Livro - Busca Do Amor - Nora Roberts

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Em Busca do Amor

Nora Roberts

Título Original: Search for Love


Capítulo 1

A viagem de trem parecia interminável e Serenity estava muito cansada. A


discussão que tinha mantido na noite anterior com Tony não contribuiu para melhorar seu
estado de ânimo e a isso se somava o longo vôo de Washington a Paris. Agora, as
tediosas horas no sufocante trem lhe tinham feito apertar os dentes para reprimir seu
aborrecimento. Apesar de tudo, pensou com resignação, ela não era mais que uma pobre
viajante.
A viagem tinha sido a desculpa perfeita para a última e definitiva batalha entre
Serenity e Tony, já que sua relação tinha sido tensa e acidentada durante as últimas
semanas. Sua permanente negação a ser pressionada para que aceitasse casar-se com
ele tinha provocado inumeráveis discussões, mas Tony a amava e sua paciência não
parecia ter limites. Sua obstinação não cedeu até que lhe anunciou que estava decidida a
fazer essa viagem e, então, a guerra começou.
- Não pode partir de supetão para a França, para ver uma suposta avó cuja
existência ignorava até algumas semanas atrás!
Tony tinha caminhado com uma agitação que se fazia visível pela forma com que
permitia que sua mão desordenasse seu bem cuidado penteado.
- Bretanha. - tinha explicado Serenity - E não tem nenhuma importância quando
descobri sua existência. Agora sei que ela existe.
- Esta anciã te escreve uma carta, te dizendo que é sua avó e que deseja te
conhecer e você empreende a viagem, assim sem mais nem menos.
Tony tinha se mostrado extremamente irritado. Ela sabia que sua mente lógica era
absolutamente incapaz de compreender seu impulso e tinha tido que fazer um grande
esforço para conter seu próprio temperamento e tratar de explicar-lhe com calma.
- Ela é a mãe de minha mãe, Tony, a única família que tenho, e estou decidida a
conhecê-la. Você sabe que estive fazendo planos para ir vê-la desde que recebi sua carta.
- Essa velha deixa se passarem vinte e quatro anos sem dar sinais de vida e agora,
subitamente, chega este convite. - Tony tinha continuado seu nervoso passeio pela
grande habitação de pé-direito alto antes de voltar-se novamente para ela - Por que
diabos seus pais nunca lhe falaram dela? Por que esperou que estivessem mortos para
entrar em contato contigo?
Serenity sabia que ele não queria mostrar-se cruel com ela. A crueldade não fazia
parte da natureza do Tony, somente a lógica, e sua mente de advogado estava
acostumada a tratar continuamente com fatos e dados. Nem sequer podia adivinhar a
lenta e terrível dor que havia ainda nela, persistindo depois de dois meses, o tempo
transcorrido desde a súbita e inesperada morte de seus pais. O fato de saber que suas
palavras não tinham tido a intenção de feri-la não impediu que ela se enraivecesse e a
discussão se tornou mais violenta até que Tony partiu, deixando-a sozinha, ressentida e
ardendo de ira.
Agora, enquanto o tedioso trem ia em direção à Bretanha, Serenity viu-se obrigada a
admitir que também ela abrigava várias dúvidas. Por que sua avó, essa desconhecida
condessa Françoise de Kergallen, tinha permanecido em silêncio ao longo de quase um
quarto de século? Por que sua mãe, sua encantadora, frágil e fascinante mãe, nunca lhe
tinha dito que tinham um parente na remota Bretanha? Nem sequer seu pai, tão
inconstante, extrovertido e direto como tinha sido, não tinha mencionado jamais que
tivessem vínculos familiares mais perto do Atlântico?
"Tinham estado tão intimamente unidos", refletiu Serenity. Os três tinham feito
muitas coisas juntos. Inclusive quando ela era uma menina, seus pais a tinham levado
com eles para visitar senadores, congressistas e embaixadores.
Jonathan Smith tinha sido um renomado artista e um retrato criado por sua talentosa
mão era uma posse muito valiosa. Os membros da alta sociedade de Washington lhe
tinham encomendado trabalhos durante mais de vinte anos. Seu pai tinha sido apreciado
e respeitado como homem e como artista.
A graça e o encanto de Gaelle, sua esposa, tinha contribuído para que o casal fosse
muito estimado nos círculos importantes da capital.
Quando Serenity cresceu, e seu talento artístico natural se fez evidente, o orgulho
de seu pai não teve limites. Os dois tinham desenhado e pintado juntos, primeiro como
professor e aluna, logo como homem e mulher, e sua relação se fez mais estreita ao
compartilharem com idêntica alegria o chamado da arte.
A pequena família tinha desfrutado de uma existência idílica na elegante residência
em Georgetown, uma vida cheia de amor e felicidade, até que o mundo de Serenity se
fez em migalhas ao seu redor junto com o avião que levava seus pais à Califórnia. Tinha-
lhe parecido impossível acreditar que estivessem mortos e que ela seguia vivendo. A
habitação de pé-direito alto já não ressoaria com o eco da poderosa voz de seu pai ou
com as suaves risadas de sua mãe. A casa estava vazia e só ficavam nela as lembranças,
como sombras que dormiam em cada um dos silenciosos rincões.
Durante as duas primeiras semanas, Serenity não pôde suportar a visão de uma tela
ou de um pincel, ou a idéia de entrar no estúdio do terceiro andar, onde ela e seu pai
tinham trabalhado tantas horas, onde sua mãe entrava para lhes recordar que os artistas
também devem comer. Quando finalmente foi capaz de reunir a coragem necessária para
subir as escadas e entrar na sala banhada pela luz do sol, sentiu uma paz estranha e
reparadora, mais que uma angústia surda e intolerável. A luz do sol invadia a habitação
em uma cálida claridade e as paredes retinham o amor e a sorte que alguma vez tinham
existido ali. Serenity havia tornado a viver, a pintar, e Tony se mostrou generoso e atento,
ajudando-a a encher o terrível vazio que tinha deixado a perda de seus pais. Então foi
quando chegou a carta.
E agora tinha abandonado Georgetown e Tony para ir em busca dessa parte dela
mesma que pertencia à Bretanha e a uma avó absolutamente desconhecida. A carta,
estranha e formal, que a tinha feito viajar da familiaridade das concorridas ruas de
Washington até a desconhecida campina na Bretanha, encontrava-se agora guardada na
bolsa de pele que tinha no assento a seu lado. A missiva não transmitia nenhum afeto, só
dados e um convite, ou melhor, uma ordem imperial, pensou Serenity, divertida e
intrigada ao mesmo tempo. Mas embora seu orgulho se ferisse com a ordem, sua
curiosidade, seu desejo de saber mais a respeito da família de sua mãe, fazia que
aceitasse o estranho convite. Com seu sentido de organização e sua inata impetuosidade,
Serenity fazia os preparativos da viagem, fechando sua amada casa em Georgetown e
queimando as pontes que a uniam a Tony.
O trem gemeu e fez chiar suas rodas em sinal de protesto quando entrou na estação
de Lannion. Um formigamento de excitação se apoderou dela quando reuniu sua
bagagem de mão e desceu à plataforma para contemplar pela primeira vez, atentamente,
a paisagem do país em que sua mãe tinha nascido. Olhou em todas direções com olhar
de artista, perdida por um instante na serena beleza e nas cores suaves e combinadas
que caracterizavam a região da Bretanha.
O homem observou sua expressão concentrada e o pequeno sorriso que havia em
seus lábios entreabertos, e uma de suas escuras sobrancelhas se elevou em um gesto
de surpresa. Demorou-se uns minutos examinando Serenity, admirando sua figura alta e
esbelta embainhada em um traje de alfaiate cor verde-azulada, e o esvoaçar da ampla
saia em torno de suas pernas longas e perfeitamente torneadas. A brisa suave passava
seus dedos ligeiros pelo cabelo que o sol iluminava e o fazia flutuar, emoldurando o rosto
ovalado e de traços delicados. Os olhos, concluiu o homem, eram grandes e redondos,
sua cor era ambarina como o conhaque e estavam rodeados por espessas pestanas que
eram mais escuras que seu cabelo claro. A pele parecia incrivelmente suave, delicada
como o alabastro, e a combinação produzia um efeito etéreo: uma orquídea frágil e
formosa. O homem logo descobriria que as aparências teimam em nos enganar.
Aproximou-se de Serenity lentamente, quase com relutância.
- É você mademoiselle Serenity Smith? - perguntou em um inglês com ligeiro
sotaque.
Serenity se surpreendeu ao ouvir sua voz, já que se encontrava tão distraída na
contemplação da paisagem que não tinha notado a proximidade do homem. Apartando
uma mecha de cabelo, voltou a cabeça e elevou a vista, muito mais alto do que
costumava, para olhar os olhos marrons e de espessas pestanas.
- Sim - respondeu, perguntando-se por que aqueles olhos faziam com que se
sentisse tão estranha - Você vem do castelo de Kergallen?
O homem elevou ligeiramente uma sobrancelha e essa foi a única mudança de sua
expressão.
- Oui, sou Christophe de Kergallen. Vim para levá-la ante a condessa.
- De Kergallen? - repetiu Serenity com certa surpresa - Não será você outro de meus
misteriosos parentes?
A sobrancelha permaneceu elevada e os lábios plenos e sensuais se curvaram
quase imperceptivelmente. - poderia-se dizer, mademoiselle, que somos, de algum modo,
primos.
- Primos - murmurou ela enquanto ambos se observavam atentamente, como dois
boxeadores profissionais que se estudam antes de decidir-se a lançar o primeiro golpe.
O cabelo negro, liso e sedoso caía sobre o pescoço e os olhos escuros, que não
deixavam de olhá-la, pareciam quase negros em sua pele bronzeada pelo sol. Seus
traços eram angulosos, como os de um falcão ou de um pirata, e toda sua pessoa
emanava uma aura viril que a atraía e lhe repelia ao mesmo tempo. Serenity sentiu um
súbito desejo de ter consigo um caderno de desenho, perguntando-se se seria capaz de
captar a aristocrática virilidade daquele homem com a ajuda de um lápis e uma folha de
papel.
O exaustivo exame de Serenity não pareceu perturbar absolutamente o seu
longínquo primo, e ele sustentou seu olhar com olhos frios e distantes.
- Sua bagagem será levada diretamente ao castelo - disse. Então inclinou-se para
recolher as malas que Serenity tinha desembarcado com ela à plataforma - Agora, se me
acompanhar, a condessa está ansiosa por conhecê-la.
Conduziu-a até um reluzente sedan preto, ajudou-a a tomar assento no lugar do
acompanhante e colocou a bagagem no porta-malas. Seu comportamento era tão frio e
impessoal que Serenity se sentiu simultaneamente incomodada e curiosa. Christophe de
Kergallen começou a conduzir absolutamente calado e Serenity voltou-se para lhe olhar
abertamente.
- E como é que somos primos? - perguntou. "Como devo lhe chamar?", perguntou-
se. “Monsieur Christophe ou você?"
- O marido da condessa, o pai de sua mãe, morreu quando sua mãe era uma
menina. - Ele começou sua explicação em um tom cortês e visivelmente aborrecido, e
Serenity sentiu a tentação de lhe dizer que não se incomodasse - Vários anos mais tarde,
a condessa se casou com meu avô, o conde de Kergallen, cuja esposa tinha morrido lhe
deixando um filho, meu pai. - Voltou a cabeça e a olhou fugazmente - Sua mãe e meu pai
foram criados no castelo como se fossem irmãos. Meu avô morreu, meu pai se casou,
viveu o tempo suficiente para ver-me nascer e acabou morrendo em um acidente de caça.
Minha mãe suspirou por ele durante três anos e finalmente acabou por unir-se a meu pai
na cripta da família.
A história tinha sido recitada com uma voz remota e carente de toda emoção e
Serenity não sentiu por ele a compaixão que normalmente teria experimentado por um
menino órfão. Observou por um momento seu perfil aquilino.
- De modo que isso lhe converte no atual conde de Kergallen e em meu primo por
matrimônio.
De novo, ele a olhou brevemente e com certa negligência antes de responder.
- Oui.
- Não posso lhe dizer quão impressionada me sinto por ambos os fatos - exclamou
Serenity sem preocupar-se com disfarçar o sarcasmo que se advertia em sua voz. A
sobrancelha de Christophe voltou a elevar-se enquanto a olhava, e Serenity pensou por
um instante que em seus olhos escuros havia um sorriso zombador. Mas enfim decidiu
que não era possível, segura de que o homem que estava sentado junto a ela jamais ria -
Você conheceu a minha mãe? - perguntou ela quando o silêncio começou a fazer-se
desagradável.
- Oui. Eu tinha oito anos quando ela partiu do castelo.
- Por que partiu? - perguntou ela, lhe olhando fixamente com seus olhos cor âmbar.
Ele voltou a cabeça e a olhou com idêntica atenção. Serenity se sentiu perturbada
por seu poder antes que Christophe voltasse a concentrar-se na condução do carro.
- A condessa lhe dirá o que ela desejar que você saiba.
- O que ela desejar? - exclamou Serenity, irritada por seu deliberado desprezo -
vamos esclarecer as coisas, primo. Eu pretendo averiguar por que minha mãe abandonou
a Bretanha e por que passei toda minha vida ignorando que tinha uma avó na França.
Com movimentos lentos e indolentes, Christophe acendeu um cigarro e expulsou a
fumaça indolentemente.
- Não há nada que eu possa lhe explicar a respeito.
- Quer dizer - corrigiu ela, apertando os olhos - que não há nada que você queira
me explicar a respeito.
Ele se limitou a encolher seus poderosos ombros e Serenity se voltou para olhar
através da janela aberta, imitando seus movimentos em versão americana, e não chegou
a perceber o ligeiro sorriso que ele esboçou ante seu gesto.
Continuaram a viagem quase em silêncio, embora Serenity, ocasionalmente,
perguntasse por alguns detalhes da paisagem, e Christophe respondesse com amáveis
monossílabos, sem fazer nenhum esforço por estender-se na conversação. O dourado
sol e o céu azul teriam sido suficiente estímulos para dissipar o mau humor da viagem,
mas aquela contínua frieza pesava muito mais que os dons da natureza.
- Para um conde da Bretanha - observou ela com enganosa doçura, depois de lhe
escaparem outros dois monossílabos -, você fala um inglês quase perfeito.
O sarcasmo escorregou por ele como brisa de verão e sua resposta foi levemente
condescendente.
- A condessa também fala inglês muito bem, mademoiselle. Os criados, não
obstante, só falam francês ou bretão. Se você se encontrar em dificuldades por esta
razão, só tem que nos pedir, à condessa ou a mim, que a ajudemos.
Serenity elevou o queixo e voltou para ele seus olhos dourados, com evidente
desprezo.
- “Ce n'est pas nécessaire, monsier. Je parle bien le français”.
Uma sobrancelha escura se elevou em um gesto altivo que harmonizava com seus
lábios.
- Bem, - respondeu ele no mesmo idioma - facilitará sua visita ao castelo.
- Falta muito ainda para chegar ao castelo? - perguntou ela sem abandonar o
francês. Tinha calor, estava cansada e necessitava de um banho. A longa viagem e a
diferença horária contribuíam para que tivesse a impressão de que fazia dias que estava
dentro de um veículo, e ansiava por dispor de uma banheira cheia de água quente e sais
de banho.
- Faz algum tempo que estamos nas terras da família Kergallen, mademoiselle. -
disse ele sem tirar os olhos do caminho - Logo avistaremos o castelo.
O carro tinha subido lentamente uma pequena colina. Serenity fechou os olhos ao
sentir uma dor que tinha começado a lhe torturar a têmpora esquerda e desejou
ardentemente que sua misteriosa avó tivesse vivido em um lugar menos complicado,
como Idaho ou Nova Jersey. Quando voltou a abrir os olhos, as dores, a fadiga e os
lamentos se desfizeram como o pó sob o sol ardente.
- Pare! - gritou em inglês, enquanto apoiava involuntariamente uma mão sobre o
braço de Christophe.
O castelo se elevava ante eles, orgulhoso e solitário. Era uma imensa construção de
pedra pertencente a outro século, com torres cilíndricas, muros ameados e uma cobertura
cônica de telhas que brilhava em tons cinza contra o azul do céu. Tinha inumeráveis
janelas, altas e estreitas, que refletiam a luz crepuscular com um grandioso mosaico de
cores. Era um castelo antigo, arrogante e seguro, e Serenity se apaixonou
instantaneamente pela construção de pedra.
Christophe observou a surpresa e o prazer que se refletiam no rosto despreparado
do Serenity enquanto sentia sobre seu braço o contato quente e ligeiro de sua pequena
mão. Um cacho rebelde caiu sobre a face de Serenity e Christophe estendeu uma mão
para afastá-lo. Entretanto, reprimiu-se no último momento e se deparou com uma mescla
de surpresa e incômodo.
Serenity estava muito absorta na contemplação do castelo e não percebeu o
frustrado movimento de Christophe. Já estava planejando que ângulos utilizaria para seus
esboços e imaginando o fosso que devia circundá-lo no passado.
- É fabuloso - disse por fim, voltando-se para seu acompanhante. Retirou
apressadamente a mão que descansava sobre o braço de Christophe, perguntando-se
como tinha chegado até ali - Parece saído de um conto de fadas. Com um pouco de
imaginação, até posso ouvir o som dos clarins, ver os cavaleiros com suas
resplandecentes armaduras e as damas da corte com seus amplos vestidos e seus
chapéus altos e terminados em ponta. Por acaso também há um dragão na vizinhança?
Serenity sorriu com o rosto iluminado e incrivelmente encantador.
- Não - disse ele - A menos que contemos a Enjoe, a cozinheira - acrescentou,
esquecendo-se por um instante do muro frio e cortês que tinha levantado entre eles e
permitindo que ela notasse o amplo e cativante sorriso que o fazia parecer mais jovem e
acessível.
"Então, apesar de tudo, é humano", deduziu Serenity. Mas enquanto seu pulso se
acelerava em resposta a seu súbito e inesperado sorriso, ela compreendeu que ao
mostrar-se humano era imensamente mais perigoso. Enquanto seus olhos se
encontraram e ambos sustentaram o olhar, Serenity teve a estranha sensação de
encontrar-se totalmente só com ele, e de que o resto do mundo era só uma cortina de
fundo enquanto eles permaneciam sentados em uma solidão encantada, e Georgetown
parecia estar imensamente longe.
O cortês e distante estrangeiro logo substituiu o acompanhante encantador, e
Christophe reatou a marcha, mostrando-se ainda mais frio e remoto depois do breve e
amistoso interlúdio.
"Cuidado, Serenity" - acautelou-se - "Sua imaginação se desvaneceu novamente.
Este homem, definitivamente, não é para ti. Por alguma razão desconhecida, nem sequer
se sente atraído por ti, e segue sendo um aristocrata frio e condescendente apesar de
seu sorriso fugaz."
Christophe parou o carro em um amplo caminho circular rodeado por um pátio
lajeado e com muros de pedra baixos, enfeitados por luxuriosas trepadeiras. Ele desceu
do carro com elegantes movimentos e Serenity fez o mesmo antes que Christophe
conseguisse chegar à sua porta para ajudá-la. Serenity estava tão fascinada pela
atmosfera de conto de fadas que não percebeu o gesto contrariado dele perante sua
ação.
Christophe ofereceu-lhe o braço e conduziu-a a uma enorme porta de carvalho,
depois de subirem uns quantos degraus de pedra. Enfim, acionando uma reluzente
maçaneta de bronze, fez uma pequena reverência e lhe indicou que entrasse.
O vestíbulo era enorme. Os pisos estavam polidos e brilhavam como espelhos e,
além disso, viam-se deliciosos tapetes feitos à mão. As paredes estavam trabalhadas e
nelas penduravam-se formosas tapeçarias, grandes, coloridas e incrivelmente antigas.
Um grande cabide e uma mesa de caça, ambos de carvalho e com o brilho que lhes dava
a pátina dos séculos, cadeiras também de carvalho com os assentos de couro, e o
arranjo de flores naturais completavam a atmosfera da habitação, que à Serenity pareceu
estranhamente familiar. Era como se ela soubesse o que lhe esperava quando cruzou a
soleira antes de entrar no castelo, e a habitação pareceu reconhecê-la e lhe dar a boas-
vindas.
- Algo aconteceu? - perguntou Christophe, ao advertir sua expressão confusa.
Serenity balançou a cabeça com um ligeiro estremecimento.
- “Déja vu” - murmurou voltando-se para ele - É muito estranho, mas tenho a
sensação de que já estive neste lugar. - reprimiu-se bem a tempo, antes de acrescentar
"com você". Deixou escapar um profundo suspiro e encolheu os ombros - É muito
estranho.
- Então a trouxe, Christophe.
Serenity afastou o olhar dos olhos marrons, subitamente penetrantes, para observar
a sua avó, que se aproximava dela.
A condessa de Kergallen era alta e quase tão magra quanto a própria Serenity. Seu
cabelo era de um branco puro e brilhante e parecia uma nuvem em cima do rosto
anguloso que desafiava a rede de rugas que o tempo tinha traçado sobre ele. Tinha os
olhos claros, de um azul penetrante, debaixo das sobrancelhas perfeitamente arqueadas,
e caminhava com ar régio, como a mulher que sabe que mais de seis décadas não
puderam murchar sua beleza.
"Esta não é uma mulher qualquer. - pensou Serenity rapidamente - Esta dama é
uma condessa da cabeça aos pés."
Os olhos claros observaram lentamente Serenity e ela percebeu que um tremor
emocionado cruzava o rosto anguloso antes de voltar para sua expressão impassível. A
condessa estendeu uma formosa mão coberta de anéis.
- Bem vinda ao "Cháteau" Kergallen, Serenity Smith. Eu sou a condessa Françoise
de Kergallen.
Serenity tomou a delicada mão entre as suas, perguntando-se com certa
extravagância se devia beijá-la e fazer uma reverência.
- Obrigado, madame. Estou feliz por estar aqui.
- Certamente está cansada depois de uma viagem tão longa. - disse a condessa -
Eu mesma te indicarei quais são os seus aposentos. Certamente deseja descansar um
momento antes de se trocar para o jantar.
A dama se dirigiu a uma grande escada curva e Serenity a seguiu. Deteve-se no
patamar e voltou a cabeça para descobrir que Christophe a estava olhando com
expressão sombria. Ele não fez nenhum esforço para suavizar a tensão de seu rosto e
tampouco afastou seu olhar. Serenity se voltou rapidamente e continuou seu caminho
atrás das já longínquas costas da condessa.
As duas mulheres caminharam ao longo de um estreito corredor iluminado com
abajures de cobre embutidos na parede, substituindo, pensou Serenity, o que alguma vez
deveriam ser certamente tochas. Quando a condessa se deteve em frente a uma das
portas, voltou-se uma vez mais para Serenity e, depois de examiná-la atentamente, abriu
a porta e lhe indicou que entrasse.
Os aposentos eram grandes e abertos, mas conservavam um ar de delicada graça.
Os móveis eram de cor cereja brilhante e uma enorme cama com dossel dominava a
peça. Sua colcha de seda estava adornada com alguns bordados que revelavam o
inexorável passado do tempo. Uma lareira de pedra ocupava a parede oposta aos pés da
cama, e uma coleção de figuras de porcelana de Dresde se refletia no grande espelho
que estava pendurado acima da mesma. Um extremo do quarto era curvado e totalmente
envidraçado e um banco interior, encostado à janela, convidava a repousar enquanto se
admirava a maravilhosa paisagem.
Serenity sentiu intensamente o incontrolável feitiço dos aposentos, uma aura de
amor e de felicidade na suave elegância do ambiente.
- Este era o quarto de minha mãe? - Novamente um esvoaçar de emoção cruzou o
rosto da condessa, como se fosse a chama de uma vela surpreendida por uma corrente
de ar.
- Oui. Gaelle o decorou pessoalmente quando tinha dezesseis anos.
- Obrigado por havê-lo reservado para mim, madame - disse ela. A fria resposta da
senhora não tinha podido dissipar a calidez que o aposento oferecia a ela e Serenity
sorriu - Durante minha estadia no castelo me sentirei muito perto de minha mãe.
A condessa se limitou a assentir com um leve gesto da cabeça e pulsou um
pequeno botão que havia junto à cama.
- Bridget se encarregará de lhe preparar o banho. Sua bagagem chegará muito em
breve e ela se ocupará de ordenar suas coisas. Costumamos jantar às oito, a menos que
queira um lanche agora.
- Não, obrigado, condessa - disse Serenity, enquanto começava a sentir-se como
uma hóspede em um luxuoso hotel - Às oito estarei preparada.
A condessa se dirigiu à porta.
- Bridget a levará ao salão uma vez que tenha descansado. Tomaremos um coquetel
às sete e meia. Se desejar algo, só tem que utilizar o sinal.
A porta se fechou atrás dela. Serenity inspirou profundamente e se deixou cair na
enorme cama.
"Por que vim a este castelo?" - perguntou-se, fechando os olhos ao sentir um súbito
acesso de solidão - "Devia ter ficado em Georgetown, com o Tony, devia permanecer em
um ambiente que pudesse entender. O que estou procurando aqui?"
Voltou a suspirar e examinou o local em um intento de combater a depressão que
começava a invadi-la. "O quarto de minha mãe", recordou-se, e sentiu a carícia cálida de
uma mão invisível. "Isto é algo que posso entender."
Logo se dirigiu à janela e contemplou o crepúsculo, um belo espetáculo com o sol
que projetava seus últimos raios, antes de sucumbir a um ligeiro sonho. Uma doce brisa
agitava o ar e as escassas nuvens se moviam ao seu impulso, vagando vagarosamente
através do escurecido céu.
Um castelo em uma colina da Bretanha. Sacudindo a cabeça, Serenity se ajoelhou
no banco que havia junto à janela e admirou o nascimento da noite. Como se encaixava
Serenity Smith nesta paisagem? Franziu o cenho ante a revelação que surgia do mais
profundo de seu coração. "De algum jeito pertenço a este lugar ou, ao menos, uma parte
de mim. Senti no momento em que vi esses incríveis muros de pedra e novamente
quando entrei no castelo." Afastou esse pensamento de sua cabeça e o guardou em
algum local de sua mente para concentrar-se, em sua avó.
Era evidente que a condessa não se emocionou ao conhecê-la, decidiu Serenity
com um triste sorriso. Ou talvez foi somente a tradicional formalidade européia o que a
fazia aparecer fria e distante. Não era muito razoável que lhe pedisse que viesse a
França se não tivesse sentido desejos de conhecê-la. Serenity supôs que esperava mais
da condessa porque ela necessitava mais. Encolheu os ombros e logo relaxou. "A
paciência nunca foi uma de minhas virtudes, mas suponho que será melhor que comece
a desenvolvê-la. Possivelmente se a recepção que me deram na estação tivesse sido um
pouco mais quente..." Voltou a franzir o cenho ao recordar a atitude de Christophe.
"Poderia jurar que ele sentiu desejos de me colocar de novo no trem no momento
em que me viu." E então pensou na exasperada conversa no carro. A expressão de seu
rosto se tornou mais severa e afastou o olhar da silenciosa penumbra do anoitecer. "É um
homem muito desagradável - se disse e sua expressão se suavizou tornando-se
pensativa - um verdadeiro compêndio do que é um conde bretão. Talvez por isso me
afetou tão profundamente." Apertou o queixo na palma da mão e recordou a atmosfera
que lhes tinha rodeado enquanto permaneciam sozinhos, sentados no carro, sob as
sombras que os altos muros do imponente castelo projetavam. "É diferente de todos os
homens que conheci em minha vida: elegante e viril ao mesmo tempo. Dentro dele se
esconde uma tremenda potência, a virilidade envolta em um halo de sofisticação." Poder.
A palavra relampejou dentro de seu cérebro e Serenity franziu o cenho. "Sim - admitiu
com uma relutância que não podia compreender - nele há poder e uma absoluta
confiança em si mesmo."
"Do ponto de vista de um artista, Christophe constitui um estudo fascinante. Ele me
atrai como artista - disse a si mesma - e certamente não como mulher. Uma mulher teria
que estar louca para enamorar-se por um homem assim. Absolutamente louca", repetiu-
se firmemente.
Capítulo 2

