aroma a
lavanda se percebia nitidamente no tecido como se a tivessem perfumado no dia anterior.
Em lugar de parecer uma mulher sofisticada e distante, tinha o aspecto de uma moça que
espera que alguém venha apanhá-la para levá-la a uma festa.
A saia vincada roçava apenas os joelhos, suas listas brancas e vermelhas verticais
terminavam em um curto avental branco. A blusa camponesa de decote pronunciado se
ajustava na breve cintura e suas mangas curtas e folgadas deixavam os braços nus ao
sol. Um colete negro sem mangas se ajustava perfeitamente sobre a suave curva de seus
peitos e seus loiros cabelos estavam cobertos por um chapéu de palha adornado com
fitas.
Christophe não tinha feito nenhum comentário a respeito de seu aspecto, limitando-
se a inclinar ligeiramente a cabeça quando ela desceu as escadas e agora Serenity
mantinha a guerra de silêncio dirigindo toda a conversação para sua avó.
- Eles chegarão da casa da noiva - lhe informou a condessa e, embora Serenity era
consciente da presença do homem moreno que estava junto a ela, parecia extremamente
interessada no que sua avó lhe estava dizendo - Toda sua família a acompanhará em seu
último passeio como solteira. Então, ela se reunirá com o noivo e entrará na capela para
converter-se em sua esposa.
- É tão jovem - disse Serenity com um afogado suspiro - apenas um pouco maior
que uma menina...
- "Alors", já tem idade suficiente para ser uma mulher, minha querida "anciã". - Com
um leve sorriso, a condessa deu uns tapinhas na mão de Serenity - Eu tinha
aproximadamente sua idade quando me casei com seu avô. A idade tem muito pouco a
ver com o amor. Não acha, Christophe?
Serenity sentiu, mais que viu, como ele se encolhia de ombros.
- Isso parece, avó. Antes de cumprir os vinte anos, nossa pequena Bridget terá um
pirralho brincando sobre seu avental e outro debaixo dele.
- Tomara! - suspirou a condessa com suspeita nostalgia e Serenity se voltou para
observá-la com curiosidade - Parece que nenhum de meus netos está disposto a me dar
meninos para que os malcrie. - Olhou Serenity com olhos tristes e inocentes - É muito
difícil ser paciente quando se envelhece.
- Mas muito mais fácil ser ardiloso - comentou Christophe com voz seca e Serenity
não pôde evitar olhá-lo.
Christophe retribuiu o olhar elevando uma sobrancelha e ela manteve seu olhar
tranqüilamente, decidida a não sucumbir ao seu feitiço.
- Você quer dizer sábia, Christophe - corrigiu a condessa sem alterar-se - Essa é
uma verdade absoluta. "Voilá"! - exclamou antes que ele pudesse fazer algum outro
comentário - Ali vêm eles!
Um grupo de meninos pequenos jogava no ar suaves e delicadas pétalas que
dançavam com a brisa antes de cair ao chão. As pétalas formavam um tapete de amor
para os pés da noiva. Pétalas inocentes e silvestres do bosque e dos prados, e os
meninos dançavam em círculos enquanto as ofereciam ao jogo caprichoso da brisa.
Rodeada por sua família, a noiva caminhava como se fosse uma boneca pequena e
delicada. Usava um vestido tradicional e obviamente antigo, e Serenity pensou que
jamais tinha visto uma noiva tão radiante e um vestido mais perfeito.
De um branco antigo, a saia ampla e vincada caía da cintura até um palmo da rua
semeada de flores. O decote era alto e fechado com um broche, e a parte superior do
vestido era rodeada e estava adornada com um delicado bordado. Bridget não usava véu,
mas sim um chapéu redondo e branco, coroado por uma meia lua de flores que conferia à
noiva uma beleza exótica e atemporal.
O noivo se reuniu com ela e Serenity notou, quase com alívio maternal, que Jean
Paul parecia tão bom e inocente quanto à própria Bridget. Jean Paul também estava
vestido seguindo a tradição: calças brancas dentro de botas delicadas e uma jaqueta cor
azul escura sobre uma impecável camisa branca com o peitilho bordado. O chapéu
bretão de aba estreita, com suas fitas de veludo, acentuava sua juventude e Serenity
supôs que era apenas um pouco mais velho que Bridget.
Um halo de amor jovem parecia rodeá-los, puro e tenro como o céu matinal, e o
súbito e inesperado acesso de nostalgia deixou Serenity sem fôlego e logo cruzou com
força as mãos para combater um repentino estremecimento. "Se só uma vez - pensou e
engoliu com dificuldade para umedecer a secura que se instalou em sua garganta - só
uma vez, Christophe tivesse me cuidadoso desse modo eu poderia viver com essa
recordação durante o resto de minha vida."
Sobressaltou-se quando alguém lhe tocou o braço e elevou a vista para encontrar o
olhar ligeiramente zombador de Christophe, seus olhos sempre frios. Elevando o queixo,
permitiu que ele a acompanhasse até o interior da capela.
O jardim do castelo era um mundo perfeito para celebrar umas novas bodas, cheio
de vida, de perfumes e de cores brilhantes. O terraço estava coberto de mesas com
toalhas brancas sobre as quais se amontoavam as travessas com comida e numerosas
garrafas de vinho da região. O castelo tinha cedido para a ocasião sua melhor baixela e a
prata e o cristal esculpido refulgiam com o orgulho de sua antigüidade sob a luz do sol. E
o povo, observou Serenity, aceitava-o como seu direito. Eles pertenciam ao castelo e este
lhes pertencia . A música se elevava por cima do murmúrio das vozes e das risadas; as
doces e alegres cordas dos violinos harmonizavam com o som das gaitas de fole.
Serenity observou do terraço o primeiro baile dos noivos já como marido e mulher,
uma dança típica da Bretanha, cheia de encantadores e atrevidos movimentos, e Bridget
paquerava seu marido com inclinações de cabeça e olhos zombadores enquanto os
convidados celebravam jubilosamente. O baile continuou, cada vez mais animado, e
Serenity se viu empurrada para a multidão por um Yves encantadoramente resolvido.
- Mas eu não sei como dançar esta dança - protestou ela, incapaz de impedir a
risada que lhe provocava a insistência de Yves.
- Eu te ensinarei - respondeu ele simplesmente, lhe agarrando ambas as mãos -
Christophe não é o único instrutor deste lugar. - Yves inclinou a cabeça ao perceber a
expressão de Serenity - Ahá! Já suspeitava disso. - A expressão dela se fez mais
eloqüente com a ambigüidade de suas palavras mas ele se limitou a sorrir, elevou uma
mão até posá-la sobre seus lábios e acrescentou - Agora daremos um passo para a
direita.
Apanhada em sua primeira lição de baile e então no prazer da música e dos
diferentes movimentos que aquela sugeria, Serenity sentiu que as tensões acumuladas
nos dias precedentes começavam a desvanecer-se. Yves era atento e encantador,
dançava com ela e logo desaparecia para retornar com taças cheias de champanha. Em
uma ocasião Serenity descobriu Christophe dançando com a graciosa e miúda Geneviéve
e uma nuvem de desassossego ameaçou seu radiante sol. Voltou-se rapidamente porque
não desejava ver-se novamente perdida em um poço de depressão.
- Vê, "chérie", já dança com absoluta naturalidade - disse Yves quando a música
cessou.
- Certamente são meus genes bretões os que foram a meu resgate.
- De modo - repreendeu ele com ar divertido - que não outorga nenhum mérito a seu
instrutor?
- É obvio que sim - Serenity sorriu e fez uma pequena reverência - Meu instrutor é
encantador e muito hábil.
- É verdade - concordou ele e seus olhos castanhos desmentiram a solenidade de
seu tom - E minha aluna é formosa e encantadora.
