Fahrenheit 451 - Ray Bradbury
Fahrenheit 451 - Ray Bradbury
Fahrenheit 451 - Ray Bradbury
451ºF:
TEMPERATURA A QUE O PAPEL DOS
LIVROS ATINGE O PONTO DE IGNIÇÃO
E É CONSUMIDO PELO FOGO
DEDICATÓRIA
FAHRENHEIT 451
POR JAIME NOGUEIRA PINTO
(O autor escreve de acordo com a grafia anterior)
A
Sexta Coluna de Robert Heinlein foi o primeiro livro de ficção
científica que li. Fiquei fascinado com a trama: era uma invasão e
ocupação dos Estados Unidos por uns tais “Panasiáticos” (havia
uma história em quadradinhos do Blake e Mortimer, de E.P. Jacobs, O
Segredo do Espadão, que tratava do mesmo tema). Depois, a resistência
norte-americana acabava por vencer os ocupantes, recorrendo a uma
organização político-religiosa originalíssima. O livro era de 1941 e a
tradução era o n.º 20 da colecção Argonauta, que António Souza Pinto, da
Livros do Brasil, começou a lançar em 1953. Livros em formato pequeno
mas de grande qualidade, com capistas como Cândido Costa Pinto e Lima
de Freitas.
Graças ao pai de um amigo, que tinha toda a colecção e ma foi
emprestando por ordem de saída, li os volumes todos até então publicados.
Depois, tornei-me um fidelíssimo comprador e leitor da Argonauta, onde
fui descobrindo os mundos de Isaac Asimov, A. E. Van Vogt, Clifford D.
Simak, Brian Aldiss, Ray Bradbury.
Li o Fahrenheit 451 — o n.º 33 — depois de ter lido O Mundo Marciano
(tradução de The Martian Chronicles) e O Homem Ilustrado, duas
colectâneas de contos de Bradbury. Devo-o ter lido no Verão de 1958, dois
anos depois de ter saído em Portugal. Nesse tempo, as minhas leituras
tinham passado da colecção Salgari, com Sandokan, o Tigre da Malásia,
para a colecção De Capa e Espada das Edições Romano Torres, onde me ia
familiarizando com Ponson du Terrail (Os Quatro Cavaleiros da Noite, Um
Trono por Amor, O Pagem do Rei, As Luvas Envenenadas) e com Paul
Féval, criador do Lagardère. Também já tinha lido, nas mesmas edições
Romano Torres, o Walter Scott em português.
Fahrenheit 451 era já um romance, uma coisa mais séria, uma história
completa; a história de uma sociedade futura de onde os livros tinham sido
banidos e onde os bombeiros já não apagavam fogos — as casas eram de
materiais não inflamáveis —, só queimavam livros. Fahrenheit 451 (233
graus Celsius) era a temperatura a que ardiam os livros.
Para viciados na leitura, que continuam a gostar de ler e de ter livros —
livros de todos os géneros, das novidades aos clássicos, livros com folhas,
letras impressas, capas, encadernações, edições modernas e antigas (tenho
algumas primeiras edições do Camilo Castelo Branco, compradas no Brasil)
—, esta destruição dos livros é equivalente a um Apocalipse.
Quando saiu nos Estados Unidos, em 1953, Farenheit 451 foi lido como
um manifesto contra a censura, como um panfleto contra todas as
inquisições. Estaline tinha morrido nesse ano, a memória de Hitler ainda
estava bem viva e o macartismo tomava a América de assalto.
Hoje percebemos melhor o seu significado mais fundo, ou percebemos o
livro à distância, de maneira diferente, e talvez mais interessante
civilizacionalmente. Até porque é na nossa distância que as sombras de
Fahrenheit 451 parecem incidir com maior crueza, como se vivêssemos
agora o futuro adivinhado no livro. O próprio Bradbury insistia que o livro
não era “uma resposta ao senador Joseph McCarthy” nem era sobre a
“censura estatal”, mas sobre o modo como a televisão estava a destruir “o
nosso interesse pela leitura e pela literatura” e a “transformar as pessoas em
imbecis” (“It is about people being turned into morons by TV”).
Assim, em Fahrenheit 451, queimam-se livros porque os livros são
perigosos e levam a pensar e a julgar criticamente, encerrando um passado
que pode denunciar, empalidecer ou pôr em causa o presente e sugerir outro
futuro. No livro, os que deixaram de ler livros — como a vaporosa Mildred,
mulher do protagonista — estão alienados pela televisão e por uma espécie
de redes sociais tridimensionais que lhes fornecem famílias fictícias e lhes
preenchem o dia-a-dia com companhias virtuais. Mildred é uma das muitas
“toxicodependentes” das fábulas radiotelevisivas que enformam a cultura
oficial.
Ao entrar hoje no mundo das redes sociais e ao assistir de relance a
alguns shows populares de duvidosa ética e estética, percebemos que a
visão de Bradbury transcende o piedoso e sempre correcto comentário
anticensura para penetrar incisivamente no coração do futuro — o nosso
presente.
Quando o herói, Guy Montag, regressa a casa, ao seu bairro, a
comunidade dos vizinhos, telespectadores obcecados, lembra-lhe um
cemitério ou um mausoléu silencioso, imerso numa escuridão só quebrada
pelos “fantasmas cinzentos” dos ecrãs que se projectam nas paredes.
Este aparente pessimismo tecnológico do autor, a ideia de que as
máquinas vão domesticando e escravizando as pessoas, a visão do homem
criador dominado pelas máquinas-criaturas, surge também em The
Pedestrian, um conto em que o protagonista, Leonard Mead, é detido pelo
crime de passear a pé e de não ter televisão. No conto aparecem automóveis
sem condutor, e é um desses automóveis pensantes que prende Mead e o
leva para um manicómio por delinquência. No entanto, para Bradbury, as
máquinas, os robots (tal com os livros) são meras extensões das pessoas,
meros repositórios do que os homens neles vão injectando e projectando, e
dependem do uso, bom ou mau (e bom e mau), que se lhes for dando.
Assim, a temer alguma coisa, são as pessoas, e não as máquinas, que
devemos temer. É por isso que o autor de Fahrenheit 451 abraça a missão
de as humanizar ou de preservar a humanidade das pessoas, através do bom
uso dos artefactos humanos (livros, filmes, robots) e com todas as suas
capacidades — cabeça, mãos e coração (“I am afraid of people, people,
people. I want them to remain human. I can help keep them human with the
wise and lovely use of books, films, robots, and my own mind, hands, and
heart”, escrevia em carta de 1974).
Mais do que um escritor de ficção científica — que também o é —,
Bradbury é um grande escritor do fantástico. Para ele, a ficção científica
está ligada à antecipação de uma coisa, de um objecto ou de um
mecanismo, que ainda não existe mas que vai aparecer e mudar tudo para
toda a gente; enquanto o fantástico, mais directamente relacionado com a
imaginação, se estabelece como indirecta base de inspiração para os
construtores das coisas futuras.
A sua imaginação é uma imaginação poética, literária, de autodidacta
devoto de bibliotecas. Em «Take Me Home», o texto autobiográfico
publicado na New Yorker por ocasião da sua morte, Bradbury descreve-se
como um miúdo com uma enorme capacidade de se maravilhar. Em
Waukegan, Illinois, sentado na relva de casa dos avós, o pequeno Ray
repetia para quem o quisesse ouvir as histórias do Tarzan, de Harold Foster,
e do John Carter de Marte, de Edgar Rice Burroughs, que decorava para que
nunca se perdessem. Era também dali que, no 4 de Julho, lançava com o
avô balões iluminados que se perdiam na noite de Verão, levados pelo ar
crepitante, que os tornava leves. Queria voar e perder-se noutros mundos, e
as luzes vermelhas de Marte que antevia no céu estrelado da infância eram a
sua casa.
Ray nunca deixaria totalmente de ser esse miúdo, perdido nas noites
estivais da América profunda, maravilhado com as coisas e obcecado pelas
ilustrações dos suplementos de Domingo; um miúdo que acabaria por entrar
para a lista “dos maiores escritores de ficção científica do século xx, ao lado
de Isaac Asimov, Arthur C. Clark, Robert A. Heinlein e Stanislaw Lem”
(como escreveria Gerald Jones no NYT, no dia 6 de Junho de 2012, quando
da sua morte). Os seus livros venderiam milhões de exemplares em 36
línguas e seriam decisivos para nobilitar, como literatura, os géneros do
Fantástico e da Syfy.
Fahrenheit 451 é uma saga num mundo distópico. Bradbury tem uma
relação ambígua com o futuro, que o atrai e o repele, que o seduz e assusta,
e a história de Farenheit 451 situa-se nessa fronteira, algures entre os seus
encantos — os livros, a natureza, a conversa, o silêncio, a América
profunda, porta para outros mundos — e os seus temores — o mau uso das
máquinas, a tirania da mudança pela mudança, o deslumbramento acrítico
perante a inovação, o desprezo pelo passado, a manipulação.
A história é, como todas as grandes histórias, a história de uma viagem e
de uma conversão. Guy Montag é bombeiro, um incinerador, um
exterminador de livros que, às ordens do capitão Beatty, vai queimando
livros e prendendo os seus possuidores como inimigos do Estado e do bem
público. Tal como S. Paulo antes da conversão, Montag faz parte da
máquina de repressão e perseguição, mas não é Cristo que lhe aparece na
Estrada de Damasco: é uma jovem de 17 anos, Clarisse McClellan, que o
interpela sobre a sua profissão, que lhe pergunta porque queima livros e que
lhe revela que, antigamente, os bombeiros, em vez de queimarem o que
quer que fosse, apagavam fogos. Uma noite, Montag lê Dover Beach, de
Matthew Arnold, que retirara de uma queima e que guardava em segredo.
Arnold lamenta a perda de Verdade, de Fé e de Humanidade, numa
Inglaterra em industrialização… A partir daí, Montag torna-se um
dissidente, um marginal.
E no mundo de Fahrenheit 451 a dissidência paga-se cara. Entre as
sofisticadas tecnologias de perseguição e destruição está o tenebroso The
Hound, um grande cão mecânico de oito patas que detecta e aniquila os
dissidentes. Montag consegue escapar, mas a reportagem televisiva da
perseguição, supostamente fidedigna e em tempo real, é forjada e
manipulada para fins políticos, simulando a sua captura e apresentando-a
como um sucesso do sistema e um castigo exemplar.
Em 1966, François Truffaut realizou na Grã-Bretanha um filme a partir
de Fahrenheit 451. Oskar Werner era Montag, Julie Christie fazia de
Clarice e de Mildred, e Cyril Cusak era o chefe dos bombeiros. No final, na
terra dos dissidentes, na terra dos “homens-livro”, cada um dos refugiados
tinha decorado um livro e era esse livro. A República de Platão, O Príncipe
de Maquiavel, Vie d’Henri Brulard de Stendhal, Orgulho e Preconceito de
Jane Austen, The Pickwick Papers de Dickens e The Martian Chronicles do
próprio Bradbury, numa homenagem de Truffaut ao autor, eram, no filme,
alguns dos livros decorados pelos “vagabundos por fora e bibliotecas por
dentro” que vagueavam pelos campos, fugindo e reagindo à destruição da
história e da memória.
Tal como os outros homens-livro, Montag não tem certezas quanto ao
potencial salvífico daquilo que “carrega na cabeça”, a possibilidade de os
livros memorizados poderem garantir “futuros amanheceres radiosos, de luz
pura” é remota ou é, pelo menos, incerta. Mas ele, que vai ser o livro do
Eclesiastes e que sabe que há um tempo para tudo, acha que, mesmo assim,
vale o risco — e resolve corrê-lo com a comunidade em diáspora que o
adopta. E quando pensa nas palavras que quer guardar para a chegada
triunfal dos marginais à cidade, é nas promessas do livro do Apocalipse que
pensa: a árvore da vida nas margens do rio com as suas doze colheitas; e
nas suas folhas e no seu fruto a cura dos homens e a redenção das nações.
Fahrenheit 451, tal como a Fénix e a humanidade, parece nunca perder a
capacidade de renascer das próprias cinzas depois de periódicas
condenações ao esquecimento: mais de meio século depois da adaptação de
Truffaut, a HBO está a produzir uma nova versão do livro, dirigida por
Rasmin Bahrani. Desta vez, Montag é encarnado pelo afro-americano
Michael B. Jordan, Clarice é a franco-argelina Sofia Boutella, Mildred é
Laura Harris e Beatty é Michael Shannon.