O espelho ovalado e emoldurado em ouro refletiu a figura de uma mulher magra de


cabelos loiros. O vestido solto, de decote fechado e de uma suave cor "cinzas de rosas"
projetava um leve resplendor sobre a pele rosada, deixando nus os ombros e os braços.
Serenity encontrou também o reflexo de seus olhos cor de âmbar, sustentou o olhar e
deixou escapar um suspiro. Já era quase hora de descer e encontrar-se com sua avó - a
régia e reservada condessa - e com seu primo, o formal e estranhamente hostil conde de
Kergallen.
Sua bagagem tinha chegado enquanto desfrutava de um banho reparador e a
pequena e morena criada bretã a tinha subido ao quarto. Bridget tinha se encarregado de
desfazer a bagagem e tirar sua roupa, timidamente a princípio e logo falando e lançando
exclamações de surpresa enquanto pendurava os vestidos no amplo armário, ou
colocava os variados artigos nas gavetas da antiga cômoda. Sua demonstração de
sincera amizade contrastou notavelmente com a atitude que tinham assumido aqueles
que eram parte de sua família.
A intenção de Serenity de permanecer entre as frescos lençóis de linho da enorme
cama com dossel tinha sido estéril, já que tinha todas as emoções à flor da pele. A
estranha sensação experimentada antes de entrar no castelo, as boas-vindas afetadas e
formais que lhe tinha dispensado sua avó e a poderosa resposta física a seu primo
longínquo se uniram para lançá-la em um anormal estado de nervos e lhe transmitir uma
insegurança que era imprópria dela. Voltou a pensar que deveria ter permitido que Tony a
dissuadisse de fazer a viagem, e permanecido entre as pessoas e as coisas que
conhecia e compreendia.
Deixou escapar um longo suspiro, endireitou os ombros e elevou o queixo. Ela não
era uma colegial ingênua que se impressionasse por castelos e rígidas formalidades,
disse a si mesma. Ela era Serenity Smith, a filha de Jonathan e Gaelle Smith, e manteria
bem alta sua cabeça ao lidar com condes e condessas.
Bridget chamou brandamente à porta e Serenity a seguiu pelo estreito corredor para
descer posteriormente a escada curva em direção ao salão.
- "Bonsoir", mademoiselle.
Christophe a saudou com sua habitual formalidade ao chegar ao último patamar e
Bridget desapareceu rapidamente.
- “Bonsoir”, senhor conde.
Serenity lhe respondeu aceitando o ritual, enquanto ambos se olhavam fixamente.
O traje negro conferia um aspecto quase satânico a seus traços aquilinos. Os olhos
escuros brilhavam como azeviche, e sua pele tinha uma tonalidade bronzeada ao
contrastar com a camisa branca e preta. Se sua linhagem incluía piratas, decidiu Serenity,
tinham sido homens extremamente elegantes. Enquanto os olhos de Christophe se
atrasavam nos seus, Serenity pensou que aqueles piratas deveriam ter obtido grandes
êxitos em suas empresas bucaneiras.
A condessa nos espera no salão - anunciou Christophe depois de ter se deleitado
longamente na contemplação de Serenity, e lhe oferecendo o braço em um gesto
inesperadamente tenro.
A condessa os observou quando entraram no salão. O homem alto e arrogante e a
mulher orgulhosa de cabelos dourados, contrastando perfeitamente a seu lado. "Um casal
notavelmente atraente pensou a velha dama -, que obrigaria as pessoas a voltar a
cabeça em qualquer lugar onde se encontrasse."
- Bonsoir, Serenity, Christophe - saudou. Tinha um aspecto imponente em seu
vestido cor azul safira e os diamantes que resplandeciam como uma cadeia de fogo ao
redor de seu pescoço - Meu aperitivo, Christophe, por favor. Você, que deseja beber,
Serenity?
- Vermute, obrigado, madame - respondeu ela, com um sorriso amável nos lábios.
- Espero que tenha descansado bem - disse, a condessa enquanto seu neto lhe
estendia uma pequena taça de cristal.
- Sim, muito bem, madame - respondeu, aceitando por sua vez a taça que
Christophe lhe oferecia - Eu... As palavras que estava a ponto de pronunciar se detiveram
em sua garganta quando seus olhos descobriram o retrato e se voltou para olhá-lo. Uma
mulher de pele rosada e cabelos loiros lhe devolveu o olhar de um rosto que era a viva
imagem do dela. Se não tivesse sido pelo comprimento do cabelo que caía sobre os
ombros, e pelos olhos que tinham um brilho profundamente azul, em vez de cor de âmbar,
aquele retrato poderia ter representado Serenity: o rosto ovalado, delicado, com
interessantes covinhas, a boca plena e bem formada, a beleza frágil e esquiva de sua
mãe, reproduzidos em óleo fazia um quarto de século.
Era um trabalho de seu pai. Serenity soube imediatamente e sem possibilidade de
engano. Pinceladas, o uso da cor, a técnica pessoal que identificava Jonathan Smith com
tanta segurança como se tivesse lido a pequena assinatura no ângulo inferior da pintura.
Seus olhos se encheram de lágrimas e piscou para afastar a súbita tristeza que a
embargava. O fato de descobrir aquele retrato havia tornado a fazer presente os seus
pais por um instante e se sentiu invadida por uma profunda sensação de ternura e
saudade, emoções ambas que já tinha aprendido a prescindir.
Serenity continuou estudando o retrato, permitindo-se captar os detalhes da obra de
seu pai, as dobras do vestido branco que pareciam flutuar sob o influxo de uma brisa
oculta, os rubis nas orelhas de sua mãe, um agudo contraste de cor que se repetia no
anel que luzia em um de seus dedos. Durante a profunda observação que dedicou à
pintura, algo se reanimou em um canto de sua mente, um pequeno detalhe desconexo,
que resistia a acessar o campo da consciência. Serenity deixou que se esfumasse e se
limitou a sentir.
- Sua mãe era uma mulher muito bela - disse a condessa um momento depois e
Serenity lhe respondeu com ar ausente, absorvida ainda pelo brilhante olhar de amor e
felicidade que tinha visto nos olhos de sua mãe.
- Sim, era-o. É assombroso o pouco que mudou desde que meu pai pintou este
retrato. Que idade tinha então?
- Em torno de vinte anos - respondeu a condessa e o tom culto de sua voz se
mesclou com uma aparente frieza - Vejo que reconheceste imediatamente o estilo de seu
pai.
- Naturalmente - assentiu Serenity, sem perceber o tom de voz de sua avó e,
voltando-se, sorriu com autêntica ternura - Como sua filha e discípula, sou capaz de
reconhecer imediatamente tanto sua obra quanto sua escrita. - Olhou novamente o
retrato e gesticulou com sua mão magra e de comprimentos dedos - Este retrato foi
pintado faz vinte e cinco anos e ainda respira vida, como se os dois estivessem ainda
nesta habitação.
- Sua semelhança com ela é verdadeiramente assombrosa - observou Christophe
enquanto bebia um gole de sua taça de vinho, e dedicando toda sua atenção como se a
houvesse tocado com uma mão - Me senti impressionado quando desceu do trem.
- Exceto pelos olhos - disse a condessa, antes de que Serenity pudesse fazer algum
comentário - Tem os olhos de seu pai.
A condessa não pôde ocultar a amargura que destilaram suas palavras. Serenity,
entreabrindo os olhos e disposta a discutir com ela, voltou-se rapidamente fazendo que a
saia de seu vestido descrevesse um giro antes de voltar para seu lugar.
- Sim, madame, tenho os olhos de meu pai. Acaso esse detalhe lhe incomoda?
Os elegantes ombros da dama se elevaram com indiferença e elevou a taça para
beber lentamente seu aperitivo.
- Meus pais se conheceram aqui, no castelo? - perguntou Serenity, sentindo que lhe
esgotava a paciência - Por que partiram sem retornar jamais? Por que nuca me falaram
de você?
Serenity olhou para ambos e encontrou dois rostos frios e inexpressivos. A condessa
tinha levantado um escudo e Serenity compreendeu que Christophe a ajudaria a mantê-lo.
O não diria absolutamente nada. Todas as respostas deviam surgir da velha condessa.
Abriu a boca para voltar a falar, mas foi interrompida subitamente por um gesto da mão
adornada.
- Logo falaremos desse tema. - As palavras foram expressas como se se tratasse de
um decreto real enquanto a condessa se levantava. - Agora iremos jantar.
A sala de jantar era impressionante, mas Serenity havia chegado à conclusão de
que tudo era impressionante no castelo. Os altos tetos com vigas pareciam os de uma
catedral e as paredes revestidas de madeira tinham sua uniformidade quebrada por
grandes janelas emolduradas por pesadas cortinas de veludo cor de sangue. Uma lareira
grande o bastante para se ficar em pé dentro dela se elevava presidindo toda uma parede,
e Serenity pensou que o espetáculo seria fascinante quando estivesse acesa. Um
gigantesco lustre iluminava o vasto salão e seus cristais projetavam um arco-íris de cores
sobre os pesados móveis de escuro carvalho.
Os pratos começaram com uma sopa de cebola, espessa, substanciosa e muito
francesa, e os três mantiveram uma amável conversação enquanto durou o jantar.
Serenity observava a Christophe, intrigada, contra sua vontade, por seus atrativos traços
morenos e seu porte arrogante.
"É evidente que não lhe agrado, - decidiu ela, um tanto confusa - Não lhe agradei do
primeiro momento em que me viu. Pergunto-me por quê." Encolhendo-se mentalmente de
ombros, dedicou-se a comer seu salmão ao creme. "Talvez não lhe agradem as mulheres
em geral." Christophe elevou a vista e seus olhos se encontraram com os dela, com uma
força que bem poderia rivalizar com uma tempestade elétrica. Serenity sentiu que seu
coração dava um repentino salto como se quisesse escapar de seu peito. "Não - se
corrigiu rapidamente, afastando seu olhar e fixando-o no vinho branco que enchia sua
taça - é evidente que ele não odeia as mulheres. Esses olhos estão cheios de sabedoria
e experiência. Tony nunca conseguiu produzir em mim estas sensações. - Elevou a taça
e bebeu com determinação - Nenhum homem me fez reagir deste modo."
- Stevan, - ordenou a condessa - mais vinho para mademoiselle.
A ordem da condessa a seu criado serviu para afastar Serenity de suas
especulações.
- Não, obrigado, não desejo mais - disse ela em francês.
- Fala muito bem o francês para uma americana, Serenity - disse a respeitável anciã
- Me alegra que sua educação tenha sido completa, mesmo nesse país de bárbaros.
O desprezo que gotejavam suas últimas palavras foi tão evidente que Serenity não
soube se sentia-se ofendida ou divertida por esse desprezo pela sua nacionalidade.
- Esse país de "bárbaros", madame - disse secamente - se chama Estados Unidos e
na atualidade está praticamente civilizado. Às vezes passa bastante tempo sem que os
índios nos ataquem.
A orgulhosa cabeça se elevou com toda sua arrogância.
- Não é necessário que se mostre impertinente, jovenzinha.
- É mesmo? - perguntou Serenity com um cândido sorriso - É estranho, mas estava
segura de que sim.
Quando elevou sua taça de vinho descobriu, não sem surpresa, os brancos dentes
de Christophe que cintilavam contra sua pele bronzeada, em um amplo e rápido sorriso.
- É provável que tenha herdado os suaves traços de sua mãe - disse a condessa -
mas tem a língua de seu pai.
- Obrigado. - assentiu enquanto olhava fixamente os olhos azuis da anciã - Por
ambas as coisas.
O jantar acabou e a conversação voltou para temas gerais. E embora o interlúdio
tivesse todo o aspecto de ser uma espécie de trégua, Serenity ainda não podia
compreender as causas dessa guerra. Dirigiram-se novamente ao salão principal e,
enquanto Christophe se deixava cair com indolência em uma poltrona para beber uma
taça de conhaque, Serenity e a condessa saboreavam café em delicadas taças de
porcelana da China.
- Jean Paul lê Goff, o noivo do Gaelle, conheceu Jonathan Smith em Paris. - A
condessa começou a falar sem nenhum tipo de preâmbulos e Serenity deteve a taça a
meio caminho de seus lábios, enquanto seus olhos observavam o rosto da senhora -
Jean Paul estava verdadeiramente impressionado pelo talento de seu pai e lhe
encarregou que pintasse o retrato do Gaelle como presente de bodas.
- Minha mãe esteve comprometida com outro homem, antes de casar-se com meu
pai? - perguntou Serenity, depositando a taça com infinito cuidado.
- Oui. O compromisso tinha sido arranjado por ambas as famílias fazia vários anos e
Gaelle estava satisfeita com esse acerto. Jean Paul era um bom homem e provinha de
uma família tradicional.
- Teria sido um matrimônio arranjado, não é?
A condessa ignorou o desgosto de Serenity com um gesto de sua bem cuidada mão.
- Trata-se de um antigo costume e, como já lhe disse, Gaelle estava satisfeita. A
chegada de Jonathan Smith ao castelo mudou tudo. Se eu estivesse mais alerta poderia
perceber o perigo, olhares furtivos que ambos trocavam, o rubor que tingia as bochechas
de Gaelle quando alguém mencionava e nome de Jonathan.
Françoise de Kergallen suspirou profundamente e elevou os olhos para o retrato de
sua filha, - Nunca imaginei que Gaelle quebraria sua palavra manchando assim a honra
da família. Sempre tinha sido uma criatura doce e obediente, mas seu pai a separou de
seus deveres - Os olhos azuis se separaram do retrato para concentrar-se na imagem
viva - Eu ignorava o que tinha ocorrido entre eles. Ela não confiava em mim nem seguia
meus conselhos como tinha feito sempre. O dia em que o retrato foi acabado, Gaelle
desmaiou no jardim. Quando insisti que devíamos chamar um médico, ela me disse que
não havia necessidade de fazê-lo. Gaelle não estava doente, mas sim esperava um filho.
A condessa deixou de falar e o silêncio se estendeu pelo salão como um espesso
manto.
- Madame - disse Serenity, rompendo o silêncio com voz clara e decidida - se o que
tenta é ferir minha sensibilidade me dizendo que fui concebida antes de que meus pais se
casassem, temo que a decepcionarei. Acho absolutamente irrelevante. Os dias em que
se lapidava as pessoas ou as estigmatizava com um ferro ardente já passaram à história,
ao menos em meu país. Meus pais se amavam e se eles expressaram seu amor antes ou
depois de seus votos matrimoniais, é algo que não me importa.
A condessa se acomodou em sua poltrona, entrelaçou dedos e olhou Serenity
fixamente.
- É uma jovem que não tem travas na língua, não é mesmo?
- Exato. - Serenity olhou a condessa de igual para igual - Entretanto, trato de que
minha sinceridade não seja ofensiva.
- “Touché” - interveio Christophe e a condessa arqueou ligeiramente suas brancas
sobrancelhas antes de voltar sua atenção a Serenity.
- Sua mãe se casou um mês antes de te conceber. - A declaração foi feita sem que
sua expressão mudasse absolutamente - Ela e seu pai casaram em segredo na pequena
capela de outro povoado, e pretendiam que ninguém se inteirasse até que seu pai
pudesse levar Gaelle aos Estados Unidos com ele.

- Compreendo - Serenity se acomodou com um ligeiro sorriso—. Minha existência


revelou o segredo antes do previsto. E o que fez você, madame, quando descobriu que
sua filha se casou com um obscuro artista e estava esperando um filho dele?
- Repudiei-a, naturalmente, e disse a ambos que partissem de minha casa. Desde
aquele dia, ela deixou de ser minha filha.
A condessa falou precipitadamente como se desejasse desprender-se de um peso
que já se fazia intolerável.
Um gemido de angústia escapou dos lábios de Serenity e seus olhos voaram para
Christophe só para encontrar-se com um muro inexpressivo. Levantou-se lentamente,
sentindo que uma aguda dor a atravessava de lado a lado, e, voltando as costas a sua
avó, olhou o suave sorriso nos lábios de sua mãe.
- Não me surpreende que a afastaram de suas vidas e também a mim. —voltou-se
para enfrentar a condessa e a palidez de suas bochechas era a única evidência de seu
estado emocional - Sinto muito por você, madame. Privou-se você de uma enorme
felicidade. É você que permaneceu sozinha e isolada durante todos estes anos. Meus
pais compartilharam um amor profundo e total, e você se enclausurou com seu orgulho e
sua honra manchadas. Ela a teria perdoado, se você a tivesse conhecido. Meu pai
também a teria perdoado, por minha mãe, porque ele era incapaz de lhe negar qualquer
coisa.
- Me perdoar? - A cor vermelha substituiu a palidez de seu rosto e a ira fez tremer
sua educada voz - Que necessidade tinha eu de que me perdoassem um vulgar ladrão e
uma filha que traiu a sua família?
Os olhos ambarinos se acenderam como se fossem chamas douradas nas
avermelhadas bochechas e Serenity envolveu sua fúria em um manto gélido.
- Um ladrão? Madame, você está tratando de me dizer que meu pai lhe roubou?
- Oui, ele me roubou. - A resposta foi dura e jogou com seu olhar - Ele não se
contentou me roubando a minha menina, uma filha a que amava mais que a minha
própria vida. Ele acrescentou a seu saque uma Madonna de Rafael que tinha pertencido
a minha família durante gerações. Ambas inestimáveis, ambas insubstituíveis, ambas
perdidas por culpa de um homem que recebi em minha casa e em quem confiava.
- Um Rafael? - repetiu Serenity, elevando uma mão para sua têmpora em um gesto
de absoluta estupefação - Você está sugerindo que minha Mãe lhe roubou um Rafael?
Você deve estar louca.
- Não estou sugerindo nada - corrigiu a condessa, elevando a cabeça como se fosse
uma rainha a ponto de ditar uma sentença - Estou afirmando que Jonathan Smith roubou
Gaelle e a Madonna de Rafael. Ele era um homem muito preparado. Sabia perfeitamente
que eu pensava doar a pintura ao Louvre e se ofereceu para pô-la em condições. Eu
confiei nele. - O rosto anguloso era novamente uma tétrica máscara de tranqüilidade -
Seu pai soube explorar minha confiança, fez que minha filha esquecesse quais eram
suas obrigações, e abandonou o castelo levando consigo meus dois tesouros.
- É mentira! - rebateu Serenity, sentindo que a fúria crescia dentro dela com a força
de um maremoto - Meu pai jamais roubou nada... jamais! Se você perdeu a sua filha foi
exclusivamente por seu próprio orgulho, por sua própria cegueira!
- E o que me diz do Rafael?
A pergunta saiu com suavidade de lábios da condessa, mas seu eco reverberou nas
antigas paredes de pedra.
- Não tenho a menor idéia do que pode ter ocorrido com seu bendito Rafael. - Olhou
a condessa e logo desviou o olhar para o homem impassível que estava apoiado na
chaminé, e se sentiu muito só - Meu pai não roubou essa pintura; ele não era um ladrão.
Jamais em sua vida fez nada desonesto. —Começou a caminhar pelo salão, contendo o
desejo de gritar e fazer pedaços a compostura de sua avó e de Christophe - Se estava
tão segura de que meu pai tinha sua preciosa pintura, por que não fez que lhe
prendessem? Por que não o demonstrou?
- Como já lhe disse, seu pai era um homem muito preparado - respondeu a
condessa - Ele sabia que eu jamais envolveria Gaelle em semelhante escândalo, por
mais danos que me tivesse feito ao me trair. Com ou sem meu consentimento, ele era
seu marido, o pai do filho que estava esperando. Podia sentir-se seguro.
Serenity deixou de caminhar pelo salão e se voltou com a incredulidade pintada em
seu rosto. – Crê por acaso que ele se casou por sua própria segurança? Você não pode
imaginar que ambos o fizeram. Ele a amava mais que a sua vida, mais que a uma
centena de pinturas de Rafael.
- Quando descobri que faltava a Madonna –continuou a condessa, como se Serenity
não tivesse aberto a boca - fui ver seu pai e lhe exigi uma explicação. Já estavam
preparados para partir. Quando lhe acusei de me haver roubado o Rafael vi o olhar que
trocaram... aquele homem em que eu tinha confiado e minha própria filha. Soube que ele
tinha roubado a pintura e Gaelle também sabia que ele era um ladrão, mas, mesmo
assim, permaneceria a seu lado contra mim. Ela traiu a si mesma e também a sua família
e a seu país.
A longa explicação concluiu-se com um suspiro de cansaço e um breve espasmo de
dor no rosto tenso e controlado.
- Acredito que esta noite já se falou o suficiente deste tema - disse Christophe e
ficou de pé para servir um pouco mais de conhaque de uma garrafa, e então estendeu a
taça à condessa murmurando algo em bretão.
- Estou completamente certa de que eles não roubaram a pintura - disse Serenity.
Quando deu um passo em direção à condessa, Christophe a deteve agarrando-a por um
braço.
- Esta noite, não falaremos mais deste assunto.
Afastando-se dele bruscamente, Serenity descarregou toda sua fúria em seu
arrogante primo.
- Você não me dirá quando devo falar! Não tolerarei que se acuse a meu pai de ser
um ladrão! Me diga, senhor conde, se ele roubou essa pintura, onde está? O que fez com
ela?
Christophe elevou uma sobrancelha e seu olhar foi suficientemente significativo.
Serenity sentiu que a cor abandonava suas bochechas para voltar a elas violentamente e
abriu a boca com impotência, antes de respirar com dificuldade.
- Se eu fosse um homem, faria-lhe pagar muito caro por ter insultado meus pais -
disse com voz calma.
- “Alors, mademoiselle” - disse ele com um leve assentimento de cabeça - devo me
considerar afortunado pelo fato de que não o seja.
Serenity fez pouco caso do tom zombador que Christophe tinha empregado e se
dirigiu à condessa, que observava em silêncio o duro intercâmbio de palavras.
- Madame, se me convidou a vir a Bretanha porque acreditava que eu podia
conhecer o paradeiro de seu Rafael, sentirá-se muito decepcionada. Eu não sei
absolutamente nada. Por minha vez, eu tenho minha própria decepção porque vim a
Bretanha pensando encontrar um laço familiar, outro vínculo com minha mãe. Acredito
que nós duas devemos aprender a viver com nossas decepções.
Em seguida partiu do salão sem outro gesto que um ligeiro olhar a Christophe e à
condessa.
Quando entrou em seu quarto bateu a porta com força e tirou as malas do enorme
roupeiro, as colocando em cima da cama. Com um redemoinho de fúria girando em sua
cabeça, começou a tirar as ordenadas roupas de seu guarda-roupas e as jogou nas
malas abertas, em uma total e absoluta confusão de tecidos e cores.
- Vá embora! - gritou com violência quando alguém bateu na porta.
Quando se voltou descobriu que se tratava de Christophe, que tinha ignorado sua
ordem, e lhe lançou um olhar gelado.
Antes de fechar a porta, o arrogante conde observou divertido sua peculiar técnica
para preparar a bagagem.
- Então está de partida, mademoiselle.
- Uma dedução perfeita - disse ela. Serenity jogou uma blusa cor de rosa sobre a
montanha que se formou em cima de sua mala e lhe ignorou por completo.
- Uma sábia decisão - exclamou ele quando lhe deu as costas - Teria sido muito
melhor que não tivesse vindo.
- Melhor? - repetiu ela, voltando-se para ele e sentindo que sua ira ameaçava
transbordar - Melhor para quem?
- Para a condessa.
Serenity se aproximou lentamente dele, entreabrindo os olhos como se se
preparasse para começar uma batalha e amaldiçoando mentalmente a excessiva altura
de Christophe.
- A condessa me convidou a vir a Bretanha. Convocou-me —se corrigiu, com voz
imperiosa - Me convocou é mais correto. Como se atreve a ficar aí e a me falar como se
eu tivesse invadido um terreno sagrado? Eu nem sequer sabia que essa senhora existia
até que chegou sua carta, e me sentia tão enormemente feliz em minha ignorância.
- Teria sido mais prudente que a condessa não apagasse essa felicidade.
- Isso, senhor conde, é um exemplo admirável de modéstia. Alegra-me que
compreenda que eu pude viver feliz sem conhecer a existência de meus parentes bretões.
Serenity virou-se em um claro gesto de despedida e descarregou toda sua ira sobre
os inocentes objetos que havia em cima da cama.
- Espero que compreenda que nada lhe impedirá de seguir vivendo feliz, já que sua
estadia aqui será muito breve.
- Você quer que eu parta, não é mesmo? - perguntou ela, voltando-se com
celeridade e sentindo que a última fibra de dignidade se rompia - E quanto antes, melhor.
Me permita lhe dizer algo, senhor conde de Kergallen: eu preferiria acampar junto a um
caminho antes de aceitar sua graciosa hospitalidade. – Em seguida jogou uma blusa
floreada em direção a Christophe - Por que não me ajuda a preparar minha bagagem?
Ele se inclinou, recolheu a blusa e a pôs sobre uma cadeira belamente estofada.
Seu comportamento indiferente e despreocupado não fez mais que aumentar a fúria de
Serenity.
- Enviarei Bridget - disse Christophe e a severa cortesia de sua voz impulsionou
Serenity a procurar algo mais sólido para lhe jogar na cabeça - Eu diria que necessita que
alguém a ajude.
- Não se atreva a me enviar ninguém! - gritou ela quando Christophe se voltou para
a porta.
Seu arrogante primo inclinou a cabeça ante a ardem de Serenity.
- Como desejar, mademoiselle. O estado de seus vestidos é assunto seu.
Serenity sentiu a urgente necessidade de lhe provocar porque sua imaculada
formalidade lhe produzia náuseas.

- Eu mesma me encarregarei de minha bagagem quando quiser partir do castelo,


querido primo. - Com evidente deliberação agarrou um vestido da pilha de roupa - Talvez
mude de Idéia e queira ficar mais alguns dias. Ouvi dizer que o campo bretão é
verdadeiramente agradável.
- Ficar no castelo é seu privilégio, mademoiselle - respondeu ele e Serenity
percebeu um ligeiro desgosto em sua voz. Esta circunstância fez que sorrisse pela vitória
obtida - Eu, não obstante, não o aconselharia dadas as pressentes circunstâncias.
- De modo que não, não é mesmo? - Serenity encolheu seus delicados ombros e
elevou o rosto em atitude provocadora - Essa é outra boa razão para ficar.
Os olhos de Christophe se obscureceram de ira e Serenity comprovou que tanto
suas palavras como seus gestos tinham alcançado uma fibra extremamente sensível. A
expressão do conde, entretanto, conservou a calma e a compostura, e ela se perguntou
como se manifestaria seu caráter quando se encolerizava, se é que alguma vez o
permitia seu augusto comportamento.
- Você pode fazer o que mais goste, mademoiselle, imediatamente - Christophe a
surpreendeu aproximando-se dela e agarrando-a pela nuca com dedos firmes. Ante seu
contato, Serenity compreendeu que seu gênio não estava tão afastado da superfície
como ela tinha imaginado - Não obstante, é provável que não ache sua visita tão
desagradável quanto gostaria.
- Sou perfeitamente capaz de resolver situações difíceis.
Quando tentou afastar-se dele, sentiu que a mão do Christophe a imobilizava com
um mínimo esforço.
- Talvez, mas uma pessoa inteligente trata de evitar as situações difíceis. - A
cortesia do sorriso de Christophe era mais arrogante que depreciativa, e Serenity ficou
rígida e tratou de livrar-se de seus dedos - Eu diria que você possuía inteligência,
mademoiselle, ou talvez prudência.
Decidida a não submeter-se ao crescente temor que experimentava, Serenity olhou
nos olhos e lhe falou com tranqüilidade.
- Minha decisão de partir ou de ficar no castelo é algo que não tenho porque discutir
com você. Consultarei o travesseiro e amanhã tomarei medidas convenientes. Embora,
naturalmente, você sempre possa me algemar a um muro nas masmorras.
- Uma alternativa interessante. - Seu sorriso se tornou zombador e divertido
enquanto os dedos a acariciavam ligeiramente antes de afastar-se de sua nuca -
Consultarei o travesseiro - acrescentou dirigindo-se à porta e fazendo uma pequena
reverência antes de abri-la - E tomarei as medidas mais convenientes pela manhã.
Serenity se sentiu frustrada por ter permitido que ele a derrotasse e arremessou um
sapato que foi bater contra a porta que Christophe acabava de fechar.
Capítulo 3

A quietude despertou Serenity. Abriu os olhos e olhou a seu redor, o sol entrava pela
janela iluminando a peça e demorou uns minutos antes de recordar onde se encontrava.
Sentou-se na cama e escutou. O silêncio, a rica e profunda qualidade do silêncio,
alterada ocasionalmente pelo canto de um pássaro. Um silêncio que não existia nas
barulhentas cidades que tinha conhecido em sua vida, do qual decidiu que gostava.
O pequeno e ornamentado relógio que havia em cima da escrivaninha de mogno
escura lhe disse que eram seis horas, de modo que apoiou sua cabeça nos elegantes
travesseiros e desfrutou lentamente de sua preguiça. Apesar de em sua mente se
acumularem as acusações e os fatos que sua avó lhe tinha revelado, a fadiga produzida
pela longa viagem se impôs à sua indignação e havia dormido profundamente poucos
minutos após deitar-se, sentindo uma imensa paz naquela cama que uma vez pertencera
à sua mãe. Agora elevou os olhos ao teto e recordou cada detalhe da tarde anterior.
A condessa era uma mulher amargurada. Todo o revestimento de ensaiada
compostura não conseguia a disfarçar a amargura ou, talvez devesse admitir Serenity, a
dor. Inclusive através de seu próprio alerta de ira, ela percebeu essa dor. Embora a velha
condessa tivesse repudiado a sua filha, observava seu retrato e talvez, esta foi a
conclusão a que chegou Serenity, essa contradição significava que o coração não era tão
duro quanto o orgulho.
A atitude de Christophe, entretanto, era de ferver de raiva. Tinha a impressão de que
um arrogante conde se erguia frente a ela como o fosse um juiz parcial, disposto a
condená-la sem um julgamento prévio. "Muito bem, - decidiu ela - eu também tenho meu
orgulho e não tremerei como uma covarde enquanto o nome de meu pai é lançado à
lama e minha cabeça é colocada na guilhotina. Eu também posso praticar o jogo da
gélida cortesia. Não fugirei como um cachorrinho ferido mas, pelo contrário, ficarei aqui."
Lançando um olhar à radiante luz do sol, Serenity suspirou profundamente. "Hoje é
um novo dia, mamãe", disse em voz alta e, deslizando-se para fora da cama, caminhou
até a janela. O jardim se estendia debaixo dela como um presente precioso. "Acredito que
darei um passeio por seu jardim, mamãe, e em seguida desenharei seu castelo." Voltou a
suspirar e agarrou o roupão. "Depois, talvez, a condessa e eu possamos chegar a um
entendimento."
Lavou-se e vestiu-se depressa, escolhendo para a ocasião um vestido leve em tons
pastel que deixava nus os braços e os ombros. O castelo seguia submerso em um
profundo silêncio quando Serenity chegou ao térreo e saiu no calor da manhã estival.
Era estranho, pensou, girando sobre si mesma. Era muito estranho não ver outros
edifícios ou carros, nem sequer outro ser humano. O ar era fresco e suavemente
perfumado, e Serenity o aspirou profundamente antes de contornar o castelo em direção
ao jardim.
O jardim era ainda mais maravilhoso visto de perto que da janela. As luxuriosas
flores brilhavam em uma incrível profusão de cores, os aromas se mesclavam formando
uma fragrância exótica, forte e ao mesmo tempo doce. Havia uma diversidade de atalhos
que cruzavam os bem cuidados canteiros e as polidas lajes refletiam a radiante luz do sol.
Serenity escolheu um atalho ao acaso e pôs-se a andar com indolente prazer,
desfrutando da solidão. A artista que havia dentro dela se recreava na inundação de
formas e cores.
- “Bonjour, mademoiselle”.
Uma voz profunda quebrou a silenciosa atmosfera do jardim e Serenity se voltou,
surpreendida por esta intrusão em sua solitária contemplação. Christophe se aproximou
dela lentamente, alto e magro, e seus movimentos lhe recordaram os de um bailarino
russo que tinha conhecido durante uma festa em Washington. Elegante, seguro e
extremamente viril.
- “Bonjour”, senhor conde.
Serenity decidiu não esbanjar um sorriso, então lhe saudou com estudada
cordialidade. Christophe estava vestido informalmente com uma camisa de cor camurça e
jeans marrons, e se antes ela havia sentido a brisa de um bucanero, agora se encontrava
apanhada em uma tempestade.
Christophe chegou até ela e a observou com sua habitual expressão pensativa.
- Você levanta-se muito cedo. Espero que tenha dormido bem.
- Muito bem, obrigado - respondeu ela, irritada por ter que combater não só a
aversão mas também a atração que começava a lhe inspirar. Os jardins são formosos e
muito atraentes.
- Tenho uma queda por tudo aquilo que seja formoso e atraente.
Seus olhos eram penetrantes, a cor marrom escura apagando a tonalidade ambarina,
e Serenity se sentiu incapaz de respirar. Um momento depois baixou o olhar ante o
poder que exerciam os olhos do conde.
- Olha só! - exclamou ela. Estado falando em francês mas, ao descobrir o cão que
descansava aos pés de Christophe, Serenity voltou a falar em inglês - Qual é seu nome?
Agachou-se para acariciar a pele grosa e suave.
- Korrigan - disse ele olhando a cabeça de Serenity enquanto a luz do sol formava
um halo de pálidos cachos.
- Korrigan - repetiu ela, encantada com o cão e esquecendo a aversão que lhe
provocava seu amo - De que raça é?
- Spainel bretão.
Korrigan começou a corresponder às carícias de Serenity, lhe lambendo as suaves
bochechas. Antes que Christophe ordenasse ao cão que deixasse de fazê-lo, Serenity riu
e afundou o rosto junto ao fofo pescoço do animal.
- Devia saber. Uma vez tive um cão, estava perdido e me seguiu até em casa. -
Elevou a vista e sorriu quando Korrigan continuou de mostrando seu afeto com sua úmida
língua – Na verdade, fui eu quem o incitou a me seguir. Pus lhe o nome de Leonardo,
mas meu pai lhe chamava Horrível e esse foi o nome que finalmente ficou. O banho e a
escova jamais conseguiram melhorar seu aspecto de vagabundo.
Quando Serenity decidiu ficar de pé, Christophe estendeu a mão para ajudá-la a
erguer-se e seu contato foi firme e perturbador. Lutando contra o urgente desejo de
afastar-se dele, soltou-se de sua mão com um gesto casual e continuou seu passeio.
Tanto o amo quanto o cão se uniram a ela.
- Vejo que seu gênio se suavizou. Surpreende-me que possa existir uma
personalidade tão perigosa dentro de uma cobertura tão frágil.
- Temo que se engane. - Serenity girou a cabeça para lhe olhar de forma fugaz -
Não quanto à personalidade, mas à fragilidade. Na realidade, sou bastante forte e não
cedo com facilidade.
- Talvez ainda não encontrou a fôrma de seu sapato. - respondeu ele e Serenity
concentrou toda sua atenção em um arbusto repleto de rosas - Decidiu ficar um tempo
entre nós?
- Sim - admitiu ela e se voltou para lhe olhar - embora tenha a impressão de que
gostaria que não o fizesse.
Christophe se encolheu de ombros em um gesto muito eloqüente.
- Pois não, mademoiselle. Seja bem vinda ao castelo por todo o tempo que desejar
permanecer nele.
- Seu entusiasmo me aflige - murmurou Serenity.
- “Pardon”?
- Nada. - Deixando escapar um suspiro elevou a cabeça e lhe olhou atrevidamente -
Me diga, monsieur, não lhe agrado porque pensa que meu pai era um ladrão ou se trata
de uma questão pessoal?
A expressão indiferente do rosto do Christophe não se alterou quando sustentou
impávido o olhar de Serenity.
- Lamento ter dado essa impressão, mademoiselle, minhas maneiras devem ser as
culpadas. Tratarei de ser mais cortês no futuro.
- Às vezes se mostra tão infernalmente cortês que me parece quase desagradável -
exclamou Serenity, perdendo o controle e golpeando o chão com o pé.
- Talvez julga que a rudeza é mais de seu agrado?
O conde elevou uma sobrancelha enquanto contemplava o estado de Serenity com
absoluta indiferença.
- Ah! - Ela se voltou com veemência, lhe dando as costas e estendendo a mão para
apanhar uma rosa - Droga! Maldita seja! - exclamou ao cravar o polegar em um espinho -
Olhe o que me fez fazer! – Levou o dedo ferido à boca sem olha-lo.
- Sinto muito - respondeu Christophe com um brilhe zombador nos olhos - foi uma
estupidez de minha parte.
- Você é arrogante e pomposo, e se acha superior ao resto da humanidade - acusou
Serenity agitando seus cachos.
- E você tem mau gênio, é mimada e obstinada - respondeu ele, entreabrindo os
olhos e cruzando os braços em seu peito.
Durante um momento os dois se olharam fixamente. O verniz de cortesia se
desprendeu ligeiramente do conde e Serenity pôde ver o homem cruel e excitante que se
ocultava debaixo da capa de fria indiferença.
- Bem, parece que ambos temos uma excelente opinião do outro depois de tão
pouco tempo de nos conhecermos - observou ela enquanto ordenava seus cachos
rebeldes - Quando chegarmos a nos conhecer melhor, certamente nos apaixonaremos
profundamente.
- Uma conclusão muito interessante, mademoiselle.
Com uma leve reverência, Christophe deu meia volta e tomou o caminho de volta ao
castelo. Serenity sentiu nesse momento uma inesperada mas tangível perda.
- Christophe! - chamou-lhe obedecendo a um impulso, desejando inexplicavelmente
esclarecer coisas entre os dois. Ele se voltou com uma expressão inquisitiva no rosto e
Serenity se adiantou para ele - Por que não podemos ser simplesmente amigos?
Ele olhou-a brevemente mas com tanta intensidade que Serenity sentiu que estava
lhe despindo a alma.
- Não, Serenity, temo que nós jamais seremos simplesmente amigos.
Ela observou a alta e magra figura que se afastava para o castelo, com o cão a seu
lado. Uma hora mais tarde, Serenity se reuniu com sua avó e Christophe para o café da
manhã, e a velha dama lhe perguntou como tinha passado a noite. A conversação
discorreu pelos caminhos corretos, embora bastante aborrecidos, e Serenity percebeu
que a condessa estava fazendo um esforço por atenuar a tensão que a confrontação da
noite anterior tinha produzido. Talvez, decidiu, não se considerava adequado iniciar uma
disputa perante um prato de croissants. "Que encantadoramente civilizados somos!"
Reprimindo um sorriso irônico, Serenity imitou a conduta de seus acompanhantes.
- Gostaria de explorar o castelo, Serenity, não é?
Elevando a vista enquanto deixava o pote de creme sobre a mesa, a condessa
revolveu seu café com uma mão perfeitamente manicurada.
- Sim, madame, eu adoraria - concordou Serenity com o esperado sorriso nos lábios
- Mais tarde me agradaria fazer alguns esboços do exterior, mas antes me fascinaria
conhecer seu interior.
- É claro. Christophe - disse, chamando a atenção do conde que bebia
displicentemente sua taça de café - esta manhã devemos acompanhar Serenity em sua
visita ao castelo.
- Nada seria mais de meu agrado, avó - disse ele, depositando a taça no pires de
porcelana a China - Mas temo que esta manhã estarei muito ocupado. O novo touro que
importamos chegará hoje e devo fiscalizar seu transporte.
- Ah, o gado! - A condessa suspirou e encolheu os ombros - Pensa muito no gado.
Tinha sido a primeira afirmação espontânea que Serenity percebeu desde sua
chegada ao castelo, e a registrou automaticamente.
- Então se dedicam à criação de gado?
- Sim - confirmou Christophe olhando-a fixamente - A criação de gado é o negócio
principal do castelo.
- É mesmo? - exclamou Serenity com exagerada surpresa - Não pensei que os
Kergallen se ocupassem de assuntos tão mundanos. Imaginava que se limitavam a
sentar-se e contar seus servos.
Os lábios de Christophe se curvaram ligeiramente e assentiu com a cabeça.
- Só uma vez ao mês. Os servos tendem a ser muito prolíficos.
Serenity riu, mas um segundo depois, quando o gesto sombrio de Christophe lançou
um sinal de alarme a seu cérebro, concentrou toda sua atenção no café que ainda ficava
dentro de sua xícara.
Finalmente, a condessa se encarregou em pessoa de acompanhá-la em seu passeio
pelo irregular castelo, lhe explicando sua história enquanto passavam de um assombroso
aposento a outro.
O castelo tinha sido construído no final do século XVII e, apesar de já ter quase
trezentos anos, não era considerado antigo segundo os cânones bretões. O castelo em si
e as propriedades circundantes tinham sido legados de geração em geração ao filho
primogênito e, embora se tivessem efetuado algumas reformas que o tinham
modernizado, era basicamente o mesmo que o primeiro conde de Kergallen viu ao
atravessar a ponte levadiça com sua esposa. Para o Serenity era a essência de um
encanto perdido e eterno. A fascinação e o imediato afeto que tinha experimentado ao ver
o castelo pela primeira vez não deixaram de aumentar à medida que avançava na
exploração de seus inumeráveis recantos.
Em uma galeria de retratos, Serenity descobriu a morena fascinação de Christophe
reproduzida ao longo dos séculos. Embora se percebessem certas variações de geração
em geração, permaneciam o inveterado orgulho, o porte aristocrático e aquele esquivo ar
misterioso. deteve-se diante de um dos antepassados do século XVIII, cuja semelhança
com Christophe era tão notável que a obrigou a aproximar-se do quadro para estudá-lo
atentamente.
- Acha Jean-Claude interessante, Serenity? - perguntou a condessa, seguindo a
trajetória de seu olhar - Christophe parece muito com ele, não acha?
- Sim, é assombroso.
Os olhos, julgou ela, eram muito seguros e muito vivos, e, a menos que se
equivocasse, a boca tinha conhecido um grande número de mulheres.
- Tinha fama de ser um pouco, digamos, selvagem - continuou a condessa com
indubitável admiração - Se diz que seu passatempo favorito era o contrabando. Era um
verdadeiro homem do mar. A história conta também que, encontrando-se na Inglaterra,
apaixonou-se perdidamente por uma mulher daquele país e, sem paciência suficiente
para manter com ela uma relação prolongada e formal, seqüestrou-a e a trouxe para o
castelo. Casou-se com ela, naturalmente, e ali pode ver seu retrato. - Assinalou uma
pintura que reproduzia os traços de uma moça inglesa de pele rosada e com uns vinte
anos - Não parece desventurada.
Depois deste último comentário, a velha condessa se afastou pelo corredor,
deixando Serenity absorta na contemplação do rosto sorridente de uma noiva raptada
fazia dois séculos.
O salão de baile era enorme e na parede mais afastada se viam grandes janelas
com vitrais. Outra parede estava totalmente revestida de espelhos e refletia os brilhantes
prismas dos três lustres que arrojavam emitindo luz como se fossem estrelas silenciosas
no teto sulcado por grosas vigas de madeira. Elegantes cadeiras de estilo Regência, de
respaldo rígido e belamente estofadas, distribuíam-se estrategicamente para aqueles
convidados que só desejam contemplar aos casais que dançassem sobre o chão
resplandecente. Serenity se perguntou se Jean-Claude tinha devotado um baile de bodas
para sua esposa Sabina, e decidiu que indubitavelmente assim o teria feito.
A condessa guiou Serenity ao longo de outro estreito corredor até uns elevados
degraus de pedra que ascendiam descrevendo uma espiral para a torre mais alta do
castelo. Embora a peça estivesse virtualmente nua, Serenity lançou uma exclamação de
alegria ao avançar para o centro da mesma e olhar a seu redor como se estivesse cheia
de tesouros. Era ampla e completamente circular, e estava bem ventilada. As altas
janelas que a circundavam permitiam que os radiantes raios do sol beijassem cada
recanto daquele espaço. Sem o menor esforço, imaginou a si mesma pintando naquele
lugar durante horas e desfrutando de uma assustadora solidão.
- Seu pai utilizava este local como estúdio - lhe informou a condessa com voz severa,
e Serenity abandonou suas fantasias e se voltou para enfrentar a sua avó.
- Madame, se seu desejo for que eu permaneça no castelo, acredito que devemos
chegar a um acordo. Se não pudermos fazê-lo, não terei nenhuma alternativa a não ser
partir. - Conseguiu manter a voz em um tom firme, controlado e severamente cortês, mas
seus olhos delatavam a luta que fazia para não discutir - Eu amava meu pai e também
minha mãe. Não vou tolerar o tom que você emprega quando se refere a ele.
- Em seu país é normal que um jovem se dirija a seus idosos como você o faz?
A régia cabeça da anciã se elevou com orgulho e sua irritação era evidente.
- Só posso falar por mim mesma, madame - respondeu Serenity, erguendo-se sob o
dourado resplendor do sol - E não compartilho a opinião de que a idade implique
necessariamente sabedoria. E tampouco sou tão hipócrita para aparentar que estou de
acordo com você, enquanto se dedica a insultar um homem a quem amei e respeitei mais
que a qualquer outra pessoa.
- Talvez seja conveniente que não falemos de seu pai enquanto viver conosco.
A réplica da condessa era, obviamente, uma ordem, e Serenity sentiu que fervia de
fúria.
- Eu acredito justamente o contrário, madame. Estou decidida a descobrir o que foi o
que ocorreu com essa Madonna do Rafael e a lavar esse estigma que você pôs sobre
seu nome.
- E como pensa consegui-lo?
- Não sei, - respondeu ela - mas o farei. - Começou a andar pela sala e estendeu as
mãos em um gesto absolutamente francês - Talvez se ache oculto no castelo ou,
possivelmente alguma outra pessoa o tenha. - voltou-se para a condessa com um
arrebatamento de fúria repentina - Ou talvez você vendeu a pintura e fez recair a culpa
sobre meu pai.
- É insultante! - exclamou a condessa e a ira se fez evidente em seus olhos azuis.
- Você chama a meu pai ladrão e diz que eu sou insultante? - replicou Serenity,
sustentando o olhar da condessa com o mesmo fogo - Eu conhecia o Jonathan Smith,
condessa, e ele não era um ladrão, mas a você não a conheço.
A condessa observou durante um momento e em silêncio a jovem, enquanto as
chamas azuis de seus olhos se convertiam em um olhar reflexivo.
- Isso é verdade - reconheceu com um leve assentimento - Você não me conhece e
eu não te conheço. E se ainda somos duas estranhas não posso fazer recair a culpa
sobre sua cabeça. E tampouco posso te culpar por algo que ocorreu antes que nascesse.
A anciã se dirigiu para uma das janelas e observou a paisagem.
- Não mudei que opinião quanto a seu pai - disse finalmente e, voltando-se, elevou
uma mão para interromper a réplica do Serenity - Mas temo que não fui justa no que
concerne a sua filha. Você, uma desconhecida, veio a meu lar porque eu te convidei, e
meu comportamento deixou muito a desejar. Peço desculpas por isso. - Seus magros
lábios se curvaram em um sorriso - Se estiver de acordo, não voltaremos a mencionar o
passado até que nos conheçamos melhor.
- Muito bem, madame.
Serenity se mostrou de acordo, sentindo que tanto a solicitude como as desculpas
eram uma espécie de bandeira de paz.
- Tem um coração sensível acompanhado de um espírito indomável - observou a
venerável anciã e no tom de sua voz se percebia certa aprovação - É uma boa
combinação. Mas também tem um gênio muito vivo, sabia?
- Evidentemente - admitiu Serenity.
- Christophe também é muito dado aos humores e aos súbitos rompantes de mau
gênio - lhe informou a condessa trocando de tema - é forte e obstinado, e necessita uma
esposa igualmente forte, mas que tenha o coração sensível.
Serenity se sentiu perplexa ante a ambígua afirmação de sua avó.
- Compadeço-a - começou a dizer Serenity, mas logo entreabriu os olhos quando a
sombra de uma dúvida cresceu em seu cérebro - Madame, o que têm que ver comigo as
necessidades de Christophe?
- Ele já chegou à idade em que todo homem necessita uma esposa - disse
simplesmente a condessa - E você superou a idade em que a maioria das mulheres bretã
já está casada e criando uma família.
- Só sou meio bretã - recordou-lhe ela, distraindo-se por um instante do núcleo da
conversação, e seus olhos se abriram de surpresa - Certamente você não... não estará
pensando que Christophe e eu...? Oh, que belamente ridículo! - pôs-se a rir e o estridente
riso retumbou nas paredes nuas - Madame, lamento desiludi-la, mas ao conde não
interesso absolutamente. Não lhe caí em graça do momento em que me viu na estação, e
eu também me vejo obrigada a admitir que ele me resulta indiferente.
- O que tem que ver tudo isso com o que eu disse? —perguntou a condessa,
enquanto descartava as palavras de Serenity com um leve movimento de sua mão.
Serenity deixou de rir e meneou a cabeça com incredulidade ao descobrir as
intenções de sua avó.
- Já falou com o conde de todo este assunto, condessa?
- Sim, certamente - reconheceu a condessa. Serenity fechou os olhos e se sentiu
transbordada de fúria e humilhação.
- Não me impressionaria se Christophe me rechaçasse, se apenas me viu... entre
esta absurda situação e o que ele pensa de meu pai! - Afastou o olhar de sua avó e
rapidamente se voltou para ela com crescente indignação - Você passou dos limites,
condessa. Faz já muito tempo que os matrimônios arranjados passaram à história.
- Hã! - A exclamação pretendia ignorar as palavras de Serenity—. Christophe é
muito orgulhoso para aceitar algo que tenha sido disposto por outra pessoa e vejo que
você também é feita da mesma madeira. Mas - um leve sorriso iluminou o rosto anguloso
enquanto Serenity a olhava com olhos incrédulos - é uma jovem muito atraente e
Christophe é um homem viril e encantador. Talvez a natureza... como se diz?... siga seu
curso.
Serenity só pôde observar boquiaberta o rosto inescrutável da condessa.
- Vê. - A anciã caminhou para a porta. - Ainda fica muito por ver.
Capítulo 4