- É verdade - concordou ela por sua vez e, tornando-se a rir, enlaçou seu braço com
o do Yves. - Ah, Christophe - a risada de Serenity se congelou quando viu que Yves
olhava por cima de sua cabeça - usurpei seu papel como instrutor.
- Parece que ambos estão desfrutando com a mudança.
Para ouvir a gelada cortesia de sua voz, Serenity se voltou para ele cautelosamente.
Christophe tinha uma incrível semelhança com o conde aventureiro e contrabandista cujo
retrato estava pendurado em uma das paredes do castelo. Levava a camisa branca
descuidadamente aberta para revelar o forte estrutura de seu pescoço, e o colete sem
mangas constituía um assombroso contraste. As calças pretas estavam embutidas em
um par de botas de couro e Serenity chegou à conclusão de que seu aspecto era mais
perigoso que elegante.
- Uma aluna maravilhosa, "mon ami", e estou certo de que estará de acordo comigo.
- A mão de Yves descansava naturalmente sobre os ombros de Serenity enquanto sorria
ao rosto impassível de Christophe - Talvez goste de comprovar as bondades de minhas
lições.
- Certamente.
Christophe aceitou a sugestão com uma leve Inclinação de cabeça. Então, com um
gesto elegante e antiquado elevou uma mão com a palma para cima convidando que
Serenity apoiasse a sua.
Ela duvidou por um instante, temendo e desejando o contato com sua pele. Então,
advertindo um olhar desafiante em seus olhos escuros, apoiou a palma de sua mão com
graciosa elegância.
Serenity se moveu ao compasso da música seguindo com facilidade os passos da
antiga dança. Com os casais girando, inclinando-se e unindo-se brevemente, o baile
começou como uma confrontação, uma luta formalizada entre o homem e a mulher. Seus
olhares se encontraram: o de Christophe era confiante e descarado, o de Serenity
desafiante, e ambos se moveram descrevendo círculos alternados e roçando as Palmas
de suas mãos. Quando o braço de Christophe lhe enlaçou a cintura, Serenity jogou a
cabeça para trás para não desviar o olhar, ignorando o súbito estremecimento provocado
pelo roçar de suas coxas.
Os passos se fizeram mais rápidos com a música, a melodia se tornou mais
exigente, a antiga coreografia da dança se tornou mais sedutora e o contato dos corpos
se prolongava com o jogo galante. Serenity manteve o queixo elevado com expressão
insolente e seus olhos brilhavam desafiantes, mas sentiu que uma onda de calor subia
por seu corpo quando Christophe acentuou a pressão de seu braço em sua cintura,
atraindo-a a ele em cada novo giro. Aquilo, que tinha começado como um duelo, era
agora uma forma de total sedução e ela sentiu que a força silenciosa se apoderava de
sua vontade com mesma segurança que o teriam feito seus lábios. Sustentando-se
apenas em um precário controle de suas emoções, retrocedeu um passo procurando a
segurança que a distância podia proporcionar. O braço de Christophe voltou a apertá-la
contra seu corpo e, com absoluta impotência, seus olhos procuraram a boca que rondava
perigosamente sobre seus lábios ansiosos. Sua boca se abriu, como protesto e também
como convite, e a de Christophe desceu até que ela pôde saborear seu fôlego em sua
língua.
Quando a música cessou, o silêncio foi como um trovão e Serenity observou
assombrada Christophe quando ele afastava a promessa de sua boca com um sorriso
vitorioso.
- Terá que felicitar seu professor, Serenity - disse.
Suas mãos abandonaram sua cintura e, com um leve reverência, partiu deixando-a
sozinha.
Serenity se olhou no espelho de corpo inteiro sem ver a imagem que se refletia no
cristal. A mulher alta e magra vestida com um conjunto cor ametista, cuja saia de crepe
caía como uma brisa enfeitada, era incapaz de admirar a imagem que lhe devolvia a
superfície lustrosa do espelho. A mente de Serenity recordava os acontecimentos que se
desenvolveram aquela mesma tarde e suas emoções variavam do prazer, à irritação e do
desengano à pura diversão.
Uma vez que a condessa lhes deixou a sós, Serenity tinha levado Tony a conhecer
os arredores do castelo. Ele se tinha mostrado vagamente impressionado pelos formosos
jardins, admirando sua beleza superficial, já que sua mentalidade lógica e racional era
incapaz de ver além das rosas e os gerânios para entrar no romance que mantinham as
cores, texturas e aromas. Tony se sentiu gratamente surpreso quando divisou o ancião
jardineiro e ligeiramente inquieto ante a paisagem assustadora que podia admirar-se do
terraço. Ele preferia, segundo suas palavras, algumas casas ou, ao menos, um pouco de
tráfego. Serenity tinha balançado a cabeça pela sua evidente falta de sensibilidade mas,
de uma vez por todas, tinha compreendido o pouco que tinha em comum com o homem
com quem tinha compartilhado tantos meses.
Tony, entretanto, sentia-se completamente fascinado pela proprietária e senhora do
castelo. Nunca tinha conhecido a nenhuma mulher como a condessa, tinha afirmado com
grande respeito. Ela era incrível, acrescentou, e Serenity assentiu em silêncio, embora
talvez por razões muito diferentes. A condessa parecia pertencer a um trono do qual
concedesse suas indulgências, e além disso tinha sido muito amável, ao mostrar-se tão
interessada em tudo o que ele havia dito. "Oh, sim", tinha concordado Serenity em
silêncio, tentando sentir-se indignada e fracassando em seu intento. "Oh, sim, querido e
ingênuo Tony, ela se mostrou terrivelmente interessada." Mas qual era o propósito do
jogo que a condessa estava jogando?
Quando Tony foi instalado em seu aposento, estrategicamente escolhido, conforme
percebeu Serenity, no extremo mais afastado do corredor com respeito a seu próprio
quarto, ela foi em busca de sua avó com a desculpa de agradecer o convite a Tony.
A condessa, que estava sentada a uma elegante escrivaninha tipo Regência em
seus vastos aposentos, escrevendo cartas em folhas com seu anagrama, saudou-a com
um sorriso inocente que lhe conferia o aspecto do gato que acaba de comer um canário.
- Bem? - A condessa largou a pena e lhe indicou que se sentasse em um divã baixo
e decorado com brocado - Espero que seu amigo tenha gostado de seu quarto.
- "Oui", avó, estou muito agradecida de que tenha convidado a Tony a passar a noite
no castelo.
- Não tem por que, "chérie". - A magra mão tinha gesticulado vagamente - Deve
pensar neste castelo como se fosse seu lar.
- Obrigado, avó - disse Serenity modestamente, deixando que fosse a condessa
quem realizasse o seguinte movimento.
- Um jovem muito educado.
- Sim, madame.
- Além disso, muito atraente... - fez uma leve pausa - embora em um estilo ordinário.
- Sim, madame - assentiu Serenity devolvendo a bola ao campo contrário.
A bola foi recebida e enviada de volta imediatamente.
- Sempre preferi traços menos convencionais em um homem, mais força e vitalidade.
Talvez - acrescentou curvando os lábios - rasgos como os de um bucaneiro, se souber a
que me refiro.
- Ah, "oui", madame. - Serenity assentiu enquanto mantinha um olhar inocente - Sei
perfeitamente a que se refere.
- Bem. - A condessa moveu seus magros ombros - Algumas mulheres preferem
homens dominantes.
- Isso parece.
- Monsieur Rollins é um homem muito inteligente e refinado. E também muito lógico
e formal.
"E entediante." Serenity tinha acrescentado a este último comentário antes de falar
em voz alta.
- Ajuda as velhinhas a cruzar a rua duas vezes ao dia - disse.
- Ah, uma bênção para seus pais, estou segura disso - decidiu a condessa, sem
perceber a ironia que se desprendia das palavras de Serenity ou ignorando-a por
completo - Estou certa de que Christophe se sentirá encantado de lhe conhecer.
