Hamlote Contos Insólitos2

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LUCIANO NASCIMENTO

Hamlote
Contos Insólitos
HAMLOTE
CONTOS INSÓLITOS
Luciano Nascimento
Hamlote
Contos Insólitos
Luciano Nascimento dos Reis

Vitória - ES

2013
Copyright © by Luciano Nascimento

Capa:

Dieggo Nascimento dos Reis

Elaine Charpinel dos Santos (colaboração)


Dedico este livro a Lena, minha esposa e a primeira a ler e ser
fonte de inspiração de muitos dos contos a seguir. A meu filho
Joaquim Henrique e seu irmão (ou irmã), somos também o nosso
legado. A meus irmãos, Marcelo e Dieggo, pelas colaborações e
sugestões. A meus pais, por me haverem apresentado o prazer da
leitura. A minhas avós, pelos conselhos e histórias. A todos os
amigos que leram e colaboraram para a construção de alguns
contos. A todos os meus parentes (de sangue e adotados). E
finalmente, mas não menos importante, a Deus, por haver me
dado a primeira inspiração e a primeira palavra. E a vontade para
continuar respirando e escrevendo.

LN
PREFÁCIO (insólito)

“A noite inteira o poeta


em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.”
João Cabral de Melo Neto “A Lição de Poesia”

PREFÁCIO, s.m. Discurso ou advertência, geralmente breve; que antecede uma


obra escrita; o mesmo que prefação; preâmbulo; prólogo, proêmio; prolusão;
prelúdio; preliminar; introdução; anteâmbulo; antelóquio; exórdio (Anôn.: posfácio);
(Lit.) parte da missa católica que precede imediatamente o cânon.

Prelúdio

Parou em frente sua velha máquina de escrever e pensou em como fazer o


prefácio de seu livro. Ainda se prendia a antigos modos. Não se adequava ao
computador. A tecnologia lhe era uma estranha.

Na verdade, não tinha muita vontade de escrever, mas algumas normas da


língua o obrigavam-no a fazê-lo. E bem feito. Algumas pessoas, várias pessoas,
diversas pessoas, contavam com esse seu exercício de diplomacia. Afinal, o que é o
prefácio, senão a manifestação da diplomacia do autor junto a seus leitores. (Se bem
que ele poderia pedir ou pagar a alguém para fazê-lo).

O prefácio é aquele texto criado para instigar o leitor a ler a obra. Mesmo que
em alguns casos, não tenha muito a ver diretamente com a obra. O prefácio é o texto
que é para ser lido, mas não é lido, às vezes pela falta de interesse em lê-lo, outras
pela vontade suprema de ler a obra o mais rápido possível, e este, ele achava o mais
interessante, não era lido pelo simples fato de a pessoa saber como lê-lo e qual sua
função prática.

Por várias vezes datilografou e jogou a folha no lixo.

Já estava se viciando nesse círculo. Como o artífice a construir peixes de ouro e


vender a uma moeda de ouro cada para, após recebê-las, derretê-las e criar novos
peixes para vender a uma moeda de ouro.

Após várias tentativas, tentou um texto pomposo como:

―Prefácio

Quando menos se espera, algo acontece. Quando tudo está


brando e a calmaria toma conta do ambiente, o inesperado ocorre.
O inesperado, o insólito.
Tudo o que estava arrumado, vira de ponta cabeça.
Toda organização e substituída pelo caos.

A rotina de nossa vida é ameaçada quando esta palavra


é incluída em nosso dia a dia.

Mesmo que esse inesperado, esse insólito, esse


estranho, seja um objeto, um gesto, uma palavra, um pensamento
ou uma série de fatos cadenciados, ou quem sabe, todos eles juntos
de forma assustadora e transformadora. Não importa, quando o
inesperado entra em nossa vida, tudo o que pensávamos muda
radicalmente. Alguns mais radicalmente que outros. Mesmo nos
mais ardentes casos de amor, em um passeio pelo jardim ou mesmo
na arrumação de um sótão, ou quiçá, numa canção de dormir. A
qualquer momento o inesperado, o inexplicado, pode acontecer. De
formas e maneiras das mais diversas.

Pois é isso que todos esses contos têm em comum. O


fato de o inesperado, mesmo que implícito, estar contido em todos
eles. Isso os torna irmãos. Mesmo que em uma página, um
parágrafo. Uma linha. Ou mesmo a palavra final do conto, não
escapa, lá está o inesperado para comprovar que nessa vida, a única
coisa sempre presente é a mudança.

E, se em algum destes contos, o inesperado também o pegar,


leitor, saiba que estarei satisfeito, pois minha missão foi bem feita.

Boa leitura.‖

Leu e releu várias vezes. Amassou a folha. E jogou-a no lixo junto com as
outras. Nada lhe agradava, a não ser o fato de que tinha consciência de que nada lhe
agradava.

Tentou novamente. Porém, dessa vez tentou algo mais descritivo, pessoal e
simples, algo mais direto, mais borgeano.

―Prólogo

Todas as estórias, com exceção de O homem que decidiu


semear sonhos, Impassível e Insensível e A Prole de Narciso, são
de natureza fantástica. Todos os três, além de haverem sido
baseados em fatos reais, são mais uma reflexão sobre o poder das
palavras do que um jogo de mal-entendidos.

Hamlote é uma discussão acerca do estatuto da realidade e


também, uma homenagem a Shakespeare e Cervantes. A parábola
de Cervantes e Shakespeare é também e, obviamente, uma
homenagem. Assim como Azrael: Memórias fragmentadas de um
Imortal, que nasceu após a leitura ininterrupta de uma obra onírica
e desconhecida. E Dom: a infame autobiografia secreta
autorizada e inacabada de Dênis Vasconcelos (1954-1974+)
gerou certa quantidade de trabalho, por falar sobre alguém que
realmente existiu, mas que eu não tive o prazer de conhecer, a não
ser por rumores. Enquanto Cartas ao Farol fala sobre um
romance que já havia sido escrito antes de eu pensar em escrevê-
lo.

Telhado de Amianto é um conto de crianças, mas


provavelmente muitos adultos se identificaram nele. Capuz
Escarlate é uma revisita a uma história cuja quantidade de versões
já se perdeu. A musa e o Artesão fala sobre traições e lugares
inusitados onde a inspiração possa aparecer. O jogo de morte e
sedução pode ser visto em Depois da Queda, além de uma nítida
referência a Poe. O conto Entre os Olhos é urbano e poderia
acontecer em qualquer lugar.

A mensagem política de Copo Empoeirado é explícita,


todavia, a mensagem das entrelinhas também é bem perceptível.
De Tudo um Pouco é uma metáfora da alma feminina. Do mesmo
modo que Distrações de uma Senhora ao Banheiro. Cronoguarda
é policial, mas ao mesmo tempo não o é, mas sim algo mais. Após
uma primeira leitura, sugiro ao leitor que o releia, uma vez que o
conto é circular. Assim também é Segunda Pele, mas seu caráter
circular dá-se de outra maneira. Um jogo de pontos de vista é
percebido em Ao Cair das Estrelas, pois o leitor somente
perceberá a verdadeira essência do conto nos parágrafos finais.
Certa influência de H.G.Wells e uma às avessas de C.S Lewis
podem ser vistas em Do Outro Lado da Janela. Já A Consulta
refere-se ao que se vê e o que se pensa estar vendo. É o conto
mais pessoal de todos e ainda me causa algum incômodo falar
dele.

