Fahrenheit 451 - Ray Bradbury

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FICHA TÉCNICA

Título: Fahrenheit 451


Autoria: Ray Bradbury
Editor: Luís Corte Real
Esta edição © 2020 Edições Saída de Emergência
Título original Fahrenheit 451 © 1953, renovado em 1981 Ray Bradbury.
Publicado originalmente nos E.U.A. por Simon & Schuster, 2012
Tradução: Casimiro da Piedade
Revisão: GoodSpell
Design da capa: Luís Morcela
Data de Edição E-Book: abril, 2020
isbn: 978-989-773-246-1
Edições Saída de Emergência
Taguspark - Rua Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva,
Edifício Qualidade - Bloco B3, Piso 0, Porta B
2740-296 Porto Salvo, Portugal
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EPÍGRAFE

451ºF:
TEMPERATURA A QUE O PAPEL DOS
LIVROS ATINGE O PONTO DE IGNIÇÃO
E É CONSUMIDO PELO FOGO
DEDICATÓRIA

Dedico este livro,


com gratidão, a Don Congdon
FRASE

Se te derem papel pautado, escreve do outro lado


JUAN RAMÓN JIMÉNEZ
PREFÁCIO

FAHRENHEIT 451
POR JAIME NOGUEIRA PINTO
(O autor escreve de acordo com a grafia anterior)

A
Sexta Coluna de Robert Heinlein foi o primeiro livro de ficção
científica que li. Fiquei fascinado com a trama: era uma invasão e
ocupação dos Estados Unidos por uns tais “Panasiáticos” (havia
uma história em quadradinhos do Blake e Mortimer, de E.P. Jacobs, O
Segredo do Espadão, que tratava do mesmo tema). Depois, a resistência
norte-americana acabava por vencer os ocupantes, recorrendo a uma
organização político-religiosa originalíssima. O livro era de 1941 e a
tradução era o n.º 20 da colecção Argonauta, que António Souza Pinto, da
Livros do Brasil, começou a lançar em 1953. Livros em formato pequeno
mas de grande qualidade, com capistas como Cândido Costa Pinto e Lima
de Freitas.
Graças ao pai de um amigo, que tinha toda a colecção e ma foi
emprestando por ordem de saída, li os volumes todos até então publicados.
Depois, tornei-me um fidelíssimo comprador e leitor da Argonauta, onde
fui descobrindo os mundos de Isaac Asimov, A. E. Van Vogt, Clifford D.
Simak, Brian Aldiss, Ray Bradbury.
Li o Fahrenheit 451 — o n.º 33 — depois de ter lido O Mundo Marciano
(tradução de The Martian Chronicles) e O Homem Ilustrado, duas
colectâneas de contos de Bradbury. Devo-o ter lido no Verão de 1958, dois
anos depois de ter saído em Portugal. Nesse tempo, as minhas leituras
tinham passado da colecção Salgari, com Sandokan, o Tigre da Malásia,
para a colecção De Capa e Espada das Edições Romano Torres, onde me ia
familiarizando com Ponson du Terrail (Os Quatro Cavaleiros da Noite, Um
Trono por Amor, O Pagem do Rei, As Luvas Envenenadas) e com Paul
Féval, criador do Lagardère. Também já tinha lido, nas mesmas edições
Romano Torres, o Walter Scott em português.
Fahrenheit 451 era já um romance, uma coisa mais séria, uma história
completa; a história de uma sociedade futura de onde os livros tinham sido
banidos e onde os bombeiros já não apagavam fogos — as casas eram de
materiais não inflamáveis —, só queimavam livros. Fahrenheit 451 (233
graus Celsius) era a temperatura a que ardiam os livros.
Para viciados na leitura, que continuam a gostar de ler e de ter livros —
livros de todos os géneros, das novidades aos clássicos, livros com folhas,
letras impressas, capas, encadernações, edições modernas e antigas (tenho
algumas primeiras edições do Camilo Castelo Branco, compradas no Brasil)
—, esta destruição dos livros é equivalente a um Apocalipse.
Quando saiu nos Estados Unidos, em 1953, Farenheit 451 foi lido como
um manifesto contra a censura, como um panfleto contra todas as
inquisições. Estaline tinha morrido nesse ano, a memória de Hitler ainda
estava bem viva e o macartismo tomava a América de assalto.
Hoje percebemos melhor o seu significado mais fundo, ou percebemos o
livro à distância, de maneira diferente, e talvez mais interessante
civilizacionalmente. Até porque é na nossa distância que as sombras de
Fahrenheit 451 parecem incidir com maior crueza, como se vivêssemos
agora o futuro adivinhado no livro. O próprio Bradbury insistia que o livro
não era “uma resposta ao senador Joseph McCarthy” nem era sobre a
“censura estatal”, mas sobre o modo como a televisão estava a destruir “o
nosso interesse pela leitura e pela literatura” e a “transformar as pessoas em
imbecis” (“It is about people being turned into morons by TV”).
Assim, em Fahrenheit 451, queimam-se livros porque os livros são
perigosos e levam a pensar e a julgar criticamente, encerrando um passado
que pode denunciar, empalidecer ou pôr em causa o presente e sugerir outro
futuro. No livro, os que deixaram de ler livros — como a vaporosa Mildred,
mulher do protagonista — estão alienados pela televisão e por uma espécie
de redes sociais tridimensionais que lhes fornecem famílias fictícias e lhes
preenchem o dia-a-dia com companhias virtuais. Mildred é uma das muitas
“toxicodependentes” das fábulas radiotelevisivas que enformam a cultura
oficial.
Ao entrar hoje no mundo das redes sociais e ao assistir de relance a
alguns shows populares de duvidosa ética e estética, percebemos que a
visão de Bradbury transcende o piedoso e sempre correcto comentário
anticensura para penetrar incisivamente no coração do futuro — o nosso
presente.
Quando o herói, Guy Montag, regressa a casa, ao seu bairro, a
comunidade dos vizinhos, telespectadores obcecados, lembra-lhe um
cemitério ou um mausoléu silencioso, imerso numa escuridão só quebrada
pelos “fantasmas cinzentos” dos ecrãs que se projectam nas paredes.
Este aparente pessimismo tecnológico do autor, a ideia de que as
máquinas vão domesticando e escravizando as pessoas, a visão do homem
criador dominado pelas máquinas-criaturas, surge também em The
Pedestrian, um conto em que o protagonista, Leonard Mead, é detido pelo
crime de passear a pé e de não ter televisão. No conto aparecem automóveis
sem condutor, e é um desses automóveis pensantes que prende Mead e o
leva para um manicómio por delinquência. No entanto, para Bradbury, as
máquinas, os robots (tal com os livros) são meras extensões das pessoas,
meros repositórios do que os homens neles vão injectando e projectando, e
dependem do uso, bom ou mau (e bom e mau), que se lhes for dando.
Assim, a temer alguma coisa, são as pessoas, e não as máquinas, que
devemos temer. É por isso que o autor de Fahrenheit 451 abraça a missão
de as humanizar ou de preservar a humanidade das pessoas, através do bom
uso dos artefactos humanos (livros, filmes, robots) e com todas as suas
capacidades — cabeça, mãos e coração (“I am afraid of people, people,
people. I want them to remain human. I can help keep them human with the
wise and lovely use of books, films, robots, and my own mind, hands, and
heart”, escrevia em carta de 1974).
Mais do que um escritor de ficção científica — que também o é —,
Bradbury é um grande escritor do fantástico. Para ele, a ficção científica
está ligada à antecipação de uma coisa, de um objecto ou de um
mecanismo, que ainda não existe mas que vai aparecer e mudar tudo para
toda a gente; enquanto o fantástico, mais directamente relacionado com a
imaginação, se estabelece como indirecta base de inspiração para os
construtores das coisas futuras.
A sua imaginação é uma imaginação poética, literária, de autodidacta
devoto de bibliotecas. Em «Take Me Home», o texto autobiográfico
publicado na New Yorker por ocasião da sua morte, Bradbury descreve-se
como um miúdo com uma enorme capacidade de se maravilhar. Em
Waukegan, Illinois, sentado na relva de casa dos avós, o pequeno Ray
repetia para quem o quisesse ouvir as histórias do Tarzan, de Harold Foster,
e do John Carter de Marte, de Edgar Rice Burroughs, que decorava para que
nunca se perdessem. Era também dali que, no 4 de Julho, lançava com o
avô balões iluminados que se perdiam na noite de Verão, levados pelo ar
crepitante, que os tornava leves. Queria voar e perder-se noutros mundos, e
as luzes vermelhas de Marte que antevia no céu estrelado da infância eram a
sua casa.
Ray nunca deixaria totalmente de ser esse miúdo, perdido nas noites
estivais da América profunda, maravilhado com as coisas e obcecado pelas
ilustrações dos suplementos de Domingo; um miúdo que acabaria por entrar
para a lista “dos maiores escritores de ficção científica do século xx, ao lado
de Isaac Asimov, Arthur C. Clark, Robert A. Heinlein e Stanislaw Lem”
(como escreveria Gerald Jones no NYT, no dia 6 de Junho de 2012, quando
da sua morte). Os seus livros venderiam milhões de exemplares em 36
línguas e seriam decisivos para nobilitar, como literatura, os géneros do
Fantástico e da Syfy.
Fahrenheit 451 é uma saga num mundo distópico. Bradbury tem uma
relação ambígua com o futuro, que o atrai e o repele, que o seduz e assusta,
e a história de Farenheit 451 situa-se nessa fronteira, algures entre os seus
encantos — os livros, a natureza, a conversa, o silêncio, a América
profunda, porta para outros mundos — e os seus temores — o mau uso das
máquinas, a tirania da mudança pela mudança, o deslumbramento acrítico
perante a inovação, o desprezo pelo passado, a manipulação.
A história é, como todas as grandes histórias, a história de uma viagem e
de uma conversão. Guy Montag é bombeiro, um incinerador, um
exterminador de livros que, às ordens do capitão Beatty, vai queimando
livros e prendendo os seus possuidores como inimigos do Estado e do bem
público. Tal como S. Paulo antes da conversão, Montag faz parte da
máquina de repressão e perseguição, mas não é Cristo que lhe aparece na
Estrada de Damasco: é uma jovem de 17 anos, Clarisse McClellan, que o
interpela sobre a sua profissão, que lhe pergunta porque queima livros e que
lhe revela que, antigamente, os bombeiros, em vez de queimarem o que
quer que fosse, apagavam fogos. Uma noite, Montag lê Dover Beach, de
Matthew Arnold, que retirara de uma queima e que guardava em segredo.
Arnold lamenta a perda de Verdade, de Fé e de Humanidade, numa
Inglaterra em industrialização… A partir daí, Montag torna-se um
dissidente, um marginal.
E no mundo de Fahrenheit 451 a dissidência paga-se cara. Entre as
sofisticadas tecnologias de perseguição e destruição está o tenebroso The
Hound, um grande cão mecânico de oito patas que detecta e aniquila os
dissidentes. Montag consegue escapar, mas a reportagem televisiva da
perseguição, supostamente fidedigna e em tempo real, é forjada e
manipulada para fins políticos, simulando a sua captura e apresentando-a
como um sucesso do sistema e um castigo exemplar.
Em 1966, François Truffaut realizou na Grã-Bretanha um filme a partir
de Fahrenheit 451. Oskar Werner era Montag, Julie Christie fazia de
Clarice e de Mildred, e Cyril Cusak era o chefe dos bombeiros. No final, na
terra dos dissidentes, na terra dos “homens-livro”, cada um dos refugiados
tinha decorado um livro e era esse livro. A República de Platão, O Príncipe
de Maquiavel, Vie d’Henri Brulard de Stendhal, Orgulho e Preconceito de
Jane Austen, The Pickwick Papers de Dickens e The Martian Chronicles do
próprio Bradbury, numa homenagem de Truffaut ao autor, eram, no filme,
alguns dos livros decorados pelos “vagabundos por fora e bibliotecas por
dentro” que vagueavam pelos campos, fugindo e reagindo à destruição da
história e da memória.
Tal como os outros homens-livro, Montag não tem certezas quanto ao
potencial salvífico daquilo que “carrega na cabeça”, a possibilidade de os
livros memorizados poderem garantir “futuros amanheceres radiosos, de luz
pura” é remota ou é, pelo menos, incerta. Mas ele, que vai ser o livro do
Eclesiastes e que sabe que há um tempo para tudo, acha que, mesmo assim,
vale o risco — e resolve corrê-lo com a comunidade em diáspora que o
adopta. E quando pensa nas palavras que quer guardar para a chegada
triunfal dos marginais à cidade, é nas promessas do livro do Apocalipse que
pensa: a árvore da vida nas margens do rio com as suas doze colheitas; e
nas suas folhas e no seu fruto a cura dos homens e a redenção das nações.
Fahrenheit 451, tal como a Fénix e a humanidade, parece nunca perder a
capacidade de renascer das próprias cinzas depois de periódicas
condenações ao esquecimento: mais de meio século depois da adaptação de
Truffaut, a HBO está a produzir uma nova versão do livro, dirigida por
Rasmin Bahrani. Desta vez, Montag é encarnado pelo afro-americano
Michael B. Jordan, Clarice é a franco-argelina Sofia Boutella, Mildred é
Laura Harris e Beatty é Michael Shannon.
Bradbury inspirou inúmeras adaptações e guiões, desde It Came from
Outer Space (1953) a The Halloween Tree (1993) e a Sound of Thunder
(2005). Escreveu guiões de filmes e de series de televisão.
Devo-lhe muitas horas de leitura apaixonada e apaixonante. Espero que,
passados estes anos todos, os leitores desta nova edição tenham a mesma
surpresa e o mesmo encanto.
UM

A LAREIRA
E A SALAMANDRA

E
ra um prazer pôr fogo às coisas.
Era um prazer especial vê-las a serem devoradas, enegrecidas e
transformadas. Com o bocal de latão da mangueira bem firme nos
punhos, com aquela enorme pitão que cuspia veneno cheio de querosene
sobre o mundo, sentia que o sangue lhe latejava na cabeça, e que as suas
eram as mãos de um genial maestro de orquestra a dirigir todas as sinfonias
de chamas e de fogo que consumissem os últimos farrapos e as ruínas
carbonizadas da História. Com a impassível cabeça adornada pelo capacete
simbolicamente numerado 451, e os olhos tingidos de um laranja ígneo pela
antecipação do que se seguiria, acionou o ignitor e a casa elevou-se no ar,
envolta numa bola de fogo que manchou o céu da noite com tons de
vermelho, amarelo e negro. Caminhou envolto num enxame de vaga-lumes.
Como naquela velha piada, apetecia-lhe espetar uma maçã caramelizada
num pau e assá-la um pouco naquela fornalha, enquanto os livros
esvoaçavam como pombos e iam morrer no alpendre e no relvado da casa.
Enquanto os livros se consumiam num turbilhão ascendente e faiscante e
eram empurrados por um vento tornado negro pelo incêndio.
Montag exibiu o sorriso cruel de todos os homens habituados às carícias
das chamas.
Sabia que, quando voltasse ao quartel, iria sorrir de novo ao olhar-se no
espelho, ao ver aquele rosto enegrecido como o dos antigos cantores de
variedades que usavam cortiça queimada para escurecerem a face. Mais
tarde, ao adormecer no escuro, sentiria que o sorriso cruel ainda lhe
controlava os músculos do rosto. Nunca se extinguia, aquele sorriso, e
desde que se lembrava sempre assim fora.

Tirou o capacete negro e luzidio como a carapaça de um escaravelho


e pôs-se a poli-lo. Pendurou cuidadosamente o casaco à prova de fogo.
Entregou-se ao prazer de um generoso duche, e depois, a assobiar, com as
mãos nos bolsos, caminhou ao longo do andar superior do quartel e deixou-
se cair pelo buraco. No último momento, quando o desastre parecia
iminente, tirou as mãos dos bolsos e travou a queda agarrando-se ao varão
metálico dourado. Deslizou por este abaixo, numa chiadeira que parou
quando os seus tacões chegaram a um par de centímetros acima do chão de
cimento.
Saiu do quartel para a rua sob o céu noturno em direção ao metro, cujas
carruagens, movidas a ar comprimido, deslizavam silenciosamente através
do túnel escavado na terra e, emitindo um bafo de ar quente, o deixavam no
patamar de azulejos de cor creme da escada rolante que ascendia até ao
subúrbio.
A assobiar, deixou que a escada o levasse suavemente de volta ao ar da
noite. Caminhou em direção à esquina, com a cabeça vazia de quaisquer
pensamentos. Antes de lá chegar, porém, abrandou o passo, como se um
vento se tivesse levantado de repente, como se alguém tivesse chamado o
seu nome.
Nas noites anteriores tivera uma sensação estranha naquela parte do
passeio que fazia a esquina, mesmo antes da reta que o levaria a casa à luz
das estrelas. Sentira, no momento imediatamente anterior a dobrar a
esquina, que estava ali alguém. O ar parecia carregado de uma calma
especial, como se alguém tivesse estado ali à espera, serenamente, e, um
segundo antes de ele aparecer, se tivesse transformado numa sombra para o
deixar passar. Talvez o seu olfato detetasse um ligeiro perfume, talvez a
pele das costas das suas mãos ou do seu rosto sentissem a subida da
temperatura naquele preciso ponto em que a presença de uma pessoa
pudesse tê-la aumentado alguns graus durante um momento. Era algo
incompreensível. De cada vez que dobrava a esquina, via apenas a
superfície branca do passeio, ainda que, certa noite, lhe pareceu ver algo a
escapulir-se rapidamente através de um relvado, antes que pudesse focar a
visão ou dizer alguma coisa.
Mas nessa noite decidiu abrandar o passo até quase parar. A sua mente,
que se-lhe antecipara a dobrar a esquina, ouvira um mínimo sussurro.
Alguém a respirar? Ou era apenas a compressão da atmosfera pela simples
presença de alguém ali, muito quieto, à espera?
Dobrou a esquina.
As folhas outonais moviam-se ao longo do passeio banhado pelo luar de
uma forma tal que parecia que a rapariga que se dirigia para ele estava
parada, fixa a uma passadeira deslizante, sendo o seu movimento não mais
do que uma ilusão causada pelo vento e as ondulações das folhas. A sua
cabeça estava meio apontada ao chão, observando os pés a sacudirem as
folhas que a rodeavam. Tinha um rosto magro e branco como leite, que
exibia uma espécie de voracidade gentil, uma curiosidade incansável que
abarcava tudo. O seu era um olhar de quase supresa pálida, com uns olhos
negros tão fixos no mundo à sua frente que nada do que se passasse neste
lhes escapava. O seu vestido era branco e sussurrava. Quase lhe pareceu
ouvir o movimento das mãos dela a caminhar, e aquele som, agora
infinitamente baixo, o do seu rosto a virar-se quando descobriu que estava a
um segundo de encarar um homem que esperava ali e ocupava o centro do
passeio.
Das copas das árvores vinha um som maravilhoso de chuva miudinha. A
rapariga parou e deu a impressão de estar prestes a recuar pelo efeito da
surpresa, mas, em vez disso, ficou ali a fitar Montag com uns olhos tão
escuros, brilhantes e vivos que ele sentiu que acabara de dizer algo de
genial. Mas sabia perfeitamente que a sua boca apenas se abrira para a
cumprimentar. Quando ela pareceu ficar hipnotizada pela salamandra no
seu braço e pelo disco com a fénix que trazia ao peito, ele decidiu falar mais
um pouco.
— Pois, é a nossa nova vizinha, não é?
— E o senhor deve ser… o bombeiro — disse ela, numa voz que se foi
apagando, levantando o olhar dos distintivos dele.
— Di-lo de uma forma muito estranha…
— Eu… Eu tê-lo-ia sabido mesmo de olhos fechados — retorquiu ela,
lentamente.
— Porquê? Pelo cheiro a querosene? A minha mulher estava sempre a
queixar-se — disse, a rir. — Nunca se consegue tirar o cheiro
completamente, por mais banhos que se tome.
— Pois não — disse ela, com um ar reverencial.
Ele sentiu que a rapariga caminhava em círculos à sua volta, que o virava
do avesso, sacudindo-o suavemente, e que lhe esvaziava os bolsos, tudo
sem sequer se mexer.
— O querosene — continuou ele, porque o silêncio se prolongara — é
como uma espécie de perfume para mim.
— A sério?
— Claro. E porque não haveria de ser?
Ela pensou um pouco.
— Não sei — acabou por dizer, virando o rosto na direção do passeio que
levava às suas casas. — Importa-se que o acompanhe? Chamo-me Clarisse
McClellan.
— Olá, Clarisse. Sou o Guy Montag. Venha daí. O que faz aqui a estas
horas? Que idade tem?
Caminharam embalados pela brisa amena da noite ao longo do passeio
prateado, e no ar sentia-se um leve aroma a damascos e morangos frescos, o
que o fez olhar em volta antes de concluir que isso era impossível naquela
altura do ano.
Agora apenas via a rapariga a caminhar ao seu lado, com o rosto
iluminado pelo luar e tão pálido e brilhante como neve, e sabia que ela
estava a pensar profundamente nas perguntas dele, à procura das melhores
respostas que pudesse arranjar.
— Bem, tenho dezassete anos e sou louca. O meu tio diz que uma coisa e
a outra andam de mãos dadas. Diz-me para dizer sempre que tenho
dezassete e que sou louca quando me perguntarem a idade. Não é agradável
caminhar a esta hora da noite? Gosto de cheirar as coisas, de olhar para
elas, e por vezes fico acordada a noite inteira, a andar por aí, e depois a ver
o nascer do sol.
Continuaram a caminhar em silêncio.
— Sabe, não tenho medo nenhum de si — acabou ela por dizer, com um
ar muito sério.
— Porque haveria ter medo de mim? — disse ele, surpreendido.
— Tantas pessoas têm medo de vocês. Dos bombeiros, quero dizer. Mas
você é apenas um homem, ao fim e ao cabo…
Montag viu-se refletido com todos os detalhes nos olhos dela, até as
linhas da sua boca, tudo, uma figurinha negra e minúscula suspensa
naquelas duas enormes gotas brilhantes de água, como se os olhos dela
fossem dois pedaços miraculosos de âmbar cor de violeta que pudessem
aprisioná-lo e preservá-lo. O rosto dela, virado agora para o seu, parecia
feito de um cristal leitoso e frágil, atraindo a si uma luz suave e constante.
Não era a luz histérica da eletricidade. Que luz seria? Talvez a luz
estranhamente reconfortante, rara e gentilmente lisonjeira de uma vela.
Certa vez, quando era uma criança, durante uma falha de eletricidade, a sua
mãe encontrara e acendera uma das últimas velas, e, durante uma muito
breve hora, houvera uma sensação de redescoberta, de uma tal iluminação
que o espaço perdera todas as suas vastas dimensões e os envolvera
confortavelmente, e eles, mãe e filho, ali sozinhos, transformados, à espera
que a eletricidade não voltasse tão cedo…
— Importa-se que lhe faça uma pergunta? — disse a rapariga. — Há
quanto tempo é bombeiro?
— Desde os meus vinte anos. Há dez anos.
— Alguma vez leu os livros que queimou?
Ele riu-se.
— Isso é proibido!
— Ah, pois…
— É um bom trabalho. Na segunda-feira queimamos Millay, na quarta
Whitman, na sexta Faulkner. Queimamo-los até só restarem cinzas, e depois
queimamos as cinzas. É o nosso lema.
Caminharam mais um pouco.
— É verdade que, há muito tempo, os bombeiros apagavam fogos em
vez de os atearem?
— Não. As casas foram sempre à prova de fogo, acredite.
— É estranho. Ouvi dizer uma vez que, há muito tempo, as casas
costumavam arder por acidente, e que os bombeiros vinham apagar os
incêndios.
Ele voltou a rir-se.
— Porque se ri? — perguntou ela, lançando-lhe um rápido olhar.
— Nem sei bem. — Recomeçou a rir e parou. — Porque rio?
— Ri-se quando eu não digo nada com piada e responde às minhas
perguntas de rajada, quase sem pensar no que acabei de lhe perguntar.
Ele parou de andar.
— Você é mesmo estranha… — disse, olhando-a diretamente nos olhos.
— Devia ter um pouco mais de respeito.
— Não disse isto por mal, nem quis insultá-lo. Acho que gosto
demasiado de observar as pessoas, é só isso.
— E isto não significa nada para si? — perguntou Montag, batendo com
o dedo no número 451 cosido na manga enegrecida do seu uniforme.
— Sim — sussurrou ela, antes de apressar o passo. — Costuma ver os
carros a jato a fazerem corridas pela avenida abaixo, ali para aqueles lados?
— Está a mudar de assunto!
— Por vezes acho que os condutores não fazem ideia sequer do que seja
a relva, ou as flores, porque nunca as veem devagar. Se mostrarmos a um
deles uma imagem de algo verde e desfocado, eles dirão: “sim, isso é
relva!” Se lhes mostrarmos algo cor-de-rosa e desfocado: “um roseiral!”
Uma mancha azul desfocada serão casas, uma mancha castanha vacas. O
meu tio conduziu devagar numa autoestrada, certa vez. Conduziu a menos
de 70 km/hora e prenderam-no durante dois dias. Não acha isso engraçado e
triste, ao mesmo tempo?
— Você pensa em coisas a mais — disse Montag, pouco à vontade.
— Raramente perco tempo com os “ecrãs de salão” ou com as corridas
nos Parques de Diversões. Se calhar é por isso que fico com imenso tempo
para estes pensamentos malucos. Já viu os painéis com mais de sessenta
metros de comprimento que puseram para além dos limites da cidade?
Sabia que antigamente os painéis tinham só uns seis metros de
comprimento? Mas os carros começaram a andar tão depressa que eles
tiveram de esticar os painéis para que a publicidade funcionasse.
— Não sabia disso! — disse ele, sem conter o riso.
— Aposto que sei algo mais que você desconhece. De manhãzinha, a
relva tem orvalho.
Montag apercebeu-se de repente que não se lembrava ao certo se sabia
aquilo ou não, o que o deixou ligeiramente irritado.
— E se olhar bem — continuou ela, apontando para o céu — há um
homem na lua.
Para a lua ele não olhava há já muito tempo.
Fizeram o resto do caminho em silêncio, o dela feito de pensamentos
profundos, o dele tenso e desconfortável, entrecortado por olhares
acusatórios na direção da rapariga. Quando chegaram a casa dela, todas as
luzes estavam acesas.
— Que se passa?
Montag nunca tinha visto tantas luzes domésticas acesas.
— Oh, é só a minha mãe, o meu pai e o meu tio, sentados à conversa. É
como ser um peão, mas mais raro. O meu tio foi preso noutra ocasião por
crime de peonagem. Já lho tinha dito? Pois é, somos muito especiais…
— Mas ficam a falar de quê?
Ela riu-se.
— Boa noite! — disse, antes de começar a caminhar em direção à porta
da casa. De repente, pareceu lembrar-se de algo e deu meia volta para olhar
para ele, com uma expressão inquisitiva, curiosa.
— É feliz? — perguntou.
— Se sou quê? — gritou ele.
Mas ela já se tinha evaporado, depois de uma corrida à luz do luar. A sua
porta de entrada bateu suavemente.

***

— Feliz? Mas que parvoíce!...


Parou de rir.
Enfiou a mão no orifício em forma de luva na sua porta de entrada e
deixou que esta reconhecesse o seu toque. A porta abriu-se imediatamente.
“É claro que sou feliz. Mas que raio pensará ela? Que não sou?”,
perguntou-se no silêncio da sua casa. Ficou ali parado, a olhar para a grelha
do ventilador no corredor, e lembrou-se de repente que havia algo
escondido por trás da grelha, algo que parecia estar a olhar para ele lá de
cima. Desviou o olhar rapidamente.
Que encontro tão estranho numa noite tão estranha. Não se lembrava de
ter passado por algo assim, à exceção de uma certa tarde, um ano antes, em
que encontrara um velho no parque e em que ambos tinham acabado a
falar…
Abanou a cabeça. Olhou para uma das paredes vazias. O rosto da
rapariga ali estava, e era realmente muito belo, agora que a memória lho
trazia de volta: notavelmente belo, na verdade. Ela tinha um rosto muito
esguio, como o ponteiro de um pequeno relógio apenas vislumbrado num
quarto escuro a meio da noite, quando acordamos para ver as horas e vemos
o relógio que nos diz a hora, o minuto e o segundo, com um silêncio branco
e uma aura, a certeza absoluta e o conhecimento de que a noite trará outras
escuridões, mas que se move também para a chegada de um novo sol.
— O quê? — perguntou ele a esse outro Montag, a esse idiota
subconsciente que por vezes só dizia baboseiras, como se a vontade, o
hábito e a consciência nada contassem.
Olhou de novo para a parede. Como o rosto dela se assemelhava também
a um espelho! Impossível. Quantas pessoas conhecia ele que refletiam a
nossa luz? Procurando por uma analogia, encontrou-a no seu trabalho: a
maior parte das pessoas eram como tochas, ardendo até se apagarem. Que
raro era que o rosto de alguém refletisse a nossa expressão e no-la
mostrasse, expondo-nos aos nossos pensamentos mais profundos e
vacilantes!
Que incrível poder de identificação aquela rapariga tinha. Ela era como a
ansiosa espectadora de um teatro de marionetas, antecipando cada bater de
pálpebras, cada gesto das mãos, cada articulação dos dedos, um momento
antes de eles acontecerem. Quanto tempo tinham caminhado juntos? Três
minutos? Cinco? Agora parecia ter sido muito mais. Que figura imensa a
dela, no palco à sua frente, que imensa a sombra que ela projetava na
parede com o seu corpo magro! Teve a impressão de que se sentisse uma
ligeira comichão no olho, ela poderia pestanejar. E que se os músculos dos
seus maxilares relaxassem um pouco, ela iria bocejar muito antes de que ele
o fizesse.
Pensou, não sem espanto, que parecia mesmo que ela tinha estado à
espera dele ali na rua, àquela hora tão tardia…
Abriu a porta do quarto.
Era como entrar na sala gélida de mármore de um mausoléu depois de a
lua desaparecer do céu noturno. Completa escuridão, nem um vestígio da
luminosidade prateada do exterior, as janelas hermeticamente cerradas, todo
o quarto como um túmulo em que nenhum som da grande cidade poderia
penetrar. Um quarto que não estava vazio.
Pôs-se à escuta.
No ar um zumbido delicado, quase impercetível, como o de um mosquito
bailarino, o murmúrio elétrico de uma vespa invisível, aconchegada no seu
ninho morno e cor-de-rosa. A música estava tão audível que ele quase podia
acompanhar a melodia.
Sentiu o sorriso a fugir-lhe do rosto, a derreter-se, a dobrar-se sobre si
mesmo e a cair lentamente como sebo, como a cera de uma vela fantástica
que tivesse ardido demasiado tempo e agora decaía e se apagava. Escuridão.
Não estava feliz. Não era feliz. Disse-se mentalmente essas palavras.
Reconheceu que este era o verdadeiro estado das coisas. Usava a sua
suposta felicidade como uma máscara e aquela rapariga tinha-lha tirado e
fugido com ela através do relvado, e nem pensar em ir agora bater-lhe à
porta e pedir-lha de volta.
Sem acender a luz, procurou imaginar o aspeto do quarto. A sua mulher
estendida sobre a cama, a descoberto e com frio, como um corpo exposto
num caixão, os olhos fixos no teto por fios invisíveis de aço, imóvel. A
cobrir-lhe completamente os ouvidos os pequenos recetores de rádio, as
Conchas, e um oceano eletrónico de som, de música e conversa e música e
conversa, que, como ondas insistentes, uma atrás da outra, davam à costa da
sua mente desperta. O quarto estava realmente vazio. Todas as noites as
ondas chegavam e levavam-na na sua enorme maré de sons, fazendo-a
flutuar de olhos abertos até ao romper da aurora. Não houvera uma única
noite nos dois últimos anos em que Mildred não tivesse navegado naquele
oceano, ou tivesse sequer hesitado em mergulhar com prazer naquelas
águas.
O quarto estava frio mas ele sentia-se como se fosse incapaz de respirar.
Não quis abrir os cortinados e as janelas, para que a luz do luar não entrasse
na divisão. Assim, sentindo-se como um homem prestes a morrer por falta
de ar, tateou o caminho até à sua cama separada, que estava aberta e,
portanto, fria também.
Um instante antes de o seu pé tocar no objeto no chão ele soube que isso
iria acontecer. Foi uma sensação semelhante à que tivera pouco antes, ao
dobrar a esquina e dar de caras com a rapariga. O seu pé, ao enviar
vibrações, recebera de volta ecos da pequena barreira no seu caminho,
mesmo no momento em que se movia em direção a ela. Pontapeou aquela
coisa, que emitiu um tinido abafado e deslizou pela escuridão do quarto.
Ficou em pé, hirto, a ouvir a pessoa deitada na cama escura naquela noite
sem matizes. O bafo que lhe saía das narinas era tão fraco que apenas
agitava as mais remotas manifestações de vida, uma pequena folha, uma
pena preta, um fio de cabelo.
Continuava sem desejar a intromissão da luz exterior. Retirou o ignitor,
sentiu com os dedos a salamandra gravada no disco de prata, deu-lhe um
piparote…
Duas pedras da lua olhavam para ele à luz do pequeno fogo que segurava
na mão, duas pedras da lua pálidas, enterradas num leito de águas
cristalinas sobre o qual, sem os tocar, corria a vida do mundo.
— Mildred!
O rosto dela era como uma ilha coberta de neve sobre a qual poderia cair
chuva, mas que não sentia a chuva, sobre a qual as nuvens imprimiriam as
suas sombras passageiras, mas que não sentia as sombras. Havia apenas a
cantilena de vespa das Conchas nas suas orelhas, e os seus olhos vítreos, e o
ritmo da respiração, suave, frágil, para dentro e para fora das narinas, e o
seu absoluto desinteresse de tudo, tanto lhe fazia.
O objeto que ele pontapeara estava agora a cintilar no chão, por baixo da
sua cama. O pequeno frasco de vidro que horas antes contivera trinta
comprimidos para dormir e que agora ali estava, sem tampa e vazio, à luz
da pequena chama.
De repente, pareceu-lhe que o céu sobre a casa se abria num grito. Houve
um som tremendo de algo a rasgar-se, como se duas mãos gigantes tivessem
desfeito um lençol negro com quilómetros de comprimento. Montag sentiu-
se partido ao meio. Sentiu o seu peito a ser esmagado e cortado aos
bocados. Os bombardeiros a jato no céu por cima dele, a voarem, a voarem,
um, dois, um, dois, seis bombardeiros, nove, doze, um atrás do outro atrás
do outro atrás do outro, gritavam por ele. Abriu a boca e deixou que aquele
uivo ensurdecedor descesse sobre ele e lhe saísse por entre os dentes. A casa
tremeu. A pequena chama que segurava na mão apagou-se. As pedras da lua
evaporaram-se. Sentiu que a sua mão se dirigia para o telefone.
Os jatos tinham passado. Sentiu os seus lábios a mexerem, a roçarem o
bocal do telefone.
— Serviço de urgência…
Um sussurro terrível.
Sentiu que as estrelas tinham sido pulverizadas pelo som dos jatos negros
e que, quando chegasse a manhã, o mundo estaria coberto do pó delas,
como uma neve estranha. Foi esse o pensamento parvo que teve, ali
estacado no escuro, a tremer, com os lábios a mexerem sem parar.

Eles tinham uma máquina. Tinham duas, na verdade. Uma delas descia
até ao estômago, como uma cobra negra a deslizar por um poço abaixo, em
busca da água e do tempo antigos retidos no fundo. Bebia toda a matéria
verde que costumava subir como um caldo lento. Beberia a escuridão?
Chuparia todos os venenos acumulados ao longo dos anos? Alimentava-se
em silêncio, com um som ocasional de sufocação interna e de busca cega.
Tinha um Olho. O operador da máquina, através do uso de um capacete
ótico especial, podia ver a alma da pessoa cujo estômago estava a limpar.
Que veria aquele Olho? O operador não dizia. Via mas não via o que o Olho
via. Todo o processo se assemelhava a escavar um buraco no jardim de
casa. A mulher deitada na cama não passava de uma camada de mármore
duro que eles tinham alcançado. Não importava, que continuassem a
escavar, que drenassem aquele vazio se tal fosse possível à cobra que
sugava. O operador fez uma pausa para fumar um cigarro. A outra máquina
estava a trabalhar também. A outra máquina, operada por outro profissional
igualmente frio e distante, coberto por uma capa de um material castanho
avermelhado à prova de nódoas. Esta máquina retirava todo o sangue do
corpo e substituía-o por sangue novo e linfa.
— É preciso limpá-los das duas maneiras — disse o operador,
inclinando-se sobre a mulher deitada. — Não chega limpar apenas o
estômago se não limparmos o sangue. Se aquilo ficar a circular no sangue,
este vai chegar ao cérebro com a força de um malho, bum!, uma e outra
vez, duas mil vezes, e o cérebro deixa de funcionar, desiste.
— Chega! — disse Montag.
— Estava apenas a dizer como são as coisas…
— Já acabou?
Fecharam ambos as máquinas ao mesmo tempo.
— Acabámos.
A sua fúria passara ao lado dos operadores. Ficaram ali parados, com o
fumo do cigarro a enrolar-se-lhes em volta do nariz e dos olhos, sem os
semicerrarem ou pestanejarem.
— São cinquenta dólares.
— Para começar, não deviam dizer-me se ela vai ficar bem?
— Claro que vai. Tirámos-lhe o veneno, está aqui todo nesta mala, já não
lhe pode fazer mal. Como lhe disse, tira-se o velho e põe-se o novo e fica
tudo bem.
— Vocês não são médicos. Porque é que das Urgências não mandaram
um médico?
— Bolas! — disse um deles, com o cigarro a mover-se ligeiramente nos
lábios. — Não há noite em que não tenhamos nove ou dez casos destes. São
tantos casos que há uns anos mandámos construir estas máquinas. Com a
lente ótica, claro, que foi a grande novidade. O resto são coisas que já havia
antes. Em casos destes não é necessário um médico. Só precisa de dois
operadores e fica com o problema resolvido em meia hora. Ouça —
continuou ele, dirigindo-se para a porta — temos de ir agora. Acabámos de
receber outra chamada na Concha. A uns dez quarteirões daqui. Alguém fez
a mesma coisa com um frasco de comprimidos. Ligue-nos se precisar
novamente. Mantenha-a calma. Demos-lhe um contrassedativo. Ela vai
acordar com fome. Adeus.
E assim os homens com os cigarros enfiados nas suas bocas lisas, os
homens com olhos de serpente, pegaram nas suas máquinas e tubos, na sua
mala cheia de melancolia líquida e lodo escuro e pegajoso de coisas
indizíveis, e foram-se embora.
Montag deixou-se afundar num cadeirão e ficou a olhar para aquela
mulher. Tinha os olhos fechados agora, numa expressão serena, e ele
estendeu a mão para sentir na palma o calor da respiração dela.
— Mildred — acabou por dizer finalmente.
“Somos muitos, demasiados”, pensou. “Há milhões e milhões de pessoas,
é de mais. Já ninguém sabe ao certo. Estranhos chegam e violam-nos.
Entram na nossa casa e cortam-nos o coração. Entram e tiram-nos todo o
sangue do corpo. Meu Deus, quem eram aqueles homens? Nunca os tinha
visto antes!”
Passou meia hora.
A corrente sanguínea daquela mulher era nova e parecia ter-lhe feito algo
novo. As suas faces estavam rosadas e os seus lábios estavam muito frescos
e cheios de cor e pareciam macios e relaxados. O sangue de outra pessoa
corria agora por ali. Se ao menos fosse também a carne, o cérebro e a
memória de outra pessoa. Se ao menos eles tivessem podido fazer-lhe o
mesmo à mente, tê-la lavado a seco, ter-lhe esvaziado todos os bolsos, tê-la
limpo com vapor, tê-la reabastecido e trazido de volta pela manhã. Se ao
menos…
Ele levantou-se e afastou as cortinas e abriu as janelas, para deixar entrar
o ar noturno. Eram duas da manhã. Teria sido apenas há uma hora, ele a
encontrar Clarisse McClellan na rua, a entrar em casa e no quarto escuro, a
dar um pontapé no frasco de cristal? Uma hora apenas, mas o mundo tinha-
se derretido e regenerado numa forma nova e desprovida de cor.
Através do relvado iluminado pela lua chegava o som de risos, vindos da
casa de Clarisse e do seu pai e da sua mãe e do tio que ria de um modo tão
sereno e franco. Acima de tudo, aquele era um riso relaxado, caloroso, sem
ser forçado, vindo dessa casa tão iluminada àquela hora da noite enquanto
todas as outras se mantinham encerradas em escuridão. Montag ouviu as
vozes que falavam, falavam, cediam, falavam, teciam e voltavam a tecer a
sua teia hipnótica.
Através das portadas abertas, saiu para o exterior e atravessou o relvado
sem pensar duas vezes. A coberto da sombra, ficou a observar a casa das
vozes, a pensar que podia até bater-lhes à porta e sussurrar-lhes: “deixem-
me entrar, não vou contar a ninguém, quero apenas ouvir-vos, o que era
mesmo que estavam a dizer?”
Em vez disso, deixou-se ficar ali, cheio de frio, com o rosto como uma
máscara de gelo, a ouvir uma voz de homem (seria o tio?) que seguia num
ritmo seguro.
— Afinal de contas, vivemos na era do lenço descartável. Assoamos o
nariz em alguém, apertamo-lo numa bola, atiramo-lo fora, pegamos noutro,
assoamos, fazemos uma bola, atiramos fora. Toda a gente usa o casaco de
outra pessoa. Como querem que torçamos pela equipa da terrinha quando
nem temos um programa do jogo ou sabemos os nomes deles? E, já agora,
quais são as cores das camisolas que eles usam em campo?
Montag recuou e voltou a casa, deixou as portadas abertas, verificou o
estado de Mildred, tapou-a e aconchegou-a cuidadosamente e depois
deitou-se, com o luar a banhar-lhe as maçãs do rosto e o sobrolho cerrado e
a destilar-se nos seus olhos para formar cataratas de prata.
Uma gota de chuva. Clarisse. Outra gota. Mildred. Uma terceira. O tio.
Uma quarta. O fogo dessa noite. Uma, Clarisse. Duas, Mildred. Três, tio.
Quatro, fogo. Uma, Mildred, duas, Clarisse. Uma, duas, três, quatro, cinco,
Clarisse, Mildred, tio, fogo, comprimidos para dormir, homens, lenços
descartáveis, casacos, assoar, fazer uma bola, atirar fora, Clarisse, Mildred,
tio, fogo, comprimidos, lenços, assoar, bola, atirar. Uma, duas, três, uma,
duas, três! Chuva. A tempestade. O tio a rir. O trovão a ribombar pelas
escadas abaixo. O mundo inteiro a cair em bátegas torrenciais. O fogo a
jorrar de um vulcão. Tudo, tudo a escorrer com um rugido furioso para um
rio que desaguaria na manhã.
— Já não sei nada de nada — disse, e deixou que um losango de sono se-
lhe dissolvesse na língua.

***

Às nove da manhã, a cama de Mildred estava vazia.