Uma débil sensação de intranqüilidade se instalou no cérebro de Serenity.
- Tenho certeza de que assim será.
- Certamente que sim. - A condessa sorriu - Christophe se sentirá muito interessado
em conhecer um amigo tão íntimo seu.
A ênfase que tinha dado à palavra “íntima” era inconfundível e a intranqüilidade de
Serenity aumentou, enquanto todos seus sentidos ficavam em estado de alerta.
- Não compreendo por que teria Christophe que se sentir tão interessado no Tony,
avó.
- Ah, "ma chérie", estou certa de que ele achará seu monsieur Rollins
verdadeiramente fascinante.
- Tony não é meu monsieur Rollins - corrigiu Serenity, ficando em pé e aproximando-
se da condessa - E não acredito que tenham absolutamente nada em comum.
- Não?
A condessa formulou a pergunta com uma inocência tão irritante que Serenity fez
um esforço para não rir.
- É uma intrigante avó. O que pretende?
Os olhos azuis da condessa brilharam com a inocência de uma menina.
- Serenity, "ma chérie", não tenho idéia do que está falando. - Quando ela abriu a
boca para lhe replicar, a condessa se afiançou uma vez mais em sua postura real - Devo
terminar minha correspondência. Verei-te a hora do aperitivo.
A sugestão tinha sido absolutamente clara e Serenity se viu obrigada a abandonar o
ambiente sentindo-se insatisfeita. A violência com que fechou a porta foi a única
concessão de seu mau humor.
Os pensamentos de Serenity voltaram para o presente. Lentamente, sua magra
figura vestida em cor ametista ficou perfeitamente enfocada no espelho. Passou a mão
pelos cachos loiros, com ar ausente, e apagou a expressão sombria que tinha no rosto.
"Jogaremos com muita tranqüilidade - disse a si mesma, enquanto colocava os brincos de
pérolas - Ou muito me equivoco ou a minha aristocrática avó gostaria de acender alguns
foguetes esta noite, mas as faíscas não chegarão até mim."
Bateu na porta do quarto de Tony. - Tony, sou eu, Serenity. Se já estiver preparado,
desceremos juntos ao salão. - Tony lhe gritou que entrasse e ela abriu a porta, vendo o
homem alto e de aparência agradável que lutava com as abotoaduras - Tem problemas?
- Muito engraçado. - Tony a olhou com severidade - Não posso fazer absolutamente
nada com a mão esquerda.
- Meu pai tampouco podia - disse Serenity, muito nostálgica - Mas estava
acostumado a amaldiçoar maravilhosamente. Era realmente assombrosa a quantidade de
adjetivos que empregava para qualificar a um simples par de abotoaduras. - aproximou-
se dele e agarrou seu pulso - Me deixe ajudá-lo . - Serenity começou a manipular a
pequena abotoadura. Não sei o que teria feito se eu não o acudisse - disse.
- Teria passado toda a noite com uma mão no bolso - respondeu ele brandamente -
Teria sido uma espécie de postura educada e muito européia.
- Oh, Tony! - Serenity elevou a vista com um amplo sorriso e os olhos brilhantes - Às
vezes é incrivelmente encantador.
Um ruído no corredor chamou a atenção de Serenity e voltou a cabeça quando
Christophe passou pela porta aberta e se deteve um instante para observar a cena da
moça sorridente que colocava as abotoaduras do homem, enquanto ambos mantinham
as cabeças muito juntas. Uma sobrancelha escura se elevou quase imperceptivelmente e,
com uma leve inclinação de cabeça, Christophe continuou seu caminho deixando
Serenity ruborizada e desconcertada.
- O que foi isso? - perguntou Tony com evidente curiosidade, e ela se inclinou para
ocultar o intenso rubor de suas bochechas.
- O conde de Kergallen - respondeu com estudada indiferença.
- Não será o marido de sua avó?
Sua voz estava cheia de incredulidade e a pergunta provocou uma sonora risada de
Serenity contribuindo a dissipar a tensão.
- Oh, Tony, é encantador! - Deu uns suaves tapinhas em seu pulso, onde a
abotoadura já tinha ficado firmemente presa, e lhe olhou com olhos faiscantes -
Christophe é o atual conde e é o neto de minha avó.
- Oh. - A expressão de Tony se tornou pensativa - Então ele é seu primo.
- Bom... - Serenity pronunciou lentamente as palavras - Não precisamente... -
Explicou a complicada história de sua família e a resultante relação entre ela e o conde
bretão - De modo que - concluiu, agarrando Tony pelo braço e abandonando o quarto de
uma maneira indireta nos poderia considerar primos.
- Primos consortes - observou Tony franzindo o cenho.
- Não seja parvo - protestou ela subitamente, perturbada pela lembrança de uns
lábios ardentes e exigentes sobre sua boca.
Se Tony se surpreendeu da veemente negativa e do rubor de suas bochechas, não
fez nenhum comentário.
Os dois entraram no salão de braços dados e Serenity sentiu que seu rubor se
intensificava devido ao olhar fugaz mas descarado de Christophe. Seu rosto permanecia
totalmente inexpressivo e Serenity desejou com repentino ardor poder ler os
pensamentos que havia detrás daquela fria máscara.
Serenity viu que o olhar se desviava para o homem que estava a seu lado mas seus
olhos permaneceram inescrutáveis.
- Ah, Serenity, monsieur Rollins! - A condessa estava sentada na elegante poltrona
que havia junto à enorme lareira e era a viva imagem de um monarca recebendo seus
súditos. Serenity se perguntou se a eleição daquela poltrona tinha sido deliberada ou
acidental - Christophe, me permita apresentar monsieur Anthony Rollins, dos Estados
Unidos, o convidado de Serenity.
Serenity percebeu que a condessa tinha catalogado Tony como sua propriedade
pessoal. - Monsieur Rollins - continuou a anciã sem alterar seu ritmo - me permita lhe
apresentar seu anfitrião, o conde de Kergallen.
O título foi sublinhado com delicadeza, estabelecendo claramente a posição de
Christophe como senhor do castelo. Serenity olhou a sua avó com olhos perspicazes.
Os dois homens trocaram algumas formalidades e Serenity pôde observar a velha
rotina de medir-se, própria dos homens, como se fossem dois mastins estudando ao
adversário antes de entrar em combate.
Christophe serviu um aperitivo a sua avó e então perguntou a Serenity o que
desejava beber, antes de dirigir-se a Tony. Ele pediu um vermute, a mesma bebida que
Serenity tinha eleito, e ela sorriu levemente, conhecendo a predileção de Tony pelos
martínis secos com vodca ou os ocasionais conhaques.
A conversação fluiu agradavelmente e a condessa inseriu numerosos dados
pessoais que Tony se encarregou de lhe ministrar àquela tarde.
- É verdadeiramente tranqüilizador saber que Serenity se encontra em tão boas
mãos em Washington - disse a condessa com um gracioso sorriso, e continuou,
ignorando deliberadamente o olhar de Serenity - Faz muito tempo que são amigos, não é?
A leve acentuação, apenas perceptível, da palavra "amigos" fez que Serenity
franzisse o cenho.
- Sim - assentiu Tony dando uns tapinhas afetuosos na mão de Serenity - Nos
conhecemos faz um ano em uma festa. Lembra-se, querida?
Tony se voltou com um amplo sorriso e Serenity trocou rapidamente a expressão
severa de seu rosto.
- Naturalmente. Foi na festa que os Carson deram.
- E agora viajou de tão longe só para lhe fazer uma breve visita. - A condessa sorriu
com carinhosa indulgência - Foi um belo gesto de sua parte, não é mesmo, Christophe?
- Muito atencioso - disse ele.