Bradbury inspirou inúmeras adaptações e guiões, desde It Came from
Outer Space (1953) a The Halloween Tree (1993) e a Sound of Thunder
(2005). Escreveu guiões de filmes e de series de televisão.
Devo-lhe muitas horas de leitura apaixonada e apaixonante. Espero que,
passados estes anos todos, os leitores desta nova edição tenham a mesma
surpresa e o mesmo encanto.
UM
A LAREIRA
E A SALAMANDRA
E
ra um prazer pôr fogo às coisas.
Era um prazer especial vê-las a serem devoradas, enegrecidas e
transformadas. Com o bocal de latão da mangueira bem firme nos
punhos, com aquela enorme pitão que cuspia veneno cheio de querosene
sobre o mundo, sentia que o sangue lhe latejava na cabeça, e que as suas
eram as mãos de um genial maestro de orquestra a dirigir todas as sinfonias
de chamas e de fogo que consumissem os últimos farrapos e as ruínas
carbonizadas da História. Com a impassível cabeça adornada pelo capacete
simbolicamente numerado 451, e os olhos tingidos de um laranja ígneo pela
antecipação do que se seguiria, acionou o ignitor e a casa elevou-se no ar,
envolta numa bola de fogo que manchou o céu da noite com tons de
vermelho, amarelo e negro. Caminhou envolto num enxame de vaga-lumes.
Como naquela velha piada, apetecia-lhe espetar uma maçã caramelizada
num pau e assá-la um pouco naquela fornalha, enquanto os livros
esvoaçavam como pombos e iam morrer no alpendre e no relvado da casa.
Enquanto os livros se consumiam num turbilhão ascendente e faiscante e
eram empurrados por um vento tornado negro pelo incêndio.
Montag exibiu o sorriso cruel de todos os homens habituados às carícias
das chamas.
Sabia que, quando voltasse ao quartel, iria sorrir de novo ao olhar-se no
espelho, ao ver aquele rosto enegrecido como o dos antigos cantores de
variedades que usavam cortiça queimada para escurecerem a face. Mais
tarde, ao adormecer no escuro, sentiria que o sorriso cruel ainda lhe
controlava os músculos do rosto. Nunca se extinguia, aquele sorriso, e
desde que se lembrava sempre assim fora.
***
Eles tinham uma máquina. Tinham duas, na verdade. Uma delas descia
até ao estômago, como uma cobra negra a deslizar por um poço abaixo, em
busca da água e do tempo antigos retidos no fundo. Bebia toda a matéria
verde que costumava subir como um caldo lento. Beberia a escuridão?
Chuparia todos os venenos acumulados ao longo dos anos? Alimentava-se
em silêncio, com um som ocasional de sufocação interna e de busca cega.
Tinha um Olho. O operador da máquina, através do uso de um capacete
ótico especial, podia ver a alma da pessoa cujo estômago estava a limpar.
Que veria aquele Olho? O operador não dizia. Via mas não via o que o Olho
via. Todo o processo se assemelhava a escavar um buraco no jardim de
casa. A mulher deitada na cama não passava de uma camada de mármore
duro que eles tinham alcançado. Não importava, que continuassem a
escavar, que drenassem aquele vazio se tal fosse possível à cobra que
sugava. O operador fez uma pausa para fumar um cigarro. A outra máquina
estava a trabalhar também. A outra máquina, operada por outro profissional
igualmente frio e distante, coberto por uma capa de um material castanho
avermelhado à prova de nódoas. Esta máquina retirava todo o sangue do
corpo e substituía-o por sangue novo e linfa.
— É preciso limpá-los das duas maneiras — disse o operador,
inclinando-se sobre a mulher deitada. — Não chega limpar apenas o
estômago se não limparmos o sangue. Se aquilo ficar a circular no sangue,
este vai chegar ao cérebro com a força de um malho, bum!, uma e outra
vez, duas mil vezes, e o cérebro deixa de funcionar, desiste.
— Chega! — disse Montag.
— Estava apenas a dizer como são as coisas…
— Já acabou?
Fecharam ambos as máquinas ao mesmo tempo.
— Acabámos.
A sua fúria passara ao lado dos operadores. Ficaram ali parados, com o
fumo do cigarro a enrolar-se-lhes em volta do nariz e dos olhos, sem os
semicerrarem ou pestanejarem.
— São cinquenta dólares.
— Para começar, não deviam dizer-me se ela vai ficar bem?
— Claro que vai. Tirámos-lhe o veneno, está aqui todo nesta mala, já não
lhe pode fazer mal. Como lhe disse, tira-se o velho e põe-se o novo e fica
tudo bem.
— Vocês não são médicos. Porque é que das Urgências não mandaram
um médico?
— Bolas! — disse um deles, com o cigarro a mover-se ligeiramente nos
lábios. — Não há noite em que não tenhamos nove ou dez casos destes. São
tantos casos que há uns anos mandámos construir estas máquinas. Com a
lente ótica, claro, que foi a grande novidade. O resto são coisas que já havia
antes. Em casos destes não é necessário um médico. Só precisa de dois
operadores e fica com o problema resolvido em meia hora. Ouça —
continuou ele, dirigindo-se para a porta — temos de ir agora. Acabámos de
receber outra chamada na Concha. A uns dez quarteirões daqui. Alguém fez
a mesma coisa com um frasco de comprimidos. Ligue-nos se precisar
novamente. Mantenha-a calma. Demos-lhe um contrassedativo. Ela vai
acordar com fome. Adeus.
E assim os homens com os cigarros enfiados nas suas bocas lisas, os
homens com olhos de serpente, pegaram nas suas máquinas e tubos, na sua
mala cheia de melancolia líquida e lodo escuro e pegajoso de coisas
indizíveis, e foram-se embora.
Montag deixou-se afundar num cadeirão e ficou a olhar para aquela
mulher. Tinha os olhos fechados agora, numa expressão serena, e ele
estendeu a mão para sentir na palma o calor da respiração dela.
— Mildred — acabou por dizer finalmente.
“Somos muitos, demasiados”, pensou. “Há milhões e milhões de pessoas,
é de mais. Já ninguém sabe ao certo. Estranhos chegam e violam-nos.
Entram na nossa casa e cortam-nos o coração. Entram e tiram-nos todo o
sangue do corpo. Meu Deus, quem eram aqueles homens? Nunca os tinha
visto antes!”
Passou meia hora.
A corrente sanguínea daquela mulher era nova e parecia ter-lhe feito algo
novo. As suas faces estavam rosadas e os seus lábios estavam muito frescos
e cheios de cor e pareciam macios e relaxados. O sangue de outra pessoa
corria agora por ali. Se ao menos fosse também a carne, o cérebro e a
memória de outra pessoa. Se ao menos eles tivessem podido fazer-lhe o
mesmo à mente, tê-la lavado a seco, ter-lhe esvaziado todos os bolsos, tê-la
limpo com vapor, tê-la reabastecido e trazido de volta pela manhã. Se ao
menos…
Ele levantou-se e afastou as cortinas e abriu as janelas, para deixar entrar
o ar noturno. Eram duas da manhã. Teria sido apenas há uma hora, ele a
encontrar Clarisse McClellan na rua, a entrar em casa e no quarto escuro, a
dar um pontapé no frasco de cristal? Uma hora apenas, mas o mundo tinha-
se derretido e regenerado numa forma nova e desprovida de cor.
Através do relvado iluminado pela lua chegava o som de risos, vindos da
casa de Clarisse e do seu pai e da sua mãe e do tio que ria de um modo tão
sereno e franco. Acima de tudo, aquele era um riso relaxado, caloroso, sem
ser forçado, vindo dessa casa tão iluminada àquela hora da noite enquanto
todas as outras se mantinham encerradas em escuridão. Montag ouviu as
vozes que falavam, falavam, cediam, falavam, teciam e voltavam a tecer a
sua teia hipnótica.
Através das portadas abertas, saiu para o exterior e atravessou o relvado
sem pensar duas vezes. A coberto da sombra, ficou a observar a casa das
vozes, a pensar que podia até bater-lhes à porta e sussurrar-lhes: “deixem-
me entrar, não vou contar a ninguém, quero apenas ouvir-vos, o que era
mesmo que estavam a dizer?”
Em vez disso, deixou-se ficar ali, cheio de frio, com o rosto como uma
máscara de gelo, a ouvir uma voz de homem (seria o tio?) que seguia num
ritmo seguro.
— Afinal de contas, vivemos na era do lenço descartável. Assoamos o
nariz em alguém, apertamo-lo numa bola, atiramo-lo fora, pegamos noutro,
assoamos, fazemos uma bola, atiramos fora. Toda a gente usa o casaco de
outra pessoa. Como querem que torçamos pela equipa da terrinha quando
nem temos um programa do jogo ou sabemos os nomes deles? E, já agora,
quais são as cores das camisolas que eles usam em campo?
Montag recuou e voltou a casa, deixou as portadas abertas, verificou o
estado de Mildred, tapou-a e aconchegou-a cuidadosamente e depois
deitou-se, com o luar a banhar-lhe as maçãs do rosto e o sobrolho cerrado e
a destilar-se nos seus olhos para formar cataratas de prata.
Uma gota de chuva. Clarisse. Outra gota. Mildred. Uma terceira. O tio.
Uma quarta. O fogo dessa noite. Uma, Clarisse. Duas, Mildred. Três, tio.
Quatro, fogo. Uma, Mildred, duas, Clarisse. Uma, duas, três, quatro, cinco,
Clarisse, Mildred, tio, fogo, comprimidos para dormir, homens, lenços
descartáveis, casacos, assoar, fazer uma bola, atirar fora, Clarisse, Mildred,
tio, fogo, comprimidos, lenços, assoar, bola, atirar. Uma, duas, três, uma,
duas, três! Chuva. A tempestade. O tio a rir. O trovão a ribombar pelas
escadas abaixo. O mundo inteiro a cair em bátegas torrenciais. O fogo a
jorrar de um vulcão. Tudo, tudo a escorrer com um rugido furioso para um
rio que desaguaria na manhã.
— Já não sei nada de nada — disse, e deixou que um losango de sono se-
lhe dissolvesse na língua.
***
***
***
Um dois três quatro cinco seis sete dias. E de cada vez que saía de
casa lá estava Clarisse. Uma vez viu-a a abanar uma nogueira, outra viu-a
sentada no relvado a tricotar uma camisola azul, por três ou quatro vezes
encontrou um ramo de flores no seu alpendre, ou um punhado de castanhas
dentro de um saquinho, ou folhas outonais cuidadosamente coladas numa
folha de papel branco afixada com um pionés à sua porta. Todos os dias ela
o acompanhava até à curva do passeio. Um dia chovia, no outro o tempo
clareara, no dia seguinte soprava um vento forte, no dia a seguir a
temperatura estava amena, e um dia depois dessa calmaria veio uma torreira
estival e Clarisse lá estava à noitinha, com o rosto tisnado pelo sol.
— Porque será que sinto que a conheço há imenso tempo? — disse-lhe
ele, certa vez, na entrada do metro.
— Porque gosto de si, e porque não quero nada de si. E porque nos
conhecemos um ao outro.
— Faz-me sentir muito velho, como um pai.
— E agora explique-me você porque não tem filhas como eu, já que
gosta tanto de crianças?
— Não sei.
— Está a brincar!
— Quer dizer… — Calou-se e abanou a cabeça. — Bem, a minha
mulher, ela… Ela nunca quis ter filhos.
A rapariga deixou de sorrir.
— Lamento sabê-lo. Pensei que estava a brincar comigo. Sou uma parva.
— Não, nada disso. Foi uma pergunta bem feita. Já há muito que
ninguém ma fazia. Uma boa pergunta.
— Vamos falar de outra coisa. Já sentiu o cheiro das folhas velhas? Não
acha que cheiram a canela? Cheire.
— Realmente, parece mesmo canela!
Ela fixou-o com os seus olhos negros e límpidos.
— Parece sempre apanhado de surpresa.
— É que não tenho tido tempo para...
— Sempre conseguiu ver aqueles painéis gigantes de que lhe falei?
— Acho que sim.
Ele riu-se.
— O seu riso parece muito mais simpático do que costumava ser.
— Ai sim?
— Muito mais relaxado.
Ele sentiu-se à vontade, confortável.
— Porque não está na escola? Vejo-a a andar por aí todos os dias.
— Oh, eles não me querem lá. Dizem que sou antissocial. Que não me
dou com as pessoas. É tão estranho. Por acaso, sou até bastante sociável.