Montag ergueu-se rapidamente, com o coração aos pulos, e correu pelo
corredor até parar na soleira da porta da cozinha.
Um pedaço de pão torrado saltou da torradeira prateada e foi apanhado
por uma mão ou aranha metálica, que o barrou de manteiga derretida.
Mildred observou a torrada a ser-lhe depositada no prato. Tinha coladas
às orelhas as Conchas com o seu permanente zumbido de abelhas
eletrónicas. Ergueu o olhar, viu-o e anuiu com a cabeça.
— Estás bem? — perguntou ele.
Ela era uma perita a ler lábios: dez anos de uso das Conchas tinham tido
esse efeito. Voltou a anuir com a cabeça. Colocou outro pedaço de pão na
torradeira e clicou num botão.
Montag sentou-se.
— Não sei de onde vem esta minha fome — disse ela.
— Tu…
— Estou cheia de fome!
— A noite passada…
— Não dormi bem. Senti-me pessimamente. Meu Deus, que fome! Que
coisa mais estranha.
— A noite passada… — voltou ele a tentar.
Ela observava os lábios dele de modo perfeitamente casual.
— O que aconteceu na noite passada?
— Não te lembras?
— O quê? Tivemos aqui alguma festa de arromba ou isso? Sinto-me
como se estivesse de ressaca. Que fome! Quem esteve aqui?
— Umas pessoas.
— Foi o que pensei — disse, enquanto ia mastigando a torrada. — Dói-
me o estômago mas tenho uma fome de fim do mundo. Espero não ter feito
nenhuma maluquice na festa.
— Não — disse ele, muito serenamente.
A torradeira, através da sua aranha metálica, fez-lhe chegar um bocado de
pão torrado e barrado com manteiga. Montag pegou nele, mais por
obrigação do que por apetite.
— Não pareces estar muito bem hoje — disse-lhe a mulher.

***

Ao fim da tarde choveu e o mundo ficou escuro e cinzento. Em pé, na


sala, Montag colocou o distintivo metálico com a salamandra cor de laranja
em chamas. Depois pôs-se a olhar para a grelha de ventilação do ar
condicionado durante uns minutos. Na salinha dos ecrãs, a sua mulher
parou a leitura do guião e olhou na direção dele.
— Olha, olha, o homem está a pensar!
— Estou. Queria falar contigo. — Fez uma pausa. — Na noite passada
tomaste todos os comprimidos do frasco.
— Oh! Eu nunca faria uma coisa dessas — reagiu ela, com surpresa.
— O frasco estava vazio.
— Nunca faria uma coisa dessas. Porque haveria de o fazer?
— Talvez tenhas tomado dois comprimidos e te tenhas esquecido e
tomado mais dois e te tenhas esquecido de novo e tomado mais dois, e
tenhas ficado tão drogada que foste tomando comprimidos até teres tomado
trinta ou quarenta.
— Mas que raio! Porque iria fazer uma parvoíce dessas?
— Não sei.
Ela estava obviamente à espera que ele saísse de casa.
— Não fiz tal coisa. Nem pensar.
— Se tu o dizes…
— Foi o que disse a senhora.
Voltou a concentrar-se no seu guião.
— O que há esta tarde?
Ela não tirou os olhos das folhas de papel.
— É uma peça que vai passar em direto daqui a uns dez minutos. Recebi
por correio o meu papel esta manhã. Tinha-lhes enviado umas tampas de
caixas. Escreveram o guião e deixaram espaço para uma personagem. É
uma ideia nova. A dona de casa, que sou eu, é a personagem em falta.
Quando for a altura de dizer as linhas de diálogo que faltam, olham todos
para mim dos três ecrãs na parede e eu digo-as. Olha, por exemplo, aqui o
homem diz: “O que achas disto, Helen?” E olha para mim, aqui sentada no
centro da sala, estás a ver? E eu digo… — Fez uma pausa e passou o dedo
sob uma linha do guião. — “Acho muito bem!” E eles continuam com a
peça até que ele diz: “Concordas, Helen?” E eu digo: “É claro que
concordo!” Não achas divertido, Guy?
Ele permaneceu onde estava, a olhar para a sua mulher.
— É mesmo muito divertido — acrescentou ela.
— A peça é sobre o quê?
— Já te disse. Há o Bob, a Ruth e a Helen.
— Ah…
— É mesmo engraçado. E vai ser ainda mais giro quando pudermos
instalar o quarto ecrã. Quanto achas que falta até conseguirmos poupar o
suficiente para deitarmos a quarta parede abaixo e a substituirmos por um
quarto ecrã? São só dois mil dólares.
— Isso é um terço do que eu ganho por ano.
— São só dois mil dólares — repetiu ela. — E acho que devias pensar
em mim um pouco, de vez em quando. Se tivéssemos uma quarta parede-
ecrã, ia parecer até que esta salinha nem era nossa mas de uma série de
gente exótica! E podíamos passar sem algumas coisas para o conseguirmos.
— Já estamos a privar-nos de algumas coisas para pagarmos a terceira
parede-ecrã. Foi instalada só há dois meses, lembras-te?
— Só há dois meses? — Ficou sentada a olhá-lo durante um bom
bocado. — Pronto, então adeus, querido.
— Adeus — disse ele, e começou a dirigir-se para a porta até que parou e
se virou para trás. — Tem um final feliz, a peça?
— Não a li toda.
Caminhou até junto da mulher, pegou na última página, leu-a, anuiu com
a cabeça, dobrou a folha e devolveu-lha. Depois saiu de casa para a noite
chuvosa.

***

A chuva ia diminuindo de intensidade e a rapariga estava a caminhar


no centro do passeio, a cabeça erguida e gotas a escorrerem-lhe do rosto.
Sorriu quando o viu.
— Olá!
Ela cumprimentou-a.
— Que anda por aqui a fazer?
— Continuo meio louca. A chuva sabe bem. Adoro caminhar à chuva.
— Não acho que seja algo que me fosse agradar.
— Se experimentasse, era capaz de gostar.
— Nunca o fiz.
Ela passou a língua pelos lábios.
— E sabe tão bem, a chuva!
— Então passa a vida nisto, a experimentar tudo uma vez?
— Às vezes duas.
Ela olhou para algo na sua mão.
— O que tem aí? — perguntou ele.
— Acho que é o último dente-de-leão deste ano. Não pensei que ainda
fosse encontrar algum por esta altura. Sabia que é suposto esfregá-los
debaixo do queixo? Olhe.
Levou a flor ao queixo, e riu-se.
— Porquê?
— Se se pegar à pele, significa que estou apaixonada. Pegou-se?
Olhar para o queixo dela era algo que ele dificilmente se impediria de
fazer.
— E então? — insistiu ela.
— Ficou aí com algo amarelado.
— Boa! E agora vamos experimentar consigo.
— Comigo não vai resultar.
— Assim.
Antes que ele pudesse desviar-se, ela pôs-lhe a flor mesmo por baixo do
queixo. Ele tentou recuar e ela riu-se.
— Fique quieto!
Inspecionou atentamente o queixo dele e franziu o sobrolho.
— E então?
— Que pena. Não está apaixonado por ninguém.
— Estou, sim!
— Aqui não se vê nada.
— Estou, sim, e muito apaixonado. — Tentou visualizar um rosto que se
ligasse às suas palavras, mas não conseguiu. — Estou!
— Oh, então, não fique assim!
— Foi esse dente-de-leão… Você gastou-o todo e comigo já não resultou.
— Claro, deve ter sido isso. Oh, fui aborrecê-lo com isto! Desculpe,
sinceramente.
Tocou-o no ombro.
— Não, nada disso! — disse ele muito rapidamente. — Estou bem.
— Tenho de ir andando, por isso, peço-lhe que me diga que me desculpa.
Não quero que fique zangado comigo.
— Não estou zangado. Algo desconcertado, é só.
— Tenho de ir agora ao meu psiquiatra. Obrigam-me a isso. Chego lá e
ponho-me a inventar coisas. Não faço ideia do que ele pensa de mim. Diz
que tenho tantas camadas como uma cebola. Mantenho-o ocupado a
descascá-las.
— Algo me diz que precisa realmente de um psiquiatra — disse Montag.
— Acha mesmo?
Ele inspirou profundamente e deixou que o ar saísse muito devagar.
— Não, não acho — acabou por dizer.
— O psiquiatra quer saber porque é que eu faço caminhadas pelas
florestas e observo os pássaros e coleciono borboletas. Um dia destes
mostro-lhe a minha coleção.
— Muito bem.
— Querem saber o que faço com o meu tempo. Digo-lhes que, às vezes,
me limito a sentar-me e a pensar. Mas não lhes digo em que penso. Dou-
lhes trabalho. E digo-lhes que, às vezes, gosto de pôr a cabeça para trás,
assim, e deixar que a chuva me caia na boca. Já experimentou?
— Não, eu…
— Já me perdoou, não foi?
— Sim. — Ficou uns segundos a pensar naquilo. — Já lhe perdoei. Sabe-
se lá porquê. Você é estranha, exasperante, mas é fácil perdoar-lhe seja o
que for. Diz que tem dezassete anos?
— Bem… Só para o mês que vem.
— Que estranho. A minha mulher tem trinta e você, por vezes, parece
mais velha do que ela. É algo que me faz uma grande confusão.
— Você também é um bocado estranho, senhor Montag. Às vezes até
esqueço que é um bombeiro. E agora, posso enfurecê-lo outra vez?
— Força.
— Como é que isso começou? O que o fez escolher isso? Como é que
escolheu a sua profissão, o que o levou a ela? Você não é como os outros. Já
vi alguns, e sei. Quando falo, olha para mim. Quando disse coisas sobre a
lua, ontem à noite, olhou para a lua. Os outros nunca fariam isso. Teriam
continuado, deixando-me a falar sozinha. Ou ter-me-iam ameaçado. Já
ninguém tem tempo para os outros. Você é das poucas pessoas que me
aturam. É por isso que acho tão estranho que seja bombeiro. É como se não
fosse o trabalho certo para si.
Montag sentiu que o corpo se lhe partia em dois, uma parte quente e
outra fria, uma macia e outra dura, uma tremente e a outra que não tremia,
duas metades que raspavam uma na outra.
— É melhor ir à sua consulta agora — disse ele.
E ela deu uma corrida, deixando-o ali à chuva. Só se moveu depois de
uns bons minutos.
E então, muito lentamente, enquanto caminhava, inclinou a cabeça para
trás e, por um breve instante, abriu bem a boca…

O Cão Mecânico dormia sem dormir e vivia sem viver no canil


suavemente iluminado, que vibrava e zumbia constantemente, situado num
canto escuro do quartel dos bombeiros. A luz sombria do luar à uma da
manhã, que entrava pela enorme janela, iluminava fracamente o corpo
tremente de latão, cobre e aço do animal, cintilando em pedaços de vidro
cor de rubi ou em terminações capilares sensíveis nas narinas da criatura,
sempre cuidadosamente escovadas. Estremecia de um modo muito suave,
com as oito pernas de aranha dobradas sob o seu peso e apoiadas em patas
envoltas em borracha.
Montag deslizou pelo varão abaixo. Saiu à rua para olhar para a cidade, e
por essa altura as nuvens tinham desaparecido quase completamente.
Acendeu um cigarro, regressou ao quartel, dirigiu-se para junto do Cão e
pôs-se a observá-lo. Era como uma enorme abelha que tivesse regressado
de um campo onde o mel fosse cheio de selvajaria venenosa, de loucura e
pesadelo, com o corpo coberto daquele néctar excessivo e agora ali a dormir
um sono que a depurasse de toda aquela maldade.
— Olá — sussurrou-lhe, fascinado como sempre por aquela criatura
morta e viva.
Em noites de pouca atividade, que eram quase todas, os homens desciam
pelo varão, acionavam as combinações do sistema olfativo do Cão e
soltavam ratos ou ratazanas no quartel, galinhas às vezes, outras gatos, que
acabariam por ser afogados fosse como fosse, e depois faziam apostas sobre
quais dos gatos, galinhas ou ratos o Cão apanharia primeiro. Os animais
eram deixados à solta, mas três segundos depois o jogo tinha acabado: o
rato, o gato ou a galinha eram apanhados em plena fuga a meio da área do
quartel, agarrados pelas patas seguras e macias do Cão, enquanto uma
agulha oca de aço com dez centímetros que lhe saía do nariz lhes injetava
doses maciças de morfina ou procaína. O animal morto era depois atirado
ao incinerador. E começava uma nova partida.
Enquanto isto se passava, Montag costumava ficar no andar de cima.
Dois anos antes, tinha sido comum ele apostar regularmente e perder o
equivalente ao salário de uma semana, o que deixava Mildred possessa,
uma fúria que lhe intumescia as veias e a cobria de manchas na pele. Mas
agora ele passava as noites no beliche da sua camarata, virado para a
parede, a ouvir os risos dos colegas que vinham do andar térreo e os sons da
correria tensa das ratazanas, como cordas de piano, dos guinchos de violino
dos ratos, e daquele grande silêncio de movimento nas sombras do Cão ao
saltar como uma traça à luz crua, a encontrar e a agarrar a sua vítima, a
inserir-lhe a agulha e a regressar ao canil para morrer como se lhe tivessem
desligado uma tomada.
Montag tocou-lhe no focinho.
O Cão rosnou.
Montag recuou com um salto.
O Cão ergueu-se e observou-o com os globos oculares subitamente
ativados e cheios de uma luz trémula e azul-esverdeada de néon. Voltou a
rosnar, uma combinação estranha e roufenha de crepitação elétrica, de som
de fritura, de metal a raspar em metal, de rotação lenta de rodas dentadas
que pareciam envelhecidas e enferrujadas pela suspeita.
— Não, menino — disse Montag, com o coração aos pulos. — Isso não.
Viu a agulha metálica a sair uns dois centímetros do nariz da criatura, a
recolher, e de novo a sair e a recolher. O rosnar do Cão parecia agora o som
de água a ferver e o seu olhar elétrico continuava fixo nele.
Montag recuou ainda mais. Quando o Cão deu um passo para sair do
canil, ele agarrou no varão de latão. O varão reagiu imediatamente e
começou a subir, levando-o suavemente em direção à abertura no teto.
Chegado ao mal iluminado andar superior, Montag saltou. Estava a tremer e
o seu rosto exibia uma palidez mórbida. No andar de baixo, o Cão voltara a
deitar-se sobre as suas oito incríveis patas de inseto e a emitir o seu habitual
e quase impercetível zumbido. Os seus olhos multifacetados estavam de
novo serenos.
Montag ficou ali junto ao buraco e ao varão, deixando que o medo que o
tomara passasse. Atrás dele, quatro homens jogavam às cartas numa mesa
no canto iluminada por uma lâmpada de cor verde, e olharam-no por
momentos, sem dizerem nada. Apenas o homem com o capacete de
Comandante e o distintivo da Fénix no capacete, movido pela curiosidade,
com as cartas seguras na mão magra, acabou por lhe dirigir a palavra.
— Montag?...
— Ele não gosta de mim.
— O quê, o Cão? — perguntou o Comandante, observando o jogo que
tinha na mão. — Deixe-se disso. Ele não gosta ou desgosta seja do que for.
São apenas “funções”. É como um exercício de balística: tem uma trajetória
que deve seguir e que é definida por nós. E segue-a. Dirige-se ao alvo,
regressa ao canil e desliga-se. Não passa de um emaranhado de cabos de
cobre, baterias e corrente elétrica.
Montag engoliu em seco.
— O sistema de cálculo dele pode ser calibrado para qualquer
combinação: uma determinada quantidade de aminoácidos, outra de
enxofre, de gordura butírica e de substância alcalina. Certo?
— Todos sabemos disso.
— As combinações e percentagens químicas de todos nós estão
armazenadas no programa central. Seria fácil para alguém manipular uma
combinação especial na memória do Cão, mexer com a quantidade de
aminoácidos, por exemplo. Isso explicaria o que ele acabou de fazer. Ele
reagiu à minha presença.
— Mas que diabo! — disse o Comandante.
— Parecia irritado, mas não furioso. Só o suficiente de “memória” para
rosnar quando eu lhe tocasse.
— Quem faria uma coisa dessas? Não tem inimigos aqui, Montag.
— Que eu saiba…
— Vamos pedir uma inspeção técnica ao Cão amanhã.
— Não foi a primeira vez que ele me ameaçou. No mês passado,
aconteceu duas vezes.
— Vamos resolver isso. Não se preocupe.
Mas Montag manteve-se ali, imóvel, a pensar na grelha do ventilador em
casa e no que estava escondido atrás dela. Se alguém no quartel tivesse
descoberto, teria podido “acusá-lo” ao Cão?...
O Comandante caminhou até junto dele e lançou-lhe um olhar
inquisitivo.
— No que pensará o Cão quando ali está no canil? — prosseguiu
Montag. — Será que começa a ver-nos como alvos? Isso dá-me arrepios.
— Ele não pensa nada que não queiramos que pense.
— É um bocado triste — disse Montag, pensativo. — Afinal de contas só
lhe ordenamos que cace, busque e mate. Que desperdício se apenas sabe
fazer isso.
Beatty resfolegou, ainda que de modo contido.
— Tretas! Aquilo é uma bela peça de engenharia, uma arma de qualidade
que consegue perseguir sozinha o seu alvo e nunca falha.
— É por isso mesmo que não quero ser a sua próxima vítima.
— E porque haveria de ser? Tem a consciência pesada com algo?
Montag ergueu o olhar bruscamente.
Beatty ficou ali a olhá-lo fixamente até abrir a boca e começar a rir
baixinho.

Um dois três quatro cinco seis sete dias. E de cada vez que saía de
casa lá estava Clarisse. Uma vez viu-a a abanar uma nogueira, outra viu-a
sentada no relvado a tricotar uma camisola azul, por três ou quatro vezes
encontrou um ramo de flores no seu alpendre, ou um punhado de castanhas
dentro de um saquinho, ou folhas outonais cuidadosamente coladas numa
folha de papel branco afixada com um pionés à sua porta. Todos os dias ela
o acompanhava até à curva do passeio. Um dia chovia, no outro o tempo
clareara, no dia seguinte soprava um vento forte, no dia a seguir a
temperatura estava amena, e um dia depois dessa calmaria veio uma torreira
estival e Clarisse lá estava à noitinha, com o rosto tisnado pelo sol.
— Porque será que sinto que a conheço há imenso tempo? — disse-lhe
ele, certa vez, na entrada do metro.
— Porque gosto de si, e porque não quero nada de si. E porque nos
conhecemos um ao outro.
— Faz-me sentir muito velho, como um pai.
— E agora explique-me você porque não tem filhas como eu, já que
gosta tanto de crianças?
— Não sei.
— Está a brincar!
— Quer dizer… — Calou-se e abanou a cabeça. — Bem, a minha
mulher, ela… Ela nunca quis ter filhos.
A rapariga deixou de sorrir.
— Lamento sabê-lo. Pensei que estava a brincar comigo. Sou uma parva.
— Não, nada disso. Foi uma pergunta bem feita. Já há muito que
ninguém ma fazia. Uma boa pergunta.
— Vamos falar de outra coisa. Já sentiu o cheiro das folhas velhas? Não
acha que cheiram a canela? Cheire.
— Realmente, parece mesmo canela!
Ela fixou-o com os seus olhos negros e límpidos.
— Parece sempre apanhado de surpresa.
— É que não tenho tido tempo para...
— Sempre conseguiu ver aqueles painéis gigantes de que lhe falei?
— Acho que sim.
Ele riu-se.
— O seu riso parece muito mais simpático do que costumava ser.
— Ai sim?
— Muito mais relaxado.
Ele sentiu-se à vontade, confortável.
— Porque não está na escola? Vejo-a a andar por aí todos os dias.
— Oh, eles não me querem lá. Dizem que sou antissocial. Que não me
dou com as pessoas. É tão estranho. Por acaso, sou até bastante sociável.
Tudo depende do que queremos dizer com “social”, não é? Para mim,
“social” significa falar consigo acerca destas coisas todas — disse ela,
enquanto chocalhava umas castanhas que tinham caído da árvore para o
pátio frontal. — Ou falar do estranho que é o mundo. Estar com outras
pessoas é muito bom. Mas não acho que seja muito “social” juntar uma data
de pessoas e depois não as deixar falar. Uma hora de telescola, uma hora de
basquetebol ou basebol ou corrida, outra hora de transcrições históricas ou a
pintar, e mais desporto, mas nunca fazemos perguntas, ou pelo menos a
maior parte de nós não faz. Eles limitam-se a dar-nos as respostas, pum,
pum, pum, e nós ali sentados mais quatro horas a vermos o filme da aula.
Isso, para mim, não é nada social. É muita água a passar por funis e bicas e
a sair pelo fundo, e eles a dizerem-nos que é vinho, mas não é. Saímos dali
tão cansados ao fim do dia que só nos apetece ir para a cama ou então ir
para o Parque de Diversões agredir pessoas, partir janelas na zona das
Janelas Partidas ou espatifar carros com o Quebra Carros, aquela grande
bola de aço. Também há quem se meta nos carros e vá fazer corridas pelas
ruas acima e abaixo, a tentar passar o mais rente possível aos candeeiros, a
tentar arrancar os tampões das rodas dos outros carros, enfim, a procurar
provar que não tem medo. Se calhar devo ser mesmo aquilo que dizem que
sou. Não tenho amigos. Acho que isso é a prova de que não sou normal.
Mas toda a gente que conheço passa o tempo aos gritos ou a dançar como
doidos ou a baterem uns nos outros. Já viu como as pessoas são tão más
umas para as outras hoje em dia?
— Parece uma mulher idosa a falar.
— Às vezes sinto-me muito velha. Tenho medo da gente da minha idade.
Eles matam-se uns aos outros. Terá sido sempre assim? O meu tio diz que
não. Só no último ano, dispararam sobre seis dos meus colegas. Dez
morreram em acidentes de viação. Tenho medo deles e eles não gostam de
mim porque tenho medo. O meu tio diz que o avô dele se lembrava de
quando as crianças não se matavam umas às outras. Mas isso foi há muito
tempo, quando as coisas eram diferentes. Acreditava-se na
responsabilidade, diz o meu tio. E eu sou responsável, sabe? Há anos
apanhei uma sova, mas porque tinha de a apanhar. E faço todas as compras
da casa e as limpezas também, à mão. Mas, acima de tudo, gosto de
observar as pessoas. Por vezes, passo o dia inteiro no metro a olhar para
elas e a ouvir o que dizem. Só quero perceber quem são, o que querem e
para onde vão. Às vezes também vou aos Parques de Diversão e ando nos
carros a jato quando correm nos limites da cidade à meia-noite e a polícia
não quer saber desde que eles tenham seguro. Está toda a gente feliz desde
que todos tenham mil e um seguros disto e daquilo. Mas vou sobretudo ao
metro ouvir o que se passa. E aos bares e cafés. E sabe que mais?
— O quê?
— As pessoas não falam sobre nada de jeito.
— Oh, que ideia! Devem falar, com certeza.
— Não, não falam. Dizem uma série de marcas de automóveis ou de
roupas, falam de piscinas sobretudo, e dizem que é tudo muito giro! Mas
todos dizem as mesmas coisas, e ninguém diz nada de diferente. E nos cafés
as caixas-de-piadas estão sempre ligadas e têm sempre as mesmas piadas a
girar, ou então a parede musical está acesa, com todos aqueles padrões
coloridos para cima e para baixo, mas aquilo é só cor, e tudo abstrato. E nos
museus, já lá foi? Tudo abstrato. Agora é abstrato por todo o lado. O meu
tio diz que as coisas já foram diferentes. Há muito tempo, havia imagens
que contavam coisas ou que até mostravam pessoas.
— O seu tio disse, o seu tio disse… Esse seu tio deve ser um homem
admirável.
— E é. É mesmo. Bem, tenho de ir. Adeus, senhor Montag.
— Adeus.
— Adeus…

***

Um dois três quatro cinco seis sete dias: o quartel dos bombeiros.
— Montag, você sobe por esse varão acima como um pássaro numa
árvore.
Terceiro dia.
— Montag, notei que entrou pela porta das traseiras. O Cão incomoda-o?
— Não, não…
Quarto dia.
— Montag, tenho uma história engraçada para si. Contaram-ma esta
manhã. Então parece que um bombeiro em Seattle ajustou o Cão Mecânico
para as suas características químicas e soltou-o. Que raio de maneira de se
suicidar, não acha?
Cinco, seis, sete dias.
E, então, Clarisse desapareceu. Não soube exatamente o que tornava
aquela tarde diferente das outras, mas talvez fosse o facto de ela ter
desaparecido da face da terra. O relvado estava vazio, as árvores estavam
vazias, as ruas estavam vazias, e apesar de, inicialmente, não se ter
apercebido de que sentia a falta dela ou que estava a ver se a encontrava, o
certo era que, quando chegou ao metro, se sentia vagamente enjoado. Algo
estava errado, a sua rotina tinha sido perturbada. Uma rotina simples,
verdadeira, estabelecida em poucos dias, e agora… Quase deu meia volta
para poder voltar a fazer o caminho de novo e dar tempo para que ela
aparecesse. Estava certo de que se fizesse o mesmo percurso tudo correria
bem. Mas era tarde de mais, e a chegada do comboio pôs um termo ao seu
plano.

A agitação nervosa das cartas, o movimento das mãos, das pálpebras,


o tom monótono da voz-tempo que provinha do teto do quartel — “… uma
hora e trinta e cinco minutos, quatro de novembro,… uma hora e trinta e
seis minutos… uma hora e trinta e sete minutos…” — o toque das cartas no
tampo gorduroso da mesa, todos esses sons chegavam até Montag, até bem
lá atrás dos seus olhos fechados, atrás dessa barreira provisória que ele tinha
erigido. Conseguia sentir a cintilação, o lustre e o silêncio do quartel, os
matizes do latão, as cores das moedas, o ouro e a prata. Os homens
invisíveis do outro lado da mesa, de cartas na mão, esperavam e
suspiravam. “Uma hora e quarenta e cinco minutos…” A voz do relógio
soava como um lamento fúnebre ao dizer as horas frias daquela manhã fria
daquele ano ainda mais frio.
— Que se passa, Montag?
Montag abriu os olhos.
Ali perto um rádio palrava: “… a guerra pode ser declarada a qualquer
momento, e este país está preparado para defender os seus…”
O quartel tremia enquanto um esquadrão de enormes caças a jato
uivavam em uníssono no céu negro da madrugada.
Montag pestanejou. Beatty estava a olhar para ele como se para uma
estátua de museu. A qualquer momento poderia levantar-se e dirigir-se a ele,
e começar a tocá-lo, a explorar a sua culpa, a sua insegurança. Culpa? Mas
que culpa?
— É você a jogar, Montag.
Olhou para aqueles homens cujos rostos estavam queimados pelos sóis
de mil fogos reais e dez mil fogos imaginários, cujo trabalho lhes trazia o
rubor às faces e a febre aos olhos. Aqueles homens que olhavam fixamente
para as pequenas chamas dos seus ignitores de platina quando acendiam os
cachimbos negros em perpétua fumarada. Aqueles homens de cabelos de
carvão, sobrancelhas enegrecidas de fuligem e faces recém-escanhoadas e
manchadas por uma cinza de tom azulado. Era como se uma linhagem se
revelasse. Montag abriu a boca, como se quisesse dizer algo. Nunca vira um
bombeiro que não tivesse cabelo negro, sobrancelhas negras, um rosto
agressivo e um ar de quem não fez a barba mesmo quando acabara de a
fazer. Aqueles homens eram o seu próprio reflexo! Seriam todos os
bombeiros escolhidos também pelo seu aspeto e não apenas pelas suas
aptidões? Aquela cor de cinzas no rosto e o contínuo odor a tabaco a arder
nos cachimbos. Como ali o comandante Beatty, a erguer-se no meio de
nuvens espessas de fumo. A abrir um novo pacote de tabaco, a amassar o
invólucro de celofane com um som de chamas.
Montag olhou para o naipe de cartas que tinha na mão.
— Estive… Estive a pensar. Sobre o fogo da passada semana. Sobre
aquele tipo a quem fomos queimar a biblioteca. Que lhe aconteceu?
— Levaram-no aos gritos para o manicómio.
— Não era louco.
Beatty compôs cuidadosamente as suas cartas.
— Só um louco pode achar que consegue enganar-nos e ao governo.
— Tentei imaginar como seria. Quer dizer, ter bombeiros a queimar-nos
as casas e os livros.
— Nós não temos livros.
— Mas e se tivéssemos?
— Você tem?
Beatty pestanejou muito lentamente.
— Não.
Montag fixou o olhar para além do grupo de homens à sua frente, nas
listas impressas de milhões de livros proibidos que adornavam uma das
paredes do quartel. Os seus títulos saltavam como chamas, destruídos e
queimados ao longo de anos e anos pelo seu machado e a sua mangueira
que cuspia querosene em vez de água.
— Não.
Mas na sua mente começou a soprar um vento fresco, uma aragem que
saía pela grelha do ventilador lá em casa, muito suave, a refrescar-lhe o
rosto. E, mais uma vez, viu-se num parque verdejante a falar com um
homem muito velho, e o vento no parque era fresco também.
Hesitou antes de voltar a falar.
— Foi… Foi sempre assim? O quartel, o nosso trabalho? Quer dizer, há
muito, muito tempo…
— “Há muito, muito tempo”? — reagiu Beatty. — Mas que conversa
vem a ser essa?
“Estúpido”, pensou Montag, “vais acabar por revelar tudo”. No último
fogo, tinha lido de soslaio uma única linha de um livro de contos de fadas.
— Quer dizer, nos velhos tempos, antes de as casas serem à prova de
fogo…
Subitamente sentiu que uma voz muito mais jovem do que a sua falava
por ele. Abriu a boca mas era Clarisse McClellan quem dizia: “Os
bombeiros não costumavam apagar fogos em vez de os atearem?”
— Essa é boa!
Stoneman e Black sacaram dos seus manuais de bombeiro, que também
continham breves histórias dos Bombeiros da América, e abriram-nos para
que Montag, apesar de os conhecer bem, pudesse ler:

Fundados em 1790 para que queimassem todos os livros de influência inglesa nas
colónias. Primeiro bombeiro: Benjamin Franklin.

Regra 1. Responder rapidamente ao alarme.


Regra 2. Atear rapidamente o fogo.
Regra 3. Queimar tudo.
Regra 4. Regressar imediatamente ao quartel.
Regra 5. Manter-se em alerta para outros alarmes.

Ficaram todos a olhar para Montag. Ele permaneceu imóvel.


Soou o alarme.
A campainha no teto vibrou duzentas vezes. As quatro cadeiras ficaram
vazias num instante. As cartas caíram no chão como flocos de neve. O
varão de latão estremecia. Os homens tinham saído.
Montag permaneceu sentado. Lá em baixo, o dragão cor de laranja tossiu
e regressou à vida.
Montag deslizou pelo varão abaixo como se estivesse num sonho.
O Cão Mecânico deu um salto dentro do canil, com os olhos em chama
verde.
— Montag, esqueceu-se do capacete!
Pegou no capacete que estava pendurado na parede atrás dele, correu,
saltou e ali foram, montados no seu poderoso trovão metálico, batidos pelo
vento noturno enquanto a sirene guinchava.

Era uma casa decrépita de três andares na parte velha da cidade,


com um século bem contado em cima, mas, como em todas as casas,
tinham-lhe aplicado uma fina película de material à prova de fogo há
muitos anos, e esta concha protetora parecia ser a única coisa que a
mantinha em pé.
— Cá estamos!
O motor deu um baque sonoro ao desligar-se. Beatty, Stoneman e Black
correram pelo passeio acima: nos seus bojudos fatos protetores, pareceram
subitamente a Montag odiosos e obesos. Seguiu-os.
Arrombaram a porta de entrada e agarraram uma mulher, ainda que ela
não estivesse a fugir-lhes nem a tentar escapar. Estava apenas ali,
cirandando de um lado para o outro, com os olhos postos em algo que não
se sabia bem o que era, algures na parede, como se alguém lhe tivesse dado
uma violenta pancada na cabeça. A língua movia-se-lhe na boca, e os olhos
pareciam estar em busca de algo na sua memória.
— Seja homem, senhor Ridley — acabou ela por dizer. — Acenderão
connosco hoje em Inglaterra uma tal vela, pela graça de Deus, que creio que
nunca poderá ser apagada.
— Basta! — cortou Beatty. — Onde estão eles?
Esbofeteou a mulher com uma dureza surpreendente, e voltou a fazer-lhe
a pergunta. Os olhos dela conseguiram finalmente focá-lo.
— Você sabe muito bem onde estão, de outra forma não estaria aqui.
Stoneman segurou no cartão do alarme telefónico onde tinha sido
registada a queixa em duplicado.
— “Há motivos de suspeita do que possa estar no sótão. N.º 11, Elm,
City. E.B.”
— Pelas iniciais, deve ter sido a minha vizinha, a Sra. Blake — disse a
mulher.
— Muito bem! Vamos a eles!
Ato contínuo, estavam lá em cima no meio daquela penumbra bolorenta,
a brandir machados prateados contra portas que, afinal de contas, estavam
abertas, aos tropeções, exuberantes e ruidosos como rapazinhos.
— Olha!
Uma fonte de livros caiu sobre Montag quando ele subia a escada a
caminho da abertura do sótão.
Que grande maçada! Até aí, as coisas tinham sido tão fáceis como apagar
uma vela. A polícia entrava nas casas sempre antes dos bombeiros e
neutralizava a vítima, tapando-lhe a boca com adesivo, e arrastava-a para
um dos seus veículos cintilantes como carapaças de insetos. Quando os
bombeiros chegavam, encontravam uma casa vazia. Não se magoava
ninguém, apenas coisas! E como não se podia realmente magoar coisas,
como as coisas não sentiam, não gritavam ou gemiam como esta mulher,
que podia começar a gritar a qualquer momento, não havia nada que
pudesse depois pesar na consciência de um bombeiro. Estava-se
simplesmente numa ação de limpeza. Os bombeiros eram, em suma, como
empregados de limpeza, deixando tudo no seu devido lugar. Venha de lá
esse querosene! Quem tem um fósforo?
Mas nessa noite alguém tinha feito mal o seu trabalho. Aquela mulher
estava a atrapalhar o ritual. Os homens estavam a fazer demasiado ruído, a
rir, a dizer piadas, tudo para tentarem esquecer o silêncio terrível e acusador
dela. As divisões vazias pareciam ecoar as suas acusações, e o pó fino que
nelas abundava era o da culpa que se lhes metia nas narinas. Não era justo.
Montag sentiu uma enorme irritação. Ela não devia estar ali!
Os livros caíam-lhe como bombas sobre os ombros, os braços e o rosto
quando olhava para cima. De um modo quase obediente, como uma pomba
branca, um livro esvoaçou e veio pousar-lhe nas mãos. Àquela luz sombria
e inconstante, apercebeu-se de uma página aberta, branca como neve, com
as palavras delicadamente pintadas sobre ela. No meio de todo aquele
alarido e daquela agitação, Montag teve apenas um breve instante para ler
uma linha, mas esta imprimiu-se-lhe na mente durante um minuto, como se
tivesse sido aplicada com um ferro incandescente. “O tempo adormeceu ao
sol da tarde”. Deixou cair o livro. Quase de imediato, outro caiu-lhe nos
braços.
— Aqui em cima, Montag!
A mão de Montag fechou-se como uma boca, quase esmagando o livro,
movida por uma devoção selvagem, pela mesma insanidade inconsciente
que lhe consumia o peito. Lá em cima, os homens atiravam pazadas de
revistas ao ar poeirento, que caíam como pássaros trucidados sobre a
mulher no piso térreo, cirandando como uma rapariguinha por entre os
cadáveres.
Montag não fizera nada. A sua mão fizera tudo, a sua mão, com um
cérebro só dela, com uma consciência e uma curiosidade próprias em cada
um dos seus dedos: tornara-se numa ladra. Agora enfiava-lhe o livro sob o
braço, apertando-o com força no sovaco suado, e erguia-se, vazia, como
num gesto de prestidigitador. Olhem! Inocente! Olhem!
A tremer, pôs-se a olhar para aquela mão branca. Mantinha-a à máxima
distância dos olhos, como se sofresse de hipermetropia. Depois chegou-a
bem perto da vista, como se estivesse cego.
— Montag!
Estremeceu.
— Não fique aí parado, idiota!
Os livros dispunham-se em grandes montes, como peixe a secar ao sol.
Os homens dançavam, escorregavam e caíam à volta deles. Os milhares de
títulos exibiam os seus olhos brilhantes durante uns segundos antes de
desaparecerem.
— Querosene!
Bombearam o líquido frio dos tanques numerados 451 que traziam às
costas. Aspergiram cada livro, cada divisão da casa onde havia livros.
Correram para o piso térreo, com Montag a cambalear atrás deles no
meio daquele intenso odor a querosene.
— Vá, mulher, saia daí!
A mulher estava ajoelhada entre os livros, a tocar-lhes as capas de pele ou
cartolina húmidas, a ler-lhes os títulos dourados com a ponta dos dedos
enquanto dirigia um olhar acusador a Montag.
— Nunca terão os meus livros!
— Já conhece a lei — disse Beatty. — Ganhe juízo. Nenhum destes
livros combina com os restantes. Esteve aqui fechada durante anos no meio
desta Torre de Babel infernal. Acorde! As pessoas cujas vidas estes livros
contam nunca existiram. Então?
Ela abanou a cabeça.
— Vamos queimar a casa inteira! — insistiu Beatty.
Os homens dirigiram-se tropegamente para a porta e olharam para trás,
para Montag, que ficara junto da mulher.
— Não vamos deixá-la aqui, pois não? — gritou ele.
— Ela não quer vir.
— Vamos forçá-la, então!
Beatty ergueu a mão que segurava o ignitor.
— Temos de regressar ao quartel. Além disso, estes fanáticos tentam
sempre o suicídio. É um comportamento típico.
Montag pousou a mão no ombro da mulher.
— Venha comigo.
— Não — disse ela. — Obrigado, mas não.
— Vou contar até dez — disse Beatty. — Um. Dois.
— Por favor!
— Vá-se embora — disse a mulher.
— Três. Quatro.
— Vá.
Montag tentou puxá-la, mas a mulher reagiu de modo decidido e sereno.
— Quero ficar aqui.
— Cinco. Seis.
— Pode parar de contar.
Depois de dizer isto, a mulher abriu lentamente os dedos de uma mão, na
palma da qual estava um pequeno objeto.
Um simples fósforo de cozinha.
Ao vê-lo, os homens correram para fora de casa. O comandante Beatty,
mantendo a dignidade, recuou lentamente através da porta principal, com a
coloração naturalmente rosada do rosto a exibir os efeitos de mil fogos e
noites de excitação como aquela. “Realmente”, pensou Montag, “assim é.
Os alarmes soam sempre à noite, nunca de dia! Será porque à noite o fogo é
mais bonito? Porque há mais e melhor espetáculo?” O rosto rosado de
Beatty, à soleira da porta, denotava agora um ligeiro surto de pânico. A mão
da mulher brincava com o fósforo. Os vapores do querosene envolviam-na.
Montag sentiu que o livro que escondera batia como um outro coração
contra o seu peito.
— Vá-se embora — disse a mulher, e Montag deu por si a recuar até
chegar à porta e sair da casa, seguindo Beatty pelas curtas escadas que
ligavam o alpendre ao relvado, sobre o qual o trilho do querosene pousava
como a baba de uma lesma diabólica.
A mulher saíra também para o alpendre e ali ficara, imóvel, a observá-los
em silêncio.
Beatty mexeu os dedos para apertar o ignitor.
Tarde de mais. Montag engoliu em seco.
A mulher lançou-lhes um último olhar de desprezo e raspou o fósforo na
balaustrada de madeira.
De todas as casas até ao fundo da rua saiu gente para assistir.

No regresso ao quartel, ninguém abriu a boca. Não houve trocas de


olhares. Montag ia no banco da frente, com Beatty e Black. Estes nem
sequer acenderam os cachimbos. Deixaram-se estar ali sentados, a olhar em
frente através do para-brisas da enorme Salamandra enquanto esta dobrava
uma esquina e continuava em silêncio.
— “Senhor Ridley” — acabou por dizer Montag.
— O quê?
— Foi o que ela disse: “Senhor Ridley”. Disse uma data de coisas sem
nexo quando lhe entrámos em casa. “Seja homem, senhor Ridley”, disse
ela. E qualquer coisa a seguir.
— Acenderão connosco hoje em Inglaterra uma tal vela, pela graça de
Deus, que creio que nunca poderá ser apagada — disse Beatty.
Chocados, Stonemann e Montag lançaram um olhar ao comandante. Este
coçou o queixo.
— Isso foi dito por um homem chamado Latimer a outro chamado
Nicholas Ridley, antes de serem queimados vivos por heresia em Oxford, a
16 de outubro de 1555.
Montag e Stonemann voltaram a olhar para o asfalto que se movia sob as
rodas do veículo.
— Sou cheio de surpresas, pequeninas coisas. A maior parte dos capitães
tem de sê-lo. Às vezes até me surpreendo a mim próprio. Cuidado,
Stonemann!
Este travou.
— Raios o partam! Acabou de passar pela esquina em que costumamos
virar para irmos para o quartel.

— Quem é?
— Quem poderia ser? — disse Montag, na escuridão da noite, encostado
à porta fechada da sua casa.
— Ao menos acende a luz — disse a mulher depois um momento de
silêncio.
— Não quero luz.
— Vem para a cama.
Ouvia-a a rolar na cama, impaciente, fazendo as molas do colchão ranger.
— Estás bêbado?
Fora a mão que começara tudo. Sentiu uma mão e depois a outra a
libertá-lo do casaco e a atirá-lo ao chão. Segurou as calças sobre um abismo
e deixou-as cair na escuridão. As suas mãos tinham sido infetadas e em
breve os seus braços sê-lo-iam também. Conseguia sentir o veneno a subir-
lhe dos pulsos até aos cotovelos e depois aos ombros, e depois a saltar de
uma omoplata para a outra, como uma faísca. As suas mãos estavam
famintas. E os seus olhos começavam a sentir fome também, como se
tivessem de olhar para algo, qualquer coisa, tudo.
— Mas que estás a fazer?
Ele procurou equilibrar-se no escuro, com o livro seguro por dedos
suados.
— Não fiques para aí especado.
Ele emitiu um ligeiro som.
— O quê? — perguntou ela.
Ele fez mais sons. Cambaleou em direção à cama e enfiou o livro como
pôde por baixo da almofada. Deixou-se cair na cama e a sua mulher gritou,
assustada. Sentia-se muito longe dela, numa ilha invernal separada de tudo
por um imenso mar vazio. Ela falava-lhe e a sua voz parecia vir de muito
longe. Falava disto e daquilo, apenas palavras, como as que ele ouvira certa
vez num berçário em casa de um amigo, uma criança de dois anos a tentar
criar palavras, a tentar construir um calão próprio, a fazer sons bonitos no
ar. Mas Montag não respondeu, e então, depois de um bom bocado em que
ele apenas emitiu sons incompreensíveis, sentiu que ela se levantara e se
dirigira para a sua cama, se sentara na berma desta e lhe pusera a mão na
face. Soube que, quando ela retirou a mão, esta estava molhada.