Inclinando ligeiramente a cabeça, Christophe elevou sua taça e bebeu lentamente.
"É uma intrigante incorrigível - pensou Serenity - Sabe bem que Tony veio em
viagem de negócios. O que é que pretende?"
- É uma verdadeira lástima que não possa ficar mais tempo entre nós, monsieur
Rollins. É muito agradável que Serenity possa desfrutar da companhia de seus amigos
americanos. Você monta a cavalo?
- Montar a cavalo? - repetiu, Tony surpreso - Não, temo que não.
- É uma pena. Christophe esteve dando lições de equitação a Serenity. Como
progride sua aluna, Christophe?
- Muito bem, avó - respondeu Christophe, olhando Serenity - Tem uma habilidade
natural e agora que já perdeu o temor inicial - um sorriso fugaz iluminou o rosto de
Christophe e ela se ruborizou ao recordar aqueles momentos - estamos fazendo muitos
progressos, não é, pequena?
- Sim - assentiu ela, surpreendida por sua carinhosa atitude depois de vários dias de
fria cortesia - Me alegra que tenha me convencido a que aprendesse a montar.
- Foi um verdadeiro prazer.
O enigmático sorriso de Christophe não fez mais que aumentar a confusão de
Serenity.
- Talvez você possa ensinar monsieur Rollins a montar quando tiver oportunidade. -
A condessa incitou sua atenção e os olhos ambarinos se entrecerraram ao perceber a
falsa inocência de sua voz.
"Como é intrometida! - estalou Serenity internamente - Está incitando Christophe e
Tony, e eu estou no meio como se fosse um osso apetitoso." A irritação se converteu em
um sorriso divertido quando os olhos claros da condessa se posaram nos dela e um
diabo travesso dançou dentro deles.
- Talvez, avó, embora duvide de que seja capaz de dar o salto de aluna a instrutora.
Foram somente duas lições e isso, evidentemente, não me converte em uma perita.
- Mas haverá mais lições, não é? - Ignorando a réplica de Serenity, a condessa ficou
em pé com um fluido movimento - Monsieur, faria-me a honra de me acompanhar à sala
de jantar?
Tony sorriu, gratamente adulado, e ofereceu o braço à condessa, embora quem
acompanhava o outro fosse dolorosamente óbvio para Serenity.
- Bem, "chérie". - Christophe se aproximou dela e estendeu uma mão para ajudá-la a
levantar da poltrona - Parece que terá que me aceitar como substituto.
- Acredito que poderei suportá-lo - replicou ela, ignorando os furiosos batimentos de
seu coração quando sua mão agarrou a dele.
- Seu amigo deve ser um homem muito lento - começou a dizer Christophe
retoricamente, retendo a mão de Serenity e erguendo-se frente a ela com atitude
indiferente - Faz um ano que te conhece e ainda não é seu amante.
O rosto de Serenity se voltou de cor púrpura e lhe olhou com fúria, sentindo-se ferida
em sua dignidade.
- Realmente, Christophe, surpreende-me! Essa foi uma observação incrivelmente
grosseira.
- Mas verdadeira - disse ele imperturbável.
- Nem todos os homens pensam exclusivamente em sexo. Tony é uma pessoa
carinhosa e atenciosa, e não um ser arrogante como outros que conheço.
Christophe sorriu com exasperante segurança em si mesmo.
- Acaso seu Tony faz com que seu pulso se acelere deste modo? - O polegar de
Christophe acariciou seu pulso - Ou que seu coração se estremeça como faz agora?
Sua mão cobriu o coração que galopava freneticamente como se fosse um cavalo
selvagem e seus lábios roçaram sua boca com um beijo suave e prolongado, um beijo tão
diferente dos outros que Christophe lhe havia dado que Serenity permaneceu imóvel,
apanhada por sensações que a deixaram totalmente aturdida.
Os lábios de Christophe percorreram seu rosto, atrasando-se nos detalhes da boca
e retendo a promessa do prazer com a experiência do avantajado sedutor. Seus dentes
mordiscaram brandamente o lóbulo da orelha. Serenity lançou um estremecido suspiro
quando a pequena dor enviou inapreciáveis e agradáveis correntes ao longo de sua pele,
narcotizando-a com um delicioso e lento prazer. Com incrível suavidade os dedos de
Christophe se deslizaram por sua coluna vertebral e logo continuaram seu caminho com
devastadora excitação sobre a nua pele de suas costas até que Serenity sucumbiu
ofegante entre os braços de Christophe enquanto sua boca procurava com paixão a
satisfação de seu desejo. Só lhe fez provar brevemente o sal de seus lábios antes de
deslizá-los para a rosada garganta, enquanto as mãos viajavam por cada curva do corpo
de Serenity. Os dedos roçaram simplesmente os túrgidos seios antes de iniciar uma
suave massagem em seus quadris.
Murmurando seu nome, Serenity se esmagou contra o corpo de Christophe, incapaz
de exigir aquilo que ela implorava, desejando febrilmente a boca que lhe negava.
Desejando só ser possuída, necessitando o que só ele podia lhe dar, seus braços o
atraíram para ela em uma silenciosa súplica.
- Me diga - sussurrou Christophe e, através de uma bruma de lassidão, Serenity
percebeu uma ligeira brincadeira em sua voz - Acaso Tony a ouviu suspirar entre seus
braços e sussurrar seu nome? Ou sentiu seus ossos derretidos contra seu peito enquanto
a abraçava?
Serenity, total e absolutamente aturdida, desfez-se de seu abraço enquanto podia
sentir como a ira e a humilhação se mesclavam com o desejo.
- Está muito seguro de si mesmo, Christophe - disse - Não interessa o que eu possa
sentir quando estou com o Tony.
- Acha que não? - perguntou Christophe com voz amável - Devemos discutir esse
tema mais tarde, minha querida prima. Agora acredito que será melhor que nos reunamos
com a avó e nosso convidado. - Sorriu-lhe maliciosamente e Serenity sentiu grandes
desejos de lhe assassinar - Devem estar perguntando-se onde diabos estamos.
Era evidente que nenhum dos dois tinha se preocupado por onde eles estivessem,
percebeu Serenity quando entrou na sala agarrada ao braço de Christophe. A condessa
tinha engenhado maravilhosamente para entreter Tony falando sobre a fascinante
coleção de caixas Fabergé que se exibiam em uma ampla vitrine.
O jantar começou com "vichyssoise", um prato frio e refrescante, e a conversação se
desenvolveu em inglês como deferência para Tony. Os temas eram gerais e impessoais e
Serenity se sentiu relaxada, ordenando a seus músculos que se desenredassem, quando
terminaram a sopa e procederam a servir o "homard grillé". A lagosta era deliciosa e ela
pensou ociosamente que, se a cozinheira era efetivamente um dragão como tinha
brincado Christophe no primeiro dia, não havia dúvida de que era um dragão muito
habilidoso.
- Imagino que a mudança do castelo até sua casa em Georgetown não deva ter sido
muito complicada para sua mãe, Serenity - disse Tony de repente e Serenity lhe olhou
confusa.
- Acredito que não entendo muito bem a que se refere.
- Existem tantas similaridades básicas - observou ele e, ao perceber a expressão
sobressaltada de Serenity, acrescentou - Naturalmente, no castelo tudo está construído a
uma escala maior, mas repara nos altos tetos, nas lareiras em cada aposento, no estilo
dos móveis. Mas até o corrimão das escadas é igual. Não é possível que não tenha se
dado conta?
- Pois, sim, suponho que sim - respondeu Serenity lentamente - embora não com a
claridade com que o vejo agora.
Talvez, refletiu, seu pai tinha eleito precisamente aquela casa em Georgetown
porque ele também tinha notado essas similaridades e sua mãe tinha escolhido os
móveis seguindo os padrões de sua memória, cujas lembranças a remontavam à infância
transcorrida no castelo. Esse pensamento lhe produziu uma cálida sensação.