Por fim, A Ordem de São Jorge e Érebo, são sobre buscas.


No primeiro, o narrador busca algo maior do que a si mesmo. No
segundo, o protagonista não sabe que está buscando. Em ambos,
jogam o sagrado e o profano.‖

Mais uma vez, a folha datilografada seguiu seu destino inevitável. A sua
pequena lata de lixo já estava ficando menor pela quantidade de folhas nela.

Tentou mais uma vez, na esperança de conseguir encontrar uma maneira de se


expressar. Já estava se cansando daquela brincadeira de fazer e destruir.
―Introdução

Fábula. Pequena estória de cunho moral e fantástica, uma


fez que em sua maioria, faz uso de animais falantes e outros
artifícios para conseguir seu intento. As estórias deste livro (que
não podem ser consideradas relatos exclusivamente verdadeiros,
nem tão pouco patranhas) podem até possuir o cunho fantástico
em sua narrativas, mas sua moral é bem diferente da pregada
pelas fábulas, cuja totalidade de criação se encontra em Ésopo. As
estórias deste livro possuem mais aquele sentimento de quem
mora sozinho, chega em casa à noite e a encontra revirada, mesmo
tendo a certeza de tê-la arrumado pela manhã. Ou então, daquela
velha historieta do homem que trabalha o dia todo, chega ao lar
pela madrugada, abre a porta com sua chave. Entra em silêncio e
com as luzes apagadas, para não incomodar a mulher. Nada repara
de estranho. Entra no quarto. Deita-se à cama. Um grito, seguido
por vários outros. Lençóis ao ar, travesseiros ao chão. A luz é
acessa. A casa é a dele, mas o casal em sua cama é desconhecido.
Quando ele dá por si, aquela é e não é sua casa. Perdera-se de sua
vida sem saber como e quando. Os contos a seguir possuem mais
esse sentimento de perda do que o de encontro.

Eles nasceram da perda de algo. Amor, alegria, esperança,


razão. Por isso, insólitos. Como dito por Einstein, tudo é relativo.
Não só relativos, incríveis, mas também, únicos. Alguns possuem
o início inevitável, outros não, apenas o final, descartável. Mas
existem aqueles, e esses são os que mais me agradam, são os que
não possuem começo nem fim, ou este é apresentado de maneira
adversa. O passado não tem culpa do presente não ter futuro.
Como o velho caso do cidadão que entra correndo na frente do
ônibus, toma-o, paga a passagem, senta-se confortavelmente em
um banco, descobre que está no ônibus errado e briga com o
motorista para que este lhe deixe sair imediatamente e fora do
ponto. Coisas da vida.

Monstros. As estórias são recheadas de monstros. Míticos e


reais. Visíveis e invisíveis. Desconhecidos e íntimos. Eles sempre
permearam a vida do homem. Nos sonhos, pesadelos e até quando
estamos acordados. No início, de tamanhos absurdos, com chifres,
corpos de animais, personalidades múltiplas. Bahamuths. Com o
tempo, a arte de assustar os outros se tornou mais refinada, pois
descobriu que os monstros existiam dentro de nós. Com
Nietzsche, nos descobrimos monstros. O velho conto do homem
que sai com a namorada e, ao pôr-do-sol, torna-se um lobisomem,
sem saber que sua namorada é uma caça-lobisomem.
Em suma, nem todo nonsense faz sentido. Nem todas as
estórias possuem a intenção de convencer. Provavelmente, todas
não possuem essa intenção. Talvez nem mesmo nós possuamos o
desejo de persuadir. Mas algo elas possuem que as torna
especiais. Todas são únicas, irrepetíveis, acima de explicações
formais. Algumas podem até remeter a outras já escritas, mas isso
tem desculpa, pois o tempo, inevitavelmente, e
irremediavelmente, é circular.‖

O imã da lixeira atraía mais uma vítima. Nada lhe agradava, nem mesmo o fato
de escrever. Pensar é mais duro do que se possa imaginar. Escrever é trabalhar.

Levantou-se, foi à sua geladeira procurar algo para beber. O máximo que
encontrou para enfrentar o calor foi uma lata de cerveja. Pegou-a assim mesmo.

Foi bebendo até chegar à mesa da máquina datilográfica, onde ficou sentado,
olhando a folha de papel em branco.

Acendeu um cigarro, para espantar a falta de imaginação. O ar acima ficou


cheio de fumaça, como uma crosta cinza sobre sua cabeça. Continuou olhando a
folha de papel em branco.

E a observou durante horas.

Ao fim, sua mente também estava em branco.

II

Poslúdio

Dormiu usando a máquina como travesseiro. E sonhou. Sonhou com mundos


possíveis e impossíveis. Palavras a serem criadas. A palavra certa. Todo o mundo a
espera das palavras certas que o fizessem andar. Nada de deuses ou espíritos
extraordinários a lhe inspirar. Não existiam deuses, pois o escritor era o deus. Deus
de um mundo de papel e tinta. Um deus sem adoradores. Um deus sem que suas
criações/criaturas o soubessem. Era um deus que não sabia que o era. Pois é isso que
todos os escritores desejam ser. Mesmo os que ignoram ou renegam tal verdade.
Acordou sobressaltado, ouvindo sons que nunca ouvira antes. Levantou-se e
procurou a origem de tais sons.

Chegou em seu quarto e viu em sua mesa de cabeceira, um livro, aberto pelo
vento, cujas páginas dançavam ao movimento do mesmo vento.

Era como um balé ao som das folhas. Uma dança de palavras. De longe,
aquele livro se assemelhava a uma chama branca, rodopiando ao sabor da brisa.
Assim também é o escritor, que rodopia, dança ainda nesse vento de palavras soltas
ao léu. Cabe apenas ao escritor absorvê-las, ou melhor, ser levado por elas, criar
mundos novos e cheios de fantasia.

Perguntou-se por que um pouco de tudo e não de tudo um pouco. O papel é


seu veículo e sua prisão. Cabe ao escritor a função de compilar o maior número de
informações e juntá-las, condensá-las e transmiti-las, construí-las e desconstruí-las,
da maneira que as pessoas vejam a realidade de uma forma diferente de como a
vêem. Pois a função e sinas da literatura é incomodar. Se não incomoda, é qualquer
coisa, menos literatura.

Correu para a máquina, e surpreendeu-se. Antes de entrar na sala, um vento lhe


passou cortando o corpo. Um estranho arrepio lhe passou pela espinha. Existem mais
mistérios ao nosso redor do que sonha nossa perene filosofia.

Chegou à máquina, e, se surpreendeu mais ainda com o que viu. Na folha em


branco existia uma frase escrita, que resumia tudo o que ele gostaria de transmitir.
Afinal, a luta do escritor não é com uma folha em branco, mas com o já escrito, as
convenções, com todas as folhas que um dia já foram em branco e com todas as
frases já feitas por outros escritores em todas as épocas. Decidiu usar aquela frase
feita como prefácio para seu livro. A frase era:

O inesperado sempre nos pega de surpresa.

Boa leitura.
Hamlote

A surreal e metafísica tragédia de fábula pós-moderna em 4 atos

Advertência ao leitor:

Encontramo-nos em uma era em que quase todos os paradoxos se tornaram


realidade.