Mais tarde, nessa noite, Montag olhou para Mildred, que estava
acordada. No ar sentia-se uma ligeira dança melódica: ela deixara a Concha
no ouvido mais uma vez, e estava a ouvir gente de locais remotos, com os
olhos bem abertos e postos nas camadas de escuridão no teto acima dela.
Não havia uma piada antiga sobre uma mulher que passava tanto tempo
ao telefone que, em desespero, o seu marido correu ao posto telefónico mais
próximo e lhe ligou para saber o que havia para jantar? E porque não
comprava ele também uma daquelas Conchas para ficar a falar com a
mulher a altas horas da noite, a murmurar, a sussurrar, a gritar? Mas que iria
ele sussurrar, que iria ele gritar? Que poderia dizer?
Subitamente, achou-a tão estranha que mal podia acreditar que a
conhecia. Estava na casa de uma estranha, como naquelas outras piadas
antigas sobre homens bêbedos que regressavam tarde a casa, abriam a porta
errada, entravam no quarto errado e se punham na cama com uma estranha,
levantando-se de manhã para irem para o trabalho sem se darem conta do
que tinha sucedido.
— Millie… — sussurrou ele.
— O quê?
— Não quis assustar-te. O que quero saber é…
— Sim?
— Quando é que nos encontrámos? E onde?
— Quando é que nos encontrámos para quê?
— Quando é que nos conhecemos, quero dizer…
Sabia que ela devia estar já de sobrolho franzido no escuro.
— Quando foi a primeira vez que estivemos juntos — precisou. — Onde
foi e quando?
— Bem, foi…
Mildred fez uma pausa.
— Não sei — acabou por dizer.
Ele sentia-se gelado.
— Não te consegues lembrar?
— Foi há tanto tempo!
— Foi só há dez anos! Só dez!
— Calma, estou a tentar pensar — disse ela, e riu-se, um risinho estranho
que subia e descia. — Olha que coisa, não nos lembrarmos de onde e
quando conhecemos o nosso marido!
Ele permaneceu deitado, a massajar lentamente os olhos, a testa, a nuca e
o pescoço. Manteve ambas as mãos abertas sobre os olhos e aplicou uma
pressão uniforme, como se quisesse enfiar a memória na cabeça. De
repente, a coisa mais importante da sua vida era saber onde tinha conhecido
Mildred.
— Não interessa.
Ela levantara-se e fora à casa de banho. Ouviu a água a correr e o som
dela a engoli-la.
— Pois, tens razão — disse ele.
Tentou contar o número de vezes que ela engolia, e pensou na visita dos
dois homens com caras de óxido de zinco, de cigarros presos nos lábios
finos e lisos e com a Cobra de Olho Eletrónico a descer, camada após
camada, até àquela noite interior, àquele poço de pedra cheio de água
estagnada, e quis gritar-lhe: “Quantos tomaste esta noite, quantos
comprimidos mais vais tomar sem te dares conta, hora a hora, sem parar,
talvez não esta noite, talvez amanhã à noite, e eu sem dormir esta noite e a
de amanhã, em qualquer das últimas noites, há tanto tempo já, desde que
isto começou!” E pensou nela deitada na cama com os dois técnicos em pé
ao lado, não dobrados sobre ela, preocupados, mas antes hirtos, de braços
cruzados. E lembrou-se de ter pensado então que, se ela morresse, não
choraria: seria apenas a morte de alguém estranho, um rosto na multidão
das ruas, um rosto vislumbrado num jornal. E aquilo pareceu-lhe tão errado
que começou a chorar, não perante a possibilidade da morte dela mas
perante o facto de não chorar por causa dessa morte, um homem vazio e
tonto ali junto a uma mulher vazia e tonta, enquanto a cobra voraz a
esvaziava ainda mais.
“Como é que alguém fica tão vazio?”, perguntou-se. Quem nos esvazia
desta forma? E aquela horrível flor no outro dia, aquele dente-de-leão!
Tinha resumido tudo, não tinha? “Que pena! Você não está apaixonado por
ninguém!” E porque não estava?
Não havia, afinal, e para ser honesto, um muro ou parede a separá-lo de
Mildred? Não apenas uma parede, mas, literalmente, três até agora! E caras!
E os tios, as tias, os primos, as sobrinhas, os sobrinhos que viviam nessas
paredes, aquela tribo tagarela de macaquinhos que não dizia nada de jeito,
nada, nada, mas que o dizia bem alto, alto, alto. Ele habituara-se a tratá-los
como membros da sua própria família.
— Como vai o tio Louis hoje?
— Quem?
— E a tia Maude?
A memória mais importante que tinha de Mildred era a de uma menina
numa floresta sem árvores (que coisa estranha!), ou então uma menina
perdida num enorme terreno plano onde costumava haver árvores (podia-se
sentir a memória da forma das árvores por todo o lado), sentada no centro
da “sala de estar”. A sala de estar: que bela etiqueta, realmente. Sempre que
entrava em casa, fosse a que hora fosse, lá estava Mildred a conversar com
as paredes.
— Tem de se fazer alguma coisa!
— Sim, tem de se fazer alguma coisa!
— Então, vamos ficar aqui só a falar?
— Vamos fazer algo!
— Estou tão furiosa que podia cuspir!
Que se passava ali, ao certo? Nem Mildred sabia. Quem estava furiosa
com quem? Mildred não fazia a mínima ideia. Que iam fazer elas? Bem,
dizia Mildred, mais vale esperar para ver.
E ele esperou para ver.
Das paredes jorrou o som de uma enorme tempestade. A música
bombardeou-o com tal potência que quase sentiu os ossos a separarem-se
dos tendões. Sentiu os maxilares e os globos oculares a vibrarem. Estava a
ser vítima de uma concussão. Quando aquilo acabou, sentiu-se como
alguém que tivesse sido atirado de uma falésia, andado às voltas num
movimento centrífugo e depois cuspido na direção de uma cascata, que caía
e caía no vazio e no vazio e nunca… chegava… mesmo… ao… fundo…
nunca… nunca… lá… chegava… e caíamos tão depressa que nem
tocávamos na rocha… nunca… tocávamos… em nada.
O trovão calou-se. A música parou.
— Aí tens — disse Mildred.
E era algo realmente notável. Algo tinha acontecido. Ainda que as
pessoas nas paredes da sala não se tivessem mexido, e nada tivesse ficado
resolvido, tinha-se a impressão de que alguém tinha ligado uma máquina de
lavar roupa ou um gigantesco aspirador. Era uma sensação de afogamento
em música e pura cacofonia. Montag saiu da sala a suar e quase a
desfalecer. Atrás dele, Mildred deixou-se ficar sentada, e as vozes voltaram.
— Pronto, agora vai ficar tudo bem — disse uma das “tias”.
— Ai, não tenhas tanta certeza disso! — retorquiu um “primo”.
— Vá, então, não te zangues!
— Quem é que está zangado?
— Tu!
— Eu?
— Estás doido!
— Doido, eu? Mas porquê?
— Porque sim!
— Tudo bem — gritou Montag — mas estão zangados porquê? Quem
são estas pessoas? Quem é aquele homem e quem é aquela mulher? São
casados, divorciados, noivos? Que barafunda!
— Eles… Bem, eles… tiveram uma discussão, estás a ver? Fartam-se de
discutir. Devias ouvi-los. Acho que são casados. Sim, são casados. Mas
porquê?
E se não era na sala com as três paredes, em breve quatro e o sonho
completo, era no carro, com ela conduzir a 160 km/hora pela cidade, ele a
gritar-lhe e ela a gritar-lhe de volta e ambos a tentarem ouvir-se mas
conseguindo ouvir apenas o rugido do carro.
— Ao menos, reduz para a velocidade máxima permitida! — gritava ele.
— O quê?
— Mantêm-te dentro do limite de velocidade!
— Dentro do quê?
— Limite de velocidade!
E ela acelerava até perto dos 170 km/hora e arrancava-lhe o fôlego da
boca.
Quando saíam do carro, ela tinha as Conchas postas nos ouvidos.
Silêncio. Apenas se ouvia o vento a soprar levemente.
— Mildred…
Mexeu-se na cama.
Estendeu o braço na direção dela e retirou-lhe o pequeno inseto musical
do ouvido.
— Mildred. Mildred?
— Sim.
A voz dela estava débil.
Nesse momento, ele sentiu-se como uma das criaturas eletronicamente
inseridas nos ecrãs das paredes, a falar mas sem que a sua voz conseguisse
atravessar a barreira de vidro. Conseguia apenas pantomimar, esperando
atrair a atenção dela. O vidro não os deixava tocarem-se.
— Mildred, sabes aquela rapariga de quem te falei?
— Que rapariga?
Ela estava quase a dormir.
— A rapariga que vive na casa ao lado.
— Que rapariga que vive na casa ao lado?
— Aquela estudante de liceu. Clarisse. É o nome dela.
— Ah, sim.
— Já não a vejo há uns dias. Quatro dias. Tem-la visto?
— Não.
— Tenho andado para te falar dela. É estranha.
— Ah, já sei quem é.
— Bem me parecia que sabias.
— Ela…
— Ela quê?
— Quis dizer-te mas esqueci-me. Esqueci-me.
— Dizer-me o quê? Que se passa?
— Acho que ela se foi embora.
— Foi-se embora?
— A família inteira mudou-se para parte incerta. Mas ela foi-se mesmo.
Acho que está morta.
— Não devemos estar a falar da mesma rapariga.
— Estamos. McClellan... McClellan. Foi atropelada há uns quatro dias,
acho, mas não tenho a certeza de quando. Acho que morreu. A família
mudou-se. Não sei. Mas acho que morreu.
— Não sabes?
— Não, não sei. Mesmo.
— Porque não mo disseste antes?
— Esqueci-me.
— Foi há quatro dias!
— Esqueci-me completamente.
— Há quatro dias… — repetiu ele, lentamente, ali deitado.
Permaneceram ambos deitados no quarto às escuras, imóveis.
— Boa noite — disse ela.
Ouviu um suave restolhar de lençóis. A mão dela movera-se para tocar no
pequeno inseto elétrico, que se ergueu como um louva-a-deus na almofada e
foi-se colocar de novo no ouvido dela, a zumbir.
Montag ouviu a mulher a cantarolar por entre a respiração.
Lá fora, uma sombra moveu-se e o vento outonal aumentou subitamente
de intensidade antes de acalmar. Mas naquele silêncio que lhe chegava aos
ouvidos havia algo mais. Era como um hálito contra o vidro. Como o
movimento quase impercetível e desfocado de um fumo esverdeado e
luminescente, o movimento de uma única e gigantesca folha outonal através
do relvado e para além deste.
“O Cão Mecânico”, pensou Montag. “Anda por aí esta noite. Anda aí
agora. Se eu abrisse a janela…”
Não abriu a janela.

De manhã estava febril e tremia.


— Não podes estar doente — disse Mildred.
Ele fechou os olhos sobre o seu corpo em brasa.
— É.
— Mas ontem à noite estavas bem.
— Não, não estava.
Vindas da sala dos ecrãs, ouviu as vozes dos “parentes”.
Mildred debruçou-se sobre a cama dele, curiosa. Montag sentiu-a ali, viu-
a mesmo sem abrir os olhos: o cabelo queimado por químicos até ter a
consistência de palha quebradiça, os olhos que escondiam cataratas, bem lá
atrás das pupilas, os lábios túrgidos e vermelhos a fazer beicinho, um corpo
magro como o de um louva-a-deus depois de tantas dietas, a pele com a
textura de toucinho. Não conseguia lembrar-se dela de outra forma.
— Trazes-me aspirina e um copo de água?
— Tens de te levantar. Já passa do meio-dia. Dormiste mais cinco horas
do que o habitual.
— Podes desligar os ecrãs, por favor?
— São a minha família.
— Podes desligá-los a pedido de um homem doente?
— Eu baixo o som.
Saiu do quarto, foi à sala dos ecrãs, onde não fez nada, e voltou.
— Está melhor?
— Obrigado.
— É o meu programa favorito.
— E a aspirina?
— Nunca estiveste doente.
Ela voltou a sair do quarto.
— Pois. Mas agora estou. Não vou trabalhar esta noite. Podes ligar ao
Beatty a avisá-lo?
— Ontem à noite estavas estranho — disse ela, quando regressava ao
quarto, a cantarolar.
Ele olhou para o copo de água que ela lhe oferecia.
— Onde está a aspirina?
— Oh! — exclamou ela, e regressou à casa de banho. — Aconteceu
algo?
— Foi só um incêndio.
— Eu tive uma noite muito agradável.
— A fazer o quê?
— Na sala dos ecrãs.
— E que viste?
— Programas.
— Que programas?
— Alguns dos melhores de sempre.
— Quem aparecia?
— Oh, já sabes, os do costume.
— Pois, os do costume. O costume. O costume…
Levou a mão aos olhos para os pressionar e aliviar a dor, mas o odor a
querosene fê-lo querer vomitar.
Mildred voltou ao quarto, ainda a cantarolar. Teve uma surpresa.
— Porque fizeste isso?
Ele ficou a olhar para o chão, com desalento.
— Queimámos uma velha junto com os livros dela.
— Ainda bem que esta alcatifa é lavável.
Foi buscar uma esfregona e pôs-se a limpar.
— Fui a casa da Helen ontem à noite.
— Não conseguias ver os programas aqui?
— Sim, mas fica bem fazer uma visita de vez em quando.
Ela saiu em direção à sala dos ecrãs. Ouviu-a a cantar.
— Mildred?
Ela voltou, a cantar e a estalar suavemente os dedos.
— Não me vais perguntar sobre ontem à noite? — continuou ele.
— Que se passou?
— Queimámos mil livros. E queimámos uma mulher.
— E então?
Da salinha vinha uma explosão de som.
— Queimámos livros de Dante, de Swift, de Marco Aurélio.
— Esse não era europeu?
— Acho que sim.
— Não era um radical?
— Nunca li nada dele.
— Era um radical, sim — disse ela, enquanto os seus dedos roçavam o
telefone. — Não estás à espera que eu vá ligar para o comandante Beatty,
pois não?
— Tens de o fazer!
— Não grites!
— Não estava a gritar.
Montag ergueu-se subitamente na cama, a tremer, possuído pela raiva e
pela febre. O ar quente era atravessado pelo rugido que vinha da sala dos
ecrãs.
— Não posso ligar-lhe — continuou. — Não posso dizer-lhe que estou
doente.
— Porquê?
“Porque tens medo”, pensou. Uma criança a fingir estar doente, com
medo de ligar porque, depois de uma breve discussão, a conversa acabaria
assim: “Sim, comandante, sinto-me muito melhor agora, e estarei aí às dez
da noite”.
— Tu não estás doente.
Montag recostou-se na cama. Enfiou a mão por baixo da almofada. O
livro que escondera ainda lá estava.
— Mildred, que dirias se eu decidisse… bem, se eu deixasse de ir
trabalhar durante uns tempos?
— Queres abandonar tudo? Depois de todos estes anos a trabalhar, só
porque, uma noite, uma mulher e os livros dela…
— Se tu a visses, Mildred!
— Ela não representa nada para mim! Não devia ter aqueles livros. Era
responsabilidade dela, e devia ter pensado nisso. Odeio-a! Pôs-te essas
ideias na cabeça, e quando dermos por nós estamos sem casa, sem emprego,
sem nada.
— Não estavas lá, não viste. Deve haver algo nos livros, coisas que não
conseguimos imaginar, para que uma mulher se deixe ficar assim numa casa
em chamas. Deve haver algo neles. Não se faz uma coisa daquelas por
nada.
— Era uma estúpida.
— Era tão racional como eu e tu, talvez mais até, e nós queimámo-la.
— São águas passadas.
— Águas, não. Fogo. Já viste alguma vez uma casa a arder? Fica a
fumegar durante dias. Pois este incêndio vai-me durar a vida toda. Meu
Deus! Passei a noite toda a tentar apagá-lo na minha cabeça. Está a deixar-
me louco.
— Devias ter pensado nisso antes de teres ido para bombeiro!
— Pensar? Nem sequer tive escolha. O meu pai e o meu avô foram
bombeiros. Até nos sonhos corria atrás deles.
Da salinha vinha uma melodia de dança.
— Hoje é o dia em que entras no turno mais cedo — disse Mildred. —
Devias ter entrado há duas horas. Só agora me lembrei.
— Não foi só a mulher que morreu. Ontem à noite pensei em todo o
querosene que usei nos últimos dez anos. E pensei em livros. E, pela
primeira vez, apercebi-me de que por detrás de cada um desses livros está
um homem. Um homem que teve de pensar neles. Um homem que teve de
fixá-los em papel durante muito tempo. E nunca antes me tinha ocorrido
isso.
Levantou-se da cama.
— Um homem levou uma vida inteira a anotar os seus pensamentos, a
observar o mundo e a vida, e depois chego eu e em dois minutos, zás!, tudo
acabado.
— Deixa-me em paz! — disse ela. — Não fiz nada!
— Deixar-te em paz? Muito bem, mas como é que eu fico em paz? Não
precisamos que nos deixem em paz, mas antes que nos importunem de vez
em quando. Há quanto tempo não te sentes mesmo importunada? Com algo
importante, algo real?
E depois calou-se, pois veio-lhe à memória a semana anterior e as duas
pedras brancas viradas para o teto e a cobra com o olho que via tudo e os
dois homens de caras de cera com os cigarros a mexerem-se nos lábios
quando falavam. Mas essa tinha sido outra Mildred, uma Mildred dentro
desta, e tão importunada, realmente importunada, uma que aqueles dois
homens nunca conheceram. Virou-lhe as costas.
— Pronto, agora é que a fizeste bonita — disse ela. — Olha quem ali
está, mesmo à nossa porta.
— Quero lá saber.
— Está ali um carro-Fénix estacionado e um homem com uma camisola
preta e uma cobra cor de laranja cosida no braço vem a caminhar em
direção à nossa porta.
— O comandante Beatty?
— O comandante Beatty.
Montag não se mexeu, e ficou a olhar para a fria brancura da parede à sua
frente.
— Abre-lhe a porta, está bem? E diz-lhe que estou doente.
— Diz-lhe tu!
Ela deu uns passos para um lado e para o outro, e parou, de olhos
esgazeados, quando no intercomunicador da porta ouviu o seu nome, dito
com muita, muita suavidade.
— Sra. Montag, Sra. Montag, está alguém à porta, alguém à porta, Sra.
Montag, Sra. Montag, alguém à porta”.
Depois o som emudeceu.
Montag certificou-se de que o livro estava bem escondido por baixo da
almofada, regressou lentamente à cama e recostou-se, meio sentado,
puxando os cobertores até lhe cobrirem os joelhos e o peito. Mildred saiu
do quarto e o comandante Beatty entrou, com as mãos nos bolsos.
— Cale os “parentes” — ordenou, olhando para tudo menos para Montag
e a sua mulher.
Desta feita, Mildred correu até à sala dos ecrãs, onde as vozes ruidosas e
tagarelas se calaram imediatamente.
O comandante sentou-se no cadeirão mais confortável, com uma
expressão serena no rosto corado. Preparou e acendeu o cachimbo de latão
com muita calma, antes de exalar uma enorme baforada de fumo.
— Pensei em dar um salto aqui e ver como vai o nosso doente.
— Como adivinhou?
Beatty exibiu o seu sorriso habitual, a mostrar as gengivas como
rebuçados cor-de-rosa e a alvura dos dentes como rebuçados brancos.
— Eu vi logo que ia pedir licença para não vir esta noite.
Montag sentou-se na cama.
— Muito bem — prosseguiu Beatty. — Tire a noite para si!
Examinou o seu eterno isqueiro, cuja tampa tinha a inscrição “um milhão
de chamas garantidas com este ignitor”, e começou a clicar aquele fósforo
químico de um modo abstrato, a soprar, a clicar, a soprar, a clicar, a dizer
algumas palavras, a soprar. Olhou para a chama. Soprou-a e ficou a olhar
para o fumo.
— Quando estará bem?
— Amanhã. Ou no dia seguinte. No início da próxima semana.
Beatty lançou outra baforada do seu cachimbo.
— Mais tarde ou mais cedo, isto acontece a todos os bombeiros. Só
precisam de alguma compreensão, de saberem como funcionam as coisas. É
preciso conhecer a história da nossa profissão. Já não a ensinam aos
caloiros, como se fazia no meu tempo. É uma pena — disse, dando nova
baforada. — Só as chefias dos bombeiros se lembram dessas coisas agora.
— Nova baforada. — Eu tenho de lhe contar algumas coisas.
Mildred mexia-se nervosamente.
Beatty levou um bom minuto a preparar-se para o que iria dizer a seguir.
— Pois você perguntou-me quando tudo isto começou, esta nossa
profissão, como, onde e quando, não foi? Eu diria que começou durante
uma coisa chamada Guerra Civil, ainda que o nosso manual afirme que
começou antes. O facto é que as pessoas não se davam bem umas com as
outras até a fotografia ter-se tornado comum. Depois, o cinema no início do
século XX. A rádio. A televisão. As coisas começaram a ser em massa.
Montag permaneceu sentado na cama, imóvel.
— E porque possuíam massa, tornaram-se mais simples. Outrora, os
livros atraíam algumas pessoas, aqui e ali, um pouco por todo o lado.
Pessoas que podiam dar-se ao luxo de serem diferentes. Havia espaço para
isso no mundo. Mas depois o mundo encheu-se de olhos, de cotovelos e de
bocas. A população duplicou, triplicou, quadruplicou. Os filmes e a rádio,
as revistas, os livros foram ficando todos ao mesmo nível, uma espécie de
pudim pastoso como norma comum. Está a compreender?
— Acho que sim.
Beatty fez nova pausa, observando o padrão de fumo que deixara no ar.
— Imagine. O homem do século XIX, com os seus cavalos, os seus cães,
as suas charretes, o seu movimento lento. Então, no século XX, a imagem
torna-se mais acelerada. Os livros ficam mais curtos. Condensações.
Resumos. Tabloides. Tudo se orienta para a piada, o fim abrupto.
— Fim abrupto — repetiu Mildred, anuindo com a cabeça.
— Os clássicos eram agora programas de rádio de quinze minutos, e
cortados de novo para caberem num segmento sobre livros com dois
minutos, acabando, finalmente, por se resumirem a dez ou doze linhas
numa entrada de dicionário. Estou a exagerar, é claro. Os dicionários
serviam para referência. Mas havia muita gente para quem o único
conhecimento que tinham do Hamlet (deve conhecer certamente o título,
Montag, ainda que para si, Sra. Montag, não deva passar de um rumor),
para quem, dizia, o único conhecimento do Hamlet se limitava a um resumo
de uma página num livro que se fizera anunciar com a frase: “Agora pode
finalmente ler todos os clássicos e manter-se a par dos seus vizinhos”. Está
a ver? Do berçário à universidade e de volta ao berçário: eis o padrão
intelectual dos últimos cinco séculos ou mais.
Mildred levantou-se e começou a andar de um lado para o outro no
quarto, a pegar em coisas ao acaso e a voltar a pousá-las. Beatty ignorou-a e
prosseguiu.
— Aceleremos o filme, Montag! Rápido! Clique, imagem, olhe, olho,
agora, toque, aqui, ali, rápido, vá, acima, abaixo, dentro, fora, porquê,
como, quem, o quê, onde, hã?, ah!, zás!, trás!, bing, bong, bang!, bum!
Tudo digerido, resumido, digerido-resumido. Política? Uma coluna, duas
frases, um título! E depois, de repente, tudo desaparece! A mente dos
homens anda a tal velocidade neste carrossel movido pelas mãos dos
editores, exploradores e radiodifusores que, nesse movimento centrífugo, se
perde tudo o que seja pensamento, considerado desnecessário, uma perda de
tempo!
Mildred ajeitou as roupas da cama. Montag sentiu o coração aos saltos
quando ela tocou na sua almofada. Estava a puxá-lo pelo ombro, a procurar
que ele se mexesse para que ela pudesse tirar a almofada, ajeitá-la e voltar a
pô-la na cama. E talvez gritar, ou ficar ali a olhar, ou simplesmente levar lá
a mão, pegar no livro e pôr-se a observá-lo com toda a inocência enquanto
perguntava “o que é isto?”.
— O tempo de escola é encurtado, a disciplina é aligeirada, deixa-se de
estudar Filosofia, História, línguas, até que a própria ortografia vai sendo
gradualmente negligenciada até acabar por ser ignorada por completo. A
vida é o imediato, o emprego é o que conta, e depois do trabalho venham os
prazeres. Porquê aprender algo que não se limite a carregar em botões, ligar
e desligar interruptores, apertar porcas e parafusos?
— Deixa-me ajeitar-te a almofada — disse Mildred.
— Não! — sussurrou Montag.
— O fecho de correr substituiu o botão e assim o homem fica sem aquele
tempo para pensar enquanto se veste, pela manhã, uma hora filosófica e,
portanto, melancólica.
— Vá — insistiu ela.
— Vai-te embora!
— A vida torna-se num grande tropeção, Montag. Bang!, paf!, uau!
— Uau! — disse Mildred, ao puxar a almofada.
— Por amor de Deus, deixa-me estar sossegado! — gritou-lhe Montag.
Beatty abriu bem os olhos.
A mão de Mildred paralisara atrás da almofada. Os seus dedos tateavam
as arestas do livro e, à medida que aquela forma se ia tornando familiar, o
rosto dela mostrou primeiro surpresa e depois estupefação. A boca abriu-se-
lhe para fazer uma pergunta…
— Os teatros ficam vazios, a não ser para assistir a números de palhaços,
e para encher as paredes de espelhos, de cores berrantes de cima a baixo,
como confetes, ou sangue, ou xerez ou vinho de Sauternes. Você gosta de
basebol, Montag, não gosta?
— É um belo jogo.
Agora Beatty estava quase invisível, uma voz algures por trás daquela
cortina de fumo.
— O que é isto? — perguntou Mildred, quase com deleite na voz.
Montag recostou-se ainda mais sobre os braços dela.
— O que é isto aqui? — insistiu ela.
— Senta-te! — gritou Montag. Ela deu um salto para trás, de mãos
vazias. — Estamos a falar!
Beatty prosseguiu como se nada se tivesse passado.
— Gosta de bowling, não gosta, Montag?
— Bowling, sim.
— E golfe?
— É um belo jogo também.
— Basquetebol?
— Um belo jogo.
— Bilhar? Snooker? Futebol?
— Todos belos jogos.
— Mais jogos para toda a gente, espírito de grupo, diversão, e nem é
preciso pensar, não é? Organize-se e organize-se, super-organize-se
supersuper-jogos. Mais bonecada em livros. Mais imagens. A mente bebe
cada vez menos. Impaciência. Autoestradas cheias de gente a irem para
algum lado, algum lado, para lado nenhum. O refúgio da gasolina. Cidades
transformadas em motéis, pessoas em circulação nómada de sítio para sítio,
seguindo as marés lunares, a viverem esta noite no quarto onde você dormiu
esta tarde e eu dormi na noite anterior.
Mildred saiu do quarto, batendo a porta com força atrás de si. As “tias”
da sala dos ecrãs recomeçaram a rir com os “tios” da sala dos ecrãs.
— Vamos agora pensar nas minorias da nossa civilização. Quanto maior
a população, mais as minorias. Não pise os calos dos amantes de cães, dos
amantes de gatos, dos médicos, dos advogados, dos comerciantes, dos
cozinheiros, dos mórmones, dos batistas, dos unitários, dos descendentes de
chineses, suecos, italianos, alemães, dos texanos, dos habitantes de
Brooklyn, dos irlandeses, dos habitantes do Oregon ou do México. As
pessoas neste livro, nesta peça, nesta série de televisão não representam
verdadeiramente quaisquer pintores, cartógrafos ou mecânicos que possam
viver em alguma parte. Quanto maior o mercado, Montag, menor a margem
para controvérsia: lembre-se disso! Todas as minorias, as mais pequenas e
menores minorias, têm de ter o umbigo bem lavado e limpo. Autores, cheios
de pensamentos perniciosos nas vossas cabeças, fechem à chave as vossas
máquinas de escrever! E eles fecharam-nas. As revistas tornaram-se numa
agradável papa de baunilha e tapioca. Os livros, segundo afirmavam esses
malditos críticos snobes, não passavam de água de loiça suja. Não admirava
que tivessem deixado de se vender, diziam os críticos. Mas o público,
sabendo o que queria, a saltitar de alegria, lá manteve as revistas de banda
desenhada. E as revistas tridimensionais de sexo, claro. E aí tem, Montag:
não foi uma decisão governamental. Não houve uma ordem, uma
declaração, um ato de censura, nada disso! A tecnologia, a exploração
massificada e a pressão das minorias fizeram tudo sem qualquer ajuda.
Hoje, graças a elas, pode manter-se feliz o tempo todo, pode ler banda
desenhada, revistas de mexericos ou jornais especializados.
— Sim, mas que se passou com os bombeiros? — perguntou Montag.
— Ah! — disse Beatty, inclinando-se para a frente no meio da neblina de
fumo do seu cachimbo. — Nada tem uma explicação mais fácil ou natural
do que isso. Com as escolas a lançarem para o mercado cada vez mais
corredores, saltadores, estafetas, remendões, agarradores, buscadores,
voadores e nadadores em vez de examinadores, críticos, conhecedores e
criadores imaginativos, a palavra “intelectual”, como é óbvio, transformou-
se no palavrão que merecia ser. Receamos sempre o que não conhecemos.
Tenho a certeza de que se lembra de algum rapazinho na sua turma da
escola que era particularmente “inteligente”, era sempre o primeiro a recitar
um texto ou a responder a uma pergunta, enquanto os outros ficavam ali
sentados como estátuas de chumbo, a odiá-lo. E não era esse mesmo
rapazinho inteligente que você e os seus colegas escolhiam como alvo de
pancada e torturas depois das aulas? Claro que era. Temos todos de ser
iguais. Nem todos nascem livres e iguais, como diz a Constituição, mas
todos se tornam iguais. Cada homem à imagem do outro, todos felizes, pois
não há montanhas que os intimidem ou que os diminuam. E é isso! Um
livro é uma arma carregada na casa ao lado. Queimemo-lo. Tiremos as
munições da arma. Abramos a mente do homem. Quem sabe qual será o
alvo de um homem com a cabeça cheia de livros? Eu? Não o aguentaria
nem um minuto. E assim, quando as casas passaram finalmente a ser à
prova de fogo em todo o mundo (tinha razão quanto a isto na outra noite),
deixou de haver necessidade para a antiga ocupação dos bombeiros. Foi-
lhes atribuída uma nova função: a de defensores da paz de espírito, focos do
nosso compreensível e justificado receio de sermos inferiores. Censores
oficiais, juízes e executores. É o que você é, Montag, e é o que eu sou.
A porta que dava para a salinha dos ecrãs abriu-se e Mildred pôs-se na
soleira a olhar para ambos, para Beatty e depois Montag. Atrás dela as
paredes da sala estavam inundadas por um fogo-de-artifício verde, amarelo
e cor de laranja, pulsando ao som de uma música composta inteiramente de
batidas de bateria, gongos e címbalos. A boca dela estava a mexer-se e ela
estava a dizer algo, mas aquele chinfrim impedia-o de ouvir.
Beatty bateu com o cachimbo na palma da mão rosada e observou as
cinzas, como se fossem um símbolo de algo a ser diagnosticado e cujo
significado deveria ser descoberto.
— Entenda que a nossa civilização é tão vasta que não podemos dar-nos
ao luxo de termos as nossas minorias inquietas. Pergunte-se: o que é que,
acima de tudo, queremos neste país? Queremos ser felizes, não é certo? Não
foi o que ouviu toda a sua vida? Eu quero ser feliz, diz toda a gente. Bem, e
não são? Não lhes damos oportunidade de andarem de um lado para o
outro, de se divertirem? É só para isso que vivemos, não é? Para o prazer, a
excitação. E tem de admitir que a nossa cultura é generosa na oferta de
ambos.
— Sim.
Montag conseguia ler nos lábios de Mildred o que ela estava a dizer na
soleira da porta. Tentou não olhar para a boca dela, evitando que Beatty
olhasse também e descobrisse o que lá estava.
— As pessoas de cor não gostam do Little Black Sambo. Queime-se. As
pessoas brancas não se sentem bem com A Cabana do Pai Tomás. Queime-
se. Alguém escreveu um livro acerca do efeito do tabaco no cancro dos
pulmões? As tabaqueiras estão preocupadas? Queime-se o livro.
Serenidade, Montag. Paz, Montag. Lutar é lá fora. Melhor ainda: mete-se os
problemas no incinerador. Os funerais são tristes e pagãos? Eliminem-se
também. Cinco minutos depois da morte, qualquer pessoa está já a caminho
da Grande Chaminé, um dos muitos incineradores servidos por helicópteros
em todo o país. Dez minutos depois de morrer, de um homem já só resta um
monte de pó preto. Deixemo-nos de quezílias em torno de indivíduos que
morreram e das recordações que deixam. Esqueçamo-los. Queimemos tudo,
tudo. O fogo é brilhante e o fogo é limpo.
Atrás de Mildred, o fogo-de-artifício parou quase ao mesmo tempo em
que ela tinha deixado de falar. Uma coincidência milagrosa. Montag susteve
a respiração.
— Havia uma rapariga que morava aqui ao lado — acabou por dizer,
lentamente. — Desapareceu. Creio que morreu. Nem me consigo lembrar
do rosto dela. Mas era diferente. Como… Como é que alguém como ela
existia?
Beatty sorriu.
— Isso há de acontecer sempre, aqui ou ali. Clarisse McClellan, não era?
Temos o registo da família dela. Tínhamos estado a observá-los
cuidadosamente. A hereditariedade e o ambiente são coisas engraçadas. Não
é possível livrarmo-nos de todos estes casos anormais em poucos anos. O
ambiente de casa pode desfazer muito do que se tenta fazer na escola. É por
isso que a idade de admissão ao jardim infantil foi baixando de ano para
ano: agora saem de casa quase no berço. Tivemos alguns alarmes falsos
acerca dos McClellan, quando eles viviam em Chicago. Nunca encontrámos
um único livro. O tio tinha um registo incerto, era um antissocial. A
rapariga? Uma bomba relógio. Tenho a certeza de que a família tinha estado
a alimentar-lhe o subconsciente, pelo que pude ver nos registos escolares
dela. Não queria saber como era feito algo, mas porquê. Isso pode tornar-se
complicado. Se começamos a perguntar porquê a tudo o que nos aparece
pela frente, acabamos muito infelizes, ou pior. A pobre rapariga está melhor
assim, morta.
— Sim, morta.
— Por sorte, esquisitas como ela já não aparecem muito. Sabemos como
podá-las quando ainda estão no início. Não se constrói uma casa sem pregos
e madeira. Se não se quer construir uma casa, é melhor esconder os pregos
e a madeira. Se não se quer um homem politicamente infeliz, é melhor não
lhe apresentar dois lados de uma questão para o preocupar: apresente-se-lhe
apenas um. Ou melhor: não se lhe apresente nenhum. Que ele se esqueça de
que há uma guerra. Ter um governo ineficaz, de mão pesada na repressão e
nos impostos é, ainda assim, melhor do que se houver gente a preocupar-se
com isso. Paz, Montag. Dê-se às pessoas concursos que elas possam ganhar
ao lembrarem-se das letras das canções mais populares ou dos nomes das
capitais estaduais ou da quantidade de milho produzido no Iowa no ano
passado. Encha-se-lhes a cabeça de factos não-combustíveis, de tantos
factos até se sentirem cheias mas “brilhantes” por adquirirem tanta
informação. Aí começarão a sentir que pensam, que se movem sem na
realidade se moverem. E serão felizes, porque factos dessa natureza não
mudam. Evite-se dar-lhes matérias escorregadias como Filosofia ou
Sociologia para que liguem umas coisas às outras. Esse é o caminho para a
melancolia. Qualquer homem que consiga desmontar um televisor de
parede e voltar a montá-lo, e hoje em dia quase todos o conseguem, é mais
feliz do que outro que tente medir e analisar o universo, que não se deixará
medir ou analisar sem que esse homem acabe a sentir-se só e ao nível de um
animal. Eu sei porque o tentei. Para o diabo com isso! Venham então daí os
clubes e as festas, os acrobatas e os mágicos, os malabaristas temerários, os
carros a jato, as motos-helicópteros, o sexo e a heroína, e mais tudo o que
tenha a ver com reflexos automáticos. Se o drama é mau, se o filme não diz
nada, se a peça de teatro é vazia, então injetem-lhe uma valente dose de
Teremin1, bem alto. As pessoas vão pensar que estão a responder ao que
ouvem na peça quando, na verdade, se trata apenas de uma reação táctil à
vibração. Mas não se vão importar, porque do que gostam mesmo é de
entretenimento.
Beatty levantou-se.
— Tenho de ir. A lição terminou. Espero ter esclarecido as coisas. O mais
importante a ter em mente, Montag, é que nós somos os Rapazes da
Felicidade, o Duo Dinâmico, eu e você e os outros. Enfrentamos a vaga dos
que querem pôr toda a gente infeliz com teorias e pensamentos
contraditórios. Tapamos a fissura do dique com o dedo, e mantemo-nos
firmes. Não deixemos que a torrente de melancolia e de lúgubre filosofia
inunde o nosso mundo. Dependemos de si. Não creio que se aperceba do
quão importante é, do quão importantes somos, para a salvaguarda deste
mundo feliz que conhecemos.
Beatty apertou a mão mole de Montag. Este estava ainda sentado na
cama, como se a casa estivesse a cair à sua volta e ele não se pudesse
mexer. Mildred já não estava à soleira da porta.
— Uma última coisa. Pelo menos uma vez nas suas carreiras, todos os
bombeiros sentem uma comichão. O que dirão os livros, perguntam-se. Oh,
que tentação, coçar essa comichão! Pois bem, Montag, acredite no que lhe
digo: já tive de ler alguns durante a minha carreira, apenas para saber do
que tratavam, e posso garantir-lhe que os livros não dizem nada! Nada com
que possa aprender ou em que possa acreditar. Se forem de ficção, são sobre
pessoas que não existem, produtos da imaginação. E se não forem de ficção
é ainda pior: um professor a chamar idiota a outro, um filósofo a gritar com
outro. Todos eles num frenesim, a apagarem as estrelas e a extinguirem o
sol. Sai dali mais perdido do que entrou.
— E então se um bombeiro, por acaso, sem querer, trouxer com ele um
livro para casa?
Montag estremeceu. A porta aberta fitava-o com o seu enorme olho
vazio.
— Um erro perfeitamente natural. Apenas curiosidade. Não nos
preocupamos em demasia com isso, nem nos pomos furiosos. Deixamos
que o bombeiro guarde o livro vinte e quatro horas. Se não o queimar no
final desse prazo, vamos a sua casa e fazemos isso por ele.
— Claro.
Montag tinha a boca seca.
— Muito bem, Montag. Será que ainda vai hoje fazer um turno mais
tardio? Ainda o vemos por lá esta noite?
— Não sei.
— O quê?
Beatty parecia ligeiramente surpreendido. Montag fechou os olhos.
— Sou capaz de passar lá mais tarde esta noite. Talvez.
— Sentiríamos a sua falta se não aparecesse — disse Beatty, enquanto
enfiava o cachimbo no bolso com todo o cuidado.
“Nunca mais lá ponho os pés”, pensou Montag.
— Ponha-se bom e mantenha-se saudável.
Virou-se e dirigiu-se para a porta aberta.

Através da janela, Montag viu Beatty afastar-se no seu carro


amarelo, cintilante como uma chama, com os pneus da cor do carvão.
Do outro lado da rua e ao longo desta, as outras casas mostravam as suas
fachadas planas. O que lhe tinha dito mesmo Clarisse certa tarde?
— Não têm alpendres. O meu tio diz que as casas costumavam ter
alpendres na entrada. E as pessoas sentavam-se lá às vezes, de noite,
quando queriam falar, em cadeiras de balanço, ou então sem falarem nada
quando não queriam falar. Por vezes, deixavam-se apenas ficar ali, a pensar,
a remoer coisas. O meu tio diz que os arquitetos se livraram dos alpendres
porque não eram bonitos. Mas também diz que isso é apenas arranjar uma
desculpa para a coisa: a verdadeira razão, bem escondida lá no fundo, pode
bem ser que não queriam que as pessoas se sentassem assim, sem fazerem
nada, a baloiçarem, a falarem. Esse era o tipo errado de vida social. As
pessoas falavam demasiado. E tinham tempo para pensar. Por isso acabaram
com os alpendres. E com os jardins também. Já não restam muitos jardins
onde se possa ficar sentado um pouco. E olhe só o que aconteceu ao
mobiliário. Já não se fazem cadeiras de baloiço. São demasiado
confortáveis. O que importa é ter as pessoas em pé e andarem de um lado
para o outro. O meu tio diz… e… o meu tio… e… o meu tio…
E a voz dela esfumou-se na sua memória.

