Hamlote Contos Insólitos2
Hamlote Contos Insólitos2
Hamlote Contos Insólitos2
Hamlote
Contos Insólitos
HAMLOTE
CONTOS INSÓLITOS
Luciano Nascimento
Hamlote
Contos Insólitos
Luciano Nascimento dos Reis
Vitória - ES
2013
Copyright © by Luciano Nascimento
Capa:
LN
PREFÁCIO (insólito)
Prelúdio
O prefácio é aquele texto criado para instigar o leitor a ler a obra. Mesmo que
em alguns casos, não tenha muito a ver diretamente com a obra. O prefácio é o texto
que é para ser lido, mas não é lido, às vezes pela falta de interesse em lê-lo, outras
pela vontade suprema de ler a obra o mais rápido possível, e este, ele achava o mais
interessante, não era lido pelo simples fato de a pessoa saber como lê-lo e qual sua
função prática.
―Prefácio
Boa leitura.‖
Leu e releu várias vezes. Amassou a folha. E jogou-a no lixo junto com as
outras. Nada lhe agradava, a não ser o fato de que tinha consciência de que nada lhe
agradava.
Tentou novamente. Porém, dessa vez tentou algo mais descritivo, pessoal e
simples, algo mais direto, mais borgeano.
―Prólogo
Mais uma vez, a folha datilografada seguiu seu destino inevitável. A sua
pequena lata de lixo já estava ficando menor pela quantidade de folhas nela.
O imã da lixeira atraía mais uma vítima. Nada lhe agradava, nem mesmo o fato
de escrever. Pensar é mais duro do que se possa imaginar. Escrever é trabalhar.
Levantou-se, foi à sua geladeira procurar algo para beber. O máximo que
encontrou para enfrentar o calor foi uma lata de cerveja. Pegou-a assim mesmo.
Foi bebendo até chegar à mesa da máquina datilográfica, onde ficou sentado,
olhando a folha de papel em branco.
II
Poslúdio
Chegou em seu quarto e viu em sua mesa de cabeceira, um livro, aberto pelo
vento, cujas páginas dançavam ao movimento do mesmo vento.
Era como um balé ao som das folhas. Uma dança de palavras. De longe,
aquele livro se assemelhava a uma chama branca, rodopiando ao sabor da brisa.
Assim também é o escritor, que rodopia, dança ainda nesse vento de palavras soltas
ao léu. Cabe apenas ao escritor absorvê-las, ou melhor, ser levado por elas, criar
mundos novos e cheios de fantasia.
Boa leitura.
Hamlote
Advertência ao leitor:
Uma era órfã de grandes e duradouros ícones. Uma era que carece de
metáforas.
Ao fim de sua caminhada, ele nota que está nas últimas páginas do livro.
Em suas últimas páginas, ele percebe que o livro continha toda sua vida.
— Bons dias, jovem mestre. Espero que estejas preparado, pois hoje pretendo
desafiar todas as tuas habilidades.
— Mas nunca questionou teus dias? Tuas noites? Os dias de tuas noites? As
noites de teus dias? Por que vives assim e não assado? – mestre Alonso tentava
encontrar uma brecha nos argumentos de Hamlote.
— Continue.
— Advirto-vos, jovem mestre, não confieis por demais nas revelações do deus
Hermes, pois, em diversos casos ele não diz totalmente o conhecimento. Algo sempre
permanece nas entrelinhas. A intempestividade é sempre própria da juventude.
Cuidado também com ela, pois cautela nos passos e gestos pode resguardar-te a vida.
E então, fizeste os exercícios que te sugeri?
— O vento ainda tem o poder para despedaçar moinhos, por maiores que sejam
suas pás. – devaneava mais ainda Hamlote.
— Metafísico, não é?
— Não diga isso dos mortos, pois não é cortês falar daqueles que abraçaram a
mãe-terra. — Eis que a consciência faz de todos nós a morada dos vermes. A
vida, jovem Hamlote, não se resume a estas vãs filosofias. Pense bem nisso.
Ato II
Caminhava pelos corredores da Mansão despreocupadamente.
Nada atormentava seu coração oco. Afinal, o estudo era um passatempo para a
mente e o amor não passava de uma rotina inexistente. Felizmente, permanecia
insensível a qualquer sentimento que perturbasse seus dias circulares. Nada deveria
incomodá-lo. Seu olhar deveria ser aguçado e atento, sua mente, prática e lógica. Seu
coração… coração? Para que servia isso?
Não havia viv’alma por onde Hamlote passava. A Mansão era como uma
morada fantasma. Não se ouvia um murmúrio, apenas o silêncio se pronunciava. Seus
passos não produziam som. Nem mesmo sua respiração. Tal como o prenúncio de
algo. Quando tudo aconteceu, foi bem rápido. A mente de Hamlote só captou o
básico: a luz vinda de uma sala mais a frente que o cegou por alguns instantes.
Reparou apenas num detalhe: no centro da sala existia uma peça de mármore
retangular maior que as outras. Aproximando-se com cuidado dela, ficou a fitá-la
calado.
Sir Hamlote I
Tais palavras causaram estremecimento na alma do jovem, pois ele sabia que
seu pai estava morto, mas nunca houvera visto o túmulo onde jazia. Num piscar de
olhos, surgiram dos outros ladrilhos fugazes imagens que apareciam e desapareciam.
— Acalma teu coração, meu filho! Existe uma infinidade tão grande de
enigmas no universo que tua sonhada filosofia torna-se efêmera. Abandone o manto
da erudição e venha ter como tu mesmo és. – disse um reflexo atrás dele que surgia e
ia tomando a forma de um senhor idoso trajando um terno negro. Uma imponente
bengala à mão deixava-o semelhante a um cavaleiro com a espada desembainhada. O
homem era deveras semelhante a Hamlote e o reflexo de seus olhos profundos, de
negro dentro de negro, transmitia a sabedoria de muitos séculos. Imagens de sonhos
absurdos assaltaram a mente já conturbada de Hamlote.
— Pai! Meus olhos me traem e minha razão zomba de mim! Como tal fato
pode ser possível? E como posso saber, aparição fantástica, que é realmente quem diz
ser? Afinal, não se deve confiar nem em fantasmas nem em sonhos.
— Essa era a história que me contava quando eu ainda era uma criança… mas
porque, pai? Por que logo essa estória para comprovar suas palavras?
— Algumas vezes, a verdade se torna mais presente nos enigmas. Mesmo que
eu esteja preso em um espelho e tudo reflita, ainda assim, continuo não enxergando
nada.
— Sei que algo acontece de enorme ao meu redor, mas não consigo enxergar!
— Pai, me explique o que acontece! Eu não posso lutar contra algo que não
posso ver ou tocar.
— Mesmo invisível e intocável, o ar continua enchendo nossos pulmões. – o
fantasma desaparecia e retornava, como uma névoa.
— O vento não pode ser domado… então siga-o… onde eu ouvi isto?
— Verdade? O senhor insiste com essa verdade! Onde está esta verdade…?
— Como a verdade pode estar dentro de mim se não sei do que se trata?
— Procure seu mestre e peça a ele as respostas que tu guardas dentro de si…
— o fantasma começou a desaparecer por completo
— Não se vá, por favor! Tem tanto que quero lhe perguntar. Tanto para lhe
dizer! — gritava Hamlote, correndo para perto da névoa fantasmal.
Ato III
Por ventura, é assunto vão ou tempo mal gasto o que se gasta em vagar pelo
mundo, não buscando recompensa deste, senão as asperezas por onde os bons sobem
ao assento da imortalidade?
Eis que é a consciência que faz de todos nós covardes. Eis o que estorva a
vontade e nos decide a suportar os males que conhecemos, com medo de
enfrentarmos outros que não conhecemos.
Contentamo-nos, então, por sonhar. Sonhar, talvez, é este o ponto: pois a ideia
de quais sonhos podem sobrevir no sono da morte, quando nos livramos dos estorvos
mortais, é a reflexão que nos detém, é a dúvida que prolonga por tão largo tempo a
vida dos infelizes. Agora digo, aquele que lê muito e anda muito, vê muito e sabe
muito. E aquele que reflete aquilo que lê e vê, entende além.
Sempre enderecei minhas intenções a bons fins, que são fazer o bem a todos e
o mal a ninguém. E dou graças aos Céus, que me dotaram de um ânimo brando e
compassivo, para o engrandecimento do gênero humano. Desgraçadamente, dotou-
me também da arma que é a mesma usada pelos togados e pelas mulheres, que é a
língua, arma que mata mais que exércitos e fere mais mancebos que todos os canhões
de toda a infantaria do maior dos batalhões.
— …por exemplo?
— Seu pai foi um homem honrado e cheio de sensatez. Uma pena que esteja
morto… Contudo, não se deve confiar em tudo aquilo que os mortos nos dizem.
— Parece que o mundo é uma eterna repetição dos mesmos fatos. Por minutos,
parece que apenas eu enxergo a verdade! Todo o tempo parece um círculo eterno na
qual estamos fadados a repetirmos sem cessar!
— O Teu Livro!
— Na… biblioteca.
— Vá… que sua jornada seja branda. – e Hamlote saiu, mais que depressa,
atrás das respostas.
— Ah, jovem mestre, que a glória seja teu alimento e a luta, teu descanso. —
murmurou mestre Alonso.
Ato IV
Mais do que nunca, o corredor era interminável. As portas pareciam haver se
multiplicado. Todas idênticas. Envernizadas, com os mesmos detalhes retangulares,
solenes e vitorianos. Sem nada que as diferenciasse. No corredor, a mesma luz
lúgubre dos candelabros dava um ar de repetição asfixiante e, por vezes, poder-se-ia
parecer que o teto e o assoalho eram o mesmo, graças a sua semelhança e, por isso,
deixando quem por ali atravessasse a impressão de que caminhava de ponta cabeça.
Em seu rosto ainda rolava o salgado e o doce, o úmido e ácido de uma lágrima.
Seu coração batia com uma freqüência caótica. Eram tantas as sensações que
imaginara enlouquecer. Lembranças e sonhos esquecidos voltaram-lhe a mente e tudo
finalmente fez sentido. As brilhantes borboletas passeavam e dançavam ao seu redor,
mas não desapareciam nem tampouco lhe feriam. Finalmente, a tênue linha que
separava seu sonho e a realidade se rompera.
Um impulso que nunca sentira em sua alma o impelira a ler todo o livro de
novo e de novo. Sua vida em seus olhos literalmente. Não conseguia parar. Era tão
fantástica a verdade, que era impossível de aceitá-la. Relia o livro com a avidez de
um faminto. E era o que Hamlote era no momento. Faminto pela verdade. Faminto
por encontrar sua alma. Faminto por… si mesmo. E era isso que, a cada página lida,
perdia mais e mais.
E ele agora não possuía mais um nome, mas não se importava mais com isso.
Nomes eram para seres, e ele agora estava sendo eternamente. Morrendo e nascendo
a cada segundo. Um vento silencioso que sussurrava por entre seus cabelos falava em
sua alma. O vento que sempre estivera ali, dentro e fora dele. O atroz e impetuoso
vento da mudança, que não escolhia paragem para desfazer ou árvore para erguer. O
vento que atravessava o sonho e a vigília e os tornava um só.
Enquanto olhava para o céu, viu você vendo-o. E descobriu-se fazer parte de
algo bem maior do que imaginara. Viu as páginas de um livro sem final (de areia) e
os capítulos do livro de sua vida, mas não viu quem o observava nas sombras. E viu
que não estaria sozinho, pois enquanto você acompanhasse sua vida, ele viveria. Em
cada letra que fosse lida e cada página que fosse virada. Sim, ele sempre existiria.
Sempre completaria sua jornada. Em cada vírgula e em cada ponto final.
Ad infinitum.
Nota:
O final visto acima foi decidido pela própria narrativa. Contudo, as demais
merecem seu crédito:
Existe ainda uma versão da história que foi abandonada, em que multiplicam-
se os atos, incluem-se uma Ofélia (cujo nome é Helena), seu irmão Laertes (no caso,
Miguel) e um circo. Nesta última, toda a Mansão é transformada em um palco, e a
história de Hamlote, numa encenação.
Cartas ao Farol
O passado…
Alimentado por uma curiosidade poeana, o homem segue até a cidade, que se
classifica como uma ―cidade pesqueira de interior‖. Dirige-se imediatamente à praia,
onde encontra o farol, o ciclope adormecido. Com mais cautela que medo, ele adentra
a construção que se revela uma torre. Como se já houvesse passeado por aquele lugar
num sonho, ele sobe as escadas – que possuem alguns degraus em falso – até chegar à
porta de um cômodo em que ele jura ter visto Ana em frente. Sem pensar – nem
imaginar que este será seu quarto futuramente – ele entra e vê, iluminada pela luz do
dia (não se diz se manhã ou tarde), a escrivaninha de Ana e, pelas paredes do quarto,
desenhos, gravuras e papéis, recortes de jornais e uma série de informações que
parecem ter o desejo de engoli-lo. Existem representações da Cabala, citações do
Alcorão, trechos de mitos nórdicos, a notícia do desaparecimento de quatro crianças
nas proximidades do farol, anotações sobre a Atlântida, mapas náuticos, e, o mais
fantástico: cartas de Tarô dependuradas num varal acima da escrivaninha. Os nomes
daqueles que estão na foto não-tirada também se fazem espalhados em pequenos
pedaços de papel espalhados pelo chão.
A maior parte da ação ocorre dentro do farol, que se converte em casa, refúgio,
prisão, mas também, personagem silenciosa. Cenário que influencia nas decisões das
demais personagens. E, encontra-se respaldo para isso uma oração do primeiro
episódio: ―Dizem que o farol é mal-assombrado…‖ E não só pelos fantasmas já
existentes, unem-se a esses os fantasmas e demônios trazidos pelos protagonistas (e
os mesmos talvez também o sejam), como confirma o diálogo ―No porão moram os
fantasmas...‖ ―e no sótão, os demônios.‖. Mas o farol é ainda labirinto.
Diferentemente de sua conceituação, ele não serve como guia – tanto que seu foco
luminoso encontra-se destruído. Sua função é mais de perda que de encontro.
Lendo o livro uma segunda vez, percebe-se o esforço dobrado por parte do
escritor. O primeiro, de criar uma história de rica alegoria e inovadora inventividade.
O segundo, construir um texto coeso e coerente, mesmo se apropriando de um tempo
inconsistente. O logro no primeiro é perceptível. No segundo, nem tanto. Seu
trabalho, se não absurdo, é quase inútil. O tempo transcorre e não transcorre. A
linearidade não o limita, mas o faz chegar ao extremo. No limite entre a sequenciação
e o anacronismo, peca por tentar tornar um redutio ad absurdum em um prospectus
aeternitatis. O livro passa a ser uma tentativa de propor uma ordem no caos que
compõe o espírito humano. As pontas soltas são visíveis. A fusão entre os tempos e
os espaços ocorre no interior de um farol de uma cidade pequena. Um quarto
confunde-se com outro. Uma personagem com outra. A luz confunde-se com a treva.