Uma era órfã de grandes e duradouros ícones. Uma era que carece de
metáforas.

Esta obra é um manifesto a essa era: um manifesto ao pós-modernismo. Ela


põe em xeque o estatuto da realidade.

E o realismo insiste em se perguntar se ele mesmo é real. E o que é o real. E é


exatamente isto que é este livro: uma pergunta.

Hamlote é uma mescla, uma amálgama. Uma mistura entre o realismo e o


fantástico. E um representante mais que fiel do realismo fantástico. Tal como
Asterión – que os gregos conceberam com cabeça de touro num corpo de homem e
Dante imaginou com corpo de touro e cabeça de homem – ele é uma visão do
impossível. E, ao mesmo tempo, possibilidade. Uma visão do homem. Do herói que
possui um lado sombrio e da besta que deseja a luz. Ele é um pêndulo (e todos nós o
somos!) a balançar da luz às trevas, vice-versa e além. Afinal, a maior tormenta de
todo herói é saber que a besta, o inimigo, encontra-se dentro de si.

Lembro-me que, quando criança, assombrava-me a imagem do minotauro.


Incomodava-me e fascinava-me a imagem de um ser fantástico aprisionado num
edifício mais fantástico ainda: o labirinto. Perturbava-me tanto que, ao me tornar
adulto, tive, também eu, que imaginar meu minotauro de loucura e sanidade, um
Asterión que também fosse um Teseu, e encerrá-lo numa Mansão que abarcasse tudo
aquilo que perturbava minha mente, mas não contivesse meu espírito.

Hamlote também é uma fábula do pós-modernismo. Ele é uma metáfora sobre


nossos dias atuais. Rejeitando o que foi, ignorando o que é, e não entendendo o que
será. Ávido por novidade mesmo que insensível a ela, eternamente jovial,
questionando a tudo e a todos (inclusive a si mesmo), entregue ao turbilhão, mas,
ainda assim, preso na Mansão do clássico e do moderno. Talvez, no fim, tudo se
resuma no eterno retorno do mesmo.
Ato I

Um rapaz caminha por um jardim em ruínas…

Em suas mãos existe um livro…

A cada passo seu, ele vira uma folha do livro.

Nele, ele lê sobre mundos distantes, reinos perdidos e tesouros escondidos.

Ele lê sobre seixos, vê formigas e dinossauros.

Lê sobre seres imaginários e existentes.

Ao fim de sua caminhada, ele nota que está nas últimas páginas do livro.

Em suas últimas páginas, ele percebe que o livro continha toda sua vida.

O local não tem importância. Sentado no chão da enorme biblioteca, folheava o


livro que estava já habituado a ler. A biblioteca circular de sua casa era enorme,
contudo, desde sua infância ela não lhe atraía mais do que aquele livro único. Não
possuía título em sua capa dura e desbotada pelos anos de leitura sem fim, tão pouco
nome de autor. Suas páginas estavam velhas e amareladas, mas ainda retinham a
mesma magia que sentiu quando as leu pela primeira e esquecida vez. Existiam dias
em que não fazia outra coisa senão lê-lo. Aquele fora seu primeiro e mais lido livro.
Conhecia cada página, cada desenho, cada frase, cada linha, cada palavra, cada ponto
e cada vírgula. O livro já estava tatuado em sua mente. E isso em nada o incomodava.
Pelo contrário, quanto mais o lia, mais tinha vontade de lê-lo.

Sempre a mesma narrativa. A história que se iniciava numa digressão tediosa, a


ausência de personalidade, logo no início, por parte do protagonista. As entradas e
saídas das personagens, como num inexplicável teatro do caos. A confusa ação que se
quebrava num irritante anticlímax. O encerramento que era um misto de fantasia e
crítica social. Tudo na leitura lhe chamava a atenção. Mesmo ele sendo insensível a
qualquer tipo de crítica social. Para ele, tudo eram livros e páginas e palavras.

Interrompeu sua leitura quando um dos empregados da casa entrou no aposento


e lhe informou que seu professor desejava vê-lo.

Levantou-se vagarosamente e, com a calma de sempre, guardou seu velho livro


na estante. Saiu da biblioteca e, atrás do homem alto, atravessou o corredor imenso e
interminável da Mansão. Na qual sempre vivera, sem sair sequer um único dia. A
Mansão. A Mansão de biblioteca babélica e de inumeráveis cômodos. De luxuosas
salas e excêntricos quartos. E, é claro, do infindo corredor que agora atravessavam.
Um corredor que parecia ser a repetição eterna de um único ponto. O impecável
corredor de solene silêncio. Almas cujo espírito fosse mais fraco poderiam
enlouquecer ao atravessar aquelas belas e atemporais paredes, repletas de portas
idênticas. Mesmo que se passasse uma vida inteira somente entrando e saindo de
todas elas, não se conseguiria conhecer todos os cômodos que se escondiam por
detrás daquelas portas, nem tampouco percorrer a completa extensão daquele
corredor que cortava a Mansão de fora a fora. Enfim, a Mansão e tudo em seu interior
eram tudo o que o rapaz sempre houvera visto em toda sua vida.

Entrou numa sala quadrada, à semelhança da biblioteca, cercada por livros,


mas não só. Possuía também um grande globo terrestre, uma mesa retangular no meio
dela e à esquerda, um cavalo ancião e rocinante, em tamanho natural, feito de
marfim. A chama da lareira queimava bucólica. Tudo muito nostálgico, como sua
própria vida.

Ao lado da estátua, de costas para a mesa, existia um fidalgo, de feições


madrugadoras, seco de carnes, rijo de compleição e enxuto de rosto. Alonso era como
chamavam esse ávido pesquisador das estórias de cavalaria e das literaturas
medievais. Um filósofo a parte, cujo sabor pela sabedoria só não era superior ao seu
coração cavaleiresco. Usava as palavras com a mesma destreza e classe de quem
maneja uma espada, atacando seus inimigos de forma certeira e fatal, afinal, uma
palavra pode ser mais implacável que algumas armas. Todos os dias, ia ter com seu
mais aplicado pupilo: o jovem Hamlote.

— Bons dias, mestre Alonso.

— Bons dias, jovem mestre. Espero que estejas preparado, pois hoje pretendo
desafiar todas as tuas habilidades.

— Mas porque, mestre Alonso? Há algo acontecendo que não sei?

— Um bom guerreiro deve sempre estar preparado. A espada sempre a ponto


de ser desembainhada. Atento a tudo que lhe ocorre ao redor. Sempre preparado para
qualquer ataque furtivo ou traiçoeiro. — ao que, dos olhos de mestre Alonso, refletiu
uma sutil luz quase sobrenatural:

— En garde! Dizei-me agora: o que és, para ti, realidade?

— É tudo o que meus cinco sentidos podem perceber.

— Belo golpe de início, meu mestre. Defendeu-te bem. O que é real é


verdadeiro. O contrário é a mentira. Para tu, o que ela é?

— O mascaramento de uma realidade com a criação de outra, ou outras.

— Frase D’arma! Entretanto, a realidade é apenas uma percepção, fruto de


nossos sentidos, colocados à prova pelas dimensões espaciais. Pelo universo sensível
que nos cerca. E, com o devido aproveitamento da questão, quais seriam as 4
dimensões espaciais?