Tudo depende do que queremos dizer com “social”, não é? Para mim,
“social” significa falar consigo acerca destas coisas todas — disse ela,
enquanto chocalhava umas castanhas que tinham caído da árvore para o
pátio frontal. — Ou falar do estranho que é o mundo. Estar com outras
pessoas é muito bom. Mas não acho que seja muito “social” juntar uma data
de pessoas e depois não as deixar falar. Uma hora de telescola, uma hora de
basquetebol ou basebol ou corrida, outra hora de transcrições históricas ou a
pintar, e mais desporto, mas nunca fazemos perguntas, ou pelo menos a
maior parte de nós não faz. Eles limitam-se a dar-nos as respostas, pum,
pum, pum, e nós ali sentados mais quatro horas a vermos o filme da aula.
Isso, para mim, não é nada social. É muita água a passar por funis e bicas e
a sair pelo fundo, e eles a dizerem-nos que é vinho, mas não é. Saímos dali
tão cansados ao fim do dia que só nos apetece ir para a cama ou então ir
para o Parque de Diversões agredir pessoas, partir janelas na zona das
Janelas Partidas ou espatifar carros com o Quebra Carros, aquela grande
bola de aço. Também há quem se meta nos carros e vá fazer corridas pelas
ruas acima e abaixo, a tentar passar o mais rente possível aos candeeiros, a
tentar arrancar os tampões das rodas dos outros carros, enfim, a procurar
provar que não tem medo. Se calhar devo ser mesmo aquilo que dizem que
sou. Não tenho amigos. Acho que isso é a prova de que não sou normal.
Mas toda a gente que conheço passa o tempo aos gritos ou a dançar como
doidos ou a baterem uns nos outros. Já viu como as pessoas são tão más
umas para as outras hoje em dia?
— Parece uma mulher idosa a falar.
— Às vezes sinto-me muito velha. Tenho medo da gente da minha idade.
Eles matam-se uns aos outros. Terá sido sempre assim? O meu tio diz que
não. Só no último ano, dispararam sobre seis dos meus colegas. Dez
morreram em acidentes de viação. Tenho medo deles e eles não gostam de
mim porque tenho medo. O meu tio diz que o avô dele se lembrava de
quando as crianças não se matavam umas às outras. Mas isso foi há muito
tempo, quando as coisas eram diferentes. Acreditava-se na
responsabilidade, diz o meu tio. E eu sou responsável, sabe? Há anos
apanhei uma sova, mas porque tinha de a apanhar. E faço todas as compras
da casa e as limpezas também, à mão. Mas, acima de tudo, gosto de
observar as pessoas. Por vezes, passo o dia inteiro no metro a olhar para
elas e a ouvir o que dizem. Só quero perceber quem são, o que querem e
para onde vão. Às vezes também vou aos Parques de Diversão e ando nos
carros a jato quando correm nos limites da cidade à meia-noite e a polícia
não quer saber desde que eles tenham seguro. Está toda a gente feliz desde
que todos tenham mil e um seguros disto e daquilo. Mas vou sobretudo ao
metro ouvir o que se passa. E aos bares e cafés. E sabe que mais?
— O quê?
— As pessoas não falam sobre nada de jeito.
— Oh, que ideia! Devem falar, com certeza.
— Não, não falam. Dizem uma série de marcas de automóveis ou de
roupas, falam de piscinas sobretudo, e dizem que é tudo muito giro! Mas
todos dizem as mesmas coisas, e ninguém diz nada de diferente. E nos cafés
as caixas-de-piadas estão sempre ligadas e têm sempre as mesmas piadas a
girar, ou então a parede musical está acesa, com todos aqueles padrões
coloridos para cima e para baixo, mas aquilo é só cor, e tudo abstrato. E nos
museus, já lá foi? Tudo abstrato. Agora é abstrato por todo o lado. O meu
tio diz que as coisas já foram diferentes. Há muito tempo, havia imagens
que contavam coisas ou que até mostravam pessoas.
— O seu tio disse, o seu tio disse… Esse seu tio deve ser um homem
admirável.
— E é. É mesmo. Bem, tenho de ir. Adeus, senhor Montag.
— Adeus.
— Adeus…
***
Um dois três quatro cinco seis sete dias: o quartel dos bombeiros.
— Montag, você sobe por esse varão acima como um pássaro numa
árvore.
Terceiro dia.
— Montag, notei que entrou pela porta das traseiras. O Cão incomoda-o?
— Não, não…
Quarto dia.
— Montag, tenho uma história engraçada para si. Contaram-ma esta
manhã. Então parece que um bombeiro em Seattle ajustou o Cão Mecânico
para as suas características químicas e soltou-o. Que raio de maneira de se
suicidar, não acha?
Cinco, seis, sete dias.
E, então, Clarisse desapareceu. Não soube exatamente o que tornava
aquela tarde diferente das outras, mas talvez fosse o facto de ela ter
desaparecido da face da terra. O relvado estava vazio, as árvores estavam
vazias, as ruas estavam vazias, e apesar de, inicialmente, não se ter
apercebido de que sentia a falta dela ou que estava a ver se a encontrava, o
certo era que, quando chegou ao metro, se sentia vagamente enjoado. Algo
estava errado, a sua rotina tinha sido perturbada. Uma rotina simples,
verdadeira, estabelecida em poucos dias, e agora… Quase deu meia volta
para poder voltar a fazer o caminho de novo e dar tempo para que ela
aparecesse. Estava certo de que se fizesse o mesmo percurso tudo correria
bem. Mas era tarde de mais, e a chegada do comboio pôs um termo ao seu
plano.
Fundados em 1790 para que queimassem todos os livros de influência inglesa nas
colónias. Primeiro bombeiro: Benjamin Franklin.
— Quem é?
— Quem poderia ser? — disse Montag, na escuridão da noite, encostado
à porta fechada da sua casa.
— Ao menos acende a luz — disse a mulher depois um momento de
silêncio.
— Não quero luz.
— Vem para a cama.
Ouvia-a a rolar na cama, impaciente, fazendo as molas do colchão ranger.
— Estás bêbado?
Fora a mão que começara tudo. Sentiu uma mão e depois a outra a
libertá-lo do casaco e a atirá-lo ao chão. Segurou as calças sobre um abismo
e deixou-as cair na escuridão. As suas mãos tinham sido infetadas e em
breve os seus braços sê-lo-iam também. Conseguia sentir o veneno a subir-
lhe dos pulsos até aos cotovelos e depois aos ombros, e depois a saltar de
uma omoplata para a outra, como uma faísca. As suas mãos estavam
famintas. E os seus olhos começavam a sentir fome também, como se
tivessem de olhar para algo, qualquer coisa, tudo.
— Mas que estás a fazer?
Ele procurou equilibrar-se no escuro, com o livro seguro por dedos
suados.
— Não fiques para aí especado.
Ele emitiu um ligeiro som.
— O quê? — perguntou ela.
Ele fez mais sons. Cambaleou em direção à cama e enfiou o livro como
pôde por baixo da almofada. Deixou-se cair na cama e a sua mulher gritou,
assustada. Sentia-se muito longe dela, numa ilha invernal separada de tudo
por um imenso mar vazio. Ela falava-lhe e a sua voz parecia vir de muito
longe. Falava disto e daquilo, apenas palavras, como as que ele ouvira certa
vez num berçário em casa de um amigo, uma criança de dois anos a tentar
criar palavras, a tentar construir um calão próprio, a fazer sons bonitos no
ar. Mas Montag não respondeu, e então, depois de um bom bocado em que
ele apenas emitiu sons incompreensíveis, sentiu que ela se levantara e se
dirigira para a sua cama, se sentara na berma desta e lhe pusera a mão na
face. Soube que, quando ela retirou a mão, esta estava molhada.
Mais tarde, nessa noite, Montag olhou para Mildred, que estava
acordada. No ar sentia-se uma ligeira dança melódica: ela deixara a Concha
no ouvido mais uma vez, e estava a ouvir gente de locais remotos, com os
olhos bem abertos e postos nas camadas de escuridão no teto acima dela.
Não havia uma piada antiga sobre uma mulher que passava tanto tempo
ao telefone que, em desespero, o seu marido correu ao posto telefónico mais
próximo e lhe ligou para saber o que havia para jantar? E porque não
comprava ele também uma daquelas Conchas para ficar a falar com a
mulher a altas horas da noite, a murmurar, a sussurrar, a gritar? Mas que iria
ele sussurrar, que iria ele gritar? Que poderia dizer?
Subitamente, achou-a tão estranha que mal podia acreditar que a
conhecia. Estava na casa de uma estranha, como naquelas outras piadas
antigas sobre homens bêbedos que regressavam tarde a casa, abriam a porta
errada, entravam no quarto errado e se punham na cama com uma estranha,
levantando-se de manhã para irem para o trabalho sem se darem conta do
que tinha sucedido.
— Millie… — sussurrou ele.
— O quê?
— Não quis assustar-te. O que quero saber é…
— Sim?
— Quando é que nos encontrámos? E onde?
— Quando é que nos encontrámos para quê?
— Quando é que nos conhecemos, quero dizer…
Sabia que ela devia estar já de sobrolho franzido no escuro.
— Quando foi a primeira vez que estivemos juntos — precisou. — Onde
foi e quando?
— Bem, foi…
Mildred fez uma pausa.
— Não sei — acabou por dizer.
Ele sentia-se gelado.
— Não te consegues lembrar?
— Foi há tanto tempo!
— Foi só há dez anos! Só dez!
— Calma, estou a tentar pensar — disse ela, e riu-se, um risinho estranho
que subia e descia. — Olha que coisa, não nos lembrarmos de onde e
quando conhecemos o nosso marido!
Ele permaneceu deitado, a massajar lentamente os olhos, a testa, a nuca e
o pescoço. Manteve ambas as mãos abertas sobre os olhos e aplicou uma
pressão uniforme, como se quisesse enfiar a memória na cabeça. De
repente, a coisa mais importante da sua vida era saber onde tinha conhecido
Mildred.
— Não interessa.
Ela levantara-se e fora à casa de banho. Ouviu a água a correr e o som
dela a engoli-la.
— Pois, tens razão — disse ele.
Tentou contar o número de vezes que ela engolia, e pensou na visita dos
dois homens com caras de óxido de zinco, de cigarros presos nos lábios
finos e lisos e com a Cobra de Olho Eletrónico a descer, camada após
camada, até àquela noite interior, àquele poço de pedra cheio de água
estagnada, e quis gritar-lhe: “Quantos tomaste esta noite, quantos
comprimidos mais vais tomar sem te dares conta, hora a hora, sem parar,
talvez não esta noite, talvez amanhã à noite, e eu sem dormir esta noite e a
de amanhã, em qualquer das últimas noites, há tanto tempo já, desde que
isto começou!” E pensou nela deitada na cama com os dois técnicos em pé
ao lado, não dobrados sobre ela, preocupados, mas antes hirtos, de braços
cruzados. E lembrou-se de ter pensado então que, se ela morresse, não
choraria: seria apenas a morte de alguém estranho, um rosto na multidão
das ruas, um rosto vislumbrado num jornal. E aquilo pareceu-lhe tão errado
que começou a chorar, não perante a possibilidade da morte dela mas
perante o facto de não chorar por causa dessa morte, um homem vazio e
tonto ali junto a uma mulher vazia e tonta, enquanto a cobra voraz a
esvaziava ainda mais.
“Como é que alguém fica tão vazio?”, perguntou-se. Quem nos esvazia
desta forma? E aquela horrível flor no outro dia, aquele dente-de-leão!
Tinha resumido tudo, não tinha? “Que pena! Você não está apaixonado por
ninguém!” E porque não estava?
Não havia, afinal, e para ser honesto, um muro ou parede a separá-lo de
Mildred? Não apenas uma parede, mas, literalmente, três até agora! E caras!
E os tios, as tias, os primos, as sobrinhas, os sobrinhos que viviam nessas
paredes, aquela tribo tagarela de macaquinhos que não dizia nada de jeito,
nada, nada, mas que o dizia bem alto, alto, alto. Ele habituara-se a tratá-los
como membros da sua própria família.
— Como vai o tio Louis hoje?
— Quem?
— E a tia Maude?
A memória mais importante que tinha de Mildred era a de uma menina
numa floresta sem árvores (que coisa estranha!), ou então uma menina
perdida num enorme terreno plano onde costumava haver árvores (podia-se
sentir a memória da forma das árvores por todo o lado), sentada no centro
da “sala de estar”. A sala de estar: que bela etiqueta, realmente. Sempre que
entrava em casa, fosse a que hora fosse, lá estava Mildred a conversar com
as paredes.