- Sim, inclusive os corrimões das escadas - continuou dizendo com um brilhante
sorriso - Eu costumava deslizar por eles continuamente, do estúdio que estava no terceiro
andar até o primeiro piso e então continuava por esse improvisado tobogã até o térreo. -
O sorriso se converteu em uma sonora gargalhada - Mamãe costumava me dizer que
outra parte de minha anatomia devia ser tão dura como minha cabeça para suportar esse
castigo.
- Ela também costumava me dizer o mesmo - disse Christophe subitamente e o
surpreendido olhar de Serenity se voltou para ele - É claro, pequena. -Christophe
respondeu a seu olhar sobressaltado com um de seus incomuns sorrisos - Que sentido
tem caminhar se a gente pode deslizar?
A imagem de um menino moreno voando para baixo pelo estreito sulco do corrimão
e de sua mãe, Gaelle, jovem e formosa, lhe observando sorridente, encheu sua mente.
Seu olhar de assombro se converteu gradualmente em um sorriso que imitava o de
Christophe.
Serenity deu conta do estupendo "soufflé", ligeiro como uma nuvem,
acompanhando-o com uns sorvos de champanha seco e borbulhante. Descobriu que
desfrutava autenticamente do jantar e deixou que a conversação fluísse calidamente a
seu redor.
Quando o jantar terminou, dirigiram-se ao salão principal e Serenity recusou o
oferecimento de uma taça de conhaque ou licor. A sensação de plenitude persistia nela e
suspeitou que ao menos parte dessa sensação, tinha decidido não pensar na outra parte
e na apaixonada cena que tinha compartilhado com Christophe antes do jantar, devia
atribui-la ao vinho que tinha bebido. Nenhum dos presentes pareceu notar seu estado
pensativo, suas bochechas rosadas e suas respostas quase mecânicas. Seus sentidos
estavam insuportavelmente atentos enquanto ouvia a música das vozes, o tom grave dos
homens mesclando-se com os tons cristalinos da voz de sua avó. Inalou com prazer
sensual a fumaça que se desprendia do cigarro de Christophe e aspirou profundamente a
combinação de seu perfume e o da condessa com o aroma sutil das rosas que enchiam
cada vaso do salão. Um agradável equilíbrio, refletiu, a artista respondendo e desfrutando
da harmonia e da fluida continuidade da cena que se desenvolvia diante de seus olhos.
As luzes suaves, a tênue brisa que agitava apenas as cortinas, o apagado som das taças
ao serem depositadas sobre a mesa... tudo se fixava em um tecido impressionista que
seu olho registrava e armazenava em sua mente.
A augusta condessa, magnífica em seu trono de brocado, presidia a reunião
bebendo nata de hortelã em uma delicada taça com borda de ouro. Tony e Christophe
estavam sentados frente a frente, como a noite e o dia ou anjo e demônio. Esta última
comparação sobressaltou Serenity. "Anjo e demônio?", repetiu em silêncio enquanto
estudava aos dois homens.
Tony, o doce, confiável e previsível Tony, que aplicava a mais tenra das pressões.
Tony, o da infinita paciência e dos planos cuidadosamente raciocinados. O que sentia por
ele? Afeto, lealdade, gratidão por estar aí quando ela necessitava dele. Um amor
aprazível e confortável.
Seus olhos se moveram para Christophe. Arrogante, autoritário, exasperante e
excitante. Um homem que exigia aquilo que desejava e acabava por tomá-lo, utilizando
seu súbito e inesperado sorriso para lhe roubar o coração como um ladrão noturno.
Christophe era taciturno, enquanto Tony era constante, um era imperioso enquanto que o
outro era persuasivo. Mas se os beijos de Tony tinham sido prazerosos e incitantes, os do
Christophe eram grosseiramente perturbadores e convertiam seu sangue em um rio de
fogo e a transportavam a um mundo desconhecido de sensações e desejos. E o amor
que sentia por ele não era aprazível nem confortável, era impetuoso e inevitável.
- É uma verdadeira lástima que não toque piano, Serenity.
A voz da condessa a fez retornar à realidade com um súbito estremecimento.
- Oh, mas Serenity toca piano, madame! - informou Tony com um amplo sorriso -
Horrivelmente mal, mas o toca.
- Traidor! - exclamou Serenity com um encantador sorriso.
- Não toca bem o piano? - a condessa se mostrava absolutamente incrédula.
- Lamento trazer a desgraça novamente à família, avó - se desculpou Serenity - Mas
não só não toco bem, sinto que o faço completamente mal. Inclusive ofendo a
sensibilidade de Tony, que é virtualmente surdo em questões musicais.
- Querida, ofenderia um cadáver com sua forma de tocar.
Tony afastou um cacho rebelde do rosto de Serenity, com um gesto casual e
carinhoso.
- É verdade. - Lhe sorriu antes de olhar a sua avó - Pobre avó, não faça essa cara
tão triste.
O sorriso de Serenity se desvaneceu quando seus olhos perceberam o frio olhar de
Christophe.
- Gaelle, por sua vez, tocava maravilhosamente - disse a condessa agitando uma
mão.
Serenity voltou a atrair a atenção da condessa, tratando de sacudir o calafrio que lhe
tinham produzido os olhos de Christophe. - Ela nunca pôde entender por que eu
assassinava a música mas, inclusive com sua infinita paciência, finalmente se deu por
vencida e me deixou com meus tecidos e minhas pinturas.
- "Extraordinaire"! - A condessa meneou a cabeça e Serenity se encolheu de ombros
e bebeu lentamente seu café - Já que você não pode tocar para nós, "ma petite" - disse a
anciã com uma repentina mudança de humor - talvez agrade monsieur Rollins dar um
passeio pelo jardim. - Sorriu perversamente - Serenity desfruta muitíssimo do jardim à luz
da lua, não é mesmo?
- Isso soa muito tentador - concordou Tony antes que Serenity pudesse responder.
Enviando a sua avó um olhar carregado de significado, Serenity convidou a que Tony a
acompanhasse ao jardim.
Capítulo 9
Pela segunda vez Serenity dirigiu seus passos para o jardim banhado pela luz da lua
e acompanhada por um homem alto e atraente e, pela segunda vez, desejou
fervorosamente que fosse Christophe quem estivesse a seu lado. Caminharam em
silêncio, desfrutando do ar fresco da noite e do prazer das mãos entrelaçadas.
- Está apaixonada por ele, não é?
A pergunta de Tony quebrou o silêncio como uma pedra lançada contra um cristal.
Serenity se deteve e lhe olhou com olhos assombrados.
- Serenity. - Tony suspirou e acariciou a bochecha da mulher com um dedo - Posso
ler em você como em um livro. Está fazendo todo o possível para ocultá-lo, mas está
louca por ele.
- Tony, eu... - balbuciou, sentindo-se culpada e muito miserável - Nunca foi minha
intenção me apaixonar por ele. Na realidade, nem sequer gosto do jeito dele.
- Caramba! - Tony deu uma risada breve e falsa - Eu gostaria que não gostasse de
mim desse modo. Mas - acrescentou, lhe elevando o queixo - isso nunca ocorreu.
- Oh, Tony...
- Sempre foi sincera comigo, querida - disse ele - Não tem por que se sentir culpada
de nada. Eu pensei que com uma perseguição permanente e discreta podia acabar com
sua resistência. Tony deslizou seu braço por cima dos ombros de Serenity enquanto
continuavam o passeio pelo jardim na penumbra - Tem que saber, Serenity, que é muito
enganosa. Parece uma flor delicada e frágil, tão frágil que um homem teme toca-la por
medo de que possa se romper, mas na verdade é incrivelmente forte. Nunca cambaleia,
querida. Esperei um longo ano para conquista-la, mas você nunca dá um passo em falso.