A tarde estava quente e Serenity sentia que fervia de raiva. A indignação se


estendeu de sua avó a Christophe e, quanto mais pensava nas palavras da condessa,
mais irritada se sentia com ele.
"Aristocrata insensível e vaidoso! - pensou. O lápis corria com violência pelo papel
enquanto esboçava as torres do castelo - Preferiria me casar com Atila, rei dos hunos, a
fazê-lo com esse caipira irritante!" Serenity rompeu a quietude do meio-dia com um
sorriso. "A condessa provavelmente está imaginando dezenas de condes e condessas
em miniatura que praticam pequenos jogos formais no jardim e crescem para continuar a
linhagem imperial no melhor estilo bretão..."
"Que lugar maravilhoso para criar filhos - pensou, deixando descansar o lápis e
suavizando o olhar - É tão belo, tranqüilo e puro." Um profundo suspiro encheu o ar e ela
se sobressaltou. Logo, ao dar-se conta que tinha vindo de seus próprios lábios, franziu
furiosamente o cenho. "A condessa Serenity de Kergallen - disse em voz baixa e sua
expressão se tornou mais sombria - Esse dia nunca chegará!"
Um movimento chamou sua atenção e voltou cabeça entrecerrando os olhos por
causa da luz do sol. Christophe se aproximava dela. Seus passos eram largos e seguros
e cruzou o prado com ritmo suave de membros e músculos. "Caminha como se o mundo
lhe pertencesse", observou ela admirada e ressentida. Quando Christophe chegou a ela,
o ressentimento se impôs claramente à admiração.
- Você!
Sua severa exclamação surgiu de seus lábios e se incorporou ao suave leito ervas,
erguendo-se como um anjo esbelto vingador, dourado e reluzente.
Christophe pareceu surpreso pelo tom de voz de Serenity, mas o seu foi suave
controlado.
- Há algo que a incomoda, mademoiselle?
O gelo de sua voz só serviu para avivar o fogo de sua ira, e Serenity abandonou
toda dignidade.
- Sim, estou muito incomodada! Sabe muito bem que estou incomodada! Por que
não me falou dessa ridícula idéia que a condessa colocou na cabeça?
- Ah. - Christophe elevou as sobrancelhas e seus lábios curvaram em um sorriso
sardônico – “Alors”, avó lhe informou de seus planos para nossa união matrimonial. E
quando, querida minha, anunciarão os esponsais?
- Você é um presunçoso... - replicou-lhe, incapaz de encontrar o insulto mais
apropriado - Já o que pode fazer com seus esponsais! Não aceitaria nem de presente!
- Pois - respondeu ele assentindo com a cabeça - Por fim nos pusemos de acordo.
Não tenho nenhum interesse em me unir a uma malcriada desbocada. Quem a batizou
Serenity evidentemente não via além de seu nariz.
- Você é o homem mais detestável que conheci em minha vida! - exclamou ela, e
sua atitude irascível contrastava com o frio comportamento de Christophe - Não suporto a
idéia de ter que vê-lo todos os dias!
- Então decidiu interromper sua breve visita e retornar aos Estados Unidos?
Serenity elevou o queixo e meneou lentamente a cabeça.
- Oh, não, senhor conde, ficarei aqui. Tenho motivos para permanecer no castelo,
que superam com folga minha aversão por você.
Os olhos escuros do conde se converteram em duas linhas enquanto estudava
atentamente o rosto do Serenity.
- Parece que a condessa acrescentou um punhado de francos para conseguir que
se tornasse mais complacente.
Serenity o olhou sobressaltada até que o significado de suas palavras se revelasse
em seu cérebro, fazendo que suas bochechas se tingissem de vermelho e uma sombra
velasse seus olhos ambarinos. Elevou uma mão e esbofeteou-o com todas suas forças
para em seguida girar sobre seus calcanhares e correr para o castelo. Umas mãos
poderosas se fecharam sobre seus ombros obrigando-a a dar a volta, esmagando-a
contra o corpo rígido de Christophe, enquanto lábios dele desciam sobre os seus em um
beijo brutal e destinado a castigá-la.
O impacto foi elétrico, como uma luz violenta que rasgasse a escuridão para logo
extinguir-se. Durante um momento, permaneceu flácida contra ele, incapaz de sair à
superfície de uma escuridão transbordante de calor e desejo. Sua respiração já não lhe
pertencia e Serenity compreendeu que ele estava roubando inclusive isso, por isso
começou a golpear seu peito com punhos impotentes, aterrorizada ante a possibilidade
de ficar apanhada para sempre naquela terrível escuridão.
Os braços de Christophe a circundaram, acomodando a suavidade das formas dela
contra o rígido e imóvel perfil do corpo dele, fundindo-os em uma só apaixonada forma. A
mão de Christophe deslizou até acariciar sua nuca com dedos firmes e obrigando-a a
manter imóvel a cabeça, enquanto o outro braço rodeava sua cintura e prolongava seu
domínio total.
Os esforços que Serenity realizava para livrar-se de seu abraço escorregavam sobre
ele como se ela não se movesse, fazendo ainda mais evidente sua força e a violência
que pulsava debaixo da superfície. Sentiu que a boca de Christophe a obrigava a abrir os
lábios em um assalto veemente que explorava sua boca com uma intimidade que não
conhecia misericórdia ou compaixão. O aroma de almíscar de sua masculinidade
embriagava os sentidos de Serenity, aturdindo sua vontade e sua mente, e acreditou
ouvir misteriosamente a sua avó enquanto descrevia o falecido conde que era a viva
imagem de Christophe. "Selvagem", disse sua avó. Selvagem.
Christophe afastou sua boca e manteve suas grandes mãos nos ombros de Serenity,
enquanto olhava profundamente seus olhos nublados e confusos. Durante um instante o
silêncio flutuou entre ambos, como um muro de calor.
- Quem lhe deu autorização para fazer isso? - perguntou ela com voz trêmula e
levou mão à cabeça para que deixasse de girar.

- Era isso ou lhe devolver a bofetada, mademoiselle - disse Christophe e, pelo tom
de voz e a expressão de seu rosto, Serenity pôde comprovar que ele ainda não tinha
completado a transformação de pirata a aristocrata - Desgraçadamente, tenho certa
aversão a golpear a uma mulher, por mais que o mereça.
Serenity se separou dele, sentindo que as traiçoeiras lágrimas afloravam em seus
olhos e lutavam por derramar-se.
- Da próxima vez pode me esbofetear. Prefiro.
- Se voltar a me elevar a mão, querida prima, pode estar segura de que lhe
machucarei algo mais que o orgulho - prometeu ele.
- Você mereceu - replicou Serenity mas a temeridade de suas palavras se viu
atenuada por seus grandes olhos ambarinos que brilhavam tenuemente como dourados
lagos de luz - Como se atreve a me acusar de ter aceitado dinheiro para ficar no castelo?
Ocorreu a você alguma vez que eu pudesse desejar conhecer uma avó de cuja existência
não soube até uns meses atrás? Pensou alguma vez que eu pudesse desejar conhecer o
lugar onde meus pais se conheceram e se apaixonaram? Que preciso ficar e provar a
inocência de meu pai? - Grandes lágrimas escaparam de seus olhos e rodaram pelas
suaves bochechas, e Serenity desprezou cada uma das gotas de sua debilidade - Só
desejaria ter golpeado com mais força. O que teria feito se alguém tivesse acusado a
você de ter-se deixado comprar como um pedaço de carne?
Christophe observou o percurso descendente de uma lágrima até que ficou detida
na acetinada pele e um leve sorriso surgiu no canto de seus lábios.
- Teria golpeado sem duvida, mas acredito que suas lágrimas são um castigo muito
mais efetivo que os punhos.
- Eu não emprego as lágrimas como uma arma - Serenity enxugou o rosto com o
dorso da mão e desejou poder reprimir as lágrimas.
- Não, e devido a isso são muito mais potentes - Um dedo comprido e bronzeado
tirou uma gota da alva pele e o contraste de cores lhe conferiu uma aparência delicada e
vulnerável. Christophe afastou rapidamente sua mão e acrescentou com indiferença -
Minhas palavras foram injustas e lhe peço desculpas. Acredito que nós dois recebemos
nosso castigo, de modo que agora estamos... como se diz? Em paz?
Presenteou-lhe com seu estranho e encantador sorriso, e Serenity olhou-o,
fascinada por seu poder e comovida pela mudança positiva que conferia a seu rosto. Ela
respondeu com seu próprio sorriso e foi como um repentino raio de sol através do véu da
chuva. Christophe lançou um pequeno som de impaciência, como se lamentasse o
momentâneo lapso e, depois de um leve movimento de cabeça, girou sobre seus
calcanhares e se afastou pelo atalho, deixando-a só e perplexa.

Durante o jantar a conversação discorreu por leitos estritamente formais, como se o


assombroso bate-papo na torre e o fogoso encontro nos jardins do castelo jamais
tivessem acontecido. Serenity se sentiu maravilhada pela compostura de seus
acompanhantes enquanto falavam de “langoustes a la creme”. Se não fosse pelo fato de
que seus lábios ainda sentiam o fogo dos lábios de Christophe, poderia jurar que tinha
imaginado o ardente e perturbador beijo que ele deu em sua boca. Aquele beijo tinha
avivado uma íntima sensação de resposta alterando sua gélida indiferença muito mais do
que ela estava disposta a admitir.
Mas isso não significava absolutamente nada, insistiu Serenity silenciosamente, e se
dedicou a comer com gosto a lagosta que descansava em seu prato. Não era a primeira
vez que um homem a beijava e tampouco seria a última. Não estava disposta a permitir
que um tirano voluntarioso lhe preocupasse nem mais um segundo. Aproximando-se da
tarefa de incorporar-se ao jogo da rígida formalidade, Serenity bebeu lentamente e fez um
comentário sobre o vinho.
- Gosta? - Christophe se somou a seu comentário com voz igualmente neutra - É o
Muscadet que produzimos nos vinhedos do castelo. Embora só produzimos uma pequena
quantidade a cada ano, destinada a nosso consumo, e outra para os vizinhos.
- Eu gosto muito - comentou Serenity - Que excitante poder desfrutar de um vinho
cultivado em vinhedos próprios. Nunca tinha provado algo semelhante.
- O Muscadet é o único vinho que se produz na Bretanha - informou a condessa com
um sorriso - é uma região cuja riqueza provém do mar e das rendas.
Serenity deslizou com admiração um dedo sobre a imaculada toalha branca que
cobria a mesa de carvalho.
- As rendas da Bretanha são maravilhosas. Parecem tão frágeis e, entretanto, os
anos não fazem mais que aumentar sua beleza.
- Como em uma mulher - murmurou Christophe e Serenity elevou a vista para
encontrar seu olhar escuro.
- Mas também têm o gado - disse Serenity, mudando de assunto para superar sua
momentânea confusão.
- Ah, o gado.
Os lábios de Christophe se curvaram e Serenity teve a desagradável sensação de
que ele era consciente do efeito devastador que exercia nela.
- Vivi toda a minha vida em uma cidade e, portanto, ignoro quando se refere ao gado
- continuou Serenity, cada vez mais desconcertada pela intensidade de seu olhar - Estou
certa de que as cabeças de gado compõem um belo quadro enquanto pastoreiam na
campina.
- Acredito que devemos apresentar a campina bretã - interveio a condessa, atraindo
a atenção de Serenity - Talvez amanhã queira dar um passeio para conhecer toda a
propriedade.
- Eu adoraria, madame. Estou certa de que será uma agradável mudança depois
das calçadas e dos edifícios do governo.
- Será uma honra para mim acompanhá-la, Serenity - se ofereceu Christophe.
Serenity se surpreendeu com o oferecimento do conde. Voltou-se para ele e em seu
rosto se refletiram fielmente seus sentimentos. Ele sorriu e inclinou levemente a cabeça.
- Tem roupas adequadas?
- Roupas adequadas? - repetiu ela e a surpresa se mesclou com a confusão. -
Naturalmente. - Ele pareceu divertir-se com suas mudanças de expressão e seu sorriso
se fez mais amplo - Seu gosto para a roupa é impecável, mas acredito que achará
bastante incômodo montar a cavalo com esse vestido.
Serenity baixou a vista para seu delicado vestido em tons verdes antes de olhar
novamente Christophe.
- A cavalo? - perguntou franzindo o cenho.
- Não se pode percorrer nossa propriedade de carro, “ma petite”. O cavalo é mais
apropriado.
Serenity se enrijeceu ante o brilho zombador que havia nos olhos de Christophe.
- Devo dizer que não sei montar a cavalo.
- “C'est impossible!” - exclamou a condessa com incredulidade - Gaelle era uma
magnífica amazona.
- Talvez as habilidades eqüestres não se herdem, madame - sugeriu Serenity,
divertida pela expressão de sua avó - Não sou absolutamente uma amazona. Nem
sequer posso controlar um pônei em um carrossel.
- Eu lhe ensinarei como fazê-lo.
As palavras de Christophe eram mais uma afirmação que um oferecimento. Serenity
se voltou para ele e a diversão se converteu em arrogância.
- Muito amável de sua parte, monsieur, mas não tenho nenhum desejo de aprender
a montar a cavalo. Não se incomode.
- Não obstante - disse ele deixando a taça sobre a mesa - o fará. Estará pronta às
nove, não é mesmo? Receberá sua primeira lição.
Serenity lhe olhou fixamente, atônita pelo pouco caso que ele tinha feito de sua
relutância em montar a cavalo.
- Acabo de lhe dizer que...
- Trate de ser pontual, “chérie” - lhe advertiu ele com preguiça enquanto ficava em
pé - Será mais cômodo caminhar até as cavalariças que ser arrastada por seus
maravilhosos cabelos loiros. - Christophe sorriu como se esta última possibilidade lhe
causasse um infinito prazer - Boa noite, avó - acrescentou com sincero afeto antes de
abandonar o salão, deixando Serenity fervendo em fúria e a condessa absolutamente
encantada.
- Maldito seja! - exclamou Serenity quando finalmente pôde articular uma palavra.
Voltou seu furioso olhar para a condessa e acrescentou em tom desafiante - Se ele pensa
que vou lhe obedecer mansamente...
- Seria muito inteligente de sua parte que lhe obedecesse, mansamente ou de
qualquer outra forma - a interrompeu a anciã - Quando Christophe coloca algo na
cabeça... - Com um breve mas significativo gesto deixou que a imaginação de Serenity
acabasse a frase - Suponho que tem umas calças. Bridget entregará um par de botas de
montar que pertenceram à sua mãe.
- Madame - começou a dizer Serenity lentamente como quisesse se certificar de que
cada palavra fosse entendida sem possibilidade de equívoco - não tenho intenção de
subir em um cavalo amanhã pela manhã.
- Não seja tola, menina. - Uma mão magra e cheia de anéis recolheu com
displicência a taça de vinho - Christophe é muito capaz de levar a cabo sua ameaça. É
um homem muito obstinado. - A condessa sorriu e, pela primeira vez, Serenity sentiu uma
onda de afeto - Talvez inclusive mais obstinado que você.

Serenity calçou as fortes botas que tinham sido de sua mãe enquanto murmurava
terríveis insultos. As botas tinham sido escovadas e lustradas até lhes dar um negro
reluzente e se ajustaram a seus magros pés como se tivessem sido fabricadas para ela.
"Parece que você também está conspirando contra mim, mamãe", protestou
Serenity em meio a seu desespero. Em seguida exclamou "entre" quando alguém bateu
na porta do aposento. Não era a criada Bridget, quem abriu a porta, mas Christophe,
arrumado com despreocupada elegância e vestindo suas calças de montar cor canela e
uma camisa branca.
- Que deseja? - perguntou Serenity com manifesto mau humor, enquanto calçava a
segunda bota com um firme puxão.
- Simplesmente comprovar se é pontual, Serenity - disse Christophe com um sorriso
e seus olhos zombadores percorreram seu rosto rebelde e o corpo magro e flexível,
vestido com uma camiseta estampada e jeans franceses.
Serenity ficou em pé em atitude defensiva e desejando que ele não a olhasse
sempre como se tentasse memorizar cada traço.
- Estou preparada, capitão Bligh, mas temo que lhe decepcionarei como aluna.
- Isso veremos, “ma chérie”. —Os olhos de Christophe voltaram a deslizar por seu
corpo como se estivesse acariciando-a - Parece muito capaz de seguir umas poucas e
simples instruções.
Os olhos de Serenity se apertaram até formar duas ranhuras e se viu forçada a lutar
contra o acesso de ira que ele tinha o costume de provocar.
- Sou uma mulher razoavelmente inteligente, obrigado, mas eu não gosto que me
intimidem.
- “Pardon”?
A expressão confusa de Christophe provocou o sorriso de Serenity.
- Terei que recordar muitas expressões coloquiais, primo. Talvez, lentamente, possa
enlouquece-lo.
Serenity acompanhou Christophe às cavalariças em silêncio, alargando
deliberadamente seus passos para que coincidissem com o modo de andar do conde e
reprimindo a necessidade de ter que correr atrás dele como se fosse um cachorrinho.
Quando chegaram ao edifício anexo ao castelo, um cavalariço saiu dos estábulos
levando dois cavalos convenientemente selados e com rédeas. Um era completamente
negro e o outro era um baio quase branco e, aos olhos apreensivos de Serenity, ambos
os animais eram enormes.
Deteve-se subitamente e observou os cavalos com certa dúvida. "Certamente, ele
não me arrastará pelos cabelos", pensou.
- Se eu dissesse para dar meia volta e retornar por onde viemos, o que você faria? -
perguntou com voz sonora.
- Não teria outra alternativa que obrigá-la a retornar, “ma petite”.
As sobrancelhas escuras de Christophe se elevaram ao observar a expressão de
Serenity, revelando que já tinha previsto essa pergunta.
- O cavalo negro é, obviamente, o seu, conde - disse Serenity com um fio de voz,
lutando para controlar o pânico que se apoderava dela - Posso imaginar o galopando pelo
campo à luz da lua, e com o resplendor de um sabre no quadril.
- É você muito ardilosa, mademoiselle. - Christophe assentiu e, agarrando as rédeas
do baio das mãos do cavalariço, levou o cavalo até onde ela se encontrava. Serenity
retrocedeu involuntariamente e respirou com dificuldade.
- Suponho que deseja que eu suba nesse cavalo...
- Égua - corrigiu ele, curvando zombeteiramente os lábios.
Serenity lhe lançou um olhar flamejante, sentindo-se irritada e incomodada com sua
própria apreensão.
- Não estou interessada no sexo. - Olhou novamente o cavalo e voltou a respirar -
Ela é... é muito grande.
Sua voz soou muito mais fraca do que desejava.
- Babette é tão dócil quanto Korrigan - lhe assegurou Christophe em um tom de voz
inesperadamente paciente - Você gosta de cães, não é mesmo?
- Sim, mas...
- É uma égua tranqüila, não acredita? - agarrou a mão de Serenity e a elevou até
tocar a suave queixada de Babette - Tem bom coração e só deseja agradar a seu
cavaleiro.
A mão de Serenity ficou presa entre a pele suave do animal e a dura insistência da
palma de Christophe, e descobriu que essa combinação era estranhamente agradável.
Relaxou e permitiu que ele guiasse sua mão sobre a égua. Serenity virou a cabeça por
cima do ombro e sorriu.
- Parece mansa - começou a dizer, mas a égua soprou por suas amplas narinas e
Serenity gaguejou até apoiar-se no peito de Christophe.
- Calma, “chérie” - disse ele com voz suave enquanto a agarrava pela cintura para
acalmá-la - Babette só está dizendo que gosta de você.
- Assustei-me, isso é tudo - disse Serenity. Mas seu comentário foi defensivo e se
sentiu desgostada com ela mesma, decidindo que era agora ou nunca. Voltou-se para lhe
dizer que estava preparada para começar a aula de equitação mas se encontrou sem
palavras, olhando seus olhos escuros e enigmáticos enquanto ele seguia agarrando-a
pela cintura.
Serenity sentiu que seu coração detinha seu ritmo pausado, permanecendo imóvel
durante um instante, e então se acelerava violentamente.
Por um momento acreditou que ele voltaria a beijá-la e, ante seu próprio
desconcerto, compreendeu que desejava sentir o contato de seus lábios mais que
qualquer outra coisa no mundo. De repente, Christophe franziu o cenho e a liberou de
seu abraço com um gesto abrupto.
- Agora começaremos a aula.
Com atitude fria e controlada assumiu sem esforço sua condição de instrutor.
O orgulho se impôs sobre Serenity e decidiu ser uma aluna modelo. Reprimindo sua
ansiedade, permitiu que Christophe a ajudasse a montar. Com certa surpresa, comprovou
que o chão não estava tão longe como ela tinha imaginado em princípio e prestou
atenção às instruções de Christophe. Fez tudo o que ele dizia e se concentrou em
obedecer exatamente suas indicações, decidida a não ficar novamente como uma parva.
Serenity observou Christophe quando ele montou em seu corcel e invejou sua
elegância e sua economia de movimentos. O brioso alazão harmonizava perfeitamente
com o cavaleiro moreno e altivo, e Serenity pensou, com certo desgosto, que nem sequer
Tony nos momentos mais ardentes a tinha impressionado como o tinha feito este homem
estranho e remoto com seus perturbadores olhares.
Não podia sentir-se atraída por ele, refletiu com irritação, Christophe era muito
imprevisível e, Serenity compreendeu subitamente que ele podia feri-la como nenhum
homem tinha sido capaz de feri-la em toda sua vida. "Além disso, pensou, eu não gosto
de sua atitude dominante e altiva."
- Decidiu dormir uma pequena sesta, Serenity? - A voz zombadora de Christophe a
tirou de suas especulações e sentiu que se ruborizava apesar de seus esforços por evitá-
lo - Em marcha, “chérie”.
A cor de suas bochechas se tornou mais intensa ao perceber o sorriso de
Christophe quando ele dirigiu seu cavalo afastando-se das cavalariças e precedendo-a
com passo lento.
Ambas as cavalgaduras partiam ao mesmo tempo e, à luz de uns minutos, Serenity
relaxou sobre arreios. Guiou a égua segundo as instruções que lhe transmitia Christophe,
e o animal respondeu com suave obediência. Sentia-se cada vez mais segura,
permitindo-se admirar a paisagem e desfrutar da carícia do sol sobre seu rosto e o
cadencioso ritmo da égua debaixo dela.
- Agora trotaremos um pouco - ordenou Christophe de repente, e Serenity voltou a
cabeça para lhe observar seriamente.
- Talvez meu francês não seja tão bom quanto supunha. Você disse trotar?
- Seu francês é excelente, Serenity.
- Estou desfrutando plenamente deste passeio - disse ela com um leve encolhimento
de ombros - Não tenho nenhuma pressa.
- Você deve mover-se você seguindo o ritmo da égua - a instruiu ele, ignorando
deliberadamente suas palavras.
- Eleve-se com cada passo do animal. Faça pressão com os calcanhares.
- Escute...
- Tem medo? - perguntou Christophe com tom zombador.
Antes que o bom senso pudesse suplantar seu orgulho, Serenity meneou a cabeça
apertou os calcanhares contra o flanco do animal.
"Isto é o que se deve sentir quando se utiliza um desses malditos martelos
perfuradores que sempre estão fazendo buracos nas ruas", pensou Serenity ofegando,
bamboleando-se desajeitadamente com o trote da égua.
- Deve seguir o ritmo do trote – recordou-a Christophe, e Serenity estava muito
concentrada em sua difícil situação para perceber o amplo sorriso que acompanhou as
palavras de Christophe.
Passados uns minutos abrandou o passo do animal.
- Como se sente? - perguntou ele enquanto cavalgavam juntos pelo enlodado atalho.
- Bom, agora que meus ossos deixaram estalar, não é tão mau quanto eu tinha
imaginado. De fato, é bastante divertido - acrescentou com um sorriso.
- Bem. Agora já podemos nos lançar a um meio galope - disse ele simplesmente, e
Serenity lançou um olhar implorante.
- Realmente, Christophe, se quer me assassinar por que não tenta algo mais
simples, como veneno ou uma apunhalada nas costas.
Christophe riu e um som rico e pleno alagou a quieta manhã reverberando na brisa.
Quando voltou a cabeça e lhe sorriu, Serenity sentiu que o mundo dava voltas e que seu
coração, ignorando as advertências do cérebro, estava irremediavelmente perdido.
- “Allons”, valente amazona. - Sua voz era alegre, despreocupada e contagiosa -
Aperte os calcanhares e lhe ensinarei a voar.
Seus pés obedeceram instantaneamente e a égua respondeu, lançando-se a um
suave e fácil galope. O vento jogava com o cabelo de Serenity e acariciava suas
bochechas com dedos frios. Sentiu que cavalgava sobre uma nuvem e não estava segura
se a leveza era o resultado do vento ou da vertigem do amor. Fascinada pela novidade
de ambas as sensações, não lhe deu nenhuma importância.
Obedecendo a ordem dada por Christophe, puxou das rédeas obrigando a égua a
diminuir a velocidade e que trotasse uns metros antes de deter-se. Elevou o rosto para o
céu e suspirou profundamente de prazer, antes de voltar-se para Christophe. O vento e a
excitação tinham tingido de rosa suas bochechas, seus olhos tinham reflexos dourados e
estavam muito abertos, e tinha o cabelo revolto, como se fosse um turbulento halo que
rodeava sua felicidade.
- Você apreciou, mademoiselle?
Serenity lhe olhou com olhos brilhantes e um amplo sorriso distendeu seus lábios.
Sentia-se intoxicada pelo potente vinho do amor.
- Vamos, diga que já tinha me avisado. Tem toda a razão.
- “Mais non, chérie”, é simplesmente o prazer que produz comprovar que uma aluna
progride com tanta velocidade e talento. - Christophe lhe devolveu o sorriso e a barreira
invisível que se levantou entre eles se esfumou repentinamente - Você se move com
naturalidade sobre a sela. Enfim, é provável que o talento seja algo genético.
- Oh, monsieur! - Serenity fez vibrar as pestanas com um olhar travesso - Devo
crédito às palavras de meu professor.
- Seu sangue francês começa a aparecer, Serenity, mas sua técnica necessita
prática.
- Não é muito boa, não é mesmo? - Afastando franja, Serenity lançou um profundo
suspiro - Suponho que nunca o conseguirei totalmente, houve muitos puritanos entre os
antepassados de meu pai.
- Puritanos? - a risada de Christophe voltou a alterar a quietude da manhã – “Chérie”,
nunca houve um puritano tão cheio de fogo.
- Tomarei como um elogio embora, sinceramente, duvido que essa tenha sido a
intenção. - Voltando a cabeça, Serenity olhou do topo da colina para o vale que se
estendia debaixo deles - Oh, que paisagem tão maravilhosa!
Uma cena de cartão postal se avistava à distância: suaves colinas salpicadas de
gado que pastava tranqüilamente, contra um fundo formosas casas de campo. Um pouco
mais à frente, Serenity descobriu um pequeno povoado, uma diminuta cidade de
brinquedo colocada ali por uma mão gigante, dominada por uma igreja branca cujo
campanário se elevava para o céu.
- É perfeito - exclamou - É como retroceder no tempo. - Seus olhos voltaram a
posar-se no distante gado - Esses animais são seus? - perguntou, abrangendo-os com
um amplo gesto de sua mão.
- Sim -disse Christophe.
- Então, todas estas terras formam parte da propriedade? - voltou a perguntar,
sentindo um súbito sufoco.
- Isto só é uma parte de nossa propriedade.
A resposta de Christophe foi acompanhada de um leve encolhimento de ombros.
"Cavalgamos durante vários quilômetros, - pensou Serenity enrugando a testa - e ainda
estamos em suas terras. Só Deus sabe quanto se estendem em outras direções. Por que
não pode ser um homem como todos os outros?" Voltando a cabeça, estudou o perfil
aquilino do altivo conde de Kergallen. “Mas ele não é um homem comum – recordou - É o
conde de Kergallen, amo de tudo o que se divisa desde esta colina, e não devo esquecê-
lo." Seu olhar voltou a posar-se no vale. "Não quero me apaixonar por ele." Engolindo
para eliminar a súbita secura da garganta, Serenity utilizava as palavras com uma defesa
contra os desejos de seu coração.
- Que maravilhoso é possuir tanta beleza.
Christophe a olhou e franziu o cenho para ouvir as palavras que Serenity acabava
de pronunciar.
- A gente não pode possuir a beleza, Serenity; somente pode cuidá-la e apreciá-la.
Serenity lutou contra a calidez que emanava de suas suaves palavras, mantendo os
olhos fixos no vale.
- É mesmo? Eu tinha a impressão de que vocês, os aristocratas, davam todas essas
coisas por fatos. - Serenity fez um amplo gesto que varreu a paisagem – Além do mais,
isto só é seu direito.
- Você não gosta da aristocracia, Serenity, mas também leva sangue de aristocrata
em suas veias. - Sua expressão severa se alterou ligeiramente com um lento sorriso que
suavizou seus traços sombrios e o tom de sua voz era tranqüilo - O pai de sua mãe era
conde, embora todas suas propriedades tenham sido destruídas durante guerra. A
Madonna de Rafael foi um dos poucos tesouros que sua avó pôde salvar quando fugiram.
"O maldito Rafael outra vez!", pensou Serenity com aparente melancolia.
Christophe estava irritado. Serenity pôde percebê-lo pelo duro brilho de seus olhos e
se sentiu estranhamente agradada. Seria muito mais fácil controlar seus sentimentos
para ele se ambos mantivessem suas divergências.
- De modo que essa circunstância me converte em meio camponesa e meio
aristocrata - replicou ela, encolhendo os ombros - Bem, querido primo, eu prefiro minha
metade camponesa. Deixarei a você o sangue azul que corre nas veias de minha família.
- Mademoiselle, você faria muito bem em não esquecer que não existem laços de
sangue entre nós. - A voz de Christophe era grave e, observando seus olhos
entrecerrados, Serenity sentiu temor - Os Kergallen são famosos por seu costume de
tomar tudo aquilo que desejam, e eu não sou precisamente uma exceção. Sugiro-lhe que
cuide a forma em que utiliza seus olhos ambarinos.
- Essa advertência é absolutamente desnecessária, monsieur. Posso cuidar muito
bem de mim mesma.
Christophe sorriu, lenta e confidentemente, e seu sorriso foi mais enervante que uma
resposta colérica. Então, fazendo girar seu alazão, tomou o caminho de volta para o
castelo.
A cavalgada de volta foi acompanhada de um incômodo silêncio, quebrado só
ocasionalmente pelas instruções de Christophe. Os dois haviam tornado a cruzar suas
espadas e Serenity se viu obrigada a admitir que ele tinha evitado sua estocada com
absoluta facilidade.
Quando chegaram à cocheira, Christophe desmontou com sua elegância habitual,
entregou as rédeas ao cavalariço e a ajudou a descer da égua antes que Serenity
pudesse imitar seus movimentos.
Com gesto desafiante, Serenity ignorou a rigidez de suas extremidades quando ele
rodeou sua cintura com os braços e a depositou brandamente no chão. As mãos fortes e
magras de Christophe permaneceram em sua cintura durante um momento e ele a olhou
intensamente antes de libera-la de um contato que parecia queimá-la através do fino
tecido da camiseta.
- Vá tomar um banho quente - ordenou ele - Isso ajudará a relaxar a rigidez que
certamente sente em suas pernas.
- Você tem uma assombrosa capacidade para dar ordens, monsieur.
Os olhos de Christophe se apertaram ligeiramente antes que seu braço a
envolvesse com incrível rapidez, atraindo-a para ele e cobrindo seus lábios com um beijo
intenso e prolongado que não lhe deu tempo para protestar ou debater-se, mas sim
provocou uma resposta similar com a mesma facilidade com que uma mão faz girar uma
torneira.
Ele a manteve prisioneira durante uma eternidade afundando-a cada vez mais
dentro de seu beijo. A tórrida intensidade de seus lábios despertou em Serenity uma nova
e primitiva necessidade e, abandonando o orgulho em altares de amor, submeteu-se a
uma exigência que não podia resistir. O mundo pareceu esfumar-se, a suave paisagem
bretã se mesclou como se fosse uma aquarela abandonada sob a chuva, deixando só
uma pele cálida e uns lábios imperiosos que procuravam sua rendição. As mãos de
Christophe deslizavam pela leve curva de seu quadril para ascender então pela coluna
vertebral com segura autoridade, esmagando-a contra ele com uma força que teria
destroçado todos os seus ossos se não estivessem dissolvidos já no calor que emanava
de seu corpo.
Amor. A mente de Serenity era um torvelinho impulsionado por essa mágica palavra.
O amor eram passeios sob a tênue chuva, um anoitecer tranqüilo ante a luz. Como era
possível que fosse uma tormenta violenta e palpitante que a deixava sem fôlego,
debilitada e vulnerável? Como podia ser que se implorasse essa debilidade tanto como a
vida mesma? Tinha sido assim com sua mãe? Foi isto o que desenhou em seus olhos a
sonolenta névoa do saber? "Não me soltará alguma vez?", perguntou-se com desespero
e seus braços rodearam o pescoço de Christophe em um gesto em que seu corpo
contradizia claramente a sua vontade.
- Mademoiselle - murmurou ele com tom suave e zombador, mantendo seus lábios
separados dos do Serenity só pelo fôlego e acariciando sua nuca - tem você uma
assombrosa capacidade para provocar o castigo. Sinto necessidade de lhe dar algumas
aulas de disciplina.
Christophe se separou dela e se afastou com calculada indolência, detendo-se tão
somente para corresponder às boas-vindas de Korrigan que trotava fielmente junto a ele.
Capítulo 5