Chega-se um ponto em que não é possível perceber o quanto de misticismo adentrou
a literatura e o quanto a literatura se infiltrou no misticismo.
NOTA
―Prefácio
Inicialmente, devo dizer que este livro não tem início nem fim, para decepção
daqueles que desejam histórias sequenciadas e de desenvolvimento previsível.
Aqueles que o lerem sem o compromisso da retórica, apenas pelo prazer da leitura,
deverão achá-lo intrigante, satírico, autobiográfico, enfim, prazeroso.
Não pude classificá-lo como romance, uma vez que esse não possui os fatos
amarrados numa sequência temporal. Na verdade, os capítulos nada mais são que
contos reunidos e ligados por uma espinha dorsal condutora.
Regência e seu farol surgiram-me num sonho, quando ainda não me corroia a
ideia do livro. Os outros elementos (cabalísticos, sobrenaturais, estilísticos)
apresentaram-se à medida que a escrita fluía. Como parte de um sonho maior, que se
tem quando se está acordado.
Andava de ônibus como qualquer outro trabalhador da cidade que não possuía
carro. No entanto, não o era. Era aluno de uma dessas escolas técnicas que existem
espalhadas pelo país.
Diferente de alguns de seus colegas de classe, não possuía um pai rico para
levá-lo à escola. Ao contrário, o pai, pedreiro, passava por dificuldades para
conseguir serviço. Ainda assim ele, o filho, sentia esperança de as coisas melhorarem.
Em sua aparência, deveria ter bem mais de 50 anos, todavia, conseguia ser
mais atraente que quatro jovens com metade de sua idade. Usava uma saia preta de
linho que ia até quase o joelho. Justíssima, dava o delineamento perfeito de seus
quadris. Vestia uma blusa de seda vinho, entreaberta, mostrando seus voluptuosos
seios. Tudo em seu corpo tinha o cheiro da mais pura luxúria. Em um de seus
ombros, uma dessas bolsas femininas, tiracolo, média. Podia-se perceber que estava
pesada. Tal fato era fisicamente perceptível ao frear ou acelerar do ônibus. Sua dona
era levada por ela e não o contrário. Não só com terceiras intenções, mas também
com espírito samaritano, ofereceu-se para levar sua bolsa. Ela, assentindo, entregou-
lhe-a educadamente.
Decidiu não entregar a bolsa para o motorista ou o cobrador, mas ele mesmo
procurar a mulher e lha entregar. Imaginou que a recompensa poderia ser bem
agradável. Escondeu a bolsa em sua mochila, no momento em que ia sair do ônibus.
Na sala de aula, estava estranho. Mais calado que o de costume. Tudo para ele
era denunciador. Mesmo não tendo feito nada de errado, sentia como se houvesse
feito. Sentia como se alguém fosse descobrir o que escondia em sua mochila a
qualquer momento. Desconfiava até mesmo da própria sombra. Se alguém sequer
tocava sua mochila, era motivo de escândalo, gritos apavorados, palidez no rosto e
suor frio. Como acharam que estivesse doente, mandaram-no de volta para casa.
Chegando a casa, correu para seu quarto sem falar com ninguém. Sua casa era
humilde, porém, confortável. Precisava de algumas urgentes reformas. Seu pai,
mesmo sabendo disso, nada podia fazer. Para se comprar os materiais necessários
para tal fim era preciso dinheiro, que ele não tinha. Vez por outra, se fazia necessário
concertar uma porta ou um azulejo solto.
Ficou o resto da manhã deitado em sua cama. Imaginando tudo o que ocorrera.
Como acontecera tão rápido. Entre um pensamento e outro, imaginava aquela linda
mulher entrando em seu quarto, usando um robe de cetim vermelho. Seus longos
cabelos balançando como ondas de um mar em chamas. Suas peças íntimas podendo
ser vistas através do fino tecido. Seus lábios convidativos lhe murmurando frases
censuráveis. Suas mãos a lhe acariciar as pernas e a subir por elas. Os deleitáveis
seios a mostra. A postura de fêmea no cio. O corpo estremecendo de desejo. O suor
morno da pele macia. Um delírio consciente. Um arrepio libidinoso. Como que num
estalo de lucidez, atentou para um importante fato: ainda estava com a bolsa dela em
seu poder.
Por fora, não possuía nada de especial. Nada que denunciasse a quem
pertencesse. Um nome, sigla. Nada. Era uma bolsa normal como qualquer outra. De
couro sintético, rosa, vulgar, igual, como uma bolsa qualquer. Imaginava o que havia
dentro, assim como as conseqüências de seu gesto. Poderia simplesmente entregá-la a
sua mãe, contar toda a história e dar isto tudo por encerrado. Mas era óbvio que não o
faria.
Era algo com cabelos. Mas não era uma peruca. Cabelos que decidiu puxar.
Delicada mas insistentemente. Vieram com facilidade, juntamente com a cabeça, o
pescoço, o ombro e todo o resto do corpo que os acompanhava. Era uma jovem que, à
primeira vista, aparentava ter a mesma idade que ele. Uma jovem nua. E a
semelhança com a dona da bolsa era incrível. Era como se fosse a versão mais jovem
desta. Tudo nela era idêntico, com exceção da idade, é obvio. Os cabelos, o rosto
rejuvenescido, o corpo bem delineado. Olharam-se calados, ambos assustados. Coube
a ela quebrar o silêncio, pedindo para ele lhe arrumar algumas roupas.
Perguntou depois, enquanto se vestia, se ele havia roubado a bolsa da mãe dela.
Ele prometeu contar-lhe toda a história se ela lhe respondesse o que ela fazia em
lugar tão insólito. Ela assentiu em responder, depois que ele lhe desse algo para
comer.
Após ele lhe levar comida no quarto, ela lhe disse que sua mãe – que ela
revelou ser descendente das sacerdotisas atlantes antediluvianas – era muito ciumenta
e, por isso, sempre a levava junto dela. Desde que ela completou seus quinze anos,
sua mãe a colocou dentro daquela bolsa, só deixando-a sair em alguns eventos, para
tomar banho e outras coisas. Achava até divertido o fato de andar junto da mãe para
todo lado, mesmo que fosse dentro de uma bolsa. O único problema era que sua mãe
possuía um enorme defeito: ser muito distraída.
Lembrou-se de uma vez em que sua mãe esquecera a bolsa num aeroporto e ela
fora parar na Arábia Saudita. Passou seis meses servindo de dançarina para um sultão
até sua mãe lhe encontrar. Em outra, passou uma semana presa numa tumba,
dormindo ao lado de um tio seu que falecera. Seu pai já havia sumido há muito
tempo, perdido talvez em alguma mala, nalguma viagem de férias.
Contudo, ele percebera que ela, apesar dos pesares, era belíssima. Uma beleza
lapidada, moldada, batizada na água, no fogo e no sangue, mesmo ele não sabendo o
significado profundo disso. Ele, então, contou-a que havia se oferecido para segurar a
bolsa da mãe dela em um ônibus e ela fora embora. Procurava dentro da bolsa algo
que pudesse pô-los em contato. Nunca esperava encontrá-la. E ela, agradeceu a Deus
por sua mãe não tê-la esquecido em algum guarda-volumes de supermercado, outra
vez.
Ela – que lembrava tudo que lia, via ou ouvia – sabia de cor o número de
telefone de sua casa, e até o endereço. Mas ele, fazendo uso de seu senso de
oportunidade, deu-lhe a ideia de saírem, para que ela se divertisse um pouco antes de
voltar para casa. Ela, surpresa pela inesperada proposta, aceitou alegremente. Havia
um problema apenas: como tirá-la de sua casa sem que a mãe dele percebesse? Muito
simples! Ela, muito rapidamente entrou em sua bolsa e ele, colocou-a dentro de sua
camisa e vestiu um casacão para que sua mãe não percebesse e saiu de seu quarto.
Andou pela casa na ponta dos pés. Quando passou pela porta da cozinha, a mãe
o chamou. Um calafrio correu sua espinha e, pálido, perguntou gaguejando à ela o
que queria. Ela pediu ao filho para jogar o lixo fora quando saísse. Mais que
depressa, ele, abraçando a bolsa em seu peito, pegou a sacola e correu para fora de
casa. Jogou o lixo e, escondido na varanda de casa, abriu a bolsa para que a moça
saísse. Ela pegou dentro do objeto um pente, um espelho e um estojo de maquiagem,
com a destreza de quem conhece cada recanto da superfície interna da bolsa. Ele
reparou que ela usava roupas diferentes das anteriores.
Saíram e andaram pela cidade, que ela não conhecia, mas fez questão de
conhecer. Todas as ruas, casas e pontos turísticos. Terminaram seu passeio na Praça
dos Namorados, sentados num banco chupando picolé. Ela, reparando em tudo, olhou
um casal de namorados que passava por eles. Comentou que nunca havia saído com
um namorado antes e ele, fazendo mais uma vez uso seu senso de oportunidade, disse
que poderia fingir ser seu namorado. Ela concordou, porém, disse que ela é quem
deveria fazer o pedido, pois estava cansada de ser dominada e que, ao menos uma
vez, mesmo que fosse de mentira, gostaria de tomar as rédeas de seu destino. Um
namoro de mentira que trouxe as mentiras rotineiras. As mentiras das quais se está
habituado a viver. As mentiras gerais dos relacionamentos. As juras mentirosas e os
risos dissimulados. Um passeio de mãos dadas e um beijo mentiroso. A noite fora
boa.
Não foram necessárias explicações, uma vez que se sabe, as mães possuem um
sexto sentido no que diz respeito aos filhos. Olharam-se e a filha, lacônica, pediu a
ele se podia utilizar seu quarto. Enquanto elas iam para o quarto, percebeu que eram
idênticas. Gerações de uma mesma mulher. Faces atemporais de uma mesma moeda.
Reflexos de um espelho inverso. Uma era um pouco de tudo na outra, do mesmo
modo que a outra era de tudo um pouco de uma. Faziam parte uma da outra. O
nascente e o poente eram apenas pontos de vista diferentes do mesmo fenômeno.
Verões diferentes de uma única mulher. E toda mulher tem seus verões. E, também as
demais estações. Naquele instante, em que uma estava ao lado da outra, percebeu que
não eram mãe e filha, mas sim a mesma mulher. E viu também o quanto ambas eram
extremamente lindas. Lindas na semelhança e na diferença.
Depois do ocorrido, ele voltou à sua vida de sempre. Da casa à escola. Mas o
beijo de mentira ficara gravado em sua boca.
Ficou olhando-a por instantes, imaginando o que aquela mulher passara para se
tornar o que se tornou. Quando ela percebeu que estava sendo observada, virou-se
para o lado e ele, por medo ou vergonha, virou-se de frente e encolheu os ombros,
quase se escondendo no banco. Em vão, pois ela o vira. Mas também nada fizera. Em
seu silêncio, em sua omissão (omissão mútua), percebeu o que ele fizera.
Obs.: Espero que as mulheres não me considerem machista com este meu relato,
principalmente as senhoras, que são um possível alvo dele. Antes de qualquer coisa,
gostaria de esclarecer que o que narrarei a seguir me foi contado por um amigo e
poderia ocorrer a qualquer um. Até mesmo com um homem.
O cenário da estória poderia ser qualquer um. Qualquer praça, parque ou lugar
público destinado ao entretenimento da família.
A família que a protagoniza poderia ser até mesmo a sua. Mas, felizmente, não
é. Pois, como disse, quem me contou essa estória foi um amigo, entre uma piada e
uma curiosidade, numa dessas conversas em ônibus, bares e locais similares. Mas não
irei me estender mais nos pormenores de como consegui a situação a ser descrita.
―Vamos aos finalmentes‖ como já dito por um personagem por mim esquecido.
A dita família, como já dito, é uma família normal, composta por dois filhos,
uma menina de cinco anos e um menino de dez, um pai e, como toda família
tradicional, uma mãe. Divertiam-se num desses feriados ou num desses sábados ou
domingos. Não se preocupavam com o horário, apenas com a diversão. O pai, como
todos, parecia possuir mais de cinco braços, carregando brinquedos e doces comidos
pelos filhos. A mãe, sempre prestativa, vigiava todos os passos das crianças que não
se preocupavam com mais nada a não ser brincar. Um acidente, porém, muda os
planos. Outra criança, também preocupada somente com a sua diversão, tropeça e cai
com seu sorvete na roupa da mãe da nossa família. A criança corre sem se preocupar
e desaparece no meio de multidão. A família fica estática, pensando no que fazer,
mas a mãe, sempre prática, vai mais que depressa procurar um banheiro para se
limpar. A família decide ficar do lado de fora. Ela entra no cômodo e, após se limpar,
decide também se arrumar, coisas de mulher. Ela olha os ladrilhos ao seu redor, cor
de lua, e se lembra de sua infância. Os tempos na casa da avó. Ao lavar as mãos ela
se recorda dos passeios na chuva que fazia quando menina. As amigas da escola. Sua
face no espelho está mais velha. Ela vê suas rugas e se lembra do casamento. O
nascimento do filho. A mudança para outra cidade. O nascimento da filha. O
falecimento da sogra. O primeiro braço quebrado do filho. As brigas e as alegrias. As
derrotas e as conquistas. Tudo se passou por seus olhos apenas no descer da água
pelo ralo da pia. Um estalo que lhe fez relembrar que a vida é curta e que é muito
bom vivê-la. Então, ela lembra-se que a família estava do lado de fora lhe esperando.
Sai rápido, com medo de o marido lhe dar uma bronca por ela haver demorado tanto.
Ao sair, quem lhe espera são um calvo senhor idoso, uma moça de mais ou menos
quinze anos e um rapaz com uma moça ao seu lado e um bebê no colo. ―Puxa, mãe.‖
Diz o rapaz, com um sorriso nos lábios‖ Dessa vez a senhora conseguiu se superar.‖
Ao seu lado um bilhete amassado. A única coisa que ele ainda não entendia era
o fato de sua governanta tê-la chamado de... sra. Locke. A não ser que…
Ainda me pergunto por que tu fizeste o que fizeste. Mesmo assim, perdoo-te e
entendo-te.
Mesmo que mereças, não irei te difamar, apesar de ser o ato mais correto, mas
não o de um verdadeiro cavalheiro. Talvez até demais para uma meretriz traidora
como tu foste.
O amor é o pior dos venenos que alguém pode estar vitimado. Espero
realmente que sejas feliz ao lado do cão que escolheste.
Stephen G. Peer
Sempre fora um pária entre os seus colegas, no entanto, com ela era diferente.
Graças a isso, criou-se entre eles uma leve e tênue, porém, agradável amizade. Ele, o
sonâmbulo, a viajar a lugares onde as mentes mortais não ousavam ultrapassar. Ela,
exata, pragmática, de temperamento forte. Os contrários a se atraírem.
Tal detalhe não o impediu de voltar a entrar em contato com a jovem Lady,
agora uma senhora respeitável.
Havia visto ela e o marido em alguma das constantes festas em que era
convidado ou que promovera.
— O nascer do sol é sempre triste... _ disse Locke a Lady Peer enquanto esta
passava por ele sem o notar. O fato de ouvir aquelas palavras arrancou-lhe o sangue
das faces. Nem mesmo quando viu que o emissor delas era ele. Ainda sentia calafrios.