- Se meu comportamento e o mau humor que me caracteriza tivessem exasperado
você, Tony. - Lançando um suspiro, Serenity se reclinou contra seu ombro - Eu nunca
poderia ser o que você necessita e se tratasse de mudar não adiantaria. Terminaríamos
nos odiando um ao outro.
- Sei. Sempre o soube, mas não queria admiti-lo. Quando partiu para a Bretanha, eu
sabia que tudo tinha terminado entre nós. Por isso vim vê-la; tinha que vê-la uma vez
mais.
As palavras de Tony pareciam tão definitivas que Serenity elevou rapidamente a
vista e o olhou com surpresa.
- Mas voltaremos a ver-nos, Tony; ainda somos amigos. Eu retornarei logo a
Washington.
Tony voltou a deter-se e a olhou enquanto o silêncio crescia entre ambos.
- Tem certeza, Serenity?
Uma vez que pronunciou estas palavras, Tony lhe fez dar meia volta e os dois
empreenderam a volta ao iluminado castelo.
Na manhã seguinte, os raios de sol esquentavam os ombros nus de Serenity
enquanto ela se despedia de Tony. Ele já tinha saudado a condessa e Christophe, e
Serenity o tinha acompanhado da fresca atmosfera do vestíbulo principal até o calor que
desprendiam os ladrilhos do pátio. O pequeno Renault cor vermelha lhe esperava com a
bagagem já no porta-malas. Tony deu uma olhada antes de voltar-se para ela e lhe
agarrar as mãos.
- Que seja feliz, Serenity - disse, apertando por um momento as mãos dela e logo as
soltando - Pensa em mim alguma vez.
- É obvio que pensarei em você, Tony. Escreverei e o contarei a data de minha volta.
Tony lhe sorriu e seus olhos se atrasaram no limpo rosto de Serenity, como se quisesse
fixar em sua memória cada detalhe.
- Pensarei em ti exatamente como está hoje, com um vestido amarelo, o sol no
cabelo e um castelo a suas costas... a beleza eterna de Serenity Smith, a moça dos olhos
dourados.
A boca de Tony desceu ao seu rosto e Serenity sentiu uma súbita quebra de onda
de emoção e a estranha premonição de que nunca mais voltaria a vê-lo. abraçou-se ao
Tony, atendo-se a seu pescoço e ao passado. Os lábios dele beijaram seu cabelo antes
de separar-se dela.
- Adeus, querida.
Tony sorriu e lhe deu uns tapinhas na bochecha.
- Adeus, Tony. Se cuide.
Devolveu-lhe o sorriso, reprimindo decididamente as lágrimas que lhe queimavam os
olhos.
Serenity observou-o enquanto se afastava em direção ao carro, subia nele e, com
uma saudação com a mão, perdia-se no sinuoso caminho. O carro se converteu em um
ponto vermelho à distância e então, paulatinamente, foi perdendo-se de vista. Serenity
permaneceu imóvel, sentindo que as lágrimas banhavam suas bochechas uma vez
liberadas da prisão de seus olhos. Um braço a enlaçou pela cintura e, ao voltar-se,
encontrou a sua avó com uma expressão tenra e pormenorizada em seu rosto anguloso.
- Está triste porque ele partiu, “ma petite”?
O braço da condessa era confortável e Serenity reclinou a cabeça sobre o frágil
ombro de sua avó.
- “Oui”, avó, muito triste.
- Mas não está apaixonada por ele.
Era uma afirmação mais que uma pergunta, e ela lançou um fundo suspiro.
- Era uma pessoa muito especial para mim. – enxugou uma lágrima que permanecia
em sua bochecha e soluçou como uma menina - Farei muito de menos. Agora irei a meu
quarto e porei-me a chorar como é devido.
- “Oui”, acredito que é uma sábia decisão. - A condessa lhe espalmou o ombro - Um
bom pranto é o melhor para esclarecer a mente e limpar o coração. - Serenity a abraçou
estreitamente - Vamos, pequena, vai a seu aposento e derrama todas suas lágrimas.
Serenity subiu velozmente os degraus de pedra e entrou no fresco vestíbulo do
castelo. Correu para a escada principal e se chocou contra algo duro. Umas mãos a
aprisionaram pelos ombros.
- Deve olhar por onde vai, “ma chérie” - a voz zombadora de Christophe ressonou
em seus ouvidos - Se chocará contra as paredes e poderia arruinar seu formoso nariz.
Tratou de escapar mas uma mão poderosa lhe impediu todo movimento enquanto a
outra lhe jogava a cabeça para trás pressionando seu queixo. Ao descobrir os olhos
avermelhados de Serenity, a expressão zombadora do Christophe se converteu em
surpresa, então em preocupação e, por último, em uma desacostumada impotência. -
Serenity?
Seu nome era em realidade uma pergunta e tinha empregado o tom de voz mais
carinhoso que já tinha ouvido dele. A ternura que se advertia em seus olhos escuros
terminou por destruir a delicada compostura que Serenity se esforçava por manter.
- Oh, por favor - exclamou com um soluço desesperado - Me deixe!
Debateu-se para liberar-se de seus braços enquanto lutava desesperadamente para
não desmoronar de todo e desejando, não obstante, que ele a estreitasse contra seu
peito.
- Posso fazer algo por ti?
Christophe a reteve colocando uma mão sobre seu braço.
"Sim, sou idiota!, - gritou seu cérebro - Me ame!" - Não - disse em voz alta, correndo
para cima das escadas - Não, não, não!
Subiu os degraus como se fosse uma lebre dourada perseguida pelos caçadores.
Quando chegou a seu quarto, abriu a porta com violência, fechou-a e se jogou sobre a
enorme cama, sepultando o rosto entre as duas mãos.
Serenity deixou de ler, pôs a carta do advogado de lado e agarrou a mensagem que
seu pai lhe tinha deixado em custódia. Olhou o envelope que tinha ficado virado na cama
e, lhe dando a volta, seus olhos se nublaram ao reconhecer a caligrafia familiar. Abriu
muito rapidamente o mesmo.
A carta estava escrita com a letra clara e pessoal de seu pai:
Minha querida Serenity:
Quando leres está carta, sua mãe e eu não estaremos já contigo e rogo para que
sua dor não seja muito profunda, porque o amor que nós sentimos por ti permanece vivo
e intenso como a vida mesma.
No momento em que escrevo estas linhas tem dez anos e já é a viva imagem de sua
mãe, é tão adorável que estou pensando inclusive nos meninos que terei que se separar
de seu lado dentro de poucos anos. Esta manhã estive observando-a enquanto estava
agradavelmente sentada, uma ocupação incomum em ti, já que estou acostumado a vê-la
quando patina ou deslizando à velocidade vertiginosa pelos corrimões das escadas, sem
pensar nos riscos.
Estava sentada no jardim com meu caderno de esboços e meus lápis, desenhando
muito concentrada as azaléias. A vi nesse instante e compreendi, com orgulho e também
com desespero, que estava crescendo e que, não seria sempre minha pequena menina,
a salvo na segurança que sua mãe e eu lhe tínhamos dado. Soube então que era
necessário que escrevesse alguns fatos que talvez algum dia tivesse necessidade de
entender. Darei instruções ao velho Barkley (um sorriso apareceu nos lábios de Serenity
ao notar que conhecia o advogado por esse nome fazia já muitos anos) para que
conserve está carta para você até o dia em que sua avó, ou algum membro da família de
sua mãe, entre em contato com você. Se isso não ocorrer, não haveria necessidade
alguma de revelar o segredo que sua mãe e eu mantivemos durante mais de uma década.