Serenity e a condessa compartilharam o almoço no terraço, rodeadas de flores que


lançavam um aroma adocicado. Recusando o vinho que lhe oferecia optou, em troca, por
uma taça de café ignorando a expressão inquisitiva de sua avó.
"Suponho que isto me converte definitivamente em uma filistéia", deduziu,
reprimindo um sorriso enquanto desfrutava do espesso líquido negro e também da sopa
de frutos do mar.
- Confio que o passeio tenha lhe agradado - disse a condessa depois de terem
ambas trocado os inevitáveis comentários sobre o tempo e a comida.
- Para meu enorme assombro, madame - admitiu Serenity - desfrutei muitíssimo.
Deveria ter aprendido antes. Sua paisagem bretã é magnífica.
- Christophe se sente justificadamente orgulhoso de suas terras - afirmou a
condessa enquanto estudava o vinho branco que repousava em sua taça - A ama do
mesmo modo que um homem ama uma mulher, com a mesma paixão intensa. E embora
a terra seja eterna, todo homem necessita uma esposa. A terra é uma amante muito fria.
Serenity elevou as sobrancelhas ante o comentário absolutamente franco de sua
avó e o súbito abandono de toda formalidade. Seus ombros se encolheram ligeiramente
em um típico gesto.
- Estou certa de que Christophe não tem nenhum problema na hora de procurar
amantes mais cálidas.
"Provavelmente, ele estala os dedos e dúzias de mulheres caem rendidas a seus
pés", acrescentou silenciosamente, e esteve a ponto de dar um salto pela intensidade do
ciúme que sentia nesse momento.
- "Naturellement" - concordou a condessa e um brilho divertido iluminou seus
grandes olhos azuis - Como poderia ser de outra maneira? - Serenity assimilou este
comentário com expressão severa e a anciã elevou sua taça de vinho - Mas, depois de
certo tempo, os homens como Christophe necessitam estabilidade e não variedade. Ah,
mas ele é muito parecido o seu avô. - Serenity olhou a condessa e viu a expressão
entusiasmada que transformava seu anguloso rosto - Estes homens de Kergallen são
todos uns selvagens, dominantes e arrogantemente masculinos. As mulheres que
recebem seu amor têm a bênção do céu e do inferno. - Os olhos azuis voltaram a posar-
se nos ambarinos e a anciã sorriu - Suas mulheres devem ser fortes ou terminarão
pisoteadas, e também deverão ser bastante ardilosas para saber quando devem mostrar-
se delicadas.
Serenity escutava as palavras de sua avó como se se encontrasse sob o efeito de
um encantamento. sacudiu-se e afastou o prato de camarões-rosa que já não lhe
inspirava nenhum apetite.
- Madame, - começou a dizer, decidida a deixar bem clara sua posição - não tenho
nenhuma intenção de entrar na competição pelo atual conde de Kergallen. Segundo
minha modesta opinião somos tão afins como a água e o azeite. - Mas, de repente,
recordou a sensação de seus lábios contra os dele, a urgente pressão de seu corpo
musculoso e sentiu um estremecimento. Elevando os olhos em direção à sua avó,
Serenity meneou a cabeça com obstinada determinação - Não - disse.
E não se deteve para raciocinar se estava falando com seu coração ou à anciã que
estava a sua frente; simplesmente, ficou em pé e correu para o interior do castelo.
A lua cheia dominava o céu repleto de estrelas e seus raios de prata se filtravam
através das altas janelas enquanto Serenity permanecia acordada, sentindo-se desolada,
dolorida e desgostada. Embora tivesse se retirado cedo ao seu quarto, pretextando uma
fictícia dor de cabeça para afastar-se do homem que nublava seus sentidos, o sono se
negou a chegar. E agora, poucas horas depois de ter conseguido dormir, o sono tinha
fugido. Dando voltas na enorme cama choramingou em voz alta ante a revolução que
sentia dentro do corpo.
"Estou pagando as conseqüências da pequena aventura desta manhã." Deu um
salto e se sentou lançando um profundo suspiro. "Talvez necessite outro banho quente -
decidiu com uma débil esperança - Deus sabe que a água quente não poderá me pôr
mais tensa do que já estou." Deslizou para fora da cama e tanto seus ombros quanto
suas pernas protestaram violentamente. Ignorando o roupão que jazia aos pés da cama,
dirigiu-se ao quarto de banho contíguo através do aposento fracamente iluminado e
golpeou a tíbia contra uma elegante cadeira Luís XVI.
Lançou uma maldição, dividida entre a ira e a dor. Sem deixar de murmurar esfregou
a perna, voltou a pôr a cadeira em seu lugar e se apoiou nela.
- O que? - exclamou com rudeza quando alguém chamou à sua porta.
A porta se abriu e Christophe, vestido informalmente com um roupão de seda azul,
observou-a de modo maroto.
- Fez mal a si mesma, Serenity?
Não era necessário ver sua expressão para saber que achava situação
extremamente divertida.
- Só quebrei uma perna - respondeu ela - Por favor, não se preocupe comigo.
- Posso lhe perguntar por que você anda na escuridão?
Christophe se apoiou no marco da porta, tranqüilo e crédulo, e em total domínio da
situação. Sua arrogância foi o catalisador que o gênio mercurial de Serenity necessitava
nesse momento.
- Lhe direi por que andava na escuridão, seu bruto convencido! - começou a dizer
Serenity em um sussurro furioso - Pensava em me colocar na banheira para me liberar do
padecimento físico que você me fez sofrer hoje!
- Eu? - perguntou ele com ar inocente.
Seus olhos vagaram sobre figura magra e dourada dela sob a tênue luz da lua, as
pernas largas e perfeitamente formadas e sua pele de puro alabastro se expuseram ao
olhar de Christophe devido à leveza de sua delicada camisola. Serenity estava muito
furiosa para esconder suas roupas de baixo ou perceber a admiração que despertava
nele, e tampouco era consciente da luz da lua que se filtrava através da transparência do
tecido e que sombreava maravilhosamente a sinuosidade de seu corpo esbelto.
- Sim, você! - espetou-lhe ela - Foi você quem me obrigou a montar essa égua esta
manhã, não foi? E agora tenho todos os músculos feitos pó. - Proferindo um grunhido,
esfregou a região lombar com a palma da mão—. É provável que nunca volte a caminhar
corretamente.
- Ah.
- Oh - quanto significado em uma só sílaba. Olhou para ele fazendo o impossível por
manter uma postura digna - Poderia voltar a fazê-lo?
- Minha pobre pequena - murmurou ele com exagerada compaixão - Me sinto
desolado.
Christophe se ergueu e pôs-se a andar na direção dela. Então Serenity recordou
subitamente que estava coberta então por um delicado tecido transparente e abriu os
olhos com expressão sobressaltada.
- Christophe, eu... - começou a dizer enquanto as mãos do conde se deslizavam já
por seus ombros nus, e as palavras morreram em um afogado suspiro quando os dedos
peritos começaram a lhe massagear a zona dolorida.
- Tem descoberto novos músculos, não é? Temo que não tenham se mostrado muito
complacentes. A próxima vez não será tão difícil.
Christophe a conduziu até a cama e a obrigou e sentar-se fazendo pressão sobre
seus ombros. Serenity não resistiu, desfrutando dos firmes movimentos que
massageavam os ombros e o pescoço. Sentando-se detrás dela, Christophe prolongou a
massagem ao longo das costas e a dor desapareceu como por um passe de mágica.
Serenity tornou a suspirar, movendo-se inconscientemente contra ele.

- Tem umas mãos maravilhosas - sussurrou ela enquanto uma letargia começava a
invadi-la ao tempo que a dor desaparecia e era substituída por uma sensação cálida e
prazerosa - Dedos fortes e formosos; a qualquer momento começarei a ronronar.
Serenity não soube quando se produziu a transição, quando o suave relaxamento se
transformou em um lento incêndio em seu estômago e a massagem de Christophe em
uma insistente carícia, mas elevou a cabeça sentindo uma onda de calor.
- Já está melhor, muito melhor - balbuciou e tratou de erguer-se.
As mãos de Christophe voaram para a cintura dela e a imobilizaram enquanto seus
lábios procuravam a zona vulnerável de sua nuca com um beijo ligeiro como uma pluma.
Serenity estremeceu e logo deu um salto como se fosse uma lebre assustada, mas antes
que conseguisse escapar Christophe a fez girar e uniu seus lábios aos dela com um beijo
ardente que sossegou todos os protestos.
A luta terminou antes de converter-se em uma realidade, a lenha se fez chama e
seus braços rodearam o pescoço de Christophe enquanto sentia seu corpo esmagado
contra o colchão. Sua boca parecia devorá-la, firme e segura, e suas mãos seguiam as
curvas de seu corpo como se tivessem feito amor inumeráveis vezes. Com febril
impaciência, Christophe fez deslizar o fino tecido por cima dos ombros de Serenity,
procurando e encontrando a suavidade acetinada de seus peitos. O contato de seus
dedos quentes despertou nela uma tempestade de desejo e começou a mover-se
debaixo dele. As demandas de Christophe se tornaram mais urgentes e suas mãos mais
insistentes enquanto deslizavam com um murmúrio de sedas, e seus lábios
abandonavam a boca de Serenity para assaltar seu pescoço com insaciável voracidade.
- Christophe - gemeu ela, sabendo-se incapaz de combater contra ele e também
contra sua própria debilidade - Christophe, por favor, não posso lutar contigo aqui. Nunca
poderia te derrotar.
- Não lute, "ma belle" -sussurrou ele em seu pescoço. - E os dois venceremos.
Sua boca ardente voltou a descansar sobre a dela, suave e ofegante, fazendo com
que o desejo ganhasse ainda mais força e começasse a ascender desmesuradamente.
Os lábios de Christophe exploraram lentamente seu rosto acariciando as covinhas de
suas bochechas, estimulando a vulnerabilidade de seus lábios entreabertos antes de
dedicar-se a outras conquistas. Uma mão cobriu seu peito esquerdo com um gesto de
preguiçosa posse, os dedos riscaram o curvo perfil, atrasando-se em uma cálida carícia
sobre o túrgido mamilo até que uma dor apagada e persistente estendeu-se por todo o
corpo. A dor, doce e enervante, a fez gemer de prazer e suas mãos começaram a
percorrer os músculos das costas de Christophe como se desejasse acentuar o poder
que exercia sobre ela.
A lenta exploração de Christophe voltou a fazer-se imperiosa como se a submissão
de Serenity tivesse exacerbado loucamente a paixão que embargava seus corpos
palpitantes. As mãos percorriam a pele suave e a boca era um animal selvagem que se
abatia sobre os lábios de Serenity, os dentes que tinham mordiscado com suavidade o
lábio superior foram substituídos por uma boca que enlouquecia seu sentido e exigia algo
mais que submissão, exigia paixão.
A mão abandonou o aceso seio e deslizou pelo flanco de seu corpo, detendo-se
brevemente no quadril antes de seguir seu caminho, reclamando a pele suave e fresca de
suas coxas, e a respiração de Serenity se converteu em uma sucessão de suspiros
quando ele percorreu seu pescoço com os lábios até afundá-los entre seus peitos.
Um último relâmpago de lucidez lhe confirmou que se encontrava à beira de um
precipício e que um só passo a mais a precipitaria em um vazio infinito.
- Christophe, por favor. - Serenity começou a tremer, embora estivesse virtualmente
sufocada pelo incêndio que sentia dentro do corpo - Por favor, você me assusta, e sinto
medo de mim mesma. E nunca... nunca estive com um homem.
Ele deteve suas carícias e o silêncio se fez espesso quando elevou o rosto para
olhá-la. Brilhos de luar dormiam sobre o pálido cabelo de Serenity, enfraquecido em cima
do travesseiro branco, e seus olhos estavam nublados pelo temor e a paixão recém-
nascida.
Com um som áspero e breve, Christophe separou seu corpo do dela.
- Serenity, tenho que reconhecer que sua habilidade para escolher o momento
oportuno é verdadeiramente incrível.
- Sinto muito - se desculpou ela.
- Por que pede desculpas? - perguntou Christophe e a ira era percebida por debaixo
de sua fria calma geada - Por sua virgindade ou por ter permitido que me aproximasse de
reclamá-la?
- Esse comentário me parece de muito mau gosto! - exclamou Serenity, lutando para
acalmar o ritmo da respiração - ocorreu tão depressa que não pude pensar. Se tivesse
estado preparada, você nunca poderia se aproximar desse modo.
- Você acha que não? - Obrigou-a a erguer-se até ficar ajoelhada sobre a cama e,
uma vez mais, apertada contra seu corpo - Agora está preparada. Julga que não posso
fazê-la minha neste mesmo minuto, se você deseja que o faça?
Christophe a olhou fixamente. O homem que a abraçava cintilava de fúria e absoluta
segurança em si mesmo, e Serenity foi incapaz de dizer algo, sabendo que se encontrava
indefesa perante o poder dele e sua própria urgente necessidade. Os olhos pareciam
maiores em seu rosto pálido, o temor e a inocência brilhavam como faróis no âmbar de
suas formosas pupilas. Christophe lançou uma maldição e a afastou com violência.
- Pelo amor de Deus! Olha-me com os olhos de uma menina. Seu corpo encobre a
perfeição de sua inocência; é um disfarce muito perigoso. - dirigiu-se para a porta e logo
se voltou para olhar a figura quase despida e que parecia ainda mais pequena na
vastidão da cama - Durma bem, pequena - disse com tom zombador - A próxima vez que
for levar por diante os móveis, será mais prudente que feche a porta com a chave, porque
não voltarei a partir.

O frio recebimento que Serenity dispensou Christophe durante o café da manhã foi
retribuído com um olhar gentil que procurou seus olhos por um instante e que não
evidenciava sinal da paixão ou a ira que tinha mostrado na noite anterior. Ela se sentiu
confusa por sua perversa falta de reação enquanto ele conversava com a condessa e se
dirigia a ela só quando era estritamente necessário, e com uma cortesia formal que
somente podia ser detectada por um ouvido muito sensível.
- Não terá esquecido que Geneviéve e Yves deverão jantar conosco esta noite? -
perguntou a condessa dirigindo-se a seu neto.
- É obvio que não, avó - respondeu ele, depositando a taça no prato - Sempre é um
prazer estar com eles.
- Estou certa de que os achará encantadores, Serenity. - A condessa voltou seus
olhos azuis para sua neta - Geneviéve é uma jovem de sua idade, talvez um ano menos,
e é muito doce e educada. Seu irmão, Yves, é um jovem adorável e muito atraente. - Um
sorriso iluminou seu rosto – Você achará a companhia deles... divertida. Não acha,
Christophe?
- Estou certo de que Serenity achará Yves extremamente divertido.
Serenity olhou brevemente Christophe. Havia em sua voz certa brutalidade? Mas ele
bebia o café com indiferença e Serenity pensou que se equivocou.

- Os Dejot são velhos amigos da família - insinuou a condessa, solicitando


novamente a atenção de Serenity - Estou certa de que alegrará você estar em companhia
de pessoas de sua idade, não é? Geneviéve visita com freqüência o castelo. Quando era
uma menina corria atrás de Christophe como um cachorrinho fiel. E, naturalmente, já não
é uma menina.
A condessa enviou um olhar carregado de significado ao homem que se encontrava
na cabeceira da grande mesa de carvalho e Serenity fez um grande esforço de vontade
para não franzir o nariz em uma amostra de desdém.
- Geneviéve deixou de ser uma menina desajeitada e com rabo-de-cavalo para
converter-se em uma mulher elegante e encantadora - disse Christophe e não pôde
ocultar o afeto de sua voz. "Me alegro por ela", pensou Serenity, lutando por manter em
seus lábios um sorriso de interesse.
- Será uma esposa maravilhosa - previu a condessa - Possui uma beleza serena e
uma elegância natural. Devemos persuadi-la a que toque para ti, Serenity. Geneviéve é
uma ótima pianista.
"Ressaltando outro tanto a esse modelo de virtudes", disse-se sombriamente
Serenity, sentindo-se ciumenta da relação que mantinha com Christophe a ausente
Geneviéve.
- Tratarei de estar à altura de seus amigos, madame - disse em voz alta e firme.
Estava certa de que não gostaria nem um pouco da perfeita Geneviéve assim que a
visse.
A dourada manhã transcorreu depressa e um preguiçoso silêncio matinal se abateu
sobre o jardim enquanto Serenity se concentrava em seus esboços. Tinha trocado
algumas palavras com o jardineiro antes que ambos se dispusessem a iniciar suas
respectivas tarefas. Ela pensou que o homem constituía um bom modelo e decidiu
desenhá-lo enquanto ele se inclinava sobre os arbustos, podando as flores que se
sobressaíam dos maciços e arrumando as suas coloridas e aromáticas companheiras.
O rosto do jardineiro não tinha uma idade definida e estava sulcado de rugas que
conferiam força a suas feições e os olhos surpreendentemente azuis e brilhantes
destacavam em sua tez morena. O chapéu que cobria o cabelo curto e cinzento era preto,
de aba larga, e um suspensório era visível sobre suas costas. Usava uma camiseta sem
mangas e calças gastas, e Serenity se sentiu maravilhada pela agilidade com que movia-
se sobre seus rústicos tamancos.
Estava tão concentrada em captar a aura antiga que rodeava o homem que não
ouviu os passos sobre os ladrilhos atrás dela. Christophe observou seu trabalho enquanto
Serenity se inclinava ligeiramente sobre seu caderno e a graciosa curva de seu pescoço
evocou na mente de Christophe a imagem de um cisne branco e orgulhoso que flutuasse
sobre a superfície de um lago de águas claras e tranqüilas. Só quando ela colocou o lápis
atrás de sua orelha e passou a mão pelo cabelo, ele decidiu revelar sua presença no
jardim.
- Você soube captar com perfeição os traços de Jacques, Serenity.
Christophe elevou uma sobrancelha com expressão divertida quando ela deu um
salto e levou uma mão ao coração.
- Não sabia que estava aqui - disse Serenity, amaldiçoando o tremor de sua voz e a
acelerada pulsação em seu pulso.
- Estava concentrada em seu trabalho - explicou com indiferença e se sentou junto a
ela no banco de mármore branco - Não era minha intenção perturbá-la.
"Não - corrigiu ela mentalmente - teria me perturbado mesmo que se encontrasse a
milhares de quilômetros de distância."
- Obrigado - disse cortesmente - É muito considerador. - voltou-se para o cão que
jazia aos pés de Christophe - Olá, Korrigan, como vai?
Acariciou ao spaniel detrás das orelhas e o animal lhe lambeu ambas as mãos com
beijos carinhosos.
- Korrigan apegou-se muito a você - disse Christophe, observando como o cão
umedecia as mãos de Serenity - Habitualmente se mostra bastante anti-social mas
parece que você conquistou seu coração.
Korrigan rolou feito uma bola sobre os pés de Serenity.
- Um admirador muito meloso - disse ela lhe estendendo a mão.
- É o pequeno preço que terá que pagar, "ma belle", por tanta devoção.
Christophe tirou um lenço do bolso, agarrou-lhe a mão e começou a secá-la. O efeito
que sortiu sobre Serenity foi devastador. Uma corrente elétrica nasceu da ponta de seus
dedos e subiu pelo braço, disseminando um quente formigamento por todo seu corpo.
- Não é necessário. Tenho um pano aqui. Serenity assinalou sua caixa de lápis e
pastéis e tratou de retirar a mão.
Christophe entrecerrou os olhos aumentando a pressão de sua mão e Serenity se
sentiu eclipsada na silenciosa batalha. Com um suspiro de irritada exasperação, permitiu
que sua mão permanecesse entre as dele.
- Você sempre sai por cima? - perguntou e seus olhos se obscureceram pela fúria
reprimida.
- Certamente - disse ele com altiva segurança, soltando a mão dela e olhando-a
longamente - Me parece que você também está acostumada a sair por cima, Serenity
Smith. Não acha que será muito interessante ver quem, como dizem vocês, "leva o gato
à água" durante sua visita?
- Talvez devêssemos utilizar um tabuleiro de resultados - sugeriu Serenity,
refugiando-se em uma armadura de frieza - Desse modo não haveria dúvidas a respeito
de quem resultar o ganhador.
Christophe a olhou com olhos gozadores e lhe presenteou com um sorriso lento e
preguiçoso.
- Não haverá nenhuma dúvida, querida prima.
A réplica do Serenity não chegou a concretizar-se pela súbita aparição da condessa
e se viu obrigada a suavizar a expressão de seu rosto automaticamente, para evitar
qualquer especulação por parte de sua avó.
- Bom dia, meus filhos. - A condessa saudou-os com um sorriso maternal que
surpreendeu gratamente a sua neta - Vejo que estão desfrutando da beleza do jardim.
Acredito que este é o momento mais tranqüilo do dia para estar aqui.
- É encantador, madame - disse Serenity - Sente-se como se não existisse outro
mundo além das cores e do aroma deste lugar solitário.
- Freqüentemente experimento a mesma sensação - disse a condessa e os traços
de seu rosto se suavizaram notavelmente - São incontáveis as horas que passei aqui
durante todos estes anos. - sentou-se em um banco em frente ao homem moreno e à
loira moça e lançou um profundo suspiro - O que você desenhou? - Serenity lhe entregou
o caderno, e a condessa examinou cuidadosamente o desenho antes de elevar os olhos
para estudar Serenity - Tem o talento de seu pai. - Ante o alusivo comentário, Serenity se
dispôs a lhe replicar convenientemente, mas a condessa acrescentou - Seu pai era um
artista com grande talento. E começo a compreender que tinha certas qualidades que
souberam ganhar o amor de Gaelle e a lealdade de sua filha.
- Sim, madame - respondeu Serenity, compreendendo que a tinha recompensado
com uma difícil concessão - Ele era um homem muito bom, um pai e marido exemplar.
Resistiu tenazmente a tentação de mencionar o tema da Madonna de Rafael porque
não desejava romper os tênues fios de entendimento que se formaram entre elas. A
condessa assentiu. Então, voltando-se para Christophe, fez um comentário a respeito do
jantar daquela noite.
Serenity agarrou uma folha de papel em branco alguns pastéis e começou a
desenhar a sua avó. As vozes zumbiam a seu redor e seus sons sossegados e tranqüilos
harmonizavam com a paz do jardim. Ela não tentou seguir a conversação; simplesmente
permitiu que o suave murmúrio caísse sobre ela enquanto se concentrava em seu
trabalho.
Ao reproduzir no papel o rosto de formato delicado e a boca, surpreendentemente
vulnerável, viu com absoluta claridade a semelhança que a condessa guardava com
Gaelle, sua mãe, e portanto com ela mesma. A expressão de sua avó era aprazível, com
uma beleza atemporal que continha instintivamente seu porte orgulhoso. Mas agora, de
algum modo, Serenity teve uma visão fugaz da suavidade e fragilidade de sua mãe, o
rosto de uma mulher que era capaz de amar profundamente... e também de sofrer
terrivelmente o dano que pudessem lhe fazer. Pela primeira vez desde que recebeu a
carta formal de sua avó desconhecida, Serenity sentiu um laço de parentesco, o primeiro
sinal de amor pela mulher que tinha dado a luz a sua mãe e, em conseqüência, tinha sido
a responsável por sua própria existência.
Serenity não estava consciente da variedade de expressões que cruzavam por seu
rosto, ou do homem que estava sentado junto a ela observando a metamorfose enquanto
seguia falando com sua avó. Quando terminou deixou os pastéis e moveu as mãos com
ar ausente, sobressaltando-se quando voltou a cabeça e se encontrou com o olhar de
Christophe. Os olhos escuros se fixaram no retrato que descansava no colo de Serenity
antes de fixar-se na expressão absorta dela.
- Possui um estranho dom, "ma chérie" - disse ele. Serenity franziu o cenho
assombrada, sem saber muito bem se ele se referia a seu trabalho ou a um tópico
totalmente diferente.
- O que desenhou? - perguntou a condessa. Serenity afastou o olhar dos escuros
olhos de Christophe e lhe entregou o desenho.
A condessa o estudou durante alguns momentos e a primeira expressão de surpresa
se transformou em outra coisa que Serenity não conseguiu discernir. Quando a anciã
elevou os olhos e a olhou, seu rosto tinha um amplo sorriso.
- Sinto-me honrada e muito melhorada. Se me permitir, eu gostaria de comprar este
retrato. - O sorriso se fez ainda mais amplo - Em parte por vaidade, mas também porque
eu gostaria de conservar uma amostra de seu trabalho.
Serenity a observou durante um momento e experimentou uma sensação que
oscilava entre o orgulho e o amor.
- Sinto muito, madame. - Meneou a cabeça e pegou o retrato que acabava de
desenhar - Não está à venda. - Olhou o desenho que tinha em mãos antes de voltar a
entregar-lhe enquanto a olhava diretamente nos olhos - É um presente para você, avó -
disse, observando o jogo de emoções que estremeciam os olhos e a boca da condessa
antes de acrescentar carinhosamente - O aceita?
- "Oui". - A palavra saiu de seus lábios com um profundo suspiro—. O conservarei
como um tesouro, e isto - olhou uma vez mais o retrato - me recordará que ninguém deve
jamais permitir que o orgulho se interponha no caminho do amor.
A condessa ficou em pé, beijou levemente as bochechas de Serenity e se afastou
para o castelo pelo atalho ladrilhado.
Serenity se recostou no banco de mármore.