— Largura, altura, profundidade e tempo. – defendeu-se rapidamente Hamlote.


– A Largura é nossa visão vertical, nosso horizonte. A Altura está presente naquilo
que almejamos, no que está além de nosso campo visual. Na Profundidade, consiste
nosso íntimo, aquilo que somos. Mas isso varia com o Tempo, com o decorrer dos
segundos, minutos, horas, dias, meses, sucessivamente.

— Muito bom. Entretanto, falta-te o prazer pelo embate. Sensibilidade e paixão


também podem ser armas.

— Assim como também podem ser um estorvo.

— Uma espada tem dois gumes; a palavra, vários significados.

— Estás recuando e perdendo terreno, bom mestre. – vangloriava-se Hamlote.

— Às vezes, para se ganhar, deve se perder. Responda-me, por acaso já lhe


ocorreu perguntar qual o propósito do significado?

— Acredito ser isso apenas mais um exercício de futilidade.

— Mas nunca questionou teus dias? Tuas noites? Os dias de tuas noites? As
noites de teus dias? Por que vives assim e não assado? – mestre Alonso tentava
encontrar uma brecha nos argumentos de Hamlote.

— Acredito que existem três categorias de homens: aqueles que apenas


pensam. Aqueles que pensam e refletem. E aqueles que pensam até a exaustão e a
loucura.

— Opinião um tanto radical, não acha?

— O que os livros fazem é ainda mais radical.

— Continue.

— Os homens são o mesmo homem ao lerem um livro. – o que Hamlote falava


era como uma estocada.

— Esclareça, por favor. – mestre Alonso parecia perder terreno na discussão.

— O destino de um passa a ser compartilhado por todos e tudo o que o autor


sofre, aquele que lê também sofre. Uma consciência coletiva.

— Não é possível comparar minha maneira de ser e agir com a de outro.


Mesmo que esse outro também fosse eu.

— Uma coisa é igualdade e outra é identidade.


— Reductio ad absurdum. – mestre Alonso aparentava perder, mas nunca se
poderia superar a experiência. – E, finalizando, o que somos?

— Somos um emaranhado de acontecimentos, um sistema de relações de breve


duração. A cada segundo somos algo diverso, diferente. Na verdade, não somos,
estamos sendo. Somos um feixe de múltiplos acontecimentos definidos por um nome
que nos é dado à revelia. E eis a questão: ser ou não ser.

— Minhas congratulações, jovem milorde. – comemorava mestre Alonso. –


Vejo que tens te dedicado cada vez mais no estudo da verdade e da razão.

— Verdade e razão são conceitos que só podem ser compreendidos ali-e-


quando como determinados sujeitos.

— Advirto-vos, jovem mestre, não confieis por demais nas revelações do deus
Hermes, pois, em diversos casos ele não diz totalmente o conhecimento. Algo sempre
permanece nas entrelinhas. A intempestividade é sempre própria da juventude.
Cuidado também com ela, pois cautela nos passos e gestos pode resguardar-te a vida.
E então, fizeste os exercícios que te sugeri?

— Sim, fiz. Contudo, após algumas cuidadosas de detalhadas leituras do


“Tractatus Orbinis Vertiginosus Temperatio Vedorum Redundatio Philosophico
Civilis Cognitio Artificiosus Urbanus et Vanus Urbs” que, à princípio, julguei
formais e enfadonhas, considerei-as bastante produtivas, pretendendo fazê-las em
outra oportunidade com um tanto maior de tempo e um pouco menos de cobrança.
Entretanto, confesso que alguns questionamentos foram levantados em minha mente
acerca do surgimento de algumas grandes civilizações.

— Para se entender este livro, tu deves te despir do manto da erudição e vê-lo


da maneira que é. Uma civilização não pode ser criada. Ela nasce do desejo comum
de todos os seus entes. A igualdade absoluta pode acarretar a monotonia absoluta. A
diversidade é essencial quando se erige uma coluna social baseada no desejo
planejado do todo, mas se o desejo de cada indivíduo é abolido, o que se cria é um
Nilo estéril, sem um deserto para alimentar. Porém, uma sociedade não pode
provocar escândalo ou assombro, pois, estas são obras próprias do Deus, e não dos
homens. Sim, pois se aquele que dá o alimento é importante, igualmente o é aquele
que o recebe e sobrevive dele. E o que recebe deve estar preparado para a verdade
indizível: ele próprio está destruindo seu criador. ―Quem quiser nascer tem que
destruir um mundo‖. Para que algo nasça, algo deve findar.

— Como uma serpente a morder seu próprio rabo…

— Bem colocado, jovem mestre. Não só as sociedades, mas tudo no universo é


formado pela destruição de algo. Evoluímos em cima dos destroços de nossos
ancestrais. Como no ditado, ―para se nascer de novo, é preciso morrer primeiro‖. É o
próprio efeito Fênix.
— Contudo, o ato de mudar, evoluir é determinado pela vontade daquele
interessado em sair de sua zona de conforto.

— Nem sempre mudança é uma questão de escolha. Por vezes, um turbilhão de


situações nos leva e impele a evoluir. – devaneava mestre Alonso.

— O vento ainda tem o poder para despedaçar moinhos, por maiores que sejam
suas pás. – devaneava mais ainda Hamlote.

— Às vezes, jovem mestre, o livre-arbítrio é uma mera questão de


oportunidade, um capricho dos acontecimentos. Touché!

— Ganhaste-me novamente, meu bom mestre.

— Uma vitória melancólica. Como diz o adágio: “Honra y provecho no caben


en un saco!”

— Mestre, com o perdão da palavra, o senhor está um tanto quanto Humanita


hoje.

— As batatas nem sempre se encontram entre os dedos dos vencedores.


Desconfio que o mestre Borba enganou-me em algumas de suas conjecturas –
duvidava mestre Alonso.

— Metafísico, não é?

— “Forse altro canterà con miglior plectro.” – mestre Alonso dizia


cabisbaixo.

— Não compreendo a razão de tuas palavras, meu mestre...

— Perdoe este teu humilde cavaleiro, jovem mestre. O simples fato de


passarmos várias horas de leitura ininterrupta leva-nos a acabar, por muitas vezes,
confundir realidade com as possibilidades de se construírem outros mundos, ou pior,
nos secar os miolos e o cérebro. – com ar melancólico, mestre Alonso continuava: –
Os livros são como necromantes e feiticeiros para os menos preparados. Cuidado,
principalmente com aqueles cuja leitura é repetitiva e o prazer vicioso. Estes, tornam-
se verdadeiras caixas de Pandora.

— Mas por que, mestre, fala-me tais coisas?

— Por que, em tua idade, eu era assim, impetuoso e cheio de orgulho. A


sabedoria nos torna simples, mas também nos torna grotescos. Todas as noites meus
fantasmas vem me visitar e, às vezes, converso com o coronel Aureliano Buendía,
homem de armas e poemas, valente guerreiro e líder de exércitos. No fim, talvez, eu
seja apenas um velho tolo com muitos anos de leitura e poucas horas de sono.
Imagino que meu cérebro tenha realmente secado afinal.
— Não diga tais palavras, meu bom mestre! Em todo reino não conheço pessoa
mais sábia que tu. Nem mesmo o filósofo e poeta Caaeiro e os estudiosos das
Academias de Sião conseguem se equiparar contigo em matérias filosóficas.