Eu me encontrava pintando nas calçadas de Paris, desfrutando do esplendor da
primavera, apaixonado pela cidade e sem mais amante que minha arte. Naquela época,
eu era muito jovem e, temo, muito impulsivo. Foi então que conheci um homem, Jean-
Paul le Goff, que se sentiu vivamente impressionado, segundo suas palavras, por meu
jovem e acanhado talento. Encarregou-me que pintasse o retrato de sua noiva para dar
de presente no dia de suas bodas e fez todos os acertos para que eu me mudasse para a
Bretanha e me alojasse no castelo de Kergallen. Minha vida começou no momento em
que entrei no enorme vestíbulo e vi pela primeira vez a sua mãe.
Não era minha intenção seguir os desmandos de meu coração do instante em que a
vi, um delicado anjo com o cabelo da cor do sol. Tratei com todas minhas forças de
antepor minha arte a meus sentimentos. Eu estava ali para pintar seu retrato, ela
pertencia ao castelo e ao homem que me tinha contratado. Era um anjo, uma aristocrata
que pertencia a uma família cuja linhagem se remontava do início dos tempos. Todas
estas coisas me repeti centenas de vezes. Jonathan Smith, um artista itinerante, não
tinha direito de possuí-la nem em seus sonhos; devia deixar em paz a realidade. Houve
momentos, enquanto efetuava os esboços preliminares, em que acreditava que morreria
de amor por ela. Dizia-me mesmo que devia partir, mas não encontrei a coragem para
fazê-lo. Agora agradeço a Deus não tê-lo feito.
Uma noite, enquanto dava um passeio pelo jardim, encontrei-me com ela. Pensei em
me afastar para não incomodá-la, mas ela me escutou e, quando se voltou, descobri em
seus olhos aquilo com que não me tinha atrevido a sonhar. Ela me amava. Poderia ter
gritado de felicidade mas existiam inumeráveis obstáculos. Ela estava comprometida a
casar-se com outro homem e, além disso, a honra de ambas as famílias amparava esse
vínculo. Nós não tínhamos direito a nosso amor. Mas alguém precisa ter direito para amar,
Serenity? Alguns nos condenaram. Rogo que você não o faça. Depois de muitas palavras
e muitas mais lágrimas, decidimos desafiar aquilo que alguns poderiam chamar o direito e
a honra, e nos casamos. Gaelle me implorou que mantivesse as bodas em segredo até
que encontrasse a melhor maneira de dizer a Jean-Paul e a sua mãe. Eu desejava que o
mundo soubesse, mas acatei a seus rogos. Ela tinha renunciado a tanto por mim, que eu
não podia lhe negar absolutamente nada.
Durante este tempo de espera, produziu-se um problema ainda mais sério. A
condessa, sua avó, tinha entre suas posses uma Madonna feita por Rafael, que exibia
com orgulho no salão principal do castelo. Tratava-se de uma pintura, conforme me
explicou a condessa, que tinha estado em sua família durante gerações. Depois de
Gaelle, ela amava esta pintura mais que qualquer outra coisa no mundo. Para ela,
parecia simbolizar a continuidade de sua família, um farol brilhante que ainda projetava
sua luz depois do inferno da guerra. Eu tinha examinado atentamente essa pintura e
suspeitava que se tratava de uma falsificação. Mas não disse nada, pensando a princípio
que talvez a condessa tivesse feito pintar uma cópia. Os alemães lhe tinham arrebatado
tantas coisas - lar, marido, etc. - que também levaram possivelmente o Rafael original.
Quando anunciou que tinha decidido doar a pintura ao Louvre com objetivo de
compartilhar sua grandeza, o medo esteve a ponto de me deixar paralisado. Eu me tinha
afeiçoado àquela mulher, por seu orgulho e determinação, sua graça e sua dignidade.
Não desejava que a ferissem e compreendi que ela estava convencida de que a pintura
era autêntica. Eu sabia que a Gaelle atormentaria o escândalo se recusassem a pintura
por ser uma fraude e a condessa não se recomporia jamais de semelhante golpe. Não
podia permitir que tal coisa ocorresse. Ofereci-me a limpar a pintura a fim de poder
estudá-la a fundo e me senti como um traidor.
Levei a Madonna a meu estúdio na torre e, depois, de um detido estudo, não tive
nenhuma dúvida de que se tratava de uma excelente cópia. Não obstante, eu não teria
sabido o que fazer se não fosse pela carta que encontrei oculta atrás do bastidor. A carta
era uma confissão do primeiro marido da condessa, um grito desesperado pela traição
que tinha cometido. Confessava ter perdido quase todas suas posses e também as de
sua esposa. Estava afogado pelas dívidas e, depois de decidir que os alemães
derrotariam aos aliados, deu todos os passos necessários para lhes vender a pintura.
Encarregou que pintassem uma cópia e substituiu o original sem o conhecimento de sua
esposa, convencido de que o dinheiro que receberia pela venda da Madonna lhe faria
imune às conseqüências da guerra, e de que o trato com os alemães manteria sua
propriedade a salvo. Quando já era muito tarde, compreendeu a insensatez de sua ação
e, ocultando a confissão no bastidor do quadro falso, saiu ao encontro dos homens com
quem tinha combinado para lhes devolver o dinheiro. A carta terminava no parágrafo em
que falava desta decisão e rogava que perdoassem seu proceder em caso de não ter
êxito em sua empresa.
Quando terminei de ler a carta, Gaelle entrou no estúdio. Eu não tinha tido a
precaução de fechar a porta com a chave. Foi impossível ocultar minha reação e a carta
que ainda conservava na mão, e portanto me vi obrigado a compartilhar essa carga com
a única pessoa a quem eu teria economizado qualquer desgosto. Naquele momento, e
naquela torre isolada, descobri que a mulher que eu amava possuía mais força que
muitos homens. Ela decidiu que sua mãe jamais devia inteirar-se da existência dessa
carta. Disse que era imperativo que a condessa fosse protegida da humilhação e que
nunca devia inteirar-se de que essa pintura que ela amava tanto não era mais que uma
falsificação. Elaboramos um plano para ocultar a pintura e fazer todo mundo acreditar que
tinha sido roubada. Talvez cometemos um engano. Ainda hoje não sei se atuamos
corretamente. Mas para sua mãe não havia outra saída. E, em conseqüência, levamos a
cabo nosso plano.
Os projetos de Gaelle de informar a sua mãe sobre nossas bodas foram feitos
realidade muito em breve. Gaelle descobriu, para nossa enorme felicidade, que levava
um filho no ventre, você, o fruto de nosso amor e que cresceria até converter-se no
tesouro mais prezado de nossas vidas. Quando contou a sua mãe que nos tínhamos
casado em segredo e que estava grávida, a condessa ficou furiosa. Tinha direito de
sentir-se assim, Serenity, e a animosidade que sentia por mim ficou plenamente
justificada a seus olhos. Tinha-lhe arrebatado a sua filha sem sua autorização e, ao fazê-
lo, tinha manchado a honra de sua família. Presa de ira, repudiou Gaelle, e nos ordenou
que abandonássemos o castelo e não voltássemos a pôr nossos pés nele. Eu pensei que,
transcorrido certo tempo, ela revogaria sua decisão, já que amava Gaelle mais que a sua
vida. Mas esse mesmo dia descobriu que o Rafael tinha desaparecido. Somando dois
mais dois, acusou-me de lhe haver roubado, não só a sua filha mas também seu tesouro
familiar. Como podia negá-lo? Um delito não era pior que o outro e a mensagem nos
olhos de sua mãe me implorava que mantivesse silêncio. De modo que levei a sua mãe
do castelo, afastando-a de seu país, de sua família e de sua herança, e a levei comigo
aos Estados Unidos.
Decidimos não falar de sua mãe, porque isso só nos produzia uma grande dor, e
construímos nossa vida tendo a você para que fortalecesse ainda mais nosso vínculo. E
agora já tem a história e com ela, me perdoe, a responsabilidade. Talvez no momento em
que ler esta carta seja possível contar toda a verdade. Se não for assim, deixa que
permaneça oculta, do mesmo modo que foi a falsa Madonna de Rafael, separada do
mundo e oculta em algo imensamente mais precioso. Faz o que lhe disser o coração.