Ele levantou-se do pequeno sofá e, parecendo passear por entre as sombras,
aproximou-se da jovem senhora.
— Não sinta por ele. O lugar dele deve ser melhor do que o nosso. Ainda
estamos presos aos caprichos do corpo.
— Meus pêsames. Pode ficar aqui o tempo que quiser. – disse ele, pondo suas
mãos sobre as dela. – Ofélia!
A srta. Granger aproximou com seu jeito habitual, como se flutuasse pela casa.
— Ofélia, cuide para que a estadia de Lady Peer seja a mais agradável possível.
– disse Locke.
— Não quero ouvir mais nenhuma palavra! Não entendo seu ódio por lady
Peer, mas não tolerarei este comportamento. Quero que ainda hoje esteja com as
malas arrumadas e até o cair do sol, tenha saído da mansão!
— Como quiser, senhor. Se prefere uma rameira a uma serva fiel, nada posso
fazer. Só advirto-o, a escolha foi sua e não terá mais volta. – Ela virou-se e dirigiu-se
ao seu quarto, para arrumar suas coisas, porém, antes, virou-se silenciosamente para
Locke e disse:
— Cuidado, senhor. Pode ser a segunda vítima dos erros dessa mulher. – Sem
dar chance ao homem de responder-lhe, entrou em seus aposentos.
Ele dirigiu-se ainda tenso para a sala. Andava entre as sombras, evitando que a
luz do sol tocasse sua pele cinzenta.
— Desculpe a srta. Granger. Não sei o que deu nela. – disse à jovem viúva.
— Não sei por que mas, ela me lembra alguém... –murmurou lady Peer.
— Mas...
— Os outros empregados lhe servirão no que precisar. Fique realmente à
vontade. Irei descansar um pouco. A luz do dia me cansa.
— É um prazer para minha pessoa servir-te. Agora, pense no que fará agora em
diante. – Locke, ainda na penumbra, subiu as escadas lentamente, como se o dia lhe
sugasse as forças.
Ela permaneceu na sala sentada por muito tempo. Não imaginava o que poderia
fazer de agora em diante. O marido morto. A entrega inconsciente a um louco
fantasma do passado. Tentava reconstruir seu castelo de areia. Em meio às ruínas
tentava se reerguer. Mesmo sabendo que a base de seu mundo se manteria abalada.
Depois da queda nada mais é como antes. Mesmo o que é construído em cima. A
semente da entropia mantém-se entranhada no mais profundo do ser.
A enigmática irmã mais velha de Stephen G. Peer mandava, uma vez por mês
uma carta para ele. Esta vinha através de um mensageiro que só ia embora depois que
recebia outra, de punho, dele. Lady Peer nunca sobe o nome dessa mulher ou onde
morava, no entanto, sempre sentira a presença dela sobre não só sobre Stephen, mas
também sobre ela.
Não sabia como ainda, mas deveria encontrá-la, lhe dizer tudo o que ocorrera e
aceitar a pena que seria imputada sobre ela. Levantou-se rapidamente e a passos
longos, subiu as escadas que levavam aos quartos. Com certeza contrataria um bom
detetive, o melhor que o dinheiro pudesse comprar. E, mesmo que gastasse toda a
herança que o marido a deixara, não se acalmaria enquanto não encontrasse sua
cunhada misteriosa.
Deu-se conta que sua vida era cercada por enigmas. Tanto o falecido marido,
quanto o louco anfitrião que a hospedava.
Entrou no quarto de Locke sem bater. Ele, como sempre, estava sentado na
penumbra com um livro e fitava-a com seus olhos sombrios.
— O que você lia? – sentia sempre o calafrio quando ele a olhava assim.
— E quais as ligações entre este livro lendário e uma relação tão trágica?
— Oh, minha inocente... O livro de Nod é o único relato sobre Caim e sua
genealogia que se tem ouvido falar. Pelo menos o único que aparenta ser fiel.
Infelizmente eu não o tenho em mãos. Apenas alguns fragmentos copiados por alguns
arqueólogos por mim contratados... É interessante perceber que talvez Caim não
odiasse seu irmão, mas sim tivesse amor por ele. Um amor tão grande que, para ele
não existia sacrifício mais puro que seu irmão.
— Talvez você esteja certa... Mas não tema. Apenas à mente do louco cabem
as interpretações de seus devaneios... Entretanto, diga-me: o que você tinha a me
falar?
— Eu estou indo embora. – Locke ouviu o que ela disse sem esboçar uma
emoção sequer. – Preciso encontrar a irmã de Stephen.
— Por causa do tempo, já mandei avisá-la para ir-se pela manhã de amanhã.
— Por aqui o sol se põe muito cedo... Em compensação, a noite quase não tem
fim.
— Estranho...
— E por acaso você trouxe algo além de uma carta amassada e a roupa do
corpo?
— ...não...
— Tudo bem, sei que sempre lhe impressionei. Perdoe-me por isso.
— Vou descer para pensar por onde irei começar minha busca.
— Está bem, fique à vontade. Só uma coisa: nunca se esqueça de que o sangue
é mais denso que a água... — enquanto dizia estas misteriosas palavras, L. Locke ia
adentrando cada vez mais nas sombras de seu quarto.
Enquanto descia as escadas, Lady Peer deu de encontro com a srta Granger.
Esta, no momento em passou por ela, virou o rosto e resmungou algo
incompreensível.
Parecia não haver ninguém na casa a não ser os três. Sabia que os empregados
possuíam uma casa ao lado. Era lá que eles, com exceção da srta. Granger que tinha
um aposento dentro da mansão, passavam as noites. Aquela noite, em especial,
parecia que a srta. iria quebrar esse tabu. Sua mala estava encostada junto à porta.
Ficou alguns minutos olhando aquela grande mala. Sabia que nela existia algo
de déjà vu. No entanto não sabia o quê. Era retangular, enorme, negra e de couro.
Havia, em sua extremidade esquerda um trinco e nele um selo. Um ―G‖ maiúsculo
estilizado. Onde é que já havia visto aquele brasão? Em sua mão encontrava a
resposta. O anel de casamento que o marido lhe dera! Que mórbida coincidência era
aquela? Movida por impulso e, novamente, sem pensar nas conseqüências de seus
atos, Lady Peer abriu a mala.
— Como o senhor ousa me tratar assim? – dizia ela, como uma amante
abandonada.
— Hum... Mas, eu nunca vi você recebendo visitas e tão pouco saindo aos fins-
de-semana ou pedindo um dia de folga.
— Eu nunca quis me envolver na vida dele. Preferi ser seu anjo da guarda.
Entretanto, sempre me correspondo com ele.
— Meu pequeno Stephen... Por que se envolveu com aquela vaca traiçoeira?
Seu futuro era tão brilhante. – dizia ela louca e com lágrimas nos olhos. –Eu não
poderia tê-lo deixado continuar sendo traído... Meu pobre irmão... tão inocente...
— Agora, a justiça será feita! Como a Nêmesis, devo punir a fonte do mal... –
ela flutuava pelo cômodo. Aproximou-se de Locke com a adaga em mãos. Parecia
que desejava beijá-lo.
— Não poderia deixar outro homem que muito prezo cair nas garras daquela
Lilith escarlate. Adeus, meu... bam!!! –o som do tiro ecoou por toda casa. O corpo de
Ofélia Granger Peer foi ao chão imediatamente. Logo atrás dela, estava Lady Peer,
com os olhos lagrimosos empunhando uma pequena pistola que encontrara na mala,
com sua mão trêmula. No instante em que o corpo da mulher foi ao chão, a arma em
suas mãos seguiu o mesmo destino.
— Adeus, meu querido... – disse ela, em lágrimas, tocando os lábios dele com
os seus.
O dia amanhecia na mansão Locke, mas com certeza o sol por muito tempo
não voltaria a se levantar naquele nostálgico jardim.
Entre os olhos
Era do tipo que qualquer mulher gostaria de ter como namorado ou marido. Ou
qualquer sogra como genro. Prestativo, romântico, carinhoso, cavalheiro, cumpridor
de suas obrigações. Adjetivos eram poucos e ingratos para defini-lo. Tinha uma
namorada que não compartilhava de tantos predicados, aliás, possuía outros: fútil,
efêmera, gostava de sair com as amigas e comprar compulsivamente. A única coisa
que jurava jamais fazer com o namorado era trair-lhe. Todos sabiam que sofria ao
lado daquela garota de visão umbilical. Mas a ela estava preso por qualquer mística
desconhecida. Como dizem, enquanto vivemos, somos cegos. E assim vivia sua vida,
entre uma briga e outra.
Como que numa luz divina, a inspiração lhe vem à mente na forma de uma
mulher. Cansado de tanto ficar só em seu estúdio, o artesão decide criar uma
companheira imóvel. Alguém para que, ao menos, o fizesse imaginar ter companhia.
É melhor uma companheira silenciosa e imóvel do que nenhuma companheira.
O artesão continuou tentando, em vão. Por mais que tentasse, não conseguia
criar a perfeição. A inspiração lhe escapava pelos dedos. Aquele estúdio não continha
a fonte inspiradora necessária para que ele terminasse seu trabalho. Decidiu então sair
pela rua, para pensar no que faria para terminar sua maior criação.
Andou por toda cidade, entre prédios e praças, lojas e parques, carros e
pessoas. Sempre à procura de um olhar, um gesto, algo que lhe devolvesse a
inspiração perdida. No entanto, o máximo que conseguia ver de interessante foi o
busto de um dos fundadores da cidade. Aliás, fundadora. Uma mulher que, anos atrás,
ajudara a construir a cidade. O engraçado é que nunca vira um busto de mulher, mas
sempre de homens. Era algo raro de se ver. E mais nada.
Era ela!
Sua musa. Em pé, de lado para ele, uma vez que o ônibus estava semilotado.
Ela era a perfeição. Linda como jamais se havia visto na face da Terra. Se Deus
possuía um sinônimo para beleza, este era ela. Depois de moldada, com certeza, sua
forma havia sido jogada fora. Era uma beleza singular, como nunca uma imaginação
humana conseguira conceber.
Fora apenas um segundo, em que ela olhara para ele e lhe fixasse os olhos, mas
o suficiente para que ambos entendessem tudo o que deveriam entender.
A musa, por sua vez, sentia em seu corpo, essa estranha e maravilhosa
sensação. O artesão não mais tocava no barro quando o fazia, mas sim, seu corpo.
Cada toque no barro correspondia a um toque na pele da musa. O artesão sentia, em
suas mãos, como se estivesse experimentando sua fonte de inspiração e objeto de
desejo. Era assim que passavam todos os dias. Vencendo a carne e recriando o desejo.
E, ao fim desse jogo cujas regras haviam sido quase todas quebradas, a última
que resistira, se desfez. Pela primeira vez desde que se conheceram, o artesão e a
musa trocaram suas primeiras palavras. Palavras de afeto e juramentos apaixonados.
A partir desse momento, tudo se tornou diferente. O artesão e a musa mudaram
para sempre. Tornaram-se amantes. Ele deixou de ser apenas um artesão e tornou-se
um homem sério responsável. Trocou os sonhos loucos de artista pelo pensamento
calculista do executivo. Ela deixou de ser apenas uma musa e tornou-se uma mulher
caprichosa e organizada. Trocou a frivolidade da musa pela preocupação da dona-de-
casa.
Tudo, menos o fato de que a peça artística da musa ainda estava lá. E, todas as
noites, o artesão ia a seu estúdio, admirá-la. Afinal, aquela era sua mais bela obra.
Um dia em que ele saiu, como em todos os outros, ao trabalho, e ela desceu ao
estúdio levando em suas mãos um taco de madeira. Impulsionada pelo ciúme,
destroçou completamente sua rival. Arrancou-lhe a cabeça com uma tacada
impiedosa. Quebrou-lhe os braços batendo compulsivamente. Destroçou-lhe o colo
com tacadas copiosamente fortes.
Ao fim, sua única rival estava totalmente despedaçada e ela, certa de que nada
iria atrapalhar seu amor. Agora, seriam apenas ela e o artesão a trocarem amor. Ele
não dividiria seu amor com mais ninguém. Ouviu um soluço seco e olhando para trás
viu seu amado observando-a. Aparentava estar cansado e desiludido.
Intrigada, ela se perguntava por que nada ele permanecia silencioso. ―Por
quê?‖ seria a pergunta mais lógica a ser feita. Mas aqueles que perdem os sonhos não
têm lógica.
―Eu te dei tudo e você me matou.‖ Foi o que o artesão disse a sua musa.
―O que fiz foi por amor.‖ Foi o que a musa murmurou ao seu artesão.
Impulsionado pela raiva, o artesão, com uma das mãos aberta, mesma mão que
haviam acariciado e transmitido amor, deu um tapa no rosto da musa, arrebentando-
lhe as bochechas, deformando-lhe a boca, arrancando-lhe um dos olhos e decepando-
lhe a cabeça do corpo, que caiu e quebrou-se no momento em que tocou o chão. Logo
após, o corpo também foi ao chão. Restaram apenas pedaços de barro espalhados por
todo o piso.
O artesão foi ao chão, mas não chorou. Ficou parado alguns minutos. Olhou os
pedaços de barro espalhados, sem esboçar nada, além de um cansaço que parecia
haver-lhe acompanhado a vida toda. Fechou os olhos. Respirou fundo. Levantou.
Dirigiu-se a sua mesa. Sentou-se de frente a ela. Pegou o barro e voltou a moldá-lo.
O irmão mais velho, na cama contígua, acordou com o som dos sussurros e do
estrado de madeira gemendo.
O menino saiu de seu transe infantil e apenas cochichou: ―Eu não vou
dormir…‖
―Que música?‖
―A o quê? Ah, você tá com medo daquela música idiota? Você é um bobo
mesmo!‖
―Sou nada!‖
―Vai dormir!‖
―Você quer me enganar! A música dizia a verdade: papai foi pra roça trabalhar
na fazenda do coronel Timóteo e só volta de manhã. Mamãe ia na casa da tia que eu
ouvi falando só esperar a gente dormir para ir. Eu to sozinho e sem ninguém para
vigiar. Se eu dormir a Cuca me pega.‖
―Pega nada, seu medroso. A mãe já cantava essa música pra mim quando eu
tinha a sua idade e nunca nada me pegou.‖
―Você fala assim porque quando era da minha idade dormia com ela e o papai
na cama deles que eu sei. Você tava protegido e por isso a Cuca não te pegava. Eu tô
sozinho…‖
―Seu bebê chorão!‖
―Não sou.‖
―É sim.‖
―… eu quero a mamãe…‖
―Verdade?‖
―Humhum.‖
―Palavra de honra?‖
―Quié?‖
―Boa noite.‖
Era uma vez, uma vila distante e pacata, como toda vila de conto de fadas (ou
de bardos). Ao redor dela existia uma floresta cujas árvores tocavam o céu. Nada era
próximo e tudo era difícil. Existia apenas uma estrada de acesso para esta humilde
vila.