***

Montag virou-se e olhou para a sua mulher, sentada no centro da


sala a falar com um apresentador de televisão que, por seu turno, falava
com ela.
— Sra. Montag… — dizia ele. E mais isto, e mais aquilo.
— Sra. Montag…
E algo mais e ainda mais outra coisa. O conversor ligado à televisão, que
lhes custara cem dólares, dizia automaticamente o nome dela sempre que o
apresentador se dirigia ao seu público anónimo, deixando uma pausa em
branco onde as sílabas correspondentes eram inseridas. Um ajustador
especial fazia também com que a sua imagem televisiva, na área em torno
dos lábios, fosse particularmente nítida: a sua boca dizia as consoantes e as
vogais de um modo perfeito. Era um amigo, não havia dúvida, um bom
amigo.
— Sra. Montag, agora olhe para aqui.
A cabeça dela virou-se, ainda que fosse óbvio que não estava a ouvir.
— De não ir hoje trabalhar até não ir amanhã e não voltar mais ao
quartel, é só um pequeno passo — disse Montag.
— Mas tu vais trabalhar hoje, não vais?
— Ainda não decidi. Agora o que me apetece é andar por aí a partir
coisas, a matar.
— Vai dar uma volta de carro.
— Não, obrigado.
— As chaves estão nessa mesinha aí. Sempre que me sinto assim, gosto
de conduzir a toda a velocidade. Aceleras até aos 150 km/hora e sentes-te
uma maravilha. Às vezes conduzo a noite toda e volto sem que te dês conta.
É divertido conduzir no campo. Atropelamos coelhos, às vezes cães. Vá, vai
dar uma volta.
— Não quero isso agora. Quero agarrar-me a isto que me deu. Atacou-me
cá com uma força! Não sei o que é. Sinto-me tão infeliz, com a cabeça
perdida, e nem sei porquê. Tenho a sensação de que ganhei peso. Sinto-me
gordo. Sinto que guardei cá dentro uma data de coisas, mas não sei o quê.
Acho que vou até começar a ler livros.
— E depois prendiam-te, não era?
Ela olhou para ele como se através de uma parede de vidro.
Montag começou a vestir-se e pôs-se a andar de um lado para o outro no
quarto.
— Era. E até era bom. Antes que eu fizesse mal a alguém. Ouviste o
Beatty? Ouviste o que ele disse? Ele conhece todas as respostas. E tem
razão: a felicidade é importante. A diversão é tudo. E, contudo, aqui estou
eu sentado e a dizer a mim próprio que não sou feliz, não sou feliz.
— Eu sou — disse Mildred, com a boca a brilhar. — E tenho orgulho de
sê-lo.
— Vou fazer alguma coisa. Ainda não sei o quê, mas vou fazer alguma
coisa em grande.
— Estou farta de ouvir essas porcarias — disse ela, virando-lhe as costas
e concentrando-se de novo no apresentador.
Montag mexeu no controlador de som na parede e o apresentador perdeu
a voz.
— Millie…
Fez uma pausa.
— Esta casa é tanto tua como minha — prosseguiu. — Acho justo que
saibas algo que te vou contar. Devia tê-lo feito antes, mas não estava a
querer encará-lo sequer. Tenho algo que quero que vejas, algo que guardei e
escondi no último ano. Fui fazendo-o de vez em quando, não sei bem
porquê, mas fi-lo e nunca te disse.
Levou a mão a uma cadeira de costas direitas e puxou-a lentamente até
um ponto da sala perto da porta de entrada. Depois subiu à cadeira e ali
ficou um momento, como uma estátua num pedestal, com a mulher lá em
baixo, à espera. De seguida, ergueu o braço para chegar à grelha do ar
condicionado, que retirou, para depois enfiar a mão lá dentro e mover uma
placa de metal do lado direito, atrás da qual retirou um livro. Sem olhar
para ele, deixou-o cair no chão. Voltou a enfiar a mão no esconderijo e
retirou dois livros, voltando a deixá-los cair no chão da sala. Continuou a
fazer isto, a retirar livros e a deixá-los cair, livros pequenos, livros de
razoável dimensão, livros amarelos, vermelhos, verdes. Quando acabou,
olhou para o monte de quase vinte livros aos pés da sua mulher.
— Desculpa. Não estava a pensar. Mas agora acho que estás metida nisto
comigo.
Mildred recuou, como se tivesse visto uma ninhada de ratos no chão da
sala. Montag conseguia ouvi-la a respirar rapidamente, com o rosto pálido e
os olhos esgazeados. Disse o nome dele umas duas ou três vezes. Depois, a
gemer, correu em frente, pegou num livro e dirigiu-se ao incinerador da
cozinha.
Ele agarrou-a, e gritou-lhe. Manteve-a agarrada como pôde, mas ela
tentou escapar-lhe, debatendo-se e arranhando-o.
— Não, Millie! Não! Para! Ouve… Tu não sabes… Para!
Esbofeteou-a, voltou a agarrá-la bem e sacudiu-a.
Ela disse o nome dele e começou a chorar.
— Millie, ouve! Dá-me um segundo, está bem? Não podemos fazer nada.
Não podemos queimá-los. Quero vê-los, vê-los pelo menos uma vez.
Depois, se o que o comandante disse é verdade, podemos queimá-los, tu e
eu, prometo, queimamo-los juntos. Tens de me ajudar.
Olhou para o rosto dela, segurou-lhe o queixo e abraçou-a. Não estava
apenas a olhar para ela, mas para ele também, em busca dele próprio e do
que fazer no rosto dela.
— Quer gostemos ou não — prosseguiu — estamos metidos nisto. Nunca
te pedi muito nestes anos, mas peço-te isto agora. Imploro-te. Temos de
recomeçar de alguma forma, descobrir o que nos levou a esta trapalhada, tu
e os teus comprimidos e o carro, eu e o meu trabalho. Estamos a caminho
do precipício, Millie. E não quero cair nele! Isto não vai ser fácil. Não
temos muito a que nos agarrar, mas talvez consigamos resolver isto e
ajudarmo-nos um ao outro. Preciso tanto de ti agora! Se me amas, só te
peço que esperes um pouco, umas vinte e quatro ou quarenta e oito horas, é
só isso, prometo, juro! E se há algo aqui, por mais pequeno que seja, que
possamos aproveitar, talvez consigamos transmiti-lo a outras pessoas.
Mildred já não se debatia, pelo que a largou. Ela cambaleou molemente
para longe dele, encostou-se à parede e deixou-se deslizar por ela abaixo,
sentando-se no chão a olhar para os livros. O pé dela estava a tocar um
deles, o que a fez afastá-lo imediatamente.
— Aquela mulher, na outra noite… Millie, tu não estavas lá. Não viste a
cara dela. E a Clarisse. Nunca falaste com ela. Eu falei. E homens como o
Beatty têm medo dela. Não consigo compreendê-lo. Porque haveriam de ter
medo de alguém como ela? Mas ontem à noite, no quartel, pus-me a
compará-la com os outros bombeiros, e dei por mim a descobrir que não
gostava nada deles, nem de mim. E pensei que talvez fosse melhor se os
bombeiros também fossem queimados.
— Guy!
A voz do intercomunicador da porta fez-se ouvir suavemente.
— Sra. Montag, Sra. Montag, alguém à porta, alguém à porta, Sra.
Montag, Sra. Montag, alguém à porta.
Muito suavemente.
Ambos se viraram para olharem para a porta e para os livros espalhados
por todo o lado, em montinhos.
— É o Beatty! — disse ela.
— Não pode ser.
— Voltou.
A voz da porta voltou a falar suavemente.
— Alguém à porta…
— Não abrimos.
Montag recostou-se contra a parede e deixou-se cair até ficar quase
acocorado. Começou a tocar ao de leve nos livros com o polegar e
indicador, num misto de desconfiança e perplexidade. Estava a tremer e
tudo o que queria agora era voltar a enfiar os livros atrás da grelha do
ventilador, mas sabia que não poderia voltar a encarar o comandante Beatty.
Sentou-se no chão. A voz da porta voltou a falar, com mais insistência.
Montag pegou num livro pequeno junto a ele.
— Por onde se começa?
Abriu o livro a meio e espreitou.
— Começa-se começando, pois.
— Ele vai entrar, e queimar-nos junto com os livros!
A voz eletrónica calou-se finalmente. O silêncio regressou. Montag
sentiu a presença de alguém do outro lado da porta, à espera, à escuta.
Depois os passos que se afastavam ao longo do pátio de entrada e do
relvado.
— Vamos lá a ver o que está aqui — disse ele.
Disse as palavras aos solavancos e de um modo hesitante e terrivelmente
inseguro. Leu uma dúzia de páginas aqui e ali e acabou por ir parar a este
trecho:
— “Foi calculado que onze mil pessoas já pensaram várias vezes ser
preferível morrer do que ter de partir os ovos pelo lado mais pequeno”.
— Mas que quer isso dizer? — perguntou Mildred, sentada no outro lado
da sala. — Não significa nada! O comandante tinha razão!
— Espera. Vamos começar do início.

1 N.T.: Referência ao instrumento musical eletrónico inventado por Leon Theremin em 1920, com o
qual se produzia sons sem contacto físico com o mesmo, apenas oscilando as mãos entre duas
antenas metálicas, e regulando a frequência e o volume do som girando botões para esse efeito. O seu
som particular e hipnótico tornou-se popular em Hollywood a partir do final da década de 1940,
sobretudo nas bandas sonoras assinadas por Miklos Rosza. É óbvia a ironia do autor ao usar o nome
com maiúscula, como se fosse o de uma droga ou medicamento.
DOIS

A PENEIRA
E A AREIA

L
eram pela tarde fora, enquanto a chuva fria de novembro caía sobre a
sua casa silenciosa. Ficaram sentados no salão, porque a salinha dos
ecrãs parecia tão vazia e cinzenta, com os ecrãs apagados e sem a
efervescência luminosa de confetes cor de laranja e amarelos, sem os
foguetões no céu, sem as mulheres de vestidos dourados e os homens em
fatos de veludo preto a tirarem coelhos de quarenta quilos de cartolas
prateadas. Parecia morta, e Mildred continuava a olhar para ela com uma
expressão vazia no rosto, enquanto Montag andava de um lado para o outro
antes de voltar a sentar-se no chão e lia uma página dez vezes seguidas, em
voz alta.
— “Não é possível determinar o momento exato em que se forma uma
amizade. Tal como, quando enchemos gota a gota um recipiente, há sempre
uma gota que acaba por fazer transbordar o líquido, também numa série de
pequenas amabilidades haverá uma que, por fim, fará com que o coração
transborde.”
Montag recostou-se a ouvir a chuva.
— Teria sido isto que se passou com a rapariga da casa ao lado? Fartei-
me de procurar entendê-lo.
— Ela morreu. Vamos falar de alguém vivo, por amor de Deus!
Montag não olhou para a sua mulher ao levantar-se e dirigir-se, a tremer,
para a cozinha, onde ficou um bom bocado a ver a chuva a bater nas
janelas, antes de regressar ao salão sob aquela luz acinzentada, à espera que
os tremores passassem.
Abriu outro livro.
— “Esse assunto predileto, Eu”.
Semicerrou os olhos e pôs-se a olhar para a parede.
— “Esse assunto predileto, Eu”.
— Essa eu entendo — disse Mildred.
— Mas o assunto predileto da Clarisse não era ela mesma. Eram todas as
outras pessoas, incluindo eu. Foi a primeira pessoa de que me lembro, em
muitos anos, de ter realmente gostado. Foi a primeira pessoa de que me
lembro que olhou diretamente para mim, olhos nos olhos, como se eu
tivesse importância.
Ergueu os dois livros.
— Estes homens morreram há muitos anos, mas sei que as palavras deles
apontam, de uma forma ou de outra, para a Clarisse.
Do outro lado da porta de entrada, por entre o ruído da chuva, ouviu-se
um ligeiro raspar.
Montag paralisou. Viu Mildred a atirar-se para trás, contra a parede, e a
engolir em seco.
— Está alguém… à porta… Porque é que a voz da porta não nos diz…
— Porque a desliguei.
Pela ranhura por baixo da porta, ouvia-se um farejar lento, a sondar, uma
exalação de vapor elétrico.
— É só um cão! — disse Mildred, a rir. — É só isso! Queres que o
enxote?
— Fica onde estás!
Silêncio. A chuva fria a cair. E o odor a um hálito elétrico azulado que
soprava por baixo da porta trancada.
— Vamos voltar ao trabalho — acabou por dizer Montag, em voz baixa.
Mildred pontapeou um livro.
— Os livros não são pessoas! Estás a ler e eu olho em volta, mas não
vejo ninguém.
Ele olhou para o salão, que parecia morto e envolto num manto cinzento,
como as águas de um oceano que poderia estar vibrante de vida se alguém
ligasse o sol elétrico.
— Já os da minha “família” são pessoas — continuou ela. — Dizem-me
coisas, eu rio, eles riem. E as cores!
— Sim, eu sei.
— E além disso, o comandante Beatty sabia desses livros… — Mildred
ficou um momento a pensar naquilo, e o seu rosto mostrou espanto e depois
horror. — Ele pode vir aí a qualquer momento e queimar-nos a casa, e a
minha “família”. Que horror! Pensa no que investimos! Porque haveria de
ler? Para quê?
— Para quê! Porquê! Vi a cobra mais estranha do mundo na outra noite.
Estava morta mas estava viva. Via mas não podia ver. Queres ver essa
cobra? Está no hospital, junto com um relatório acerca de todo o lixo que
ela te tirou do estômago! Queres ir lá e ler esse relatório? Talvez queiras
procurar em “Guy Montag” ou em “Fogo” ou “Guerra”. Queres ir ver
aquela casa que queimámos ontem à noite? E procurar no meio das cinzas
os ossos da mulher que se imolou com a própria casa? E a Clarisse
McClellan, onde a procuramos? Na morgue! Ouve!
Os bombardeiros atravessaram o céu uma e outra vez, arfando,
murmurando, assobiando como uma gigantesca e invisível ventoinha a girar
no vazio.
— Jesus! Tantas coisas no céu, hora após hora! Como é que o raio
daqueles bombardeiros estão sempre lá em cima? Todos os segundos da
nossa vida! Porque é que ninguém quer falar disso? Já começámos e
ganhámos duas guerras atómicas desde 2022! Será que é por estarmos tão
entretidos em casa que nos esquecemos do que se passa no mundo? Será
que é por sermos tão ricos e o resto do mundo tão pobre, e que isso já nem
nos interessa? Ouvi rumores: o mundo está à fome, mas nós aqui todos de
barriga cheia. Será verdade que o mundo trabalha no duro e que nós só nos
divertimos? Será por isso que todos nos odeiam? Já ouvi uns rumores
acerca desse ódio também, há muito tempo. E sabes porquê? É que eu não!
Talvez os livros nos ajudem a sairmos um pouco desta caverna em que
estamos enfiados. Pode ser que nos impeçam de repetirmos os mesmos
erros! Não ouço os idiotas na tua salinha dos ecrãs a falarem disso. Raios os
partam, Millie, não vês? Uma hora por dia com estes livros, duas horas, e
talvez, quem saiba…
O telefone tocou. Mildred agarrou-o imediatamente.
— Ann! — disse, a rir. — Sim, hoje é dia do Palhaço Branco!
Montag foi até à cozinha e atirou o livro ao chão.
— És um estúpido, Montag — disse ele. — Que vamos fazer agora?
Entregamos os livros? Esquecemos o assunto?
Pegou de novo no livro e pôs-se a ler para tapar o ruído do riso de
Mildred.
“Pobre Millie”, pensou. “E pobre Montag, porque isto para ti também é
tão claro como lama, não é? Mas onde podemos encontrar ajuda? Onde
haverá um professor a estas horas?”
“Espera lá”. Fechou os olhos. “Mas é claro!” Deu por si a pensar de novo
no parque verdejante, um ano antes. Desde então pensara naquilo muitas
vezes, mas agora lembrava-se do que se passara no parque da cidade
naquele dia, quando vira aquele velho vestido com um fato escuro a
esconder algo, muito rapidamente, por baixo do casaco.
O velho erguera-se de um salto, como se quisesse começar a correr.
— Espere! — dissera-lhe Montag.
— Não fiz nada! — gritara o velho, a tremer.
— E quem diz que fez?
Sentaram-se sob aquela luz difusa e esverdeada, sem dizerem uma única
palavra. Então Montag começou a falar do tempo e o velho respondeu-lhe
com uma voz pálida. Era um encontro bizarro. O velho admitiu ser um
antigo professor de Inglês, que tinha sido despedido quarenta anos antes,
quando tinham encerrado as últimas universidades onde ainda se ensinavam
ciências humanas e artes, por falta de alunos e apoio financeiro. Chamava-
se Faber, e quando finalmente perdeu o medo inicial de Montag falou numa
voz cadenciada, olhando para o céu e para as árvores do parque. Uma hora
depois, disse o que pareceu a Montag um poema sem rima. Depois o velho
ganhou ainda mais coragem e disse outro poema. Faber, que falava de um
modo muito suave, mantinha a mão sobre o bolso esquerdo do casaco, e
Montag soube que, se levasse àquele bolso a sua mão, encontraria um livro
de poesia. Mas não o fez. Manteve as suas mãos sobre os joelhos, amorfas e
inúteis.
— Eu não digo coisas, meu caro amigo — disse Faber. — Eu falo sobre
o sentido das coisas. Estou aqui sentado e sei que estou vivo.
E foi só aquilo. Uma hora de monólogo, um poema, um comentário, e
então, sem sequer se referir ao facto de Montag ser um bombeiro, Faber
escreveu com uma mão tremente o seu endereço num pedaço de papel.
— Para os seus arquivos, no caso de decidir zangar-se comigo.
— Não estou zangado — deu Montag por si a dizer, para sua surpresa.

Na sala dos ecrãs, Mildred uivava de tanto rir.


Montag foi ao armário do quarto e abriu a pasta com os ficheiros de
“investigações futuras”. O nome de Faber lá estava. Não o tinha entregado e
não o tinha apagado.
Fez a chamada de um dos telefones da casa. O telefone no outro extremo
da linha chamou por Faber uma dúzia de vezes antes de o professor atender
com uma voz frágil. Montag identificou-se e recebeu de volta um longo
silêncio.
— Sim, senhor Montag? — disse por fim o professor.
— Professor Faber, tenho uma pergunta algo estranha a fazer-lhe.
Quantos exemplares da Bíblia restam no país?
— Não sei se entendi a sua pergunta.
— Quero saber se ainda há exemplares da Bíblia.
— Isto é uma cilada, não é? Eu não posso falar dessas coisas assim com
qualquer pessoa ao telefone!
— Quantos exemplares de livros de Shakespeare e Platão?
— Nenhum! Você sabe isso muito bem! Nenhum!
Faber desligou.
Montag pousou o auscultador. Nenhum. Algo que ele sabia muito bem
pelas listas afixadas no quarto. Mas quisera ouvi-lo da boca de Faber.
Na sala, o rosto de Mildred estava inchado de excitação.
— Olha, as senhoras vêm cá esta noite!
Montag mostrou-lhe um livro.
— Este é o Novo e o Antigo Testamento, e…
— Não comeces com isso de novo!
— Este pode bem ser o último exemplar nesta parte do mundo.
— Vais ter de o entregar esta noite, não vais? O comandante Beatty sabe
que tu o tens, não sabe?
— Não acho que saiba que livro roubei. Mas como escolher qual o livro a
entregar em vez deste? Entrego um do Jefferson? Um do Thoreau? Qual
deles é menos valioso? Se escolho outro e ele sabe mesmo qual o livro que
roubei, vai pensar que temos aqui uma biblioteca enorme!
A boca de Mildred deu um nó.
— Estás a ver o que estás a fazer? Estás a dar cabo de nós! Quem é mais
importante, eu ou essa Bíblia?
Estava a começar a guinchar, ali sentada como uma boneca de cera a
derreter com o calor do seu próprio corpo.
Montag conseguia ouvir a voz de Beatty.
— Sente-se, Montag. Observe. Delicadamente, como se fossem pétalas
de uma flor. Queime a primeira folha, queime a segunda. Cada uma se
transforma numa borboleta negra. Que belo, não acha? Queime a terceira
folha depois, e assim por diante, como se fumasse um cigarro atrás do
outro, capítulo a capítulo, todas as patetices que estas palavras significam,
todas as promessas falsas, todas as opiniões em segunda mão e as filosofias
gastas pelo tempo.
E ali ficava Beatty, sentado, a suar ligeiramente, enchendo o chão de um
enxame de traças pretas que tivessem morrido pelo efeito de uma única
tempestade.
Mildred parou de chorar quase tão subitamente como tinha começado.
Montag já não a ouvia.
— Só há uma coisa a fazer. Antes de entregar ao Beatty este livro, vou ter
de fazer uma cópia.
— Vais estar cá para ver o Palhaço Branco e para conviver com as
senhoras, não vais? — gritou Mildred.
Montag parou junto à porta, com as costas viradas para a mulher.
— Millie?
Silêncio.
— O quê?
— Millie, o Palhaço Branco ama-te?
Nenhuma resposta.
— Millie — continuou ele, a molhar os lábios com a língua — essa tua
“família” ama-te, ama-te muito, ama-te do fundo do coração?
Sentiu que queria chorar, mas nada afetou os seus olhos e a sua boca.
— Se vires aquele cão lá fora, dá-lhe um pontapé por mim — acabou por
dizer ela.
Ele hesitou, à escuta. Abriu a porta e saiu.
A chuva tinha parado e o sol estava a pôr-se no céu limpo. A rua, o
relvado e o pátio de entrada da casa estavam vazios. Exalou um enorme
suspiro.
Fechou a porta com vigor.
Estava no metro.
“Sinto-me entorpecido”, pensou. “Quando começou esta dormência no
meu rosto, no meu corpo? Na noite em que dei um pontapé no frasco de
comprimidos no meio da escuridão, como se tivesse pisado uma mina”.
“A dormência vai passar”, pensou. “Vai levar tempo, mas vou conseguir
fazê-lo, ou o Faber fá-lo-á por mim. Em algum lugar, alguém vai conseguir
dar-me de volta o rosto e as mãos que eu tinha, tal como eles eram. Até o
sorriso, aquele sorriso que parecia ter sido queimado no meu rosto,
desapareceu. Sem ele sinto-me perdido”.
As estações do metro passavam por ele a toda a velocidade, azulejos
creme, negrume, azulejos creme, negrume, números e negrume, mais
negrume, tudo se somando consecutivamente.
Certa vez, quando era uma criança, sentara-se numa duna amarela junto
ao mar, num dia azul e quente de verão, a tentar encher uma peneira de
areia, porque um primo lhe dissera cruelmente: “enche-a de areia e dou-te
uma moeda”. E quanto mais areia metia na peneira, mais depressa esta
passava pela rede com um sussurro morno. Tinha as mãos cansadas, a areia
escaldava e a peneira continuava vazia. Sentado ali, naquele meio de julho,
sem um som, sentiu as lágrimas descerem-lhe pelas faces.
À medida que o metro o sacudia ao atravessar todas as caves mortas da
cidade, lembrou-se da terrível lógica daquela peneira. Olhou para baixo e
reparou que trazia a Bíblia aberta. Havia gente ali por perto, mas manteve o
livro aberto nas mãos e ocorreu-lhe um pensamento ridículo: se lêssemos
um livro todo e muito rapidamente, talvez alguma daquela areia ficasse na
peneira. Mas pôs-se a ler e as palavras caíam todas. E pensou “daqui a umas
horas terei de entregar isto ao Beatty, por isso tenho de captar todas as
frases, memorizar cada linha, tenho de o fazer”.
Apertou o livro nas mãos.
Soaram trombetas.
— Dentífrico Denham!
“Cala-te”, pensou ele. “Olhai os lírios do campo”.
— Dentífrico Denham!
“Não trabalham…”
— Dentífrico …
“Olhai os lírios do campo, cala-te, cala-te!”
— … Denham!
Escancarou o livro e passou as mãos pelas páginas, como se fosse cego,
procurando absorver a forma individual de cada letra, sem pestanejar.
— Denham! D-E-N…
“Não trabalham nem…”
Um sussurro poderoso de areia quente através da peneira.
— Só com Denham!
“Olhai os lírios… os lírios… os lírios…”
— Colutório Denham!
— Cala-te, cala-te, cala-te!
Foi uma súplica, um grito tão impressionante que Montag deu por si de
pé, com os ocupantes da carruagem a olharem-no em choque e a recuarem,
afastando-se daquele homem louco de rosto congestionado, boca seca e
tremente e um livro aberto na mão. Os mesmos ocupantes que, uns
momentos antes, tinham estado a bater os pés ao ritmo de Den-tí-frico
Denham, Colu-tório Denham, Den-tí-frico Denham, Den-tí-frico Denham,
um dois, um dois três, um dois, um dois três. Os mesmos ocupantes cujas
bocas tinham estado a torcer ligeiramente as palavras Den-tí-frico Den-tí-
frico Den-tí-frico. Em retaliação, o sistema de rádio do metro vomitou sobre
Montag uma tonelada de música feita com instrumentos de lata, cobre,
prata, aço e latão. Os ocupantes da carruagem foram esmagados até à
submissão. Não fugiram pois não tinham para onde fugir: o enorme
comboio a pressão de ar continuava a sua marcha pelo túnel subterrâneo.
— Lírios do campo!
— … Denham!
— Lírios, raios o partam!
As pessoas continuavam a olhá-lo com espanto.
— Chamem o segurança!
— O homem não regula…
— Estação de Knoll View!
O metro abrandou para a próxima paragem.
— Knoll View!
Um grito.
— Denham!
Um sussurro.
A boca de Montag quase não se mexia.
— Lírios…
As portas da carruagem abriram-se com um assobio. Montag preparou-se
para sair. As portas soluçaram e começaram a fechar-se. Esgueirando-se
como pôde por entre os outros passageiros, com a mente aos gritos,
conseguiu enfiar-se mesmo a tempo por entre as portas que se fechavam.
Correu pelo piso de azulejo branco, subiu os túneis ascendentes a pé,
ignorando as escadas rolantes, porque queria sentir os pés a baterem no
chão, os braços a balançarem, os pulmões a contraírem-se, a garganta a
enrouquecer com o ar. Lá atrás, ouvia ainda uma voz perdida: Denham,
Denham, Denham… O comboio silvou como uma cobra e desapareceu no
buraco.

— Quem é?
— Montag.
— O que quer?
— Deixe-me entrar.
— Não fiz nada!
— Estou sozinho, porra!
— Jura?
— Juro!
A porta da casa abriu-se lentamente. Faber esticou a cabeça para fora, e,
àquela luz, pareceu muito velho, muito frágil e muito assustado. Parecia não
ter saído de casa há muitos anos. O seu tom de pele era quase o mesmo do
estuque das paredes lá dentro. A sua boca e as faces eram esbranquiçadas, o
seu cabelo estava todo branco e os seus olhos tinham-se tornado quase
opacos, com o branco a misturar-se com o azul. Mas ao aperceber-se do
livro que Montag trazia debaixo do braço, Faber deixou de parecer tão
velho e tão frágil. Lentamente, foi perdendo o medo.
— Desculpe. Temos de ser cuidadosos.
Voltou a olhar para o livro e não se conteve.
— Então sempre é verdade…
Montag entrou em casa. A porta fechou-se.
— Sente-se.
Faber recuou sem tirar os olhos do livro, como se receasse que ele
pudesse desaparecer se o fizesse. Atrás dele, uma porta entreaberta revelava
um quarto, onde, em cima de uma mesa de madeira, se podia ver um monte
de ferramentas de aço e máquinas. Montag conseguiu apenas um relance,
antes de Faber se aperceber do que atraia a atenção do visitante e virar-se
rapidamente para fechar a porta do quarto, permanencendo depois um
instante a segurar a maçaneta com a mão tremente. Ao voltar-se, lançou um
olhar inseguro a Montag, que estava agora já sentado, com o livro sobre o
colo.
— Esse livro… Onde é que…
— Roubei-o.
Pela primeira vez, Faber ergueu o olhar e encarou de frente o de Montag.
— Você tem coragem.
— Não. A minha mulher está a morrer. Uma amiga minha já morreu.
Alguém que poderia ter sido uma amiga foi queimada viva há menos de
vinte e quatro horas. Você é a única pessoa de que me lembrei que me pode
ajudar. A ver. A ver…
As mãos de Faber, pousadas sobre os joelhos, ardiam de comichão.
— Dá-me licença?
— Ah, sim. Desculpe.
Montag deu-lhe o livro.
— Já há muito tempo… Não sou um homem religioso, mas há muito
tempo que não vejo uma.
Folheou o livro, parando aqui e ali para ler alguns excertos.
— É tão bom como me lembrava — prosseguiu. — Meu Deus, como eles
mudaram isto para as nossas “salas de ecrãs”! Cristo é agora um membro da
“família”. Já me perguntei se Deus reconhecerá o Seu próprio filho, da
maneira como o têm vestido. Ou será melhor dizer despido?
Transformaram-no num chupa-chupa, açucarado e caramelizado, quando
não o põem a fazer referências a alguns produtos comerciais de que todos
os crentes necessitam absolutamente.
Faber fez uma pausa para cheirar o livro.
— Sabia que os livros cheiram a noz-moscada ou a uma dessas
especiarias exóticas? Adorava cheirá-los quando era um miúdo. Havia
tantos e belos livros, antes de os termos deixado desaparecer!
Ia folheando enquanto falava.
— Senhor Montag, está a olhar para um cobarde. Eu vi para onde as
coisas se estavam a encaminhar, há muito tempo. E não disse nada. Sou um
dos inocentes que podiam ter intervindo quando ninguém dava ouvidos aos
“culpados”, mas não o fiz e, assim, tornei-me culpado também. E quando
finalmente montaram a estrutura para queimarem os livros, usando os
bombeiros, limitei-me a resmungar e deixei-me estar, porque, por essa
altura, já não restava mais ninguém com quem pudesse resmungar ou gritar
em conjunto. Agora é tarde de mais.
Faber fechou a Bíblia.
— Bem, e se me contasse o que o trouxe?
— Já ninguém ouve. Nem sequer consigo falar com as paredes porque
elas estão a gritar comigo. Já não consigo falar com a minha mulher, que
passa a vida a ouvir as paredes. Só preciso de alguém que ouça o que tenho
a dizer, e talvez, se conseguir dizer o suficiente, consiga fazer algum
sentido. E quero que me ensine a entender o que leio.
Faber examinou o rosto magro e hirsuto de Montag.
— O que foi que o perturbou? O que lhe fez cair o lança-chamas da mão?
— Não sei. Temos tudo o que precisamos para sermos felizes, mas não
somos felizes. Há algo que falta. Olhei em volta. A única coisa que eu tinha
a certeza absoluta que faltava eram os livros que eu tenho queimado nestes
dez ou doze anos. Por isso pensei que talvez os livros pudessem ajudar-me.
— É um romântico. Isso teria até a sua piada, se o assunto não fosse tão
sério. Você não precisa de livros, precisa é do que costumava estar nos
livros. As mesmas coisas que poderiam ser providenciadas pelas “famílias”
dos ecrãs. O mesmo tipo de atenção e cuidado nos infinitos detalhes da vida
poderia ser projetado pela rádio e pela televisão, mas não é. Não, você não
está à procura de livros! Obtenha-o onde o conseguir encontrar, em discos
antigos, filmes antigos ou então em velhos amigos. Procure-o na natureza,
ou em si mesmo. Os livros eram apenas um tipo de recetáculo em que
guardávamos as coisas que tínhamos medo de perder. Em si mesmos, nada
têm de mágico. A magia está no que eles nos dizem, em como nos
apresentam uma única peça feita da costura de vários bocados do universo.
É claro que não poderia saber isto, é claro que ainda não entende o que
quero dizer com tudo isto. Mas, intuitivamente, está no caminho certo, e é
isso que conta.
— Faltam três coisas — prosseguiu Faber. — Número um: sabe porque é
que livros como este são tão importantes? Porque têm qualidade. E o que
significa a palavra “qualidade”? Para mim significa textura. Este livro tem
poros. Tem feições. Podíamos analisá-lo ao microscópio, e encontraríamos
vida por baixo da lamela, uma profusão de vida em movimento. Quanto
mais poros, quanto mais registos dos pequenos pormenores da vida tal
como ela é encontramos por centímetro quadrado numa folha de papel,
mais “literário” é o texto. Essa é, pelo menos, a minha definição. O
pormenor revelador. O pormenor fresco. Os bons escritores tocam muitas
vezes a vida. Os medíocres apenas lhe passam a mão pelo pelo. Os maus
violam-na e deixam-na para as moscas. Vê agora porque os livros são
temidos e odiados? Porque mostram os poros do rosto da vida. As pessoas
confortáveis querem apenas rostos lisos como cera, sem poros, sem pelos,
sem expressão. Vivemos num tempo em que as flores procuram viver à
custa de outras flores, em vez de se agarrarem ao solo fértil e subsistirem da
chuva. Mesmo o fogo-de-artifício, por muito bonito que seja, se baseia na
química da terra. Ainda assim, acreditamos que podemos continuar a
sustentar-nos de flores e fogos-de-artifício, sem completarmos o ciclo de
regresso à realidade. Conhece a lenda de Hércules e Anteu, o lutador
gigante, cuja força incrível dependia de ele manter os pés assentes na terra?
Mas quando Hércules o ergueu acima do solo, quando o arrancou pelas
raízes, Anteu morreu num instante. Se não há nessa lenda algo que nós,
hoje, nesta cidade, neste tempo, possamos retirar para nosso proveito,
estarei completamente doido. Bem, e esta é a primeira coisa que eu disse de
que iríamos necessitar: qualidade e textura na informação.
— E a segunda?
— Ócio.
— Oh, mas já temos imenso tempo livre!
— Tempo livre, sim. Mas tempo para pensar? Se não estamos a conduzir
a mais de cem à hora, sem espaço na cabeça para outra coisa que não seja o
perigo da situação, estamos em casa a jogar um jogo qualquer ou sentados
numa salinha rodeados de ecrãs de televisão. Porquê? Porque a televisão é
“real”. É imediata, tem dimensão. Diz-nos o que pensar e di-lo aos gritos.
Aquilo só pode ser certo para nós, parece tão certo. Leva-nos tão depressa
na enxurrada até às suas conclusões que a nossa mente não tem nem tempo
para protestar e pensar no absurdo de tudo aquilo.
— Mas a “família” é composta de “pessoas”.
— Desculpe?
— A minha mulher diz que os livros não são reais.
— Graças a Deus por isso! Podemos fechá-los e dizer: “Espera lá…”
Podemos ser Deus com eles. Mas quem já conseguiu desprender-se das
garras que nos envolvem numa sala de ecrãs? Estes fazem de nós o que
querem! São um ambiente tão real como o mundo lá fora. Tornam-se e são
a verdade. Podemos contradizer um livro através de um pensamento
racional. Mas, apesar de todo o meu conhecimento e o meu ceticismo,
nunca consegui discutir com uma orquestra de cem músicos, com a cor
saturada e a imagem em três dimensões, com tudo o que implica estar e
pertencer a essas incríveis salas com ecrãs em vez de paredes. Como vê, na
minha sala só encontra paredes de estuque. E olhe… — Mostrou a Montag
duas pequenas peças de borracha. — Para meter nos ouvidos quando viajo
de metro.
— Dentífrico Denham… não trabalham nem tecem — disse Montag,
com os olhos fechados. — E que há a fazer agora? Os livros poderão
ajudar-nos?
— Só se conseguirmos a terceira coisa essencial. Como disse, a primeira
é qualidade da informação. A segunda é ócio para digeri-la. E a terceira é o
direito de agirmos com base no que aprendemos com a interação das duas
primeiras. E não acho que um velho e um bombeiro desiludido possam já
fazer muito no estado em que as coisas estão…
— Eu posso arranjar livros.
— É muito arriscado.
— É o lado bom de se estar a morrer: quando não temos nada a perder,
corremos todos os riscos.
— Olhe, acabou de dizer uma coisa interessante e nem teve de a ler num
livro! — riu-se Faber.
— As coisas nos livros são assim? Mas eu apenas a disse sem pensar
muito!
— Tanto melhor. Não procurou embelezar o pensamento para me agradar
ou a si.
Montag inclinou-se para a frente.
— Esta tarde pensei que, se os livros valessem realmente a pena, talvez
pudéssemos arranjar uma máquina de impressão e imprimir mais
exemplares…
— Pudéssemos? Quem?
— Eu e o senhor.
— Oh, não!
Faber levantou-se.
— Mas deixe-me contar-lhe o meu plano…
— Se insistir nisso, vou ter de o convidar a sair.
— Mas não está interessado em saber?
— Não estou se o que tem para me dizer é o tipo de coisa que me pode
levar à fogueira. A única coisa que possivelmente me interessaria ouvir da
sua parte seria algo que envolvesse a destruição de toda a estrutura dos
bombeiros. Se o que tem para me sugerir é que imprimamos alguns livros e
que os escondamos em casas de bombeiros um pouco por todo o país, para
que as sementes da dúvida sejam semeadas entre os incendiários, então
direi “bravo”!
— Colocar os livros, ligar um alarme e ver as casas dos bombeiros a
arder, é isso que quer dizer?
Faber arqueou o sobrolho e fitou Montag como se estivesse a olhar para
um novo homem.
— Eu estava a brincar.
— Se achasse que isso seria um plano digno do risco, eu não teria outro
remédio se não acreditar em si.
— Não é possível ter esse tipo de garantias! Afinal de contas, quando
tínhamos todos os livros de que precisávamos, continuávamos a ter gente
desesperada e a atirar-se do alto de penhascos. Mas precisamos realmente
de um espaço para respirar. Precisamos de conhecimento. E talvez daqui a
mil anos escolhamos penhascos mais baixos de onde saltar. Os livros
também servem para nos lembrar dos loucos e estúpidos que somos. São a
guarda pretoriana de César, a sussurrar-lhe ao ouvido enquanto a parada
desfila na avenida: “Lembra-te, César, de que és mortal”. A maior parte das
pessoas não pode andar por todo o lado, falar com toda a gente, conhecer
todas as cidades do mundo: não tem tempo para isso, não tem dinheiro nem
tantos amigos assim. Não peça garantias. E não espere ser salvo por uma
coisa apenas, seja uma pessoa, uma máquina ou uma biblioteca. Vá-se
salvando a si um pouco, e se se afogar, ao menos morra a saber que se
dirigia para a costa.
Faber voltou a levantar-se e começou a andar de um lado para o outro na
sala.
— E então? — perguntou Montag.
— Está mesmo a sério?
— Absolutamente.
— É um plano diabólico, não haja dúvida — disse Faber, enquanto
olhava com nervosismo para a porta do quarto. — Ver os quartéis de
bombeiros a arder pelo país, ver esses viveiros de traidores destruídos… A
salamandra a devorar a própria cauda! Ah!
— Tenho uma lista das casas de todos os bombeiros. Com uma espécie
de organização subterrânea…
— Não podemos confiar nas pessoas, essa é a parte negativa do plano.
Além de mim e de si, quem mais atearia os fogos?
— Não há outros antigos professores, antigos escritores, historiadores,
linguistas?...
— Mortos ou velhos?
— Quanto mais velhos, melhor: passarão despercebidos. Deve conhecer
dezenas deles!
— Oh, há por aí muitos atores que já não interpretam uma peça de
Pirandello ou Shakespeare há anos porque essas peças eram demasiado
próximas do mundo real. Podíamos usar a raiva deles. E podíamos usar a
raiva honesta dos historiadores que já não escrevem uma linha há mais de
quarenta anos. Também podíamos organizar aulas para pôr gente a pensar e
a ler.
— Sim!
— Mas isso teria um efeito residual. A cultura foi destruída de cima a
baixo. O esqueleto dela tem de ser fundido e reconstruído. Não é tão
simples como pegar num livro que tivesse sido esquecido em cima de uma
mesa cem anos antes. Lembre-se de que os bombeiros raramente são
necessários. O público há muito que perdeu o hábito de ler. O que os
bombeiros fornecem agora é apenas um circo ocasional em que as casas são
incendiadas para atrair as multidões que vão ver o espetáculo do fogo. Mas
não passa de uma atração de feira secundária, quase desnecessária para
manter o estado das coisas. Já quase ninguém quer revoltar-se. E os poucos
que querem, como eu, assustam-se com qualquer coisa. Consegue dançar
com mais energia do que o Palhaço Branco, gritar mais alto do que o Sr.
Artifício e as “famílias” da televisão? Se consegue, então vai conseguir
triunfar, Montag. Seja como for, é um louco: as pessoas estão a divertir-se.
— Estão é a suicidar-se! A matarem-se umas às outras!
Durante toda a conversa, um bombardeiro estivera a dirigir-se para Leste,
e só agora os dois homens pararam para ouvir e sentir aquele som do jato a
penetrá-los e a fazê-los tremer.
— Paciência, Montag. Deixe que a guerra acabe com as “famílias”. A
nossa civilização está a cair aos bocados. Mantenha-se afastado da
centrifugação.
— Tem de haver alguém a postos quando tudo explodir.
— Quem? Homens que citem Milton? Que se lembrem do que Sófocles
escreveu? Que lembrem aos sobreviventes que o homem também tem um
lado bom? Só vai haver mais gente a recolher pedras para se apedrejarem
mutuamente. Vá para casa, Montag. Vá dormir. Porque desperdiça as suas
horas finais a correr de um lado para o outro da gaiola, a negar que é um
esquilo?
— Então já não quer saber de nada?
— Quero tanto que fiquei doente.
— E não me vai ajudar?
— Boa noite. Boa noite.
Montag recolheu a Bíblia, e deu por si surpreendido com aquele
movimento da sua mão.
— Quer ficar com isto?
— Daria o meu braço direito.
Permanecendo ali uns segundos, Montag esperou pelo que se passasse a
seguir. As suas mãos, sem que as pudesse controlar, como dois homens a
trabalhar em conjunto, começaram a arrancar as folhas do livro, primeiro a
folha de rosto, depois a primeira e a segunda e as folhas seguintes.
— Idiota! Mas o que está a fazer?
Faber reagiu de imediato, como se tivesse sido atingido por um raio.
Atirou-se a Montag, mas este defendeu-se e deixou que as suas mãos
continuassem o seu trabalho. Mais seis folhas caíram ao chão. Pegou nelas
e amassou-as, mesmo sob o olhar do velho.
— Não, não! — disse este.
— Quem me pode impedir? Sou um bombeiro. Posso queimá-lo!
O velho ficou hirto, a olhá-lo.
— Não faria isso!
— Podia fazê-lo.
— O livro! Não o rasgue mais! — gritou Faber, deixando-se cair numa
cadeira a seguir, com o rosto muito branco e a boca a tremer. — Não me
faça sentir ainda mais cansado! Que quer?
— Preciso que me ensine.
— Tudo bem, tudo bem.
Montag pousou o livro. Começou a alisar as folhas amassadas uma a
uma, enquanto o velho o observava com um ar fatigado.
Como se estivesse a acordar, Faber abanou ligeiramente a cabeça.
— Tem dinheiro, Montag?
— Algum. Uns quinhentos dólares. Porquê?
— Traga-o. Conheço um homem que costumava imprimir o jornal da
nossa universidade, há cinquenta anos. Foi o ano em que, no início do novo
semestre, descobri que apenas um aluno se tinha inscrito para as aulas de
História do Teatro de Ésquilo a O’Neill. Está a ver? Como uma bela estátua
de gelo a derreter ao sol. Lembro-me de que os jornais morriam como
enormes traças. Ninguém os queria de volta. Ninguém sentia falta deles. E
foi então que o governo, vendo vantagens no facto de pôr as pessoas a
lerem apenas sobre lábios apaixonados e socos no estômago, começou a
recorrer aos vossos lança-chamas para tratar da situação. Enfim, o que lhe
quero dizer é que conheço um impressor desempregado. Podemos começar
a imprimir alguns livros, e esperar que a guerra quebre o padrão atual e nos
dê o impulso de que precisamos. Algumas bombas e vai ver como as
“famílias” nas paredes das casas, tal como ratazanas de pantomima, se
calam de vez! No silêncio que seguirá, o nosso pequeno sussurro poderá
encontrar alguns ouvidos atentos.
Ambos olharam para o livro em cima da mesa.
— Tentei recordar-me — disse Montag. — Mas, raios o partam, varre-se-
me da cabeça assim que me viro. Como gostava de ter algo para dizer ao
Comandante! Ele leu muitos livros e sabe todas as respostas, ou assim
parece. Tem uma voz como manteiga. Tenho medo que me convença a
regressar ao que eu era. Há apenas uma semana estava com uma mangueira
de querosene nas mãos e a pensar no excitante que aquilo era.
O velho anuiu com a cabeça.
— Os que não sabem construir acabam por destruir. É algo tão antigo
como a História ou a delinquência juvenil.
— Então é isso que sou, um delinquente?
— Todos nós o somos um pouco.
Montag dirigiu-se para a porta principal.
— Não me pode dar uma ajuda nisto do Comandante dos bombeiros?
Preciso de um guarda-chuva para me abrigar. Tenho tanto medo de me
afogar se ele me convencer a regressar àquilo.
O velho manteve-se em silêncio, mas lançou um novo olhar nervoso à
porta do quarto. Montag apercebeu-se desse olhar.
— Que se passa?
Faber inspirou um grande golo de ar, manteve-o um segundo e exalou.
Voltou a fazê-lo, mantendo a boca firmemente fechada e os olhos fechados,
antes de exalar novamente.
— Montag… — disse finalmente, virando-se e encarando-o. — Venha
daí. E não é que eu ia mesmo deixá-lo ir-se embora assim? Não passo de
um velho tonto e cobarde.
Abriu a porta do quarto e deixou Montag entrar na pequena divisão da
casa, ocupada por uma mesa sobre a qual estavam pousadas algumas
ferramentas metálicas por entre rolos de fios metálicos de grossura
microscópica, bobinas e pequenos cristais.
— O que é isto?
— A prova da minha terrível cobardia. Vivi todos estes anos sozinhos, a
projetar imagens nas paredes com a minha imaginação. Brincar com coisas
eletrónicas, com transmissão de rádio, tem sido o meu passatempo. A minha
cobardia é tal que, para complementar o espírito revolucionário que vive à
sua sombra, tive de construir isto.
Pegou num minúsculo objeto verde de metal do tamanho de uma bala de
pequeno calibre.
— E como é que pude pagar tudo isto? Pois jogando na bolsa, é claro, o
último refúgio neste mundo para um intelectual perigoso e desempregado.
Dei-me bem, pude construir isto e esperei. Tenho estado para aqui à espera,
a tremer de medo, meia vida à espera de alguém que viesse falar comigo.
Não me atrevia a falar com ninguém. Mas naquele dia, lá no parque,
quando estivemos juntos, eu soube que mais tarde ou mais cedo viria
visitar-me, ainda que me fosse difícil saber se o faria com fogo ou com
amizade. Tenho isto pronto a usar há meses. Mas tenho tanto medo que
quase o deixei sair pela porta fora!
— Parece uma Concha.
— Mas faz algo que a Concha não faz: ouve! Se o colocar no ouvido, eu
posso ficar aqui no conforto da minha casa, a aquecer os meus ossos
medrosos enquanto vou ouvindo e analisando o mundo dos bombeiros,
descobrindo-lhe as fraquezas, livre de qualquer perigo. Eu serei a abelha-
rainha, a salvo na colmeia. Você será o zângão, o meu ouvido viajante. Se
tudo correr bem, poderemos colocar ouvidos em vários locais da cidade, em
vários homens, a escutar, a analisar. Se o zângão morre, estarei a salvo aqui
em casa, a cuidar do meu receio com o máximo de conforto e o mínimo de
risco. Vê como jogo pelo seguro, como sou desprezível?
Montag colocou a pequena bala verde no ouvido. O velho inseriu outra
num dos seus ouvidos e moveu os lábios.
— Montag!
A voz estava dentro da cabeça de Montag.
— Consigo ouvi-lo!
O velho riu-se.
— Também consigo ouvi-lo perfeitamente — sussurrou apenas Faber,
mas a sua voz soou de um modo claro na cabeça de Montag.
— Vá para o quartel quando for hora de o fazer — prosseguiu. — Estarei
consigo. Vamos ouvir juntos o que esse seu Comandante Beatty tem para
dizer. Sabe-se lá, até pode ser um dos nossos. Dir-lhe-ei o que deve dizer.
Vamos dar-lhe um bom espetáculo. Odeia-me, agora que lhe revelei esta
minha cobardia eletrónica? Deixo-o sair para a noite, com o risco de acabar
com a cabeça cortada, enquanto fico aqui na retaguarda à escuta...
— Todos fazemos o que nos compete — respondeu Montag.
Colocou a Bíblia nas mãos do velho.
— Fique com o livro. Tentarei arranjar outro para substituir este.
Amanhã…
— Irei ter com o impressor desempregado, sim. Pelo menos isso posso
fazer.
— Boa noite, professor.
— Qual quê? Estarei consigo durante toda esta noite. Serei a mosquinha
do vinagre a zumbir-lhe no ouvido quando precisar de mim. Mas boa noite
e boa sorte, mesmo assim.
A porta abriu-se e fechou-se de seguida. Montag deu por si de novo da
rua escura, de frente para o mundo.