- Você tem uma capacidade natural para agradar - disse Christophe e ela se voltou
para ele, visivelmente emocionada.
- Ela também é minha avó.
Christophe percebeu o véu que cobria os olhos de Serenity e ficou em pé.
- Meu comentário pretendia ser um elogio.
- É mesmo? Pensei que era uma censura.
Desprezando a umidade de seus olhos Serenity sentiu, simultaneamente, o desejo
de estar sozinha e de reclinar-se contra seu ombro.
- Sempre está na defensiva comigo, não é, Serenity?
Os olhos de Christophe se entrecerraram, como o fazia cada vez que estava irritado,
mas Serenity se sentia muito preocupada em combater suas próprias emoções para lhe
dar importância.
- Você me deu muitos motivos - replicou ela - Do momento em que desci do trem,
seus sentimentos por mim foram absolutamente transparentes. Condenou o meu pai e o
mesmo fez comigo. É frio e autocrático e não demonstra ter um pingo de compaixão ou
de compreensão. Eu gostaria que você partisse e me deixasse sozinha. Vá açoitar os
camponeses ou algo assim. Isso combina muito bem com sua personalidade.
O movimento de Christophe foi tão veloz que Serenity não teve possibilidade de
afastar-se. Seus poderosos braços estiveram a ponto de parti-la em dois ao abraçá-la
com veemência.
- Tem medo? - perguntou ele e seus lábios esmagaram a pequena boca de Serenity
antes que ela pudesse atinar a responder, e qualquer sinal de razão se esfumou
repentinamente.
Serenity choramingou ante a mescla de dor e prazer que lhe produziam os lábios de
Christophe ao queimar os seus, enquanto o abraço se fazia mais intenso, conquistando
inclusive seu fôlego.
"Como é possível amar e odiar ao mesmo tempo?" perguntou seu coração a seu
confuso cérebro, mas a resposta se perdeu em um mar de paixão turbulenta e vitoriosa.
Os dedos se enredavam sem piedade em seu cabelo loiro, obrigando-a a inclinar a
cabeça para trás para deixar exposta a rosada pele do pescoço e Christophe reclamou a
pele vulnerável com lábios quentes e vorazes. O fino tecido da blusa dela não constituiu
nenhuma barreira contra o calor abrasador do corpo dele, e ele superou com facilidade
o obstáculo deslizando uma mão por debaixo da blusa, acariciando a carne febril e
apoderando-se de seu peito túrgido em um alarde de absoluta e consumada posse.
A boca de Christophe voltou a devastar lábios, varrendo toda suavidade com uma
urgência a que ela não podia resistir. Serenity deixou de questionar a complexidade de
seu amor e, como se fosse um salgueiro na tormenta, cedeu às súplicas de seu próprio
desejo.
Christophe elevou o rosto dela e seus olhos se mostraram escuros, quase negros
pelos fogos de paixão e ira que ardiam dentro deles. Ele a desejava, os olhos de Serenity
se abriram desmesuradamente devido ao terror que significava este descobrimento.
Nenhum homem a tinha desejado nunca com esta intensidade e nenhum tinha tido o
poder de tomá-la com tão pouco esforço. Porque inclusive sem o amor de Christophe, ela
sabia que se entregaria. E inclusive sem sua entrega voluntária, Christophe a faria dela.
Ele leu o medo nos olhos de Serenity e a voz dele se fez ouvir, grave e perigosa.
- Sim, pequena prima, tem motivos para estar assustada, porque sabe perfeitamente
que cederá. No momento está a salvo, mas cuidado a próxima vez que for me provocar.
Liberando-a de seu abraço, Christophe partiu pelo atalho que tinha tomado sua avó,
e Korrigan, depois de olhar Serenity com olhos de desculpa, seguiu-lhe de perto.
Capítulo 6

Serenity vestiu-se com delicioso cuidado para o jantar que teria lugar naquela noite
no castelo, empregando o tempo para pôr em ordem seus sentimentos e decidir um plano
de ação. Nenhum argumento e tampouco raciocínio algum podia alterar o fato de que se
precipitou temerariamente no amor com um homem que tinha conhecido fazia apenas
uns dias, um homem que era terrivelmente excitante mas que, por sua vez, produzia-lhe
verdadeiro pânico.
Um homem arrogante, autoritário e audaciosamente obstinado, acrescentou,
subindo o zíper do vestido. E também um homem que tinha acusado meu pai de ser
ladrão. "Como pude permitir que isto ocorresse? -repreendeu-se com veemência - Como
poderia tê-lo impedido? refletiu com um profundo suspiro - É provável que meu coração
tenha me abandonado, mas ainda conservo a cabeça sobre os ombros e vou ter que usá-
la. Me recuso a permitir que Christophe descubra que me apaixonei por ele e me
submeter, deste modo, a suas zombarias." Sentada em frente à penteadeira de madeira
de cerejeira, Serenity passou repetidamente a escova por seus suaves cachos e deu os
últimos retoques a sua maquiagem. "Pintura de guerra - pensou, e sorriu ao reflexo - É
uma expressão que se ajusta perfeitamente, já que preferiria estar em guerra e não
apaixonada por Christophe. Além disso - o sorriso se converteu em um gesto sombrio -
esta noite também terei que lidar com mademoiselle Dejot."
Ficou em pé e observou atentamente a figura que se refletia no grande espelho de
provas. A seda ambarina harmonizava com a cor de seus olhos e acrescentava um
quente resplendor à sua pele rosada. Os magros tirantes do vestido revelavam seus
ombros suaves e o decote baixo e redondo realçava a sutil curva de seus peitos. A saia
vincada flutuava graciosamente até lhe roçar os tornozelos e sua cor diáfana e apagada
tornava a sua beleza frágil maravilhosa, quase etérea.
Serenity franziu a testa ao efeito que o produzia sua imagem no espelho,
demonstrando fragilidade ali onde desejava que houvesse sofisticação e aprumo. O
relógio lhe informou que não havia tempo para trocar de vestido, de modo que, calçando-
os sapatos e lançando uma nuvem de perfume a seu redor, abandonou rapidamente o
quarto.
O murmúrio de vozes que chegava do salão principal confirmou a uma irritada
Serenity que os convidados já tinham chegado. Seu olho de artista desenhou
imediatamente a cena que a recebeu ao entrar no salão: o chão reluzente e as paredes
com seus painéis de madeira lustrada, as janelas altas e com formosos vitrais, a enorme
chaminé de pedra com seu exterior cuidadosamente esculpido, todos os detalhes se
conjugavam para formar a cortina de fundo dos elegantes ocupantes do salão principal do
castelo, com a condessa em primeiro plano, vestida regiamente de seda vermelha.
O severo smoking negro de Christophe ressaltava a imaculada brancura da camisa
e acentuava maravilhosamente a cor bronzeada de sua pele. Yves Dejot também estava
vestido de negro e sua pele era mais dourada que bronzeada, enquanto que o cabelo era
de cor castanha. Mas foi a mulher que estava entre os dois homens a que chamou a
atenção do Serenity e também sua imediata admiração. Se sua avó era a rainha, ali
estava a princesa herdeira. A cabeleira, de um negro de azeviche, emoldurava um rosto
pequeno e encantado de comovente beleza. Os olhos amendoados, de cor marrom,
dominavam o rosto perfeito e o vestido verde intenso destacava contra a pele dourada.
Os dois homens ficaram em pé quando ela entrou no salão e Serenity concentrou
toda atenção em Yves, consciente do intenso olhar que lhe dedicou Christophe. Uma vez
feitas as apresentações de praxe, ela se encontrou olhando os olhos castanhos, da
mesma cor do cabelo, que tinham um olhar de franca aprovação masculina e uma
aparente luz picardia.
- “Mon ami”, não me havia dito que sua prima era uma deusa loira. -inclinou-se para
roçar seus lábios à mão de Serenity - Terei que visitar o castelo com mais freqüência,
senhorita, enquanto você se encontrar aqui.
Serenity sorriu com autêntico prazer, classificando Yves Dejot como um homem
encantador e inofensivo.
- Estou certa de que minha estadia no castelo será muito mais agradável com essa
perspectiva, “monsieur” - respondeu com o mesmo tom que ele tinha empregado e se viu
recompensada com um luminoso sorriso.
Christophe continuou com as apresentações e a mão de Serenity ficou prisioneira
em um apertão pequeno e vacilante.
- Sinto-me feliz de conhecê-la finalmente, mademoiselle Smith, - Geneviéve a
saudou com um cálido sorriso – Você é idêntica ao retrato de sua mãe; é como se a
pintura tivesse criado vida.
A voz era absolutamente sincera e Serenity pensou que, embora o tentasse, seria
impossível ter aversão àquela mulher que parecia uma fada e que agora a olhava com os
olhos aquosos de um cocker spaniel.
A conversação discorreu por leitos informais e agradáveis durante os aperitivos e o
jantar, composto de umas deliciosas ostras ao champanha, que dispuseram os ânimos
para desfrutar de uma comida preparada e servida com deliciosa elegância. Os Dejot se
mostraram ávidos por conhecer detalhes sobre os Estados Unidos e sobre a vida que
levava Serenity em Washington, e ela tratou de descrever aquela cidade de contrastes
enquanto o pequeno grupo desfrutava o “ris de veau au Chablis”.
Serenity começou a desenhar com palavras os velhos edifícios do governo e as
linhas e colunas da Casa Branca.
- Infelizmente, modernizaram bastante a cidade, incluindo enormes monstruosidades
de aço e cristal para substituir algumas das antigas construções. São edifícios vastos,
pulcros e carentes de todo encanto. Mas há dúzias de teatros, do Ford, onde foi
assassinado o presidente Lincoln, até o Kennedy Center.
Serenity continuou seu relato e lhes levou da assombrosa elegância do Embassy
Row até os bairros pobres e os apartamentos de aluguel que se elevavam fora do
enclave federal, através de museus e galerias de arte e da sede do Congresso dos
Estados Unidos.
- Mas nós vivíamos em Georgetown, que é um mundo completamente separado do
resto de Washington. A maioria dos lares são casas geminadas ou apenas separadas, de
dois ou três pisos, com pequenos pátios pavimentados e debruados com azaléias e
maciços de flores. Algumas das ruas laterais ainda estão pavimentadas com os
paralelepípedos originais e toda a zona conserva seu antigo encanto.
- Deve ser uma cidade excitante - comentou Geneviéve - Certamente, acha nossa
vida aqui bastante tranqüila. Sente falta de animação, da atividade de sua cidade?
Serenity franziu o cenho à sua taça de vinho e então meneou a cabeça.
- Não - respondeu, surpreendendo-se pela resposta - Suponho que é bastante
estranho. - Seu olhar se encontrou com os olhos marrons da outra mulher - Passei toda
minha vida ali e me senti muito feliz, mas não sinto falta de absolutamente nada. Quando
cheguei ao castelo, senti que tinha com ele uma inexplicável afinidade, algo assim como
uma sensação de reconhecimento. Sinto-me muito bem aqui.
Deu uma olhada a seu redor e encontrou o olhar de Christophe, intenso e penetrante,
sentiu um acesso de pânico.
- Certamente, é um verdadeiro alívio não ter que enfrentar uma batalha a cada dia
para encontrar um local onde estacionar - acrescentou com um sorriso tentando romper o
ambiente de solenidade que havia na mesa - Em Washington os locais de
estacionamento são mais valiosos que o ouro e, atrás de um volante, inclusive a pessoa
mais civilizada do mundo é capaz de cometer um assassinato para conseguir uma vaga.
- Você recorreu a tais táticas, “ma chérie”? - perguntou Christophe, elevando sua
taça e olhando-a fixamente.
- Tremo ao pensar nos crimes que cometi - respondeu Serenity, aliviada por
mudança de tema de conversação - Não me atrevo a confessar a que extremos cheguei
para me assegurar uns poucos metros de espaço livre. Posso ser terrivelmente agressiva.
- Julgo totalmente impossível acreditar que a agressividade seja parte de uma flor
tão delicada - disse Yves, acolhendo-a com seu encantador sorriso.
- Você se surpreenderia, "mon ami", - comentou Christophe inclinando levemente a
cabeça - Esta flor tão delicada possui algumas qualidades insuspeitadas.
Serenity olhou-o com expressão desgostada e a condessa interveio trocando de
tema.
O salão estava suavemente iluminado, conferindo ao enorme ambiente um clima de
intimidade. Enquanto o grupo desfrutava do café e do conhaque que seguiram ao jantar,
Yves se sentou junto a Serenity e começou a desdobrar seu abundante encanto francês.
Serenity percebeu, com crescente desgosto em seu coração, que viu obrigada a
reconhecer como um puro ataque de ciúmes, que Christophe se dedicava a entreter
Geneviéve. Os dois falavam dos pais dela, que estavam realizando um cruzeiro pelas
ilhas gregas, de amizades comuns e de velhos amigos. Christophe escutou atentamente
enquanto Geneviéve lhe contava uma anedota e sorriu, adulou à preciosa jovem e
brincou com ela, com uma atitude tenra e encantadora que Serenity nunca tinha visto
nele. A relação entre ambos era tão obviamente especial, tão próxima e antiga que
Serenity sentiu que o desespero invadia seu corpo.
"Christophe a trata como se ela fosse feita de fino e delicado cristal, pequena e
preciosa, e me trata como se eu fosse feita de pedra, forte, tenaz e rústica."
Se Serenity pudesse sentir aversão pela outra mulher, tudo teria sido muito mais
singelo, mas um natural sentimento de amizade se impôs aos ciúmes e, conforme
passava o tempo, se deu conta de que os irmãos Dejot eram dois seres verdadeiramente
encantadores.
Geneviéve, depois de uma cortês insistência por parte da condessa, aceitou
interpretar algumas peças ao piano. A música se pulverizou pelo salão com a mesma
doçura e fragilidade dos dedos de sua intérprete.
"Suponho que é uma mulher perfeita para ele - concluiu Serenity, sentindo-se
terrivelmente desventurada - Eles têm muitas coisas em comum e ela desperta em
Christophe uma ternura que impedirá que lhe cause algum dano." Elevou a vista e olhou
em direção a Christophe, que estava sentado e relaxado contra as almofadas da poltrona,
com seus olhos escuros e fascinantes fixos na mulher que tocava o piano. Uma série de
emoções encontradas afetou seu ânimo: desejo, desesperança, ressentimento, unindo-se
em uma irremediável névoa de depressão ao compreender que, independentemente de
quão perfeita Geneviéve pudesse ser para ele, ela jamais poderia observar com
indiferença Christophe quando cortejasse a outra mulher.
- Como a artista que é, mademoiselle - disse Yves quando a música cessou e todos
reataram a conversação - Você deve necessitar de inspiração, não é?
- Certamente - disse Serenity e lhe sorriu.
- Os jardins do castelo constituem um belo motivo de inspiração à luz da lua -
assinalou Yves.
- Esta noite, me sinto inspirada - decidiu Serenity com um repentino impulso - Talvez
consiga lhe convencer para que me acompanhe.
- Mademoiselle - respondeu ele alegremente - para mim será uma honra.
Yves comunicou ao resto dos presentes sua intenção de sair ao jardim, e Serenity
aceitou seu braço sem perceber o sombrio olhar que Christophe lhe lançou.
O jardim era, indubitavelmente, uma bela causa de inspiração, as brilhantes cores
luziam apagadas sob o resplendor prateado da lua. Os aromas das flores se mesclavam
formando um perfume embriagador, adoçando a cálida noite estival e convertendo-a em
um abrigo para apaixonados. Serenity suspirou profundamente quando seus
pensamentos se voltaram para homem que ainda permanecia no salão do castelo.
- Foi um suspiro de prazer, mademoiselle? - perguntou-lhe Yves enquanto
caminhavam por um atalho sinuoso.
- Naturalmente - respondeu ela gentilmente, sacudindo os pensamentos sombrios e
presenteando seu acompanhante com um de seus melhores sorrisos - Esta assustadora
beleza me perturba.
- Ah, mademoiselle. - Ele agarrou sua mão e a levou aos lábios para beijá-la - A
beleza de cada uma destas flores empalidece perante a sua. Que rosa poderia comparar-
se com esses lábios, que gardênia com essa pele?
- Como é que os homens franceses aprendem a fazer o amor com palavras?
- É algo que se aprende do berço - disse com suspeita sobriedade.
- A uma mulher resulta verdadeiramente difícil resistir a este cenário. - Serenity
voltou a suspirar - Um jardim banhado pela luz da lua junto a um castelo bretão, o ar
perfumado pelo aroma das flores, um homem atraente com poesia nos lábios.
- Ora! - Yves suspirou por sua vez - Temo que saberá encontrar a força para resisti-
lo.
Serenity meneou a cabeça com fingido pesar.
- Eu, desgraçadamente, sou uma mulher extremamente forte e você - acrescentou
com um sorriso - é um encantador lobo bretão.
A risada de Yves alterou a quietude da noite.
- Ah, já aprendeu a me conhecer bem. Se não fosse pela sensação que
experimentei ao vê-la pela primeira vez, quando soube que estávamos destinados a ser
amigos e não amantes, tentaria-o com maior afinco. Mas nós, os bretões, acreditamos
cegamente no destino.
- E é tão difícil ser amigos e amantes.
- Exato.
- Então seremos amigos - afirmou Serenity estendendo a mão - Eu te chamarei Yves
e você pode me chamar Serenity.
Ele agarrou sua mão e a sustentou durante uns instantes.
- "C'est extraordinaire" que possa me sentir honrado ao conquistar uma amizade
com alguém como você. Possui uma beleza esquiva que impressiona vivamente a mente
de um homem e lhe mantém caído por ti. - Seus ombros se moveram em um típico gesto
francês que expressava mais que três horas de conversação - Bom, assim é a vida -
disse com tom fatalista.
Serenity ainda estava rindo quando entraram novamente no castelo.

Na manhã seguinte, Serenity acompanhou a sua avó e Christophe a uma missa no


pequeno povoado que se avistava do topo da colina. A chuva fina e persistente tinha
começado a cair antes do amanhecer e o suave tamborilar na janela a tinha despertado
até que o contínuo barulho da água a tinha feito adormecer novamente.
A chuva seguia caindo enquanto se dirigiam à igreja, empapando as folhas e
fazendo que as flores nos jardins das casas inclinassem suas pétalas como se fosse uma
congregação prostrada na prece. Serenity tinha percebido, com perplexidade, que
Christophe se mantinha estranhamente silencioso sobre a noite anterior. Os Dejot
partiram pouco depois que ela e Yves se reuniram com o grupo no salão e, embora a
despedida de Christophe a seus convidados tinha sido carinhosa, ele tinha evitado dirigir-
se diretamente a Serenity. A única comunicação entre eles tinha sido um breve - e ela
tinha imaginado - ameaçador olhar, rapidamente velado.
Agora, ele falava quase exclusivamente com sua avó, com ocasionais comentários
ou respostas dirigidas a Serenity cortesmente, com uma hostilidade dificilmente
discernível que ela decidiu ignorar.
O ponto focal do pequeno povoado era a capela, uma diminuta construção branca
rodeada por um canteiro perfeitamente cuidado e que contrastava quase
humoristicamente com a condição ligeiramente penosa e a ponto de demolição da
edificação. O teto tinha sido objeto de mais de uma reparação e a porta de carvalho, de
uma só folha, estava gasta e solta pelo tempo e o contínuo uso.
- Christophe ofereceu construir uma nova capela - comentou a condessa - mas os
habitantes do povoado não querem. Aqui é onde seus pais e avós oraram ao longo dos
séculos e aqui continuarão elevando suas preces ao Senhor até que a capela desabe
sobre suas cabeças.
- É encantadora - exclamou Serenity.
De algum jeito o ar vagamente dilapidado da pequena capela lhe outorgava uma
certa dignidade, um sentido de orgulho ao ter sido testemunha de gerações de batismos,
bodas e funerais.
A porta pareceu fazer gemer suas dobradiças a modo de desculpa quando
Christophe a abriu, permitindo que as duas mulheres lhe precedessem para o interior da
capela. O interior estava escuro e silencioso, e o teto, alto e cruzado por enormes vigas,
acrescentava uma ilusão especial ao recinto. A condessa se dirigiu ao primeiro banco,
sentando-se no lugar que estava reservado para a família Kergallen durante mais de três
séculos. Olhando com a extremidade do olho viu Yves e Geneviéve através do estreito
corredor. Serenity lhes enviou um cálido sorriso que foi correspondido por outro de
Geneviéve e por uma ligeira piscada de Yves.
- Não acredito que este seja o lugar mais adequado pura suas aventuras amorosas,
Serenity - sussurrou Christophe a seu ouvido enquanto a ajudava a tirar o impermeável.
Serenity sentiu que a cor subia a suas bochechas como se fosse uma menina a
quem surpreenderam falando bobamente na sacristia. Voltou-se para lhe replicar justo no
momento em que o sacerdote, que parecia tão velho como a mesma capela, aproximou-
se do altar para dar começo ao ato religioso.
Uma sensação de paz a abrigou como se se tratasse de uma colcha suave e
amaciada. A chuva isolava aos paroquianos do exterior e seus murmúrios pareciam unir-
se ao silêncio em lugar de alterá-lo. O tom grave do sacerdote que se expressava em
língua bretã, o leve murmúrio de resposta, o ocasional pranto de um menino, uma tosse
afogada, os cristais chumbados pelos quais corriam pequenas cascatas de água... tudo
se unia para conformar uma atmosfera atemporal. Sentada no gasto banco de madeira,
Serenity não pôde deixar de sentir a magia de antiga capela e entendeu perfeitamente a
negação dos habitantes a renunciarem a velha construção por uma estrutura mais
moderna e segura, porque aqui havia paz, e a serenidade com a que ela tinha sido
batizada. Tudo constituía uma continuidade com o passado e um vínculo com o futuro.
Quando a missa concluiu-se, a chuva também cessou, e um tímido raio de sol se
filtrou através os opacos cristais, introduzindo um resplendor sutil e esquivo. Quando
saíram ao exterior da capela, o ar era fresco e trazia o aroma da chuva. Algumas gotas
ainda pendiam das folhas lavadas, brilhando como lágrimas na superfície verde.
Yves saudou Serenity com uma cerimonial reverência e um leve beijo no dorso da
mão.
- Você trouxe o sol, Serenity.
- É obvio. - concordou ela, sorrindo amigavelmente - Ordenei que todos os dias que
eu permanecer na Bretanha devem ser ensolarados e brilhantes.
Retirando sua mão, Serenity sorriu a Geneviéve, que parecia uma bela prímula com
o vestido amarelo e o chapéu de aba estreita. Quando trocaram as saudações oportunas,
Yves se inclinou sobre ela como fosse um conspirador.
- Talvez agradaria você agarrar a oportunidade "ma chérie", e me acompanhar a dar
um passeio. O campo é verdadeiramente formoso depois da chuva.
- Temo que hoje Serenity estará muito ocupada - respondeu Christophe antes que
ela pudesse aceitar ou declinar o gentil convite formulado por Yves, e lhe lançou um olhar
fulminante - Sua segunda lição - disse Christophe brandamente, ignorando a fúria que se
instalou nos olhos ambarinos dela.
- Lição? - repetiu Yves com um sorriso divertido - O que é que está ensinando à sua
adorável prima, Christophe?
- Equitação - respondeu ele - no momento.
- Ah, não poderia ter encontrado melhor instrutor - interveio Geneviéve, roçando
levemente o braço de Christophe
- Foi ele quem me ensinou a montar quando meu pai e Yves já tinham me
catalogado como uma inútil irrecuperável. É tão paciente - acrescentou.
Seus olhos de cocker spaniel olharam ao homem moreno e esbelto e Serenity
afogou um sorriso de incredulidade.
Paciente seria a última palavra que ela empregaria para descrever Christophe.
Arrogante, exigente, autocrático, soberbo... começou a enumerar em silêncio as
qualidades que atribuía ao homem que estava junto a ela. E também Cínico e altivo. Sua
atenção se desviou da conversação e seu olhar se dirigiu para uma menina que estava
sentada no pasto jogando com um cachorrinho preto e brincalhão. O cãozinho lambia
alternadamente o rosto da pequena e punha-se a correr a seu redor descrevendo
frenéticos círculos, enquanto as risadas jubilosas da menina se elevavam no ar. Os dois
compunham uma imagem tão inocente e relaxante que Serenity necessitou uns segundos
antes de reagir frente ao que aconteceu imediatamente depois.
De repente o cachorrinho cruzou correndo a erva em direção à rua e a menina,
levantando-se, correu atrás dele lhe chamando. Serenity observou sem reagir o carro que
se aproximava. Então uma gelada sensação de terror se apoderou dela quando
comprovou que a pequena continuava sua corrida para a rua.
Sem pensar duas vezes, se lançou atrás da menina enquanto, em língua bretã,
gritava-lhe que se detivesse. Mas a atenção da menina estava concentrada em sua
pequena mascote e correu pelo pasto até acessar a rua por onde se aproximava o carro.
Serenity ouviu o chiado dos freios quando seus braços agarraram a menina e sentiu
a corrente de ar e o ligeiro golpe do pára-choque do carro contra seu flanco enquanto se
lançava através da rua com a menina firmemente sujeita entre seus braços, aterrissando
a uns metros de distância. Durante um instante se fez um grande silêncio e logo se
desatou uma verdadeira gritaria quando o cachorrinho, sobre o qual agora estava
sentada Serenity, começou a uivar para sair de sua incômoda situação e a menina,
soluçando, chamou a sua mãe unindo-se à indignação do cão.
De repente, um coro de vozes excitadas em uma mescla de dialetos locais se uniu
aos uivos e aos soluços. Serenity, atordoada e confusa, não tinha forças para tirar seu
peso de cima do pobre cachorrinho e a menina se liberou de seus braços para correr e
refugiar-se entre os braços de sua pálida e chorosa mãe.
Uns braços fortes ajudaram Serenity a ficar em pé, agarrando-a pelos ombros e
obrigando-a a girar a cabeça até encontrar-se com os olhos escuros e turbulentos de
Christophe.
- Está ferida? - Quando ela meneou a cabeça, ele continuou com voz tensa e irritada
- "Nom do Dieu"! Deve estar louca! - Sacudiu-a ligeiramente, aumentando seu
atordoamento - Poderia ter se matado! O carro não atropelou você por verdadeiro milagre!
- Estavam brincando tão docemente - recordou Serenity com um fio de voz - Então
esse cão tolo pôs-se a correr para a rua. Oh, pergunto-me se lhe terei feito mal; joguei-
me em cima dele. Não acredito que o pobre bichinho tenha gostado.
- Serenity. - A voz furiosa de Christophe e a violenta sacudida a obrigaram a fixar
sua atenção nele - "Mon Dieu"! Começo a acreditar que está louca!
- Sinto muito, - murmurou ela, sentindo-se vazia e enjoada - foi uma tolice pensar
primeiro no cão e depois na menina. Ela está bem?
Christophe deixou escapar uma série de insultos enquanto suspirava.
- "Oui", a pequena está com sua mãe. Moveu-se como uma pantera; de outro modo
nenhuma das duas estaria agora balbuciando tolices.
- A adrenalina - murmurou ela e se balançou - Acredito que já não fica uma só gota.
A pressão das mãos de Christophe se fez mais intensa em seus ombros enquanto
lhe observava o rosto.
- Você vai ficar deprimida?
Pergunta-a foi acompanhada por uma expressão carrancuda.
- É obvio que não - replicou ela, tratando de que sua voz soasse firme e mesurada,
mas conseguindo somente uma vacilante negação.
- Serenity. - Geneviéve chegou até ela, agarrando-a pelas mãos e abandonando
toda formalidade - foste muito valente.
As lágrimas brilhavam nos grandes olhos marrons e Geneviéve beijou as pálidas
bochechas de Serenity.
- Está ferida?
Yves repetiu a pergunta que lhe tinha feito Christophe e em seus olhos havia mais
preocupação que ira.
- Não, não, estou perfeitamente bem - lhe assegurou ela, reclinando-se
inconscientemente sobre Christophe em busca de apoio - O cachorrinho levou a pior
parte quando aterrissamos em cima dele.
"Só quero me sentar - pensou cansada - até que o mundo deixe de girar." Serenity
ouviu que a mãe da menina se dirigia a ela em língua bretã com os olhos ainda chorosos.
As palavras saíam de seus lábios cheias de emoção e o dialeto era tão fechado que teve
dificuldades para seguir a corrente de palavras. A mulher enxugava continuamente os
olhos com um enrugado lenço que levava na mão e Serenity lhe respondeu com
respostas que esperava fossem as corretas, sentindo-se incrivelmente cansada e
comovida quando a agradecida mulher a beijou como amostra de gratidão. Ante uma
ordem de Christophe, as duas mulheres se separaram e a mulher agarrou a sua filha e se
mesclou com a multidão.
- Venha. - Christophe deslizou um braço em torno da cintura de Serenity e a
multidão se separou em dois como as águas do Mar Vermelho quando ambos se
dirigiram de retorno à capela - Acredito que tanto você quanto esse vira-lata deveriam
levar uma surra.
- Que amável de sua parte nos pôr os dois juntos - disse ela e então ouviu o
profundo suspiro de sua avó que estava sentada em um pequeno banco de pedra, pálida
e subitamente envelhecida.
- Pensei que estaria morta - disse a condessa com voz pastosa e Serenity se
abaixou diante dela.
- Sou indestrutível, avó - disse com um sorriso seguro - É uma virtude que herdei
dos dois ramos de minha família.
Uma mão magra e ossuda colheu com força o braço de Serenity.
- É muito imprudente e obstinada - disse a condessa com voz firme - E gosto muito
de você.
- Eu também gosto da senhora - disse Serenity simplesmente.
Capítulo 7

Serenity insistiu em tomar sua lição de equitação depois do almoço, desobedecendo


tanto à prescrição de um prolongado descanso como a perspectiva de que visse um
médico.
- Não necessito um médico, avó e tampouco necessito repouso. Estou perfeitamente
bem. - encolheu-se de ombros, subtraindo importância ao incidente da manhã - Uns
poucos machucados e arranhões. Já disse que sou indestrutível.
- É obstinada - a corrigiu a condessa, e Serenity se limitou a sorrir e a encolher-se
novamente de ombros.
- Sofreu uma experiência traumática - disse Christophe, observando-a com olhos
críticos - Seria conveniente não realizar exercícios violentos.
- Por Deus, você também! - Afastou com impaciência sua taça de café - Não sou
uma dama vitoriana adoentada que sofre acessos de hipocondria e necessita que a
mimem. Se não quiser me dar a lição de equitação, chamarei Yves e aceitarei o convite
que você rechaçou por mim. - A expressão de seu rosto era decidida e mantinha o queixo
elevado em atitude desafiante - Não vou me colocar na cama no meio-dia como se fosse
uma criança.
- Muito bem. - Os olhos de Christophe se obscureceram - Terá sua lição de
equitação, embora talvez não resulte tão estimulante como a que Yves pretendia dar a
você.
Serenity olhou-o durante um momento e a surpresa deu lugar ao rubor que cobriu
suas bochechas. - Oh, realmente, que coisas tão ridículas você diz...
- Me reunirei contigo nas cavalariças dentro de meia hora.
Christophe interrompeu seu protesto, levantou-se da mesa e abandonou a habitação
antes que Serenity pudesse lhe responder como ele mereceu.
Voltou-se para sua avó com o rosto convertido em uma máscara indignada.
- Por que é tão terrivelmente rude comigo?
A condessa encolheu seus frágeis ombros em um gesto claramente expressivo e um
olhar ardiloso brilhou em seus olhos azuis.
- Os homens são criaturas muito complicadas, "chérie".
- Um dia - predisse Serenity franzindo a testa - um dia ele não partirá até que eu
tenha dito a última palavra.

Serenity se reuniu com Christophe à hora prevista, decidida a dedicar cada resquício
de energia ao desenvolvimento da técnica eqüestre adequada. Procedeu montando a
égua com concentrada segurança e então seguiu seu silencioso instrutor quando este
dirigiu seu alazão em direção oposta a que tinham tomado em sua última saída. Quando
Christophe impulsionou a sua montaria a um ligeiro galope, Serenity fez o mesmo e
experimentou a mesma intoxicante liberdade que havia sentido antes. Não obstante, nos
traços de Christophe não apareceu o súbito e brilhante sorriso e de seus lábios não saiu
nenhuma frase zombadora, e Serenity disse a si mesma que na verdade estava melhor
sem essas demonstrações. Christophe lhe deu algumas instruções ocasionais e ela
obedeceu imediatamente porque precisava lhe provar, e provar-se a si mesma, que era
perfeitamente capaz de fazê-lo. Assim Serenity se contentou seguindo as instruções e
observando ocasionalmente o aquilino perfil de Christophe.
"Que o Senhor me ajude - suspirou Serenity sentindo-se frustrada - Ele vai obcecar-
me pelo resto de minha vida. Terminarei sendo uma solteirona excêntrica e comparando
todos os homens que encontrar com aquele que não pude ter. Quisera nunca o tivesse
conhecido."
- "Pardon"?
A voz de Christophe a tirou de suas silenciosas meditações e Serenity se
sobressaltou, dando-se conta de que talvez tinha murmurado algo em voz alta.
- Nada - balbuciou - não era nada. - Lançou um profundo suspiro e franziu o cenho -
Poderia jurar que cheiro o mar. - Christophe reprimiu seu cavalo e ela fez o mesmo com a
égua até que ambos os animais caminharam no mesmo ritmo. de repente, um ruído
surdo alterou o silêncio. - Foi um trovão? - perguntou Serenity elevando a vista ao céu
azul, mas o ruído não cessou - É o mar! - exclamou, esquecendo toda animosidade -
Estamos perto? Poderei vê-lo? - Ele se limitou a deter seu cavalo e desmontar -
Christophe, pelo amor de Deus! - Serenity lhe observou com recente exasperação
enquanto ele atava as rédeas a uma árvore - Christophe! - repetiu Serenity, saltando dos
arreios com mais velocidade que graça. Ele a agarrou por um braço quando ela caiu
desajeitadamente no chão e segurou a égua junto ao alazão antes de pôr-se a andar por
um atalho - Pode escolher o idioma que desejar - convidou ela generosamente - mas fale
comigo antes que eu enlouqueça!
Christophe se deteve, deu meia volta e, atraindo-a para ele, cobriu-lhe a boca com
um beijo breve e perturbador.
- Você fala muito - disse, simplesmente, e continuou seu caminho.
- Realmente, acredito...
Serenity tentou lhe responder mas desistiu disso quando Christophe se voltou para
olhá-la. Satisfeito, aparentemente, com seu silêncio, ele a guiou através da campina
enquanto o rumor do mar se fazia mais insistente. Quando Christophe se deteve, Serenity
conteve a respiração perante o panorama que se estendia a sua frente. O mar ocupava
toda a distância que podia abranger seu olhar e os raios do sol dançavam sobre a
superfície verde da água. As ondas chegavam a acariciar as rochas e sua espuma
parecia um laço em um vestido de veludo. Com ar provocador, a água se retirava da
areia só para retornar um momento depois como se fosse um amante caprichoso.
- É maravilhoso - suspirou Serenity, recreando-se no ar salino e na brisa que
brincava com seu cabelo loiro - Suponho que você já deve estar acostumado a tanta
beleza, mas duvido de que eu possa fazê-lo.
- Sempre desfruto da contemplação do mar - respondeu ele, enquanto seus olhos
pareciam perder-se no horizonte longínquo, onde o céu azul beijava o verde intenso da
água - Tem um caráter volúvel e, talvez por isso, os pescadores digam que é uma mulher.
Hoje o vê tranqüilo e aprazível, mas quando está irritado constitui um espetáculo
irrepetível.
Christophe deslizou uma mão pelo braço de Serenity em um gesto simples e íntimo
que ela não esperava dele e seu coração pareceu dar um tombo dentro do peito.
- Quando eu era um menino, pensava em escapar ao mar e viver minha vida na
água e navegar com suas mudanças de humor.
Seu polegar acariciou a palma da mão de Serenity e ela se viu obrigada a respirar
antes de poder falar.
- Por que não fez isso?
Christophe se encolheu e ela se perguntou se recordaria que estava ali.
- Descobri que a terra também tinha sua própria magia..., pastos de brilhantes cores,
um chão rico, vinhedos de cor púrpura e gado que pastoreia placidamente sob o sol.
Lançar-se ao galope e percorrer estas terras é tão excitante quanto navegar sobre as
ondas do mar. A terra é meu trabalho, meu prazer e meu destino.
Ele a olhou até o fundo de seus olhos ambarinos, abertos e assombrados no rosto
rosado, e algo ocorreu entre eles, algo que brilhava tenuemente e se expandia, até que
Serenity se sentiu sobressaltada por seu poder. Então, encontrou-se esmagada contra
ele e o vento assobiava em torno deles como se fosse cordas que pretendessem enlaçá-
los intimamente enquanto a boca de Christophe exigia uma rendição absoluta. Serenity
se agarrou a ele quando o rugido do mar se intensificou até tornar-se ensurdecedor e, de
repente, encontrou-se se apertando contra seu peito musculoso e lhe exigindo mais e
mais.
Se o humor do mar era tranqüilo e aprazível, o de Christophe absolutamente não
parecia assim. Indefesa por sua própria necessidade, Serenity se recreou na selvagem
posse de seus lábios ardentes e na urgente insistência das mãos que a reclamavam
como se ela lhes pertencesse por direito. Tremendo, embora não de temor mas sim pelo
desejo de entregar-se, apertou-se ainda mais contra ele, desejando febrilmente que ele
tomasse o que lhe estava oferecendo.
A boca de Christophe se afastou ligeiramente por um instante e Serenity meneou a
cabeça rechaçando a momentânea liberdade, atraindo sua cabeça novamente para ela
com lábios que imploravam a fusão com os dele. Os dedos de Serenity se cravaram na
lustrosa pele dos ombros de Christophe quando ele voltou a abraçá-la com paixão
enquanto sua boca a buscava, presa de uma nova voracidade, como se precisasse
mordê-la para não morrer de fome. Uma de suas mãos deslizou por debaixo da seda de
sua blusa para reclamar um peito que se estremeceu ante a febril carícia, os dedos
quentes vagavam como brasas acesas sobre a pele suave e, embora sua boca tenha
sido conquistada, a língua de Christophe exigia agora a íntima e profunda umidade,
fazendo que Serenity murmurasse uma e outra vez seu nome até que tudo pareceu
esfumar-se.
Os poderosos braços de Christophe voltaram a envolvê-la contra ele, as mãos
abandonaram sua exploração e o fôlego desapareceu e foi esquecido ante essa força
nova e entristecedora. Os seios suaves estavam esmagados contra a dura rocha de seu
torso, as coxas se acoplavam geometricamente, os corações pulsavam em uníssono e
Serenity soube que tinha dado o passo para o precipício e que jamais retornaria à
segurança da terra.
Christophe a soltou tão abruptamente que ela teria caído se ele não a tivesse pego
por um braço.
- Agora devemos retornar - disse como se nada tivesse ocorrido - Já é tarde.
Serenity elevou as mãos para afastar os rebeldes cachos que caíam sobre seu rosto
e olhou Christophe com olhos implorantes e confusos. - Christophe.
Pronunciou seu nome com um sussurro, incapaz de articular nenhum outro som, e
ele a olhou com expressão sombria e, como sempre, insondável.
- Já é tarde, Serenity - repetiu e a ira que se percebia em sua voz não fez a não ser
aumentar sua perplexidade.
Serenity sentiu um súbito golpe de frio e rodeou o corpo com os braços para
controlar o tremor de seu corpo.
- Christophe, por que está zangado comigo? Não fiz nada de mau.
- Não?
Seus olhos se entrecerraram, obscurecendo-se com sua habitual mudança de
humor e, através da dor que lhe produzia seu rechaço, Serenity sustentou seu olhar.
- Não. O que eu poderia fazer a você? É tão insuportavelmente superior, sentado em
seu trono de ouro. Uma meio-aristocrata como eu dificilmente poderia subir a seu nível
para causar-lhe dano.
- Sua língua lhe causará muitos problemas, Serenity, a menos que aprenda a
controlá-la.
Agora a voz de Christophe era precisa e muito controlada, mas Serenity descobriu
uma pontinha de prudência enterrada sob uma crescente montanha de fúria.
- Bem, até que resolva fazê-lo é provável que a empregue para dizer exatamente o
que penso a respeito de sua atitude arrogante, autocrática, dominante e exasperadora
para a vida em geral e para mim em particular.
- Para uma mulher com seu gênio, - começou a dizer ele com um tom de voz que ela
julgou muito suave e muito meloso - minha querida prima, deve recordar
permanentemente que há um só amo. - Agarrou-a pelo braço com veemência e pôs-se a
andar afastando-os do mar - Digo que retornamos ao castelo.
- Você retornará ao castelo, monsieur - replicou ela, mantendo-se firme e olhando-o
com fúria - Ou a qualquer outro lugar que desejar.
Sua retirada, furiosamente digna, só alcançou uns três passos antes que uns dedos
de aço a agarrassem pelos ombros e a obrigassem a voltar-se para encontrar-se com
uma explosão de ira que fez com que seu próprio estado de ânimo parecesse tranqüilo.
- Obriga-me a pensar novamente na sabedoria que implica golpear uma mulher.
Sua boca voltou a beijá-la com maior violência que se tivesse empregado os punhos
e Serenity sentiu pânico ao encontrar em seus lábios somente ira e nenhum vestígio de
desejo. Os dedos de Christophe se cravaram em seus ombros mas ela decidiu não lutar
contra ele, permanecendo passiva entre seus braços enquanto toda sua coragem se
dissolvia em pura indefensibilidade
Quando, finalmente, ele a soltou, Serenity o olhou, vencendo o véu de lágrimas que
começava a cobrir seus olhos.
- Você tem todas as vantagens, Christophe, e sempre me derrotará fisicamente.
Sua voz era tranqüila e cuidadosamente modulada e percebeu que ele franzia o
cenho com um gesto de assombro ante sua reação. Christophe estendeu uma mão para
enxugar uma lágrima rebelde que tinha rodado pela lisa bochecha de Serenity e ela se
afastou rapidamente, passando uma mão por seu rosto e piscando para reprimir o pranto.
- Por hoje já tive minha cota de humilhação e não penso me jogar a chorar para que
se sinta satisfeito de sua obra. - Sua voz se tornou mais firme quando pôde controlar
suas emoções, e seus ombros ficaram rígidos enquanto Christophe observava em
silêncio a transformação que se operava nela - Como disse, está ficando tarde. - Dando
meia volta, pôs-se a andar em direção aos cavalos.