Nessa vila, existia uma menina cuja alma não havia ainda sido tocada pela
maldade do mundo. Morava com sua mãe. Não conhecia seu pai. Também não se
preocupava e sequer tinha curiosidade em conhecê-lo ou saber sua ocupação na vida.
E sua mãe, por sua vez, nunca teve vontade de lhe revelar. Só tinha no mundo a mãe
e a avó, que morava fora dos limites da cidade. A segunda, nos últimos meses se
encontrava um tanto quanto doente. Um mal inominável que consistia de uma
misteriosa e infalível febre, que repetidamente a atacava por seis horas seguidas após
às seis da tarde, todos os dias. Isso, sem contar as crises que a deixavam acamada por
vários dias.
Por esse motivo, todos os dias, a menina ia levar broas, frutas e algumas
guloseimas para a velha senhora. Como já estivesse acostumada sair sozinha, a mãe
não se preocupou quando disse à jovem que fosse sempre pela estrada e não
conversasse com estranhos. Sabia ela que a filha, apesar de haver saído da infância há
poucos anos, era muito responsável.
A casa da avó era isolada. Seria necessário atravessar a única estrada de terra
que passava por dentro do bosque para chegar até lá.
— O que uma garota tão linda está pensando em fazer numa floresta tão
assustadora?
— Eu só vou visitar minha avó doente seu Lobo. – respondeu a menina em tom
meigo, sem hesitar.
Lobo aparentava estar na casa dos 40 anos, usava um casaco xadrez desbotado
e entreaberto, calça jeans, botas. Olhava a menina de maneira paternal. Ela se
lembrava que, todas as vezes que sua mãe ouvia o nome Lobo, tremia de nervosismo
e deixava o que estivesse em suas mãos ir ao chão. Ela havia feito a menina prometer
que não mais falaria com ele. No entanto, ele era tão educado e preocupado com ela
que a adolescente não conseguia ficar sem responder as palavras que ele lhe dirigia.
Era como o pai que não tinha, mesmo que sua mãe não gostasse dele.
Enquanto isso, a avó da menina, distraia-se com o tricô. Era um dos poucos
momentos do dia em que ela tinha forças para fazer algo.
— Pode entrar meu filho. É só levantar a aldraba que o ferrolho desce. – Assim
ele fez e entrou na humilde casa.
Lobo possuía o olhar turvo, envolto em trevas, mas ainda mantinha os gestos
educados de costume. Em suas mãos, uma espingarda.
Tem uma fera solta por aí. A senhora tem de tomar cuidado.
— O sol já está se pondo, vó... A menina vem para cá. Eu a encontrei no inicio
do bosque.
— Não se faça de desentendido, filho. Ela ainda é muito nova para conhecer a
verdade.
— Então eu lhe imploro: vá de uma vez. – disse a velha em tom mais de ordem
que de pedido.
— O sol já está se pondo... Já posso até ver a lua... – disse Lobo, quase como
se não houvesse escutado o que foi dito pela anciã. Estava de costas para ela, olhando
a janela. Sua voz era estranhamente rouca.
Lobo silenciosamente virou-se para a senhora, caminhou até sua cama. Uma
penumbra tomava conta de seus olhos. Ficou cabisbaixo ao lado dela.
—Adeus, vó. – disse, enquanto punha dois dedos sobre a boca da senhora. –
Perdão... a besta foi mais forte que eu... – num rápido movimento, antes que ela
pudesse perceber, toda a mão peluda dele estava sobre seu rosto.
Na sala mal iluminada, entrou a menina sem se preocupar. Uma figura ofegante
se fazia deitada na cama, num canto mais escuro da sala.
— É por que a luz me incomoda. Por favor, minha menina, deixe a cortina
fechada.
— Se-seu Lobo? O que está acontecendo? Por que o senhor está assim? Cadê
minha vovó? – indagava a menina, petrificada de espanto e medo.
Foi necessário apenas um tiro, para que Lobo, que havia lançando-se em um
único salto para cima da menina, caísse agonizando no chão com o ombro
ensangüentado. Nesse instante, sem mais nada a pensar, tampouco olhando para trás,
a garota correu para um armário que existia no canto do cômodo. Era velho, mas
ainda assim, parecia ser muito resistente. Era embutido na parede. A menina trancou-
se ali e ficou a observar, pelo buraco da fechadura o que ocorria.
— Elas estão mortas... — foi o que dissera de cabeça baixa para a mulher.
A mulher não sabia o que fazer. Então, fez talvez aquilo que julgava não ser o
mais sensato a ser feito, mas o mais humano. Abraçou o homem amargurado em sua
frente, como uma mãe faz com um filho que brigou na escola. Ajoelharam. Ele, com
a cabeça em seu colo, murmurou palavras intermináveis.
Som algum fora proferido depois. Ficaram em silêncio ambos. Unidos pela
solidão e pela tragédia. Mais que isso, unidos por um amor animal. Como uma
matilha a chorar a morte de seu único filhote.
Lembrava-se, como todos os dias, do quanto havia lutado para chegar aonde
chegou. A infância pobre. As bebedeiras constantes do pai. As surras constantes da
mãe. As brigas constantes entre eles. A fuga de casa. A discriminação. A luta para
estudar e se formar em Direito, apesar de todas as adversidades. O primeiro emprego
na firma que estava até hoje. Tinha que ser o dobro a mais que o funcionário mais
eficiente. A ascensão no cargo. Podia não gostar, mas nunca esquecia seu passado.
Tudo era uma dolorosa e penosa lembrança.
Mesmo cansado, andara até a cozinha para preparar algo para comer. O
cardápio servido pelo serviço de quarto não lhe agradara muito. Macarronada não era
seu prato predileto. Como todo bom filho de negros, gostava de feijão. Ele,
particularmente, de uma receita de feijão tropeiro que aprendera com uma cozinheira
italiana de nome Luana. Após comer seu preparado, cumpriu o ritual diário de beber
um copo de uísque à noite.
Enquanto engolia aos poucos o drinque relaxante, lembrava-se o fato que não
conseguia engolir. O desacato de uma ordem sua por um jovem com pouco tempo de
empresa. Comandava todo um setor da firma e aquele rapazola branquelo, como ele
próprio o chamava, apenas um estagiário, recusara-se a obedecer uma ordem direta
dele de entregar alguns documentos num local por ele indicado. Dizia o menino que
era inviável. ―Inviável!‖, estava impressionado com aquele exemplo de
insubordinação, e por isso, ele não poderia passar impune. Além de ficar mais de três
horas esbravejando com o rapaz, deu-lhe, ainda, uma merecida suspensão de um mês.
Talvez assim ele aprendesse a acatar ordens, pensava. Estava extremamente feliz por
poder exercer seu poder sobre alguém, mesmo que fosse naquele insignificante rapaz.
Gostava daquela sensação de ter o controle na vida das pessoas. No entanto, algo
naquela situação lhe era familiar e incômodo.
Quem falava do outro lado da linha era Hutger Schuler, um dos chefes de setor
da empresa, como ele. Pedia, não, melhor, implorava para que ele reconsiderasse e
deixasse que seu filho único voltasse ao trabalho no dia seguinte. Disse que ele era
um ótimo rapaz e que estava arrependido pelo que acontecera. Permaneceu mudo,
enquanto o homem falava aquelas palavras comuns a todos os pais em defesa dos
filhos. E foi enquanto o homem falava que lembrou-se o porquê daquela cena lhe ser
tão familiar. Anos atrás, Schuler, o pai, o havia dado uma suspensão não só pelo
mesmo motivo, mas também pelo fato de ele ser negro, para ―aprender o seu lugar na
sociedade‖. E ele não possuía um advogado para lhe defender. Aprendera sozinho as
regras da vida. Cumprira sua pena e retornara disposto a tomar o cargo daquele porco
nazista, como o chamava. Anos depois, conseguiu a duras penas, sendo sua alma fora
uma delas. Hoje, por uma ironia do destino, aquele que o humilhara precisava de sua
intervenção. Se estivessem no inferno e dessa intervenção dependesse sua alma, não a
daria. Como isso não poderia fazer, disse apenas que deixaria o garoto cumprir a
punição para aprender algo sobre hierarquia. E que não pediria sua demissão agora,
mas pensaria na hipótese. O pai, mais envergonhado que decepcionado, deu-lhe um
boa noite automático e engasgado e desligou o telefone.
A constatação desse fato lhe dava um gosto de vingança bem mais saboroso. O
filho servira para se vingar do pai, mesmo que não soubesse a princípio. Ficou
sentado no sofá, mais deitado que sentado, por bastante tempo. Imaginava em como a
vida era irônica. Como um círculo vicioso. O filho até podia não ser racista como o
pai, mas pagara os crimes dele. Enquanto vangloriava-se de seu feito, que tinha um
sabor de vitória, acabou cochilando.
Tomou um banho quente, com a mesma satisfação com que imaginara que
Hutger Schuler tivera depois de tê-lo pisado e humilhado. A vingança lhe viera com a
força dos anos. A água caia em seu rosto com o mesmo efeito que caia em uma casa
de tinta nova. A antiga acaba aparecendo. Saiu do box e, enquanto se secava, fora se
olhar no espelho. Para sua surpresa, quem lhe olhara era Hutger, não ele. Olhou para
suas mãos, brancas e pálidas, diferentes de antes. Tocou em seus cabelos, antes
crespos, agora lisos e loiros. Então, percebeu. Deixara de ser ele há muito tempo.
Fechara o círculo. Tornara-se Hutger no exato instante em que tomara a decisão de
assumir seu lugar de carrasco e saíra do seu lugar de vítima. E lembrou que quando
fazemos aos outros o que nos fazem, de bom ou mau, nos tornamos a pessoa que nos
fez isso anteriormente. Em tudo existe uma continuidade secreta, uma lei de ação e
reação nata. Se oprimimos, ao mesmo tempo somos oprimidos. Ao mesmo tempo nos
é tirado algo indispensável. No fim, tudo faz parte de um eterno círculo vicioso.
Ações contrárias de mesma força e intermináveis. Olhava-se no espelho para saber
quem era. Não era mais ele, era o outro. E perdera sua identidade para sempre.
Ao cair das estrelas
* baseado na websérie ―Crônicas Estelares‖:
http://www.youtube.com/user/cronicasestelares
Não me lembro quando foi a última vez que dormi. Talvez antes de o grande
círculo de luz me turvar a visão. Acredito ter visto estrelas caindo após isso. A noite
aparenta nunca ter fim. Este dia parece nunca acabar e o amanhã nunca chegar. Não
me lembro quanto tempo se passou desde… não me lembro… tudo ainda é tão
confuso.
Meu braço esquerdo ensangüentado ainda dói devido meu ferimento no ombro.
O calor da selva é sentido até em minha alma e as picadas dos mosquitos são sentidas
por toda minha pele. Alguns sons e odores me trazem estranhas lembranças. Algumas
vezes, o odor da selva é desagradável, mas eu agüento tudo, afinal, esse é um preço
pequeno a ser pago em troca da vida e da liberdade. Encosto-me em um grande
jequitibá e mancho seu tronco de vermelho. Pelo meu ponto de vista nenhum homem
deveria ―pertencer‖ a outro. Fomos todos feitos livres para seguirmos nosso próprio
destino.
Ainda posso sentir as feridas nas costas, mesmo que cicatrizadas, cravadas
pelas horas em que passei preso no pau-de-arara sendo chicoteado várias e várias
vezes pelo empregado de meu suposto ―dono‖. A cicatriz em meu rosto até hoje é
sentida. Há algo em minha mão esquerda que estrangula meu dedo. Uma reluzente
aliança que contrasta com a mão ensangüentada. Não consigo retirá-la, pois meu
dedo está muito inchado. Também não faço ideia de como ela foi para nele. Existem
muitas coisas que não me lembro e não fazem lógica. Algo desvia minha atenção do
objeto: um som como o de um tique taque e uma luz distante. Estão atrás de mim.
―Ele é feio, mas é forte.‖ Foi o que o maldito comerciante de escravos disse
para o homem que ―comprou‖. Marcaram-me o rosto para que eu servisse de lição.
Esmurram-me a boca para que eu não incitasse os outros a reagir. Por que nos testam
como animais? Somos tão homens quanto eles! Mas talvez eles é que não sejam os
homens! Isso mesmo! Eles não são homens! São demônios! Demônios como os que
minha avó me falava quando eu era criança. Demônios que seqüestravam os
guerreiros mais fortes e os levavam para seus domínios no inferno. Se eles são
demônios, isto quer dizer que eu morri. Como não pensei nisso antes? Eu morri e isto
aqui é o inferno! Eu estou no inferno!
Desperto para este pensamento e nisso, o círculo de luz retorna sobre mim. O
clarão… minha mente clareando. As memórias retornam todas, como estrelas a
caírem.
Consigo pronunciar o nome dela: Isabel. Entendo nosso destino de párias. Vejo
o padre, o altar, a igreja e nosso casamento em segredo. Sinto o preconceito e a
incompreensão do mundo. Eu, escravo e negro. Ela, sinhá e branca. Vejo nossos
encontros escondidos. Experimento uma vez mais a perseguição. Revivo outra vez a
tocaia. Uma vez mais a bala transpassa meu braço. De novo ela cai alvejada
mortalmente. O círculo de luz, novamente, nos envolve e leva.
Ao cair das estrelas, entendo meu destino e o de Isabel. Nosso mundo agora
segue distante. Agora ele também é uma estrela a cair. Os ponteiros do relógio
seguem implacáveis.
Não ouso (ainda!) tocá-la. Não tenho certeza se estou morto ou sonhando.
— Doutor, como pode tal absurdo?! Acabo de ver demônios sendo atendidos em
seu consultório!
— Que mal há? Eles são clientes como outros quaisquer! E além disso, estamos
aumentando nossa clientela.
O médico, sem olhar para ele, ainda lendo sua ficha, disse apenas:
As chamas envolviam todo seu corpo, mas eu conseguia ainda ver seu semblante.
Não era um semblante assustado ou dolorido, pelo contrário, ele transmitia calma e
paz.
À princípio, achamos que era apenas o som do vento sobre os iglus dos
esquimós, mas depois que nos foi mandada uma fita que um deles gravou bem
próximo ao vulcão, mudamos de opinião. Era um som assustador, como o de gemidos
humanos, mas isso seria impossível, uma vez que as temperaturas dentro de um
vulcão são extremamente absurdas. Um ser humano derreteria completamente
somente se aproximando alguns quilômetros do referido centro. Meus colegas do
centro acharam melhor mandar dois de nós, ao invés de uma expedição completa
como de costume, para constatar a veracidade dos fatos. Um especialista em regiões
geladas e um em fenômenos vulcânicos. O primeiro era eu, o segundo, meu
misterioso companheiro, Murray.
O passado dele era uma incógnita. A única coisa que sabia era que ele havia
tido uma experiência próxima da morte antes de ser contratado pelo centro. Possuía
um currículo invejável. Dele, era só isso que sabíamos. Quanto a mim, minha vida
não era das piores, mas também não era as mil maravilhas. Anos atrás, havia perdido
minha esposa e meu filho ainda em seu ventre. Era um parto de risco. Ainda assim o
assumimos e aceitamos os problemas inevitáveis que ocorreram. Um dos dois deveria
ser escolhido para viver. Ela ou ele. Os médicos, mesmo a nossa revelia, optaram
pela minha esposa. Minha esposa morreu no parto, junto com o feto.