— Não diga isso dos mortos, pois não é cortês falar daqueles que abraçaram a
mãe-terra. — Eis que a consciência faz de todos nós a morada dos vermes. A
vida, jovem Hamlote, não se resume a estas vãs filosofias. Pense bem nisso.

Ato II
Caminhava pelos corredores da Mansão despreocupadamente.

Nada atormentava seu coração oco. Afinal, o estudo era um passatempo para a
mente e o amor não passava de uma rotina inexistente. Felizmente, permanecia
insensível a qualquer sentimento que perturbasse seus dias circulares. Nada deveria
incomodá-lo. Seu olhar deveria ser aguçado e atento, sua mente, prática e lógica. Seu
coração… coração? Para que servia isso?

Não imaginava porque, justamente naquela noite, saíra através do infindo


corredor numa vigília solitária sem rumo definido. Mesmo que ele não soubesse, o
universo ia cumprindo seu destino. Como no adágio, rio e canoa sabem mais que
pescador. Contudo, Hamlote não era um pescador. Era apenas um peixe. E a
metafísica para um peixe não ultrapassa o nadar, comer e se reproduzir. E com
Hamlote, ao menos até esta noite, não era exceção.

Esta noite, porém, era diferente.

O clima noturno mudara consideravelmente. Podia-se ver o céu negro


encoberto por cinzentas nuvens. A lua desaparecera, também escondida. Hamlote não
se importava.

Ao longe, o rapaz ouvia um ribombar, como o de tambores de guerra. Mas não


estavam em tempo de guerra. Provavelmente um treinamento. Nada que pudesse
assustar ou impressionar. Ele continuava caminhando a esmo através do corredor.

Não havia viv’alma por onde Hamlote passava. A Mansão era como uma
morada fantasma. Não se ouvia um murmúrio, apenas o silêncio se pronunciava. Seus
passos não produziam som. Nem mesmo sua respiração. Tal como o prenúncio de
algo. Quando tudo aconteceu, foi bem rápido. A mente de Hamlote só captou o
básico: a luz vinda de uma sala mais a frente que o cegou por alguns instantes.

Entrou numa ante-sala retangular, cujas paredes encontravam-se repletas de


vitrais. Hamlote não prestou atenção neles, tampouco no vitral abobadado existente
no teto. Se o houvesse feito, provavelmente, boa parte de suas perguntas haveriam
sido respondidas.

Estava agora, dentro de um quarto todo em mármore. Do piso ao teto. Sem


móveis ou janelas. Apenas as branquicelestes paredes, teto e piso, num vazio de
opressão. Hamlote adentrava sentindo o sufoco claustrofóbico. Olhou ao redor, mas
não viu nada diferente.

Reparou apenas num detalhe: no centro da sala existia uma peça de mármore
retangular maior que as outras. Aproximando-se com cuidado dela, ficou a fitá-la
calado.

À princípio, nada viu. Mas, como se o ar estivesse escrevendo no piso


marmóreo, as seguintes palavras surgiram em sua superfície:

Aqui jaz o imortal

Sir Hamlote I

“Quem descobrir o significado desses ensinamentos não provará a morte.”

Tais palavras causaram estremecimento na alma do jovem, pois ele sabia que
seu pai estava morto, mas nunca houvera visto o túmulo onde jazia. Num piscar de
olhos, surgiram dos outros ladrilhos fugazes imagens que apareciam e desapareciam.

Um frio na espinha atravessou-o, eriçando-lhe os pêlos, no instante em que


tocou o frio mármore da pedra solitária.

Imagens diversas assaltaram-lhe a mente. Vidas que poderia ter vivido e a


viver. Canções que ecoavam sem que houvessem sido cantadas. Lembranças de uma
vida que nunca existiu. Recordações de um futuro incerto. A cavalgada de mestre
Alonso num esquálido corcel através dos corredores da Mansão. As últimas estrelas a
caírem do céu noturno. Um esquecido sonho que sempre presenciava. Viu seixos.
Moinhos de vento e rebanhos de ovelhas. O Aleph e o Thau. O primeiro e o último,
que, ao final, eram o mesmo. Castelos e espadas. Jaguares e ruínas. Fadas feias
prevendo futuros enigmáticos. O fim da noite e o dia sem fim. Uma Árvore da Vida,
formada de madeira e sangue, ao lado de uma Árvore da Ciência, feita de metal, fios
e engrenagens. O cair das estrelas. Um vendaval cujo nome era Oblivion, ou
Maëlstrom, ou Esquecimento. O queimar de uma biblioteca e uma injúria
representada. A foice de Cronos. O fim da morte e uma morte em vida (uma morte
sem fim). Sentia que, naquele momento, vislumbrava todas as possibilidades do
labirinto. Sentia também, sem entender, que algo se libertara. Algo mais velho que o
homem e, ainda assim, contemporâneo seu. Um familiar estranho.

E, ao notar que finalmente a loucura tomava conta de seus pensamentos mais


íntimos, de seu ser, soltou um desesperado grito ouvido, sentido e proferido por cada
uma de suas versões.

— Acalma teu coração, meu filho! Existe uma infinidade tão grande de
enigmas no universo que tua sonhada filosofia torna-se efêmera. Abandone o manto
da erudição e venha ter como tu mesmo és. – disse um reflexo atrás dele que surgia e
ia tomando a forma de um senhor idoso trajando um terno negro. Uma imponente
bengala à mão deixava-o semelhante a um cavaleiro com a espada desembainhada. O
homem era deveras semelhante a Hamlote e o reflexo de seus olhos profundos, de
negro dentro de negro, transmitia a sabedoria de muitos séculos. Imagens de sonhos
absurdos assaltaram a mente já conturbada de Hamlote.

— Tuas palavras me são familiares… – Assustou-se com a visão. Poderia ser


uma visão do futuro! Mas não o era, uma vez que conhecia o homem do reflexo.
Acalmou, então, o espírito e levantou-se olhando para trás, dizendo com a voz ainda
espantada:

— Pai! Meus olhos me traem e minha razão zomba de mim! Como tal fato
pode ser possível? E como posso saber, aparição fantástica, que é realmente quem diz
ser? Afinal, não se deve confiar nem em fantasmas nem em sonhos.

— Conta-se que um pequeno peixe vivia só em uma pequena lagoa. – falava o


ancião fantasmagórico, com voz profunda. – Para ele, o mundo se resumia aquilo,
uma vez que ali nascera e nunca houvera saído de lá. Mas em seu íntimo, algo lhe
dizia que aquele mundo não era o dele. Havia algo maior para suprir seu espírito
aquático. No entanto, como poderia sair dali? Fora d'água os peixes não podem viver.

Um dia, como que ouvindo as preces do pequenino, os céus mandaram chuvas


de estrupício tão fortes que duraram 22 dias e 22 noites sem parar. E tão fortes que
fizeram sua lagoinha transbordar. Ele ainda tentou lutar, mas o poder fluvial das
águas era muito maior. Sem mais forças para resistir, o peixinho foi carregado pelas
torrentes. Quando a tempestade acabou, percebeu que não estava mais em sua
pequena lagoa. Aquela era bem maior. Tanto que ele nem conseguia ver sua outra
margem. Um mescla de medo e admiração tomaram conta daquele pequeno coração,
que mal conseguia manter-se em seu âmago. Finalmente a busca do pequeno havia
cessado. Finalmente ele conhecia aquilo que seu ser buscava. Nesse dia, afinal, o
pequeno peixe conheceu o oceano.