Os dias transcorriam placidamente, quentes dias estivais cheios de sol e do doce


perfume das flores. Serenity dedicava a maior parte das horas de luz pintando,
reproduzindo sobre o tecido as linhas orgulhosas e inconquistáveis do castelo. Percebeu,
ao princípio com desesperança e logo com crescente ira, que Christophe a evitava
deliberadamente. Desde aquela tarde em que tinham estado junto ao escarpado, lhe
tinha falado apenas o necessário, e sempre com forçada cortesia. O orgulho logo cobriu
seu sofrimento como uma atadura sobre uma ferida aberta e a pintura se converteu em
um refúgio contra a saudade.
A condessa não voltou a mencionar a Madonna de Rafael e Serenity se alegrou de
que o tempo começasse a apagar suas diferenças, desejando fortalecer o vínculo que
tinha nascido entre elas a se aprofundar no desaparecimento da famosa pintura e na
acusação formulada contra seu pai.
Estava totalmente imersa em seu trabalho, vestida com uns jeans velhos e um
avental manchado de pintura e com o cabelo alvoroçado por sua própria mão, quando viu
que Geneviéve se aproximava cruzando o suave tapete de erva. "Uma formosa fada
bretã, pensou Serenity, pequena e encantadora com sua jaqueta de equitação e suas
calças cor camurça."
- "Bonjour", Serenity - exclamou quando ela elevou uma mão para saudá-la - Espero
não incomodá-la.
- É obvio que não. Sempre é uma alegria voltar a ver você.
As palavras fluíram com facilidade de seus lábios porque era seu coração que falava.
Serenity sorriu e largou seu pincel.
- Oh, fiz que deixasse de pintar - disse Geneviéve a modo de desculpa.
- Deu-me uma maravilhosa desculpa para que deixasse de fazê-lo - corrigiu Serenity.
- Posso olhar? - perguntou Geneviéve - Ou prefere que ninguém veja sua obra antes
que esteja terminada?
- Claro que pode olhá-la. E me diga o que pensa.
Geneviéve se aproximou até ficar junto a Serenity. O fundo do quadro estava
terminado; o céu cor azul celeste, nuvens como de lã, pasto de um verde intenso e
árvores majestosas. O castelo ia tomando forma gradualmente: os muros cinzas
resplandeciam com a cor das pedras sob a luz do sol e também as janelas verticais e as
altas torres. Ainda havia muito por fazer, mas até em sua incompletação a pintura tinha
captado a atmosfera mágica que Serenity tinha visto ao chegar ao castelo.
- Sempre amei este castelo - afirmou Geneviéve sem afastar os olhos da tela - E
vejo que você também o ama. - Os olhos pensativos se separaram do tecido para fixar-se
em Serenity - Soube captar sua calidez, e também sua arrogância. Alegra-me que o veja
igual ao modo que o vejo.
- Apaixonei-me pelo castelo no primeiro momento em que o vi - admitiu Serenity - Os
dias passam e me sinto mais prisioneira de sua serena beleza.
Suspirou sabendo que suas palavras se referiam, em realidade, ao homem e
também a seu lar.
- É afortunada por possuir esse dom. Espero que não pense mal de mim se
confessar algo.
- Não, certamente que não - lhe assegurou Serenity, surpreendida e ao mesmo
tempo intrigada pelas palavras de Geneviéve.
- Sinto uma terrível inveja de ti - confessou de repente como se temesse que lhe
falhasse a voz.
Serenity observou o formoso rosto com enorme surpresa.
- Você, me inveja?
- "Oui". - Geneviéve hesitou por um momento e então começou a falar
precipitadamente - Não só por seu talento como artista, mas por sua segurança e sua
independência. - Serenity a escutava com crescente perplexidade - Tem algo que faz
com que a gente se sinta fascinada com você... uma sinceridade, uma calidez no olhar
que faz que alguém queira confiar em você, sabendo que será capaz de compreendê-lo
em tudo.
- Que extraordinário - murmurou Serenity sobressaltada—. Mas, Geneviéve -
começou a dizer com voz suave - você é tão encantadora e carinhosa, como pode invejar
a alguém e muito menos a mim? Faz que me sinta como uma verdadeira amazona.
- Os homens lhe tratam como a uma mulher - explicou com um tom de voz que era
quase desesperado - Eles a admiram não só por sua beleza, mas também pelo que é. -
Geneviéve se voltou e logo olhou novamente Serenity enquanto passava uma mão por
sua formosa cabeleira - O que faria você se amasse a um homem, se lhe tivesse amado
toda sua vida com o coração de uma verdadeira mulher, e ele só a considerasse como
uma menina divertida?
Serenity sentiu que uma nuvem de angústia envolvia seu coração. "Christophe, -
pensou - Deus do céu, ela quer que a aconselhe com respeito a Christophe." Fez um
grande esforço para não começar a rir histericamente. "supõe-se que devo lhe dar
conselhos sobre o homem que amo. Pediria ela a mim se soubesse o que Christophe
pensa de mim... e de meu pai?" Seus olhos se posaram no escuro olhar da jovem, um
olhar cheio de esperança e espera. Lançou um profundo suspiro.
- Se estivesse apaixonada por um homem semelhante, me esforçaria por lhe fazer
saber que sou uma mulher e que assim é como quero que ele me veja.
- Mas como? - a mão de Geneviéve se elevou em um gesto de impotência - Sou
uma covarde. Inclusive é provável que chegue a perder sua amizade.
- Se realmente lhe ama terá que se arriscar ou passar o resto de sua vida como sua
amiga. Deve dizer a... a esse homem, da próxima vez que a tratar como uma menina,
que é uma mulher. Deve fazer que compreenda de modo que em sua mente não fique
nenhuma dúvida de que fala a sério. Então ele deverá dar o passo seguinte.
Geneviéve suspirou e se encolheu. - Pensarei no que acaba de me dizer. - Voltou a
olhar Serenity com olhos agradecidos - Obrigado por me escutar, por ser minha amiga.
Serenity observou a miúda figura quando Geneviéve se afastou pelo atalho. "É uma
verdadeira mártir - disse a si mesma - Eu pensava que as renúncias produziam uma
cálida sensação interior, mas me sinto fria e miserável." Começou a recolher seus
materiais de pintura. Já não encontrava prazer em seu trabalho. "Acredito que renunciarei
ao martírio e dedicarei às viúvas e aos órfãos. Isso não fará com que me sinta pior."
Com uma grande depressão instalada na alma, Serenity subiu ao seu quarto para
guardar a tela e os pincéis. Com o que considerou um esforço hercúleo, a encobriu para
sorrir à criada que estava colocando lençóis limpos no armário.
- "Bonjour", mademoiselle.
Bridget a saudou com um encantador sorriso e os olhos ambarinos de Serenity
piscaram ante a alegria que emanava da moça.
- "Bonjour", Bridget. Parece que se sente muito feliz esta manhã. - Jogando uma
olhada aos raios de sol que atravessavam triunfalmente o cristal da janela, Serenity
suspirou e se encolheu de ombros - Suponho que é um formoso dia.
- "Oui", mademoiselle. Que dia! - Bridget assinalou o céu azul com uma mão em que
brilhava a suave seda - Acredito que nunca tinha visto sorrir o sol com tanta doçura.
Serenity se sentiu incapaz de se deixar abater pela depressão ante semelhante
ataque de bom humor e se deixou cair sobre uma cadeira enquanto sorria.
- A menos que minha leitura dos sinais não seja a correta, eu diria que é o amor
quem está sorrindo docemente.
O intenso rubor acrescentou ainda mais encanto ao jovem rosto quando Bridget fez
uma pausa em suas tarefas para lhe devolver um sorriso luminoso.
- "Oui", mademoiselle Serenity. Estou muito apaixonada.
- E deduzo por seu olhar... - Serenity continuou lutando contra a sensação de inveja
que despertava nela a excitação da moça que também é amada.
- "Oui", mademoiselle. - A luz do sol e a felicidade formaram um halo em torno de
Bridget - Jean Paul e eu nos casaremos no sábado.
- Casarão? - repetiu Serenity com perplexidade ao observar a figura miúda do
Bridget - Que idade tem, Bridget?
- Dezessete - disse ela, com uma inclinação de cabeça pela vasta coleção de anos
que acabava de confessar.
- Dezessete - repetiu Serenity com um suspiro involuntário.
"De repente me sinto como se tivesse noventa e dois."
- Casaremo-nos no povoado - continuou Bridget, inspirada pelo interesse que
mostrava Serenity- Depois da cerimônia, todo mundo virá ao castelo e dançaremos e
cantaremos no jardim. O conde é um homem muito generoso e muito bondoso. Disse que
haverá champanha.
Serenity descobriu que a alegria se convertia em admiração.
- Bondoso - sussurrou enquanto esse adjetivo dava voltas na cabeça.
"A bondade não é uma virtude que eu teria atribuído a Christophe." Deixando
escapar um profundo suspiro, recordou a carinhosa atitude de Christophe para
Geneviéve. "Obviamente, eu não acordo nele essas demonstrações de afeto."
- Mademoiselle tem coisas tão belas...
Serenity elevou a vista e viu que Bridget acariciava um salto de cama branco e
vaporoso com olhos sonhadores.
- Você gosta?
Ficou em pé e roçou os bordados do tecido, recordando a sedosa textura contra sua
pele e logo a deixou cair como se fosse um floco de neve. - Oh, oui, mademoiselle.
Com um suspiro de inveja e feminina admiração, Bridget se dispôs a pendurar o
objeto no armário.
- É teu - disse Serenity impulsivamente e a criada se voltou com os olhos abertos,
como dois pratos negros.
- "Pardon", mademoiselle?
- É teu - repetiu Serenity, sorrindo ante o assombro que expressava o rosto de
Bridget - Como presente de bodas.
- Oh, não, eu não posso... é muito formoso. - Sua voz se converteu em um sussurro
enquanto admirava o objeto com aparente desejo - Mademoiselle não resistiria desfazer-
se dele.
- É obvio que posso me desfazer dele. - a corrigiu Serenity - É um presente e me
alegrará saber que o desfruta. - Observando o delicado objeto que Bridget apertava
contra seu peito, suspirou com uma mescla de inveja e desesperança - Foi confeccionado
para uma noiva e estará preciosa com ele para seu Jean Paul.
- Oh, mademoiselle! - exclamou Bridget visivelmente emocionada e tratando de
conter as lágrimas - O conservarei como se fosse um tesouro.
A estas palavras seguiu uma verdadeira corrente de expressões de agradecimento
em língua bretã que comoveram Serenity. Deixou a futura noiva olhando-se no espelho
com o salto de cama colocado em cima do avental e sonhando com sua noite de bodas.

O sol voltou a sorrir docemente no dia das bodas de Bridget. O céu estava
incrivelmente azul e pequenas nuvens brancas salpicavam a uniformidade da cor.
Com o correr dos dias, a depressão que sentia Serenity se transformou em um frio
ressentimento. O comportamento distante de Christophe avivava o fogo de seu
temperamento mas, com firme determinação, ela o tinha enterrado sob um gelo
igualmente desdenhoso. Em conseqüência, suas conversações se limitaram a umas
frases breves e formalmente corteses.
Serenity estava entre a condessa e Christophe no cuidado canteiro da igreja do povo,
esperando a procissão nupcial. O vestido de seda natural que tinha eleito
deliberadamente por seu aspecto frio e intangível tinha sido rechaçado categoricamente
por sua avó com uma gesto régio de sua enfeitada mão. Como resultado disso, se
apresentou à cerimônia com um conjunto que tinha pertencido a sua mãe e o aroma a
lavanda se percebia nitidamente no tecido como se a tivessem perfumado no dia anterior.
Em lugar de parecer uma mulher sofisticada e distante, tinha o aspecto de uma moça que
espera que alguém venha apanhá-la para levá-la a uma festa.
A saia vincada roçava apenas os joelhos, suas listas brancas e vermelhas verticais
terminavam em um curto avental branco. A blusa camponesa de decote pronunciado se
ajustava na breve cintura e suas mangas curtas e folgadas deixavam os braços nus ao
sol. Um colete negro sem mangas se ajustava perfeitamente sobre a suave curva de seus
peitos e seus loiros cabelos estavam cobertos por um chapéu de palha adornado com
fitas.
Christophe não tinha feito nenhum comentário a respeito de seu aspecto, limitando-
se a inclinar ligeiramente a cabeça quando ela desceu as escadas e agora Serenity
mantinha a guerra de silêncio dirigindo toda a conversação para sua avó.
- Eles chegarão da casa da noiva - lhe informou a condessa e, embora Serenity era
consciente da presença do homem moreno que estava junto a ela, parecia extremamente
interessada no que sua avó lhe estava dizendo - Toda sua família a acompanhará em seu
último passeio como solteira. Então, ela se reunirá com o noivo e entrará na capela para
converter-se em sua esposa.
- É tão jovem - disse Serenity com um afogado suspiro - apenas um pouco maior
que uma menina...
- "Alors", já tem idade suficiente para ser uma mulher, minha querida "anciã". - Com
um leve sorriso, a condessa deu uns tapinhas na mão de Serenity - Eu tinha
aproximadamente sua idade quando me casei com seu avô. A idade tem muito pouco a
ver com o amor. Não acha, Christophe?
Serenity sentiu, mais que viu, como ele se encolhia de ombros.
- Isso parece, avó. Antes de cumprir os vinte anos, nossa pequena Bridget terá um
pirralho brincando sobre seu avental e outro debaixo dele.
- Tomara! - suspirou a condessa com suspeita nostalgia e Serenity se voltou para
observá-la com curiosidade - Parece que nenhum de meus netos está disposto a me dar
meninos para que os malcrie. - Olhou Serenity com olhos tristes e inocentes - É muito
difícil ser paciente quando se envelhece.
- Mas muito mais fácil ser ardiloso - comentou Christophe com voz seca e Serenity
não pôde evitar olhá-lo.
Christophe retribuiu o olhar elevando uma sobrancelha e ela manteve seu olhar
tranqüilamente, decidida a não sucumbir ao seu feitiço.
- Você quer dizer sábia, Christophe - corrigiu a condessa sem alterar-se - Essa é
uma verdade absoluta. "Voilá"! - exclamou antes que ele pudesse fazer algum outro
comentário - Ali vêm eles!
Um grupo de meninos pequenos jogava no ar suaves e delicadas pétalas que
dançavam com a brisa antes de cair ao chão. As pétalas formavam um tapete de amor
para os pés da noiva. Pétalas inocentes e silvestres do bosque e dos prados, e os
meninos dançavam em círculos enquanto as ofereciam ao jogo caprichoso da brisa.
Rodeada por sua família, a noiva caminhava como se fosse uma boneca pequena e
delicada. Usava um vestido tradicional e obviamente antigo, e Serenity pensou que
jamais tinha visto uma noiva tão radiante e um vestido mais perfeito.
De um branco antigo, a saia ampla e vincada caía da cintura até um palmo da rua
semeada de flores. O decote era alto e fechado com um broche, e a parte superior do
vestido era rodeada e estava adornada com um delicado bordado. Bridget não usava véu,
mas sim um chapéu redondo e branco, coroado por uma meia lua de flores que conferia à
noiva uma beleza exótica e atemporal.
O noivo se reuniu com ela e Serenity notou, quase com alívio maternal, que Jean
Paul parecia tão bom e inocente quanto à própria Bridget. Jean Paul também estava
vestido seguindo a tradição: calças brancas dentro de botas delicadas e uma jaqueta cor
azul escura sobre uma impecável camisa branca com o peitilho bordado. O chapéu
bretão de aba estreita, com suas fitas de veludo, acentuava sua juventude e Serenity
supôs que era apenas um pouco mais velho que Bridget.
Um halo de amor jovem parecia rodeá-los, puro e tenro como o céu matinal, e o
súbito e inesperado acesso de nostalgia deixou Serenity sem fôlego e logo cruzou com
força as mãos para combater um repentino estremecimento. "Se só uma vez - pensou e
engoliu com dificuldade para umedecer a secura que se instalou em sua garganta - só
uma vez, Christophe tivesse me cuidadoso desse modo eu poderia viver com essa
recordação durante o resto de minha vida."
Sobressaltou-se quando alguém lhe tocou o braço e elevou a vista para encontrar o
olhar ligeiramente zombador de Christophe, seus olhos sempre frios. Elevando o queixo,
permitiu que ele a acompanhasse até o interior da capela.

O jardim do castelo era um mundo perfeito para celebrar umas novas bodas, cheio
de vida, de perfumes e de cores brilhantes. O terraço estava coberto de mesas com
toalhas brancas sobre as quais se amontoavam as travessas com comida e numerosas
garrafas de vinho da região. O castelo tinha cedido para a ocasião sua melhor baixela e a
prata e o cristal esculpido refulgiam com o orgulho de sua antigüidade sob a luz do sol. E
o povo, observou Serenity, aceitava-o como seu direito. Eles pertenciam ao castelo e este
lhes pertencia . A música se elevava por cima do murmúrio das vozes e das risadas; as
doces e alegres cordas dos violinos harmonizavam com o som das gaitas de fole.
Serenity observou do terraço o primeiro baile dos noivos já como marido e mulher,
uma dança típica da Bretanha, cheia de encantadores e atrevidos movimentos, e Bridget
paquerava seu marido com inclinações de cabeça e olhos zombadores enquanto os
convidados celebravam jubilosamente. O baile continuou, cada vez mais animado, e
Serenity se viu empurrada para a multidão por um Yves encantadoramente resolvido.
- Mas eu não sei como dançar esta dança - protestou ela, incapaz de impedir a
risada que lhe provocava a insistência de Yves.
- Eu te ensinarei - respondeu ele simplesmente, lhe agarrando ambas as mãos -
Christophe não é o único instrutor deste lugar. - Yves inclinou a cabeça ao perceber a
expressão de Serenity - Ahá! Já suspeitava disso. - A expressão dela se fez mais
eloqüente com a ambigüidade de suas palavras mas ele se limitou a sorrir, elevou uma
mão até posá-la sobre seus lábios e acrescentou - Agora daremos um passo para a
direita.
Apanhada em sua primeira lição de baile e então no prazer da música e dos
diferentes movimentos que aquela sugeria, Serenity sentiu que as tensões acumuladas
nos dias precedentes começavam a desvanecer-se. Yves era atento e encantador,
dançava com ela e logo desaparecia para retornar com taças cheias de champanha. Em
uma ocasião Serenity descobriu Christophe dançando com a graciosa e miúda Geneviéve
e uma nuvem de desassossego ameaçou seu radiante sol. Voltou-se rapidamente porque
não desejava ver-se novamente perdida em um poço de depressão.
- Vê, "chérie", já dança com absoluta naturalidade - disse Yves quando a música
cessou.
- Certamente são meus genes bretões os que foram a meu resgate.
- De modo - repreendeu ele com ar divertido - que não outorga nenhum mérito a seu
instrutor?
- É obvio que sim - Serenity sorriu e fez uma pequena reverência - Meu instrutor é
encantador e muito hábil.
- É verdade - concordou ele e seus olhos castanhos desmentiram a solenidade de
seu tom - E minha aluna é formosa e encantadora.
- É verdade - concordou ela por sua vez e, tornando-se a rir, enlaçou seu braço com
o do Yves. - Ah, Christophe - a risada de Serenity se congelou quando viu que Yves
olhava por cima de sua cabeça - usurpei seu papel como instrutor.
- Parece que ambos estão desfrutando com a mudança.
Para ouvir a gelada cortesia de sua voz, Serenity se voltou para ele cautelosamente.
Christophe tinha uma incrível semelhança com o conde aventureiro e contrabandista cujo
retrato estava pendurado em uma das paredes do castelo. Levava a camisa branca
descuidadamente aberta para revelar o forte estrutura de seu pescoço, e o colete sem
mangas constituía um assombroso contraste. As calças pretas estavam embutidas em
um par de botas de couro e Serenity chegou à conclusão de que seu aspecto era mais
perigoso que elegante.
- Uma aluna maravilhosa, "mon ami", e estou certo de que estará de acordo comigo.
- A mão de Yves descansava naturalmente sobre os ombros de Serenity enquanto sorria
ao rosto impassível de Christophe - Talvez goste de comprovar as bondades de minhas
lições.
- Certamente.
Christophe aceitou a sugestão com uma leve Inclinação de cabeça. Então, com um
gesto elegante e antiquado elevou uma mão com a palma para cima convidando que
Serenity apoiasse a sua.

Ela duvidou por um instante, temendo e desejando o contato com sua pele. Então,
advertindo um olhar desafiante em seus olhos escuros, apoiou a palma de sua mão com
graciosa elegância.
Serenity se moveu ao compasso da música seguindo com facilidade os passos da
antiga dança. Com os casais girando, inclinando-se e unindo-se brevemente, o baile
começou como uma confrontação, uma luta formalizada entre o homem e a mulher. Seus
olhares se encontraram: o de Christophe era confiante e descarado, o de Serenity
desafiante, e ambos se moveram descrevendo círculos alternados e roçando as Palmas
de suas mãos. Quando o braço de Christophe lhe enlaçou a cintura, Serenity jogou a
cabeça para trás para não desviar o olhar, ignorando o súbito estremecimento provocado
pelo roçar de suas coxas.
Os passos se fizeram mais rápidos com a música, a melodia se tornou mais
exigente, a antiga coreografia da dança se tornou mais sedutora e o contato dos corpos
se prolongava com o jogo galante. Serenity manteve o queixo elevado com expressão
insolente e seus olhos brilhavam desafiantes, mas sentiu que uma onda de calor subia
por seu corpo quando Christophe acentuou a pressão de seu braço em sua cintura,
atraindo-a a ele em cada novo giro. Aquilo, que tinha começado como um duelo, era
agora uma forma de total sedução e ela sentiu que a força silenciosa se apoderava de
sua vontade com mesma segurança que o teriam feito seus lábios. Sustentando-se
apenas em um precário controle de suas emoções, retrocedeu um passo procurando a
segurança que a distância podia proporcionar. O braço de Christophe voltou a apertá-la
contra seu corpo e, com absoluta impotência, seus olhos procuraram a boca que rondava
perigosamente sobre seus lábios ansiosos. Sua boca se abriu, como protesto e também
como convite, e a de Christophe desceu até que ela pôde saborear seu fôlego em sua
língua.
Quando a música cessou, o silêncio foi como um trovão e Serenity observou
assombrada Christophe quando ele afastava a promessa de sua boca com um sorriso
vitorioso.
- Terá que felicitar seu professor, Serenity - disse.
Suas mãos abandonaram sua cintura e, com um leve reverência, partiu deixando-a
sozinha.

Quanto mais remoto e taciturno se tornava Christophe, mais aberta e expansiva se


mostrava à condessa, como se ela percebesse exatamente sua mudança de humor e
procurasse lhe provocar.
- Parece preocupado, Christophe - disse a condessa ingenuamente, enquanto
jantavam sentados à larga mesa de carvalho - Tem problemas com o gado ou, talvez,
trata-se de um assunto do coração?
Serenity se obrigou a manter seu olhar fixo na taça de vinho, fascinada pela suave
cor do líquido.
- Simplesmente, estou desfrutando desta excelente comida, avó - respondeu
Christophe sem morder o anzol - No momento não tenho problemas com o gado... e
tampouco com as mulheres.
- Ah. - A condessa suspirou - Talvez você coloque ambos no mesmo grupo.
Os largos ombros de Christophe se encolheram em um típico gesto francês. -
Ambos exigem atenção e mão firme, não é verdade?
Serenity engoliu um pedaço de pato à laranja antes de correr o risco de sufocar-se.
- Deixou muitos corações destroçados nos Estados Unidos, Serenity?
A condessa falou antes que Serenity pudesse verbalizar os pensamentos
assassinos que se formavam em seu cérebro.
- Dúzias - respondeu, dirigindo um tenebroso olhar a Christophe - Tenho descoberto
que alguns homens carecem da inteligência do gado e com muita freqüência têm os
braços, quando não o cérebro, de um polvo.
- Talvez estiveste se relacionando com homens que não eram os adequados -
sugeriu Christophe com voz calma.
Esta vez foi Serenity a que se encolheu de ombros.
- Os homens são todos iguais - disse com indiferença, procurando lhe provocar com
sua generalização - Eles querem um corpo quente para acariciar nas esquinas escuras
ou uma peça de porcelana de Dresde para colocar sobre uma prateleira.
- E em sua opinião, como se deve tratar uma mulher? - perguntou Christophe,
enquanto a condessa se acomodava em sua cadeira e desfrutava do frutos de sua
instigação.
- Como um ser humano com inteligência, emoções, direitos e necessidades. - Suas
mãos moveram expressivamente - E não como um objeto para o prazer do homem e que
se despreza segundo a mudança de humor, ou como uma menina a que se mima ou se
entretém.
- Parece ser que não tem muito boa opinião dos homens, "ma chérie" - disse
Christophe, e nenhum dos dois era consciente de que estavam falando muito mais nesta
conversação do que o tinham feito em vários dias.
- Só das idéias antiquadas e dos preconceitos - lhe corrigiu Serenity - Meu pai
sempre tratou a minha mãe como a sua companheira, e os dois sempre compartilharam
absolutamente tudo.
- Acaso procura seu pai nos homens que conhece, Serenity? - perguntou ele de
repente, e Serenity abriu os olhos, surpreendida e desconcertada de uma vez.
- Naturalmente que não; ao menos, acredito que não - titubeou, tratando de olhar
dentro de seu próprio coração - Talvez procure sua força e sua bondade, mas não uma
réplica. Acredito que estou procurando um homem capaz de me amar tal como ele amou
a minha mãe, alguém que me aceitasse com todos meus defeitos e imperfeições, e me
amasse pelo que sou e não pelo que ele desejasse que eu fosse.
- E quando encontrar esse homem - perguntou Christophe olhando-a com olhos
inescrutáveis - o que pensa fazer?
- Ser feliz - disse ela e fez um grande esforço para concentrar-se na comida que
havia em seu prato.

No dia seguinte, Serenity continuou com a pintura enquanto o castelo ia tomando


forma na tela. Na noite anterior tinha dormido muito mal, já que se sentia perturbada por
ter respondido com tanta sinceridade às inesperadas perguntas formuladas por
Christophe. Ela tinha falado espontaneamente e suas palavras refletiram um sentimento
que ela ignorava possuir até aquele momento. Agora, com a cálida carícia do sol sobre
suas costas e o pincel e a paleta na mão, dispôs-se a esquecer seu desassossego em
seu amor pela pintura.
Mas era terrivelmente difícil concentrar-se; o rosto moreno de Christophe invadia sua
mente e tornava imprecisas as austeras linhas do castelo. Passou a mão pela fronte e,
finalmente, largou o pincel, irritada, e começou a recolher suas coisas, amaldiçoando
mentalmente o homem que insistia em misturar-se em seu trabalho e também em sua
vida. O ruído de um carro que se aproximava interrompeu seus eloqüentes juramentos e
voltou a cabeça, fazendo viseira com a mão para proteger-se do sol.
O carro se deteve a poucos metros de onde ela se encontrava e sua boca se abriu
em um gesto de absoluto assombro quando um homem alto e impecavelmente vestido
desembarcou do carro e pôs-se a andar para ela.
- Tony! - exclamou, com uma mescla de perplexidade e alegria enquanto corria pela
erva a seu encontro.
Os braços de Tony a enlaçaram pela cintura e seus lábios cobriram os seu em um
beijo breve mas profundo.
- O que está fazendo aqui?
- Poderia dizer que estava dando uma olhada nos arredores - respondeu com um
sorriso - mas não acredito que pudesse convencê-la. - Fez uma pausa e estudou o rosto
de Serenity - Tem um aspecto maravilhoso - exclamou e se inclinou para beijá-la outra
vez, mas ela se afastou.
- Tony, não me respondeste.
- A empresa tem que resolver alguns negócios em Paris - explicou - De modo que
tomei um avião, pus as coisas em seu lugar e decidi vir fazer uma visita.
- Dois pássaros de um tiro só - disse Serenity ironicamente, sentindo-se
decepcionada.
"Teria sido agradável - refletiu - que ele tivesse deixado seus negócios para cruzar o
Atlântico porque não podia suportar a idéia de estar separado de mim." Mas Tony não era
esse tipo de homem! Serenity estudou seus traços viris e atraentes. "Tony é muito
metódico para ceder a seus impulsos e isso foi precisamente parte do problema."
Tony a beijou levemente na testa. - Senti saudades.
- É mesmo?
Ele pareceu surpreender-se pela pergunta. - Naturalmente que sim, Serenity. -
Envolveu seus ombros com o braço enquanto caminhavam para o átrio - Desejo que
retorne comigo.
- Ainda não estou disposta a partir, Tony. Tenho muitas coisas que fazer aqui. Há
certas situações que devo esclarecer antes de pensar na volta.
- Que situações?
- Não posso explicar isso, Tony - se desculpou ela, não desejando lhe confiar seus
problemas - Mas mal tive tempo de conhecer minha avó e devo recuperar o tempo
perdido.
- Não pode permanecer aqui vinte e cinco anos até recuperar esse tempo perdido. -
Em sua voz havia uma nota de exasperação - Em Washington tem sua casa, seus
amigos e sua carreira. - Deteve-se e a agarrou pelos ombros - Você sabe que quero me
casar com você, Serenity. Você deu desculpas durante meses.
- Tony, nunca prometi nada.
- Eu sei.
Soltou-a e jogou uma olhada a seu redor com gesto abstraído. Serenity se sentiu
culpada e tratou de que ele entendesse sua posição.
- Neste lugar encontrei uma parte de mim mesma. Minha mãe cresceu aqui e sua
mãe ainda vive neste castelo. - voltou-se para olhar a augusta construção de pedra e fez
um amplo gesto - Olha-o, Tony. Viu alguma vez algo que possa comparar-se com isto?
Ele seguiu seu olhar e estudou a antiga construção de pedra com o cenho franzido.
- É impressionante - disse, sem um pingo de entusiasmo - Também é enorme,
irregular e exposto às correntes de ar. Prefiro uma casa construída com tijolos em uma
rua de Washington.
Serenity suspirou resignada e então, voltando-se para o Tony, sorriu com verdadeiro
afeto. - Sim, tem razão; você não pertence a este lugar.
- E você sim?
- Não sei - murmurou ela enquanto seu olhar percorria as torres cônicas e o jardim -
Não sei - repetiu.
Tony estudou o perfil de Serenity durante um momento e logo, estrategicamente,
trocou o tema da conversa.
- O velho Barkley tinha alguns documentos para você. - referia-se ao advogado que
tinha tratado dos assuntos de seus pais e com o qual Tony trabalhava como associado -
De modo que, em lugar de lhe enviar isso por correio, trouxe-lhe isso pessoalmente.
- Documentos?
- Sim, muito confidenciais. - Tony sorriu ironicamente - Barkley não me deu
nenhuma pista a respeito de seu conteúdo; só disse que era muito importante que
chegassem a você o mais rápido possível.
- Logo lhes darei uma olhada - disse Serenity com indiferença. Desde a morte de
seu pai, tinha ficado farta de papéis e formalidades técnicas - Deve entrar no castelo e
conhecer minha avó.
Se Tony não se havia sentido impressionado pelo castelo, a condessa lhe fascinou.
Serenity ocultou seu sorriso quando lhes apresentou e percebeu a expressão
sobressaltada de Tony quando a condessa lhe ofereceu a mão para que a beijasse. Era
uma mulher extraordinária, pensou Serenity com muita satisfação. Ao conduzir Tony para
o salão principal, a condessa ordenou que trouxessem uns refrescos e logo procedeu a
extrair de Tony até a última gota de informação sobre si mesmo. Serenity se sentou e
observou a ardilosa manobra de sua avó, orgulhosa de seu rosto inexpressivo.
“Ele não tem nenhuma possibilidade", decidiu Serenity enquanto servia o chá com
uma elegante jarra de prata. Quando lhe ofereceu a taça de porcelana da China a sua
avó, seus olhares se encontraram. A inesperada picardia que notou nos olhos da
condessa esteve a ponto de fazê-la estalar de risada, de modo que se concentrou em
servir outra taça de chá.
"A velha intrigante!" - pensou, surpreendida por não se sentir ofendida – “Está
decidindo se Tony é um bom candidato para a mão de sua neta e o pobre Tony está tão
impressionado com ela que não é capaz de dar-se conta do que ela está tramando."
Depois de uma hora de amena conversação, a condessa já conhecia perfeitamente
a vida de Tony: os antecedentes de sua família, educação, afeições, carreira,
preferências políticas e outros detalhes biográficos que a própria Serenity tinha ignorado
até então. O interrogatório tinha sido muito hábil e levado com tanta sutileza que Serenity
reprimiu um impulso de ficar em pé e aplaudir a sua avó quando terminou.
- Quando tem que retornar aos Estados Unidos? - perguntou Serenity, sentindo que
devia salvar Tony antes que revelasse o balanço de sua conta bancária.
- Amanhã à primeira hora - disse ele, depravado e totalmente ignorante do terceiro
grau a que lhe tinha submetido a condessa - Eu gostaria de ficar alguns dias mais, mas...
- encolheu-se de ombros.
- Naturalmente, seu trabalho é o mais importante - a condessa terminou a frase por
ele com um olhar pormenorizado - Você deve jantar conosco esta noite, monsieur Rollins,
e ficar no castelo até amanhã.
- Não posso abusar de sua hospitalidade, madame - objetou Tony, talvez com uma
certa indiferença.
- Abusar? Tolices! - Sua objeção foi dissipada com um régio gesto da mão enfeitada
da condessa - Um amigo do Serenity que chegou de tão longe... Sentiria-me
profundamente ofendida se você recusasse ficar no castelo até amanhã.
- É você muito amável. Agradeço.
- É um prazer - exclamou a condessa enquanto se levantava - Serenity, deve
mostrar a seu amigo os arredores do castelo, e eu ordenarei que preparem seus
aposentos. - Voltando-se para Tony, a condessa estendeu novamente a mão -
Tomaremos um aperitivo às sete e meia, monsieur Rollins. Até lá.
Capítulo 8