— Tem de se fazer alguma coisa!
— Sim, tem de se fazer alguma coisa!
— Então, vamos ficar aqui só a falar?
— Vamos fazer algo!
— Estou tão furiosa que podia cuspir!
Que se passava ali, ao certo? Nem Mildred sabia. Quem estava furiosa
com quem? Mildred não fazia a mínima ideia. Que iam fazer elas? Bem,
dizia Mildred, mais vale esperar para ver.
E ele esperou para ver.
Das paredes jorrou o som de uma enorme tempestade. A música
bombardeou-o com tal potência que quase sentiu os ossos a separarem-se
dos tendões. Sentiu os maxilares e os globos oculares a vibrarem. Estava a
ser vítima de uma concussão. Quando aquilo acabou, sentiu-se como
alguém que tivesse sido atirado de uma falésia, andado às voltas num
movimento centrífugo e depois cuspido na direção de uma cascata, que caía
e caía no vazio e no vazio e nunca… chegava… mesmo… ao… fundo…
nunca… nunca… lá… chegava… e caíamos tão depressa que nem
tocávamos na rocha… nunca… tocávamos… em nada.
O trovão calou-se. A música parou.
— Aí tens — disse Mildred.
E era algo realmente notável. Algo tinha acontecido. Ainda que as
pessoas nas paredes da sala não se tivessem mexido, e nada tivesse ficado
resolvido, tinha-se a impressão de que alguém tinha ligado uma máquina de
lavar roupa ou um gigantesco aspirador. Era uma sensação de afogamento
em música e pura cacofonia. Montag saiu da sala a suar e quase a
desfalecer. Atrás dele, Mildred deixou-se ficar sentada, e as vozes voltaram.
— Pronto, agora vai ficar tudo bem — disse uma das “tias”.
— Ai, não tenhas tanta certeza disso! — retorquiu um “primo”.
— Vá, então, não te zangues!
— Quem é que está zangado?
— Tu!
— Eu?
— Estás doido!
— Doido, eu? Mas porquê?
— Porque sim!
— Tudo bem — gritou Montag — mas estão zangados porquê? Quem
são estas pessoas? Quem é aquele homem e quem é aquela mulher? São
casados, divorciados, noivos? Que barafunda!
— Eles… Bem, eles… tiveram uma discussão, estás a ver? Fartam-se de
discutir. Devias ouvi-los. Acho que são casados. Sim, são casados. Mas
porquê?
E se não era na sala com as três paredes, em breve quatro e o sonho
completo, era no carro, com ela conduzir a 160 km/hora pela cidade, ele a
gritar-lhe e ela a gritar-lhe de volta e ambos a tentarem ouvir-se mas
conseguindo ouvir apenas o rugido do carro.
— Ao menos, reduz para a velocidade máxima permitida! — gritava ele.
— O quê?
— Mantêm-te dentro do limite de velocidade!
— Dentro do quê?
— Limite de velocidade!
E ela acelerava até perto dos 170 km/hora e arrancava-lhe o fôlego da
boca.
Quando saíam do carro, ela tinha as Conchas postas nos ouvidos.
Silêncio. Apenas se ouvia o vento a soprar levemente.
— Mildred…
Mexeu-se na cama.
Estendeu o braço na direção dela e retirou-lhe o pequeno inseto musical
do ouvido.
— Mildred. Mildred?
— Sim.
A voz dela estava débil.
Nesse momento, ele sentiu-se como uma das criaturas eletronicamente
inseridas nos ecrãs das paredes, a falar mas sem que a sua voz conseguisse
atravessar a barreira de vidro. Conseguia apenas pantomimar, esperando
atrair a atenção dela. O vidro não os deixava tocarem-se.
— Mildred, sabes aquela rapariga de quem te falei?
— Que rapariga?
Ela estava quase a dormir.
— A rapariga que vive na casa ao lado.
— Que rapariga que vive na casa ao lado?
— Aquela estudante de liceu. Clarisse. É o nome dela.
— Ah, sim.
— Já não a vejo há uns dias. Quatro dias. Tem-la visto?
— Não.
— Tenho andado para te falar dela. É estranha.
— Ah, já sei quem é.
— Bem me parecia que sabias.
— Ela…
— Ela quê?
— Quis dizer-te mas esqueci-me. Esqueci-me.
— Dizer-me o quê? Que se passa?
— Acho que ela se foi embora.
— Foi-se embora?
— A família inteira mudou-se para parte incerta. Mas ela foi-se mesmo.
Acho que está morta.
— Não devemos estar a falar da mesma rapariga.
— Estamos. McClellan... McClellan. Foi atropelada há uns quatro dias,
acho, mas não tenho a certeza de quando. Acho que morreu. A família
mudou-se. Não sei. Mas acho que morreu.
— Não sabes?
— Não, não sei. Mesmo.
— Porque não mo disseste antes?
— Esqueci-me.
— Foi há quatro dias!
— Esqueci-me completamente.
— Há quatro dias… — repetiu ele, lentamente, ali deitado.
Permaneceram ambos deitados no quarto às escuras, imóveis.
— Boa noite — disse ela.
Ouviu um suave restolhar de lençóis. A mão dela movera-se para tocar no
pequeno inseto elétrico, que se ergueu como um louva-a-deus na almofada e
foi-se colocar de novo no ouvido dela, a zumbir.
Montag ouviu a mulher a cantarolar por entre a respiração.
Lá fora, uma sombra moveu-se e o vento outonal aumentou subitamente
de intensidade antes de acalmar. Mas naquele silêncio que lhe chegava aos
ouvidos havia algo mais. Era como um hálito contra o vidro. Como o
movimento quase impercetível e desfocado de um fumo esverdeado e
luminescente, o movimento de uma única e gigantesca folha outonal através
do relvado e para além deste.
“O Cão Mecânico”, pensou Montag. “Anda por aí esta noite. Anda aí
agora. Se eu abrisse a janela…”
Não abriu a janela.
***
1 N.T.: Referência ao instrumento musical eletrónico inventado por Leon Theremin em 1920, com o
qual se produzia sons sem contacto físico com o mesmo, apenas oscilando as mãos entre duas
antenas metálicas, e regulando a frequência e o volume do som girando botões para esse efeito. O seu
som particular e hipnótico tornou-se popular em Hollywood a partir do final da década de 1940,
sobretudo nas bandas sonoras assinadas por Miklos Rosza. É óbvia a ironia do autor ao usar o nome
com maiúscula, como se fosse o de uma droga ou medicamento.
DOIS
A PENEIRA
E A AREIA
L
eram pela tarde fora, enquanto a chuva fria de novembro caía sobre a
sua casa silenciosa. Ficaram sentados no salão, porque a salinha dos
ecrãs parecia tão vazia e cinzenta, com os ecrãs apagados e sem a
efervescência luminosa de confetes cor de laranja e amarelos, sem os
foguetões no céu, sem as mulheres de vestidos dourados e os homens em
fatos de veludo preto a tirarem coelhos de quarenta quilos de cartolas
prateadas. Parecia morta, e Mildred continuava a olhar para ela com uma
expressão vazia no rosto, enquanto Montag andava de um lado para o outro
antes de voltar a sentar-se no chão e lia uma página dez vezes seguidas, em
voz alta.
— “Não é possível determinar o momento exato em que se forma uma
amizade. Tal como, quando enchemos gota a gota um recipiente, há sempre
uma gota que acaba por fazer transbordar o líquido, também numa série de
pequenas amabilidades haverá uma que, por fim, fará com que o coração
transborde.”
Montag recostou-se a ouvir a chuva.
— Teria sido isto que se passou com a rapariga da casa ao lado? Fartei-
me de procurar entendê-lo.
— Ela morreu. Vamos falar de alguém vivo, por amor de Deus!
Montag não olhou para a sua mulher ao levantar-se e dirigir-se, a tremer,
para a cozinha, onde ficou um bom bocado a ver a chuva a bater nas
janelas, antes de regressar ao salão sob aquela luz acinzentada, à espera que
os tremores passassem.
Abriu outro livro.
— “Esse assunto predileto, Eu”.
Semicerrou os olhos e pôs-se a olhar para a parede.
— “Esse assunto predileto, Eu”.
— Essa eu entendo — disse Mildred.
— Mas o assunto predileto da Clarisse não era ela mesma. Eram todas as
outras pessoas, incluindo eu. Foi a primeira pessoa de que me lembro, em
muitos anos, de ter realmente gostado. Foi a primeira pessoa de que me
lembro que olhou diretamente para mim, olhos nos olhos, como se eu
tivesse importância.
Ergueu os dois livros.
— Estes homens morreram há muitos anos, mas sei que as palavras deles
apontam, de uma forma ou de outra, para a Clarisse.
Do outro lado da porta de entrada, por entre o ruído da chuva, ouviu-se
um ligeiro raspar.
Montag paralisou. Viu Mildred a atirar-se para trás, contra a parede, e a
engolir em seco.
— Está alguém… à porta… Porque é que a voz da porta não nos diz…
— Porque a desliguei.
Pela ranhura por baixo da porta, ouvia-se um farejar lento, a sondar, uma
exalação de vapor elétrico.
— É só um cão! — disse Mildred, a rir. — É só isso! Queres que o
enxote?
— Fica onde estás!
Silêncio. A chuva fria a cair. E o odor a um hálito elétrico azulado que
soprava por baixo da porta trancada.
— Vamos voltar ao trabalho — acabou por dizer Montag, em voz baixa.
Mildred pontapeou um livro.
— Os livros não são pessoas! Estás a ler e eu olho em volta, mas não
vejo ninguém.
Ele olhou para o salão, que parecia morto e envolto num manto cinzento,
como as águas de um oceano que poderia estar vibrante de vida se alguém
ligasse o sol elétrico.
— Já os da minha “família” são pessoas — continuou ela. — Dizem-me
coisas, eu rio, eles riem. E as cores!
— Sim, eu sei.
— E além disso, o comandante Beatty sabia desses livros… — Mildred
ficou um momento a pensar naquilo, e o seu rosto mostrou espanto e depois
horror. — Ele pode vir aí a qualquer momento e queimar-nos a casa, e a
minha “família”. Que horror! Pensa no que investimos! Porque haveria de
ler? Para quê?
— Para quê! Porquê! Vi a cobra mais estranha do mundo na outra noite.
Estava morta mas estava viva. Via mas não podia ver. Queres ver essa
cobra? Está no hospital, junto com um relatório acerca de todo o lixo que
ela te tirou do estômago! Queres ir lá e ler esse relatório? Talvez queiras
procurar em “Guy Montag” ou em “Fogo” ou “Guerra”. Queres ir ver
aquela casa que queimámos ontem à noite? E procurar no meio das cinzas
os ossos da mulher que se imolou com a própria casa? E a Clarisse
McClellan, onde a procuramos? Na morgue! Ouve!
Os bombardeiros atravessaram o céu uma e outra vez, arfando,
murmurando, assobiando como uma gigantesca e invisível ventoinha a girar
no vazio.
— Jesus! Tantas coisas no céu, hora após hora! Como é que o raio
daqueles bombardeiros estão sempre lá em cima? Todos os segundos da
nossa vida! Porque é que ninguém quer falar disso? Já começámos e
ganhámos duas guerras atómicas desde 2022! Será que é por estarmos tão
entretidos em casa que nos esquecemos do que se passa no mundo? Será
que é por sermos tão ricos e o resto do mundo tão pobre, e que isso já nem
nos interessa? Ouvi rumores: o mundo está à fome, mas nós aqui todos de
barriga cheia. Será verdade que o mundo trabalha no duro e que nós só nos
divertimos? Será por isso que todos nos odeiam? Já ouvi uns rumores
acerca desse ódio também, há muito tempo. E sabes porquê? É que eu não!
Talvez os livros nos ajudem a sairmos um pouco desta caverna em que
estamos enfiados. Pode ser que nos impeçam de repetirmos os mesmos
erros! Não ouço os idiotas na tua salinha dos ecrãs a falarem disso. Raios os
partam, Millie, não vês? Uma hora por dia com estes livros, duas horas, e
talvez, quem saiba…
O telefone tocou. Mildred agarrou-o imediatamente.
— Ann! — disse, a rir. — Sim, hoje é dia do Palhaço Branco!
Montag foi até à cozinha e atirou o livro ao chão.