— Essa era a história que me contava quando eu ainda era uma criança… mas
porque, pai? Por que logo essa estória para comprovar suas palavras?

— Por que é chegada a hora de você sair de sua lagoa.

— O que quer dizer, meu pai? Eu não entendo…

— Algumas vezes, a verdade se torna mais presente nos enigmas. Mesmo que
eu esteja preso em um espelho e tudo reflita, ainda assim, continuo não enxergando
nada.

— Sei que algo acontece de enorme ao meu redor, mas não consigo enxergar!

— Seja o reflexo para entender-se a si mesmo…

— Pai, me explique o que acontece! Eu não posso lutar contra algo que não
posso ver ou tocar.
— Mesmo invisível e intocável, o ar continua enchendo nossos pulmões. – o
fantasma desaparecia e retornava, como uma névoa.

— O vento não pode ser domado… então siga-o… onde eu ouvi isto?

— Um pássaro fora preso numa gaiola desde filhote. Nunca conhecera o


mundo além de suas grades de metal. Tinha comida e água a hora que seu corpo
desejasse e em troca, só queriam que ele cantasse. Cantava realmente, mas uma
canção triste, um lamento sofrido e doloroso, enquanto olhava as outras aves livres no
céu. Pintassilgos e colibris, pombos araras, e até mesmo corujas e corvos eram
objetos de sua inveja pela liberdade. Toda e qualquer ave que atravessasse o céu a
fazer piruetas e abrisse bastante suas asas. Mas, principalmente, um lindo falcão de
penas branca e marrom de bico dourado e imponentes asas, que passeava confiante
pela paisagem azul, branca e verde. Nos dias de chuva, desejava estar do lado de fora,
para poder molhar suas penas com a água. No frio, queria poder bicar a neve. Quando
o dragão passava, queria refugiar-se sob a sombra de suas imensas asas. Enfim,
queria uma vida sem limites ou limitações. Apenas ele, suas asas e o céu azul a
contemplá-lo. Mas, o que tinha, no momento, era um ensaio de vida entre um círculo
de grades de ferro. Um dia, não sabia se por descuido de seus carcereiros ou por um
simples acaso, a porta de sua gaiola se encontrava aberta. Aproveitou a chance, como
poucos aproveitam o momento único de sua vida, e atravessou os limites de sua
prisão. Atravessou corredores e quartos, salas cheias de móveis e uma varanda repleta
de vasos com plantas, até passar pela porta que limitava aquela construção. Viu-se
então livre na imensidão azul. Cantou alto e vitorioso pelos livres céus. Um canto,
enfim, de felicidade e satisfação, uma mistura de comoção de vitória. Pôde
compartilhar com as outras aves a mesma sensação de liberdade. O não ter limites. O
fim de todo e qualquer grade, de toda e qualquer prisão, fosse ela de metal ou mental.
Pôde dar piruetas e volteios ao redor de si. Nada mais lhe prendia. Ele e o céu eram
apenas um. Fazia agora parte do infinito ciclo da vida. E, somente por esse detalhe, o
falcão, o belo falcão de penas branca e marrom, de bico dourado e asas imponentes,
aproximou-se dele, e em um ataque certeiro, rasgou-o ao meio e carregou-o em suas
garras para o ninho…

— A morte é melhor quando a tem-se livre. Era o que o senhor disseste… -


refletia Hamlote. – E como é possível? Como posso eu sentir tua falta, mas esquecer
o desenho de teu rosto, não recordar aquilo que meus olhos fitaram? Minha mente
está a pregar peças com meu juízo…

— A mera consciência do regresso a tudo desfaz… e a própria história já é


outra.

— Regresso? Como posso lembrar-me de algo que nunca aconteceu? Que


espécie de insanidade é esta que me toma possuir uma recordação inexistente?
— Um morto ensina um vivo, pois, ambos são reflexos do mesmo. O destino
de um homem é o destino de todos os homens. E o destino de todos os homens é o
mesmo destino de um único. O mestre e o aluno são, no fim, o mesmo homem.

— Um mesmo destino a todos os homens…?

— Entre o voo espiritual e o rastejar material, existe algo novo. Da luta e da


cópula entre a águia e a serpente, surge o dragão…

— Por que o motivo de mais esse enigma agora?

— O mundo não é um anfiteatro, filho meu. Nem tudo se encontra escondido


nos corredores da Mansão…

— O senhor insiste que eu me lembre disso… mas pai, o tempo fez-me


esquecer!

— O esquecimento é um mero artifício para que escapemos da verdade… - o


ancião agora desaparecia da frente de Hamlote e surgia atrás dele.

— Verdade? O senhor insiste com essa verdade! Onde está esta verdade…?

— Procure… procure-a dentro de si… seja o dragão… encontra teu oceano…

— Como a verdade pode estar dentro de mim se não sei do que se trata?

— Procure seu mestre e peça a ele as respostas que tu guardas dentro de si…
— o fantasma começou a desaparecer por completo

— Não se vá, por favor! Tem tanto que quero lhe perguntar. Tanto para lhe
dizer! — gritava Hamlote, correndo para perto da névoa fantasmal.

— Abandone o manto da erudição…

— Por favor, não se vá…

Infelizmente, já era tarde, pois o espectro já houvera desaparecido, deixando


Hamlote só no silencioso quarto azulejado.

Ato III

Em seu escritório, mestre Alonso divagava solitário. Podia se sentir como o


cavaleiro andante que conta aos jovens suas façanhas. Não havia coisa melhor. Sua
vida sempre fora assim, de sonhos. Delírios e recordações de uma época que nunca
veio a acontecer. Por trás da máscara do homem de letras, existia um sonhador
inconfesso, desses que, quando menos se espera, está lutando contra gigantes pelo
amor de uma donzela inalcançável.
— Nostalgia… suspirava —… permanecer aqui, preso neste tempo e neste
espaço enquanto o mundo gira e gira sem que se possa detê-lo. O mundo… o mundo
é tão vasto que por vezes aparenta ser pequeno. Em minha mocidade eu bradava aos
sete ventos ―Esperai por mim, dragões! Vou salvar-vos, donzelas!‖

Por ventura, é assunto vão ou tempo mal gasto o que se gasta em vagar pelo
mundo, não buscando recompensa deste, senão as asperezas por onde os bons sobem
ao assento da imortalidade?

Eis que é a consciência que faz de todos nós covardes. Eis o que estorva a
vontade e nos decide a suportar os males que conhecemos, com medo de
enfrentarmos outros que não conhecemos.

Contentamo-nos, então, por sonhar. Sonhar, talvez, é este o ponto: pois a ideia
de quais sonhos podem sobrevir no sono da morte, quando nos livramos dos estorvos
mortais, é a reflexão que nos detém, é a dúvida que prolonga por tão largo tempo a
vida dos infelizes. Agora digo, aquele que lê muito e anda muito, vê muito e sabe
muito. E aquele que reflete aquilo que lê e vê, entende além.

Sempre enderecei minhas intenções a bons fins, que são fazer o bem a todos e
o mal a ninguém. E dou graças aos Céus, que me dotaram de um ânimo brando e
compassivo, para o engrandecimento do gênero humano. Desgraçadamente, dotou-
me também da arma que é a mesma usada pelos togados e pelas mulheres, que é a
língua, arma que mata mais que exércitos e fere mais mancebos que todos os canhões
de toda a infantaria do maior dos batalhões.