Estava sentado de frente para uma grande mesa na qual existiam fotos da
região, mapas cartográficos, duas xícaras de café e inúmeras pilhas de papel. Isso sem
contar no toca-fitas que levamos. Murray ouvia a fita várias vezes, tentando encontrar
algo que a denunciasse como uma fraude. Em vão. Os gemidos, apesar de parecerem
pertencer a uma pessoa já cansada, eram incessantes, como que, quem quer que
gritasse, estivesse passando por uma tortura horrível e ininterrupta. É certo que
isolamos o som dos demais sons pertencentes à fita. Pedras, chicotes, coisas pegando
fogo e outros gemidos em igual intensidade. Aparentava mais ser o som de uma
masmorra que o do interior de um vulcão. O som que mais nos chamou a atenção foi
um semelhante a um rio de magma, já gravado por nós em outro vulcão. Se realmente
tratava-se de uma montagem, estava muito bem feita. Se não era, como explicá-la?
Depois de muito relutar e discutir, decidimos por mandar uma sonda para
dentro do vulcão.
A sonda entrou pela fenda calmamente, filmando tudo o que estava à sua
frente. Vimos a crosta congelada do extinto vulcão. Totalmente coberta de neve. Era
difícil imaginar algum movimento vindo de dentro daquele gigante adormecido. Mas
nós não imaginávamos que iríamos encontrar o que encontramos. À mais ou menos
uns 15 km do centro do vulcão, vimos aquilo que deveria ter sido nossa advertência
para desistir dessa louca empreitada. Um esqueleto encravado na rocha, que estava
mais escura, juntamente com a comprovação de que a temperatura local era de 35 o C.
Contudo, não um esqueleto humano, mas o de uma criatura semelhante a um lobo. Na
verdade se assemelhava com as descrições que os antigos têm dos lobisomens,
monstros incríveis, metade homem e metade lobo. Estávamos a uma distância
pequena, mas segura, do Érebo, ainda assim, aquela visão nos causou um enorme
arrepio. Pensamos em pesquisar aquele fóssil mais tarde e nos concentrar em nosso
real objetivo: o centro do vulcão Érebo.
Enquanto dormia, minha mente vagou por lugares estranhos e nunca antes
visitados, mas já conhecidos. Em um desses sonhos, estava eu numa arena romana,
cercada de neve por fora, e quente como um vulcão por dentro. No auditório estavam
Murray, o conselho do centro de geografia, minha esposa e vários esquimós. Todos
gritavam pedindo a minha pele. Em frente a mim, na arena, duas criaturas me
fitavam. Ambas com mais de dois metros cada, corpos bronzeados e musculosos, e
cabeças de lobo, ao invés de humanas. Em princípio, achei que se tratavam de
máscaras, mas depois, olhando bem, vi que realmente eram os rostos de ambas. Antes
que eu pudesse reagir, pularam em minha direção, como dois cães famintos. Corri
para longe. Bati de frente a uma porta de madeira gigantesca que me impedia.
Comecei a bater nela com todas as minhas, mas era inútil. A porta sequer balançava.
Apenas emitia um som oco e ressoante. Continuei batendo, quando meu olhar se
voltou para meus dois algozes. Percebi que haviam me encurralado. Não havia outro
lugar para fugir a não ser pela porta. Meu desespero aumentara e comecei a bater na
porta com mais força. Até o momento em que os monstros enfiaram suas garras em
minhas costas e tudo ao meu redor escureceu…
Acordei sobressaltado, com uma pancada forte à porta. Deveria ser Murray! As
batidas então do meu sonho na verdade eram dele. Por quanto tempo será que ele
ficou batendo à porta? Gritei seu nome. Perguntei quem era, mas a única coisa que
ouvia era o som do vento. Tinha de ser Murray, quem mais seria? Usei o restante de
minhas forças para puxar a porta de modo que ela abrisse. Ele deveria estar ferido
para não abrir a porta, uma vez que era bem mais forte que eu. No momento em que a
porta se abriu, sobre mim caiu um cadáver já em acelerado estado de putrefação. O
cadáver de Murray!
Acordei mais uma vez, já não sabendo o que era realidade e o que era sonho.
Em minha frente, parado, estava Murray. Possuía os olhos fundos e as roupas
rasgadas, como se estivessem queimadas. Seu rosto, apesar de pálido, estava
extremamente bronzeado. Olhava para mim com o mesmo olhar de superioridade de
sempre.
―Vá embora daqui, seu inútil! Vá embora antes que fique do mesmo jeito que
eu.‖ Foi o que aquele espectro me disse e antes de desaparecer. ―Aqui é o inferno…‖
Fiquei sentado por horas imaginando o que significava tudo aquilo. Se realmente
acontecera ou se ainda era um sonho meu. Murray realmente deveria ter morrido
naquela tempestade e seu corpo poderia estar em qualquer lugar daquela tundra
gelada. Mas o que significara tudo aquilo que ocorreu conosco? Deveria haver uma
resposta para minhas perguntas em algum lugar. E eu sabia onde. Neste momento eu
decidi investigar o interior do vulcão. E não me importavam os avisos de uma alma
penada.
Enfim, cheguei ao local onde a câmera estava presa. Não havia nada a
prendendo. A única coisa que senti, fora uma variação na gravidade local. Sentia-me
extremamente pesado. O cabo não puxava a sonda pois ela estava pesada demais.
Com extrema dificuldade me aproximei dela. Olhei para frente e vi o que ela estivera
filmando todo esse tempo. Uma escada de pedra descendo pelas paredes de uma
cratera, cujo fundo era escondido por uma espessa nuvem de enxofre. O odor forte do
enxofre entrou por minhas narinas no momento em que comecei a descer as escadas.
Quase desmaiei por causa do cheiro exalado pela nuvem. Mesmo com o corpo
totalmente coberto, com casacos e mais casacos, minha pele sentia como se enxofre
entrasse por meus poros.
Ao meu lado, existia uma parede com estranhos desenhos. Uma em especial,
possuía caracteres que mais lembravam letras de um idioma totalmente diferente do
que eu já houvesse visto. Toquei a parede, para limpar a fuligem dos caracteres e
passei a entender tudo o que lá estava escrito. Lá dizia:
… Inferno.
Fiquei por muito tempo horrorizado e impressionado com o que via ao meu
redor. Todavia, nada foi mais forte do que me veio a seguir. Uma das pessoas que
carregava os baldes com magma quente nas mãos era minha falecida esposa.
Minha primeira reação foi de espanto. O que minha mulher estaria fazendo
num lugar como aquele? Seja lá o que fosse, eu não deveria deixá-la fazer mais
nenhum momento. Disfarcei para que aqueles gigantes alados brancos não pudessem
me ver. Corri ao seu encontro. Quando ela me viu, chorou como uma louca. Largou
os baldes no chão, esqueceu a dor e me abraçou. ―Você veio me salvar.‖ ela disse.
Era o que eu pretendia. Corri com ela por entre pedras escondidas, sem perceber que
cada vez mais íamos para o fundo do vulcão.
―Eu não amei nosso filho? Eu o matei? Eu não queria aquilo. Eu daria minha
vida por ele. Como eu me arrependo…‖ Enquanto ela dizia isso, me lembrei do que
estava escrito no início dos subterrâneos. ―Este é o cárcere dos corações
arrependidos.‖ Eu também viria para cá no dia em que morresse. E como seria
horrível, pois eu já sabia como era o inferno.
Enquanto pensava, ouvi algo como uma respiração profunda vinda do alto do
pilar. Olhei para o alto e meu coração gelou. Um gigante acorrentado dormia sentado
num trono, cujo pilar era uma das extremidades. Sua pele era bronzeada, suas orelhas
compridas, seu cabelo grande e em suas costas, enormes asas negras. Pela respiração,
notava-se que estava lá há muito tempo. Talvez milhões de anos. Desde o dia em que
foi expulso do céu. Que Deus proteja o mundo no dia em que ele acordar.
Continuei correndo com minha esposa, em busca da saída. Cheguei até onde
estava a escada. No chão se encontrava a sonda, totalmente despedaçada. Mais que
depressa, arranquei o cabo dela e amarrei-o em minha cintura, e na de minha esposa
também.
Liguei o cabo no reverso, para que pudéssemos ser puxados por ele. Em um
instante, estávamos subindo a cratera. Era como se as trevas ao nosso redor
estivessem vivas. Ouvi sons como lamentos vindos de todos os lados. Subíamos em
alta velocidade, contudo, quando chegamos perto da nuvem de enxofre, sentimos
como se houvéssemos sido puxados para baixo por uma força invisível. Minha
mulher, como era um fantasma sólido, escorregou pelo cabo e ficou segurando minha
mão. Entretanto, a gravidade fortíssima puxava-a. Perdendo já minhas forças, nossas
mãos se soltaram e ela caiu pela neblina intoxicante. Fui puxado com uma velocidade
além da imaginação pelo cabo e jogado para fora do vulcão. Caí em cima do solo
branco do Ártico. E acho que quebrei várias das minhas costelas.
Levantei-me andei sem sentido pela neve. Atrás de mim, só o branco mortífero.
A minha frente só a mesma visão. Estava ferido mortalmente. Ou pelo menos assim
me imaginava. Vi um rapaz, que poderia ser um ancião, vindo em minha frente, em
chamas e andando calmamente sobre o frio congelante. Usava um kimono rasgado
sem mangas e calça negra. Era o rapaz de meu sonho. Desta vez vi seu rosto, e
descobri quem era. Mas por que Ele viria neste fim de mundo? Somente para me
salvar? Não sei. Sei somente que fui ao chão antes de ele tocar minha face com sua
mão direita. Notei que em seu peito existia algo. Um coração cercado por espinhos e
também em chamas. Ele me sorriu e tudo se tornou branco. Branco como a neve.
Branco como a morte.
… para sempre…
Copo Empoeirado
Não se sabe quem em sua esplendorosa amnésia o esqueceu por lá, em cima
daquela geladeira. Nem quem, nem quando, ou até mesmo, por quê. Talvez tivesse
sido alguma sede que passou. Talvez. Ou talvez, a precaução para alguma futura sede
que pudesse ocorrer. Quem sabe, há doido nesse mundo para tudo. Não importava o
motivo. O copo estava definitivamente lá. Fazendo parte da paisagem.
Uma coisa se tinha certeza, aquele copo não estava lá por falta de copos no
hotel. Uma vez que o local onde ele havia se hospedado era a suíte de um grande
hotel, daqueles que entram e saem várias pessoas ricas e importantes, embaixadores,
bacharéis, empresários, banqueiros, e vários outros componentes da alta roda da
sociedade. Lá estava o copo. Destoando toda aquela opulência. Quem diria que um
simples copo chegaria tão longe?
No momento em que ele saiu do quarto, teve uma conversa seriíssima com o
segurança do presidente, afinal, ele sempre vistoriava os locais onde o presidente rira
se hospedar e, era um absurdo um copo imundo passar despercebido por aqueles
olhos treinados. Ao fim, o secretário mandou o segurança resolver o problema, pois
tinha assuntos mais importantes a tratar e não poderia se deter com assuntos tão
ínfimos.
Ela reclamou, urrou, mas de nada adiantou e foi indo cumprir sua difícil
missão. Na metade do caminho, ela encontrou o porteiro do hotel e fofocou tudo para
ele. Claro que, ela, usando de seus dotes femininos, convenceu o porteiro a ir resolver
o assunto para ela. Ele, imaginando talvez, algum favor da moça em troca, aceitou a
tarefa.
No momento em que saiu do elevador, pronta para fazer o serviço, ela decidiu
interfonar para a portaria e chamou o carregador, também chamado de boy. Quando
ele chegou perto dela , ela foi curta e grossa: alguém deveria tirar o copo de cima da
geladeira do quarto do presidente e este alguém era ele.
Comigo isso não é problema, como pode ver. Eles têm medo de mim. Por isso
eu permaneço sozinho. Os próprios agentes têm receio em colocar alguém para
dividir cela comigo.
Em meu cárcere, meus fantasmas vêm me visitar todos os dias. Não para me
condenar, não para me assombrar, não para me torturar. Do mesmo modo que faço,
eles vêm para me ver. Nada falam, também permaneço em silêncio.
Como eu descobri?
Minha mãe criou-me sozinha depois que meu pai morreu ou sumiu, quando eu
tinha cerca de quatro anos. Nunca soubemos o que realmente ocorreu. A única
certeza sobre ele é que trabalhava para o Governo e sumia de vez em quando. Um
dia, saiu de casa e nunca mais voltou.
Passamos a minha infância a sua sombra, até minha mãe decidir tentar seguir
em frente.
Foi quando ela arrumou um traste que tinha como passatempos preferidos
beber e espancar mulheres. Não sei qual foi o dia em que ele chegou em casa e
levantou a mão Pra minha mãe.
Sinceramente, não entendi até hoje como tudo aconteceu. Lembro-me de tê-lo
em minha frente (ele era muito maior que eu, na época) e gritar ―Larga minha mãe e
sai da nossa vida!‖ que ele obedeceu prontamente.
Desse dia em diante, as mentes das pessoas eram para mim como um rádio cuja
estação eu definia a meu bel prazer.
Apesar de não ser dos melhores alunos, minhas notas eram impecáveis, posto que as
mentes dos professores faziam-me o favor de me ditarem as respostas das provas.
Não pagava para entrar em um cinema, já que me concediam passe livre no filme que
eu desejava, inclusive os de classificação imprópria.
Diminui os golpes com Raul, que também parecia haver se emendado também.
Arranjei um emprego numa oficina mecânica e até voltei a freqüentar a escola. Minha
mãe olhava feliz a mudança em seu único filho.
Amava Aurora, mas algo em mim precisava de mais. Por isso, às escondidas,
eu deixava a sombra ser alimentada por mulheres de índole duvidosa.
Não sei se lhe contei mas – muito devido a meus singulares dons – eu era
afligido por uma constante dor de cabeça.
Aí entra uma das mulheres (ou melhor, você sabe quem entrava, ahahahah).
Uma delas apresentou-me as drogas.
Cometi meu primeiro erro: deixei-me levar. Dizem que as percepções das
pessoas normais são modificadas com os entorpecentes. Eu, sinceramente, não sei.
Comigo, a droga abriu uma perspectiva que nunca imaginara. Era como abrir
em uma porta. E do outro lado estava o mundo. Não sei até hoje se o que vi foi uma
premonição, ou uma alucinação fruto da droga. Ou ambos.
Aurora tentou me avisar. Raul tentou me avisar. Minha mãe tentou me avisar.
Mas eu já estava além de qualquer redenção.
Passei a evitar minha mãe, saia de casa antes dela acordar e chegava quando
ela já dormia. Terminei com Aurora, mesmo que não oficialmente, já que nada falei a
ela. E não conversava com Raul.