Serenity se olhou no espelho de corpo inteiro sem ver a imagem que se refletia no
cristal. A mulher alta e magra vestida com um conjunto cor ametista, cuja saia de crepe
caía como uma brisa enfeitada, era incapaz de admirar a imagem que lhe devolvia a
superfície lustrosa do espelho. A mente de Serenity recordava os acontecimentos que se
desenvolveram aquela mesma tarde e suas emoções variavam do prazer, à irritação e do
desengano à pura diversão.
Uma vez que a condessa lhes deixou a sós, Serenity tinha levado Tony a conhecer
os arredores do castelo. Ele se tinha mostrado vagamente impressionado pelos formosos
jardins, admirando sua beleza superficial, já que sua mentalidade lógica e racional era
incapaz de ver além das rosas e os gerânios para entrar no romance que mantinham as
cores, texturas e aromas. Tony se sentiu gratamente surpreso quando divisou o ancião
jardineiro e ligeiramente inquieto ante a paisagem assustadora que podia admirar-se do
terraço. Ele preferia, segundo suas palavras, algumas casas ou, ao menos, um pouco de
tráfego. Serenity tinha balançado a cabeça pela sua evidente falta de sensibilidade mas,
de uma vez por todas, tinha compreendido o pouco que tinha em comum com o homem
com quem tinha compartilhado tantos meses.
Tony, entretanto, sentia-se completamente fascinado pela proprietária e senhora do
castelo. Nunca tinha conhecido a nenhuma mulher como a condessa, tinha afirmado com
grande respeito. Ela era incrível, acrescentou, e Serenity assentiu em silêncio, embora
talvez por razões muito diferentes. A condessa parecia pertencer a um trono do qual
concedesse suas indulgências, e além disso tinha sido muito amável, ao mostrar-se tão
interessada em tudo o que ele havia dito. "Oh, sim", tinha concordado Serenity em
silêncio, tentando sentir-se indignada e fracassando em seu intento. "Oh, sim, querido e
ingênuo Tony, ela se mostrou terrivelmente interessada." Mas qual era o propósito do
jogo que a condessa estava jogando?
Quando Tony foi instalado em seu aposento, estrategicamente escolhido, conforme
percebeu Serenity, no extremo mais afastado do corredor com respeito a seu próprio
quarto, ela foi em busca de sua avó com a desculpa de agradecer o convite a Tony.
A condessa, que estava sentada a uma elegante escrivaninha tipo Regência em
seus vastos aposentos, escrevendo cartas em folhas com seu anagrama, saudou-a com
um sorriso inocente que lhe conferia o aspecto do gato que acaba de comer um canário.
- Bem? - A condessa largou a pena e lhe indicou que se sentasse em um divã baixo
e decorado com brocado - Espero que seu amigo tenha gostado de seu quarto.
- "Oui", avó, estou muito agradecida de que tenha convidado a Tony a passar a noite
no castelo.
- Não tem por que, "chérie". - A magra mão tinha gesticulado vagamente - Deve
pensar neste castelo como se fosse seu lar.
- Obrigado, avó - disse Serenity modestamente, deixando que fosse a condessa
quem realizasse o seguinte movimento.
- Um jovem muito educado.
- Sim, madame.
- Além disso, muito atraente... - fez uma leve pausa - embora em um estilo ordinário.
- Sim, madame - assentiu Serenity devolvendo a bola ao campo contrário.
A bola foi recebida e enviada de volta imediatamente.
- Sempre preferi traços menos convencionais em um homem, mais força e vitalidade.
Talvez - acrescentou curvando os lábios - rasgos como os de um bucaneiro, se souber a
que me refiro.
- Ah, "oui", madame. - Serenity assentiu enquanto mantinha um olhar inocente - Sei
perfeitamente a que se refere.
- Bem. - A condessa moveu seus magros ombros - Algumas mulheres preferem
homens dominantes.
- Isso parece.
- Monsieur Rollins é um homem muito inteligente e refinado. E também muito lógico
e formal.
"E entediante." Serenity tinha acrescentado a este último comentário antes de falar
em voz alta.
- Ajuda as velhinhas a cruzar a rua duas vezes ao dia - disse.
- Ah, uma bênção para seus pais, estou segura disso - decidiu a condessa, sem
perceber a ironia que se desprendia das palavras de Serenity ou ignorando-a por
completo - Estou certa de que Christophe se sentirá encantado de lhe conhecer.
Uma débil sensação de intranqüilidade se instalou no cérebro de Serenity.
- Tenho certeza de que assim será.
- Certamente que sim. - A condessa sorriu - Christophe se sentirá muito interessado
em conhecer um amigo tão íntimo seu.
A ênfase que tinha dado à palavra “íntima” era inconfundível e a intranqüilidade de
Serenity aumentou, enquanto todos seus sentidos ficavam em estado de alerta.
- Não compreendo por que teria Christophe que se sentir tão interessado no Tony,
avó.
- Ah, "ma chérie", estou certa de que ele achará seu monsieur Rollins
verdadeiramente fascinante.
- Tony não é meu monsieur Rollins - corrigiu Serenity, ficando em pé e aproximando-
se da condessa - E não acredito que tenham absolutamente nada em comum.
- Não?
A condessa formulou a pergunta com uma inocência tão irritante que Serenity fez
um esforço para não rir.
- É uma intrigante avó. O que pretende?
Os olhos azuis da condessa brilharam com a inocência de uma menina.
- Serenity, "ma chérie", não tenho idéia do que está falando. - Quando ela abriu a
boca para lhe replicar, a condessa se afiançou uma vez mais em sua postura real - Devo
terminar minha correspondência. Verei-te a hora do aperitivo.
A sugestão tinha sido absolutamente clara e Serenity se viu obrigada a abandonar o
ambiente sentindo-se insatisfeita. A violência com que fechou a porta foi a única
concessão de seu mau humor.
Os pensamentos de Serenity voltaram para o presente. Lentamente, sua magra
figura vestida em cor ametista ficou perfeitamente enfocada no espelho. Passou a mão
pelos cachos loiros, com ar ausente, e apagou a expressão sombria que tinha no rosto.
"Jogaremos com muita tranqüilidade - disse a si mesma, enquanto colocava os brincos de
pérolas - Ou muito me equivoco ou a minha aristocrática avó gostaria de acender alguns
foguetes esta noite, mas as faíscas não chegarão até mim."
Bateu na porta do quarto de Tony. - Tony, sou eu, Serenity. Se já estiver preparado,
desceremos juntos ao salão. - Tony lhe gritou que entrasse e ela abriu a porta, vendo o
homem alto e de aparência agradável que lutava com as abotoaduras - Tem problemas?
- Muito engraçado. - Tony a olhou com severidade - Não posso fazer absolutamente
nada com a mão esquerda.
- Meu pai tampouco podia - disse Serenity, muito nostálgica - Mas estava
acostumado a amaldiçoar maravilhosamente. Era realmente assombrosa a quantidade de
adjetivos que empregava para qualificar a um simples par de abotoaduras. - aproximou-
se dele e agarrou seu pulso - Me deixe ajudá-lo . - Serenity começou a manipular a
pequena abotoadura. Não sei o que teria feito se eu não o acudisse - disse.
- Teria passado toda a noite com uma mão no bolso - respondeu ele brandamente -
Teria sido uma espécie de postura educada e muito européia.
- Oh, Tony! - Serenity elevou a vista com um amplo sorriso e os olhos brilhantes - Às
vezes é incrivelmente encantador.
Um ruído no corredor chamou a atenção de Serenity e voltou a cabeça quando
Christophe passou pela porta aberta e se deteve um instante para observar a cena da
moça sorridente que colocava as abotoaduras do homem, enquanto ambos mantinham
as cabeças muito juntas. Uma sobrancelha escura se elevou quase imperceptivelmente e,
com uma leve inclinação de cabeça, Christophe continuou seu caminho deixando
Serenity ruborizada e desconcertada.
- O que foi isso? - perguntou Tony com evidente curiosidade, e ela se inclinou para
ocultar o intenso rubor de suas bochechas.
- O conde de Kergallen - respondeu com estudada indiferença.
- Não será o marido de sua avó?
Sua voz estava cheia de incredulidade e a pergunta provocou uma sonora risada de
Serenity contribuindo a dissipar a tensão.
- Oh, Tony, é encantador! - Deu uns suaves tapinhas em seu pulso, onde a
abotoadura já tinha ficado firmemente presa, e lhe olhou com olhos faiscantes -
Christophe é o atual conde e é o neto de minha avó.
- Oh. - A expressão de Tony se tornou pensativa - Então ele é seu primo.
- Bom... - Serenity pronunciou lentamente as palavras - Não precisamente... -
Explicou a complicada história de sua família e a resultante relação entre ela e o conde
bretão - De modo que - concluiu, agarrando Tony pelo braço e abandonando o quarto de
uma maneira indireta nos poderia considerar primos.
- Primos consortes - observou Tony franzindo o cenho.
- Não seja parvo - protestou ela subitamente, perturbada pela lembrança de uns
lábios ardentes e exigentes sobre sua boca.
Se Tony se surpreendeu da veemente negativa e do rubor de suas bochechas, não
fez nenhum comentário.
Os dois entraram no salão de braços dados e Serenity sentiu que seu rubor se
intensificava devido ao olhar fugaz mas descarado de Christophe. Seu rosto permanecia
totalmente inexpressivo e Serenity desejou com repentino ardor poder ler os
pensamentos que havia detrás daquela fria máscara.
Serenity viu que o olhar se desviava para o homem que estava a seu lado mas seus
olhos permaneceram inescrutáveis.
- Ah, Serenity, monsieur Rollins! - A condessa estava sentada na elegante poltrona
que havia junto à enorme lareira e era a viva imagem de um monarca recebendo seus
súditos. Serenity se perguntou se a eleição daquela poltrona tinha sido deliberada ou
acidental - Christophe, me permita apresentar monsieur Anthony Rollins, dos Estados
Unidos, o convidado de Serenity.
Serenity percebeu que a condessa tinha catalogado Tony como sua propriedade
pessoal. - Monsieur Rollins - continuou a anciã sem alterar seu ritmo - me permita lhe
apresentar seu anfitrião, o conde de Kergallen.
O título foi sublinhado com delicadeza, estabelecendo claramente a posição de
Christophe como senhor do castelo. Serenity olhou a sua avó com olhos perspicazes.
Os dois homens trocaram algumas formalidades e Serenity pôde observar a velha
rotina de medir-se, própria dos homens, como se fossem dois mastins estudando ao
adversário antes de entrar em combate.
Christophe serviu um aperitivo a sua avó e então perguntou a Serenity o que
desejava beber, antes de dirigir-se a Tony. Ele pediu um vermute, a mesma bebida que
Serenity tinha eleito, e ela sorriu levemente, conhecendo a predileção de Tony pelos
martínis secos com vodca ou os ocasionais conhaques.
A conversação fluiu agradavelmente e a condessa inseriu numerosos dados
pessoais que Tony se encarregou de lhe ministrar àquela tarde.
- É verdadeiramente tranqüilizador saber que Serenity se encontra em tão boas
mãos em Washington - disse a condessa com um gracioso sorriso, e continuou,
ignorando deliberadamente o olhar de Serenity - Faz muito tempo que são amigos, não é?
A leve acentuação, apenas perceptível, da palavra "amigos" fez que Serenity
franzisse o cenho.
- Sim - assentiu Tony dando uns tapinhas afetuosos na mão de Serenity - Nos
conhecemos faz um ano em uma festa. Lembra-se, querida?
Tony se voltou com um amplo sorriso e Serenity trocou rapidamente a expressão
severa de seu rosto.
- Naturalmente. Foi na festa que os Carson deram.
- E agora viajou de tão longe só para lhe fazer uma breve visita. - A condessa sorriu
com carinhosa indulgência - Foi um belo gesto de sua parte, não é mesmo, Christophe?
- Muito atencioso - disse ele.
Inclinando ligeiramente a cabeça, Christophe elevou sua taça e bebeu lentamente.
"É uma intrigante incorrigível - pensou Serenity - Sabe bem que Tony veio em
viagem de negócios. O que é que pretende?"
- É uma verdadeira lástima que não possa ficar mais tempo entre nós, monsieur
Rollins. É muito agradável que Serenity possa desfrutar da companhia de seus amigos
americanos. Você monta a cavalo?
- Montar a cavalo? - repetiu, Tony surpreso - Não, temo que não.
- É uma pena. Christophe esteve dando lições de equitação a Serenity. Como
progride sua aluna, Christophe?
- Muito bem, avó - respondeu Christophe, olhando Serenity - Tem uma habilidade
natural e agora que já perdeu o temor inicial - um sorriso fugaz iluminou o rosto de
Christophe e ela se ruborizou ao recordar aqueles momentos - estamos fazendo muitos
progressos, não é, pequena?
- Sim - assentiu ela, surpreendida por sua carinhosa atitude depois de vários dias de
fria cortesia - Me alegra que tenha me convencido a que aprendesse a montar.
- Foi um verdadeiro prazer.
O enigmático sorriso de Christophe não fez mais que aumentar a confusão de
Serenity.
- Talvez você possa ensinar monsieur Rollins a montar quando tiver oportunidade. -
A condessa incitou sua atenção e os olhos ambarinos se entrecerraram ao perceber a
falsa inocência de sua voz.
"Como é intrometida! - estalou Serenity internamente - Está incitando Christophe e
Tony, e eu estou no meio como se fosse um osso apetitoso." A irritação se converteu em
um sorriso divertido quando os olhos claros da condessa se posaram nos dela e um
diabo travesso dançou dentro deles.
- Talvez, avó, embora duvide de que seja capaz de dar o salto de aluna a instrutora.
Foram somente duas lições e isso, evidentemente, não me converte em uma perita.
- Mas haverá mais lições, não é? - Ignorando a réplica de Serenity, a condessa ficou
em pé com um fluido movimento - Monsieur, faria-me a honra de me acompanhar à sala
de jantar?
Tony sorriu, gratamente adulado, e ofereceu o braço à condessa, embora quem
acompanhava o outro fosse dolorosamente óbvio para Serenity.
- Bem, "chérie". - Christophe se aproximou dela e estendeu uma mão para ajudá-la a
levantar da poltrona - Parece que terá que me aceitar como substituto.
- Acredito que poderei suportá-lo - replicou ela, ignorando os furiosos batimentos de
seu coração quando sua mão agarrou a dele.
- Seu amigo deve ser um homem muito lento - começou a dizer Christophe
retoricamente, retendo a mão de Serenity e erguendo-se frente a ela com atitude
indiferente - Faz um ano que te conhece e ainda não é seu amante.
O rosto de Serenity se voltou de cor púrpura e lhe olhou com fúria, sentindo-se ferida
em sua dignidade.
- Realmente, Christophe, surpreende-me! Essa foi uma observação incrivelmente
grosseira.
- Mas verdadeira - disse ele imperturbável.
- Nem todos os homens pensam exclusivamente em sexo. Tony é uma pessoa
carinhosa e atenciosa, e não um ser arrogante como outros que conheço.
Christophe sorriu com exasperante segurança em si mesmo.
- Acaso seu Tony faz com que seu pulso se acelere deste modo? - O polegar de
Christophe acariciou seu pulso - Ou que seu coração se estremeça como faz agora?
Sua mão cobriu o coração que galopava freneticamente como se fosse um cavalo
selvagem e seus lábios roçaram sua boca com um beijo suave e prolongado, um beijo tão
diferente dos outros que Christophe lhe havia dado que Serenity permaneceu imóvel,
apanhada por sensações que a deixaram totalmente aturdida.
Os lábios de Christophe percorreram seu rosto, atrasando-se nos detalhes da boca
e retendo a promessa do prazer com a experiência do avantajado sedutor. Seus dentes
mordiscaram brandamente o lóbulo da orelha. Serenity lançou um estremecido suspiro
quando a pequena dor enviou inapreciáveis e agradáveis correntes ao longo de sua pele,
narcotizando-a com um delicioso e lento prazer. Com incrível suavidade os dedos de
Christophe se deslizaram por sua coluna vertebral e logo continuaram seu caminho com
devastadora excitação sobre a nua pele de suas costas até que Serenity sucumbiu
ofegante entre os braços de Christophe enquanto sua boca procurava com paixão a
satisfação de seu desejo. Só lhe fez provar brevemente o sal de seus lábios antes de
deslizá-los para a rosada garganta, enquanto as mãos viajavam por cada curva do corpo
de Serenity. Os dedos roçaram simplesmente os túrgidos seios antes de iniciar uma
suave massagem em seus quadris.
Murmurando seu nome, Serenity se esmagou contra o corpo de Christophe, incapaz
de exigir aquilo que ela implorava, desejando febrilmente a boca que lhe negava.
Desejando só ser possuída, necessitando o que só ele podia lhe dar, seus braços o
atraíram para ela em uma silenciosa súplica.
- Me diga - sussurrou Christophe e, através de uma bruma de lassidão, Serenity
percebeu uma ligeira brincadeira em sua voz - Acaso Tony a ouviu suspirar entre seus
braços e sussurrar seu nome? Ou sentiu seus ossos derretidos contra seu peito enquanto
a abraçava?
Serenity, total e absolutamente aturdida, desfez-se de seu abraço enquanto podia
sentir como a ira e a humilhação se mesclavam com o desejo.
- Está muito seguro de si mesmo, Christophe - disse - Não interessa o que eu possa
sentir quando estou com o Tony.
- Acha que não? - perguntou Christophe com voz amável - Devemos discutir esse
tema mais tarde, minha querida prima. Agora acredito que será melhor que nos reunamos
com a avó e nosso convidado. - Sorriu-lhe maliciosamente e Serenity sentiu grandes
desejos de lhe assassinar - Devem estar perguntando-se onde diabos estamos.
Era evidente que nenhum dos dois tinha se preocupado por onde eles estivessem,
percebeu Serenity quando entrou na sala agarrada ao braço de Christophe. A condessa
tinha engenhado maravilhosamente para entreter Tony falando sobre a fascinante
coleção de caixas Fabergé que se exibiam em uma ampla vitrine.
O jantar começou com "vichyssoise", um prato frio e refrescante, e a conversação se
desenvolveu em inglês como deferência para Tony. Os temas eram gerais e impessoais e
Serenity se sentiu relaxada, ordenando a seus músculos que se desenredassem, quando
terminaram a sopa e procederam a servir o "homard grillé". A lagosta era deliciosa e ela
pensou ociosamente que, se a cozinheira era efetivamente um dragão como tinha
brincado Christophe no primeiro dia, não havia dúvida de que era um dragão muito
habilidoso.
- Imagino que a mudança do castelo até sua casa em Georgetown não deva ter sido
muito complicada para sua mãe, Serenity - disse Tony de repente e Serenity lhe olhou
confusa.
- Acredito que não entendo muito bem a que se refere.
- Existem tantas similaridades básicas - observou ele e, ao perceber a expressão
sobressaltada de Serenity, acrescentou - Naturalmente, no castelo tudo está construído a
uma escala maior, mas repara nos altos tetos, nas lareiras em cada aposento, no estilo
dos móveis. Mas até o corrimão das escadas é igual. Não é possível que não tenha se
dado conta?
- Pois, sim, suponho que sim - respondeu Serenity lentamente - embora não com a
claridade com que o vejo agora.
Talvez, refletiu, seu pai tinha eleito precisamente aquela casa em Georgetown
porque ele também tinha notado essas similaridades e sua mãe tinha escolhido os
móveis seguindo os padrões de sua memória, cujas lembranças a remontavam à infância
transcorrida no castelo. Esse pensamento lhe produziu uma cálida sensação.
- Sim, inclusive os corrimões das escadas - continuou dizendo com um brilhante
sorriso - Eu costumava deslizar por eles continuamente, do estúdio que estava no terceiro
andar até o primeiro piso e então continuava por esse improvisado tobogã até o térreo. -
O sorriso se converteu em uma sonora gargalhada - Mamãe costumava me dizer que
outra parte de minha anatomia devia ser tão dura como minha cabeça para suportar esse
castigo.
- Ela também costumava me dizer o mesmo - disse Christophe subitamente e o
surpreendido olhar de Serenity se voltou para ele - É claro, pequena. -Christophe
respondeu a seu olhar sobressaltado com um de seus incomuns sorrisos - Que sentido
tem caminhar se a gente pode deslizar?
A imagem de um menino moreno voando para baixo pelo estreito sulco do corrimão
e de sua mãe, Gaelle, jovem e formosa, lhe observando sorridente, encheu sua mente.
Seu olhar de assombro se converteu gradualmente em um sorriso que imitava o de
Christophe.
Serenity deu conta do estupendo "soufflé", ligeiro como uma nuvem,
acompanhando-o com uns sorvos de champanha seco e borbulhante. Descobriu que
desfrutava autenticamente do jantar e deixou que a conversação fluísse calidamente a
seu redor.
Quando o jantar terminou, dirigiram-se ao salão principal e Serenity recusou o
oferecimento de uma taça de conhaque ou licor. A sensação de plenitude persistia nela e
suspeitou que ao menos parte dessa sensação, tinha decidido não pensar na outra parte
e na apaixonada cena que tinha compartilhado com Christophe antes do jantar, devia
atribui-la ao vinho que tinha bebido. Nenhum dos presentes pareceu notar seu estado
pensativo, suas bochechas rosadas e suas respostas quase mecânicas. Seus sentidos
estavam insuportavelmente atentos enquanto ouvia a música das vozes, o tom grave dos
homens mesclando-se com os tons cristalinos da voz de sua avó. Inalou com prazer
sensual a fumaça que se desprendia do cigarro de Christophe e aspirou profundamente a
combinação de seu perfume e o da condessa com o aroma sutil das rosas que enchiam
cada vaso do salão. Um agradável equilíbrio, refletiu, a artista respondendo e desfrutando
da harmonia e da fluida continuidade da cena que se desenvolvia diante de seus olhos.
As luzes suaves, a tênue brisa que agitava apenas as cortinas, o apagado som das taças
ao serem depositadas sobre a mesa... tudo se fixava em um tecido impressionista que
seu olho registrava e armazenava em sua mente.
A augusta condessa, magnífica em seu trono de brocado, presidia a reunião
bebendo nata de hortelã em uma delicada taça com borda de ouro. Tony e Christophe
estavam sentados frente a frente, como a noite e o dia ou anjo e demônio. Esta última
comparação sobressaltou Serenity. "Anjo e demônio?", repetiu em silêncio enquanto
estudava aos dois homens.
Tony, o doce, confiável e previsível Tony, que aplicava a mais tenra das pressões.
Tony, o da infinita paciência e dos planos cuidadosamente raciocinados. O que sentia por
ele? Afeto, lealdade, gratidão por estar aí quando ela necessitava dele. Um amor
aprazível e confortável.
Seus olhos se moveram para Christophe. Arrogante, autoritário, exasperante e
excitante. Um homem que exigia aquilo que desejava e acabava por tomá-lo, utilizando
seu súbito e inesperado sorriso para lhe roubar o coração como um ladrão noturno.
Christophe era taciturno, enquanto Tony era constante, um era imperioso enquanto que o
outro era persuasivo. Mas se os beijos de Tony tinham sido prazerosos e incitantes, os do
Christophe eram grosseiramente perturbadores e convertiam seu sangue em um rio de
fogo e a transportavam a um mundo desconhecido de sensações e desejos. E o amor
que sentia por ele não era aprazível nem confortável, era impetuoso e inevitável.
- É uma verdadeira lástima que não toque piano, Serenity.
A voz da condessa a fez retornar à realidade com um súbito estremecimento.
- Oh, mas Serenity toca piano, madame! - informou Tony com um amplo sorriso -
Horrivelmente mal, mas o toca.
- Traidor! - exclamou Serenity com um encantador sorriso.
- Não toca bem o piano? - a condessa se mostrava absolutamente incrédula.
- Lamento trazer a desgraça novamente à família, avó - se desculpou Serenity - Mas
não só não toco bem, sinto que o faço completamente mal. Inclusive ofendo a
sensibilidade de Tony, que é virtualmente surdo em questões musicais.
- Querida, ofenderia um cadáver com sua forma de tocar.
Tony afastou um cacho rebelde do rosto de Serenity, com um gesto casual e
carinhoso.
- É verdade. - Lhe sorriu antes de olhar a sua avó - Pobre avó, não faça essa cara
tão triste.
O sorriso de Serenity se desvaneceu quando seus olhos perceberam o frio olhar de
Christophe.
- Gaelle, por sua vez, tocava maravilhosamente - disse a condessa agitando uma
mão.
Serenity voltou a atrair a atenção da condessa, tratando de sacudir o calafrio que lhe
tinham produzido os olhos de Christophe. - Ela nunca pôde entender por que eu
assassinava a música mas, inclusive com sua infinita paciência, finalmente se deu por
vencida e me deixou com meus tecidos e minhas pinturas.
- "Extraordinaire"! - A condessa meneou a cabeça e Serenity se encolheu de ombros
e bebeu lentamente seu café - Já que você não pode tocar para nós, "ma petite" - disse a
anciã com uma repentina mudança de humor - talvez agrade monsieur Rollins dar um
passeio pelo jardim. - Sorriu perversamente - Serenity desfruta muitíssimo do jardim à luz
da lua, não é mesmo?
- Isso soa muito tentador - concordou Tony antes que Serenity pudesse responder.
Enviando a sua avó um olhar carregado de significado, Serenity convidou a que Tony a
acompanhasse ao jardim.
Capítulo 9

Pela segunda vez Serenity dirigiu seus passos para o jardim banhado pela luz da lua
e acompanhada por um homem alto e atraente e, pela segunda vez, desejou
fervorosamente que fosse Christophe quem estivesse a seu lado. Caminharam em
silêncio, desfrutando do ar fresco da noite e do prazer das mãos entrelaçadas.
- Está apaixonada por ele, não é?
A pergunta de Tony quebrou o silêncio como uma pedra lançada contra um cristal.
Serenity se deteve e lhe olhou com olhos assombrados.
- Serenity. - Tony suspirou e acariciou a bochecha da mulher com um dedo - Posso
ler em você como em um livro. Está fazendo todo o possível para ocultá-lo, mas está
louca por ele.
- Tony, eu... - balbuciou, sentindo-se culpada e muito miserável - Nunca foi minha
intenção me apaixonar por ele. Na realidade, nem sequer gosto do jeito dele.
- Caramba! - Tony deu uma risada breve e falsa - Eu gostaria que não gostasse de
mim desse modo. Mas - acrescentou, lhe elevando o queixo - isso nunca ocorreu.
- Oh, Tony...
- Sempre foi sincera comigo, querida - disse ele - Não tem por que se sentir culpada
de nada. Eu pensei que com uma perseguição permanente e discreta podia acabar com
sua resistência. Tony deslizou seu braço por cima dos ombros de Serenity enquanto
continuavam o passeio pelo jardim na penumbra - Tem que saber, Serenity, que é muito
enganosa. Parece uma flor delicada e frágil, tão frágil que um homem teme toca-la por
medo de que possa se romper, mas na verdade é incrivelmente forte. Nunca cambaleia,
querida. Esperei um longo ano para conquista-la, mas você nunca dá um passo em falso.
- Se meu comportamento e o mau humor que me caracteriza tivessem exasperado
você, Tony. - Lançando um suspiro, Serenity se reclinou contra seu ombro - Eu nunca
poderia ser o que você necessita e se tratasse de mudar não adiantaria. Terminaríamos
nos odiando um ao outro.
- Sei. Sempre o soube, mas não queria admiti-lo. Quando partiu para a Bretanha, eu
sabia que tudo tinha terminado entre nós. Por isso vim vê-la; tinha que vê-la uma vez
mais.
As palavras de Tony pareciam tão definitivas que Serenity elevou rapidamente a
vista e o olhou com surpresa.
- Mas voltaremos a ver-nos, Tony; ainda somos amigos. Eu retornarei logo a
Washington.
Tony voltou a deter-se e a olhou enquanto o silêncio crescia entre ambos.
- Tem certeza, Serenity?

Uma vez que pronunciou estas palavras, Tony lhe fez dar meia volta e os dois
empreenderam a volta ao iluminado castelo.
Na manhã seguinte, os raios de sol esquentavam os ombros nus de Serenity
enquanto ela se despedia de Tony. Ele já tinha saudado a condessa e Christophe, e
Serenity o tinha acompanhado da fresca atmosfera do vestíbulo principal até o calor que
desprendiam os ladrilhos do pátio. O pequeno Renault cor vermelha lhe esperava com a
bagagem já no porta-malas. Tony deu uma olhada antes de voltar-se para ela e lhe
agarrar as mãos.
- Que seja feliz, Serenity - disse, apertando por um momento as mãos dela e logo as
soltando - Pensa em mim alguma vez.
- É obvio que pensarei em você, Tony. Escreverei e o contarei a data de minha volta.
Tony lhe sorriu e seus olhos se atrasaram no limpo rosto de Serenity, como se quisesse
fixar em sua memória cada detalhe.
- Pensarei em ti exatamente como está hoje, com um vestido amarelo, o sol no
cabelo e um castelo a suas costas... a beleza eterna de Serenity Smith, a moça dos olhos
dourados.
A boca de Tony desceu ao seu rosto e Serenity sentiu uma súbita quebra de onda
de emoção e a estranha premonição de que nunca mais voltaria a vê-lo. abraçou-se ao
Tony, atendo-se a seu pescoço e ao passado. Os lábios dele beijaram seu cabelo antes
de separar-se dela.
- Adeus, querida.
Tony sorriu e lhe deu uns tapinhas na bochecha.
- Adeus, Tony. Se cuide.
Devolveu-lhe o sorriso, reprimindo decididamente as lágrimas que lhe queimavam os
olhos.
Serenity observou-o enquanto se afastava em direção ao carro, subia nele e, com
uma saudação com a mão, perdia-se no sinuoso caminho. O carro se converteu em um
ponto vermelho à distância e então, paulatinamente, foi perdendo-se de vista. Serenity
permaneceu imóvel, sentindo que as lágrimas banhavam suas bochechas uma vez
liberadas da prisão de seus olhos. Um braço a enlaçou pela cintura e, ao voltar-se,
encontrou a sua avó com uma expressão tenra e pormenorizada em seu rosto anguloso.
- Está triste porque ele partiu, “ma petite”?
O braço da condessa era confortável e Serenity reclinou a cabeça sobre o frágil
ombro de sua avó.
- “Oui”, avó, muito triste.
- Mas não está apaixonada por ele.
Era uma afirmação mais que uma pergunta, e ela lançou um fundo suspiro.
- Era uma pessoa muito especial para mim. – enxugou uma lágrima que permanecia
em sua bochecha e soluçou como uma menina - Farei muito de menos. Agora irei a meu
quarto e porei-me a chorar como é devido.
- “Oui”, acredito que é uma sábia decisão. - A condessa lhe espalmou o ombro - Um
bom pranto é o melhor para esclarecer a mente e limpar o coração. - Serenity a abraçou
estreitamente - Vamos, pequena, vai a seu aposento e derrama todas suas lágrimas.
Serenity subiu velozmente os degraus de pedra e entrou no fresco vestíbulo do
castelo. Correu para a escada principal e se chocou contra algo duro. Umas mãos a
aprisionaram pelos ombros.
- Deve olhar por onde vai, “ma chérie” - a voz zombadora de Christophe ressonou
em seus ouvidos - Se chocará contra as paredes e poderia arruinar seu formoso nariz.
Tratou de escapar mas uma mão poderosa lhe impediu todo movimento enquanto a
outra lhe jogava a cabeça para trás pressionando seu queixo. Ao descobrir os olhos
avermelhados de Serenity, a expressão zombadora do Christophe se converteu em
surpresa, então em preocupação e, por último, em uma desacostumada impotência. -
Serenity?
Seu nome era em realidade uma pergunta e tinha empregado o tom de voz mais
carinhoso que já tinha ouvido dele. A ternura que se advertia em seus olhos escuros
terminou por destruir a delicada compostura que Serenity se esforçava por manter.
- Oh, por favor - exclamou com um soluço desesperado - Me deixe!
Debateu-se para liberar-se de seus braços enquanto lutava desesperadamente para
não desmoronar de todo e desejando, não obstante, que ele a estreitasse contra seu
peito.
- Posso fazer algo por ti?
Christophe a reteve colocando uma mão sobre seu braço.
"Sim, sou idiota!, - gritou seu cérebro - Me ame!" - Não - disse em voz alta, correndo
para cima das escadas - Não, não, não!
Subiu os degraus como se fosse uma lebre dourada perseguida pelos caçadores.
Quando chegou a seu quarto, abriu a porta com violência, fechou-a e se jogou sobre a
enorme cama, sepultando o rosto entre as duas mãos.

As lágrimas tinham produzido seu milagre. Serenity, finalmente, sentiu-se capaz de


enxugar o rosto e enfrentar o mundo e qualquer surpresa que o futuro lhe proporcionasse.
Deu uma olhada no envelope de papel pardo que tinha jogado com negligência sobre a
escrivaninha.
- Bem, acredito que já é hora de ver o que o velho Barkley me enviou com o Tony.
Serenity se levantou da cama e se dirigiu à escrivaninha para abrir o envelope. Voltou a
deitar-se na cama, rompeu o lacre e deixou cair o conteúdo do envelope.
Havia só uma folha com o impressionante cabeçalho da assinatura de advogados,
que a fez pensar novamente em Tony, e outro envelope selado. Agarrou a folha
belamente datilografada, perguntando-se que novo formalismo tinha encontrado o
testamento para que ela preenchesse. Quando começou a ler o conteúdo da carta e a
inesperada mensagem que incluía, sentou-se de repente na cama.