Se, em meus míseros 3 minutos de poder me fosse concedido desejar algo,


desejaria um mundo de possibilidades… não a mim, mas à posteridade. Que a
juventude cante e sonhe no terreno inóspito e desgastado dos jardins do jamais. E que
o sonho humano faça florescer o mais belo jasmim nas paragens de asfalto do
coração.

Pelos sonhos caminhamos todos. Havendo ou não frutos para saborearmos. E


aqui estou eu, arremedo de cavaleiro e de alquebrado filósofo, a quem o céu e o
inferno incitam a loucura, desabafando um rosário de palavras vãs, como qualquer
lavadeira! Vergonha! Preciso usar o cérebro! Empregar minhas forças e meus miolos
de encontro com a razão e não entregar-me ao turbilhão de perversidades e vilanias
que o caos me tenta!

Num desses delírios, entrava Hamlote no escritório. Roupas amarrotadas e


cabelo despenteado, muito diferente do discípulo atento e comportado que era.
Alonso viu-o apenas de entreolho e não moveu um só músculo. Continuou na posição
que estava antes, com as mãos nas costas e as pernas um pouco abertas.

— Está atrasado, milorde.


— O que há por detrás dos muros da Mansão? — perguntou Hamlote a seu
mestre, num tom de ira e desespero.

— Por que a inquietação, jovem mestre?

— Acontecem-me coisas que desafiam a lógica.

— …por exemplo?

— Meu pai me apareceu no jardim e disse-me coisas que até agora me


incomodam.

— Seu pai foi um homem honrado e cheio de sensatez. Uma pena que esteja
morto… Contudo, não se deve confiar em tudo aquilo que os mortos nos dizem.

— Passamos a vida inteira estudando o que os fantasmas nos escreveram em


eras passadas. E acreditamos nisso. Mas não só. Tentamos viver nossas vidas olhando
para frente, mas caminhando para trás, repetindo viciosos e cansativos erros pátrios.

— O que mais lhe aconteceu, jovem mestre?

— Parece que o mundo é uma eterna repetição dos mesmos fatos. Por minutos,
parece que apenas eu enxergo a verdade! Todo o tempo parece um círculo eterno na
qual estamos fadados a repetirmos sem cessar!

— … você quer realmente saber?

— Do que eu deveria ter medo?

— … onde está teu livro?

— Meu livro? Qual?

— O Teu Livro!

— Na… biblioteca.

— Vá… que sua jornada seja branda. – e Hamlote saiu, mais que depressa,
atrás das respostas.

— Ah, jovem mestre, que a glória seja teu alimento e a luta, teu descanso. —
murmurou mestre Alonso.

Um jovem perturbado por enigmas e sonhos absurdos atravessou o imenso


corredor da Mansão, sem saber o que procurava, para enfrentar seu derradeiro destino
e sua inevitável verdade.

Ato IV
Mais do que nunca, o corredor era interminável. As portas pareciam haver se
multiplicado. Todas idênticas. Envernizadas, com os mesmos detalhes retangulares,
solenes e vitorianos. Sem nada que as diferenciasse. No corredor, a mesma luz
lúgubre dos candelabros dava um ar de repetição asfixiante e, por vezes, poder-se-ia
parecer que o teto e o assoalho eram o mesmo, graças a sua semelhança e, por isso,
deixando quem por ali atravessasse a impressão de que caminhava de ponta cabeça.

Estava de pé em frente a uma das estantes de livros da biblioteca. Nada o havia


atraído, nenhum volume novo. Nenhuma língua desconhecida. Deseja ter em mãos
aquilo que por tantas vezes já lhe pertencera: o livro. Lia todos os dias aquele livro,
mas não da maneira que leria quando o encontrasse. Achou-o entre um clássico e um
pós-moderno. Pegou-o com medo e ansiedade. Sentiu que pesava uma vida de
palavras. Abriu-o a semelhança de quem acorda de um sonho. Passou a folhear suas
amareladas páginas de sombra. Folheava-o de frente para trás e o inverso, mas não
sabia o que buscava. O mesmo livro, as mesmas páginas amareladas. A mesma
história. Lida e relida das mais diferentes maneiras. Por que o mandaram procurar
respostas nesse velho manuscrito?

Em seu rosto ainda rolava o salgado e o doce, o úmido e ácido de uma lágrima.
Seu coração batia com uma freqüência caótica. Eram tantas as sensações que
imaginara enlouquecer. Lembranças e sonhos esquecidos voltaram-lhe a mente e tudo
finalmente fez sentido. As brilhantes borboletas passeavam e dançavam ao seu redor,
mas não desapareciam nem tampouco lhe feriam. Finalmente, a tênue linha que
separava seu sonho e a realidade se rompera.

Um impulso que nunca sentira em sua alma o impelira a ler todo o livro de
novo e de novo. Sua vida em seus olhos literalmente. Não conseguia parar. Era tão
fantástica a verdade, que era impossível de aceitá-la. Relia o livro com a avidez de
um faminto. E era o que Hamlote era no momento. Faminto pela verdade. Faminto
por encontrar sua alma. Faminto por… si mesmo. E era isso que, a cada página lida,
perdia mais e mais.

E ele agora não possuía mais um nome, mas não se importava mais com isso.
Nomes eram para seres, e ele agora estava sendo eternamente. Morrendo e nascendo
a cada segundo. Um vento silencioso que sussurrava por entre seus cabelos falava em
sua alma. O vento que sempre estivera ali, dentro e fora dele. O atroz e impetuoso
vento da mudança, que não escolhia paragem para desfazer ou árvore para erguer. O
vento que atravessava o sonho e a vigília e os tornava um só.

Entendera finalmente o derradeiro caminho do herói. Não havia mais Bem.


Não havia mais Mal. Apenas ele, naquele instante eterno, fazendo parte da natureza
que crescia dentro e fora dele e a árvore que era um dragão a ignorá-lo em sua
esplêndida dança de sonho e eternidade.

Enquanto olhava para o céu, viu você vendo-o. E descobriu-se fazer parte de
algo bem maior do que imaginara. Viu as páginas de um livro sem final (de areia) e
os capítulos do livro de sua vida, mas não viu quem o observava nas sombras. E viu
que não estaria sozinho, pois enquanto você acompanhasse sua vida, ele viveria. Em
cada letra que fosse lida e cada página que fosse virada. Sim, ele sempre existiria.
Sempre completaria sua jornada. Em cada vírgula e em cada ponto final.

Neste instante, desapareceu. Juntamente com mestre Alonso, o fantasma de seu


pai, e a Mansão sem fim.

E talvez você também, estimado leitor, fosse um personagem integrante de um


livro infinito, cujas páginas ainda não estejam numeradas.

Ad infinitum.

Nota:

A obra acima possui mais três versões para o encerramento.

O final visto acima foi decidido pela própria narrativa. Contudo, as demais
merecem seu crédito:

Em uma delas, após a leitura do livro na cena final, é apresentado um corte na


cena, onde vê-se Hamlote lendo seu livro dentro da biblioteca, como no início do
conto.