Descobri meus talentos ocultos. As pessoas passaram a meros fantoches de
minha vontade. Não mais praticava os truques e golpes da adolescência. Eu cresci.
Era isso que eu achava.
Saciava meus desejos sexuais com a mulher que queria à hora que desejasse. E elas
acreditavam que eu era o marido, o namorado, ou simplesmente, o homem que
pertencia à suas fantasias.
Também me descobrir detentor de outros talentos, que não acho ser necessário
contar histórias. Basta você saber que não havia porta que eu não pudesse destrancar
mentalmente. Objeto algum estava distante de minha mão, pois eu os trazia. Entre
outras bizarrices.
Fui criando para mim uma vida bem cômoda. Até o dia em que o dono da
oficina em que eu trabalhara, um homem corpulento e de pouca instrução, encontrou-
me na rua. Num tom paternal, porém duro, ele me dizia que eu estava estragando
minha vida e que deveria emendar-me. Ele até mesmo me aceitaria de volta ao
trabalho, uma vez que isso traria de volta a confiança da minha mãe em mim. Era o
conselho de um pai. Pena, eu nunca tive uma figura paterna.
Na noite daquele mesmo dia, ele recebeu uma visita que lançou-o três vezes no
teto e duas num Opala, e só não foi morto porque havia algo que insista em dizer:
―Você é humano.‖
Uma semana depois, ao final de mais um dia agindo como ―O Rei do Mundo‖,
encontrei minha casa diferente. As luzes estavam todas acessas e pensei
imediatamente: aconteceu algo com mamãe.
Entrei ignorando tudo aquilo que minha mãe falava. Parei próximo a um
espelho e pude observar que Aurora e Raul se aproximavam. Falaram em tudo que eu
já passara em minha vida.
Parecia que meu corpo houvera desligado para aquela cena, religando somente
quando Raul me tocara.
Esse foi meu grande erro: ―ouvir e ver‖ os pensamentos de meu amigo.
Descobri que ele contara a minha mãe e a Aurora sobre minhas habilidades. Contou
sobre tudo o que já havíamos feito e minhas visitas a bordéis, sobre como eu me
afastara dele e o que fizera com meu antigo patrão. E descobri mais. Descobri que ele
era apaixonado por Aurora e sofria ao vê-la sendo enganada por mim. Eu não entendi
desse jeito. Para mim, ele não era um amigo evitando a mulher que amava pelo bem
do melhor amigo. Era um traidor. Inebriado de ódio, eu o lancei para longe e fí-lo ter
um ataque mental repentino e fulminante.
Minha mãe olhava-me sem sequer se mover. E fora aquele olhar que me fez
cair em si. Os olhos da mulher que sempre me vira como um menininho perdido e
sem pai. O olhar da mulher que ainda me amava, mesmo tendo me tornado um
monstro. Não. Eu não escutei a mente de minha mãe. E nem precisava. Seu olhar
dizia tudo.
Minutos depois, ciente e arrependido pelo que fizera, e tendo minha mãe como
testemunha, eu chamei os policiais que me atenderam imediatamente.
Minha prisão já tem cerca de seis meses. Certo que fui eu que influenciei juízes
e promotores para que me dessem a pena mais dura. E aqui estou. Expiando meu
maior pecado. Tomando consciência do que realmente sou.
Ouvi dizer que todo homem persegue algo, um objetivo, uma meta, o que for,
durante toda sua vida, mesmo que ele próprio não o saiba. Comigo foi assim. Porém,
gostaria que soubesse que não, eu não acredito em destino. O destino nada mais é que
uma escolha feita. É como se eu houvesse aberto uma porta.
Percebo que, desde o dia em que expulsei meu padrasto abusivo de casa, desde
o dia em que descobri meus insólitos dons, desde o dia em que passei a escutar a
mente das pessoas, eu tenho perseguido um objetivo: morrer. Não se impressione. Eu
não me impressionei quando descobri.
Isso significou que, todos que conheci, tudo o que fiz, todo o mal que causei,
tinha o único propósito de encontrar um meio de morrer, posto que eu mesmo não
possua até hoje a coragem necessária para dar termo a minha vida.
Agora é sua vez. Diga-me, coronel, como eu posso servir a meu país?
A Prole de Narciso
“O toi plus parfait que Aloi-même.”
Paul Valéry “Fragments de Narcisse”
Narciso era uma daquelas pessoas que chamam atenção aonde chegam. O tipo
de homem que apaixona todas as mulheres e é invejado por todos os homens. Saber é
poder. E sabia-se possuidor dessa arma chamada beleza, e pior, sabia muito bem
como usá-la. Prova disso era seu cargo, conseguido após vitoriosas e diversas
seduções a variadas superioras. E isso, sem sombra de dúvida, provocava em seus
colegas, como ele mesmo gostava de dizer, um ―espírito negativo‖, que ele, é lógico,
não partilhava.
Na verdade, Narciso era um canalha. Desses que aos quinze come a tia rica
solteira só para ganhar aquela mobilete vermelha e, depois que o escândalo vem à
tona, diz que foi seduzido. Ou que vai para a escola com aquele short curtíssimo e
fica balançando as pernas na aula de matemática, para aquela professora mal amada e
mal casada dar-lhe uma nota mais alta.
Deitara-se com todas. Morenas, asiáticas, negras, loiras, ruivas. Altas e baixas.
Gordas e magras. Amigas e inimigas. Gostosas e desgostosas. Amadas e mal amadas.
Até mesmo as lésbicas mais convictas. Nenhuma escapava de seu charme e de sua
cama. Alanahs, Alettas, Annas, Ashleys, Bárbaras, Brianas, Carlas, Carmens,
Carolines, Cléos, Danis, Devons, Elianas, Evas, Fabianes, Felicias, Fernandas,
Gabrielas, Gianas, Hanahs, Hollys, Imanis, Isis, Isabellas, Janines, Jasmines, Jennas,
Joanas, Julias, Keilas, Kerrys, Kiras, Lisas, Luanas, Mercedez, Mônicas, Nikkis,
Ninas, Nilzas, Ofélias, Osas, Pamelas, Paulas, Priyas, Quenias, Queenys, Ritas,
Roxannes, Sandras, Saras, Silvias, Shylas, Tanias, Terezas, Umas, Úrsulas, Valeskas,
Vanessas, Verônicas, Vivianes, Wendys, Whitneys, Xenas, Xeylas, Yokos, Yumis,
Zdenkas, Zélias, Zoes. Um alfabeto sexual. Para ele, apenas nomes, corpos
amarrotados em sua cama. Apenas companhias para uma noite. Satisfações de
prazeres noturnos. No entanto, nenhuma possuía aquela perfeição que ele procurava.
Que ele próprio tinha. Uma tinha os seios grandes demais. Outra, unhas encravadas
nos pés. Os ombros de outra não eram atraentes. Aquela, dentes muito separados. A
outra, muito bela, era burra como uma porta. Enfim, um desfile de imperfeições.
Contudo, provara a todas, apenas com o intuito de encontrar a parceira perfeita. A
Eva. Aquela que lhe serviria de instrumento para manter seu legado sobre a Terra.
Um dia, num bar qualquer, já perdendo as esperanças entre um copo e outro de
tequila, a inspiração lhe surge na forma de uma morena longilínea, de ombros
simétricos, coxas arredondadas, mãos delicadas, formas sinuosas, seios convidativos,
lábios eróticos, sorriso branco e sem falhas, ventre torneado, olhos de Capitu,
nádegas de passista, longos e lindos cabelos tingidos e um bronzeado artificial
perfeito. Na mais simples das definições, uma mulher extremamente gostosa. Talvez
a mais gostosa que já vira em toda sua vida. E já havia visto e tocado em uma grande
infinidade de mulheres Não reparou na roupa que aquela Vênus moderna usava, uma
vez que imediatamente, à primeira vista, imaginou-a nua. ―Se ela quisesse, poderia
ter qualquer homem que desejasse. Mas homem, já basta eu.‖ Pensou
automaticamente.
Aproximou-se da beldade. A corte foi rápida. Sabia fazê-la muito bem. Uma
bebida, algumas palavras sussurradas ao pé do ouvido. Aquele velho jogo de cartas
marcadas. A nativa, por sua vez, havia se agradado daquele nórdico que lhe tentava
convencer. Gostava daquela sensação que causava em todos os homens e aquele
parecia ter algo a mais que os outros para lhe oferecer. Ele sabia que conseguiria o
que viera buscar. Por anos havia planejado cuidadosamente aquele encontro. Aquele
momento único. Já estava com tudo preparado.
Eram quase seis da tarde e Nicolau voltava da visita quinzenal que fazia ao
túmulo de seus pais.
— Minha mãe fazia um que era delicioso. — respondeu. Sua mãe havia
morrido de solidão, um ano após seu pai morrer de um infarto fulminante no sótão de
sua casa, onde moravam os três.
— Ela morreu faz muito tempo, não? — perguntou ela, sem intenção de
ofender, por pura curiosidade.
Olhou a porta do quarto deles. Vinte anos fechada. Vinte anos sem que uma
viva alma atravessasse aquela porta. Neste momento, sem nenhum motivo especial,
decidiu abri-la. Tirou a chave hibernante que sempre guardava no bolso da calça e
colocou-a na fechadura. À princípio, ela estava dura como pedra, mas, com um pouco
de esforço, cedeu de tão velha. Girou a maçaneta da porta e a abriu. A porta rangia
horrivelmente, graças aos anos que estava ali, parada, entregue ao efeito do tempo.
Sabia exatamente onde seu pai havia escondido o mapa. Em cima do armário.
Não foi esforço algum para ele, erguer a mão direita e pegar aquela folha de papel
velha de cima daquele armário empoeirado.
A maior surpresa para Nicolau, foi o fato de a folha, apesar de velha, continuar
intacta.Com suas mãos enrugadas, desdobrou o papel, e nele viu desenhado,
exatamente como era na realidade, o sótão. Inclusive com todos os entulhos que um
sótão possuía. O que mais chamou a atenção de Nicolau foi, dessa vez, um ―X‖
marcado em um ponto do cômodo. Uma janela. Mas, por quê?
II
— Não ligue para esse velho ranzinza. Existem coisas que eu não gosto de
falar, mas você não é a culpada. Mas se quer saber, meus pais morreram há vinte
anos. Bom, na verdade, meu pai, há vinte um infartado, minha mãe foi um ano
depois, de solidão. Desde então sou somente eu e esta casa.
— E onde está esse desnaturado que nunca vem ver o próprio pai?
— Sei como se sente. O meu morreu criança ainda. Junto com o pai, aquele
pinguço dos diabos.
— O senhor tem razão. Mas como o senhor mesmo disse, existem feridas que
cicatrizam melhor do que outras.
— Assim espero…
Joana pegou os pratos e levou-os para a cozinha. Nicolau ficou sentado à mesa
olhando o estranho mapa que se encontrava em suas mãos. Que segredo poderia ser
aquele que fez seu pai obrigá-lo a jurar que só tornaria a tocar naquele pedaço de
papel velho e sujo somente agora, ao fim de sua vida? Decidiu ir até o sótão ver o que
encontrava.
A porta do sótão também rangia graças à ferrugem, pois não possuía o costume
de entrar lá várias vezes, para falar a verdade, foram raríssimas as vezes em que
entrou no sótão. Ao entrar, apenas iluminado pela luz do corredor, percebeu as
consequências: um lugar cheio de teias de aranha, ratos e poeira para todos os lados.
Caixas velhas empilhadas pelos cantos. Roupas velhas espalhadas pelo chão. Uma
bicicleta velha de cabeça para baixo ao centro parecia com uma escultura enfeitando
o local. Fios suspensos sob o teto, alguns enrolados por papéis rasgados, davam a
impressão de uma grande festa. Isso sem contar nas diversas garrafas, dos mais
diversos tipos de bebidas, espalhadas por todo o sótão. Era como se um grupo de
jovens desordeiros houvesse feito a maior festa de suas vidas naquele local.
Acendeu a luz, o que não adiantou muito, uma vez que a mesma estava coberta
de poeira e era muito fraca e abriu o mapa. Começou a andar segundo o que estava
escrito no pedaço de papel, sempre prestando atenção ao caminho que seguia.
Chegou a uma velha janela triangular, fechada e pregada com tábuas em forma de
―X‖. Sempre viu aquela janela, mas nunca se atreveu a abri-la. Nunca se preocupou
em abri-la. E agora a surpresa, o segredo de seu pai se encontrava nela. Talvez em
uma das tábuas, ou nas bordas da janela. Não sabia. Decidiu arrancar aqueles pedaços
de madeira velhos da janela. Forçou-as um pouco e elas facilmente cederam. Sentado
no chão, tentou encontrar algo de diferente nelas, em vão. A única coisa que lhe
chamou a atenção naquelas tábuas velhas foi o fato de elas serem muito bem
pregadas uma na outra, mas fora isso, nada de anormal, uma vez que seu pai era
marceneiro e sabia fazer um ótimo trabalho com madeira.
Mesmo não percebendo nada, ainda precisava de luz, por isso decidiu abrir a
janela, mesmo sabendo que o vento frio poderia lhe causar um resfriado. Precisava de
um pouco mais de luz, mesmo que apenas a da lua. Antes de abri-la, percebeu acima
dela, na quina superior, um pequeno quadro circular de um belo jardim. Desceu o
ferrolho da janela e começou a puxá-la, tarefa não tão fácil, pois faziam anos que
aquela janela estava fechada. Uma luz intensa saiu do lado de fora da janela, mais
forte que a do sol, o que ocasionou numa cegueira temporária em Nicolau. Quando
seus olhos se acostumaram com ela, pode ver o que se encontrava do outro lado da
janela.
O que ele vira através daquela velha janela não era a casa de dona Roberta, sua
vizinha. Na verdade, se não houvesse enlouquecido, o que estava vendo era o mais
belo jardim que ser humano algum poderia imaginar que existisse, muito além da
nossa curta imaginação.
— Seu Nicolau, vou dormir! O senhor quer mais alguma coisa? — gritou
Joana, em pé na escada do sótão.
— Também vou para cama. Estou muito cansado. — disse ele, sem perceber
que uma de suas mãos estava mais bronzeada que a outra.
III
Após o almoço, saiu para a praça, como de costume, e foi jogar bocha
com seus amigos. Logo após, foi ver seu advogado, para mudar algumas cláusulas em
seu testamento. Fez tudo como havia planejado, além de acrescentar que o terreno de
sua casa, após demolida, deveria ser entregue a alguma instituição de caridade, um
orfanato. Um detalhe que seu advogado não entendeu foi o de Nicolau insistir que
nenhuma das janelas de sua casa deveria ser aberta após sua morte. A casa deveria ser
demolida completamente fechada.
Foi para casa mais ou menos às cinco da tarde. Joana não estava, fora a
uma ótica encomendar óculos novos, pois os antigos haviam se quebrado, e uma vez
que sem eles não enxergava um palmo na sua frente, deveria tê-los o mais breve
possível. Nicolau teria tempo para fazer o que queria: entrar no sótão e trancar para
sempre a passagem para o jardim secreto.