— És um estúpido, Montag — disse ele. — Que vamos fazer agora?
Entregamos os livros? Esquecemos o assunto?
Pegou de novo no livro e pôs-se a ler para tapar o ruído do riso de
Mildred.
“Pobre Millie”, pensou. “E pobre Montag, porque isto para ti também é
tão claro como lama, não é? Mas onde podemos encontrar ajuda? Onde
haverá um professor a estas horas?”
“Espera lá”. Fechou os olhos. “Mas é claro!” Deu por si a pensar de novo
no parque verdejante, um ano antes. Desde então pensara naquilo muitas
vezes, mas agora lembrava-se do que se passara no parque da cidade
naquele dia, quando vira aquele velho vestido com um fato escuro a
esconder algo, muito rapidamente, por baixo do casaco.
O velho erguera-se de um salto, como se quisesse começar a correr.
— Espere! — dissera-lhe Montag.
— Não fiz nada! — gritara o velho, a tremer.
— E quem diz que fez?
Sentaram-se sob aquela luz difusa e esverdeada, sem dizerem uma única
palavra. Então Montag começou a falar do tempo e o velho respondeu-lhe
com uma voz pálida. Era um encontro bizarro. O velho admitiu ser um
antigo professor de Inglês, que tinha sido despedido quarenta anos antes,
quando tinham encerrado as últimas universidades onde ainda se ensinavam
ciências humanas e artes, por falta de alunos e apoio financeiro. Chamava-
se Faber, e quando finalmente perdeu o medo inicial de Montag falou numa
voz cadenciada, olhando para o céu e para as árvores do parque. Uma hora
depois, disse o que pareceu a Montag um poema sem rima. Depois o velho
ganhou ainda mais coragem e disse outro poema. Faber, que falava de um
modo muito suave, mantinha a mão sobre o bolso esquerdo do casaco, e
Montag soube que, se levasse àquele bolso a sua mão, encontraria um livro
de poesia. Mas não o fez. Manteve as suas mãos sobre os joelhos, amorfas e
inúteis.
— Eu não digo coisas, meu caro amigo — disse Faber. — Eu falo sobre
o sentido das coisas. Estou aqui sentado e sei que estou vivo.
E foi só aquilo. Uma hora de monólogo, um poema, um comentário, e
então, sem sequer se referir ao facto de Montag ser um bombeiro, Faber
escreveu com uma mão tremente o seu endereço num pedaço de papel.
— Para os seus arquivos, no caso de decidir zangar-se comigo.
— Não estou zangado — deu Montag por si a dizer, para sua surpresa.
— Quem é?
— Montag.
— O que quer?
— Deixe-me entrar.
— Não fiz nada!
— Estou sozinho, porra!
— Jura?
— Juro!
A porta da casa abriu-se lentamente. Faber esticou a cabeça para fora, e,
àquela luz, pareceu muito velho, muito frágil e muito assustado. Parecia não
ter saído de casa há muitos anos. O seu tom de pele era quase o mesmo do
estuque das paredes lá dentro. A sua boca e as faces eram esbranquiçadas, o
seu cabelo estava todo branco e os seus olhos tinham-se tornado quase
opacos, com o branco a misturar-se com o azul. Mas ao aperceber-se do
livro que Montag trazia debaixo do braço, Faber deixou de parecer tão
velho e tão frágil. Lentamente, foi perdendo o medo.
— Desculpe. Temos de ser cuidadosos.
Voltou a olhar para o livro e não se conteve.
— Então sempre é verdade…
Montag entrou em casa. A porta fechou-se.
— Sente-se.
Faber recuou sem tirar os olhos do livro, como se receasse que ele
pudesse desaparecer se o fizesse. Atrás dele, uma porta entreaberta revelava
um quarto, onde, em cima de uma mesa de madeira, se podia ver um monte
de ferramentas de aço e máquinas. Montag conseguiu apenas um relance,
antes de Faber se aperceber do que atraia a atenção do visitante e virar-se
rapidamente para fechar a porta do quarto, permanencendo depois um
instante a segurar a maçaneta com a mão tremente. Ao voltar-se, lançou um
olhar inseguro a Montag, que estava agora já sentado, com o livro sobre o
colo.
— Esse livro… Onde é que…
— Roubei-o.
Pela primeira vez, Faber ergueu o olhar e encarou de frente o de Montag.
— Você tem coragem.
— Não. A minha mulher está a morrer. Uma amiga minha já morreu.
Alguém que poderia ter sido uma amiga foi queimada viva há menos de
vinte e quatro horas. Você é a única pessoa de que me lembrei que me pode
ajudar. A ver. A ver…
As mãos de Faber, pousadas sobre os joelhos, ardiam de comichão.
— Dá-me licença?
— Ah, sim. Desculpe.
Montag deu-lhe o livro.
— Já há muito tempo… Não sou um homem religioso, mas há muito
tempo que não vejo uma.
Folheou o livro, parando aqui e ali para ler alguns excertos.
— É tão bom como me lembrava — prosseguiu. — Meu Deus, como eles
mudaram isto para as nossas “salas de ecrãs”! Cristo é agora um membro da
“família”. Já me perguntei se Deus reconhecerá o Seu próprio filho, da
maneira como o têm vestido. Ou será melhor dizer despido?
Transformaram-no num chupa-chupa, açucarado e caramelizado, quando
não o põem a fazer referências a alguns produtos comerciais de que todos
os crentes necessitam absolutamente.
Faber fez uma pausa para cheirar o livro.
— Sabia que os livros cheiram a noz-moscada ou a uma dessas
especiarias exóticas? Adorava cheirá-los quando era um miúdo. Havia
tantos e belos livros, antes de os termos deixado desaparecer!
Ia folheando enquanto falava.
— Senhor Montag, está a olhar para um cobarde. Eu vi para onde as
coisas se estavam a encaminhar, há muito tempo. E não disse nada. Sou um
dos inocentes que podiam ter intervindo quando ninguém dava ouvidos aos
“culpados”, mas não o fiz e, assim, tornei-me culpado também. E quando
finalmente montaram a estrutura para queimarem os livros, usando os
bombeiros, limitei-me a resmungar e deixei-me estar, porque, por essa
altura, já não restava mais ninguém com quem pudesse resmungar ou gritar
em conjunto. Agora é tarde de mais.
Faber fechou a Bíblia.
— Bem, e se me contasse o que o trouxe?
— Já ninguém ouve. Nem sequer consigo falar com as paredes porque
elas estão a gritar comigo. Já não consigo falar com a minha mulher, que
passa a vida a ouvir as paredes. Só preciso de alguém que ouça o que tenho
a dizer, e talvez, se conseguir dizer o suficiente, consiga fazer algum
sentido. E quero que me ensine a entender o que leio.
Faber examinou o rosto magro e hirsuto de Montag.
— O que foi que o perturbou? O que lhe fez cair o lança-chamas da mão?
— Não sei. Temos tudo o que precisamos para sermos felizes, mas não
somos felizes. Há algo que falta. Olhei em volta. A única coisa que eu tinha
a certeza absoluta que faltava eram os livros que eu tenho queimado nestes
dez ou doze anos. Por isso pensei que talvez os livros pudessem ajudar-me.
— É um romântico. Isso teria até a sua piada, se o assunto não fosse tão
sério. Você não precisa de livros, precisa é do que costumava estar nos
livros. As mesmas coisas que poderiam ser providenciadas pelas “famílias”
dos ecrãs. O mesmo tipo de atenção e cuidado nos infinitos detalhes da vida
poderia ser projetado pela rádio e pela televisão, mas não é. Não, você não
está à procura de livros! Obtenha-o onde o conseguir encontrar, em discos
antigos, filmes antigos ou então em velhos amigos. Procure-o na natureza,
ou em si mesmo. Os livros eram apenas um tipo de recetáculo em que
guardávamos as coisas que tínhamos medo de perder. Em si mesmos, nada
têm de mágico. A magia está no que eles nos dizem, em como nos
apresentam uma única peça feita da costura de vários bocados do universo.
É claro que não poderia saber isto, é claro que ainda não entende o que
quero dizer com tudo isto. Mas, intuitivamente, está no caminho certo, e é
isso que conta.
— Faltam três coisas — prosseguiu Faber. — Número um: sabe porque é
que livros como este são tão importantes? Porque têm qualidade. E o que
significa a palavra “qualidade”? Para mim significa textura. Este livro tem
poros. Tem feições. Podíamos analisá-lo ao microscópio, e encontraríamos
vida por baixo da lamela, uma profusão de vida em movimento. Quanto
mais poros, quanto mais registos dos pequenos pormenores da vida tal
como ela é encontramos por centímetro quadrado numa folha de papel,
mais “literário” é o texto. Essa é, pelo menos, a minha definição. O
pormenor revelador. O pormenor fresco. Os bons escritores tocam muitas
vezes a vida. Os medíocres apenas lhe passam a mão pelo pelo. Os maus
violam-na e deixam-na para as moscas. Vê agora porque os livros são
temidos e odiados? Porque mostram os poros do rosto da vida. As pessoas
confortáveis querem apenas rostos lisos como cera, sem poros, sem pelos,
sem expressão. Vivemos num tempo em que as flores procuram viver à
custa de outras flores, em vez de se agarrarem ao solo fértil e subsistirem da
chuva. Mesmo o fogo-de-artifício, por muito bonito que seja, se baseia na
química da terra. Ainda assim, acreditamos que podemos continuar a
sustentar-nos de flores e fogos-de-artifício, sem completarmos o ciclo de
regresso à realidade. Conhece a lenda de Hércules e Anteu, o lutador
gigante, cuja força incrível dependia de ele manter os pés assentes na terra?
Mas quando Hércules o ergueu acima do solo, quando o arrancou pelas
raízes, Anteu morreu num instante. Se não há nessa lenda algo que nós,
hoje, nesta cidade, neste tempo, possamos retirar para nosso proveito,
estarei completamente doido. Bem, e esta é a primeira coisa que eu disse de
que iríamos necessitar: qualidade e textura na informação.
— E a segunda?
— Ócio.
— Oh, mas já temos imenso tempo livre!
— Tempo livre, sim. Mas tempo para pensar? Se não estamos a conduzir
a mais de cem à hora, sem espaço na cabeça para outra coisa que não seja o
perigo da situação, estamos em casa a jogar um jogo qualquer ou sentados
numa salinha rodeados de ecrãs de televisão. Porquê? Porque a televisão é
“real”. É imediata, tem dimensão. Diz-nos o que pensar e di-lo aos gritos.
Aquilo só pode ser certo para nós, parece tão certo. Leva-nos tão depressa
na enxurrada até às suas conclusões que a nossa mente não tem nem tempo
para protestar e pensar no absurdo de tudo aquilo.
— Mas a “família” é composta de “pessoas”.
— Desculpe?
— A minha mulher diz que os livros não são reais.
— Graças a Deus por isso! Podemos fechá-los e dizer: “Espera lá…”
Podemos ser Deus com eles. Mas quem já conseguiu desprender-se das
garras que nos envolvem numa sala de ecrãs? Estes fazem de nós o que
querem! São um ambiente tão real como o mundo lá fora. Tornam-se e são
a verdade. Podemos contradizer um livro através de um pensamento
racional. Mas, apesar de todo o meu conhecimento e o meu ceticismo,
nunca consegui discutir com uma orquestra de cem músicos, com a cor
saturada e a imagem em três dimensões, com tudo o que implica estar e
pertencer a essas incríveis salas com ecrãs em vez de paredes. Como vê, na
minha sala só encontra paredes de estuque. E olhe… — Mostrou a Montag
duas pequenas peças de borracha. — Para meter nos ouvidos quando viajo
de metro.
— Dentífrico Denham… não trabalham nem tecem — disse Montag,
com os olhos fechados. — E que há a fazer agora? Os livros poderão
ajudar-nos?
— Só se conseguirmos a terceira coisa essencial. Como disse, a primeira
é qualidade da informação. A segunda é ócio para digeri-la. E a terceira é o
direito de agirmos com base no que aprendemos com a interação das duas
primeiras. E não acho que um velho e um bombeiro desiludido possam já
fazer muito no estado em que as coisas estão…
— Eu posso arranjar livros.
— É muito arriscado.
— É o lado bom de se estar a morrer: quando não temos nada a perder,
corremos todos os riscos.
— Olhe, acabou de dizer uma coisa interessante e nem teve de a ler num
livro! — riu-se Faber.
— As coisas nos livros são assim? Mas eu apenas a disse sem pensar
muito!