No céu sentia-se a proximidade da guerra. A forma como as nuvens se


afastavam e voltavam a juntar-se, e o aspeto das estrelas, milhões delas a
nadarem entre as nuvens, como discos inimigos, e a sensação de que o céu
podia cair sobre a cidade a qualquer momento e transformá-la num monte
de cinzas, e envolver a lua em chamas vermelhas: era isso que aquela noite
transmitia.
Montag saiu da estação de metro com o dinheiro nos bolsos (tinha ido a
uma dependência bancária, aberta toda a noite e de serviço robotizado) e,
enquanto caminhava, ia ouvindo a Concha que tinha num dos ouvidos.
— Mobilizámos um milhão de homens. Se a guerra chegar, temos
garantida uma rápida vitória…
Uma música sobrepôs-se à voz e esta rapidamente se sumiu.
— Dez milhões de mobilizados, mas é melhor dizer que foi apenas um
milhão — disse-lhe Faber ao outro ouvido. — Não é tão preocupante.
— Faber?
— Sim?
— Não estou a pensar agora, estou apenas a fazer o que me foi dito,
como sempre. Disse-me para ir levantar o dinheiro e fi-lo. Nem pensei duas
vezes. Quando é que começo a agir pela minha própria cabeça?
— Já começou, ao dizer o que acabou de dizer. Vai ter de acreditar em
mim.
— Acreditei nos outros também!
— Sim, e olhe onde estamos. Vai ter de ligar o piloto automático durante
um tempo. Agarre-se ao meu braço.
— Não quero mudar de lado apenas para acabar a cumprir ordens. Para
isso mais vale nem mudar.
— Já começa a raciocinar!
Montag sentiu os seus pés a transportá-lo na direção de casa.
— Continue a falar.
— Gostaria que lhe lesse algo? Vou ler-lhe para que se lembre. Só durmo
cinco horas por noite. Nada para fazer, é o que é. Por isso, se quiser, posso
ler-lhe à noite até adormecer. Dizem que retemos coisas que ouvimos
mesmo quando estamos a dormir, se alguém no-las sussurrar ao ouvido.
— Sim.
— Deixa cá ver então.
De bem lá longe, do outro lado da cidade e da noite, chegou a Montag o
suave murmúrio de uma folha de livro.
— O Livro de Jó — continuou Faber.
A lua elevou-se no céu enquanto Montag caminhava e movia os lábios
quase impercetivelmente.

Estava em casa a comer uma refeição ligeira às nove horas quando a


porta da rua começou a falar e Mildred correu para ela como alguém que
fugisse da erupção do Vesúvio. A Sra. Phelps e a Sra. Bowles entraram e,
quase de imediato, enfiaram-se na boca do vulcão, ambas com um Martini
na mão. Montag parou de comer. Eram como um lustre de cristal
monstruoso a tilintar, estava habituado a ver os seus sorrisos de gato de
Cheshire nos ecrãs de parede da casa, e agora elas ali estavam a gritar uma
com a outra por cima do ruído da emissão de televisão.
Montag deu por si à soleira da porta da salinha, ainda a mastigar.
— Não estão todos uma maravilha?
— Maravilhosos!
— Você está muito bem, Millie!
— Muito bem!
— Está toda a gente tão gira!
— Tão gira!
Montag deixou-se ficar a observá-las.
— Tenha paciência — sussurrou-lhe Faber.
— Não devia estar aqui — respondeu Montag, quase como se sussurrasse
consigo mesmo. — Devia estar a caminho de sua casa com o dinheiro!
— Amanhã há tempo para isso. Cuidado!
— Este programa é uma maravilha, não é? — gritou Mildred.
— Uma maravilha!
Numa das paredes estava uma mulher a sorrir e a beber sumo de laranja
ao mesmo tempo. “Como é que ela consegue fazer as duas coisas ao mesmo
tempo”, pensou Montag, estupefacto. Nas paredes contíguas uma imagem
em raio-X da mesma mulher revelava o percurso da bebida refrescante até
ao deliciado estômago. De repente, a sala partiu num voo de foguetão em
direção às nuvens e depois mergulhou a pique sobre um oceano cor de lima,
onde peixes azuis comiam peixes vermelhos e amarelos. Um minuto depois,
três Palhaços Brancos em desenho animado estavam a arrancar os braços e
pernas uns dos outros, ao ritmo de uma banda sonora de risos enlatados.
Mais dois minutos e a sala saiu para fora da cidade, em direção a uma pista
onde carros a jato competiam loucamente, embatendo em tudo e uns nos
outros. Montag viu uma série de corpos projetados pelo ar.
— Millie, viu aquilo?
— Vi, vi!
Montag dirigiu-se a um dos ecrãs de parede, levou a mão atrás deste e
desligou-o no botão. As imagens esvaíram-se, como se um gigantesco
aquário cheio de peixes histéricos se fosse esvaziando.
As três mulheres viraram-se lentamente e olharam-no, primeiro com
óbvia irritação e depois antipatia.
— Quando acham que vai começar a guerra? — perguntou ele. — Noto a
ausência dos vossos maridos esta noite.
— Oh, eles saem e depois voltam, estão sempre fora e dentro — disse a
Sra. Phelps. — É um corrupio. O Exército chamou o Pete ontem. Volta para
a semana. Foi o que o Exército disse. Uma guerra rápida. Quarenta e oito
horas, disseram, e depois estão todos de regresso a casa. Foi o que o
Exército disse. Guerra rápida. Chamaram o Pete ontem e disseram que volta
para a semana. É rápido…
As três mulheres pareciam tensas e olhavam nervosamente para os ecrãs
vazios e pardos.
— Não estou preocupada — disse a Sra. Phelps. — Deixo que seja o Pete
a ralar-se. — Soltou um risinho. — Deixo que seja o Pete a ralar-se. Eu não,
eu não estou nada preocupada.
— Dizem que só morrem os maridos das outras mulheres.
— Também já ouvi isso. Nunca conheci nenhum homem que tivesse
morrido numa guerra. Que tivesse caído de um prédio, isso sim, como o
marido da Gloria na semana passada. Mas numa guerra? Não.
— Não numa guerra — continuou a Sra. Phelps. — Seja como for, o Pete
e eu sempre dissemos: nada de lágrimas, nada dessas coisas. Já vamos no
terceiro casamento, e somos independentes. O que é preciso é ser-se
independente, foi o que sempre dissemos. Ele disse: se eu morrer, tu
continua com a tua vida e não chores, casa de novo e não penses em mim.
— Isso agora lembrou-me uma coisa — disse Mildred. — Viram aquela
novela de cinco minutos da Clara Dove ontem à noite? Era sobre uma
mulher que…
Montag manteve-se em silêncio, a olhar para os rostos das três mulheres
da mesma forma que, certa vez, olhara para os rostos dos santos numa
estranha igreja onde tinha entrado quando era uma criança. Aqueles rostos
esmaltados nada lhe diziam, ainda que tivesse falado com eles e tivesse
permanecido muito tempo naquela igreja, tentando ser daquela religião,
tentando perceber de que religião se tratava, tentando absorver suficiente
incenso e aquele pó especial nos pulmões e na sua corrente sanguínea para
se sentir tocado e interessado no significado daqueles homens e mulheres
coloridos, com olhos de porcelana e lábios de rubi. Mas não sentiu nada.
Nada. Limitou-se a ser um passeio a uma loja como as outras, mas naquela
a sua moeda era estranha e inútil e a sua paixão era fria, mesmo quando
tocava na madeira, no estuque e na cerâmica. E era assim que se sentia
agora, na sua sala, com aquelas mulheres a retorcerem-se nos cadeirões sob
o seu olhar, a acenderem cigarros e a exalarem fumo, a tocarem nos seus
cabelos cor de chama e a examinarem as suas unhas reluzentes, como se
receassem que o olhar dele as tivesse queimado. No silêncio, os rostos delas
adquiriram um aspeto lúgubre. Enquanto Montag mastigava os últimos
bocados de comida, eles inclinaram-se para a frente e puseram-se a escutar
a sua respiração febril. As três paredes vazias da sala pareciam agora as
testas pálidas de três gigantes num sono sem sonhos. Montag teve a
impressão de que se tocasse nessas testas, iria sentir nos dedos uma fina
película de suor salgado. A transpiração foi aumentando com o prolongar do
silêncio e do tremor subaudível que abalava as mulheres, consumidas nas
chamas da tensão. A qualquer momento podiam soltar um silvo prolongado
e explodir.
Montag moveu os lábios.
— Vamos falar.
As mulheres estremeceram e olharam-no.
— Como vão as suas crianças, Sra. Phelps?
— Sabe bem que não tenho filhos! Meu Deus, ninguém no seu perfeito
juízo quereria ter filhos! — respondeu ela, algo insegura acerca da razão da
sua antipatia para com aquele homem.
— Não é bem assim — disse a Sra. Bowles. — Eu tive dois filhos por
cesariana. Não vale a pena passarmos por aquela agonia por causa de um
bebé. O mundo tem de se reproduzir, não é? A raça tem de continuar. Além
disso, eles por vezes parecem-se connosco, e isso é muito engraçado. As
duas cesarianas deram conta do recado. Oh, mas olhe que isso não é
necessário, disse-me o meu médico, a senhora tem ancas para um parto
normal, mas eu fiz questão.
— Cesariana ou não, as crianças dão-nos cabo da vida — disse a Sra.
Phelps. — Deve estar doida!
— Ponho-as na escola nove dias em cada dez, e só as tenho em casa uns
três dias por mês — retorquiu a Sra. Bowles, tentando conter um risinho. —
Não é assim tão mau. Meto-as na salinha e ligo os ecrãs. É como lavar
roupa: enfiá-la na máquina e fechar a porta. Tanto me podem dar um beijo
como um pontapé, é certo, mas graças a Deus que posso responder-lhes
com outro pontapé!
As mulheres mostraram as línguas enquanto riram.
Mildred permaneceu sentada e, ao ver Montag ainda na soleira da porta,
bateu palmas.
— Vamos falar de política, para agradar ao Guy!
— Muito bem — disse a Sra. Bowles. — Votei nas últimas eleições, tal
como toda a gente, e dei o meu voto ao presidente Noble. Acho que é um
dos homens mais bonitos que já chegaram à presidência.
— Ai, e o homem contra quem ele concorreu?
— Não valia grande coisa, pois não? Era assim para o atarracado, um
bocado rústico, tinha a barba mal feita e não se penteava como deve ser.
— Mas o que deu aos de Fora para fazerem dele o seu candidato? Não se
põe um homem baixinho daqueles a concorrer contra um alto. Além disso,
quase não se ouvia o que ele dizia, e das palavras dele que lá fui
conseguindo ouvir não entendi nada!
— Era gordo, também, e não se vestia para o esconder. Não admira que o
Winston Noble tenha ganho com tanta facilidade. Até os nomes ajudavam à
escolha: comparem só Winston Noble com Hubert Hoag. Pensem nisso uns
dez segundos e conseguem adivinhar o resultado final.
— Raios o partam, mas o que é que sabem ao certo acerca do Hoag e do
Noble? — lançou Montag.
— Mas se nem há seis meses estiveram os dois nos nossos ecrãs!... Um
estava sempre a mexer no nariz, deixou-me louca.
— Não vai querer que votemos num homem desses, pois não, Sr.
Montag? — disse a Sra. Phelps.
Mildred aproveitou a deixa.
— Vá, Guy, vai lá embora e não nos ponhas nervosas!
Montag saiu, mas regressou à sala pouco depois, com um livro na mão.
— Guy!
— Que se lixe! Que se lixe tudo!
— Mas isso aí não é um livro? — perguntou a Sra. Phelps, a pestanejar.
— Pensei que hoje em dia o treino especial dos bombeiros fosse todo feito
através de filmes. Está a ler algum tipo de manual?
— Qual manual! Isto é poesia!
— Montag…
Um sussuro ao seu ouvido.
— Deixe-me em paz!
Montag sentiu estar à roda num turbilhão de sons e zumbidos.
— Montag, espere, não…
— Não as ouviu? Não ouviu estes monstros a falarem sobre monstros? A
forma como elas tagarelam sobre pessoas, sobre os seus filhos, sobre elas
mesmas e os maridos, a forma como falam da guerra, porra! Estou aqui e
nem consigo acreditar!
— Fique claro que eu não disse uma única palavra sobre qualquer guerra
— disse a Sra. Phelps.
— Quanto a poesia, detesto — disse a Sra. Bowles.
— Já leu alguma?
— Montag… — A voz de Faber soava-lhe roufenha ao ouvido. — Vai
deitar tudo a perder. Cale-se, idiota!
As três mulheres levantaram-se.
— Sentem-se!
Sentaram-se.
— Vou para casa — disse a tremer a Sra. Bowles.
— Montag, Montag, por favor, por amor de Deus!... — suplicou Faber.
— O que pretende com isto?
— E porque não nos lê um dos poemas desse seu livrinho — anuiu a Sra.
Phelps. — Acho que seria muito interessante.
— Isso não está correto! — protestou a Sra. Bowles. — Não podemos
fazer isso!
— Bem, olhe para o Sr. Montag: ele quer fazê-lo, eu sei que quer —
retorquiu a Sra. Phelps, enquanto olhava nervosamente para as paredes
vazias que as envolviam. — E se o ouvirmos com atenção, o Sr. Montag
ficará satisfeito e talvez então possamos fazer outra coisa.
— Montag, se fizer isso eu corto a ligação, abandono-o! — O pequeno
comunicador picava-lhe o ouvido. — Qual a finalidade disto? Que espera
provar?
— Quero assustá-las! Quero pregar-lhes o susto da vida delas!
Mildred olhou para um ponto vago no ar.
— Mas com quem estás a falar, Guy?
A agulha de prata voltou a picar-lhe o cérebro.
— Ouça, Montag, só há uma maneira de sair disto bem: finja que é uma
piada, dê-lhes a perceber que não está louco. Depois… dirija-se ao
incinerador na parede e atire o livro para lá!
Mildred antecipara-se já.
— Minhas senhoras — disse, numa voz tremida — uma vez por ano,
todos os bombeiros são autorizados a levarem para casa um livro antigo,
para mostrarem às famílias a parvoíce de tudo aquilo, para que vejam como
os livros podem deixar as pessoas nervosas e até loucas. A surpresa que o
Guy preparou para esta noite foi a leitura de uma amostra, para que
saibamos como as coisas eram tão confusas nessa altura e para que não
voltemos a preocupar as nossas cabecinhas com lixo desse. Não foi,
querido?
Ele quase esmagou o livro nos punhos cerrados.
— Diga que sim…
A sua boca mexeu-se ao som da voz de Faber.
— Sim.
Mildred arrancou-lhe o livro das mãos, a rir.
— Olha, lê-nos esta parte. Não, espera… Está aqui aquela outra muito
engraçada que leste hoje à tarde em voz alta. Minhas senhoras, não vão
entender uma palavra, é uma autêntica salgalhada. Vá, Guy, lê essa página,
querido.
Ele olhou para a página aberta.
Dentro do seu ouvido, uma mosca agitou suavemente as asas.
— Leia.
— Qual é o título, querido?
— A Praia de Dover.
Tinha a boca adormecida.
— Agora lê de modo claro e devagar.
A sala estava quente como um forno, ele estava em chamas, ele estava
gelado. Elas sentaram-se nos três cadeirões no meio de um deserto vazio, e
ele ficou de pé, vacilante, à espera que a Sra. Phelps acabasse de ajeitar a
bainha do vestido e que a Sra. Bowles tirasse os dedos do cabelo. Então
começou a ler numa voz lenta e algo trôpega, que se foi tornando mais
firme à medida que avançava linha a linha no poema, uma voz que
conseguiu atravessar a imensidade do deserto até ao infinito incolor e que
envolveu as três mulheres ali sentadas no centro daquele vácuo enorme e
escaldante.

O MAR DA FÉ

Foi outrora também enorme, e envolvia as costas de toda a terra


Como as pregas de um garrido e apertado cinto
Mas agora apenas oiço
O seu rugido longo, melancólico e distante,
Que se afasta sob o bafo do vento da noite,
Ao longo das vastas e desoladas margens
Sobre todos os seixos lisos do mundo.

Sob o peso das três mulheres, os cadeirões chiaram.


Montag rematou a leitura.

Ah, meu amor, falemos a verdade


Um ao outro! Pois o mundo, que parece
Estender-se à nossa frente como uma terra de sonhos,
Tão variado, tão belo, tão novo,
Não possui na verdade nem alegria, nem amor, nem luz
Nem certeza, nem paz, nem alívio para a dor;
E aqui estamos como numa planície ensombrada
Varrida por alarmes confusos de combates e fugas,
2
Onde exércitos de ignorantes se enfrentam na noite.

A Sra. Phelps estava a chorar.


As outras, no meio do deserto, observavam-na enquanto o seu choro
aumentava de volume e o seu rosto se ia espremendo até quase perder as
feições. Permaneceram sentadas, sem a tocar, perplexas ante tal espetáculo.
Ela soluçava descontroladamente. O próprio Montag estava chocado com
aquela cena, quase comovido.
— Então, então? — disse Mildred. — Está tudo bem, Clara. Vá, acabe lá
com isso. Então, Clara, que foi?
— Eu… Eu… — soluçou a Sra. Phelps — Não sei, não sei… Não sei
mesmo… Oh!
A Sra. Bowles levantou-se e olhou para Montag.
— Está a ver? Eu sabia! Era isto mesmo que eu queria provar! Sabia que
isto iria acontecer. Eu sempre disse que a poesia leva às lágrimas, que a
poesia leva ao suicídio e ao choro e a coisas horríveis, que leva à doença!
Todo esse disparate sentimental! E agora tive a prova disso mesmo diante
de mim. Sr. Montag, é um homem mau! Muito mau!
— E agora… — começou Faber.
Montag deu por si a virar-se e a caminhar em direção à ranhura na parede
e a enfiar o livro pelo entalhe de latão, lançando-o às chamas.
— Palavras sem nexo, tolas, palavras tolas e desprezíveis, que ferem! —
continuou a Sra. Bowles. — Porque se magoam assim as pessoas? É preciso
provocá-las com coisas dessas? Como se não houvesse já no mundo dor
suficiente!
— Vá, Clara, então? — suplicava Mildred, puxando pelo braço da amiga.
— Vá lá, toca a animar-se! Vamos ligar a “família” agora, sim? Vá, pode
ligá-la. Vamos rir e ser felizes agora, acabaram-se as lágrimas! Vamos fazer
uma festa!
— Não — disse a Sra. Bowles. — Eu vou já diretinha para casa. Se quer
visitar a minha casa e a minha “família”, pois muito bem. Mas não volto à
casa deste bombeiro maluco enquanto for viva!
— Vá para casa — disse Montag, fixando serenamente o seu olhar nela.
— Vá para casa e pense no seu primeiro marido divorciado e no seu
segundo marido morto num avião a jato e no seu terceiro marido com os
miolos estoirados, vá para casa e pense nas dezenas de abortos que já fez,
vá para casa e pense nisso e no raio das suas cesarianas também, e nos seus
filhos que a odeiam! Vá para casa e pense em como tudo isso aconteceu e
no que fez para o impedir. Vá para casa, vá! — gritou — Antes que lhe
pregue um par de estalos e a corra porta fora!
A porta da rua fechou-se com estrondo e a casa ficou vazia. Montag
permaneceu sozinho, ali no meio da sala com as paredes cor de neve suja
em pleno inverno.
Da casa de banho vinha o som de água a correr. Ouviu Mildred a sacudir
o frasco de comprimidos na mão.
— Que loucura, Montag, que loucura, meu Deus!...
— Cale-se!
Arrancou a pequena bala verde do ouvido e enfiou-a no bolso.
— Louco… louco… — silvava ela ainda, debilmente.
Procurou pela casa e deu com os livros que Mildred escondera atrás do
frigorífico. Faltavam alguns. Sabia que ela iniciara o seu próprio processo
lento de se livrar daquela dinamite que tinha em casa, barra a barra. Mas
agora não se sentia zangado, apenas cansado e aturdido com o que acabara
de fazer. Levou os livros para o quintal das traseiras e escondeu-os nos
arbustos junto à cerca. “Por esta noite, serve”, pensou, “no caso de ela
decidir queimar mais alguns”.
Regressou a casa.
— Mildred? — chamou, enquanto batia à porta do quarto às escuras. Não
se ouviu nada.
Lá fora, a atravessar o relvado a caminho do trabalho, tentou não ver
quanto a casa de Clarisse McClellan parecia escura e vazia…
A caminho da baixa da cidade, sentiu-se tão completamente só com o
terrível erro que acabara de cometer que começou a ansiar pelo estranho
calor e a bondade que há numa voz familiar e bondosa a meio da noite.
Apesar das poucas horas desde o seu encontro, parecia-lhe que conhecia
Faber desde sempre. Agora sabia que era duas pessoas: acima de tudo, era o
Montag que nada sabia, que nem sabia que era um tolo, apesar de o
suspeitar, mas era também o velho que falava e falava com ele, enquanto o
metro o levava de um extremo da cidade noturna ao outro num longo
sobressalto. Nos dias que se seguiriam, e nas noites sem luar e nas noites
em que a lua brilhasse intensamente sobre a terra, o velho continuaria a sua
conversa interminável, gota a gota, pedra a pedra, escama a escama. A sua
mente encher-se-ia, por fim, e ele deixaria de ser Montag: fora isto que o
velho lhe dissera, lhe assegurara, lhe prometera. Seria Montag-mais-Faber,
fogo mais água, e então, um dia, depois de que tudo se tivesse misturado,
fervido e fermentado, deixaria de haver fogo e água e passaria a haver
apenas vinho. De duas coisas separadas e opostas, nasceria uma terceira. E
um dia olharia para trás, para aquele tolo que ele fora, e conhecê-lo-ia.
Conseguia sentir nesse preciso momento o início dessa longa caminhada, da
partida, da fuga do que ele tinha sido até aí.
Era bom ouvir aquele sussurro de besouro, aquele zumbido de mosquito
indolente, o murmúrio em delicada filigrana da voz do velho,
repreendendo-o de início e logo a seguir consolando-o àquela hora tardia da
noite, quando emergiu da estação do metro e se encaminhou para o quartel
de bombeiros.
— Seja compreensivo, Montag. Não os azucrine e espicace: afinal de
contas, foi um deles até há pouco tempo. São tão confiantes que julgam ir
durar para sempre. Mas não durarão. Não sabem que isto não passa de um
meteoro gigantesco a girar pelo espaço e a deixar um rasto de chamas muito
bonito, mas que terá de bater em algo, mais dia, menos dia. Eles veem
apenas o brilho das chamas, o belo fogo, como você via. É claro que velhos
que ficam em casa com medo, a cuidarem dos seus ossinhos frágeis, não
têm o direito de criticar ninguém. Mas você quase matou o plano à
nascença, Montag! Cuidado! Estou do seu lado, lembre-se. Entendo porque
o fez, e tenho de confessar que a sua raiva me estimulou. Fez-me sentir
jovem outra vez! Mas agora quero voltar a sentir-me velho e quero
contagiá-lo com um pouco da minha cobardia esta noite. Quando daqui a
pouco estiver com o comandante Beatty, quero que ande cuidadosamente à
volta dele, quero que me deixe ouvi-lo e me deixe analisar bem a situação.
A sobrevivência é a nossa única chance. Esqueça aquelas pobres tontas…
— Acho que as fiz mais infelizes do que alguma vez se sentiram — disse
Montag. — Fiquei chocado a ver a Sra. Phelps a chorar. Talvez tenham
razão, talvez seja melhor não enfrentar as coisas, fugir, divertir-se. Não sei.
Sinto-me culpado…
— Mas não deve! Se não houvesse guerra, se o mundo estivesse em paz,
eu diria muito bem, divirtam-se! Mas não pode voltar a ser apenas um
bombeiro, Montag. O mundo não está nada bem.
Montag suava.
— Está a ouvir-me?
— São os meus pés — disse Montag. — Não consigo mexê-los. Sinto-
me tão estúpido. Não consigo andar!
— Ouça. Tenha calma. Eu sei, eu sei. Tem medo de cometer erros. Não
tenha! Os erros podem ser úteis. Quando era mais jovem, fartei-me de
exibir a minha ignorância por aí. E deram-me na cabeça. Quando cheguei
aos quarenta, a minha cabeça tinha sido afinada e transformada num
excelente instrumento de precisão. Se esconder a sua ignorância, ninguém
lhe vai dar na cabeça e nunca irá aprender seja o que for. Agora, ponha
esses pés a caminho do quartel! Somos gémeos, já não estamos sós, não
estamos isolados em salas separadas, sem qualquer contacto. Se precisar de
ajuda quando o Beatty começar a interrogá-lo, estarei aqui no seu ouvido a
tirar notas.
Montag sentiu o pé direito a avançar, e depois o esquerdo.
— Não me abandone, Faber!
O Cão Mecânico não se encontrava lá. O canil estava vazio, o quartel
jazia no silêncio das suas paredes de estuque e a Salamandra cor de laranja
dormia com a barriga cheia de querosene e os lança-chamas pousados sobre
os seus flancos. Montag avançou por aquele silêncio adentro, tocou no
varão metálico e deslizou verticalmente no ar escuro do quartel, olhando
para o canil vazio, com o coração a bater. Faber era agora uma traça
adormecida dentro do seu ouvido.
Beatty estava junto ao orifício, mas com as costas viradas para o varão,
como se não estivesse à espera de ninguém.
— Olha, olha — disse para os seus homens que jogavam às cartas —
aqui vem um bicho muito estranho que em todas as línguas se chama
“tolo”.
Estendeu uma mão com a palma virada para cima, como se à espera de
um presente. Montag deu-lhe o livro. Sem sequer olhar para o título, Beatty
atirou-o ao caixote do lixo e acendeu um cigarro.
— “E os melhores tolos são os que sabem um pouco”3. Seja bem-vindo
de volta, Montag. Espero que continue connosco, agora que lhe passou a
febre e está curado. Vai um joguinho de póquer?
Sentaram-se e as cartas foram distribuídas. Sob o olhar de Beatty,
Montag sentiu o peso da culpa nas mãos. Os seus dedos eram como furões
que tivessem feito algo mau e agora eram incapazes de descansar, sempre a
mexerem-se, a tocarem, a enfiarem-se nos bolsos para fugirem ao olhar
ígneo de Beatty. Sentiu que se Beatty lançasse sobre elas o seu bafo, as suas
mãos murchariam e cairiam para os lados para nunca mais se reanimarem:
passariam o resto da sua vida escondidas e esquecidas sob as mangas dos
casacos. Estas eram, afinal, as mãos que tinham agido de moto-próprio,
como se não lhe pertencessem. Fora nelas que a ideia de roubar livros se
tinha manifestado pela primeira vez, de fugir com o Jó, a Ruth e o Willie
Shakespeare, e agora, no quartel, pareciam cobertas por luvas de sangue.
Por duas vezes, em trinta minutos, Montag teve de se levantar para ir
lavar as mãos à casa de banho. Quando voltou, escondeu-as por baixo da
mesa.
Beatty riu-se.
— Mostre lá as mãozinhas, Montag. Não é que desconfiemos de si, claro,
mas…
Todos riram.
— Perfeito — continuou Beatty. — A crise passou e tudo está bem: a
ovelha regressou ao rebanho. Todos somos ovelhas que já se afastaram do
rebanho. A verdade será sempre verdade até ao fim, gritámos. Nunca estão
sós os que se fazem acompanhar de nobres pensamentos, dissemo-nos.
“Doce alimento de conhecimento docemente pronunciado”, disse Sir Philip
Sidney. Mas, por outro lado, “as palavras são como folhas, e onde mais
abundam menos frutos de sensatez se encontram por baixo”. Alexander
Pope. Que acha disto, Montag?
— Não sei.
— Cuidado… — sussurrou Faber, num outro mundo muito distante.
— Ou disto, também de Pope: “um pouco de conhecimento é algo
perigoso. Deve-se beber tudo até ao fim ou então nem tocar nas águas da
fonte das Musas. Beber delas em goles curtos envenena o cérebro, e bebê-
las com sofreguidão torna-o sóbrio de novo”. É do mesmo ensaio. Que
retira destas palavras?
Montag mordeu o lábio.
— Eu digo-lhe — disse Beatty, sorrindo enquanto observava o seu jogo.
— O que lhe aconteceu foi que ficou um pouco bêbado. Leu umas linhas e
pronto, lá foi pelo precipício abaixo. Bum! Está pronto para rebentar com o
mundo, cortar cabeças, bater em mulheres e crianças, destruir a autoridade.
Eu sei, já passei por tudo isso.
— Estou bem — disse Montag nervosamente.
— Pare de corar. Não estou a espicaçá-lo, a sério. Sabe, Montag, tive um
sonho há uma hora. Tinha-me deitado para uma sesta. Nesse sonho eu e
você estávamos a discutir furiosamente sobre livros. Você, movido pela ira,
gritava-me citações. Eu rebatia calmamente cada ataque. “Poder”, dizia-lhe
eu. E você, a citar o Dr. Johnson: “O conhecimento é mais do que o
equivalente à força!” E eu: “Bem, meu caro rapaz, o Dr. Johnson também
disse que ‘não é sábio quem trocar uma certeza por uma incerteza’”. Deixe-
se ficar aqui entre os bombeiros, Montag. Tudo o resto é caos!
— Não ligue ao que ele lhe diz! — sussurrou Faber. — Está a tentar
confundi-lo. É manhoso. Cuidado!
Beatty riu-se.
— E você disse, citando: “A verdade virá à luz, o assassínio não
permanecerá escondido muito mais tempo!” E eu gritei-lhe, de bom humor:
“Meu Deus, ele fala apenas do seu próprio cavalo!” E “O Diabo consegue
citar as Escrituras em seu próprio benefício”. E você gritava: “Nestes
tempos tem-se em maior conta um louco coberto de ouro do que um santo e
sábio maltrapilho!” E eu murmurei suavemente: “A dignidade da verdade
perde-se no excesso de reclamação”. E você ripostou, a gritar, que “Os
cadáveres sangram à vista do assassino!” E eu, afagando-lhe a mão, disse:
“Que se passa, está com gengivite aguda?” E você guinchou
“Conhecimento é poder!” e “O anão aos ombros do gigante é o que vê mais
longe dos dois”. Eu resumi a minha opinião com rara serenidade: “A
loucura de se tomar uma metáfora por uma prova, uma torrente de
verborreia por uma fonte de verdades capitais e a nós mesmos por oráculos
é inata em todos nós, dissera certa vez o Sr. Valery”.
Montag sentia a cabeça a andar à roda. Parecia-lhe que alguém o tinha
sovado sem piedade, testa, olhos, nariz, queixo, ombros, braços, tudo lhe
doía. Quis gritar: “Não, cale-se, está a confundir tudo, páre com isso!”
Beatty levou os seus dedos graciosos ao pulso de Montag.
— Meu Deus, essa pulsação! Fui eu que o pus neste estado? Parece que
chegou da guerra ontem! Sirenes e sinos por todo o lado! Quer que continue
a falar? Gosto do seu ar de pânico. Swahili, hindi, inglês literário. Falo-as
todas. Uma espécie de excelente e ridícula dissertação, Willie!
— Aguente-se, Montag! — A traça esvoaçou dentro do seu ouvido. —
Ele está a tentar mistificá-lo!
— Ui, você estava assustadíssimo! — continuou Beatty. — Afinal de
contas eu estava a usar os mesmos livros a que você se tem agarrado para
rebater todos os seus argumentos, ponto por ponto! Vê como os livros
podem traí-lo? Quando pensa que estão a ampará-lo, abandonam-no. Os
outros também os podem usar, e pronto, lá se vê você perdido no meio da
charneca, preso no lamaçal de nomes, verbos e adjetivos. E, mesmo no final
do meu sonho, apareceu a Salamandra e disse: “Vai para os meus lados?” E
você montou nela e voltámos para o quartel num silêncio beatífico, a
caminho da paz de espírito.
Beatty largou o pulso de Montag, cuja mão mole caiu sobre a mesa.
— Tudo está bem quando acaba bem.
Silêncio. Montag permaneceu sentado como uma estátua de pedra
branca. O eco da última martelada no seu cérebro esvaiu-se lentamente na
caverna escura onde Faber aguardava que os ecos se calassem. E então,
quando a poeira assentou na mente de Montag, Faber pôde falar, e fê-lo
com delicadeza.
— Muito bem, ele levou a melhor. Deve aceitá-lo. Direi o que tenho a
dizer também, nas próximas horas. Irá aceitá-lo também. E irá tentar
analisar isto tudo e tomar a sua decisão sobre qual a melhor forma de saltar,
ou cair. Mas quero que seja a sua decisão e não a minha, nem a do
comandante. Lembre-se, porém, de que o comandante pertence ao inimigo
mais perigoso da verdade e da liberdade: a manada maciça e inamovível da
maioria. Essa terrível tirania da maioria! Todos temos a nossa harpa para
tocar. Toca-lhe a si agora saber com que ouvido quer ouvi-la.
Montag abriu a boca para responder a Faber e salvou-se deste erro na
presença dos outros quando o sino de alarme do quartel tocou. A voz de
alarme no teto começou a cantar. No outro lado da sala ouviu-se um taque-
taque à medida que o aparelho telefónico que recolhia o endereço de
destino o ia imprimindo. O comandante Beatty, com as suas cartas na mão,
caminhou com lentidão exagerada na direção do aparelho e arrancou o
papel com o endereço. Olhou casualmente para o que lá estava escrito, e
enfiou o papel no bolso. Regressou à mesa e sentou-se. Os outros olhavam-
no.
— Dá para esperar mais uns quarenta segundos e sacar-vos todo o
dinheiro — disse, satisfeito.
Montag pousou as cartas.
— Cansado, Montag? Quer sair do jogo?
— Sim.
— Espere um pouco… Bem, lá por isso, também podemos acabar a
jogatana mais tarde. Deixe as cartas na mesa viradas para baixo e vá
equipar-se. Rápido, rápido!
Beatty levantou-se de novo.
— Não parece lá muito bem, Montag. Não me diga que está a chocar
outra febre…
— Está tudo bem.
— Sim, vai ficar bem. Este é um caso especial. Vá, toca a andar!
Saltaram e agarraram-se ao varão como se este fosse o último ponto de
apoio acima de uma onda gigantesca que passasse lá em baixo, e então o
varão, para seu grande espanto, fê-los deslizar até à escuridão do piso
térreo, até à explosão, ao sopro e à sucção do motor daquele monstro a gás
que ganhava vida.
— Ei!
Dobraram uma esquina com estrondo de trovão e o guincho da sirene,
com a comoção dos pneus e a chiadeira da borracha, com o querosene a
oscilar dentro do tanque metálico e reluzente, como a comida dentro do
estômago de um gigante, com os dedos de Montag a soltarem-se do
corrimão prateado e a abanarem no vazio gélido, com o vento quase a
arrancar-lhe o cabelo preto da cabeça, com o vento a assobiar-lhe entre os
dentes, enquanto ele pensava nas mulheres, nas mulheres de palha na sala
da sua casa umas horas antes, com a base do mundo delas varrida de
debaixo dos pés por um vento de néon, e ele feito estúpido a ler-lhes um
livro. Tão sem sentido e inconsciente, como tentar apagar um fogo com
pistolas de água. Uma raiva trocada por outra. Uma cólera dando o lugar a
outra. Quando iria deixar de se portar como um louco e ficar calmo e
quieto?
— Cá vamos!
Montag ergueu o olhar. Beatty nunca conduzia, mas nessa noite decidira
fazê-lo, fazendo a Salamandra bater nas esquinas, todo inclinado para a
frente no trono do condutor, com a sua enorme capa negra a esvoaçar atrás
dele, dando-lhe o aspeto de um morcego gigantesco a voar por cima do
veículo, por cima dos números de latão, a receber todo o impacto do vento.
— Cá vamos para manter o mundo feliz, Montag!
As faces rosadas e fosforescentes de Beatty pareciam brilhar na escuridão
da madrugada, e ele sorria furiosamente.
— Chegámos!
A Salamandra parou abruptamente, fazendo com que os homens
procurassem manter o equilíbrio com saltinhos trôpegos. Montag manteve-
se de olhar cruamente fixado no anteparo de metal frio e brilhante a que se
agarrava com os dedos bem cerrados.
“Não consigo”, pensou. “Como posso fazer isto, como posso continuar a
queimar coisas? Não posso entrar nesta casa.”
Beatty, ainda com as marcas do vento que o açoitara no sorriso, tocou-o
no cotovelo.
— Está tudo bem, Montag.
Com as suas botas pesadonas, os homens correram como aleijados, num
silêncio de aranhas.
Por fim, Montag ergueu de novo o olhar e virou-se.
Beatty estava a olhar para ele.
— Algum problema, Montag?
— Mas… — disse este, muito devagar. — Parámos mesmo em frente à
minha casa!
2 N.T: Excerto do poema Dover Beach de Mathew Arnold, publicado em 1867:

THE SEA OF FAITH


Was once, too, at the full, and round earth’s shore
Lay like the folds of a bright girdle furled.
But now I only hear
Its melancholy, long, withdrawing roar,
Retreating, to the breath
Of the night-wind, down the vast edges drear
And naked shingles of the world.