Ficou maravilhado com o que viu. Andou pelo jardim por horas, sem
perceber que o tempo passava. Comeu frutas que nunca havia comido, como uma
estranha maça dourada. Sentiu cheiros que nunca havia sentido, como o de uma
orquídea negra. Andou como nunca havia andado. Bebeu água pura e cristalina. Viu
o límpido céu azul e o clima agradável do local e descobriu como Adão se sentiu ao
chegar no paraíso. Não viu animais, mas não lhe importava, pois assim, aproveitaria o
máximo seu paraíso. Ainda assim sentia como se não estivesse sozinho.
Notou que no centro do jardim, a uma razoável distância dele, erguia-se uma
frondosa árvore. Gigantesca, a maior do jardim. Seu caule possuía uma largura
inacreditável. Seu topo se erguia além dos céus. Sua sombra cobria uma distância
interminável. Parecia que aquele ser vegetal sustentava toda aquela fauna singular.
Era como uma montanha viva. Ela dava a vida àquele jardim. Nutria-o com sua força.
Podia ouvir o bater do coração de madeira juntamente com o seu. E aquele pulsar o
dava forças. Sentia como se estivesse mais forte, mais jovem. Correu ao encontro do
gigante uma distância de sem-tempo. Não se sentiu cansado um único instante.
Aproximou-se da árvore. Abraçou seu tronco e sentiu sua vida. De repente, num
acesso de infantilidade, começou a escalá-la. Lembrou-se da árvore da vida bíblica,
todavia esta, que escalava com vontade sobre-humana, não possuía fruto algum.
Tinha apenas aquele peculiar cheiro de juventude. Subia uma altura incalculável.
Quanto mais subia, menor se sentia cansado. No momento em que chegou quase no
topo, equilibrou-se de frente para ela em um de seus galhos. Houvera chegado ao
auge de sua infância. Um perfeito menino, de alma e corpo. Ficou parado
silenciosamente olhando o tronco maciço e imortal. Abriu os braços e se deixou levar
ao solo, como uma folha que cai. Enquanto caía, sentia o peso dos anos aumentar em
seu corpo. Voltava a sua idade verdadeira. Aterrissou num monte de folhas mortas
espalhadas pelo chão. Gargalhou com vontade e de maneira agradável.
Permaneceu na grama por horas, como uma criança após um dia inteiro de
brincadeiras. E, talvez houvesse ficado lá, se não ouvisse alguém lhe chamar. Era
Joana. Ao mesmo tempo, como em resposta, uma luz, vinda de lugar nenhum,
apareceu por trás de Nicolau e se materializou. Nicolau olhou com o coração
pulsando fortemente. Mais brilhante que o sol e mais veloz que um raio. Com forma
humana e não-humana. Era o guardião do lugar. Percebeu por que seu pai não havia
deixado ele entrar no paraíso quando criança. A criatura abriu suas asas chamejantes,
empunhou uma espada de luz e começou a avançar em sua direção. Nicolau,
instintivamente, correu para alcançar a janela, mas, para seu espanto, Joana estava
bem em frente a ela, parada. Ouviu-a falando algo sobre a lâmpada do poste estar
muito forte e percebeu que ela estava sem seus óculos. Gritou pelo nome dela, que
atendeu. Disse que iria atendê-lo após fechar a janela do sótão que ele esquecera
aberta. Tropeçou no momento que corria como um desesperado. Quando chegou à
janela era muito tarde. Joana já a havia fechado. Bateu no tronco maciço da árvore
várias vezes, até perceber que a passagem mágica houvera desaparecido. Atrás dele, a
estranha luz se tornava mais forte.
Ninguém em casa lhe deu muito crédito na manhã em que acordou e disse aos
familiares: ―Vou plantar sonhos de agora em diante‖. A mulher, sempre
condescendente, permaneceu alheia a tudo, como se o marido não estivesse falando
nada. Os filhos já haviam se acostumado com aquelas ideias sem pé nem cabeça do
pai. No entanto, continuou repetindo para quem quisesse ouvir seu plano. E assim,
saiu para trabalhar da maneira costumeira. Fora de ônibus para iniciar sua profissão
de fé. O trocador lia avidamente um livro. ―Que livro está lendo?‖ perguntou o
homem, enquanto atravessava a roleta. ―É Guimarães Rosa. Grande Sertão
Veredas…‖ disse o rapaz, um tanto quanto envergonhado e surpreso. ―Você gosta de
ler?‖ A resposta foi um silencioso aceno de cabeça. ―Por que não tenta escrever algo
você mesmo?‖ ―Eu não levo jeito para essas coisas não senhor…‖ ―Bobagem, em
primeiro lugar não se deve desistir na primeira tentativa, e em segundo, quem falou
que Guimarães Rosa acertou na primeira tentativa?‖ o trocador sorriu para ele
enquanto o homem ia para seu acento no ônibus.
O homem, sentado em seu banco, reparava nas pessoas que entravam e saíam
do ônibus. Um sério homem de terno, com seu celular ao ouvido, reclamando da
pessoa do outro lado da linha. A mulher que se lamentava ao carregar suas compras.
O homem que, indiferente a tudo, lia o jornal. Nisso, por um minuto, quase desistiu
de seu objetivo. Pensou melhor e continuou seu plano. Não era homem de se abater
facilmente. O mundo ainda era como um campo a ser cultivado. Desceu do ônibus e
continuou seu trajeto a pé. Chegou ao trabalho um pouco adiantado. Sorriu para o
rabugento porteiro. Este não era dado a conversa-fiada. No entanto, insistiu. Como se
uma lâmpada se acendesse sobre sua cabeça, falou iluminado para o homem: ―Posso
te dar um conselho?‖ O homem apenas sacudiu os ombros, demonstrando que não se
importava. ―O melhor que tem a fazer para você mesmo é sair desse emprego‖. O
guarda franziu as sobrancelhas, demonstrando que discordava. ―Você não
entendeu…‖ tentou se retificar. ―estou lhe falando para fazer um curso, sei lá. Você é
jovem, rapaz! Pode conseguir um emprego que lhe pague melhor.‖ ―Não trabalho por
dinheiro…‖ foi a resposta ―… e não tenho ambição.‖ Tentou ainda, um último
argumento. ―Não estou falando de dinheiro. Estou falando de qualidade de vida.‖
Mas, em resposta, ouviu um ―Eu estou satisfeito com a vida que levo.‖ Continuaria
ali conversando com o homem, se não estivesse no seu horário de trabalhar. Apressou
o passo e chegou na sala antes de todos. Aproximou-se de sua mesa e começou a
retirar seu material de trabalho. De repente, uma voz infantil se dirigiu a ele:
―Professor, posso falar com o senhor?‖
―A linha que nos prende a realidade é mais tênue do que imaginamos. O tempo
é efêmero.‖ Nos diz no último parágrafo o protagonista do romance Azrael:
Memorias fragmentadas de un inmortal do argentino Raoul San Pedro. Segundo
críticos é uma dessas ―fábulas modernas, que prenuncia o fim do modernismo e o
começo der algo novo‖. Entretanto, peca em alguns detalhes, como uma colcha de
retalhos na qual se veem as emendas.
Escrito à época da ditadura peronista, o livro assusta por seu caráter inovador.
Ele é a prova de que a realidade é mais frágil do que imaginamos.
Não importando a discussão acerca da autoria, não há como negar que Azrael
seja uma obra à frente de seu tempo, polêmica, e que sua maior e mais marcante
característica seja a fragmentação do ser, marca da pós-modernidade, e a discussão
sobre a fragilidade da realidade.
A Ordem de São Jorge
Desde sua mais que remota origem, a Ordem de São Jorge conta com apenas
um membro, que nunca é o mesmo, mas atende pelo mesmo nome. A crença no fim
da Ordem deu-se por esse motivo e pela constatação de que a mesma possui dois
membros entre espaços longos de tempo e por períodos curtíssimos.
Sabe-se que se inspiravam nos feitos de São Jorge, mas não revelavam a
ninguém. Sabe-se também que professavam a fé católica, mas mantinham os hábitos
dos primeiros cristãos, orando em cavernas e locais inacessíveis. Sobre os
mandamentos da ordem sabe-se pouco – a maior parte são informações distorcidas
pelo Romantismo, pelas Novelas de Cavalaria e pela tradição oral –, visto que todos
os escritos feitos por seus membros são destruídos totalmente após suas mortes.
Tocarei as estrelas.
Serei imortal.‖
Outro motivo que deve ter inspirado a oração está no fato de alguns seguidores
do culto serem capazes de prodígios. Em Portugal, durante a invasão napoleônica,
certo soldado de nome Jorge saiu ileso após uma saraivada de flechas a ele
direcionadas. À época das Cruzadas, um sarraceno que atendia pelo nome de Jorge,
teve seu corpo amarrado por seus algozes, mas todas as cordas arrebentaram-se
misteriosamente e este pôde escapar do jugo. Contudo, nenhum deles atribuía o
mérito para si.
Uma vez (não sei se deveria revelar) conheci um membro da Ordem. Era um
homem taciturno, porém, de personalidade forte. Apesar de não confessar fazer parte
do credo – muitos não o fazem por só o saberem que são no momento da morte –
revelou-me que em um fato todos os seguidores concordam: consideram que o dragão
é mais alegórico que real. Para eles, o dragão pode ser feito de escamas, chumbo, pó,
água ou fogo, cimento ou madeira, decepções ou pesadelos. A luta contra o dragão
nunca finda. E, o eterno último membro da Ordem de São Jorge, sempre travará sua
luta secreta e incansável contra a besta escondida em si.
Cronoguarda
“Considerer a gift.
A tomorrow legacy.”
Philip K. Dick “The Schrödinger paradox”
2015 d.C.
O grande desastre
Entre a fumaça e a poeira ainda presentes no ar, a única coisa que se conseguia
ver num raio de mais de 600 km era a gigantesca cratera. A mudar a paisagem
daquele dia que para muitos podia ter sido comum como qualquer outro na cidade de
Santa Bárbara.
Acima, o sol, mais belo que nunca num céu de límpido azul, denunciava-se,
como a única testemunha de um insólito nascimento. O nascimento de um segundo
Adão em um jardim de morte.
Ao coçar o olho esquerdo, percebeu algo fantástico: o mundo ainda estava lá.
Congelado, mas lá. Uma fotografia invisível em terceira dimensão.
Nada mais podia fazer a não ser chorar. Não passava de um insignificante grão
de areia em uma cratera sem fim. Cada homem deve acatar o que traz consigo. Para
ele não era o fim, mas o início de um novo ciclo. Num mundo que sentia pela
primeira vez os efeitos devastadores de uma explosão quântica.
2068 d.C.
Juntamente com dois outros agentes sabia que aquele abandono era realmente
relativo. O morador do lugar fora profissional e apenas indícios mínimos
comprovaram o fim de sua estada há apenas um dia.
―Como ele fez isso?‖ perguntara Tanaka, lacônico como de costume. ―Sempre
pensei que os retornos no tempo houvessem sido bloqueados‖. Ainda possuía a
influência dos sonhos e do menino que os assombrava. Um menino chorando em
meio a destroços. Uma charada sem respostas.
―Mas alguém provou, na prática, que é possível infringir a maior das nossas
leis: O tempo não pode ser modificado‖. O comandante falava como alguém cansado
e apreensivo. E não era sem razão.
―Registro?‖
―Ele usou uma espécie de indutor de imagens. As câmeras nunca poderiam vê-
lo, uma vez que suas imagens seriam distorcidas ao tentar inutilmente filmá-lo.
Quanto à bomba, tecnologia de espaço compacto. Coisa refinada, de egípcios. É
minha teoria.‖
―Deixe-me vê-la.‖
Iam para a central em silêncio. Para Tanaka aquela situação lhe trazia
lembranças dolorosas. A invasão ao galpão onde estavam reunidos os últimos
membros da seita fanática ―Apóstolos do segundo Adão‖. Ele e outros três agentes,
Hamerski, Gomes e Onion (apenas Onion), amigos seus desde a Academia, foram
convocados para invadir o local. A seita estava sendo acusada de ser responsável por
suicídios de membros e roubo de tecnologia. Apenas quatro contra mais de cinqüenta.
Uma luta justa. Infelizmente, não fora tão fácil assim. Aquela invasão era uma
emboscada. Os membros da seita haviam iniciado um culto de suicídio coletivo e os
quatro estavam no meio. Gritavam palavras ilógicas ―Estamos no local de poder”,
“Não podem nos ferir‖. No fogo cruzado, Hamerski e Gomes foram mortos e ao fim,
quando o grande galpão explodiu, Onion, o caçula dos três. O único sobrevivente foi
Tanaka. Todos os cinqüenta membros, além dos corpos dos dois agentes foram
encontrados quando a poeira abaixou. Apenas o corpo de Onion não fora encontrado.
Um detalhe lhe chamou a atenção: seus dois companheiros tiveram seu implante
temporal arrancado.
O fato que mais perturbava Tanaka naquele caso, eram as misteriosas palavras
que um dos membros da seita dissera antes de expirar: ―Nada é que já não tenha sido.
Quando um são três e três são um, o tempo é cíclico”.Elas lhe perturbavam da
mesma maneira que aquele cartão de memória que tinha em suas mãos. Tinha medo
de saber o que encontraria nele. Havia lido coisas e teorias que para um leigo seriam
ilógicas e desconexas, mas com elas, podia prever a época para onde o criminoso
houvera ido: o início do século, mais precisamente em 2015, o dia do grande desastre.
O dia em que o homem tentou ser maior que o tempo e maior que Deus e pagou alto
por sua arrogância. O Grande Desastre. O incidente que modificou o mundo
conhecido.
Ainda abalado, mas não vencido, pegou o cartão de memória que encontrara no
quarto de Malagrado e carregou-o no computador. Sua surpresa fora maior ainda ao
descobrir que este pertencia ao seu amigo Onion. Lembranças secretas daquela
fatídica noite passaram por seus olhos, mas de uma maneira como nunca antes
esperara. Os mesmos derradeiros passos de seus outros companheiros foram seguidos
por Onion. Vários homens diferentes, mas seguindo a mesma seqüência de morte e
sangue. Dizem que aqueles que não têm medo da morte a tem como aliada e
protetora. Por um segundo Onion teve esse medo. Uma rajada entre as trevas dava
fim a esse medo. Os olhos de Onion, ainda abertos, viam os homens cercando-o.
Estática na imagem. Cenas sem sentido. Mas ainda não era o fim. Tanaka passou a
ver além. Além do fim. A morte ainda tardaria para chegar. Os olhos de Onion (e
também os de Tanaka) vêem-se deitados em uma cama de hospital. O resto é
demasiado forte para um ser humano suportar, por isso, os olhos são vendados e
postos novamente na escuridão. Apenas os gritos venciam a treva. Quando estes se
abrem novamente, a única coisa que Tanaka via antes do apagamento geral e
definitivo era o rosto de Onion, semelhante ao de um morto, mas exalando uma
espécie de divindade profana. A se olhar. Vendo a si mesmo. Vendo Tanaka. Ele
sabia que Tanaka estava ali. Neste instante, ele desligou o aparelho de cartão de
memória. Para algumas imagens, a mente humana ainda não está preparada. A mente
do policial, menos ainda.