— Tanto melhor. Não procurou embelezar o pensamento para me agradar
ou a si.
Montag inclinou-se para a frente.
— Esta tarde pensei que, se os livros valessem realmente a pena, talvez
pudéssemos arranjar uma máquina de impressão e imprimir mais
exemplares…
— Pudéssemos? Quem?
— Eu e o senhor.
— Oh, não!
Faber levantou-se.
— Mas deixe-me contar-lhe o meu plano…
— Se insistir nisso, vou ter de o convidar a sair.
— Mas não está interessado em saber?
— Não estou se o que tem para me dizer é o tipo de coisa que me pode
levar à fogueira. A única coisa que possivelmente me interessaria ouvir da
sua parte seria algo que envolvesse a destruição de toda a estrutura dos
bombeiros. Se o que tem para me sugerir é que imprimamos alguns livros e
que os escondamos em casas de bombeiros um pouco por todo o país, para
que as sementes da dúvida sejam semeadas entre os incendiários, então
direi “bravo”!
— Colocar os livros, ligar um alarme e ver as casas dos bombeiros a
arder, é isso que quer dizer?
Faber arqueou o sobrolho e fitou Montag como se estivesse a olhar para
um novo homem.
— Eu estava a brincar.
— Se achasse que isso seria um plano digno do risco, eu não teria outro
remédio se não acreditar em si.
— Não é possível ter esse tipo de garantias! Afinal de contas, quando
tínhamos todos os livros de que precisávamos, continuávamos a ter gente
desesperada e a atirar-se do alto de penhascos. Mas precisamos realmente
de um espaço para respirar. Precisamos de conhecimento. E talvez daqui a
mil anos escolhamos penhascos mais baixos de onde saltar. Os livros
também servem para nos lembrar dos loucos e estúpidos que somos. São a
guarda pretoriana de César, a sussurrar-lhe ao ouvido enquanto a parada
desfila na avenida: “Lembra-te, César, de que és mortal”. A maior parte das
pessoas não pode andar por todo o lado, falar com toda a gente, conhecer
todas as cidades do mundo: não tem tempo para isso, não tem dinheiro nem
tantos amigos assim. Não peça garantias. E não espere ser salvo por uma
coisa apenas, seja uma pessoa, uma máquina ou uma biblioteca. Vá-se
salvando a si um pouco, e se se afogar, ao menos morra a saber que se
dirigia para a costa.
Faber voltou a levantar-se e começou a andar de um lado para o outro na
sala.
— E então? — perguntou Montag.
— Está mesmo a sério?
— Absolutamente.
— É um plano diabólico, não haja dúvida — disse Faber, enquanto
olhava com nervosismo para a porta do quarto. — Ver os quartéis de
bombeiros a arder pelo país, ver esses viveiros de traidores destruídos… A
salamandra a devorar a própria cauda! Ah!
— Tenho uma lista das casas de todos os bombeiros. Com uma espécie
de organização subterrânea…
— Não podemos confiar nas pessoas, essa é a parte negativa do plano.
Além de mim e de si, quem mais atearia os fogos?
— Não há outros antigos professores, antigos escritores, historiadores,
linguistas?...
— Mortos ou velhos?
— Quanto mais velhos, melhor: passarão despercebidos. Deve conhecer
dezenas deles!
— Oh, há por aí muitos atores que já não interpretam uma peça de
Pirandello ou Shakespeare há anos porque essas peças eram demasiado
próximas do mundo real. Podíamos usar a raiva deles. E podíamos usar a
raiva honesta dos historiadores que já não escrevem uma linha há mais de
quarenta anos. Também podíamos organizar aulas para pôr gente a pensar e
a ler.
— Sim!
— Mas isso teria um efeito residual. A cultura foi destruída de cima a
baixo. O esqueleto dela tem de ser fundido e reconstruído. Não é tão
simples como pegar num livro que tivesse sido esquecido em cima de uma
mesa cem anos antes. Lembre-se de que os bombeiros raramente são
necessários. O público há muito que perdeu o hábito de ler. O que os
bombeiros fornecem agora é apenas um circo ocasional em que as casas são
incendiadas para atrair as multidões que vão ver o espetáculo do fogo. Mas
não passa de uma atração de feira secundária, quase desnecessária para
manter o estado das coisas. Já quase ninguém quer revoltar-se. E os poucos
que querem, como eu, assustam-se com qualquer coisa. Consegue dançar
com mais energia do que o Palhaço Branco, gritar mais alto do que o Sr.
Artifício e as “famílias” da televisão? Se consegue, então vai conseguir
triunfar, Montag. Seja como for, é um louco: as pessoas estão a divertir-se.
— Estão é a suicidar-se! A matarem-se umas às outras!
Durante toda a conversa, um bombardeiro estivera a dirigir-se para Leste,
e só agora os dois homens pararam para ouvir e sentir aquele som do jato a
penetrá-los e a fazê-los tremer.
— Paciência, Montag. Deixe que a guerra acabe com as “famílias”. A
nossa civilização está a cair aos bocados. Mantenha-se afastado da
centrifugação.
— Tem de haver alguém a postos quando tudo explodir.
— Quem? Homens que citem Milton? Que se lembrem do que Sófocles
escreveu? Que lembrem aos sobreviventes que o homem também tem um
lado bom? Só vai haver mais gente a recolher pedras para se apedrejarem
mutuamente. Vá para casa, Montag. Vá dormir. Porque desperdiça as suas
horas finais a correr de um lado para o outro da gaiola, a negar que é um
esquilo?
— Então já não quer saber de nada?
— Quero tanto que fiquei doente.
— E não me vai ajudar?
— Boa noite. Boa noite.
Montag recolheu a Bíblia, e deu por si surpreendido com aquele
movimento da sua mão.
— Quer ficar com isto?
— Daria o meu braço direito.
Permanecendo ali uns segundos, Montag esperou pelo que se passasse a
seguir. As suas mãos, sem que as pudesse controlar, como dois homens a
trabalhar em conjunto, começaram a arrancar as folhas do livro, primeiro a
folha de rosto, depois a primeira e a segunda e as folhas seguintes.
— Idiota! Mas o que está a fazer?
Faber reagiu de imediato, como se tivesse sido atingido por um raio.
Atirou-se a Montag, mas este defendeu-se e deixou que as suas mãos
continuassem o seu trabalho. Mais seis folhas caíram ao chão. Pegou nelas
e amassou-as, mesmo sob o olhar do velho.
— Não, não! — disse este.
— Quem me pode impedir? Sou um bombeiro. Posso queimá-lo!
O velho ficou hirto, a olhá-lo.
— Não faria isso!
— Podia fazê-lo.
— O livro! Não o rasgue mais! — gritou Faber, deixando-se cair numa
cadeira a seguir, com o rosto muito branco e a boca a tremer. — Não me
faça sentir ainda mais cansado! Que quer?
— Preciso que me ensine.
— Tudo bem, tudo bem.
Montag pousou o livro. Começou a alisar as folhas amassadas uma a
uma, enquanto o velho o observava com um ar fatigado.
Como se estivesse a acordar, Faber abanou ligeiramente a cabeça.
— Tem dinheiro, Montag?
— Algum. Uns quinhentos dólares. Porquê?
— Traga-o. Conheço um homem que costumava imprimir o jornal da
nossa universidade, há cinquenta anos. Foi o ano em que, no início do novo
semestre, descobri que apenas um aluno se tinha inscrito para as aulas de
História do Teatro de Ésquilo a O’Neill. Está a ver? Como uma bela estátua
de gelo a derreter ao sol. Lembro-me de que os jornais morriam como
enormes traças. Ninguém os queria de volta. Ninguém sentia falta deles. E
foi então que o governo, vendo vantagens no facto de pôr as pessoas a
lerem apenas sobre lábios apaixonados e socos no estômago, começou a
recorrer aos vossos lança-chamas para tratar da situação. Enfim, o que lhe
quero dizer é que conheço um impressor desempregado. Podemos começar
a imprimir alguns livros, e esperar que a guerra quebre o padrão atual e nos
dê o impulso de que precisamos. Algumas bombas e vai ver como as
“famílias” nas paredes das casas, tal como ratazanas de pantomima, se
calam de vez! No silêncio que seguirá, o nosso pequeno sussurro poderá
encontrar alguns ouvidos atentos.
Ambos olharam para o livro em cima da mesa.
— Tentei recordar-me — disse Montag. — Mas, raios o partam, varre-se-
me da cabeça assim que me viro. Como gostava de ter algo para dizer ao
Comandante! Ele leu muitos livros e sabe todas as respostas, ou assim
parece. Tem uma voz como manteiga. Tenho medo que me convença a
regressar ao que eu era. Há apenas uma semana estava com uma mangueira
de querosene nas mãos e a pensar no excitante que aquilo era.
O velho anuiu com a cabeça.
— Os que não sabem construir acabam por destruir. É algo tão antigo
como a História ou a delinquência juvenil.
— Então é isso que sou, um delinquente?
— Todos nós o somos um pouco.
Montag dirigiu-se para a porta principal.
— Não me pode dar uma ajuda nisto do Comandante dos bombeiros?
Preciso de um guarda-chuva para me abrigar. Tenho tanto medo de me
afogar se ele me convencer a regressar àquilo.
O velho manteve-se em silêncio, mas lançou um novo olhar nervoso à
porta do quarto. Montag apercebeu-se desse olhar.
— Que se passa?
Faber inspirou um grande golo de ar, manteve-o um segundo e exalou.
Voltou a fazê-lo, mantendo a boca firmemente fechada e os olhos fechados,
antes de exalar novamente.
— Montag… — disse finalmente, virando-se e encarando-o. — Venha
daí. E não é que eu ia mesmo deixá-lo ir-se embora assim? Não passo de
um velho tonto e cobarde.
Abriu a porta do quarto e deixou Montag entrar na pequena divisão da
casa, ocupada por uma mesa sobre a qual estavam pousadas algumas
ferramentas metálicas por entre rolos de fios metálicos de grossura
microscópica, bobinas e pequenos cristais.
— O que é isto?
— A prova da minha terrível cobardia. Vivi todos estes anos sozinhos, a
projetar imagens nas paredes com a minha imaginação. Brincar com coisas
eletrónicas, com transmissão de rádio, tem sido o meu passatempo. A minha
cobardia é tal que, para complementar o espírito revolucionário que vive à
sua sombra, tive de construir isto.
Pegou num minúsculo objeto verde de metal do tamanho de uma bala de
pequeno calibre.
— E como é que pude pagar tudo isto? Pois jogando na bolsa, é claro, o
último refúgio neste mundo para um intelectual perigoso e desempregado.
Dei-me bem, pude construir isto e esperei. Tenho estado para aqui à espera,
a tremer de medo, meia vida à espera de alguém que viesse falar comigo.
Não me atrevia a falar com ninguém. Mas naquele dia, lá no parque,
quando estivemos juntos, eu soube que mais tarde ou mais cedo viria
visitar-me, ainda que me fosse difícil saber se o faria com fogo ou com
amizade. Tenho isto pronto a usar há meses. Mas tenho tanto medo que
quase o deixei sair pela porta fora!
— Parece uma Concha.
— Mas faz algo que a Concha não faz: ouve! Se o colocar no ouvido, eu
posso ficar aqui no conforto da minha casa, a aquecer os meus ossos
medrosos enquanto vou ouvindo e analisando o mundo dos bombeiros,
descobrindo-lhe as fraquezas, livre de qualquer perigo. Eu serei a abelha-
rainha, a salvo na colmeia. Você será o zângão, o meu ouvido viajante. Se
tudo correr bem, poderemos colocar ouvidos em vários locais da cidade, em
vários homens, a escutar, a analisar. Se o zângão morre, estarei a salvo aqui
em casa, a cuidar do meu receio com o máximo de conforto e o mínimo de
risco. Vê como jogo pelo seguro, como sou desprezível?
Montag colocou a pequena bala verde no ouvido. O velho inseriu outra
num dos seus ouvidos e moveu os lábios.
— Montag!
A voz estava dentro da cabeça de Montag.
— Consigo ouvi-lo!
O velho riu-se.
— Também consigo ouvi-lo perfeitamente — sussurrou apenas Faber,
mas a sua voz soou de um modo claro na cabeça de Montag.
— Vá para o quartel quando for hora de o fazer — prosseguiu. — Estarei
consigo. Vamos ouvir juntos o que esse seu Comandante Beatty tem para
dizer. Sabe-se lá, até pode ser um dos nossos. Dir-lhe-ei o que deve dizer.