Ah, love, let us be true


To one another! for the world, which seems
To lie before us like a land of dreams,
So various, so beautiful, so new,
Hath really neither joy, nor love, nor light,
Nor certitude, nor peace, nor help for pain;
And we are here as on a darkling plain
Swept with confused alarms of struggle and flight,
Where ignorant armies clash by night.
3 N.T.: No original, “Who are a little wise, the best fools be”, um verso do poema de John Donne The
Triple Fool.
TRÊS

FOGO VIVO

A
s luzes acenderam-se e as portas das casas abriram-se até ao fim da
rua, em antecipação do espetáculo de carnaval. Beatty e Montag,
um com seca satisfação, o outro com descrença, olhavam para a
casa à sua frente, a arena principal onde os malabaristas jogariam com as
tochas e comeriam o fogo.
— Pois é — disse Beatty. — Lá acabou por fazê-lo. O nosso caro
Montag queria voar perto do sol e agora que tem as asas queimadas quer
saber porquê. Não foi aviso suficiente eu ter enviado o Cão a sua casa?
O rosto de Montag parecia anestesiado, sem feições. Sentia a sua cabeça
virar-se como uma escultura de pedra na direção da escuridão da casa ao
lado da sua, bordada de flores garridas.
Beatty resfolegou.
— Oh, não me diga que aquela rotina idiota dela o enganou? Flores,
borboletas, folhas, pores-do-sol… Sinceramente! Está tudo no ficheiro dela.
Raios o partam! Acertei em cheio. Se pudesse ver a expressão no seu rosto
agora… Umas folhinhas de relva e um quarto de lua. Só lixo! De que é que
tudo isso lhe serviu a ela?
Montag sentou-se no para-choques do Dragão, movendo a cabeça um
centímetro para a esquerda, outro para a direita, esquerda, direita, esquerda,
direita, esquerda…
— Ela via tudo. Não fazia nada a fosse quem fosse. Não se metia com
ninguém.
— O tanas! Ela trabalhou-o bem, não foi? Mais uma dessas santinhas,
com os seus silêncios muito chocados. O único talento delas é fazerem os
outros sentirem-se culpados. São o sol da meia-noite que nos faz arder em
suor na cama!
A porta da frente abriu-se. Mildred descia as escadas, a correr, agarrando
uma mala com uma rigidez de sonho, enquanto um táxi, negro como a
carapaça de um escaravelho, dobrava a esquina e estacionava.
— Mildred!
Ela correu na direção do táxi sem se deter, com o corpo rígido, o rosto
cheio de pó de arroz e a boca quase invisível pela ausência de batom.
— Mildred, tu não acionaste o alarme!
Ela enfiou a mala na bagageira do táxi, entrou neste e sentou-se.
— Pobre família — murmurou — pobre família, ai!, foi-se tudo, tudo,
foi-se tudo…
Beatty agarrou Montag pelo ombro enquanto o taxi arrancou e
rapidamente ultrapassou os 100 km/hora ao fundo da rua, antes de
desaparecer.
Ouviu-se um estrondo como se um sonho feito de vidro, espelhos e
cristais de desmoronasse. Montag moveu-se como se uma outra
incompreensível tempestade o tivesse atingido, e viu Stoneman e Black de
machados em punho a quebrarem as janelas para garantir ventilação.
O roçar de uma borboleta-caveira contra um ecrã frio e negro.
— Montag, aqui o Faber! Consegue ouvir-me? Que se passa?
— Isto está a acontecer-me… —
— Olha que surpresa horrível! — disse Beatty. — Porque hoje toda a
gente sabe, com absoluta certeza, que nada me acontece. Só os outros
morrem, eu não. Não há consequências nem responsabilidades. Só que há.
Mas deixemos isso de parte, não acha? O problema é que, quando as
consequências o atingem, já é tarde de mais, não é, Montag?
— Montag, consegue fugir daí, correr? — perguntou Faber.
Montag caminhou mas não sentiu os pés a tocar o cimento do piso ou o
relvado. Beatty acendeu o seu ignitor e a pequena chama cor de laranja
atraiu de imediato o seu olhar fascinado.
— Que há no fogo que nos encanta desta forma? Seja qual for a nossa
idade, que há nele que nos atrai? — Beatty soprou e apagou a chama, para a
acender de novo logo a seguir. — É o movimento perpétuo. Aquilo que o
homem sempre quis inventar e nunca conseguiu. Ou o movimento quase
perpétuo. Se o deixássemos aceso, iria acabar por consumir-nos a vida. O
que é o fogo? Um mistério. Os cientistas contaram-nos umas patranhas
sobre a fricção e as moléculas. Mas eles não sabem a verdade. A sua beleza
está em destruir a responsabilidade e a consequência. Se um problema se
nos torna demasiado complicado, fogo com ele. Agora você é um problema
para mim, Montag. E o fogo irá tirá-lo dos meus ombros de um modo
limpo, rápido e seguro, sem deixar nada a apodrecer. Antibiótico, estético,
prático.
Montag observava aquela estranha casa, tornada ainda mais estranha
pelas horas tardias, pelo murmúrio dos vizinhos, pelos pedaços de vidro
partido e, espalhados pelo chão, com as capas arrancadas e atiradas como
penas de cisne, pelos livros extraordinários que agora pareciam tão
estúpidos e tão pouco importantes, um risco inútil para defender o que não
passavam de letras de tinta preta impressas sobre papel amarelecido e
encadernado.
Mildred, pois claro. Ela devia tê-lo visto a esconder os livros no jardim e
trouxe-os de volta para casa. Mildred. Mildred.
— Quero que seja você e apenas você a fazer este trabalho, Montag.
Nada de querosene e fósforos. Uma coisa a sério, com lança-chamas. A casa
é sua, cabe-lhe fazer a limpeza.
— Montag, não consegue correr? Fugir?
— Não! — gritou Montag, desamparado. — O Cão! Por causa do Cão!
Faber escutou-o e Beatty, julgando que aquilo lhe era dirigido, escutou-o
também.
— Sim, o Cão anda por aí no bairro, por isso nem tente. Está pronto?
— Pronto.
Montag agarrou no lança-chamas e desativou a patilha de segurança.
— Fogo!
Um jorro enorme de chama saltou em direção aos livros e atirou-os
contra a parede. Entrou no seu quarto e disparou duas vezes, envolvendo as
camas numa bola de fogo que continha mais calor e paixão e luz do que
nelas alguma vez tinha havido. Queimou as paredes do quarto e os armários
de cosméticos porque queria mudar tudo, as cadeiras, as mesas, os talheres
e os pratos de plástico na sala de jantar, tudo o que mostrasse que ele vivera
naquela casa vazia com uma estranha que amanhã já o teria esquecido, que
tinha ido embora e certamente já nem se lembrava dele nesse minuto, com a
Concha metida no ouvido a encher-lhe e a encher-lhe a cabeça enquanto
percorria a cidade sozinha. E, tal como sempre acontecera antes, sentiu-se
bem a queimar aquilo, sentiu-se revigorado pelo fogo, por aquele ritual de
procurar as coisas a arder e de as rasgar e destruir com as chamas, de se
livrar de todos os problemas. Se não havia solução, passaria a não haver
problema também. O fogo era o melhor para tudo.
— Os livros, Montag!
Os livros saltavam e dançavam como aves assadas, com as asas
incandescentes de penas vermelhas e amarelas.
E então entrou na sala dos ecrãs onde dormiam os monstros idiotas com
os seus pensamentos brancos e sonhos de neve. Disparou um jorro contra
cada um dos ecrãs de parede e ouviu um silvo no vácuo. O vazio assobiava
de um modo ainda mais desolado, um grito sem alma. Tentou pensar no
vácuo e no que ele lhe estava a fazer naquele momento, mas não conseguiu.
Susteve a respiração para não inalar os fumos. Libertando-se daquela
sensação de vazio absoluto, recuou e atirou sobre a salinha uma nova e
poderosa flor amarela de fogo vivo. A película plástica à prova de fogo que
cobria tudo rasgou-se e a casa começou a vibrar por ação das chamas.
— Quando terminar, ficará preso — disse Beatty atrás dele.

A casa ruiu, toda em brasas e cinza negra. Os restos amontoaram-se


numa cama de cinzas rosadas da qual saía uma plumagem de fumo,
erguendo-se no céu e acenando preguiçosamente. Eram três horas e meia da
manhã. Caída a enorme tenda do circo e consumido este em ruínas
carbonizadas, a multidão regressara já a suas casas. O espetáculo terminara.
Montag manteve-se com o lança-chamas nas mãos dormentes, com os
sovacos empapados em suor e o rosto coberto de fuligem. Os outros
bombeiros estavam atrás dele, no meio da escuridão, com os rostos
fragilmente iluminados pelo braseiro nas fundações da casa.
Montag tentou por duas vezes falar antes de conseguir finalmente
organizar os pensamentos.
— Foi a minha mulher que deu o alarme?
Beatty anuiu com a cabeça.
— Mas as amigas dela já o tinham dado antes, isso posso dizer-lhe. De
uma forma ou doutra, teríamos chegado a si. Que parvoíce, pôr-se a citar
poesia com aquele à-vontade! Típico de um snobe de primeira. Dê-se a um
homem um par de versos e ele julgará que é o Deus da Criação, que pode
andar sobre água graças aos livros. Pois, mas o certo é que o mundo pode
muito bem passar sem livros. E veja lá bem onde os livros o deixaram: num
buraco com lama até à boca. Se eu remexer a lama com o meu dedo
mindinho, você afoga-se!
Montag não conseguia mexer-se. Um poderoso terramoto de fogo
arrasara a sua casa, e Mildred estava ali soterrada algures e toda a sua vida
também. E ele não se conseguia mexer. Sentia ainda dentro dele a vibração
do terramoto, abanando-o, abalando-o, enquanto ali permanecia, com os
joelhos meio dobrados sob o peso do cansaço, da perplexidade e do ultraje,
deixando que Beatty lhe desse uma sova sem sequer erguer uma mão.
— Montag, seu idiota! Seu louco! Por que raio fez aquilo?
Não ouviu. A sua mente estava longe dali, a correr, e ele fugira e deixara
aquele corpo coberto de fuligem a enfrentar o louco que lhe gritava.
— Montag, fuja! — disse Faber.
Montag escutou-o.
Beatty golpeou-o na cabeça e fez com que recuasse. A pequena bala
verde que continha a voz de Faber caiu ao passeio. Beatty apanhou-a e
sorriu. Colocou-a no seu ouvido, meio dentro, meio fora.
Montag conseguiu ouvir a voz distante.
— Montag, está tudo bem?
Beatty desligou-a e enfiou-a no bolso.
— Ora então parece que temos aqui algo mais do que eu estava à espera.
Vi-o a inclinar ligeiramente a cabeça, à escuta. Primeiro pensei que tinha
uma Concha. Mas quando depois começou a soar um pouco mais
inteligente do que o habitual, pus-me a pensar. Vamos descobrir a origem
deste sinal e fazemos uma visita ao seu amigo.
— Não!
Destravou a patilha de segurança do lança-chamas. Beatty olhou de
relance para os dedos de Montag e os seus olhos aumentaram quase
impercetivelmente. Montag viu neles a surpresa, e olhou para as suas mãos
para ver o que tinham feito. Mais tarde, recordando esse momento, não
saberia se tinham sido as suas mãos ou o olhar de Beatty a empurrá-lo para
o crime. O último rugido da avalanche que atingira a casa soou junto aos
seus ouvidos, sem o atingir.
Beatty sorriu de orelha a orelha, no seu habitual modo encantador.
— Bom, essa é uma maneira de atrair público, não haja dúvida…
Apontar uma arma a um homem e forçá-lo a ouvir o nosso discurso. Vá,
faça o seu discurso então. Será sobre quê desta vez? Porque não me atira
com um pouco de Shakespeare, seu snob de pacotilha? “Não sinto terror
face às tuas ameaças, Cassius, pois estou de tal forma armado de
honestidade que elas passam por mim como vento e não lhes reservo
qualquer respeito”. Que tal? Vá, seu literato de terceira categoria, puxe o
gatilho!
Deu um passo na direção de Montag.
— Nunca queimámos bem…
Foi a única coisa que Montag conseguiu dizer.
— Dê-me isso, Guy — disse-lhe Beatty, com o sorriso congelado no
rosto.
E então transformou-se numa chama ululante, num manequim aos saltos,
aos gritos, uma forma que se sacudia e já não era humana ou sequer
reconhecível, uma chama ainda viva que se contorcia agora no relvado
enquanto Montag continuava a despejar-lhe o jato contínuo de fogo líquido.
Ouviu-se um assobio, como se uma grande bola de saliva tivesse sido
cuspida contra a parede, um forno em brasa, um espumar e borbulhar, como
se alguém tivesse espalhado sal sobre um enorme caracol negro e causado
uma horrível liquefação e ebulição de espuma amarela. Montag fechou os
olhos, gritou, gritou e procurou tapar furiosamente aquele som levando as
mãos aos ouvidos. Beatty cambaleou e caiu, uma e outra vez, até que, por
fim, se dobrou sobre si mesmo como um boneco de cera derretido e parou
de se mexer.
Os outros dois bombeiros permaneceram imóveis.
Montag conseguiu controlar a vontade de vomitar o suficiente para lhes
apontar o lança-chamas.
— Virem-se!
Eles fizeram-no, e os seus rostos pareciam feitos de carne escaldada,
suando em bica. Bateu-lhes na cabeça, fazendo com que os seus capacetes
caíssem e obrigando-os a deitarem-se no solo. Eles obedeceram e
permaneceram deitados sem se mexerem.
Viu uma folha outonal soprada pelo vento.
Virou-se e ali estava o Cão Mecânico.
Vinha do outro lado do relvado, saído das sombras, movendo-se em
silêncio e com uma tal facilidade que parecia uma nuvem de fumo cinzento
e negro apontada a ele.
Quando estava mais perto dele, deu um salto, elevando-se a quase um
metro acima da sua cabeça, com as pernas de aranha prontas para o
agarrarem e a agulha de procaína a sair do seu dente faminto. Montag
atingiu-o com um jorro de fogo, uma única flor maravilhosa que se curvou
em pétalas amarelas, azuis e cor de laranja quando lambeu o cão metálico e
lhe deu, por momentos, uma nova coloração quando este chocou contra
Montag e o atirou uns três metros para trás, indo bater no tronco de uma
árvore mas mantendo o lança-chamas bem seguro. Sentiu o cão a arranhá-lo
ao agarrar-lhe a perna para lhe dar a picada, antes de um novo jorro de fogo
elevar a besta no ar, estoirar-lhe os ossos metálicos pelas articulações e
fazer com que as suas entranhas explodissem numa efusão de cor vermelha,
como um foguete de artifício. Deitado no solo, Montag viu a coisa morta-
viva a estrebuchar antes de se apagar. Mesmo depois daquilo ela parecia
continuar a querer atacá-lo e acabar de dar-lhe a injeção, cujos efeitos
começava a sentir já na perna. Sentiu o misto de alívio e horror de alguém
que fosse puxado da frente de um carro a mais de 140 km/hora apenas para
descobrir que o para-choques ainda lhe esmagara o joelho. Tinha receio de
se levantar, receio de não poder voltar sequer a conseguir fazê-lo, com
aquela perna anestesiada. Uma dormência dentro de uma dormência tornada
ainda mais vazia por outra dormência…
E agora?...
A rua estava deserta, a casa parecia um velho cenário de teatro em ruínas,
as outras casas imersas na escuridão, o Cão ali, Beatty acolá, os outros
bombeiros noutro sítio. E a Salamandra? Olhou para o imponente veículo.
Teria de se ver livre dela também.
“Bem”, pensou, “deixa lá ver como estamos. Vá, de pé agora! Calma,
calma… Isso”.
Ergueu-se e só tinha uma perna. A outra era como um pedaço de madeira
queimada que tivesse de carregar consigo em penitência por um obscuro
pecado. Quando tentou apoiar o seu peso sobre ela, sentiu uma torrente de
agulhas prateadas a picá-lo da barriga da perna até ao joelho. Chorou.
“Então? Vá, não podes ficar aqui!”
Ao fundo da rua acendiam-se algumas luzes: se por efeito do que acabara
de ocorrer, se pelo silêncio anormal que se seguira à luta, Montag não
soube. Coxeou junto às ruínas, puxando a perna má quando ela se atrasava,
a falar com ela, a murmurar-lhe ou a gritar-lhe instruções, a insultá-la, a
implorar-lhe que trabalhasse para ele agora que isso era de vital
importância. Na escuridão da madrugada, ouviu gritos à distância. Dirigiu-
se ao pátio das traseiras e depois meteu pela ruazinha adjacente. “Deixou de
ser um problema, Beatty”, pensou. “Sempre disse que os problemas se
resolviam queimando-os. Pois bem, fiz ambas as coisas. Adeus,
comandante”.
E lá foi a cambalear rua abaixo a coberto do escuro.

De cada vez que pousava a perna no chão sentia nela o impacto de um


tiro de caçadeira. “És um louco”, pensou, “um estúpido, um estúpido a
sério, um idiota a sério, o raio de um idiota! Olha para esta trapalhada, e
onde está a esfregona para a limpar, olha só para isto, e o que é que foste
fazer? O raio do orgulho, porra, e esse mau feitio, e estragaste tudo, à
primeira oportunidade vomitas em tudo e sobre ti mesmo, tudo ao mesmo
tempo, tudo a amontoar-se, o Beatty, as mulheres, a Mildred, a Clarisse,
tudo. Não há desculpas, não há desculpas. Um louco, um louco varrido, vais
mas é entregar-te! Não. Vamos guardar o que pudermos, vamos fazer o que
ainda há para fazer. Se tivermos de arder, levamos outros connosco. Isso!”
Lembrou-se dos livros e deu meia volta. Para o caso de não os terem
apanhado todos.
Encontrou alguns onde os deixara, junto à cerca do jardim. Graças a
Deus, Mildred tinha deixado passar uns poucos. Quatro livros estavam
ainda escondidos. Ouviam-se vozes na noite, lamentos, e viam-se os raios
de luz de lanternas. Outras Salamandras rugiam também, muito longe dali,
e as sirenes da polícia abriam caminho através da cidade.
Montag pegou nos quatro livros que restavam e foi saltando e coxeando
rua abaixo até que, subitamente, se sentiu cair, como se a sua cabeça tivesse
sido cortada, deixando apenas o seu corpo. Algo dentro dele o tinha
obrigado a parar e a deitar-se no chão. Ali ficou onde caíra, a soluçar, com
as pernas dobradas, o rosto colado ao piso de cascalho miúdo.
Beatty queria morrer.
A chorar, Montag apercebeu-se de que essa era a verdade. Beatty tinha
querido morrer. Tinha ficado ali à sua frente, sem realmente procurar
defender-se, ali apenas, a dizer piadas, a provocá-lo, e esse pensamento foi
suficiente para que parasse de soluçar e pudesse respirar um pouco. Que
estranho, que coisa tão estranha, querer tanto morrer que deixamos que um
homem ande armado perto de nós e depois, em vez de nos calarmos e nos
mantermos vivos, continuarmos a gritar-lhe, a gozá-lo, até o enfurecermos
e…
Pés em corrida, à distância.
Montag sentou-se. “Vamos sair daqui. Vá, levanta-te, levanta-te, não
podes ficar aqui sentado!” Mas estava ainda a chorar e isso tinha de acabar.
Estava quase a acabar. Nunca quisera matar ninguém, nem Beatty. A sua
carne arrepiou-se e encolheu como se tivesse sido banhada em ácido.
Tentou conter o vómito. Viu Beatty como uma tocha, sem se mexer, depois
a espernear sobre o relvado. Mordeu os nós dos dedos. “Desculpa, desculpa,
ó meu Deus, peço desculpa…”
Tentou recompor-se, voltar ao padrão normal da vida que tivera até uns
dias antes, antes da peneira e da areia, do Dentífrico Denham, da voz da
traça, dos vaga-lumes, dos alarmes e das saídas na Salamandra, demasiado
para tão poucos dias, demasiado, até, para uma vida inteira.
Ao fundo da ruela, pés continuavam a correr.
— Levanta-te! Levanta-te, porra! — gritou à perna, e ergueu-se.
A dor era como um conjunto de espigões espetados na rótula, antes de
passar a ser apenas um conjunto de agulhas de cerzir e a seguir uma mão
cheia de alfinetes dos mais pequenos, e depois de ter dado mais uns
cinquenta saltos e passos, com a mão cheia de lascas da madeira da cerca a
que se ia apoiando, a sensação de dor na perna acabou por se assemelhar a
um ligeiro sopro de gotas de água a ferver. Até que, por fim, a perna voltou
a ser sua. Tivera receio de correr, para não quebrar o tornozelo que sentia
solto. Inspirando profundamente o ar da noite através da boca bem aberta e
expirando-o com vigor, junto com todo o negrume que ainda havia dentro
dele, começou a correr num ritmo lento e regular, com os livros nas mãos.
Pensou em Faber.
Faber ficara lá atrás, naquele monte em brasa que agora não tinha nome
ou identidade. Queimara Faber junto com Beatty. Sentiu-se subitamente tão
chocado com este facto que lhe pareceu que Faber morrera realmente,
assado como uma barata dentro daquela pequena cápsula verde enfiada e
perdida no bolso de um homem que agora não passava de um esqueleto
com tendões de asfalto.
“Lembra-te: queima-os ou queimar-te-ão a ti”, pensou. “Agora as coisas
são assim, simples”.
Procurou nos bolsos: num tinha o dinheiro e no outro encontrou uma
Concha, com a qual podia escutar o que a cidade dizia a si mesma naquela
madrugada fria.
— Alerta de Polícia. Procura-se: fugitivo na cidade. Cometeu um
homicídio e crimes contra o Estado. Nome: Guy Montag. Profissão:
bombeiro. Foi visto pela última vez…
Correu ao longo de seis quarteirões até que a estreita ruela das traseiras
foi dar a uma avenida, larga e vazia, com dez pistas. Parecia um rio sem
barcos, congelado à luz crua dos candeeiros altos das bermas. Sentiu que
quase poderia afogar-se se o atravessasse. Era larga de mais, demasiado
exposta. Era um palco enorme sem cenário, convidando-o a correr sobre
ele, a ser facilmente avistado àquela luz, facilmente capturado, facilmente
abatido.
A Concha zumbiu-lhe no ouvido.
— … procurem um homem a correr… procurem um homem a correr…
procurem um homem sozinho, a pé… procurem…
Montag abrigou-se numa zona obscura. Mesmo em frente ficava uma
estação de serviço, um enorme pedaço de porcelana a brilhar na noite, com
dois carros prateados que se abasteciam. Devia limpar-se um pouco e
parecer apresentável se queria falar com alguém, devia andar calmamente
ao longo daquela avenida e não correr. Se conseguisse passar água no rosto
e pentear-se, teria alguma margem de segurança antes de seguir caminho.
Mas para onde?
“Sim”, pensou, “para onde corro eu?”
Para nenhum lado. Não havia qualquer destino possível, nenhum amigo a
quem recorrer, para dizer a verdade. Apenas Faber. Foi então que se
apercebeu de que, por mero instinto, estava a correr na direção da casa de
Faber. Só que Faber não poderia abrigá-lo: tentá-lo seria um suicídio. Mas
sabia que ia vê-lo, nem que fosse por uns minutos apenas. A casa dele seria
o local onde conseguiria reabastecer a sua reserva já muito ténue de
confiança na sua própria sobrevivência. Queria apenas saber que ainda
havia alguém como Faber no mundo. Queria vê-lo vivo e não como um
corpo queimado numa concha metálica dentro de outro corpo. E devia
deixar-lhe algum dinheiro, claro, para que ele o gastasse depois da sua fuga.
Talvez conseguisse chegar ao campo e viver numa colina junto a um dos
rios e não muito longe das autoestradas.
Um sussurro em turbilhão fê-lo olhar para o céu.
Os helicópteros da polícia voavam tão alto e para tão longe que parecia
que alguém soprara as pétalas de um enorme dente-de-leão. Umas duas
dúzias deles cirandavam, vacilantes e indecisos, a menos de cinco
quilómetros dali, como borboletas apanhadas pelo outono. De repente,
desciam a pique sobre a cidade, um a um, aqui e ali, pousando suavemente
nas ruas em que, voltando à condição de carros, iam gritando os avisos à
população, e depois, tão subitamente como tinham descido, regressavam
aos ares, continuando a sua busca.

E ali estava a estação de serviço, com os funcionários ocupados a


atenderem clientes. Aproximando-se pelas traseiras, Montag entrou na casa
de banho dos homens. Através da parede de alumínio ouviu uma voz na
rádio a dizer que “foi declarada guerra”. Havia carros a abastecerem-se lá
fora, e os condutores e os empregados falavam sobre motores, sobre o tipo
de combustível, sobre quanto havia a pagar. Montag procurou sentir algo
com o sereno comunicado que acabara de ouvir, mas o choque não
aconteceu. A guerra teria de esperar pela sua preocupação, uma hora ou
duas talvez.
Lavou as mãos e o rosto e enxugou-os, fazendo-o do modo mais
silencioso possível. Saiu da casa de banho, fechou a porta cuidadosamente e
caminhou em direção à escuridão até parar de novo na orla da avenida
vazia.
Ali estava um jogo a desafiá-lo: uma vasta pista de bowling na
madrugada fria. O piso estava tão limpo como a superfície de uma arena
dois minutos antes do aparecimento das desconhecidas vítimas e dos
desconhecidos carrascos. O ar por cima daquele enorme rio de betão tremia
com o calor do corpo de Montag. Era incrível como sentia que a sua
temperatura podia fazer com que o mundo inteiro vibrasse. Era um alvo
fosforescente: sabia-o, sentia-o. E agora tinha de começar a andar.
A três quarteirões dali, avistou alguns faróis de carros. Respirou fundo.
Os seus pulmões pareciam vassouras em chamas a roçar-lhe o peito. Tinha a
boca seca de correr. A garganta sabia-lhe a metal e a sangue. Os pés
pareciam feitos de metal enferrujado.
“E aquelas luzes? Mal começasses a caminhar, terias de calcular em
quanto tempo aqueles carros estariam em cima de ti. E quanto faltará até à
próxima curva?” Pareciam distar menos de cem metros, talvez nem
noventa, algo por aí, com ele a caminhar muito lentamente, numa passada
regular. Era capaz de levar uns trinta ou quarenta segundos a fazer aquele
percurso. Os carros? Assim que arrancassem, poderiam percorrer a distância
de três quarteirões em quinze segundos. Por isso, mesmo que a meio do
caminho começasse a correr…
Pôs o pé direito em frente, depois o esquerdo, depois o direito. Caminhou
sobre a avenida deserta.
Mesmo que a avenida estivesse completamente vazia, não estaria certo de
uma travessia segura, pois um carro poderia surgir de repente, a alta
velocidade, vindo do outro lado da ligeira elevação a uns quatro quarteirões
de distância, e esborrachá-lo antes que ele pudesse respirar uma dúzia de
vezes.
Decidiu não contar os passos que dava. Não olhou para os lados. A luz
que vinha dos candeeiros altos parecia tão intensa e reveladora como o sol
do meio-dia, e tão quente também.
Ouviu o som do carro a acelerar a uns dois quarteirões, do seu lado
direito. Os faróis dianteiros começaram subitamente a mover-se até se
concentrarem nele.
“Continua”.
Montag vacilou, agarrou bem nos livros, e forçou-se a não ficar ali
paralisado. Por instinto, lançou-se numa curta corrida, a falar alto consigo
mesmo, antes de abrandar e voltar a andar. Estava agora a meio da avenida,
mas o rugido dos motores do carro ia aumentando à medida que este
ganhava velocidade.
“É a polícia, claro. Estão a ver-me. Mas agora abranda, vá, com calma,
não te voltes, não olhes, faz de conta que não é contigo. Anda, vá, anda,
anda!”
O carro continuava a acelerar. O carro rugia. O carro acelerava ainda
mais. O carro uivava. O carro troava. O carro escorria pela avenida. O carro
silvava, como uma bala disparada por uma arma invisível. Estava já perto
dos 200 km/hora. Estava já acima dos 200 km/hora. Montag cerrou os
dentes. O calor dos faróis do carro quase lhe queimava as faces, fazendo-o
pestanejar sem controlo e suar em bica por todo o corpo.
Começou a mexer-se de um modo bizarro e a falar sozinho, até que
decidiu começar a correr. Levou as pernas ao limite do seu poder de tração.
“Meu Deus! Meu Deus!” Deixou cair um livro, quebrou o ritmo, quase deu
meia volta, mudou de ideias, continuou a correr, gritou no meio daquele
deserto de betão, com o carro na peugada da sua presa, a sessenta metros, a
trinta metros, a vinte e sete, a vinte e quatro, a vinte e um, com Montag a
arfar, com os braços a balançarem, as pernas para cima e para baixo, cima e
baixo, cada vez mais perto, mais perto, a gritar, com os olhos queimados
pela luz branca e incandescente dos faróis, uma luz que parecia ter engolido
o carro e se assemelhava a uma chama em movimento, toda ela ruído, quase
em cima dele.
Tropeçou e caiu.
“É o fim!”
Mas a queda teve um efeito. Momentos antes de chegar a ele, o carro
enfurecido curvou e desapareceu. Montag deixou-se estar deitado, com a
cabeça encostada ao piso. Ouviu restos de risos misturados com o fumo
azulado do escape do carro.
Tinha a mão direita estendida a proteger-lhe a vista. Erguendo-a um
pouco, pôde ver uma amostra minúscula da borracha do pneu no piso da
avenida no sítio em que o carro mudara de direção. Ficou a olhar para
aquela linha negra, incrédulo, antes de se pôr em pé.
“Não era a polícia”, pensou.
Olhou para o que restava da avenida. Estava de novo vazia. Um grupo de
miúdos dos doze aos dezasseis anos, aos berros e vivas num carro pela noite
fora, tinha avistado um homem, coisa rara, um homem a caminhar, coisa
ainda mais rara, e decidira atropelá-lo, sem saber que se tratava do fugitivo
Montag. Apenas um grupo de miúdos que decidira sair e queimar uns bons
quilómetros a toda a velocidade pela madrugada fora, os rostos gelados pelo
vento, sem saber se regressariam a casa ao nascer do dia, sem saber se
chegariam vivos ao nascer do dia, uma aventura.
“Iam matar-me”, pensou, vacilante, meio trôpego, rodeado ainda pelo ar
revolto de poeira que lhe fustigava as faces doridas. “Iam matar-me assim
mesmo, sem qualquer motivo”.
Caminhou em direção à curva mais à frente, ordenando a cada pé que se
mexesse. Conseguira apanhar os livros que deixara cair, mas não se
lembrava de se ter baixado para o fazer. Continuou a passá-los de uma mão
para a outra, como se fossem cartas de jogar, uma mão de póquer que não
conseguisse compreender.
“Serão os mesmos que mataram a Clarisse?”
Parou e a sua mente repetiu a pergunta, bem alto.
“Serão os mesmos que mataram a Clarisse?”
Quis correr atrás deles, aos gritos.
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
O que o salvara tinha sido cair e manter-se colado ao chão. O condutor
do carro, ao ver Montag deitado, chegara instintivamente à conclusão de
que a probabilidade de capotar ao passar por cima daquele corpo era
elevada. E se Montag tivesse continuado de pé?...
Engoliu em seco.
A uns quatro quarteirões de distância, ao fundo da avenida, o carro
abrandara, invertera a marcha e corria agora avenida acima, invadindo a
pista de sentido contrário e aumentando de velocidade.
Mas Montag estava a salvo, escondido pelas sombras da rua escura que
fora o seu objetivo ao começar aquela odisseia uma hora antes, ou um
minuto, já nem sabia. Ali ficou a tremer no frio da noite, a olhar para o
centro da avenida onde o carro corria agora, largando os risos dos seus
ocupantes antes de desaparecer de vista.
Mais à frente, a caminhar a coberto da escuridão, pôde ver os
helicópteros a fazerem os seus voos picados, a caírem como as primeiras
neves do inverno que aí vinha.

A casa estava silenciosa.


Montag entrara pelas traseiras, atravessando uma espessa mistura de
narcisos, rosas e erva molhada. Tocou na porta do alpendre, viu que estava
aberta, entrou e pôs-se à escuta.
“Está a dormir, Sra. Black?”, pensou. “Isto não é correto, mas o seu
marido fez a mesma coisa a muitas outras pessoas, sem nunca pedir licença,
sem pensar se estaria a incomodar, sem se preocupar minimamente. E já
que é mulher de um bombeiro, toca-lhe agora a si, em nome de todas as
casas que o seu marido queimou e de todas as pessoas que feriu sem pensar
duas vezes”.
A casa permaneceu em silêncio.
Escondeu os livros na cozinha e voltou à rua. Olhou para trás e a casa
continuava às escuras e em silêncio, num sono profundo.
Um pouco mais à frente, com os helicópteros a esvoaçarem no céu como
pedaços de papel, enfiou-se numa cabina solitária junto a uma loja e ligou
para o alarme. Depois deixou-se ficar à espera, exposto ao ar cortante da
noite, até que, ao longe, ouviu as sirenes das Salamandras que se
aproximavam para virem queimar a casa do Sr. Black enquanto ele estava
no trabalho, para que a sua mulher ficasse ali a tiritar de frio enquanto o teto
da sua casa ruía pelo efeito das chamas. Por enquanto, ela continuava a
dormir.
“Boa noite, Sra. Black”.
— Faber!
Outra batida, um sussurro e uma longa espera. Passado um minuto, uma
luzinha acendeu-se em casa de Faber. Depois de outra pausa, a porta das
traseiras abriu-se.
Ficaram a olhar-se mutuamente na penumbra, como se não acreditassem
que o outro pudesse estar vivo. Então Faber estendeu o braço e, com a mão
nas costas de Montag, fê-lo entrar e sentou-o, antes de regressar para junto
da porta e ficar uns segundos à escuta. As sirenes gemiam à distância.
Entrou e fechou a porta.
— Fui um louco — disse Montag. — Não posso ficar muito tempo. Vou
nem sei bem para onde.
— Pelo menos foi louco pelas boas razões. Pensei que estivesse morto. A
cápsula áudio que lhe dei…
— Queimada.
— Ouvi o comandante a falar consigo e depois nada. Quase me deu
vontade de ir à sua procura.
— O comandante está morto. Encontrou a cápsula, ouviu a sua voz, ia
localizar a origem do sinal. Matei-o com o lança-chamas.
Faber sentou-se e ficou em silêncio.
— Meu Deus, como é que isto aconteceu? — disse Montag. — Há umas
poucas noites apenas estava tudo bem, e quando dou por mim estou a
afogar-me. Quantas vezes se pode ir ao fundo sem morrer? Não consigo
respirar. O Beatty está morto, e até chegou a ser meu amigo, há muito
tempo… A Millie foi-se. Pensei que era a minha mulher, mas agora já não
sei. E a casa toda queimada! E eu sem trabalho, a fugir, a colocar livros em
casa de um bombeiro… Meu Deus, as coisas que já fiz nesta semana!
— Fez o que tinha de fazer. A situação era já insustentável.
— Sim, acredito que sim, mesmo que seja a única coisa em que acredite.
Era algo que estava para acontecer, mais tarde ou mais cedo. Senti-o
durante muito tempo: estava a preparar-me para fazer algo, para fazer algo
diferente do que andava a fazer e que já não me dizia nada. Estava ali tudo à
espera. É um milagre que não tenha havido manifestações externas disso,
como ter engordado. E agora aqui estou a estragar-lhe a vida também.
Podem seguir-me até aqui.
— Pela primeira vez em muitos anos sinto-me vivo. Sinto que estou a
fazer o que já devia ter feito há uma eternidade. E, para variar, perdi o
medo. Talvez seja por estar finalmente a fazer o que deve ser feito. Talvez
seja porque sinta que fiz algo precipitado e não quero que me veja como um
cobarde. Creio que terei de fazer coisas ainda mais violentas, expor-me de
modo mais arriscado para que não volte a cair no hábito de ter medo. Quais
são os seus planos?
— Continuar a fugir.
— Já sabe que a guerra foi declarada?
— Ouvi.
— Não acha a coisa tão estranha? Estamos tão imersos nos nossos
próprios problemas que nem damos pelo facto de estarmos em guerra.
— Não tenho tido tempo para pensar.
Montag passou a Faber cem dólares.
— Quero que fique com isto. Dê-lhe o uso que quiser depois de me ir
embora.
— Mas…
— Posso não chegar vivo ao fim do dia. Use o dinheiro.
Faber anuiu.
— É melhor tentar chegar ao rio, se conseguir. Caminhe ao longo da
margem, e se conseguir chegar até à velha linha de caminho de ferro que
segue para o interior do país, siga-a. Ainda que hoje em dia se faça tudo
pelo ar e quase todas as linhas estejam ao abandono, os carris ainda lá estão,
a enferrujar. Ouvi dizer que ainda há acampamentos de sem-abrigo
espalhados por todo o país. Chamam-lhes “acampamentos móveis”. Se
caminhar o suficiente e se se mantiver alerta, vai dar com eles. Dizem que
ao longo das linhas ferroviárias entre aqui e Los Angeles se abrigam alguns
antigos formados em Harvard. A maior parte deles são fugitivos, gente
procurada pela polícia nas cidades. Seja como for, lá conseguem sobreviver.
Não são muitos, e acho que o governo nunca os considerou uma ameaça
que justificasse uma caçada nesses territórios. É capaz de poder ficar com
eles uns tempos, antes de me visitar em St. Louis. Parto no autocarro
expresso das cinco da manhã, para ir visitar o impressor reformado. Vou
finalmente fazer algo fora de casa. Darei bom uso a este dinheiro. Obrigado
e Deus o abençoe. Quer dormir alguns minutos?
— É melhor continuar a fuga.
— Vamos ver.
Levou Montag rapidamente para o seu quarto e retirou um quadro da
parede, revelando um pequeno ecrã de televisão do tamanho aproximado de
um postal.
— Sempre quis algo muito pequeno, algo que me obrigasse a deslocar se
quisesse vê-lo, algo que poderia tapar com a palma da minha mão, se
necessário, nada que se pusesse a gritar-me, nada monstruosamente grande.
E aqui está.
Ligou o televisor.
— Montag — ouviu-se, ainda antes de aparecer a imagem — M-O-N-T-
A-G. Guy Montag. Ainda em fuga. Os helicópteros da polícia continuam as
buscas. Um novo Cão Mecânico foi trazido de fora da cidade…
Montag e Faber olharam-se.
— … os Cães Mecânicos são infalíveis. Nunca houve um único erro
desde que esta incrível invenção foi posta a perseguir fugitivos. Esta noite
sentimo-nos orgulhosos pela oportunidade de podermos seguir o Cão a
perseguir o seu alvo com uma das nossas câmaras instalada num
helicóptero…
Faber encheu dois copos com whisky.
— Vamos precisar disto.
Beberam.
— … um nariz tão sensível que o Cão Mecânico pode memorizar e
identificar dez mil registos de odores em dez mil pessoas sem precisar de
pausas!
Faber tremeu um pouco e pôs-se a olhar em volta, para as paredes, a
porta, a maçaneta da porta e a cadeira onde Montag se sentava. Este
apercebeu-se do olhar. Ambos perscrutaram rapidamente a casa, e Montag,
sentindo as narinas dilatarem-se, soube que estava à procura do seu próprio
rasto no ar: o seu nariz parecia subitamente capaz de captar até as marcas
do suor das suas mãos nas maçanetas das portas, invisíveis mas numerosas
como os brilhantes de um pequeno lustre. Estava em todo o lado, dentro e à
volta de tudo, como uma nuvem luminosa, um fantasma que tornava o ato
de respirar outra vez perigoso. Viu Faber a suster a sua própria respiração,
talvez com receio de inalar esse fantasma, de ser contaminado pelas
exalações e os odores fantasmáticos de um fugitivo.
— O helicóptero acaba de deixar o Cão Mecânico no local do incêndio!
E no pequeno ecrã apareceu a casa queimada, a multidão e algo coberto
por um lençol, e, descendo dos céus, o helicóptero, que pairava sobre tudo
como uma flor grotesca.
“Parece que o jogo continua”, pensou Montag. “O circo não pode parar,
mesmo com uma guerra a começar daqui a menos de uma hora…”
Observou, fascinado, aquela cena, sem querer mexer-se. Parecia-lhe algo
remoto, com o qual não tinha qualquer ligação, uma peça dramática
separada da sua vida, maravilhosa de ver e da qual retirava um estranho
prazer. “Tudo aquilo é por minha causa”, pensou. “Meu Deus, tudo aquilo
está a passar-se por minha causa!”
Se quisesse, podia permanecer ali, em segurança, e acompanhar toda a
perseguição, através de becos, ruelas, ruas e avenidas vazias, lotes de
terreno e zonas de recreio, com pausas regulares para os obrigatórios
anúncios, por outras ruelas que davam à casa em chamas do Sr. e da Sra.
Black, e, finalmente, àquela casa onde ele e Faber estavam sentados, a
bebericar, enquanto o Cão Mecânico farejava o último troço do rasto,
silencioso como uma brisa mortal, e estacava junto àquela janela ali. Então,
se quisesse, sempre com um olho posto no ecrã da TV, Montag poderia
levantar-se, dirigir-se à janela, abri-la, inclinar-se para espreitar, olhar para
trás e ver-se como uma personagem, analisada, descrita uma e outra vez,
uma figura naquele pequeno ecrã vista de fora e parte de um drama para ser
visto objetivamente, sabendo que nas salas de ecrãs pelo país a sua imagem
apareceria à escala real, colorida e dimensionalmente perfeita. E se
mantivesse os olhos abertos ver-se-ia ainda, um segundo antes do fim, a ser
atingido pela agulha da besta para benefício de milhões de espectadores nas
suas salinhas, acabados de acordar minutos antes pelo frenesim dos sinais
sonoros de alarme das paredes-ecrã, chamando-os para que assistissem ao
grande jogo, à caçada, ao carnaval de um homem só.
Teria tempo para um discurso? O momento em que o Cão o agarrasse,
com dez ou vinte ou trinta milhões de pessoas a assistir, não seria uma boa
oportunidade para resumir a sua vida na última semana numa única frase ou
palavra que lhes ficasse na memória muito tempo depois de o Cão o
abocanhar com as suas mandíbulas de alicate e trotar em direção à
escuridão, com a câmara em plano fixo a filmá-lo a desaparecer à distância,
seguido de um esplêndido fade-out? Que poderia dizer numa só palavra, ou
em poucas, para fazer o sangue afluir às faces desses milhões de
espectadores, para os acordar?
— Ali está — disse Faber.
Deslizando para fora do helicóptero, apareceu algo que não era uma
máquina nem um animal, algo que não estava morto nem vivo, e que
brilhava com uma luminosidade verde e pálida. Permaneceu junto às ruínas
fumegantes da casa de Montag até que os homens lhe trouxeram o lança-
chamas que ele deixara e lho chegaram ao focinho para o cheirasse. Ouviu-
se um zumbido entrecortado por alguns cliques.
Montag abanou a cabeça e levantou-se para acabar o resto da bebida.
— Está na hora. Desculpe tudo isto.
— Desculpar o quê? A mim? À minha casa? Mereço tudo. Agora fuja,
por amor de Deus! Talvez consiga atrasá-los um pouco…
— Espere. Não precisam de o encontrar aqui. Quando eu sair, queime a
colcha da cama que eu toquei. Meta a cadeira da sala também no
incinerador. Limpe a mobília e as maçanetas das portas com álcool. Queime
o tapete da sala também, já agora. Ligue o ar condicionado ao máximo em
todas as divisões da casa e pulverize-as com spray contra insetos. Depois
ligue os aspersores do relvado na potência máxima, para que molhem
também a entrada para a casa. Com alguma sorte, podemos abafar o rasto.
Faber apertou-lhe a mão.
— Assim farei. Boa sorte. Se ambos estivermos de boa saúde para a
semana ou na seguinte, podemos encontrar-nos na General Delivery em St.
Louis. Lamento não poder acompanhá-lo agora através do aparelho no
ouvido. Seria bom, mas o meu equipamento era limitado. É que, sabe,
nunca pensei que fosse mesmo usá-lo… Que velho tonto! Cabeça de alho
chocho! Estúpido, estúpido! E é por isso que não tenho outra balinha verde
como aquela. Mas agora vá!
— Uma última coisa, rápido. Arranje uma mala, ponha lá as suas roupas
mais sujas, um fato velho, quanto mais sujo melhor, uma camisa, ténis
velhos e meias…
Em menos de um minuto Faber regressou com a mala, que ambos
fecharam com fita adesiva.
— Para manter o velho odor do Sr. Faber, claro — disse este, a suar.
Montag regou a mala com whisky.
— Não quero que o Cão capte dois odores ao mesmo tempo. Posso levar
o whisky comigo? Vou precisar mais tarde. Só espero que isto resulte!
Apertaram as mãos mais uma vez e, antes de saírem, olharam uma última
vez para a TV. O Cão estava a caminho, seguido pelas câmaras nos
helicópteros, em silêncio, sempre em silêncio, farejando o vento poderoso
da noite. Corria por uma ruela abaixo.
— Adeus!
E Montag esgueirou-se pela porta das traseiras com a mala meio vazia.
Lá atrás, conseguia ouvir os aspersores já ligados, a encherem o ar soturno
de uma chuvinha agradável, seguida de uma bátega mais intensa que
escorria pelos passeios até à rua. Deixou que parte dessa chuva lhe
molhasse o rosto. Pensou ter ouvido o velho a dizer-lhe adeus, mas não teve
a certeza.
Correu rapidamente para longe da casa, na direção do rio.