Estimada senhorita Smith:


Anexo encontrará você um envelope dirigido a seu nome e que contém uma carta de
seu pai. Esta carta foi deixada a meu cuidado para que fosse entregue só se você
estabelecesse contato com a família de sua mãe na Bretanha. Através de Anthony Rollins,
chegou a meu conhecimento que atualmente você reside no castelo Kergallen, em
companhia de sua senhora avó, de modo que decidi que Anthony lhe entregue esta carta
na data mais próxima possível.
Se você me tivesse informado sobre seus planos, eu teria completado antes com a
vontade de seu pai. Eu, naturalmente, ignoro o conteúdo desta carta, mas estou
persuadido de que a mensagem de seu pai a reconfortará.
M. Barkley

Serenity deixou de ler, pôs a carta do advogado de lado e agarrou a mensagem que
seu pai lhe tinha deixado em custódia. Olhou o envelope que tinha ficado virado na cama
e, lhe dando a volta, seus olhos se nublaram ao reconhecer a caligrafia familiar. Abriu
muito rapidamente o mesmo.
A carta estava escrita com a letra clara e pessoal de seu pai:
Minha querida Serenity:

Quando leres está carta, sua mãe e eu não estaremos já contigo e rogo para que
sua dor não seja muito profunda, porque o amor que nós sentimos por ti permanece vivo
e intenso como a vida mesma.
No momento em que escrevo estas linhas tem dez anos e já é a viva imagem de sua
mãe, é tão adorável que estou pensando inclusive nos meninos que terei que se separar
de seu lado dentro de poucos anos. Esta manhã estive observando-a enquanto estava
agradavelmente sentada, uma ocupação incomum em ti, já que estou acostumado a vê-la
quando patina ou deslizando à velocidade vertiginosa pelos corrimões das escadas, sem
pensar nos riscos.
Estava sentada no jardim com meu caderno de esboços e meus lápis, desenhando
muito concentrada as azaléias. A vi nesse instante e compreendi, com orgulho e também
com desespero, que estava crescendo e que, não seria sempre minha pequena menina,
a salvo na segurança que sua mãe e eu lhe tínhamos dado. Soube então que era
necessário que escrevesse alguns fatos que talvez algum dia tivesse necessidade de
entender. Darei instruções ao velho Barkley (um sorriso apareceu nos lábios de Serenity
ao notar que conhecia o advogado por esse nome fazia já muitos anos) para que
conserve está carta para você até o dia em que sua avó, ou algum membro da família de
sua mãe, entre em contato com você. Se isso não ocorrer, não haveria necessidade
alguma de revelar o segredo que sua mãe e eu mantivemos durante mais de uma década.
Eu me encontrava pintando nas calçadas de Paris, desfrutando do esplendor da
primavera, apaixonado pela cidade e sem mais amante que minha arte. Naquela época,
eu era muito jovem e, temo, muito impulsivo. Foi então que conheci um homem, Jean-
Paul le Goff, que se sentiu vivamente impressionado, segundo suas palavras, por meu
jovem e acanhado talento. Encarregou-me que pintasse o retrato de sua noiva para dar
de presente no dia de suas bodas e fez todos os acertos para que eu me mudasse para a
Bretanha e me alojasse no castelo de Kergallen. Minha vida começou no momento em
que entrei no enorme vestíbulo e vi pela primeira vez a sua mãe.
Não era minha intenção seguir os desmandos de meu coração do instante em que a
vi, um delicado anjo com o cabelo da cor do sol. Tratei com todas minhas forças de
antepor minha arte a meus sentimentos. Eu estava ali para pintar seu retrato, ela
pertencia ao castelo e ao homem que me tinha contratado. Era um anjo, uma aristocrata
que pertencia a uma família cuja linhagem se remontava do início dos tempos. Todas
estas coisas me repeti centenas de vezes. Jonathan Smith, um artista itinerante, não
tinha direito de possuí-la nem em seus sonhos; devia deixar em paz a realidade. Houve
momentos, enquanto efetuava os esboços preliminares, em que acreditava que morreria
de amor por ela. Dizia-me mesmo que devia partir, mas não encontrei a coragem para
fazê-lo. Agora agradeço a Deus não tê-lo feito.
Uma noite, enquanto dava um passeio pelo jardim, encontrei-me com ela. Pensei em
me afastar para não incomodá-la, mas ela me escutou e, quando se voltou, descobri em
seus olhos aquilo com que não me tinha atrevido a sonhar. Ela me amava. Poderia ter
gritado de felicidade mas existiam inumeráveis obstáculos. Ela estava comprometida a
casar-se com outro homem e, além disso, a honra de ambas as famílias amparava esse
vínculo. Nós não tínhamos direito a nosso amor. Mas alguém precisa ter direito para amar,
Serenity? Alguns nos condenaram. Rogo que você não o faça. Depois de muitas palavras
e muitas mais lágrimas, decidimos desafiar aquilo que alguns poderiam chamar o direito e
a honra, e nos casamos. Gaelle me implorou que mantivesse as bodas em segredo até
que encontrasse a melhor maneira de dizer a Jean-Paul e a sua mãe. Eu desejava que o
mundo soubesse, mas acatei a seus rogos. Ela tinha renunciado a tanto por mim, que eu
não podia lhe negar absolutamente nada.
Durante este tempo de espera, produziu-se um problema ainda mais sério. A
condessa, sua avó, tinha entre suas posses uma Madonna feita por Rafael, que exibia
com orgulho no salão principal do castelo. Tratava-se de uma pintura, conforme me
explicou a condessa, que tinha estado em sua família durante gerações. Depois de
Gaelle, ela amava esta pintura mais que qualquer outra coisa no mundo. Para ela,
parecia simbolizar a continuidade de sua família, um farol brilhante que ainda projetava
sua luz depois do inferno da guerra. Eu tinha examinado atentamente essa pintura e
suspeitava que se tratava de uma falsificação. Mas não disse nada, pensando a princípio
que talvez a condessa tivesse feito pintar uma cópia. Os alemães lhe tinham arrebatado
tantas coisas - lar, marido, etc. - que também levaram possivelmente o Rafael original.
Quando anunciou que tinha decidido doar a pintura ao Louvre com objetivo de
compartilhar sua grandeza, o medo esteve a ponto de me deixar paralisado. Eu me tinha
afeiçoado àquela mulher, por seu orgulho e determinação, sua graça e sua dignidade.
Não desejava que a ferissem e compreendi que ela estava convencida de que a pintura
era autêntica. Eu sabia que a Gaelle atormentaria o escândalo se recusassem a pintura
por ser uma fraude e a condessa não se recomporia jamais de semelhante golpe. Não
podia permitir que tal coisa ocorresse. Ofereci-me a limpar a pintura a fim de poder
estudá-la a fundo e me senti como um traidor.
Levei a Madonna a meu estúdio na torre e, depois, de um detido estudo, não tive
nenhuma dúvida de que se tratava de uma excelente cópia. Não obstante, eu não teria
sabido o que fazer se não fosse pela carta que encontrei oculta atrás do bastidor. A carta
era uma confissão do primeiro marido da condessa, um grito desesperado pela traição
que tinha cometido. Confessava ter perdido quase todas suas posses e também as de
sua esposa. Estava afogado pelas dívidas e, depois de decidir que os alemães
derrotariam aos aliados, deu todos os passos necessários para lhes vender a pintura.
Encarregou que pintassem uma cópia e substituiu o original sem o conhecimento de sua
esposa, convencido de que o dinheiro que receberia pela venda da Madonna lhe faria
imune às conseqüências da guerra, e de que o trato com os alemães manteria sua
propriedade a salvo. Quando já era muito tarde, compreendeu a insensatez de sua ação
e, ocultando a confissão no bastidor do quadro falso, saiu ao encontro dos homens com
quem tinha combinado para lhes devolver o dinheiro. A carta terminava no parágrafo em
que falava desta decisão e rogava que perdoassem seu proceder em caso de não ter
êxito em sua empresa.
Quando terminei de ler a carta, Gaelle entrou no estúdio. Eu não tinha tido a
precaução de fechar a porta com a chave. Foi impossível ocultar minha reação e a carta
que ainda conservava na mão, e portanto me vi obrigado a compartilhar essa carga com
a única pessoa a quem eu teria economizado qualquer desgosto. Naquele momento, e
naquela torre isolada, descobri que a mulher que eu amava possuía mais força que
muitos homens. Ela decidiu que sua mãe jamais devia inteirar-se da existência dessa
carta. Disse que era imperativo que a condessa fosse protegida da humilhação e que
nunca devia inteirar-se de que essa pintura que ela amava tanto não era mais que uma
falsificação. Elaboramos um plano para ocultar a pintura e fazer todo mundo acreditar que
tinha sido roubada. Talvez cometemos um engano. Ainda hoje não sei se atuamos
corretamente. Mas para sua mãe não havia outra saída. E, em conseqüência, levamos a
cabo nosso plano.
Os projetos de Gaelle de informar a sua mãe sobre nossas bodas foram feitos
realidade muito em breve. Gaelle descobriu, para nossa enorme felicidade, que levava
um filho no ventre, você, o fruto de nosso amor e que cresceria até converter-se no
tesouro mais prezado de nossas vidas. Quando contou a sua mãe que nos tínhamos
casado em segredo e que estava grávida, a condessa ficou furiosa. Tinha direito de
sentir-se assim, Serenity, e a animosidade que sentia por mim ficou plenamente
justificada a seus olhos. Tinha-lhe arrebatado a sua filha sem sua autorização e, ao fazê-
lo, tinha manchado a honra de sua família. Presa de ira, repudiou Gaelle, e nos ordenou
que abandonássemos o castelo e não voltássemos a pôr nossos pés nele. Eu pensei que,
transcorrido certo tempo, ela revogaria sua decisão, já que amava Gaelle mais que a sua
vida. Mas esse mesmo dia descobriu que o Rafael tinha desaparecido. Somando dois
mais dois, acusou-me de lhe haver roubado, não só a sua filha mas também seu tesouro
familiar. Como podia negá-lo? Um delito não era pior que o outro e a mensagem nos
olhos de sua mãe me implorava que mantivesse silêncio. De modo que levei a sua mãe
do castelo, afastando-a de seu país, de sua família e de sua herança, e a levei comigo
aos Estados Unidos.
Decidimos não falar de sua mãe, porque isso só nos produzia uma grande dor, e
construímos nossa vida tendo a você para que fortalecesse ainda mais nosso vínculo. E
agora já tem a história e com ela, me perdoe, a responsabilidade. Talvez no momento em
que ler esta carta seja possível contar toda a verdade. Se não for assim, deixa que
permaneça oculta, do mesmo modo que foi a falsa Madonna de Rafael, separada do
mundo e oculta em algo imensamente mais precioso. Faz o que lhe disser o coração.
Seu pai que a ama.

As lágrimas de Serenity tinham caído sobre o papel desde a primeira linha e agora,
quando acabou de ler a carta, secou o rosto e lançou um profundo suspiro. Abandonou a
cama e caminhou para a janela. Olhou longamente o jardim onde seus pais confessaram
pela primeira vez seu amor.
-O que devo fazer? - perguntou-se em voz alta, com a carta ainda na mão.
"Se tivesse lido esta carta faz um mês, teria ido diretamente falar com a condessa,
mas agora não sei o que fazer", repetiu-se em silêncio.
Para deixar limpo o nome de seu pai teria que revelar um segredo que tinha
permanecido oculto durante vinte e cinco anos. Obteria algo revelando o conteúdo da
carta, ou só faria vãos os sacrifícios de seus pais? Seu pai lhe dizia na carta que devia
fazer aquilo que lhe ditasse o coração, mas este estava tão cheio de amor e de angústia
depois de ter lido a mensagem de seu pai, que ela era incapaz de escutar o que pudesse
lhe dizer, e em sua mente se formaram grandes nuvens de confusão. Serenity sentiu o
súbito impulso de consultar Christophe, mas o desprezou rapidamente. O fato de confiar
nele a tornaria ainda mais vulnerável, e a separação que logo ocorreria entre eles seria
mais angustiosa.
Devia pensar, decidiu, suspirando várias vezes. Devia afastar a névoa de sua mente
e pensar clara e cuidadosamente, e quando achasse uma resposta tinha que se
assegurar de que fosse a correta.
Caminhando de um lado a outro de seu quarto, deteve-se de repente e começou a
trocar de roupa a toda pressa. Recordou a sensação de liberdade que tinha
experimentado enquanto caminhava pelo bosque e era precisamente esta sensação,
decidiu enquanto colocava os jeans e uma camisa, de que ela necessitava para
tranqüilizar seu coração e esclarecer suas idéias.
Capítulo 10

O cavalariço obedeceu com receio à ordem de que selasse Babette. Argumentou,


com todo respeito, que ela não contava com a autorização do conde para montar a égua
e, por sua vez, Serenity empregou sua herança aristocrática e lhe informou altivamente
que, sendo como era a neta da condessa, não deviam questionar-se seus desejos. O
rapaz obedeceu, murmurando um protesto em língua bretã, e logo Serenity montou a
égua e se dirigiu imediatamente para o atalho que Christophe tinha tomado na primeira
lição.
O bosque era um lugar aprazível e formoso, e Serenity esvaziou completamente sua
mente esperando que a resposta que desejava encontrasse seu caminho para fazer sua
aparição. Levou a égua caminhando durante uns minutos e descobriu que era bastante
fácil conservar o controle e a autoridade sobre o animal, agora que se sentia parte dele.
Entretanto, a solução de seu problema não parecia estar perto e iniciou um ligeiro galope.
Ela e a égua se moviam compassadamente, e o vento agitava seu cabelo afastando-
o do rosto e dando essa sensação de liberdade que estava procurando. A carta de seu
pai estava bem segura em seu bolso posterior e Serenity decidiu galopar até o topo da
colina que dominava o povoado e voltar a lê-la, esperando encontrar então a sabedoria
necessária para tomar a decisão correta.
Ouviu um grito a suas costas e, ao voltar a cabeça, divisou Christophe que se
aproximava à carreira montando seu brioso alazão. Ao voltar-se, seu pé fez pressão no
flanco de Babette e a égua tomou como uma ordem e começou a galopar velozmente.
Serenity esteve a ponto de cair dos arreios e lutou por permanecer erguida sobre a égua,
enquanto Babette parecia voar pelo estreito atalho. A princípio, toda sua atenção se
concentrou em manter o equilíbrio, sem pensar sequer em tentar frear a desenfreada
carreira da égua. antes que seu cérebro tivesse a oportunidade de comunicar-se com
suas mãos e lhe ordenar que freassem a Babette, Christophe chegou a seu lado. Logo,
estendendo um braço, deteve a égua enquanto exclamava inumeráveis insultos em uma
apaixonada variedade de idiomas.
Babette se deteve docilmente e Serenity fechou os olhos com profundo alívio.
Imediatamente sentiu que a agarravam pela cintura e a tiravam dos arreios sem nenhum
tipo de cerimônia, enquanto os olhos de Christophe, como brasas acesas, olhavam-na
fixamente.
- O que pensava conseguir escapando de mim? - perguntou sacudindo-a como se
fosse uma boneca de pano.
- Eu não estava escapando de ti - protestou Serenity com voz trêmula por causa das
sacudidas que lhe dava Christophe - Suponho que devo ter incitado Babette quando dava
a volta para ouvir seu grito. - Sua própria ira começava a substituir a sensação inicial de
alívio - Nada disto teria acontecido se você não tivesse saído em minha perseguição. -
Serenity começou a debater-se para afastar-se dele, mas Christophe acentuou
dolorosamente a pressão de sua mão - Está me machucando! - gritou ela - Por que
sempre tem que me machucar?
- Um pescoço quebrado é muito mais doloroso, minha pequena louca, - disse ele,
afastando-a dos cavalos e caminhando com ela por um atalho - é o que teria ocorrido. O
que fazia cavalgando sem escolta?
- Sem escolta? - repetiu Serenity, rindo e afastando-se dele - Que exótico. Acaso às
mulheres não se permite passear a cavalo sem escolta na Bretanha?
- Não às mulheres que carecem de cérebro - replicou ele com fúria - e tampouco
àquelas que só montaram duas vezes em sua vida.
- Não tinha tido nenhum problema até que você chegou. - Serenity elevou a cabeça
altivamente - Agora parta e me deixe sozinha. - Ela notou que Christophe entrecerrava os
olhos enquanto dava um passo para ela - Vá! - gritou Serenity retrocedendo - Preciso
ficar sozinha. Tenho coisas no que pensar.
- Eu lhe darei algo mais em que pensar.
Christophe se moveu depressa, agarrando-a por trás da cabeça e lhe cortando o
fôlego com seus lábios. Serenity tentou separar-se dele sem êxito, lutando contra seu
abraço e também contra o torvelinho que começava a formar-se em sua cabeça.
Agarrando-a pelos ombros, Christophe a sacudiu enquanto seus dedos se afundavam na
carne de Serenity.
- Basta! Deixe de lutar! - Voltou a sacudi-la e ela descobriu pela expressão de seu
rosto que o aristocrata se esfumou e agora só ficava o homem - Desejo você. E quero
aquilo que nenhum homem pôde conseguir... e, Por Deus, que a farei minha.
Christophe a apertou contra seu corpo e Serenity se debateu com um medo
selvagem e primitivo, golpeando seu peito como um pássaro prisioneiro que golpeava as
grades de sua jaula, mas ele não se moveu e seu abraço se fez mais seguro, como se
em lugar de uma mulher aterrorizada ela fosse uma menina obediente.
Um momento depois Serenity se encontrou sobre a terra úmida e esmagada sob o
peso do corpo de Christophe, enquanto sentia que seus lábios lhe devastavam a boca.
Seus protestos não tinham mais efeito que o de um movimento arrojado no oceano. Com
um movimento veloz e violento, lhe abriu a blusa reclamando sua pele nua com dedos
ardentes; sua paixão estava cheia de uma urgência desesperada que conquistava todo
intento de resistência, toda vontade de luta.
A luta se transformou em exigência e sua boca se tornou ofegante sob os lábios de
Christophe, as mãos que fazia um momento tinham tentado lhe separar dela agora o
atraíam com frenesi. Inundada na vertigem da paixão, Serenity se recreou na intimidade
daquele corpo duro que se movia ao ritmo do instinto atávico. Com absoluta liberdade e
com crescente urgência, os dedos de Christophe riscavam sulcos de calor sobre sua pele
nua, sua boca seguia o rastro do incêndio e voltava uma e outra vez a apagar a sede
entre seus lábios. Mas a sede aumentava sem cessar e suas demandas a transportavam
a um mundo novo e atemporal, a uma fronteira que separava o céu e o inferno, onde só
podiam existir um homem e uma mulher.
Christophe a levou para insondáveis profundidades, até que o prazer e a dor se
converteram em uma sensação turbulenta que exigia a satisfação imediata do prazer.
Indefesa sob a ardente paixão, Serenity sentiu um lento tremor que foi fazendo-se mais
intenso à medida que a viagem a levava longe do conhecido e mais perto do nunca visto.
Com um gemido em que se mesclavam o temor e o desejo, seus dedos se cravaram nos
ombros de Christophe como se tentasse não cair em um vazio eterno.
A boca de Christophe se afastou subitamente de seus lábios e, com a respiração
entrecortada, sua bochecha descansou brevemente sobre seu rosto antes de levantar a
cabeça e olhá-la intensamente.
- Acredito que estou te fazendo dano outra vez, "ma petite". - Lançou um suspiro e
se separou dela até ficar de costas a seu lado - Joguei no chão e estive a ponto de violá-
la como se fosse um bárbaro. É terrivelmente difícil controlar meus instintos quando estou
contigo.
Serenity se sentou e começou a fechar a blusa com dedos trêmulos.
- Está bem. - Tentou que sua voz parecesse indiferente, mas não conseguiu - Não
me tem feito mal. Freqüentemente me dizem que sou uma mulher muito forte. Não
obstante, acredito que deveria aprender a controlar sua técnica - balbuciou para ocultar a
profundidade de sua dor - Geneviéve é mais frágil que eu.
- Geneviéve? - repetiu ele, apoiando-se em um cotovelo para olhá-la diretamente
aos olhos - O que tem que ver Geneviéve com isso?
- Com isso? - respondeu ela - Oh, nada. Não tenho intenção de lhe contar nada do
que ocorreu. Gosto muito dela.
- Talvez devêssemos falar em francês, Serenity. Não consigo entender o que quer
me dizer.
- Geneviéve está apaixonada por ti, seu idiota! - exclamou ela ignorando seu pedido
de que falassem em francês - Ela mesma me disse isso. Veio me pedir que a
aconselhasse. - Serenity conseguiu controlar a risada histérica que tentava escapar de
seus lábios. - Ela me pediu que lhe aconselhasse - repetiu - o que devia fazer para que
você a considerasse uma mulher e não uma menina divertida. Eu não lhe disse que
opinião tinha de ti; Geneviéve não o teria entendido.
- Ela disse que estava apaixonada por mim? - perguntou ele com os olhos
entrecerrados. - Não mencionou seu nome - disse ela, desejando que essa conversação
não tivesse começado nunca - Disse que tinha estado apaixonada por um homem toda
sua vida e que ele a olhava como se fosse uma menina. Eu simplesmente lhe disse que
falasse claramente com ele e lhe fizesse compreender que ela era uma mulher... do que
ri?
- E você pensou que ela estava falando de mim? - Christophe jogou a cabeça para
trás e pôs-se a rir convulsivamente, de um modo que ela jamais tinha visto nele - A
pequena Geneviéve apaixonada por mim!
- Como se atreve a rir dela? Como pode ser tão cruel e rir de alguém que o ama?
Christophe lhe sujeitou os punhos antes que estabelecessem contato com seu peito.
- Geneviéve não a buscou para que a aconselhasse com respeito a mim, "chérie". -
Christophe a manteve imobilizada sem maior esforço - Ela estava falando de Iann. Mas
você ainda não conheceu o Iann, não é, "mon amour"? - Ignorou seus furiosos
movimentos e continuou falando com um sorriso zombador dançando em seus lábios.
Crescemos juntos... lann, Yves e eu. A pequena Geneviéve sempre nos seguia como um
cachorrinho. Yves e eu seguimos sendo seus "irmãos" quando se converteu em uma
mulher, mas estava apaixonada por Iann. Ele esteve em Paris a negócios durante todo o
mês passado e retornou ontem a Bretanha. - Com um ligeiro movimento de seus pulsos a
estreitou contra seu peito - Geneviéve me chamou por telefone esta manhã e me disse
que se comprometeu. Também me disse que desse os agradecimentos em seu nome e
agora sei a que se referia.
A careta zombadora de Christophe iluminou seu rosto quando Serenity mostrou sua
perplexidade com seus olhos ambarinos totalmente abertos.
- Que ela se comprometeu com lann? Então não estava falando de você?
- Sim, eles vão casar se. E não, não estava falando de mim - respondeu ele - Me
diga, minha preciosa prima, sentiu-se ciumenta pensando que Geneviéve estava
apaixonada por mim?
- Não seja ridículo - mentiu Serenity, tratando de afastar sua boca da proximidade de
seus lábios úmidos - Não estaria mais ciumenta de Geneviéve que você de Yves.
- Ah. - Com um rápido movimento Christophe se colocou em cima dela e a olhou
com seus olhos escuros - Pensa isso? E deveria dizer que estava terrivelmente ciumento
de meu amigo Yves e de que estive a ponto de assassinar o seu amigo americano? Deu
de presente a ambos os sorrisos que deviam ser para mim. Do momento em que a vi
desembarcar do trem, senti-me perdido, enfeitiçado, e lutei contra esse sentimento como
luta qualquer homem contra algo que quer lhe escravizar. Talvez esta forma de
escravidão seja a liberdade. - Sua mão acariciou o loiro cabelo do Serenity—. Ah,
Serenity, "je t'aime".
Ela respirou com crescente dificuldade, em um intento para encontrar sua própria
voz. - Quer repetir o que acaba de dizer?
Christophe sorriu e sua boca percorreu seus lábios por um instante.
- Em inglês? Amo você. Amei do primeiro momento em que a vi, e agora amo
imensamente mais e a amarei pelo resto de minha vida.
Seus lábios desceram até posar-se sobre os dela, movendo-se com uma ternura
que Serenity não havia sentido antes, afastando-se só quando percebeu a umidade de
seus olhos.
- Por que chora? - perguntou Christophe com o cenho franzido - O que fiz agora?
Serenity meneou a cabeça.
- É só que eu também amo você e pensei... - Vacilou por um momento e logo
suspirou profundamente - Christophe, acha que meu pai era inocente ou pensa que sou a
filha de um ladrão?
A expressão de seu rosto se fez mais severa e a estudou em silêncio.
- Direi o que sei, Serenity, e também direi o que penso. Sei que amo você, não só o
anjo que desembarcou do trem em Lannion, mas também a mulher que cheguei a
conhecer. Não haveria nenhuma diferença se seu pai foi um ladrão, um vigarista ou um
assassino. Escutei quando falas de seu pai e vi seu olhar quando o faz. Não posso
acreditar que um homem que mereceu esse amor e essa devoção pudesse ter cometido
semelhante delito. Isso é o que acredito, mas não tem nenhuma importância, porque
nada do que tenha feito ou deixado de fazer poderia mudar o amor que sinto por ti.
- Ah, Christophe - sussurrou Serenity aproximando seu rosto - toda minha vida estive
esperando alguém como você. Há algo que devo mostrar. - afastou-se brandamente dele
e tirou a carta que levava no bolso - Meu pai me disse que escutasse a meu coração e
agora meu coração pertence a você.
Serenity se sentou frente a ele, observou a expressão de seu rosto enquanto lia a
carta e sentiu uma profunda paz, uma alegria que não tinha experimentado desde que
seus pais tinham morrido. O amor que sentia por Christophe a enchia e sabia que ele a
ajudaria a tomar a decisão correta. O bosque estava em silêncio, a tranqüilidade reinava
na floresta, e só se ouvia o sussurro da brisa entre as folhas das árvores e o canto dos
pássaros. Por um momento, converteu-se em um lugar fora do tempo e habitado só por
uma mulher e um homem.
Quando Christophe terminou de ler a carta, elevou a vista do papel e a olhou.
- Seu pai amava muito a sua mãe.
- Sim.
Christophe dobrou cuidadosamente a carta, voltou a colocá-la dentro do envelope e
em nenhum momento deixou de olhá-la.
- Teria gostado de conhecê-lo. Eu era apenas um pirralho quando ele veio ao
castelo e não permaneceu muito tempo.
Serenity sustentou seu olhar.
- O que devemos fazer?
Christophe se aproximou dela e pegou seu rosto entre suas mãos.
- Devemos mostrar esta carta à nossa avó.
- Mas eles estão mortos e ela está viva. Eu a quero muito e não desejo que sofra.
Ele se inclinou para lhe beijar as pestanas. - Amo você, Serenity, por muitas razões,
e agora acaba de acrescentar outra à lista. - Christophe lhe elevou a cabeça para olhá-la
novamente aos olhos - Agora me escute, "mon amour", e confia em mim. Ela deve
conhecer o conteúdo desta carta para tranqüilizar sua consciência. A avó acredita que
sua filha a traiu para então abandoná-la. Viveu durante vinte e cinco anos acreditando
que sua filha manchou a honra da família. Esta carta significará muito para ela. Poderá ler
nas palavras de seu pai o amor que Gaelle sentia por ela e, o que é igualmente
importante, compreenderá o amor que seu pai sentia por sua filha. Ele era um homem
honrado, mas viveu pensando que a mãe de sua esposa estava convencida de que era
um ladrão. Chegou o momento em que todo este assunto deve esclarecer-se para
sempre.
- Está bem - concordou ela - Se crê que é o correto, faremos isso.
Christophe sorriu e lhe beijou as mãos antes de ajudá-la a se levantar do suave
colchão de folhas.
- Me diga, querida prima - a risada zombadora e familiar iluminou seu rosto - sempre
fará o que eu disser?
- Não - disse ela meneando vigorosamente a cabeça - Absolutamente.
- Ah, imaginei. - Os dois caminharam para onde estavam os cavalos - Nossa vida
não será nada aborrecida. - Agarrou as rédeas de Babette e Serenity montou sem
necessidade de que a ajudasse - É perturbadoramente independente, obstinada e
impulsiva, mas amo você.
- E você - disse ela, enquanto Christophe montava agilmente em seu alazão - é
arrogante, autoritário e presunçoso, mas eu também o amo.
Logo chegaram às cocheiras. depois de lhe entregar os cavalos ao cavalariço,
dirigiram-se ao castelo de mãos dadas. Quando chegaram ao jardim, Christophe se
deteve e a olhou.
- Deve ser você a entregar a carta à avó, Serenity - disse, extraindo a carta do bolso
e entregando-lhe.
- Sim, eu sei - disse ela, pegando o envelope - Mas você estará comigo, não é?
- "Oui, ma petite". - Envolveu-a entre seus braços - Ficarei a seu lado.
Beijou-a meigamente e Serenity enlaçou seus braços em torno do pescoço dele até
que o beijo se fez mais profundo e só existiram eles dois no mundo.
- Muito bem, meus filhos. - A voz da condessa rompeu o feitiço e ambos se voltaram
para descobrir sua magra figura na beira do jardim - Vejo que decidiram deixar de lutar
contra o inevitável.
- É muito sábia, avó - disse Christophe elevando uma sobrancelha - Mas acredito
que nos poderíamos arrumar isso sem sua valiosa cooperação.
Os elegantes ombros da condessa se moveram significativamente.
- Mas os dois teriam perdido muito tempo e o tempo é um produto muito valioso.
- Entra conosco, avó. Serenity tem algo que deseja mostrar a você.
Os três entraram no amplo salão e a condessa se sentou no trono de brocado.
- O que é o que quer me mostrar, "ma petite"?
- Avó - disse Serenity aproximando-se da anciã - Tony me trouxe alguns
documentos que meu advogado me enviou. Não me preocupei em averiguar seu
conteúdo até que ele partiu, mas quando o fiz descobri que eram muito mais importantes
do que eu tinha imaginado. - Entregou-lhe a carta - Antes que leia esta carta, quero que
saiba que gosto muito de você. - A condessa abriu a boca para falar mas Serenity
continuou - Amo Christophe e, antes de ler o que tem nas mãos, ele me disse que
também me amava. Não posso dizer quão maravilhoso foi que me dissesse isso antes de
ler essa carta. Nós dois decidimos que devia lê-la porque a amamos.
Serenity se sentou no sofá enquanto sua avó procedia a leitura da famosa carta;
Christophe se sentou junto a ela e lhe pegou a mão.
Os olhos de Serenity permaneciam fixos no retrato de sua mãe e voltou a comprovar
que no olhar de Gaelle havia alegria e felicidade, que era o olhar de uma mulher
profundamente apaixonada. "Eu também a encontrei, mamãe - disse em silêncio - a
entristecedora alegria do amor, e o tenho aqui em minha mão."
Baixou a vista para as mãos entrelaçadas onde os dedos bronzeados se cruzavam
com os de alabastro e o anel de rubis que tinha pertencido a sua mãe brilhava com o
contraste das cores. Olhou o anel e então elevou a vista e olhou a réplica que levava sua
mãe, e então compreendeu. O movimento da condessa ao ficar em pé tirou Serenity de
suas divagações.
- Durante vinte e cinco anos julguei mal a este homem e à filha que tanto amava. -
Suas palavras eram suaves e a condessa se voltou para olhar para a janela - Meu
orgulho me cegou e endureceu meu coração.
- Você não podia sabê-lo, avó - disse Serenity, observando as rígidas costas da
condessa - Eles só queriam proteger você.

- Para me proteger do fato de que meu marido tinha sido um ladrão e da humilhação
de um escândalo público, seu pai permitiu que lhe acusassem de roubo e minha filha
renunciou a sua família. - A condessa se deixou cair novamente em sua elegante poltrona
- Através das palavras de seu pai percebo claramente o amor. Diga-me, Serenity, minha
filha foi feliz?
- Pode ver seus olhos quando meu pai a estava pintando. - Serenity assinalou o
retrato - Sempre teve esse olhar.
- Como posso me perdoar pelo que fiz?
- Oh, não, avó. - Serenity ficou de pé e foi ajoelhar-se frente à condessa, agarrando
suas mãos e as beijando - Não entreguei essa carta para acrescentar dor a seu espírito,
mas para tirá-la. Leu a carta e sabe que eles não a culpam de nada. Ao contrário, eles
decidiram voluntariamente que acreditasse que lhe tinham traído. Talvez cometeram um
engano, mas parece, e já não se pode voltar atrás. - Apertou com força as magras mãos
da condessa - Eu não a culpo de nada e rogo que faça desaparecer esse sentimento de
culpa.
- Ah, Serenity, minha querida menina! - A voz da condessa era suave como seus
olhos - Está bem - disse bruscamente erguendo novamente os ombros - Só
recordaremos os tempos felizes. Você me contará a vida de Gaelle com seu pai em
Georgetown e voltará a aproximá-los de mim, não é mesmo?
- "Oui", avó.
- Talvez um dia me leve para conhecer a casa onde cresceu.
- Aos Estados Unidos? - perguntou Serenity profundamente assombrada - Não tem
medo de viajar a um país tão incivilizado?
- Volta a ser impertinente - disse a condessa altivamente enquanto se levantava de
seu trono - Começo a acreditar que chegarei a conhecer muito bem a seu pai através de
ti, Serenity. - A anciã meneou a cabeça - Quando penso no preço que tive que pagar por
essa maldita pintura! Alegro-me de me haver liberado dela! - Ainda tem a cópia, avó disse
Serenity - Eu sei onde está.
- Como sabe? - perguntou Christophe falando pela primeira vez desde que entraram
no salão.
Serenity se voltou para ele com um sorriso. - Está aí, na carta, mas ao princípio não
descobri. Quando nos sentamos no sofá e você me agarrou a mão, dei-me conta. Vê isto?
- Elevou a mão mostrando o anel de rubis - Era de minha mãe, o mesmo anel que usa no
retrato.
- Eu tinha visto o anel na pintura - disse a condessa lentamente - mas Gaelle jamais
teve um anel semelhante. Pensei que seu pai o tinha incluído só para que fizesse jogo
com os brincos .
- Ela tinha o anel, avó. Era seu anel de compromisso. Mamãe sempre levava com o
anel de bodas em sua mão esquerda.
- Mas, o que tem que ver tudo isto com a cópia da Madonna de Rafael? - perguntou
Christophe franzindo o cenho.
- Na pintura ela leva o anel na mão direita. Meu pai jamais teria cometido esse
engano de detalhe a menos que o fizesse intencionalmente.
- É possível - murmurou a condessa.
- Sei que está ali. Diz na carta. Meu pai diz que a ocultou, coberta por algo
imensamente mais precioso. E, para ele, nada era mais precioso que minha mãe.
- "Oui" - concordou a condessa, estudando a pintura de sua filha - Não havia outro
lugar mais seguro onde ocultá-la.
- Tenho uma solução - disse Serenity - Posso despintar uma esquina e então
estaremos certos.
- "Non". - A condessa meneou a cabeça - "Non", não há necessidade de fazê-lo.
Não permitirei que destrua nenhuma polegada do trabalho de seu pai mesmo que
debaixo se encontrasse o Rafael original. - voltou-se para Serenity e lhe acariciou a
bochecha - Agora meus tesouros são você, Christophe e esta pintura. Deixaremo-la ali.
Esse é o lugar que lhe pertence. Agora lhes deixarei sozinhos. Os apaixonados devem ter
sua intimidade.
Abandonou o salão com o porte de uma rainha e Serenity a olhou com admiração.
- É uma mulher magnífica, não acha?
- "Oui" - concordou Christophe, agarrando Serenity entre seus braços - E muito
sábia. Não te beijei em toda uma hora.
Depois que Christophe solucionou essa discrepância para satisfação de ambos,
olhou Serenity com seu habitual gesto de suficiência.
- Uma vez que estejamos casados, "mon amour", encarregarei a alguém que pinte
seu retrato e acrescentaremos outro tesouro ao castelo.
- Nos casar? - repetiu Serenity franzindo o cenho - Nunca disse que pensava me
casar com você. - separou-se dele como se lhe rechaçasse - Não pode me ordenar que
faça algo semelhante. A uma mulher agrada que o peçam.
Christophe a atraiu para ele e a beijou profundamente com lábios quentes e
insistentes. - Dizia algo, prima? - perguntou.
Serenity olhou-o com expressão séria, mas entrelaçou suas mãos atrás do pescoço
dele.
- Nunca serei uma aristocrata.
- Que o céu não o permita - exclamou ele sinceramente.
- Brigaremos freqüentemente e o deixarei fora de si.
- Assim espero - disse ele.
- Muito bem - exclamou Serenity com um sorriso nos lábios - Me casarei contigo...
com uma condição.
- E qual é essa condição? - perguntou Christophe elevando uma sobrancelha.
- Que esta noite me acompanhe a dar um passeio pelo jardim. - Serenity se enlaçou
com força a seu corpo - Estou cansada de caminhar à luz da lua com outros homens e
desejando que fosse você.

FIM

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