Vamos dar-lhe um bom espetáculo. Odeia-me, agora que lhe revelei esta
minha cobardia eletrónica? Deixo-o sair para a noite, com o risco de acabar
com a cabeça cortada, enquanto fico aqui na retaguarda à escuta...
— Todos fazemos o que nos compete — respondeu Montag.
Colocou a Bíblia nas mãos do velho.
— Fique com o livro. Tentarei arranjar outro para substituir este.
Amanhã…
— Irei ter com o impressor desempregado, sim. Pelo menos isso posso
fazer.
— Boa noite, professor.
— Qual quê? Estarei consigo durante toda esta noite. Serei a mosquinha
do vinagre a zumbir-lhe no ouvido quando precisar de mim. Mas boa noite
e boa sorte, mesmo assim.
A porta abriu-se e fechou-se de seguida. Montag deu por si de novo da
rua escura, de frente para o mundo.
O MAR DA FÉ
FOGO VIVO
A
s luzes acenderam-se e as portas das casas abriram-se até ao fim da
rua, em antecipação do espetáculo de carnaval. Beatty e Montag,
um com seca satisfação, o outro com descrença, olhavam para a
casa à sua frente, a arena principal onde os malabaristas jogariam com as
tochas e comeriam o fogo.
— Pois é — disse Beatty. — Lá acabou por fazê-lo. O nosso caro
Montag queria voar perto do sol e agora que tem as asas queimadas quer
saber porquê. Não foi aviso suficiente eu ter enviado o Cão a sua casa?
O rosto de Montag parecia anestesiado, sem feições. Sentia a sua cabeça
virar-se como uma escultura de pedra na direção da escuridão da casa ao
lado da sua, bordada de flores garridas.
Beatty resfolegou.
— Oh, não me diga que aquela rotina idiota dela o enganou? Flores,
borboletas, folhas, pores-do-sol… Sinceramente! Está tudo no ficheiro dela.
Raios o partam! Acertei em cheio. Se pudesse ver a expressão no seu rosto
agora… Umas folhinhas de relva e um quarto de lua. Só lixo! De que é que
tudo isso lhe serviu a ela?
Montag sentou-se no para-choques do Dragão, movendo a cabeça um
centímetro para a esquerda, outro para a direita, esquerda, direita, esquerda,
direita, esquerda…
— Ela via tudo. Não fazia nada a fosse quem fosse. Não se metia com
ninguém.
— O tanas! Ela trabalhou-o bem, não foi? Mais uma dessas santinhas,
com os seus silêncios muito chocados. O único talento delas é fazerem os
outros sentirem-se culpados. São o sol da meia-noite que nos faz arder em
suor na cama!
A porta da frente abriu-se. Mildred descia as escadas, a correr, agarrando
uma mala com uma rigidez de sonho, enquanto um táxi, negro como a
carapaça de um escaravelho, dobrava a esquina e estacionava.
— Mildred!
Ela correu na direção do táxi sem se deter, com o corpo rígido, o rosto
cheio de pó de arroz e a boca quase invisível pela ausência de batom.
— Mildred, tu não acionaste o alarme!
Ela enfiou a mala na bagageira do táxi, entrou neste e sentou-se.
— Pobre família — murmurou — pobre família, ai!, foi-se tudo, tudo,
foi-se tudo…
Beatty agarrou Montag pelo ombro enquanto o taxi arrancou e
rapidamente ultrapassou os 100 km/hora ao fundo da rua, antes de
desaparecer.
Ouviu-se um estrondo como se um sonho feito de vidro, espelhos e
cristais de desmoronasse. Montag moveu-se como se uma outra
incompreensível tempestade o tivesse atingido, e viu Stoneman e Black de
machados em punho a quebrarem as janelas para garantir ventilação.
O roçar de uma borboleta-caveira contra um ecrã frio e negro.
— Montag, aqui o Faber! Consegue ouvir-me? Que se passa?
— Isto está a acontecer-me… —
— Olha que surpresa horrível! — disse Beatty. — Porque hoje toda a
gente sabe, com absoluta certeza, que nada me acontece. Só os outros
morrem, eu não. Não há consequências nem responsabilidades. Só que há.
Mas deixemos isso de parte, não acha? O problema é que, quando as
consequências o atingem, já é tarde de mais, não é, Montag?
— Montag, consegue fugir daí, correr? — perguntou Faber.
Montag caminhou mas não sentiu os pés a tocar o cimento do piso ou o
relvado. Beatty acendeu o seu ignitor e a pequena chama cor de laranja
atraiu de imediato o seu olhar fascinado.
— Que há no fogo que nos encanta desta forma? Seja qual for a nossa
idade, que há nele que nos atrai? — Beatty soprou e apagou a chama, para a
acender de novo logo a seguir. — É o movimento perpétuo. Aquilo que o
homem sempre quis inventar e nunca conseguiu. Ou o movimento quase
perpétuo. Se o deixássemos aceso, iria acabar por consumir-nos a vida. O
que é o fogo? Um mistério. Os cientistas contaram-nos umas patranhas
sobre a fricção e as moléculas. Mas eles não sabem a verdade. A sua beleza
está em destruir a responsabilidade e a consequência. Se um problema se
nos torna demasiado complicado, fogo com ele. Agora você é um problema
para mim, Montag. E o fogo irá tirá-lo dos meus ombros de um modo
limpo, rápido e seguro, sem deixar nada a apodrecer. Antibiótico, estético,
prático.
Montag observava aquela estranha casa, tornada ainda mais estranha
pelas horas tardias, pelo murmúrio dos vizinhos, pelos pedaços de vidro
partido e, espalhados pelo chão, com as capas arrancadas e atiradas como
penas de cisne, pelos livros extraordinários que agora pareciam tão
estúpidos e tão pouco importantes, um risco inútil para defender o que não
passavam de letras de tinta preta impressas sobre papel amarelecido e
encadernado.
Mildred, pois claro. Ela devia tê-lo visto a esconder os livros no jardim e
trouxe-os de volta para casa. Mildred. Mildred.
— Quero que seja você e apenas você a fazer este trabalho, Montag.
Nada de querosene e fósforos. Uma coisa a sério, com lança-chamas. A casa
é sua, cabe-lhe fazer a limpeza.
— Montag, não consegue correr? Fugir?
— Não! — gritou Montag, desamparado. — O Cão! Por causa do Cão!
Faber escutou-o e Beatty, julgando que aquilo lhe era dirigido, escutou-o
também.
— Sim, o Cão anda por aí no bairro, por isso nem tente. Está pronto?
— Pronto.
Montag agarrou no lança-chamas e desativou a patilha de segurança.
— Fogo!
Um jorro enorme de chama saltou em direção aos livros e atirou-os
contra a parede. Entrou no seu quarto e disparou duas vezes, envolvendo as
camas numa bola de fogo que continha mais calor e paixão e luz do que
nelas alguma vez tinha havido. Queimou as paredes do quarto e os armários
de cosméticos porque queria mudar tudo, as cadeiras, as mesas, os talheres
e os pratos de plástico na sala de jantar, tudo o que mostrasse que ele vivera
naquela casa vazia com uma estranha que amanhã já o teria esquecido, que
tinha ido embora e certamente já nem se lembrava dele nesse minuto, com a
Concha metida no ouvido a encher-lhe e a encher-lhe a cabeça enquanto
percorria a cidade sozinha. E, tal como sempre acontecera antes, sentiu-se
bem a queimar aquilo, sentiu-se revigorado pelo fogo, por aquele ritual de
procurar as coisas a arder e de as rasgar e destruir com as chamas, de se
livrar de todos os problemas. Se não havia solução, passaria a não haver
problema também. O fogo era o melhor para tudo.
— Os livros, Montag!
Os livros saltavam e dançavam como aves assadas, com as asas
incandescentes de penas vermelhas e amarelas.
E então entrou na sala dos ecrãs onde dormiam os monstros idiotas com
os seus pensamentos brancos e sonhos de neve. Disparou um jorro contra
cada um dos ecrãs de parede e ouviu um silvo no vácuo. O vazio assobiava
de um modo ainda mais desolado, um grito sem alma. Tentou pensar no
vácuo e no que ele lhe estava a fazer naquele momento, mas não conseguiu.
Susteve a respiração para não inalar os fumos. Libertando-se daquela
sensação de vazio absoluto, recuou e atirou sobre a salinha uma nova e
poderosa flor amarela de fogo vivo. A película plástica à prova de fogo que
cobria tudo rasgou-se e a casa começou a vibrar por ação das chamas.
— Quando terminar, ficará preso — disse Beatty atrás dele.
Montag corria.
Conseguia sentir o Cão na sua peugada, como um outono frio, seco e
repentino, como um vento que não agitava a erva, que não abanava as
janelas ou dispersava as folhas mortas nos passeios brancos à sua passagem.
O Cão não tocava o mundo. Transportava para todo o lado aquele silêncio,
um silêncio que aumentava a pressão sobre as suas presas fosse onde fosse.
Montag sentiu essa pressão a aumentar também, e continuou a correr.
Parou para recuperar o fôlego, a caminho do rio. Espreitou através das
janelas fracamente iluminadas de algumas casas e pôde ver silhuetas de
pessoas nas suas salas de ecrãs, onde o Cão Mecânico, exalando um bafo de
vapor de néon, continuava a sua caminhada de aranha, ora mostrando-se,
ora escondendo-se. Ia já na Elm Terrace, depois meteria pela Lincoln e a
Oak, a seguir pela Park e, finalmente, estaria na rua da casa de Faber.
“Segue em frente”, pensou ele, “não pares, segue, não vires!”
Nos ecrãs via-se agora a casa de Faber, com os aspersores a bombearem
água no ar noturno.
O Cão parou, e parecia estar a tremer.
“Não!” Montag colou o rosto à janela. “Por aqui! Aqui!”
A agulha de procaína estendeu-se para fora do focinho, recolheu-se,
voltou a sair, voltou a recolher-se, não sem antes deixar cair uma gota
daquela substância milagrosa.
Montag susteve a respiração, como se dois punhos cerrados lhe
oprimissem o peito.
O Cão Mecânico deu meia volta e recomeçou a marcha rua abaixo,
afastando-se da casa de Faber.
Montag ergueu o olhar para o céu. Os helicópteros estavam mais perto,
como enxames de insetos atraídos a uma única fonte de luz.
Com esforço, lembrou-se de que aquilo não era um episódio de uma série
ficcional que ele pudesse ir vendo a caminho do rio: era o jogo de xadrez da
sua própria vida, jogada a jogada.
Gritou para se estimular a fugir daquela janela e do espetáculo fascinante
que decorria nos ecrãs daquela casa.
— Pr’ó inferno!
E pôs-se de novo em fuga. Um beco, uma rua, outro beco, outra rua e o
odor do rio. Pernas para cima, para baixo, cima e baixo. Vinte milhões de
Montags a correrem, como naqueles antigos filmes mudos da Keystone com
polícias e ladrões, perseguidos e perseguidores, caçadores e presas, que vira
vezes sem conta. Atrás dele, agora, havia vinte milhões de Cães a latir,
fazendo ricochete entre todas as salas de ecrãs do país, saltando do ecrã da
parede central para o ecrã da parede da esquerda e depois para o da direita.
Enfiou a Concha no ouvido.
— A Polícia aconselha à população da zona de Elm Terrace que faça o
seguinte: que todos, em todas as casas e em todas as ruas, abram uma porta
dianteira ou traseira ou se ponham à janela, a observar a rua. O fugitivo não
escapará se todos estiverem a observar as ruas no próximo minuto.
Preparem-se!
Claro! Como é que não se tinham lembrado disso antes? Como é que, em
tantos anos, essa experiência nunca tinha sido tentada? Toda a gente a
postos, toda a gente a observar! Alguém iria dar por ele. O único homem a
correr sozinho à noite na cidade, o único homem a usar as pernas para se
movimentar!
— Contando até dez! Um, dois…
Sentiu a cidade a erguer-se.
— … Três…
Sentiu a cidade dirigir-se para os seus milhares de portas.
— … Quatro…
Sonâmbulos a percorrem corredores.
— … Cinco…
Sentiu esses milhões de mãos sobre as maçanetas.
O odor do rio era fresco como o de uma chuva compacta. Tinha a
garganta a saber a ferrugem em brasa e os olhos secos de tanto correr.
Gritou de novo, como se isso o fosse ajudar a continuar, a percorrer as
centenas de metros que faltavam.