Montag corria.
Conseguia sentir o Cão na sua peugada, como um outono frio, seco e
repentino, como um vento que não agitava a erva, que não abanava as
janelas ou dispersava as folhas mortas nos passeios brancos à sua passagem.
O Cão não tocava o mundo. Transportava para todo o lado aquele silêncio,
um silêncio que aumentava a pressão sobre as suas presas fosse onde fosse.
Montag sentiu essa pressão a aumentar também, e continuou a correr.
Parou para recuperar o fôlego, a caminho do rio. Espreitou através das
janelas fracamente iluminadas de algumas casas e pôde ver silhuetas de
pessoas nas suas salas de ecrãs, onde o Cão Mecânico, exalando um bafo de
vapor de néon, continuava a sua caminhada de aranha, ora mostrando-se,
ora escondendo-se. Ia já na Elm Terrace, depois meteria pela Lincoln e a
Oak, a seguir pela Park e, finalmente, estaria na rua da casa de Faber.
“Segue em frente”, pensou ele, “não pares, segue, não vires!”
Nos ecrãs via-se agora a casa de Faber, com os aspersores a bombearem
água no ar noturno.
O Cão parou, e parecia estar a tremer.
“Não!” Montag colou o rosto à janela. “Por aqui! Aqui!”
A agulha de procaína estendeu-se para fora do focinho, recolheu-se,
voltou a sair, voltou a recolher-se, não sem antes deixar cair uma gota
daquela substância milagrosa.
Montag susteve a respiração, como se dois punhos cerrados lhe
oprimissem o peito.
O Cão Mecânico deu meia volta e recomeçou a marcha rua abaixo,
afastando-se da casa de Faber.
Montag ergueu o olhar para o céu. Os helicópteros estavam mais perto,
como enxames de insetos atraídos a uma única fonte de luz.
Com esforço, lembrou-se de que aquilo não era um episódio de uma série
ficcional que ele pudesse ir vendo a caminho do rio: era o jogo de xadrez da
sua própria vida, jogada a jogada.
Gritou para se estimular a fugir daquela janela e do espetáculo fascinante
que decorria nos ecrãs daquela casa.
— Pr’ó inferno!
E pôs-se de novo em fuga. Um beco, uma rua, outro beco, outra rua e o
odor do rio. Pernas para cima, para baixo, cima e baixo. Vinte milhões de
Montags a correrem, como naqueles antigos filmes mudos da Keystone com
polícias e ladrões, perseguidos e perseguidores, caçadores e presas, que vira
vezes sem conta. Atrás dele, agora, havia vinte milhões de Cães a latir,
fazendo ricochete entre todas as salas de ecrãs do país, saltando do ecrã da
parede central para o ecrã da parede da esquerda e depois para o da direita.
Enfiou a Concha no ouvido.
— A Polícia aconselha à população da zona de Elm Terrace que faça o
seguinte: que todos, em todas as casas e em todas as ruas, abram uma porta
dianteira ou traseira ou se ponham à janela, a observar a rua. O fugitivo não
escapará se todos estiverem a observar as ruas no próximo minuto.
Preparem-se!
Claro! Como é que não se tinham lembrado disso antes? Como é que, em
tantos anos, essa experiência nunca tinha sido tentada? Toda a gente a
postos, toda a gente a observar! Alguém iria dar por ele. O único homem a
correr sozinho à noite na cidade, o único homem a usar as pernas para se
movimentar!
— Contando até dez! Um, dois…
Sentiu a cidade a erguer-se.
— … Três…
Sentiu a cidade dirigir-se para os seus milhares de portas.
— … Quatro…
Sonâmbulos a percorrem corredores.
— … Cinco…
Sentiu esses milhões de mãos sobre as maçanetas.
O odor do rio era fresco como o de uma chuva compacta. Tinha a
garganta a saber a ferrugem em brasa e os olhos secos de tanto correr.
Gritou de novo, como se isso o fosse ajudar a continuar, a percorrer as
centenas de metros que faltavam.
— … Seis, sete, oito…
As maçanetas giraram em cinco mil portas.
— … Nove…
Correu para longe da última fila de casas, descendo um declive que ia dar
uma massa negra em movimento.
— … Dez!
Todas as portas se abriram.
Imaginou milhares e milhares de rostos a observarem pátios e becos, a
perscrutarem o céu, rostos ocultos por cortinas, pálidos, quase assustados,
como animais pardos a espreitarem de cavernas elétricas, olhos incolores,
línguas cinzentas e pensamentos cinzentos a observarem o mundo exterior
através da carne dormente dos rostos.
Mas ele já tinha chegado ao rio.
Tocou-lhe, só para ter a certeza de que era real. Entrou no rio lentamente,
despiu-se no escuro até ficar nu e lavou o corpo, braços, pernas e cabeça
com aquela água, que também bebeu e usou para inalar e lavar o nariz.
Depois vestiu as velhas roupas de Faber e calçou os ténis. Atirou as suas
roupas ao rio e viu-as serem levadas pela corrente. Em seguida, agarrando
bem a mala, voltou a entrar no rio e avançou até não ter pé. Depois deixou-
se levar na corrente.

Quando estava a uns duzentos e setenta metros mais abaixo, o Cão


chegou ao rio. Lá em cima era bem audível a algazarra feita pelas hélices
dos helicópteros. Uma tempestade de luz abateu-se sobre o rio e Montag
mergulhou por baixo da superfície iluminada das águas, como se o sol
tivesse aberto caminho por entre as nuvens. Sentiu a força da corrente do
rio a puxá-lo ainda mais, a querer arrastá-lo até à escuridão. Depois as luzes
apontaram para terra e os helicópteros voltaram a sobrevoar a cidade, como
se tivessem encontrado outro rasto. Segundos depois tinham desaparecido.
O Cão desaparecera também. Agora havia apenas o rio gelado e ele a
flutuar ali numa súbita paz, longe da cidade e das luzes e da perseguição,
longe de tudo.
Sentiu ter deixado para trás um palco e os seus muitos atores. Sentiu ter
abandonado uma enorme representação de fantasmas murmurantes. Estava
em trânsito de uma irrealidade assustadora para uma realidade que apenas
parecia irreal por ser nova.
As margens de terra negra deslizavam enquanto ele ia a caminho do
interior do país, por entre montes e colinas. Pela primeira vez em décadas,
viu estrelas no céu, enormes procissões de pequenos fogos circulares. Viu
um colosso de estrelas a formar-se no céu e a ameaçar cair e esmagá-lo.
Quando a mala se encheu de água e se afundou, flutuou de costas: a
corrente do rio era ali branda e aprazível, longe das pessoas que comiam
sombras ao pequeno-almoço, vapor ao almoço e fumo ao jantar. O rio era
bem real: sustinha-o confortavelmente e dava-lhe, por fim, um momento de
ócio, tempo para pensar no mês que transcorrera, no ano passado e em
todos os outros anos da sua vida. Ouviu o ritmo do seu coração a abrandar.
E os seus pensamentos deixaram também de cavalgar ao ritmo da sua
circulação sanguínea.
Viu a lua baixa no céu. A lua, e aquela sua luz especial. Que vinha de
onde? Do sol, obviamente. E de onde vinha a luz do sol? Do seu próprio
fogo. E o sol lá continuava a arder no céu, dia após dia. O sol e o tempo. O
sol e o tempo o fogo. Sempre a arder. O rio transportava-o suavemente. A
arder. O sol e todos os relógios da terra. Tudo se juntou numa única coisa na
sua mente. Depois de muito tempo a flutuar em terra e daquelas curtas
horas a flutuar no rio, soube porque não devia voltar a pôr fogo a nada na
sua vida.
O sol ardia todos os dias. Queimava o Tempo. O mundo corria em círculo
e girava sobre o seu eixo, e o tempo estava já muito ocupado a queimar os
anos e as pessoas, sem precisar da sua ajuda para o fazer. Por isso, se ele
queimava coisas junto com os outros bombeiros enquanto o sol queimava o
tempo, então tudo estava a ser queimado!
Alguém teria de deixar de queimar. O sol não seria, certamente. Isso
significava que teria de ser Montag e as pessoas com quem trabalhara até
umas horas antes. Teria de se começar de novo a registar coisas e a pô-las a
salvo algures, e alguém teria de fazer esse trabalho, de uma forma ou de
outra, em livros, em discos, na memória das pessoas, fosse como fosse
desde que tudo ficasse a salvo das traças, dos tisanuros, da ferrugem, do
apodrecimento, dos homens com fósforos. O mundo estava farto de tanta
coisa queimada. Estava na hora de criar o grémio dos tecelões de amianto.
Sentiu que a cabeça batera em terra, seixos e pedras e areia. O rio levara-
o para a margem.
Olhou para aquela enorme criatura desprovida de olhos e luz, sem forma,
apenas com um tamanho de milhares de quilómetros, que não parecia
querer parar de correr por entre colinas verdejantes e florestas que agora
aguardavam Montag.
Hesitou em abandonar o fluxo reconfortante da água. Pensou que o Cão
poderia andar por ali. As árvores poderiam dobrar-se subitamente sob a
força do vento das hélices dos helicópteros.
Mas apenas se sentia o vento normal e alto do outono, que corria como se
fosse outro rio. Porque não andava ali o Cão? Porque tinha a perseguição
mudado de rumo? Pôs-se à escuta. Nada. Nada.
“Millie, vê-me só toda esta paisagem!”, pensou. “Ouve-me só isto! Nada
e nada! Apenas silêncio. Tanto silêncio, Millie. Penso no que dirias se
estivesses aqui. Punhas-te a gritar ‘cala-te, cala-te’, não era? Oh, Millie,
Millie…” E ficou triste.
Millie não estava ali, nem o Cão, mas o odor seco a feno que o vento
trazia de um campo distante fincou-lhe os pés na terra. Lembrou-se de uma
quinta que visitara quando era criança, uma das raras vezes em que
descobriu que, por trás dos sete véus de irrealidade, para além dos ecrãs-
paredes e dos fossos de lata das cidades, havia vacas que pastavam, porcos
que se sentavam em poças de água morna ao fim do dia e cães que
ladravam a ovelhas brancas em colinas.
Esse odor seco a feno e o movimento das águas fizeram-no pensar em
acolher-se num celeiro isolado e distante das autoestradas, nas traseiras de
uma quinta, para dormir sobre um colchão de feno fresco, sob a proteção de
um velho moinho de vento que roncava ao som da passagem dos anos.
Pernoitaria no sótão do celeiro, a ouvir os sons dos animais, dos insetos e
das árvores, todos aqueles pequenos movimentos e agitações.
Durante a noite, pensou que talvez fosse ouvir também, no andar térreo
do celeiro, o som de passos. Isso deixá-lo-ia tenso e faria com que se
sentasse. O som desapareceria. Voltaria a deitar-se e a olhar pela janela do
sótão, vendo as luzes na casa da quinta a apagarem-se, até que uma mulher
muito jovem e bela se sentasse às escuras junto a uma janela para entrançar
o cabelo. Seria difícil vê-la com nitidez, mas o seu rosto seria como o
daquela rapariga que conhecera já há tanto, tanto tempo, a rapariga que
sabia do tempo e que nunca fora picada pelos vaga-lumes, a rapariga que
soubera o significado de um dente-de-leão esfregado no queixo. Depois a
mulher sairia de junto da janela e voltaria a aparecer no andar de cima, na
janela do seu quarto iluminado pela lua. E então, ao som da morte, o som
dos aviões a jato que rasgavam o céu em duas metades de escuridão lá
longe no horizonte, deitar-se-ia para dormir, abrigado e a salvo, vendo
aquelas novas e estranhas estrelas acima da órbita terrestre em fuga das
cores suaves da aurora.
Chegada a manhã, não sentiria falta de dormir um pouco mais, pois todos
os mornos odores e o ambiente de uma noite inteira no campo tê-lo-iam
recomposto, e os seus olhos abrir-se-iam sem custo, e à sua boca, quando
pensasse em testá-la, regressaria um meio-sorriso.
E ao fundo da escada que subira para chegar ao sótão estaria algo
incrível. Descê-la-ia cuidadosamente, à luz rosada da manhãzinha, tão
consciente do mundo à sua volta que sentiria medo, e ficaria em pé a
observar durante uns segundos aquele pequeno milagre antes de se ajoelhar
para lhe tocar.
Um copo de leite fresco e algumas maçãs e peras ao fundo da escada.
Seria tudo o que precisaria. Um sinal de que o mundo imenso o aceitaria
e lhe daria o tempo de que necessitava para pensar em tudo o que precisava
de ser pensado.
Um copo de leite, uma maçã, uma pera.
Saiu do rio.
A terra veio ao seu encontro como uma onda poderosa. Sentiu-se
esmagado pela escuridão e pela paisagem e pelos milhões de odores
trazidos pelo vento que lhe gelava o corpo. Virou-se. As estrelas caíam
sobre ele como meteoros incandescentes. Quis mergulhar no rio de novo e
deixar que ele o transportasse preguiçosamente para outro local. Esta terra
negra que se erguia à sua frente era como aquele dia da sua infância, em que
nadava e, de súbito, vinda sabe-se lá de onde, a maior onda de que haveria
memória se abateu sobre ele e o empurrou contra o leito de lama salgada e
uma escuridão esverdeada, com a água a queimar-lhe a boca e o nariz, e ele
a conter a vontade de vomitar e a gritar. Demasiada água!
Demasiada terra.
Do muro de negrume à sua frente veio um sussurro. Uma forma. Nessa
forma, dois olhos. A noite a observá-lo. A floresta a vê-lo.
O Cão!
Depois de toda aquela correria, de todo aquele suor derramado, de quase
se ter afogado, de ter chegado tão longe e feito tudo para se proteger e se
manter a salvo, de quase suspirar de alívio ao sair finalmente do rio, depois
de tudo isso encontrar…
O Cão!
Montag soltou um grito de agonia, como se tudo aquilo fosse de mais
para um único homem.
A forma à sua frente explodiu. Os olhos desvaneceram-se. As folhas
amontoadas voaram, sacudidas por uma brisa seca.
Montag estava sozinho no meio da natureza.
Um veado. Sentira o odor fortemente almiscarado do animal, junto com o
sangue e o hálito deste, uma mistura de gengibre, musgo e ambrósia que
enchia o ar daquela noite imensa em que as árvores corriam para ele e se
afastavam, vinham e iam, ao ritmo do coração que lhe batia atrás dos olhos.
Devia haver ali mil milhões de folhas sobre a terra. Avançou por entre
elas, como num rio seco e morno que cheirasse a cravos-da-índia e poeira.
E os outros odores! Das terras do interior vinha um cheiro a batata acabada
de cortar, cru, frio e branco de tanta exposição à luz da lua. Havia também
um cheiro a picles em frasco e a salsa em cima da mesa da cozinha. Havia
um ligeiro odor amarelado, como o da mostarda. Um odor a cravos no
jardim da casa ao lado. Pousou a mão no solo e sentiu uma folha de erva
que crescia a roçar-se nele. Os seus dedos cheiravam a alcaçuz.
Ficou ali a respirar, e quanto mais inalava todos aqueles odores, mais
detalhes da terra ia absorvendo. Não estava vazio. Ali havia mais do que o
suficiente para o encher. Haveria sempre mais do que o suficiente.
Caminhou sobre o leito pouco profundo de folhas, evitando tropeçar.
E, no meio daquela estranheza, algo familiar.
O seu pé batera em algo que soara.
Com a mão afastou as folhas do chão para um lado e para o outro.
A linha de caminho de ferro.
A linha ferrugenta que vinha da cidade e atravessava o interior do país,
passando por florestas e matas, ali mesmo junto ao rio, deserta.
Aqui estava o trilho que o levaria aonde devia ir. Aqui estava a única
coisa reconhecível, o amuleto mágico de que necessitaria, para tocar, para
sentir sob os seus pés, enquanto se movia na direção dos arbustos e dos
lagos de cheiros, sensações e toques, por entre os sussurros e as folhas que
caíam sopradas pelo vento.
Começou a caminhar ao longo dos carris.
E sentiu surpresa ao aperceber-se da súbita certeza que tinha de algo que
não conseguia provar: há muito tempo, Clarisse caminhara ali também, no
mesmo local em que ele caminhava agora.

Meia hora mais tarde, enregelado, movendo-se cuidadosamente junto


aos carris, plenamente consciente de todo o seu corpo, do seu rosto, da sua
boca, com os olhos cheios de escuridão, os ouvidos repletos de sons, as
pernas picadas de cardos e urtigas, viu uma fogueira ao longe.
Como um olho que pestanejasse, o fogo via-se e depois deixava de se ver,
para se ver logo a seguir. Parou, com receio de apagá-lo com um simples
suspiro. Mas o fogo estava realmente lá e ele começou a aproximar-se
cautelosamente. Levou-lhe uns quinze minutos até chegar bem perto das
chamas. Pôs-se a admirá-las de um lugar seguro. Aquele movimento
discreto, o branco e o vermelho das chamas, a estranheza de um fogo que
parecia ter um significado diferente do habitual.
Aquele fogo não ardia; aquecia.
Viu muitas mãos que se aqueciam junto a ele, mãos sem braços,
escondidas na escuridão. Acima das mãos, rostos imóveis a que apenas a
luz e a ondulação do fogo davam uma aparência de movimento. Não sabia
que um fogo podia ter aquele aspeto. Nunca na sua vida fizera ideia de que
o fogo, além de tirar, podia dar também. Até o seu cheiro era diferente.
Não soube bem quanto tempo ali ficou a observar, até ser tomado por
uma sensação irracional mas deliciosa: a de ser um animal saído da floresta,
atraído pela fogueira. De ser uma coisa com pelo e olhos líquidos, com pele
grossa, com focinho e cascos, uma coisa com cornos e sangue que cheirasse
a outono se fosse derramado. Ficou ali muito tempo, a ouvir o caloroso
crepitar das chamas.
Em volta daquela fogueira havia silêncio, e o silêncio estava nos rostos
dos homens. Também havia tempo, tempo para se sentarem junto àquele
velho troço ferrugento da linha ferroviária, sob a proteção das árvores, e de
olharem para o mundo, de o virarem de pernas para o ar com os olhos,
como se o mundo estivesse no centro da fogueira, um bocado de aço que
todos estivessem a moldar ali mesmo. Não era apenas o fogo que parecia
diferente. Era o silêncio também. Montag dirigiu-se para aquele silêncio
especial que dava a impressão de cuidar de todo o mundo.
E então as vozes surgiram, falando, e ele não conseguiu ouvir o que
falavam, mas o som delas erguia-se e descia suavemente, e as vozes faziam
girar o mundo enquanto o observavam. As vozes conheciam a terra, as
árvores e a cidade que ficava num dos extremos da linha do comboio que
corria junto ao rio. As vozes falavam de tudo, não havia nada de que não
pudessem falar, sabia-o: a cadência delas, o seu movimento e o contínuo
impulso de curiosidade e espanto que as animava deixavam isso bem claro.
E então um dos homens ergueu o olhar e viu-o, pela primeira ou talvez
sétima vez, e uma voz chamou-o.
— Está tudo bem. Pode vir!
Montag recuou, envolto nas sombras.
— Está tudo bem — repetiu a voz. — É bem-vindo.
Montag caminhou lentamente na direção do fogo e dos cinco velhos que
se sentavam junto a este, envergando calças e blusões de ganga e camisas
de um azul-escuro. Não soube o que dizer-lhes.
— Sente-se — disse o homem que parecia ser o líder do pequeno grupo.
— Quer um pouco de café?
Observou o líquido escuro e fumegante a ser vertido para uma caneca de
lata que lhe foi oferecida de imediato. Bebericou com cuidado e sentiu-os a
olharem-no com curiosidade. O café escaldou-lhe os lábios, mas gostou da
sensação. Os rostos à sua volta exibiam barbas, mas estas estavam limpas e
bem cuidadas, e as mãos dos homens pareciam lavadas. Tinham-se erguido
como se estivessem a dar as boas-vindas a um convidado, e agora voltavam
a sentar-se. Montag continuou a bebericar.
— Obrigado — disse. — Muito obrigado.
— De nada, Montag. Chamo-me Granger. — Tinha na mão uma pequena
garrafa com um líquido incolor. — Beba isto também. Vai mudar-lhe o
registo químico da transpiração. Daqui a meia hora já ninguém vai
conseguir reconhecê-lo pelo cheiro. E tendo o Cão a persegui-lo, o melhor é
beber tudo.
Montag bebeu o líquido amargo.
— Vai tresandar a lince, mas não faz mal — disse Granger.
— Você sabe o meu nome — disse Montag.
Granger anuiu com a cabeça na direção de um pequeno televisor portátil
aos seus pés, junto à fogueira.
— Temos acompanhado a perseguição. Achámos que, mais tarde ou mais
cedo, iria dirigir-se para sul ao longo do rio. Quando o ouvimos aos
tropeções pela floresta como um alce bêbado, não nos escondemos como
habitualmente. Calculámos que estaria no rio quando vimos, pelas imagens
captadas dos helicópteros, que estes tinham regressado à cidade. Há algo
estranho ali. Continuam a caçada, mas no sentido inverso.
— No sentido inverso?
— Vamos ver.
Granger ligou o televisor. A imagem naquele aparelho, que há anos
passava de mão em mão, era uma cacofonia visual, muito condensada, com
a cor instável.
— A caçada continua a norte da cidade! Os helicópteros da polícia
convergem para a Avenida 87 e para o Parque de Elm Grove.
— Estão a mentir — disse Granger. — Você despistou-os quando chegou
ao rio. Eles não podem admiti-lo. E sabem que, por muito que se esforcem,
o interesse das pessoas vai acabar por se esfumar. O programa vai ter de ter
um final abrupto, rápido. Se se pusessem a buscar rio acima, a coisa ia
demorar toda a noite. Por isso, vão à procura de um bode expiatório para
acabarem a coisa com um estoiro. Veja. Aposto que vão apanhar esse tal de
Montag em menos de cinco minutos.
— Mas como?...
— Veja.
A câmara instalada na barriga de um helicóptero mostrava agora uma rua
deserta.
— Está a ver? Vai ser você, ali ao fundo daquela rua. É lá que vai estar a
nossa vítima. Está a ver como a câmara filma o local? A preparar a cena.
Suspense. Um plano geral. A esta altura, um pobre diabo deve andar por ali
a passear. Uma raridade. Um excêntrico. Não creia que a polícia
desconhece os hábitos de tipos esquisitos como esses, homens que
caminham de manhãzinha apenas porque lhes apetece, ou porque têm
insónia. Seja como for, a polícia já o tem na ficha há meses, se calhar anos.
Nunca se sabe quando essa informação vai dar jeito. E acontece que hoje
ela vem mesmo a calhar. Permite-lhes salvarem a cara. Oh, olhe ali!
Os homens em torno da fogueira dobraram-se um pouco mais.
No ecrã do televisor, viu-se um homem a dobrar uma esquina. O Cão
Mecânico começou subitamente a correr em frente. Do helicóptero
desceram feixes de luzes em círculo que criaram uma espécie de jaula em
torno do homem.
— Ali está Montag! — gritou o narrador. — A caçada chegou ao fim!
O inocente permaneceu ali, estupefacto, com um cigarro nos dedos.
Olhou para o Cão, sem saber o que era aquilo. Provavelmente nunca tinha
visto um. Olhou para o céu, onde as sirenes dos helicópteros soavam. A
câmara desceu e aproximou-se mais. O Cão saltou no ar, exibindo uma
noção de ritmo e de tempo de uma incrível beleza. A agulha estendeu-se
para fora da mandíbula. O plano de pormenor desta durou o tempo
suficiente para que a vasta audiência pudesse apreciar tudo, incluindo a
expressão no rosto da vítima, a rua deserta, o animal de aço como uma bala
dirigida ao alvo.
— Não se mexa, Montag! — gritou uma voz vinda do céu.
A câmara aproximou-se da vítima ao mesmo tempo que o Cão o fazia.
Ambos chegaram a ele no mesmo e preciso instante. A vítima foi agarrada
pelo Cão e pela câmara num movimento amplo de aracnídeo. A vítima
gritou. Gritou. Gritou.
Luzes apagadas.
Silêncio.
Escuridão.
Montag começou a chorar no silêncio e desviou o olhar do televisor.
Silêncio.
E então, depois de algum tempo, em que os homens se limitaram a
estarem ali sentados em torno do fogo, sem qualquer expressão nos rostos,
ouviu-se de novo a voz do narrador da emissão.
— A perseguição chegou ao fim. Montag está morto. Foi vingado um
crime contra a sociedade.
Escuridão.
— Continuamos a emissão da Sala Celeste do Hotel Lux para meia hora
de “Mesmo Antes de Amanhecer”, um programa de…
Granger desligou o televisor.
— Reparou como não mostraram o rosto do homem bem focado? Mesmo
os seus melhores amigos não teriam a certeza de que você era aquele
homem. Fizeram as coisas de modo a que a imaginação do espectador
preenchesse o que faltava. Que horror. Que horror!
Montag manteve-se em silêncio, perdido nos seus pensamentos, sentado
de olhos no ecrã negro, a tremer.
Granger tocou-lhe no braço.
— Seja bem-regressado dos mortos.
Montag anuiu.
— Mais vale que fique a conhecer-nos — prosseguiu Granger. — Este é
o Fred Clement, anterior ocupante da cátedra Thomas Hardy na
Universidade de Cambridge nos anos que antecederam a sua transformação
na Escola de Engenharia Atómica. Este aqui é o Dr. Simmons da UCLA,
um especialista em Ortega y Gasset. Aqui o professor West fez muita
investigação no ramo da Ética, ramo agora abandonado, nos anos em que
esteve na Universidade de Columbia. O reverendo Padover deu algumas
palestras há uns trinta anos, e, graças às suas opiniões, perdeu a
congregação de um domingo para o outro. Juntou-se a nós há algum tempo.
E eu escrevi um livro chamado Os Dedos na Luva: a Relação Correta entre
o Indivíduo e a Sociedade. E aqui estou! Bem-vindo, Montag!
— Eu não pertenço aqui — acabou por dizer Montag, muito lentamente
de início. — Limitei-me a ser um idiota toda a minha vida.
— É algo a que estamos habituados. Todos nós cometemos os erros
certos, de outra forma não estaríamos aqui. Antes de nos juntarmos aqui,
tudo o que nos restava era a raiva. Eu ataquei um bombeiro quando vieram
queimar-me a biblioteca há muitos anos. Desde aí que ando em fuga. Quer
juntar-se a nós?
— Quero.
— Que tem para nos oferecer?
— Nada. Pensei que tinha conseguido trazer parte do Livro de
Eclesiastes e ainda parte das Revelações, mas já nem isso tenho.
— O Livro de Eclesiastes seria muito bom. Onde o tinha guardado?
— Aqui — respondeu Montag, apontando à sua cabeça.
— Ah!
Granger sorriu e anuiu com a cabeça.
— Que se passa? Algum problema?
— Bem pelo contrário. É perfeito!
Granger virou-se para o reverendo.
— Temos algum Livro de Eclesiastes?
— Temos. Um tipo chamado Harris em Youngstown.
— Montag, tome cuidado de si — disse Granger, enquanto agarrava
Montag firmemente pelo ombro. — Cuide da sua saúde. Se algo acontecer
ao Harris, você passa a ser o Livro de Eclesiastes. Está a ver a importância
que adquiriu no último minuto?
— Mas eu esqueci tudo!
— Não, nada se perde definitivamente. Temos formas de o ajudar a
lembrar-se.
— Mas eu tentei tudo…
— Não tente. Voltará a si quando precisarmos. Todos nós temos
memórias fotográficas, mas passamos uma vida inteira a aprender a
bloquear tudo o que lá guardamos. Aqui o Simmons passou vinte anos a
estudar o assunto e agora temos um método através do qual é possível
desbloquear tudo o que tenha sido lido pelo menos uma vez. Gostaria de ler
um dia destes a República de Platão?
— Claro!
— Eu sou a República de Platão! Gostaria de ler Marco Aurélio? O
Simmons é o seu Marco Aurélio.
— Prazer — cumprimentou-o Simmons.
— Igualmente — retorquiu Montag.
— Quero que conheça o Jonathan Swift, o autor daquele livrinho
diabólico, As Viagens de Gulliver! E este aqui é o Charles Darwin, e este é
o Schopenhauer, este o Einstein, e este ao meu lado é o Sr. Albert
Schweitzer, um filósofo assaz delicado. E aqui estamos todos, Montag.
Aristófanes, Mahatma Gandhi, Gautama Buddha, Confúcio, Thomas Love
Peacock, Thomas Jefferson ou o Sr. Lincoln, como preferir. Também
fazemos as vezes de Mateus, Marcos, Lucas e João.
Todos riram.
— Não pode ser!...
— Mas é — respondeu Granger, ainda a sorrir. — Somos queimadores de
livros também. Lemos os livros e queimamo-los, com receio de que possam
ser descobertos. Microfilmá-los não resultou: estávamos sempre a ir de um
lado para o outro, não queríamos esconder o filme e voltar a procurá-lo
quando regressássemos. E havia sempre a possibilidade de que fosse
descoberto também. Era melhor guardar tudo nas nossas cabeças, aonde
ninguém consegue aceder facilmente. Somos todos bocados e pedaços de
história, literatura e direito internacional, de Byron, Tom Paine, Maquiavel
ou Cristo. Está tudo aqui dentro. E a hora já é tardia. E a guerra começou. E
nós estamos aqui e a cidade está acolá, coberta pelo seu manto
multicolorido. Que lhe parece, Montag?
— Acho que aquele meu plano de esconder livros nas casas dos
bombeiros e de acionar alarmes foi uma cegueira.
— Fez o que tinha de fazer. Se isso tivesse sido feito a uma escala
nacional, poderia ter resultado maravilhosamente. Mas achamos que o
nosso método é mais simples e melhor. Tudo o que queremos fazer é manter
intacto e seguro o conhecimento que acreditamos irá ser-nos útil no futuro.
Não queremos incitar violência ou ódio contra ninguém. Porque, se nos
destruírem, o conhecimento perder-se-á também, talvez para sempre.
Somos cidadãos exemplares, à nossa maneira, é certo: caminhamos ao
longo dos velhos carris, pernoitamos nas colinas, e as pessoas da cidade
deixam-nos em paz. De vez em quando a polícia aborda-nos, mas nunca
encontra nada que nos possa incriminar. Temos uma organização flexível,
solta e fragmentária. Alguns de nós chegaram a fazer operações plásticas ao
rosto e às pontas dos dedos, para evitar impressões digitais. Agora temos
uma tarefa horrível em mãos: esperar que a guerra comece e, tão
rapidamente como começou, acabe. Não será agradável, mas também não
somos nós quem controla as coisas: somos apenas uma minúscula minoria
escondida na natureza. Quando a guerra terminar, talvez possamos ser de
novo úteis ao mundo.
— Acham mesmo que vos darão ouvidos?
— Se não o fizerem, teremos apenas de esperar. Passaremos os livros aos
nossos filhos, boca a orelha, e deixaremos que, por seu turno, os nossos
filhos os passem a outros. Perder-se-á muito pelo caminho, claro. Mas é
impossível obrigar as pessoas a escutarem-nos. Têm de vir pelo seu próprio
pé e movidas pela sua própria vontade, pela curiosidade de saber o que
aconteceu, de conhecer as razões da destruição do mundo que conheciam.
Este estado de coisas não durará.
— Quantos são vocês?
— Esta noite há milhares ao longo das estradas e dos troços de caminho
de ferro abandonados. Vagabundos por fora, bibliotecas por dentro. Não foi
algo planificado rigorosamente. Cada homem tinha um livro que queria
memorizar e fê-lo. Depois, durante um período de mais ou menos vinte
anos, fomo-nos encontrando nas nossas viagens e a rede de contactos foi-se
formando aos poucos, até pensarmos na solução. A coisa mais importante
que tivemos de enfiar nas nossas cabeças foi que nós não éramos
importantes, e que não devíamos ser pedantes, não devíamos sentir-nos
superiores a ninguém. Não passamos de sobrecapas de livros, sem outra
particular importância. Alguns de nós viviam em pequenas cidades. O
primeiro capítulo do Walden do Thoreau vivia em Green River, o segundo
capítulo vivia em Willow Farm, lá para o Maine. Numa vilória algures no
Maryland, com apenas vinte e sete habitantes, vivem os ensaios completos
de Bertrand Russell. As hipóteses de uma bomba lá cair são muito remotas.
Se for lá, pode folhear a obra completa, habitante a habitante. E quando a
guerra acabar, um dia destes, um ano destes, poderemos voltar a escrever
livros, e todas essas pessoas serão chamadas, uma a uma, para recitar o que
decoraram, e voltaremos a imprimir tudo isso de novo, até que venha uma
nova idade das trevas, e lá teremos de repetir a coisa. Mas é isso que a
humanidade tem de maravilhoso: por mais desencorajantes e terríveis que
sejam as circunstâncias, nunca deixa de voltar a tentar, porque sabe que há
coisas que são importantes e merecedoras do risco da tentativa.
— Que fazemos esta noite?
— Esperamos — disse Granger. — E, pelo sim, pelo não, avançamos um
pouco junto ao rio, para jusante.
Começou a atirar terra para cima da fogueira.
Os outros homens ajudaram-no, e Montag fez o mesmo. E ali, no meio da
natureza, todos os homens moveram as mãos em sincronia para apagarem
aquele fogo em conjunto.

Permaneceram junto ao rio sob o céu estrelado.


Montag olhou para os ponteiros luminosos do seu relógio à prova de
água. Cinco. Cinco da manhã. Outro ano que escorria ao ritmo da passagem
das horas, e a aurora prestes a despontar por trás da outra margem do rio.
— Porque confiam em mim? — disse Montag.
Um homem moveu-se na escuridão.
— Basta olhar para si para confiar. Há muito que não se vê a um espelho.
Para além disso, a cidade nunca nos deu tanta importância ao ponto de nos
incomodar com uma caçada deste tipo. Uma cambada de malucos com
versos na cabeça não lhes fazem mossa, e eles sabem-no e nós também.
Toda a gente sabe. Desde que a esmagadora maioria da população se esteja
a borrifar para o que está na Magna Carta ou na Constituição, está tudo
bem. Os bombeiros chegavam para ir controlando pontualmente a situação.
Não, as cidades não querem saber nada de nós. E você está com um aspeto
horrível.
Avançaram ao longo da margem do rio a caminho do sul. Montag tentou
ver os rostos dos homens, os rostos velhos e cansados que vislumbrara junto
à fogueira. Procurava um brilho, uma determinação, um sinal de triunfo
sobre o que viria no dia à sua frente, mas nada disso parecia estar ali. Talvez
tivesse esperado que, graças ao conhecimento que as suas mentes
carregavam, os seus rostos brilhassem no escuro como lanternas, com uma
luz própria. Mas toda a luz naquele lugar viera da fogueira, e estes homens
não pareciam muito diferentes de quaisquer outros que andassem há muito
em fuga, em busca de algo, que tivessem visto coisas boas a serem
destruídas, e que agora, já muito tarde, se tivessem juntado para esperarem
juntos pelo fim da festa e pelo desligar das luzes. Não tinham qualquer
certeza de que o que carregavam nas suas cabeças fosse garantir futuros
amanheceres radiosos de luz pura. Não tinham a certeza de nada a não ser
que os livros que armazenavam por trás dos seus olhos serenos estavam
prontos, com as páginas ainda por abrir, à espera dos clientes que pudessem
aparecer dali a uns anos para os folhear, com dedos limpos ou mais sujos.
À medida que caminhavam, Montag observou cada rosto com os olhos
semicerrados.
— Não julgue um livro pela capa — disse um dos homens.
E todos riram serenamente, continuando a marcha.

Ouve um grito e os jatos que atravessavam o céu tinham desaparecido


antes mesmo de os homens olharem para cima. Montag olhou no sentido da
cidade, lá longe, uma aura que se apagava na sua memória.
— A minha mulher ficou lá.
— Lamento sabê-lo. As cidades vão passar um mau bocado nos próximos
dias.
— O estranho é que não sinto falta dela. O estranho é que não sinto falta
de muita coisa. Acabo de me aperceber que, mesmo que ela morra, não
creio que ficarei triste. Não está certo. Deve haver algo de errado em mim.
— Ouça — disse Granger, pegando-lhe no braço e caminhando ao seu
lado, afastando os arbustos e ramos no seu caminho — quando eu era um
miúdo, o meu avô, que era escultor, morreu. Era um homem muito
bondoso, com muito amor para distribuir pelo mundo, e ajudou muita gente
que vivia no bairro de lata da nossa cidade. Fazia-nos brinquedos, e fez uma
data de coisas na vida. Estava sempre com as mãos ocupadas. E quando
morreu, eu apercebi-me subitamente de que não estava a chorar por ele mas
pelas coisas que ele fazia. Chorei porque soube que ele nunca mais iria
fazê-las, nunca mais iria esculpir outro pedaço de madeira ou ajudar-nos a
criar pombos no pátio das traseiras ou a tocar violino como ele sabia ou a
contar-nos piadas à maneira dele. Ele fazia parte de nós, e quando morreu
tudo o que fazia cessou e não restava ninguém que pudesse fazê-lo como
ele. Era um indivíduo. Um homem importante. Nunca recuperei da sua
morte. Dou por mim a pensar muitas vezes: “que peças maravilhosas em
madeira nunca foram feitas porque ele morreu, quantas piadas estão
ausentes do mundo, quantos pombos nunca conheceram o toque das mãos
dele”. Ele moldou o mundo. Fez coisas ao mundo. Na noite em que morreu,
o mundo foi espoliado em dez milhões de pequenas ações.
Montag manteve-se em silêncio, enquanto caminhava.
— Millie, Millie… — acabou por sussurrar. — Millie...
— O quê ?
— A minha mulher... Pobre Millie, pobre, pobre Millie. Não consigo
lembrar-me de nada dela. Penso nas mãos delas mas não as vejo a fazer
nada. Apenas as vejo caídas ao lado do seu corpo ou sobre o seu colo ou a
segurarem um cigarro, mas é tudo.
Montag virou-se de novo para ver a cidade lá atrás.
“Que deste à cidade, Montag?”
“Cinzas.”
“Que se deram os outros entre si?”
“Nada.”
Granger acompanhou Montag nessa última visão da cidade.
— Todos temos de abandonar algo quando morremos, dizia-me o meu
avô. Uma criança, um livro, um quadro, uma casa, um muro ou um par de
sapatos. Ou um jardim acabado de plantar. Algo que tenhamos tocado de
uma certa forma, para que a nossa alma possa ter um sítio para onde ir
quando morrermos. E quando depois olharem para essa árvore ou essa flor
que plantámos, é como se olhassem para nós. Não importa o que fazemos,
dizia-me ele, desde que mudemos algo por ação das nossas mãos e o
transformemos numa extensão de nós assim que o largamos. Dizia que a
diferença entre o homem que se limita a aparar a relva e um verdadeiro
jardineiro está no toque. O aparador de relva está ali como podia não estar;
o jardineiro estará ali uma eternidade.
Granger retirou a mão do braço de Montag.
— O meu avô mostrou-me algumas vezes um filme sobre os mísseis V-2,
há uns cinquenta anos — prosseguiu. — Já viu como é um cogumelo
atómico visto de muitos quilómetros acima? É uma cabeça de alfinete,
quase nada. À volta, apenas a natureza. Ele esperava que um dia as cidades
se tornassem menos fechadas e deixassem entrar a verdura e a natureza,
para que as pessoas se lembrassem que nos foi concedido um pequeno
espaço na Terra e que apenas sobreviveremos numa natureza que possa
colher de volta o que nos deu, tão facilmente como exalando o seu hálito de
vento sobre nós ou enviando-nos o oceano para que tenhamos a noção do
nosso verdadeiro tamanho. Dizia que quando nos esquecermos do perto que
estamos do mundo natural, este virá buscar-nos uma noite e lembrar-nos-á
do quão terrível e real é. Está a ver? O meu avô morreu há imenso tempo,
mas, se agora me retirasse o crânio, veria na textura do meu cérebro as
marcas dos dedos dele. Ele deixou uma grande marca em mim. Como lhe
disse, era escultor. “Detesto aquele conceito romano de status quo!”, disse-
me certa vez. “Enche os teus olhos de coisas maravilhosas, vive como se
fosses morrer dali a dez segundos, vê o mundo, é mais fantástico do que
qualquer sonho produzido em fábricas, não exijas garantias nem segurança,
nunca houve disso na natureza, e mesmo que tenha havido, seria algo mais
próprio da preguiça que passa o dia pendurada de um ramo de árvore e a
vida a dormir. Raios o partam, abana a árvore e deita abaixo essa preguiça,
fá-la cair de cu no chão!”
— Olhe! — gritou Montag.
E a guerra começou e acabou nesse mesmo instante.