―Em tese, não é isso que Hawking é? Uma máquina do tempo? Um deslocador
temporal?‖
―Sim. Em tese. Não temos nenhuma confirmação de que Malagrado esteja no
passado ou tenha sido desintegrado.‖
―Não sei como o comandante Farga autorizou isso...‖ murmurou ela, antes de
ativar a máquina.
―Não autorizou.‖ Foram as últimas palavras de Tanaka antes de ter seu corpo
catapultado através do tempo.
2015 d.C.
Uma assombração. Tanaka demorou para perceber que ainda não era
totalmente de carne e osso. Por instantes, ele ainda era uma transmissão, como a
imagem tremeluzente de uma tevê quebrada. Um fantasma-do-que-virá. Aparecendo
em diversos lugares ao mesmo tempo. Mais semelhante à estática. Um chiado. Nunca
ocorrera antes. Tentava se lembrar o que fora fazer ali. A mente em frangalhos.
Estabilizou-se fisicamente num terreno baldio, que julgava ser o local onde o
bloqueador de sua época estava. Algo estava acontecendo. O tempo já havia se
corrompido.
Engraçado como alguns detalhes nos escapam. Sempre julgou que a Cúpula e
toda a organização se localizassem exatamente onde houvera o 1º incidente.
Enganara-se. Em seu relógio, tinha menos de 6 horas para descobrir o local onde
estava o deslocador sem nenhuma pista. Procurou nas listas telefônicas em vão, pois
o projeto do deslocador era secreto. Tentou com a telefonista e ela riu dele do outro
lado da linha, antes de bater-lhe com o telefone na cara. Já estava desistindo, quando,
ao enfiar a mão num dos bolsos da jaqueta, encontrou o folheto que lá guardara. O
inesperado faz a diferença nesses momentos. Era uma folha amassada onde se lia no
topo em letras vermelhas ―Apóstolos do segundo Adão‖. Abaixo, em letras negras
―venha para um lugar onde seu destino pode ser mudado‖, e o endereço logo abaixo.
Era um folheto do ano de 2040. Nesse momento, todas as peças começaram a se
encaixar. O dia da invasão. O armazém onde eram as reuniões da seita. ―Local de
poder‖, como ouvira os membros da seita chamar. Eles sabiam onde havia sido a
explosão. No porto, que no futuro, seria abandonado. Olhou para seu pulso e teve
outra surpresa. Faltavam apenas 2 horas para o fim de tudo. O tempo estava ansioso.
Corria como nunca correra antes. Ou seu corpo estava acelerando os fatos? Não
parou para pensar, correu para o porto, mesmo não tendo certeza de onde ele ficava
exatamente.
Não foi problema encontrar o porto. Era estranho perceber que o mesmo estava
abandonado durante o dia. Percebeu onde estava o deslocador por algo inevitável.
Fora puxado pelo mesmo, como um parafuso é puxado por um imã. Entrou num
galpão abandonado. Já em sua entrada, dois seguranças mortos. Era como se o ar de
seus pulmões houvesse sido arrancado. Entrou na treva com sua arma em punho.
Reparou na tecnologia usada dentro do galpão. Como a daqui a 50 anos. Entrou no
subsolo, sentindo cada vez mais a pressão exercida pelo deslocador. Sem saber o
motivo, a melodia de Carmina Burana veio a sua mente. Um pequeno cômodo sem
nada de especial, um notebook e uma cadeira e a sua frente um tubo verde
fluorescente comum rapaz de costas a fitá-lo. Tanaka não acreditou no que suas
suspeitas o levaram, mas era verdade, Onion estava ali de costas para ele, vivo.
Imaginou em diversas coisas que podia ter lhe dito, mas ele se adiantou.
―Eu esperava encontrá-lo aqui, mas não desconfiei que fosse você.‖ Falou
Tanaka, com a arma levantada.
―Se não fosse o cartão de memória, eu demoraria bem mais para descobrir.‖
disse Tanaka, com a arma agora abaixada.
―Tempo, é sempre o tempo… Deus não precisa do tempo, sabia?‖ Disse Onion,
de cabeça baixa, mas ainda de costas. ―Para Ele, um instante do passado e do futuro
são simultâneos a um do presente. O passado, o presente e o futuro são um mesmo
momento para a visão onisciente.‖
―O que é o sentido, senão algo que nos é imposto para termos uma direção a
seguir? Uma âncora da realidade.‖
―Apenas um fantoche nas cordas do destino. Sua vida foi útil para que se
cumprisse um propósito maior.‖
―Algo mais que homem, menos que deus.‖ Neste momento, Onion se virou, e,
por sua camisa branca de linho aberta, viu-se em seu peito três símbolos equidistantes
entre si, formando um triângulo. O rosto do rapaz era como que o de um zumbi, mas
possuía algo de estranho, quase divino. Tanaka, instintivamente, levantou sua arma e
a apontou para Onion. ―Sabe qual é um dos motivos por que deus está em todas as
eras? Por que ele é três e ao mesmo tempo é um. Um paradoxo. Assim como eu me
tornei.‖
―Quando um são três e três são um… Mas, gostaria de fazer uma pergunta: por
que e como?‖
―Nada é que já não tenha sido. Se estou aqui neste ponto do tempo é por que já
estive aqui antes. Percebi isso minutos antes, quando me vi frente a frente com isso.‖
Atrás de Onion começara a levitar um tubo verde fluorescente que Tanaka calculou
ser o centro do deslocador temporal. ―No fim, acho que passei toda a vida para viver
este único momento. Um único instante na vida de um homem pode valer mais do
que toda sua vida.‖
―Onion…‖
―A verdade é que eu tenho setenta anos. O tempo parou para mim neste dia. Eu
tinha dezessete anos. Por uma ironia do destino, fui o único a sobreviver e desde
então, não mais pude envelhecer. Disseram que minhas células congelaram. Eu nunca
pude morrer.‖
―O menino do meu sonho… Sempre achei que você fosse jovem assim por ser
um super-dotado, por isso a sua pouca idade. Você sempre demonstrou isso.‖
―Eu sou um Peter Pan! E como tal, tenho minha própria Terra do Nunca. Sabe
por quê? As pessoas que estavam na cidade no momento da explosão não morreram.
Todos, com uma exceção, ficaram presos no limbo. Congelados em um mesmo
instante. Fantasmas do tempo. O tempo continuou andando, mas para eles não. Este
dia, este minuto, aquele segundo, sempre se repete enesimamente. Mas eu posso vê-
los quando fecho meus olhos. Como fotografias em terceira dimensão.‖ Neste
momento, Onion piscou os olhos e, estes, tornaram-se transparentes e semelhantes
aos de um gato.
―Se isso é verdade, tudo o que acreditamos ter acontecido, não é verdade. Todo
o nosso passado é uma mentira.‖
―Dizem que houvera destroços logo após a explosão. É mentira! Eu estava aqui
e posso garantir que tudo que havia, além de mim, era uma gigantesca e limpa
cratera, e mais nada. Tudo, casas, móveis, folhas de árvore, tudo ficou preso no
limbo. Mas eu nada sabia. O trauma havia me deixado com amnésia. Que só terminou
no dia em que os outros, e também eu, morremos. Aquele portal. Neste exato lugar,
no futuro, será aberto à custa de 50 seguidores meus, Hamerski, Gomes, somente para
que eu visse tudo o que aconteceria no passado.‖
―A estática na imagem…‖
―Seu imbecil! Eu já repeti essa cena 73 vezes! E todas têm o mesmo fim. Claro
que com algumas variações. Da primeira vez, você apenas entra aqui, atira e me
mata. Mas assim, não teria nenhuma emoção ou chance minha se me salvar. Por isso,
comecei a intervir. A cada tentativa minha de mudar o passado, eu mudo um fato,
uma frase, algo para que eu possa mudar para eu mesmo mudar. Em outro momento,
eu te mato e você me mata. Em outro, me suicido após te matar. Em um outro, me
suicido na sua frente, mas, mesmo com as variações, todos tem o mesmo fim. Foi
então que percebi que não temos o tempo, o tempo é que nos tem.‖
―Isso não é possível! Você está me dizendo que já sabia de tudo o que
aconteceria aqui?‖
―Percebe a profundidade do que está dizendo? Pelo que você me disse, o tempo
é realmente cíclico! Nós dois criamos nosso futuro.‖
―Paradoxo…‖
―Na era que agora se inicia nós forjamos e somos suas vítimas, como o soldado
que atira em si mesmo ao limpar seu rifle. Eu sou o pai e o primeiro filho desses anos
negros que viram. No princípio só existia Adão e no fim só haverá Adão. Mas você
pode mudar isso.‖
―No dia em que o homem quis se introduzir na trindade divina, ele destruiu o
conceito de deus e parou de acreditar. Você, para me destruir, deve tomar o meu
lugar.‖
―Isso é loucura!‖
―Para que o futuro viva, eu devo morrer, e você deve tomar meu lugar.‖
―E se eu não fizer isso?‖
―Você não tem escolha. O tempo se move em círculos. Se você não me matar,
o universo todo se congela no tempo.‖
―Sim, mas os parafusos que você achou podiam me matar, uma vez que foram
expostos aos mesmos efeitos que eu.‖
―Você não… entendo. Um detalhe para a próxima vez que nos encontrarmos
aqui. Sem os parafusos eu não morro, mas pode ser que o impossível ocorra. Atire
assim mesmo.‖
―Como nos velhos tempos…‖ Dizendo isso, Onion levanta seu dedo indicador
e aponta para Tanaka, que responde apontando o revólver para ele. ―Nunca se
esqueça: a cada geração deve existir um imortal.‖
2068 d.C.
Juntamente com dois outros agentes sabia que aquele abandono era realmente
relativo. O morador do lugar fora profissional e apenas indícios mínimos
comprovaram o fim de sua estada há apenas um dia.
Tinha a intenção de jogá-lo fora na primeira lixeira que passasse por mim,
quando me impeliu a curiosidade de abri-lo e folheá-lo. Surpreendeu-me uma
caligrafia pequena, cuidadosa e trabalhada, quase desenhada. O objeto possuía
diversas folhas rasgadas e trechos rasurados, como se o autor estivesse fazendo algo
pessoal.
Das páginas que li, traduzo e transcrevo algumas que achei estarem com sua
essência ainda imaculada. O caderno é datado de 1917 e não transcrevo todo seu
conteúdo por motivos que apresentarei em seguida.
―Escálo
Sua personalidade é forte e não desiste até vencer uma discussão. Deixa-se
levar pelo calor das emoções e do desejo. E isso tem suas consequências. Como a
quantidade de raios que se veem no Brasil e na África. Somente devido a esse detalhe
que conseguimos convocá-lo para participar da Liga Obscura.
Não admite, também, uma derrota em campo. Faz o que precisa ser feito,
mesmo que isso inclua ações extremadas.
Sua grande fraqueza, provavelmente, são as mulheres. Foi devido elas
que ele tornou-se um desterrado, tendo suas reais habilidades confinadas em
um machado de nióbio.
Mesmo assim, não mede esforços para conseguir satisfazer seus desejos. E a
isso tenho que transformar em nossa vantagem.
Goneril
Essa bruxa lamurienta considero, por vezes, mais um estorvo que uma aliada.
Acredita ser da família das fadas, contudo, tenho índicos de que sua linhagem
aproxime-se mais às nornes ou às disir.
Por isso o perigo. Explico: às vezes, uma incontrolável sede de sangue invade-a
e somente com feitiços específicos de contenção consegue-se fazê-la retornar à
sanidade.
E não é nada bom ter uma criatura dessas em débito com você. Ela não
esquecera quando o voto terminar.
Trínculos
Os habitantes diziam, que eram as almas dos mortos malvados e sua maldição
era errarem pela Terra torturando os ímpios, perseguindo os incautos, zombando dos
tolos e causando horror aos homens. Eram chamados de lêmures.
Esconde-se à sombra do pai, o ―Tell‖, e por isso, não revela seu verdadeiro
potencial. Foi o único membro da Liga Obscura que, ao ser convocado, fez questão
de ser chamado pelo codinome, pois não se sente digno do sobrenome que leva.
Em seu alforje, carrega apenas uma flecha, pois segundo a Ordem da qual faz
parte ―um bom assassino necessita apenas de uma flecha‖.
Tamora
Seu silvo hipnótico é uma de suas mais poderosas armas. Da mesma feita, sua
beleza feminina também.
Aprendeu seus feitiços devido sua remota natureza divina: é um dos diversos
frutos das inúmeras paixões de Zeus. E graças às habilidades que absorveu dos
feiticeiros que foram vítimas de seus desejos sexuais e alimentícios. Somando aos
anteriores, outro desejo se apodera dela: por poder. Ainda não descobri qual deles se
sobressai.
Pistola
Elbow
Há nele aquele espírito prático dos comerciantes. Tudo para o duende tem uma
moeda de troca.
Acredita piamente que todo homem tem um preço. E, graças a isso, consegui
que prestasse seus serviços à Liga Obscura. Ao trapacear um trapaceiro, consegui
algo que muitos de seus inimigos buscam, seu verdadeiro nome: Rumpletisken.
Sei que ele só está na Liga para conseguir algo que também seja só meu. Tenho
minhas suspeitas se o incidente envolvendo o Mão Negra, em 1914, tenha sido
proposital. Sei que, na primeira oportunidade, ele colocará os membros da Liga uns
contra os outros ou contra mim mesma.
É difícil admitir, mas, ele é um mal necessário, mesmo sob o risco de pôr tudo
mais a perder.
Gertrude
Cavalga os céus melhor que os pássaros, perfura as águas com mais destreza
que os peixes. Estremece o chão com mais fúria que os elefantes. Sua carne concede
aos que a provam, longevidade. Dizem que Mao Tsé Tung tinha um dragão feito
cativo e, aos poucos, alimentava-se da carne do mesmo para viver longos anos.
Sua pérola ora está à sua boca, reluzente como o sol, ora está em seu ventre.
Ela é considerada a fonte real do poder de Gertrude, seu coração. Porém, He quem
diga que, na realidade, a pérola é um ovo de dragão que Gertrude está a chocar, o seu
ovo.
Não retira seu píleo, um gorro vermelho que fica em sua cabeça, por nada.
Yorick possui uma quantidade tão grande de habilidades que eu poderia ficar o dia
inteiro enumerando apenas as que chamam mais a atenção:
Como acredita que sou sua ―dona‖, por eu o haver capturado séculos atrás,
posso contar com ele sem pestanejar.
Belário/ Morgan
Guardião dos sonhos. Mestre dos pesadelos. O Sonâmbulo. São alguns nomes
que este insólito senhor recebeu através dos séculos.
O senhor das areias oníricas é alguém que possui uma característica singular:
dupla personalidade.
Esse é seu real talento, fazer as pessoas acreditarem em suas mentiras. Sejam
elas alegres ou tristes.
A autora escreve para si, não para um público. Não transcrevi, por conta disso,
todo seu conteúdo, uma vez que acreditei ser deveras constrangedor para uma dama
(convencendo-me de que a autoria era de uma dama).
Pós-escrito de 2013.