— … Seis, sete, oito…
As maçanetas giraram em cinco mil portas.
— … Nove…
Correu para longe da última fila de casas, descendo um declive que ia dar
uma massa negra em movimento.
— … Dez!
Todas as portas se abriram.
Imaginou milhares e milhares de rostos a observarem pátios e becos, a
perscrutarem o céu, rostos ocultos por cortinas, pálidos, quase assustados,
como animais pardos a espreitarem de cavernas elétricas, olhos incolores,
línguas cinzentas e pensamentos cinzentos a observarem o mundo exterior
através da carne dormente dos rostos.
Mas ele já tinha chegado ao rio.
Tocou-lhe, só para ter a certeza de que era real. Entrou no rio lentamente,
despiu-se no escuro até ficar nu e lavou o corpo, braços, pernas e cabeça
com aquela água, que também bebeu e usou para inalar e lavar o nariz.
Depois vestiu as velhas roupas de Faber e calçou os ténis. Atirou as suas
roupas ao rio e viu-as serem levadas pela corrente. Em seguida, agarrando
bem a mala, voltou a entrar no rio e avançou até não ter pé. Depois deixou-
se levar na corrente.
O FUTURO É HOJE:
ALIMENTANDO AS CHAMAS, DESTRUINDO O CÂNONE 4
C
olocada assim a questão, parece uma pergunta pateta. Mas,
conforme espero demonstrar, é tudo menos isso. Afinal, isso foi
uma coisa que Guy Montag aprendeu da maneira mais árdua:
ninguém é uma ilha isolada, mas algumas pessoas são livros. E se cada
escritor tem dentro de si uma multidão de livros, poucos têm tantos como
Bradbury teve. Ray Bradbury foi um dos autores mais prolíficos dos
séculos xx e xxi, e embora seja mais popularmente associado à Ficção
Científica, a sua obra é de tal monta, e tão apreciada pelos seus leitores, que
cada um dará uma resposta diferente à minha pergunta. Certamente, os
entusiastas da Ficção Científica dir-vos-ão que Ray Bradbury era The
Martian Chronicles (1950), agridoce e poético, nostálgico e aventuroso,
macabramente cómico e cheio de esperança; os leitores de Fantasia dirão
que ele foi Something Wicked This Way Comes (1962), travesso e a
transbordar de inocência da infância, ao passo que os conhecedores de um
Horror mais exigente dirão que ele foi The Dark Carnival (1947), um estojo
repleto de pequenas jóias macabras e profunda desconfiança face às
máquinas de carne, sangue e ossos que as nossas mentes habitam; mas para
uma esmagadora maioria de leitores, aqueles que poderemos considerar
como leitores de mainstream, Ray Bradbury foi, acima de qualquer outro,
Fahrenheit 451 (1953). E, como não podia ser mais apropriado, Fahrenheit
451, a sua obra mais popular e conhecida, aquela que cavou mais fundo na
alma de sucessivas gerações e que fez a ponte entre os leitores do género e
os outros, cobrindo um abismo por vezes superior ao do vazio entre
galáxias, é um livro escrito por um homem, sobre um homem que se
transforma num livro.
E, tal como o próprio Bradbury estava bem ciente,
o tipo de livro em que nos transformámos não
é uma questão displicente:
When I was a young writer if you went to a party and told someone you were a
science-fiction writer you would be insulted. They would call you Flash Gordon all
evening, or Buck Rogers. Of course sixty years ago hardly any books were being
published in the field. Back in 1946, as I remember, there were only two science-
fiction anthologies published. We couldn’t afford to buy them anyway, since we were
all too poor. That’s how bereft we were, that’s how sparse the field was, that’s how
unimportant it all was. And when the first books finally began to be published (…) they
weren’t reviewed by good literary magazines. We were all closet science-fiction
5
writers ,
’Listen,’ I said, bending down to whisper into the cage as we drove across Havana.
‘Nevermore.’
I repeated it several times to give him the idea. The sound would be new to him,
because, I guessed, Papa would never have quoted a middleweight contender he had
knocked out years ago. There was silence under the shawl while the word was
recorded.
Then, at last, it came back to me. ‘Nevermore’, in Papa’s old, familiar, tenor voice,
10
‘nevermore’, it said.
(…) mainstream hasn’t been paying attention to all the changes in our culture during
the last fifty years. The major ideas of our time — developments in medicine, the
importance of space exploration to advance our species — have been neglected. The
15
critics are generally wrong, or they’re fifteen, twenty years late.
«But remember that the captain belongs to the most dangerous enemy to truth and
freedom, the solid unmoving cattle of the majority. Oh, God, the terrible tyranny of the
21
majority.»
Once, books appealed to a few people, here, there, everywhere. They could afford to
be different. The world was roomy. But then the world got full of eyes and elbows and
mouths. Double, triple, quadruple population. Films and radios, magazines, books
leveled down to a sort of paste pudding norm, do you follow me? (…) Classics cut to
fit fifteen minute radio shows, then cut again to fill a two-minute book column, winding
up at last as a ten — or twelve — line dictionary resume. I exaggerate, of course. The
dictionaries were for reference. But many were those whose sole knowledge of
Hamlet (…) was a one-page digest in a book that claimed: now at last you can read
all the classics; keep up with your neighbors. (…) School is shortened, discipline
relaxed, philosophies, histories, languages dropped, English and spelling gradually
neglected, finally almost completely ignored. (…) Now let’s take the minorities in our
civilization, shall we? Bigger the population, the more minorities. Don’t step on the
toes of the dog-lovers, the cat-lovers, doctors, lawyers, merchants, chiefs, Mormons,
Baptists, Unitarians, second-generation Chinese, Swedes, Italians, Germans, Texans,
Brooklynites, Irishmen, people from Oregon or Mexico. The people in this book, this
play, this TV serial are not meant to represent any actual painters, cartographers,
mechanics anywhere. The bigger your market, Montag, the less you handle
controversy (…). All the minor minor minorities with their navels to be kept clean.
Authors, full of evil thoughts, lock up your typewriters. They did. (…) There you have it
Montag. It didn’t come from the Government down. There was no dictum, no
24
declaration, no censorship to start with, no!
Hoje, o que provoca mais calafrios neste excerto é a forma como ele
resume tão perfeitamente aquela que foi a história das Humanísticas depois
da revolução cultural dos anos sessenta, e do encrustar na Academia dos
vários Estudos — Estudos de Género, Estudos Pós-Coloniais, Estudos de
Raça, Estudos Multiculturalistas — que impuseram um mínimo
denominador cultural, exactamente igual ao prefigurado por Bradbury, sob
o estandarte de um discurso politicamente correcto e higienizado contra a
objectividade científica, a verdade e a tradição cultural; precisamente uma
«Sovietization of intellectual life, where the value of a work is determined
not by its intrinsic qualities but by the degree to which it supports a given
political line», a que o professor Roger Kimball25 se referiu certa vez.
«Colored people don’t like Little Black Sambo?», pergunta o capitão
Beatty. «Burn it. White people don’t feel good about Uncle Tom’s Cabin.
Burnt it.»26
No entanto, sem livros que possam servir como preservadores e
transmissores da tradição cultural, sem o cânone das grandes obras,
perdemos os elementos essenciais, compostos daqueles valores e aspirações
comuns de uma cultura, que suportam e alimentam a Civilização. O
niilismo intelectual, especialmente se baseado exclusivamente na vontade
de impedir a diferença de se manifestar, ainda que essa diferença seja
chocante para a maioria; se assente exclusivamente na aspiração à
felicidade da maioria sem preocupação pela expressão da individualidade
ou pela liberdade de pensamento e de investigação, mesmo que essa
liberdade ofenda as crenças e credos da maioria, só pode conduzir a uma
ditadura pior do que aquelas que se limitam a queimar livros.
Antes de mais, Montag descobre que por trás de cada livro, existe um
autor.
«A man had to think them up. A man had to take a long time to put them down on
paper. (…) It took some man a lifetime maybe to put some of his thoughts down,
27
looking around at the world and life (…).»
«It’s not books you need, it is some of the things that once were in books. (…) Books
were only one type of receptacle where we stored a lot of things we were afraid we
28
might forget. (…) The magic is only in what books say.»
Comecei esta breve excursão perguntando que tipo de livro seria Ray
Bradbury. Em Fahrenheit 451, Bradbury escreveu um livro sobre livros, um
livro sobre a preservação do cânone das grandes obras literárias da
Humanidade. E fê-lo na especial linguagem metafórica da ficção científica.
Ao fazê-lo, uniu-se a essa grande linhagem de curadores da nossa Cultura e,
ao invés de seguir o curso mais simples, que seria o de detrair do cânone os
livros que sentia estarem em colisão com os seus próprios gostos — alguns
dos quais encontramos preservados no seu próprio cânone ficcional —,
acrescentou-lhe algo; enriqueceu a Cultura da nossa espécie na sua corrida
para alcançar as estrelas.
«I used to memorize entire books», diz-nos Bradbury com a sua habitual franqueza.
«I suppose that’s where the ending of Fahrenheit 451 comes from — where the book
people wander through the wilderness and each of them is a book. That was me
34
when I was ten. I was Tarzan of the Apes.»
4 O presente texto consiste na tradução, com ligeiras alterações, do ensaio «Fulfilling the Prophecy:
Feeding the Flames, Burning the Canon», apresentado no âmbito do Colóquio Dark Futures in
Projection: On the 60th Anniversary of the Publication of Ray Bradbury’s Fahrenheit 451, que teve
lugar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto entre 14 e 15 de Novembro de 2013.
5 Entrevista de Sam Weller, in The Paris Review — Ray Bradbury, The Art of Fiction No.203, 2010.
6 Idem.
7 «The Parrot Who Met Papa» (1972), in The Stories of Ray Bradbury — Vol. 2, Grafton Books,
Londres, 1983.
8 Idem, p. 522.
9 Idem, p. 533.
10 Idem, p. 534.
11 Entrevista de Jeffrey M. Elliot, in Science Fiction Voices #2, The Borgo Press, San Bernardino,
1979, p. 23.
12 «You have “The New York Maffia” which rolls logs for each other — people like John Updike,
Philip Roth, Norman Mailer. (…) The truth is, not one of these writers would know a good idea if it
came up and bit him. Updike is all style and no idea.» (Idem)
13 «Usher II» (1950), in The Martian Chronicles, Bantam Books, Nova Iorque, 1951, p. 116.
14 Idem, p. 115-116.
15 Entrevista de Sam Weller, in The Paris Review — Ray Bradbury, The Art of Fiction No.203, 2010.
16 Entrevista de Jeffrey M. Elliot, in Science Fiction Voices #2, The Borgo Press, San Bernardino,
1979, p. 21.
17 Fahrenheit 451, Ballantine Books, Nova Iorque, 1953, p. 8.
18 Idem, p. 9.
19 Idem, p. 21 e p. 27.
20 Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, Harcourt Brace Jovanovich, New York, 1973, p.
468, 159, quoted by Roger Kimball, Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher
Education, Ivan R. Dee, Chicago, 2008, p. 117-118.
21 Fahrenheit 451, Ballantine Books, Nova Iorque, 1953, p. 97.
22 Idem, p.78.
23 «Usher II» (1950), in The Martian Chronicles, Bantam Books, Nova Iorque, 1951, p. 117.
24 Fahrenheit 451, Ballantine Books, Nova Iorque, 1953, p. 49-53.
25 Roger Kimball, Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education, Ivan R.
Dee, Chicago, 2008, p. 19.
26 Fahrenheit 451, Ballantine Books, Nova Iorque, 1953, p. 54.
27 Idem, p. 47.
28 Idem, p.73, 74, seriatim.
29 Idem, p. 91.
30 Roger Kimball, Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education, Ivan R.
Dee, Chicago, 2008, p. 72.
31 Roger Kimball, idem, p. 255, citando Lynda Bundtzen.
32 Fahrenheit 451, Ballantine Books, New York, 1953, p. 136.
33 William J. Bennett, in To Reclaim a Legacy: A Report on the Humanities in Higher Education,
National Endowment for the Humanities, 1984.
34 Entrevista de Jeffrey M. Elliot, in Science Fiction Voices #2, The Borgo Press, San Bernardino,
1979, p. 24.
BIBLIOGRAFIA
BRADBURY, Ray — «The Parrot Who Met Papa» (1972), in The Stories
of Ray Bardbury, Vol.2, Gafton Books, Londres, 1983.
Mais informações em
www.sde.pt
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