Mais tarde, os homens em redor de Montag não foram capazes de


admitir terem visto algo. Talvez uma ligeira luminescência no céu, um
movimento quase impercetível. Talvez as bombas lá estivessem, e os aviões
a jato, a dezasseis, a oito ou um quilómetro e meio acima do solo, naquele
breve instante, como grãos atirados pelos céus por uma mão gigante e
semeadora e caindo com um misto de velocidade e lentidão sobre a cidade
que amanhecia, a cidade que tinham deixado para trás. Para todos os
efeitos, o bombardeamento terminara: assim que os jatos, voando a quase 8
mil km/hora, tinham avistado o seu alvo e alertado os bombardeiros, a
guerra tinha acabado praticamente, e tão rapidamente como o súbito
sussurro de uma foice. Assim que as bombas começaram a ser despejadas,
tudo tinha acabado. E naqueles três segundos, todo o tempo que restava à
história, antes mesmo de as bombas chegarem ao solo, os aviões inimigos
tinham desaparecido do outro lado do mundo visível, como balas em cuja
existência um selvagem não acredita porque são invisíveis, mas que, no
entanto, lhe despedaçam o coração, lhe cortam o corpo em vários bocados e
lhe derramam o sangue, estupefacto de se ver assim liberto e espalhado por
todo o lado, tal como o cérebro, que, confuso, esbanja ainda umas últimas e
preciosas memórias antes de morrer.
Aquilo não era algo feito para ser acreditado. Era apenas um gesto.
Montag viu um punho gigante de metal a cerrar-se sobre a cidade e soube
que os gritos dos motores a jato se seguiriam em breve, dizendo ao que
restava “desintegra-te, não deixes pedra sobre pedra, padece, morre!”
Montag tentou congelar mentalmente as bombas no céu por um segundo,
segurando-as com as mãos. “Fuja!”, gritou para Faber. “Foge!”, para
Clarisse. “Foge daí, foge!”, para Mildred. Mas Clarisse, como ele se
lembrava, estava morta. E Faber tinha já fugido da cidade: algures, nos
vales profundos do interior do país, o expresso das cinco da manhã fazia a
sua viagem de uma desolação para outra. Ainda que a desolação não tivesse
chegado, ainda que pairasse apenas no ar, era já algo certo. Antes de o
expresso ter percorrido mais quarenta e cinco metros de autoestrada a
caminho do seu destino, este teria perdido já o seu significado, e o seu
ponto de partida tinha passado de metrópole a lixeira.
E Mildred…
“Foge, corre!”
Viu-a no seu quarto de hotel algures, naquele último meio segundo, com
as bombas a um metro, a trinta centímetros, a dois centímetros do impacto.
Viu-a inclinada para as paredes brilhantes, cheias de cor e movimento, onde
a família lhe falava e falava e falava, onde a família tagarelava sem fim e
dizia o nome dela e lhe sorria e não lhe dizia uma única palavra sobre a
bomba que estava já a dois centímetros do hotel, a um centímetro, a menos.
Inclinada para a parede, como se toda a fome de ver servisse para descobrir
o segredo da sua insone inquietude. Mildred, inclinando-se, ansiosa,
nervosa, como se se preparasse para cair, mergulhar naquela imensidade
ruidosa de cor, afogar-se naquela alegria esfuziante.
A primeira bomba explodiu.
— Mildred!...
Talvez, quem poderia saber, mas talvez os enormes estúdios das estações
de televisão, com os seus emissores de cor, de luz, de conversas
intermináveis, tivessem sido a primeira coisa a desaparecer.
Montag, quase desfalecendo, deixando-se cair no chão, viu ou sentiu, ou
imaginou que viu e sentiu, as paredes a escurecerem no rosto de Mildred,
ouviu o seu grito, porque na milionésima parte de tempo que ainda restava
ela vira o seu rosto refletido no espelho de um ecrã, em vez de numa bola
de cristal, e aquele rosto era de uma tal solidão, o rosto de alguém só
naquele quarto, a tocar em nada, um rosto faminto e a devorar-se a si
mesmo, que ela acabou finalmente por reconhecê-lo como o seu verdadeiro
rosto, antes de olhar rapidamente para o teto no momento em que este e
toda a estrutura do hotel desabavam sobre ela, arrastando-a numa enxurrada
de tijolos, metal, gesso e madeira ao encontro de outras pessoas nos casulos
mais em baixo, todas em queda acelerada até à cave, onde a explosão se
libertou delas à sua maneira brutal.
“Lembro-me”. Montag agarrou a terra. “Lembro-me. Chicago. Chicago,
há muitos anos. A Millie e eu. Foi ali que nos conhecemos! Agora me
lembro. Há muito tempo”.
O impacto golpeou o ar ao longo do rio, tombou os homens como peças
de dominó, agitou as águas, lançou poeira e fez as copas das árvores acima
deles gemerem com a força de um vento poderoso que se dirigia para sul.
Montag espalmou-se no chão, tentando encolher-se, ficar mais pequeno, de
olhos bem cerrados. Pestanejou apenas uma vez. Nesse instante, o que viu
no ar foi a cidade e não as bombas, como se estas tivessem trocado de lugar
com aquela. Durante um daqueles instantes impossíveis, a cidade,
reconstruída e irreconhecível, pareceu mais alta do que alguma vez fora ou
sonhara ser, mais alta do que tinha sido feita pelos homens, erigida em gotas
de betão pulverizado e cintilações de metal despedaçado, um mural que se
elevava como uma avalanche invertida, em milhões de cores, milhões de
pequeninas bizarrias, uma porta no lugar de uma janela, as bases no lugar
dos topos, os lados no lugar das costas. E então a cidade parou de subir e
caiu morta.
O som da sua morte chegou depois.

Ali deitado, com os olhos cerrados cheios de poeira, uma fina


camada húmida de poeira de cimento a cobrir-lhe a boca fechada, aflito por
conseguir respirar, a chorar, Montag deu por si a pensar de novo.
“Lembro-me, lembro-me, lembro-me de outra coisa. Mas de quê? Ah,
sim, sim, de parte do Livro de Eclesiastes. De parte do Eclesiastes e da
Revelação. De parte desse livro, de parte dele, vá, rápido, antes que volte a
desaparecer, antes que passe o efeito do choque, antes que o vento
esmoreça. O Livro de Eclesiastes. Isso.”
E recitou mentalmente, em silêncio, espalmado contra a terra que tremia
ainda, recitou as palavras do livro muitas vezes, e saíram perfeitas, quase
sem esforço, e não havia ninguém por ali a anunciar pastas de dentes, era
apenas o pregador, sozinho, ali no recato da sua mente, a olhá-lo…
— Aí vem… — disse alguém.
Os homens estavam deitados no solo, de bocas abertas para absorverem
todo o ar que pudessem, como peixes fora de água. Agarravam-se à terra
como as crianças se agarravam a coisas familiares, por muito frias ou
mortas que estas estivessem, acontecesse o que acontecesse, com os dedos
enfiados no solo, a gritarem para que os seus tímpanos não rebentassem,
para manterem a sanidade intacta, todos de bocas abertas, Montag a gritar
também, um protesto contra o vento que quase lhes arrancava o rosto, que
lhes golpeava a boca e lhes deixava o nariz a sangrar.
Montag observou a nuvem de poeira a assentar lentamente, como se
caísse de uma peneira, e sentiu aquele grande silêncio a abater-se sobre o
seu mundo. E, ali deitado, pareceu-lhe conseguir ver todos os grãos de
poeira e todas as folhas de erva e ouvir todos os gritos e choros e sussurros
que agora enchiam o mundo. O silêncio caiu sobre a poeira e sobre todo
aquele tempo livre que agora tinham para olhar em volta, para absorver a
realidade daquele dia.
Olhou para o rio. “Iremos para o rio”. Olhou para os velhos carris. “Ou
iremos por ali. Ou caminharemos pelas autoestradas, e teremos tempo de
pensar nisto tudo. E um dia, depois de tudo isto ter assentado em nós, sairá
das nossas mãos e das nossas bocas. E muito do que sairá será mau, mas
sairá também muita coisa certa, o suficiente. O que há a fazer hoje é
começar a caminhar e ver o mundo como ele realmente é, ver o modo como
ele caminha e fala realmente. Agora quero ver tudo. E mesmo que nada do
que eu absorva agora seja meu, depois de algum tempo dentro de mim
passará a sê-lo. Meu Deus, olha-me só para esse mundo aí fora, todo esse
mundo fora de mim, bem para além dos limites do meu rosto, e a única
maneira de tocar-lhe realmente é colocá-lo todo dentro de mim, a circular-
me no sangue, a ser bombeado mil vezes, dez mil vezes ao dia! Absorverei
tudo isso para que nunca se esgote em mim. Um dia destes, terei todo o
mundo em mim. Para já, tenho-o na mira do dedo, já é um começo”.
O vento amainou até morrer.
Os outros homens permaneceram deitados durante uns minutos, na orla
matinal do sono, impreparados ainda para se erguerem e assumirem as
obrigações do dia, as suas fogueiras e refeições, os seus milhentos detalhes,
pé ante pé, mão ante mão. Ficaram ali a pestanejar, a sacudir a poeira dos
olhos. Era possível ouvir a sua respiração rápida, depois lenta, depois
rápida…
Montag sentou-se.
Não se mexeu muito mais, contudo. Os outros fizeram o mesmo. O sol
tocava já o horizonte negro, mostrando uma pontinha avermelhada. O ar
estava frio e cheirava a chuva por vir.
Granger ergueu-se em silêncio, apalpou os braços e as pernas, a
praguejar, a praguejar sem parar por entre os dentes, com lágrimas a
pingarem-lhe do rosto. Arrastou os pés no sentido do rio, para olhar para
montante.
— Tudo arrasado — disse, depois de uma longa pausa. — A cidade
parece um monte de farinha. Desapareceu tudo. — Outra longa pausa. —
Quantos se deram conta do que estava para acontecer? Quantos foram
apanhados de surpresa?
“E por todo o planeta”, pensou Montag, “quantas mais cidades mortas? E
aqui, no nosso país? Cem? Mil?”
Um dos homens acendeu um fósforo e tocou com ele num pedaço de
papel seco que retirou do bolso, enfiando este depois sob um montículo de
erva e folhas. Depois de lhe juntar alguns pequenos galhos húmidos, que
ainda vacilaram mas acabaram por arder, o fogo cresceu e iluminou aquele
recanto da aurora, enquanto o sol se ia erguendo e os homens iam deixando
de olhar na direção da cidade e se iam aproximando do fogo, tropegamente,
sem nada para dizer, com as nucas batidas pela luz solar à medida que se
acocoravam junto às chamas.
De dentro de um oleado em que o embrulhara, Granger retirou um pouco
de bacon.
— Vamos comer agora. Depois damos meia volta e pomo-nos a caminho
para montante, junto ao rio. Deve haver gente a precisar de ajuda.
Alguém passou uma pequena frigideira, onde se colocou o bacon, que
depois foi ao fogo. Depois de uns segundos, o bacon começou a agitar-se e
a dançar na frigideira, exalando um odor que encheu o ar da manhã. Os
homens observaram tudo isto em silêncio.
— Fénix — disse Granger, a olhar para o fogo.
— O quê?
— Havia uma ave idiota chamada Fénix, muito tempo antes de Cristo,
que de séculos a séculos construía uma pira funerária e se imolava nela.
Deve ter sido o primeiro antepassado do Homem. Mas, de cada vez que
ardia nas chamas, reerguia-se das cinzas e voltava a nascer. E parece que
estamos a fazer a mesma coisa, uma e outra vez, só que nós temos algo que
a Fénix nunca teve: sabemos a estupidez que acabámos de fazer. Sabemos
todas as estupidezes que temos feito nestes milénios, e enquanto o
soubermos e formos tendo à mão coisas que no-lo lembrem, pode ser que
um dia deixemos de construir estas malditas piras funerárias e de nos
imolarmos nelas. A cada geração que passa vamos acrescentando mais uns
poucos que se lembram.
Retirou a frigideira do fogo e deixou que o bacon arrefecesse, antes que
todos se servissem e comessem, lenta e cerimoniosamente.
— Agora toca a andar. E fixem bem este pensamento: não somos
importantes. Não somos nada. Algum dia a carga que trazemos poderá
ajudar alguém. Mas nem quando tínhamos os livros à mão, há muitos anos,
demos qualquer uso ao que deles retirávamos. Continuámos a insultar os
mortos. Continuámos a cuspir nas campas dos pobres coitados que tinham
morrido antes. Vamos encontrar muita gente solitária na próxima semana,
no próximo mês, no próximo ano. E quando nos perguntarem o que estamos
a fazer, diremos: “Estamos a lembrar-nos”. É nisso que reside a vitória a
longo prazo. E um dia lembrar-nos-emos de tanta coisa que construiremos a
maior máquina escavadora da história e cavaremos o maior buraco de
sempre para lá metermos a guerra e a enterrarmos. Por agora, construiremos
uma fábrica de espelhos para fabricarmos espelhos atrás de espelhos no
próximo ano, em que possamos todos ver-nos muito bem.
Acabaram de comer e apagaram o fogo. O dia clareava, como se alguém
tivesse dado mais pavio a uma lamparina cor-de-rosa. Nas árvores, os
pássaros que tinham voado em pânico regressavam para voltar a pousar nos
ramos.
Montag começou a andar, mas dali a pouco reparou que os outros tinham
ficado para trás. Ficou surpreendido e, parando, afastou-se para que
Granger passasse para a frente do grupo, mas este olhou-o e com a cabeça
indicou-lhe que continuasse. Montag assim fez. Olhou para o rio e para o
céu, para os carris enferrujados que iam até lá longe, onde havia quintas,
onde os celeiros estavam cheios de feno, onde muita gente fugida da cidade
se viera abrigar de noite. Mais tarde, dali a uns seis meses, nunca mais de
um ano, caminharia de novo ali, sozinho, e continuaria a caminhar até se
juntar a outros.
Mas agora, à sua frente, havia uma longa manhã de caminhada para fazer,
e se os homens estavam silenciosos era porque havia muito em que pensar e
mais ainda para recordar. Talvez mais lá para o fim da manhã, quando o sol
estivesse no topo do céu e já os tivesse aquecido bem, eles começassem a
falar ou apenas a dizer as coisas de que se lembravam, para terem a certeza
de que estavam ali, para terem a certeza absoluta de que o que guardavam
estava a salvo. Montag sentiu o lento impulso das palavras, a sua lenta
ebulição. E quando chegasse a sua vez, que poderia dizer? Que poderia
oferecer num dia daqueles para tornar a viagem mais aprazível? Para tudo
há um momento. Sim. Tempo para destruir e tempo para edificar. Sim.
Tempo para calar e tempo para falar. Sim, tudo isso. Mas que mais? Que
mais? Algo, algo…
E nas margens do rio está a Árvore da Vida que produz doze colheitas de
frutos; em cada mês o seu fruto, e as folhas da Árvore servem de
medicamento para as nações.
“Sim”, pensou Montag, “é essa parte que vou guardar para mais logo.
Mais logo… Quando chegarmos à cidade.”
POSFÁCIO

O FUTURO É HOJE:
ALIMENTANDO AS CHAMAS, DESTRUINDO O CÂNONE 4

POR JOÃO SEIXAS


(O autor escreve de acordo com a grafia anterior)

QUE LIVRO TERIA SIDO


RAY BRADBURY?

C
olocada assim a questão, parece uma pergunta pateta. Mas,
conforme espero demonstrar, é tudo menos isso. Afinal, isso foi
uma coisa que Guy Montag aprendeu da maneira mais árdua:
ninguém é uma ilha isolada, mas algumas pessoas são livros. E se cada
escritor tem dentro de si uma multidão de livros, poucos têm tantos como
Bradbury teve. Ray Bradbury foi um dos autores mais prolíficos dos
séculos xx e xxi, e embora seja mais popularmente associado à Ficção
Científica, a sua obra é de tal monta, e tão apreciada pelos seus leitores, que
cada um dará uma resposta diferente à minha pergunta. Certamente, os
entusiastas da Ficção Científica dir-vos-ão que Ray Bradbury era The
Martian Chronicles (1950), agridoce e poético, nostálgico e aventuroso,
macabramente cómico e cheio de esperança; os leitores de Fantasia dirão
que ele foi Something Wicked This Way Comes (1962), travesso e a
transbordar de inocência da infância, ao passo que os conhecedores de um
Horror mais exigente dirão que ele foi The Dark Carnival (1947), um estojo
repleto de pequenas jóias macabras e profunda desconfiança face às
máquinas de carne, sangue e ossos que as nossas mentes habitam; mas para
uma esmagadora maioria de leitores, aqueles que poderemos considerar
como leitores de mainstream, Ray Bradbury foi, acima de qualquer outro,
Fahrenheit 451 (1953). E, como não podia ser mais apropriado, Fahrenheit
451, a sua obra mais popular e conhecida, aquela que cavou mais fundo na
alma de sucessivas gerações e que fez a ponte entre os leitores do género e
os outros, cobrindo um abismo por vezes superior ao do vazio entre
galáxias, é um livro escrito por um homem, sobre um homem que se
transforma num livro.
E, tal como o próprio Bradbury estava bem ciente,
o tipo de livro em que nos transformámos não
é uma questão displicente:

When I was a young writer if you went to a party and told someone you were a
science-fiction writer you would be insulted. They would call you Flash Gordon all
evening, or Buck Rogers. Of course sixty years ago hardly any books were being
published in the field. Back in 1946, as I remember, there were only two science-
fiction anthologies published. We couldn’t afford to buy them anyway, since we were
all too poor. That’s how bereft we were, that’s how sparse the field was, that’s how
unimportant it all was. And when the first books finally began to be published (…) they
weren’t reviewed by good literary magazines. We were all closet science-fiction
5
writers ,

um estado de coisas que Bradbury apenas conseguia entender como


demonstração de «snobismo intelectual»6 por parte de críticos e
académicos. Trabalhar, labutar arduamente nas sweatshops da literatura,
onde tarefeiros batiam o teclado a um cêntimo a palavra, produzindo resmas
de impossíveis sonhos infantis, era uma mancha indelével no currículo de
qualquer aspirante a escritor, uma nódoa que o marcaria como um perene
marginal, para sempre condenado a esperar, de mão estendida, à sagrada
porta da Literatura.
E no entanto, esse desdém por parte dos instalados face à ficção científica
(um desdém que aparentemente se estende a qualquer outro género que não
o realismo mimético) fornece-nos uma lente privilegiada para a leitura de
Fahrenheit 451. Ao fim e ao cabo, o primeiro romance de Bradbury é
também um livro de ficção científica bona fides. Um livro que foi capaz de
romper as barreiras do género e adentrar nos prados onde os eternos
clássicos crescem e se alimentam. Bradbury, pelo menos até ter conquistado
o merecido reconhecimento como escritor sério, embora escrevendo a partir
das margens da literatura do género, foi sempre consciente daquela
hierarquia crítica do gosto. Uma hierarquia que confere a Fahrenheit 451
uma das suas mais ressonantes e duradouras mensagens, mensagem essa
que ecoa em várias outras obras do Mestre.
Consideremos El Córdoba, a estrela do conto de Bradbury «The Parrot
Who Met Papa»7, e o estratagema que permite ao narrador subtraí-la de
Cuba mesmo debaixo dos narizes das tropas de Castro. Tal como os
homens-livro da parte final de Fahrenheit 451, «there was a rumour once
that the bird had memorized Papa’s [Hemingway] last, greatest, and as-yet-
not-put-down-on-paper novel»8, antes de o grande escritor se ter suicidado
em 1961. Assim, a cobiçada ave, raptada por um escritor frustrado, outrora
rival de Hemingway, é o derradeiro repositório daquela que poderia ser uma
das mais importantes obras da nossa cultura — um último romance inédito
daquele que foi um dos pais fundadores da moderna Literatura americana.
Uma vez resgatado pelo narrador na primeira pessoa de Bradbury, que
claramente busca resgatar o livro, e não a ave, e que pretende retirá-lo do
país ao invés de o devolver ao seu legítimo proprietário, surge o problema
de como fazê-la passar pela alfândega. «I am a literary man, however, and
the answer came to me quickly», diz-nos ele. «I had the taxi stop long
enough for me to buy some shoe polish. (…) I painted him black all over.»9

’Listen,’ I said, bending down to whisper into the cage as we drove across Havana.
‘Nevermore.’
I repeated it several times to give him the idea. The sound would be new to him,
because, I guessed, Papa would never have quoted a middleweight contender he had
knocked out years ago. There was silence under the shawl while the word was
recorded.
Then, at last, it came back to me. ‘Nevermore’, in Papa’s old, familiar, tenor voice,
10
‘nevermore’, it said.

Bradbury serve-se da punch line final da história, uma punch line


rica em referências literárias, não só como forma de exprimir a sua aversão
pelo que ele considerava «a Máfia de Nova Iorque»11, um grupo de
escritores representativo da falência de ideias, estilo e imaginação que ele
detectava no Romance Americano, grupo esse que incluía autores como
John Updike, Philip Roth e Norman Mailer12, mas também a sua admiração
por Poe, uma referência das Letras americanas, imortalizado pelos seus
contos góticos que raiavam a ficção científica, o horror e a fantasia, ao
mesmo tempo que era desprezado pelos literati de Nova Iorque e pela
sociedade mais polida como um todo. Não só Poe foi uma das grandes
influências de Bradbury, mas os seus livros contam-se entre aqueles que são
queimados pelas pessoas de Mente-Pura da Terra na Grande Queima de
1975 em «Usher II», um dos contos mais populares incluídos em The
Martian Chronicles (1950). Nessa história, aquela que é tematicamente
mais próxima de Fahrenheit, a personagem William Stendhal, antecipando
idêntico sermão do capitão Beatty na posterior novella, explica que a
Grande Queima apenas se deu porque «there was always a minority afraid
of something, and a great majority afraid of the dark, afraid of the future,
afraid of the past, afraid of the present, afraid of themselves and shadows of
themselves»13. O tipo de minorias e maioria que haveria de sentar-se horas a
fio, vivendo no mundo artificial e desconectado das Paredes-TV de
Fahrenheit 451, temerosos do simples acto de ouvir o que quer que fosse
que tivesse um módico de significado. O tipo de minorias e maioria que
queimaria Poe. Porque Poe, e «Lovecraft and Hawthorne and Ambrose
Bierce and all the tales of terror and fantasy and horror and, for that
matter, tales of the future were burned»14.
Mas, se conseguirmos disfarçar o papagaio de Hemingway como se fosse
o corvo de Poe, então podemos contrabandear uma grande obra de arte sem
que ninguém se aperceba, pois ninguém no seu bom gosto alguma vez
tomaria Hemingway ou alguém da sua craveira artística por mero escritor
de ficção científica. Mais, ninguém prestaria a necessária atenção a uma
obra de ficção científica capaz de permitir descobrir qualquer valor
intrínseco que esta possa ter.
No entanto, para Bradbury, como para qualquer pessoa que alguma vez
tenha levado a ficção científica a sério, a FC, como género, satisfaz uma
necessidade específica que o mainstream não pode, não consegue, ou não
quer satisfazer, porque o

(…) mainstream hasn’t been paying attention to all the changes in our culture during
the last fifty years. The major ideas of our time — developments in medicine, the
importance of space exploration to advance our species — have been neglected. The
15
critics are generally wrong, or they’re fifteen, twenty years late.

A literatura mainstream é reactiva, a ficção científica é proactiva. A


literatura mainstream lida com a forma como o mundo é, e como viver nele;
a ficção científica trata de como o mundo podia ou devia ser, e de como o
podemos mudar. Ou, numa formulação particularmente inspirada, cuja
veracidade sentimos nos próprios ossos, «the history of science fiction is the
history of ideas that have been laughed at»16.

Poder-se-ia ler em Bradbury, especialmente nos excertos


supracitados, uma certa animosidade contra a literatura mainstream, talvez
mesmo uma vontade de a ver suplantada e substituída pela ficção científica.
Tal como os Bombeiros de Fahrenheit, poderíamos tomar Bradbury por um
proponente da erradicação do Cânone Literário e uma ameaça ao
curriculum das Humanísticas. Mas uma tal leitura não deixaria de falhar o
alvo. O alvo sendo a necessidade, reconhecida por Bradbury, de a ficção
científica (e a literatura fantástica em geral) ser reconhecida pelo seu
intrínseco valor enquanto influência preponderante sobre alguns dos mais
brilhantes acontecimentos que moldaram alguns dos maiores feitos da
Humanidade desde o Iluminismo. Ou seja, que lhe seja permitido sair do
gueto.
Fahrenheit 451 é um livro que claramente não só saiu do gueto como
sobressaiu nos círculos dos críticos e leitores do mainstream. Não só isso,
mas sobreviveu ao teste do tempo e, volvidos sessenta anos, ainda se afirma
como um dos mais prescientes livros de ficção científica alguma vez
escritos. Não podemos afirmar, com total honestidade, tratar-se de uma obra
que tenha tomado o pulso do seu tempo, pois foi publicada claramente
adiante dos acontecimentos, uma condenação da televisão, da iliteracia e do
fascínio por gadgets, escrita quando menos de metade da população norte-
americana possuía um receptor de TV. É certo que o clima político e
cultural de princípios dos anos cinquenta na América — o período que tinha
a Guerra da Coreia como ruído de fundo enquanto se metamorfoseava numa
“acção policial” em representação das Nações Unidas, que tinha o senador
Joe McCarthy a caçar bruxas comunistas debaixo da cama de cada
americano, e que assistiu à forma como a sociedade se modelou seguindo as
linhas do homem corporativo e do complexo militar-industrial — ajudou a
que as preocupações de Bradbury encontrassem eco numa geração que
vivia o mais próspero e dinâmico período da história americana. Que ainda
hoje o faça é testemunho da forma como o mundo — como a própria
realidade — seguiu as linhas traçadas por Bradbury nas areias do tempo.
Mas porque haveria Fahrenheit 451, que é indiscutivelmente uma obra
de ficção científica, de ganhar uma tal popularidade para lá da comunidade
de leitores habituais do género, num feito raramente repetido, a menos que
consideremos o sucesso nos anos sessenta de livros como Stranger on a
Strange Land (1962) de Robert A. Heinlein, ou Dune (1965) de Frank
Herbert, ambos livros perfeitamente integrados, ou apropriados, pelos
movimentos contraculturais do seu tempo?
Uma primeira tentativa de resposta deve necessariamente ter em
conta o facto de que Fahrenheit 451 é uma distopia, claramente a forma
mais popular da ficção científica e, aparentemente, a única capaz de saltar a
cerca para o mainstream. A distopia de FC ganhou uma tremenda
popularidade graças a antepassados tão brilhantes como o Brave New World
(1932) de Huxley, ou o Nineteen-Eighty Four (1949) de Orwell, este último
publicado apenas quatro anos antes do livro de Bradbury. Ambos os livros
— de Huxley e Orwell — surgiram da pena de reconhecidos autores
mainstream, ambos possuidores de uma coterie de leitores pré-estabelecida.
Não tinham de nadar contra a corrente do preconceito literário face à ficção
científica, e tanto o seu sucesso como as acesas discussões que geraram
ajudaram a desbravar o caminho para a obra de Bradbury, equipando o
leitor com uma grelha mental que lhe permitisse compreender o mundo
pouco familiar e distorcido de Fahrenheit 451. Porém, a familiaridade com
as anteriores distopias, particularmente a de Orwell — a mais recente e a
mais relevante no Bloco Ocidental depois de a Cortina de Ferro se ter
abatido sobre a Europa em 1947 —, levou a que muitos leitores lessem
erroneamente o mundo de pesadelo apresentado por Bradbury como um
simples livro sobre censura estatal.
É verdade que Fahrenheit 451 apresenta muitos dos tropos que parecerão
familiares aos leitores que tenham lido Nineteen-Eighty Four: uma
sociedade dominada pela tecnologia — também centrada na televisão —,
que tolhe o pensamento e as inter-relações humanas, ao mesmo tempo que
afirma a prevalência do colectivo sobre o individual. O desconforto com o
mundo descrito é-nos introduzido desde o início, de forma furtiva e
progressiva, por Bradbury. Através de comentários aparentemente
inocentes, como «You think too many things», proferido por Montag,
«uneasily»17 quando conhece Clarisse e se sente sobrepujado pela sua
espontaneidade e curiosidade natural, o leitor é levado a identificar augúrios
já bem conhecidos. Mais tarde, Montag perguntar-lhe-á, quando ela lhe
descreve como a sua família costumava sentar-se no exterior da casa,
apenas a conversar, «but what do you talk about?»18 E há as detenções por
qualquer acção que possa ser concebida em termos de inconformidade, tal
como dar um passeio a pé, sozinho. Não falta mesmo o uso do significativo
“eles”, essa categoria anónima que abarca todas as ameaças sem-rosto aos
direitos civis e humanos, ainda mais sinistras precisamente por não terem
rosto, e ainda mais quando o comunismo soviético era a maior ameaça ao
modo de vida do Ocidente; é o que sucede quando Clarisse diz a Montag
que está na hora de visitar o psiquiatra. «They make me go.» E «They want
to know what I do with all my time», ou «They don’t miss me», quando
Montag quer saber por que razão não está ela nas aulas19. E, é claro, existe
um movimento clandestino que se opõe ao status quo. E acima de tudo isso,
claro, encontram-se os Bombeiros que queimam livros, com a sua clara
conotação com todos os regimes ditatoriais da nossa História e, mais
recentemente em relação a 1953, o regime da Alemanha nazi.
No entanto, e ao contrário do opressivo estado socialista de
Orwell, a sociedade descrita por Bradbury é uma sociedade do lazer. É uma
sociedade hedonista. Na centena e meia de páginas da obra não vemos
ninguém que trabalhe para viver, com a excepção dos Bombeiros (e mesmo
esses apenas esporadicamente) e dos técnicos que socorrem Millie, a esposa
de Montag, quando esta procura suicidar-se ingerindo um frasco de
comprimidos. Nos bancos, os clientes são recebidos por robôs, o ensino
processa-se através de filmes. Todos aqueles ligados à cultura impressa —
professores, escritores, tipógrafos, dactilógrafos — parecem estar
reformados, sem passar dificuldades ou agruras, embora, também, sem
fortuna. E os demais levam a vida feliz de permanentes espectadores
televisivos.
Mas o mais significativo, o que separa Fahrenheit, e o coloca mesmo
acima de outras distopias, é que na sociedade descrita por Bradbury não
encontramos a oposição — implícita ou explícita — de duas ideologias
contrárias. Muito pelo contrário, o que distingue a distopia de Bradbury, e a
torna particularmente significativa, é o facto de que não parece existir
qualquer ideologia na sociedade por ele aventada. Hannah Arendt, no seu
clássico The Origins of Totalitarianism (1973), observou que as
“ideologias” são os vários «isms which to the satisfaction of their adherents
can explain everything and every occurrence by deducing it from a single
premise», e, sendo assim, afirmam «to possess either the key to history, or
the solution for all the “riddles of the universe”, or the intimate knowledge
of the hidden universal laws which are supposed to rule nature and man»20.
E isso é algo cuja ausência é manifesta em Fahrenheit. Não existe qualquer
ideologia que deva ser derrotada, nenhum Governo que deva ser derrubado,
apenas a indiferença cultural das massas na sua busca da felicidade.
Tal ausência, a ausência de uma ideologia normativa, de uma ideologia
que necessite de ser imposta pelo estado aos seus cidadãos, torna o mundo
de Fahreheit 451 ainda mais perturbador e opressivo. Porque não existe um
ditador tirânico, um maníaco tresloucado, ou sequer uma sinistra burocracia
contra que lutar, o leitor compreende, tal como Montag, que o inimigo que
se enfrenta é o mais sinistro de todos: a vontade impessoal e nem sequer
particularmente insidiosa de gente ignorante. Isso é algo que Faber, o
primeiro aliado de Montag na luta contra o sistema, lhe ensina:

«But remember that the captain belongs to the most dangerous enemy to truth and
freedom, the solid unmoving cattle of the majority. Oh, God, the terrible tyranny of the
21
majority.»

Uma das revelações mais chocantes de Fahrenheit 451 é que a


censura foi imposta das bases para o topo. Os próprios Bombeiros, com a
sua sinistra essencialidade incendiária, é-nos uma vez mais recordado por
Faber, «are rarely necessary. The public itself stopped reading of its own
accord.»22
O capitão a que Faber se refere no excerto supracitado é o capitão Beatty,
o superior de Montag e o rosto visível do sistema. Mas, tal como o próprio
sistema não é a ditadura normativa que esperávamos encontrar, o culto e
simpatético capitão Beatty não é a voz da opressão. Ao discorrer sobre o
status quo a Montag (e ao leitor), e ao contrário do seu homólogo O’Brien
em Nineteen-Eighty Four, o seu discurso tampouco é normativo, mas
meramente descritivo. E é uma história com ecos claros do já referido
«Usher II» de The Martian Chronicles. Significativamente, porém, se no
conto a queima dos livros era animada por aquilo que podemos considerar
uma reacção elitista contra a cultura popular e as suas formas de expressão,
incitada por interesses políticos sectários — «They began by controlling
books of cartoons and then detective books and of course films, one way or
another, one group or another, political bias, religious prejudice, union
pressures; there was always a minority afraid of something,..»23 etc. —, em
Fahrenheit 451 as razões são tanto mais profundas, difusas e
compreensíveis quanto são mesquinhas e revoltantes. Tal como o capitão
Beatty tão eloquentemente as descreveu:

Once, books appealed to a few people, here, there, everywhere. They could afford to
be different. The world was roomy. But then the world got full of eyes and elbows and
mouths. Double, triple, quadruple population. Films and radios, magazines, books
leveled down to a sort of paste pudding norm, do you follow me? (…) Classics cut to
fit fifteen minute radio shows, then cut again to fill a two-minute book column, winding
up at last as a ten — or twelve — line dictionary resume. I exaggerate, of course. The
dictionaries were for reference. But many were those whose sole knowledge of
Hamlet (…) was a one-page digest in a book that claimed: now at last you can read
all the classics; keep up with your neighbors. (…) School is shortened, discipline
relaxed, philosophies, histories, languages dropped, English and spelling gradually
neglected, finally almost completely ignored. (…) Now let’s take the minorities in our
civilization, shall we? Bigger the population, the more minorities. Don’t step on the
toes of the dog-lovers, the cat-lovers, doctors, lawyers, merchants, chiefs, Mormons,
Baptists, Unitarians, second-generation Chinese, Swedes, Italians, Germans, Texans,
Brooklynites, Irishmen, people from Oregon or Mexico. The people in this book, this
play, this TV serial are not meant to represent any actual painters, cartographers,
mechanics anywhere. The bigger your market, Montag, the less you handle
controversy (…). All the minor minor minorities with their navels to be kept clean.
Authors, full of evil thoughts, lock up your typewriters. They did. (…) There you have it
Montag. It didn’t come from the Government down. There was no dictum, no
24
declaration, no censorship to start with, no!

Hoje, o que provoca mais calafrios neste excerto é a forma como ele
resume tão perfeitamente aquela que foi a história das Humanísticas depois
da revolução cultural dos anos sessenta, e do encrustar na Academia dos
vários Estudos — Estudos de Género, Estudos Pós-Coloniais, Estudos de
Raça, Estudos Multiculturalistas — que impuseram um mínimo
denominador cultural, exactamente igual ao prefigurado por Bradbury, sob
o estandarte de um discurso politicamente correcto e higienizado contra a
objectividade científica, a verdade e a tradição cultural; precisamente uma
«Sovietization of intellectual life, where the value of a work is determined
not by its intrinsic qualities but by the degree to which it supports a given
political line», a que o professor Roger Kimball25 se referiu certa vez.
«Colored people don’t like Little Black Sambo?», pergunta o capitão
Beatty. «Burn it. White people don’t feel good about Uncle Tom’s Cabin.
Burnt it.»26
No entanto, sem livros que possam servir como preservadores e
transmissores da tradição cultural, sem o cânone das grandes obras,
perdemos os elementos essenciais, compostos daqueles valores e aspirações
comuns de uma cultura, que suportam e alimentam a Civilização. O
niilismo intelectual, especialmente se baseado exclusivamente na vontade
de impedir a diferença de se manifestar, ainda que essa diferença seja
chocante para a maioria; se assente exclusivamente na aspiração à
felicidade da maioria sem preocupação pela expressão da individualidade
ou pela liberdade de pensamento e de investigação, mesmo que essa
liberdade ofenda as crenças e credos da maioria, só pode conduzir a uma
ditadura pior do que aquelas que se limitam a queimar livros.

No seu percurso até se tornar ele próprio um livro, o Bombeiro


incendiário de livros Montag faz três grandes descobertas que deviam ser
autoevidentes para qualquer pessoa medianamente educada e que, por esse
motivo, aprofundam ainda mais a nossa convicção do quão opressivo deve
ser um mundo sem livros.

Antes de mais, Montag descobre que por trás de cada livro, existe um
autor.

«A man had to think them up. A man had to take a long time to put them down on
paper. (…) It took some man a lifetime maybe to put some of his thoughts down,
27
looking around at the world and life (…).»

Como consequência directa desta primeira descoberta, apercebe-se, através


de Faber, da verdadeira importância dos livros, quando este lhe diz que

«It’s not books you need, it is some of the things that once were in books. (…) Books
were only one type of receptacle where we stored a lot of things we were afraid we
28
might forget. (…) The magic is only in what books say.»

E, finalmente, como o mais importante corolário dessas descobertas,


Montag descobre o efeito dos livros sobre as pessoas quando lê um poema a
Millie e às suas duas amigas. Um poema que faz assomar as lágrimas aos
olhos da Sr.ª Phelps e, com elas, a compreensão de que o conteúdo dos
livros pode levar uma pessoa a revelar os seus sentimentos mais profundos
e as suas emoções mais verdadeiras. Que a verdade contida nos livros é
capaz de fazer dissipar a mais resistente das máscaras sociais, a máscara da
felicidade artificial a bem das aparências. «You’re nasty, Mr. Montag, you’re
nasty!»29
Esse poema, o poema que mudará a sua vida para sempre, que trará os
cães à porta da sua própria casa, é o melancolicamente belo «Dover Beach»
de Matthew Arnold, «the Victorian poet, critic, and man of letters. Arnold
had looked to the preservation and transmission of the best that had been
thought and written as a means of rescuing culture from anarchy in a
democratic society.»30 Uma das formas de o conseguir é definindo um
cânone literário, o qual, em termos Arnoldeanos, poderia ser definido como
«masterpieces, the great works, those works deemed to be of lasting value
and significance, important for critics to return to again and again»31.
Como é significativo, portanto, que seja esse o poema que impele
Montag a uma travessia do rio simbolicamente purificador, rumo ao
renascimento entre a biblioteca viva que preserva precisamente uma tal
tradição. É entre os homens-livro que ele vai aprender a sua última e mais
importante lição: «The most important single thing we had to pound into
ourselves is that we are not important, we mustn’t be pedants (…). We are
nothing more than dust-jackets for books, of no significance otherwise.»32
Tal como El Córdoba em «The Parrot Who Met Papa», a biblioteca viva faz
aquele que deve ser o supremo sacrifício num livro tão marcado pela ideia
de liberdade pessoal e individualidade, representada pelos exemplares dos
livros de Thoreau, Johnson e Arnold que Montag esconde: os seus membros
devem abdicar da sua própria personalidade e tornar-se, cada um deles, um
livro que vale a pena preservar, construindo assim um cânone vivo; eles são
os portadores e guardiães de uma «(…) common culture rooted in
civilization’s lasting vision, its highest shared ideals and aspirations, and its
heritage»33.
Quão significativo é, então, que o próprio nome “Montag” nasça da
marca de papel em que Bradbury costumava escrever. Um livro em branco,
à espera de ser preenchido. Desde o primeiro momento, Montag estava
destinado a tornar-se um livro inflamável.

Comecei esta breve excursão perguntando que tipo de livro seria Ray
Bradbury. Em Fahrenheit 451, Bradbury escreveu um livro sobre livros, um
livro sobre a preservação do cânone das grandes obras literárias da
Humanidade. E fê-lo na especial linguagem metafórica da ficção científica.
Ao fazê-lo, uniu-se a essa grande linhagem de curadores da nossa Cultura e,
ao invés de seguir o curso mais simples, que seria o de detrair do cânone os
livros que sentia estarem em colisão com os seus próprios gostos — alguns
dos quais encontramos preservados no seu próprio cânone ficcional —,
acrescentou-lhe algo; enriqueceu a Cultura da nossa espécie na sua corrida
para alcançar as estrelas.

«I used to memorize entire books», diz-nos Bradbury com a sua habitual franqueza.
«I suppose that’s where the ending of Fahrenheit 451 comes from — where the book
people wander through the wilderness and each of them is a book. That was me
34
when I was ten. I was Tarzan of the Apes.»

Mas Bradbury era demasiado grande para


ser apenas um livro. Talvez ele tenha sido
uma biblioteca inteira.

4 O presente texto consiste na tradução, com ligeiras alterações, do ensaio «Fulfilling the Prophecy:
Feeding the Flames, Burning the Canon», apresentado no âmbito do Colóquio Dark Futures in
Projection: On the 60th Anniversary of the Publication of Ray Bradbury’s Fahrenheit 451, que teve
lugar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto entre 14 e 15 de Novembro de 2013.
5 Entrevista de Sam Weller, in The Paris Review — Ray Bradbury, The Art of Fiction No.203, 2010.
6 Idem.
7 «The Parrot Who Met Papa» (1972), in The Stories of Ray Bradbury — Vol. 2, Grafton Books,
Londres, 1983.
8 Idem, p. 522.
9 Idem, p. 533.
10 Idem, p. 534.
11 Entrevista de Jeffrey M. Elliot, in Science Fiction Voices #2, The Borgo Press, San Bernardino,
1979, p. 23.
12 «You have “The New York Maffia” which rolls logs for each other — people like John Updike,
Philip Roth, Norman Mailer. (…) The truth is, not one of these writers would know a good idea if it
came up and bit him. Updike is all style and no idea.» (Idem)
13 «Usher II» (1950), in The Martian Chronicles, Bantam Books, Nova Iorque, 1951, p. 116.
14 Idem, p. 115-116.
15 Entrevista de Sam Weller, in The Paris Review — Ray Bradbury, The Art of Fiction No.203, 2010.
16 Entrevista de Jeffrey M. Elliot, in Science Fiction Voices #2, The Borgo Press, San Bernardino,
1979, p. 21.
17 Fahrenheit 451, Ballantine Books, Nova Iorque, 1953, p. 8.
18 Idem, p. 9.
19 Idem, p. 21 e p. 27.
20 Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, Harcourt Brace Jovanovich, New York, 1973, p.
468, 159, quoted by Roger Kimball, Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher
Education, Ivan R. Dee, Chicago, 2008, p. 117-118.
21 Fahrenheit 451, Ballantine Books, Nova Iorque, 1953, p. 97.
22 Idem, p.78.
23 «Usher II» (1950), in The Martian Chronicles, Bantam Books, Nova Iorque, 1951, p. 117.
24 Fahrenheit 451, Ballantine Books, Nova Iorque, 1953, p. 49-53.
25 Roger Kimball, Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education, Ivan R.
Dee, Chicago, 2008, p. 19.
26 Fahrenheit 451, Ballantine Books, Nova Iorque, 1953, p. 54.
27 Idem, p. 47.
28 Idem, p.73, 74, seriatim.
29 Idem, p. 91.
30 Roger Kimball, Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education, Ivan R.
Dee, Chicago, 2008, p. 72.
31 Roger Kimball, idem, p. 255, citando Lynda Bundtzen.
32 Fahrenheit 451, Ballantine Books, New York, 1953, p. 136.
33 William J. Bennett, in To Reclaim a Legacy: A Report on the Humanities in Higher Education,
National Endowment for the Humanities, 1984.
34 Entrevista de Jeffrey M. Elliot, in Science Fiction Voices #2, The Borgo Press, San Bernardino,
1979, p. 24.
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www.thornwalker.com/ditch/dtw_451.htm, acedido em 12/11/2013.
BIOGRAFIA

RAY BRADBURY (1920-2012) é um dos autores norte-americanos mais


célebres do século xx. Autor de fantasia, ficção científica e horror, e um
incrivelmente talentoso contador de histórias, é conhecido pelos seus
romances Algo Maligno Vem Aí, Crónicas Marcianas e a coletânea O
Homem Ilustrado. As suas obras já conheceram inúmeras adaptações para
cinema, televisão e banda desenhada ao longo das últimas quatro décadas.
O seu grande clássico distópico, Fahrenheit 451, é apresentado agora numa
nova edição pela Saída de Emergência.

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Poucos romances americanos causaram


tanto impacto como este clássico de Ray Bradbury.
Para os que acreditam na força da imaginação
e ainda não experienciaram o poder hipnótico
da prosa de Bradbury, estas páginas vão
tornar-se numa revelação.

O espetáculo está prestes a começar. O circo chega pouco depois da meia-


noite, nas vésperas do Halloween. O que fariam se os vossos desejos
secretos fossem concedidos pelo misterioso líder do circo, o Sr. Dark? O
circo a todos chama com promessas sedutoras de juventude eterna e sonhos
por cumprir…
Dois amigos adolescentes, Jim Nightshade e Will Halloway, são
incapazes de resistir às atrações. A sua curiosidade de rapazes fá-los
descobrir o segredo oculto nos labirintos, fumos e espelhos do tenebroso
circo.
Inconscientes do perigo em que se veem envolvidos, uma terrível
perseguição é posta em marcha e Jim e Will tudo terão que fazer para salvar
as suas vidas. Mas, acima de tudo, as próprias almas...

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