Seu pai que a ama.
As lágrimas de Serenity tinham caído sobre o papel desde a primeira linha e agora,
quando acabou de ler a carta, secou o rosto e lançou um profundo suspiro. Abandonou a
cama e caminhou para a janela. Olhou longamente o jardim onde seus pais confessaram
pela primeira vez seu amor.
-O que devo fazer? - perguntou-se em voz alta, com a carta ainda na mão.
"Se tivesse lido esta carta faz um mês, teria ido diretamente falar com a condessa,
mas agora não sei o que fazer", repetiu-se em silêncio.
Para deixar limpo o nome de seu pai teria que revelar um segredo que tinha
permanecido oculto durante vinte e cinco anos. Obteria algo revelando o conteúdo da
carta, ou só faria vãos os sacrifícios de seus pais? Seu pai lhe dizia na carta que devia
fazer aquilo que lhe ditasse o coração, mas este estava tão cheio de amor e de angústia
depois de ter lido a mensagem de seu pai, que ela era incapaz de escutar o que pudesse
lhe dizer, e em sua mente se formaram grandes nuvens de confusão. Serenity sentiu o
súbito impulso de consultar Christophe, mas o desprezou rapidamente. O fato de confiar
nele a tornaria ainda mais vulnerável, e a separação que logo ocorreria entre eles seria
mais angustiosa.
Devia pensar, decidiu, suspirando várias vezes. Devia afastar a névoa de sua mente
e pensar clara e cuidadosamente, e quando achasse uma resposta tinha que se
assegurar de que fosse a correta.
Caminhando de um lado a outro de seu quarto, deteve-se de repente e começou a
trocar de roupa a toda pressa. Recordou a sensação de liberdade que tinha
experimentado enquanto caminhava pelo bosque e era precisamente esta sensação,
decidiu enquanto colocava os jeans e uma camisa, de que ela necessitava para
tranqüilizar seu coração e esclarecer suas idéias.
Capítulo 10
- Para me proteger do fato de que meu marido tinha sido um ladrão e da humilhação
de um escândalo público, seu pai permitiu que lhe acusassem de roubo e minha filha
renunciou a sua família. - A condessa se deixou cair novamente em sua elegante poltrona
- Através das palavras de seu pai percebo claramente o amor. Diga-me, Serenity, minha
filha foi feliz?
- Pode ver seus olhos quando meu pai a estava pintando. - Serenity assinalou o
retrato - Sempre teve esse olhar.
- Como posso me perdoar pelo que fiz?
- Oh, não, avó. - Serenity ficou de pé e foi ajoelhar-se frente à condessa, agarrando
suas mãos e as beijando - Não entreguei essa carta para acrescentar dor a seu espírito,
mas para tirá-la. Leu a carta e sabe que eles não a culpam de nada. Ao contrário, eles
decidiram voluntariamente que acreditasse que lhe tinham traído. Talvez cometeram um
engano, mas parece, e já não se pode voltar atrás. - Apertou com força as magras mãos
da condessa - Eu não a culpo de nada e rogo que faça desaparecer esse sentimento de
culpa.
- Ah, Serenity, minha querida menina! - A voz da condessa era suave como seus
olhos - Está bem - disse bruscamente erguendo novamente os ombros - Só
recordaremos os tempos felizes. Você me contará a vida de Gaelle com seu pai em
Georgetown e voltará a aproximá-los de mim, não é mesmo?
- "Oui", avó.
- Talvez um dia me leve para conhecer a casa onde cresceu.
- Aos Estados Unidos? - perguntou Serenity profundamente assombrada - Não tem
medo de viajar a um país tão incivilizado?
- Volta a ser impertinente - disse a condessa altivamente enquanto se levantava de
seu trono - Começo a acreditar que chegarei a conhecer muito bem a seu pai através de
ti, Serenity. - A anciã meneou a cabeça - Quando penso no preço que tive que pagar por
essa maldita pintura! Alegro-me de me haver liberado dela! - Ainda tem a cópia, avó disse
Serenity - Eu sei onde está.
- Como sabe? - perguntou Christophe falando pela primeira vez desde que entraram
no salão.
Serenity se voltou para ele com um sorriso. - Está aí, na carta, mas ao princípio não
descobri. Quando nos sentamos no sofá e você me agarrou a mão, dei-me conta. Vê isto?
- Elevou a mão mostrando o anel de rubis - Era de minha mãe, o mesmo anel que usa no
retrato.
- Eu tinha visto o anel na pintura - disse a condessa lentamente - mas Gaelle jamais
teve um anel semelhante. Pensei que seu pai o tinha incluído só para que fizesse jogo
com os brincos .
- Ela tinha o anel, avó. Era seu anel de compromisso. Mamãe sempre levava com o
anel de bodas em sua mão esquerda.
- Mas, o que tem que ver tudo isto com a cópia da Madonna de Rafael? - perguntou
Christophe franzindo o cenho.
- Na pintura ela leva o anel na mão direita. Meu pai jamais teria cometido esse
engano de detalhe a menos que o fizesse intencionalmente.
- É possível - murmurou a condessa.
- Sei que está ali. Diz na carta. Meu pai diz que a ocultou, coberta por algo
imensamente mais precioso. E, para ele, nada era mais precioso que minha mãe.
- "Oui" - concordou a condessa, estudando a pintura de sua filha - Não havia outro
lugar mais seguro onde ocultá-la.
- Tenho uma solução - disse Serenity - Posso despintar uma esquina e então
estaremos certos.
- "Non". - A condessa meneou a cabeça - "Non", não há necessidade de fazê-lo.
Não permitirei que destrua nenhuma polegada do trabalho de seu pai mesmo que
debaixo se encontrasse o Rafael original. - voltou-se para Serenity e lhe acariciou a
bochecha - Agora meus tesouros são você, Christophe e esta pintura. Deixaremo-la ali.
Esse é o lugar que lhe pertence. Agora lhes deixarei sozinhos. Os apaixonados devem ter
sua intimidade.
Abandonou o salão com o porte de uma rainha e Serenity a olhou com admiração.
- É uma mulher magnífica, não acha?
- "Oui" - concordou Christophe, agarrando Serenity entre seus braços - E muito
sábia. Não te beijei em toda uma hora.
Depois que Christophe solucionou essa discrepância para satisfação de ambos,
olhou Serenity com seu habitual gesto de suficiência.
- Uma vez que estejamos casados, "mon amour", encarregarei a alguém que pinte
seu retrato e acrescentaremos outro tesouro ao castelo.
- Nos casar? - repetiu Serenity franzindo o cenho - Nunca disse que pensava me
casar com você. - separou-se dele como se lhe rechaçasse - Não pode me ordenar que
faça algo semelhante. A uma mulher agrada que o peçam.
Christophe a atraiu para ele e a beijou profundamente com lábios quentes e
insistentes. - Dizia algo, prima? - perguntou.
Serenity olhou-o com expressão séria, mas entrelaçou suas mãos atrás do pescoço
dele.
- Nunca serei uma aristocrata.
- Que o céu não o permita - exclamou ele sinceramente.
- Brigaremos freqüentemente e o deixarei fora de si.
- Assim espero - disse ele.
- Muito bem - exclamou Serenity com um sorriso nos lábios - Me casarei contigo...
com uma condição.
- E qual é essa condição? - perguntou Christophe elevando uma sobrancelha.
- Que esta noite me acompanhe a dar um passeio pelo jardim. - Serenity se enlaçou
com força a seu corpo - Estou cansada de caminhar à luz da lua com outros homens e
desejando que fosse você.
FIM