Na outra, ele se descobre paciente de um hospital psiquiátrico. A Mansão é este


hospital, o quarto branco é a cela de Hamlote, seu mestre Alonso é, na verdade, seu
médico. E a aula é, inevitavelmente, sua consulta.

Há, também, a ideia de ele se descobrir em uma espécie de limbo e o tempo


repetir-se para Hamlote interminavelmente.

Em todas as versões, insistem três aspectos recorrentes: a expressão final “ad


infinitum”, que dá a ideia de repetição e o pai fantasma de Hamlote, que inspira o ar
de revelação e a própria ideia do livro que contém o universo.

Existe ainda uma versão da história que foi abandonada, em que multiplicam-
se os atos, incluem-se uma Ofélia (cujo nome é Helena), seu irmão Laertes (no caso,
Miguel) e um circo. Nesta última, toda a Mansão é transformada em um palco, e a
história de Hamlote, numa encenação.
Cartas ao Farol

“O sono já se fazia profundo na conturbada noite de Ana. Seus


olhos fechados se mexiam com frequência e seu corpo revirava-se na
enorme cama.

Com certeza, sonhava.

Sua mente se perdia longe do quarto, da cama, e da foto no criado-


mudo.

Passeava livre entre os meandros de um labirinto em espiral.

Um branco vapor escapava discretamente por sua boca, enquanto


sua respiração tornava-se mais e mais escassa. Até o fim daquela
noite, nenhum som ou movimento, nada sairia por aquelas paredes.

Entretanto, nada daquilo, o quarto, a cama, a foto e,


principalmente, Ana, estava lá. Na verdade, nenhuma das duas, a foto e
Ana, apesar de estarem ali, existia.

O passado…

… o passado sempre retorna…”

Escreve-se sobre o romance ―Cartas ao Farol‖, de Luck Barey, que ―à


princípio, nada parece fazer sentido‖. Corroboram com esse argumento, a falta de
definição (coletânea de contos, romance pós-moderno, antologia literária, devaneio
surreal) e o estilo vertiginoso. Por vezes, parece se estar lendo outro livro, quão
insólito é o jogo com os vinte e quatro protagonistas, entre eles um cadáver, que
disputam vozes e pontos de vista no decorrer dos vinte e três capítulos.

Inicialmente publicado sob a forma de fascículos num suplemento de um jornal


local, o livro foi classificado como ―uma cansativa experimentação do desgastado
Modernismo com o ilógico Surrealismo‖, ou simplesmente ―uma experiência
metafísica‖, segundo alguns críticos. Em seguida, apresentados num site da internet,
cujo endereço eletrônico não pôde ser revelado, na forma de textos para serem
baixados pelo visitante, juntamente com fotos das cartas, informações sobre as
personagens, e demais extras. Posteriormente, num esforço hercúleo em reunir de
forma lógica, ―no mínimo‖, o livro foi publicado, em pequena tiragem, na versão
encadernada, incluindo, ainda, além de diversos ―intermezzos‖ curtos (que
contextualizam cada capítulo para melhor entendimento por parte do leitor), um
suplemento denominado ―Pertences e afins‖, contendo textos e comentários diversos,
inclusive o ensaio ―Uma imitação de Deus‖, que inspirou o romance, além de
ilustrações de cada uma das supostas 23 cartas de Tarô no início de cada capítulo.
Grosso modo, ―Cartas ao Farol‖ relata uma reunião. Antigos amigos de
adolescência reencontram-se num desativado farol na cidade de Regência, ao norte
do Espírito Santo.

Precede-os uma foto e uma morte, como em toda reunião de amigos.


Acompanha-os, uma traição e uma tragédia. Neste contexto é apresentado o primeiro
protagonista, Jaime, um crítico literário. Homem culto, porém de brilho apagado,
simplista e pragmático, que recebe misteriosamente uma carta de uma amiga de
adolescência de nome Ana que ele descobre estar morta sob circunstâncias
misteriosas (existem teorias que vão desde o suicídio até o sacrifício por seitas
religiosas, incluindo a morte forjada). Junto à carta há uma foto que, num assombro,
mostra Jaime, Ana e mais outros amigos de adolescência, já adultos, numa situação
que nunca ocorreu. Sem tempo para digerir o primeiro susto, ele descobre haver se
tornado o herdeiro único da falecida amiga, num patrimônio que se constitui de
algum dinheiro em conta (que ao decorrer do romance, descobre-se não acabar, como
se alguém ou algo mantivesse a conta permanentemente), um velho violão e um farol
desativado.

Alimentado por uma curiosidade poeana, o homem segue até a cidade, que se
classifica como uma ―cidade pesqueira de interior‖. Dirige-se imediatamente à praia,
onde encontra o farol, o ciclope adormecido. Com mais cautela que medo, ele adentra
a construção que se revela uma torre. Como se já houvesse passeado por aquele lugar
num sonho, ele sobe as escadas – que possuem alguns degraus em falso – até chegar à
porta de um cômodo em que ele jura ter visto Ana em frente. Sem pensar – nem
imaginar que este será seu quarto futuramente – ele entra e vê, iluminada pela luz do
dia (não se diz se manhã ou tarde), a escrivaninha de Ana e, pelas paredes do quarto,
desenhos, gravuras e papéis, recortes de jornais e uma série de informações que
parecem ter o desejo de engoli-lo. Existem representações da Cabala, citações do
Alcorão, trechos de mitos nórdicos, a notícia do desaparecimento de quatro crianças
nas proximidades do farol, anotações sobre a Atlântida, mapas náuticos, e, o mais
fantástico: cartas de Tarô dependuradas num varal acima da escrivaninha. Os nomes
daqueles que estão na foto não-tirada também se fazem espalhados em pequenos
pedaços de papel espalhados pelo chão.

Jaime sai de lá com um pequeno caderno de anotações e as cartas de Tarô, que


parecem ter-lhe exercido um efeito hipnótico, talvez pelo inexplicável estado de
conservação em que elas se encontram. À noite, na pensão onde dorme, Jaime tem
um pesadelo, numa clara referência a ―Tábua Esmeralda‖, que diz ―que o que está
embaixo, é como é em cima‖. Nele, Jaime encontra-se de cabeça para baixo, numa
espécie de câmara de pedra circular, cujo teto abobadado também é de pedra. Ao
centro do lugar, ergue-se uma inexplicável estrutura metálica formada por arcos
concêntricos. Em seu âmago, existe um homem, também de cabeça para baixo, de
costas para Jaime. O homem é idoso, veste-se todo de negro e, de braços abertos,
segura firmemente em sua mão direita uma faca prateada enquanto pronuncia algo
numa língua que Jaime não entende. De repente, num gesto decisivo, o ancião enfia a
faca em seu olho direito. Inexplicavelmente (como em vários aspectos de um sonho),
quem sente a dor excruciante é Jaime, que cai gritando com as mãos no olho ferido.
Antes de desfalecer (se tal é possível num sonho!) ele vê a máquina mover-se num
ritmo louco e desenfreado, enquanto o homem, aproximando-se dele rapidamente,
sussurra-lhe algo como ―que a você seja dado este atributo‖ e fecha-lhe os olhos.
Jaime acorda logo após, com um nó na garganta e a dúvida se realmente acordou. A
porta infernal se fecha. E o primeiro episódio termina.

Na verdade, o primeiro capítulo (na obra, chamado de episódio) nada mais é


que um enorme prefácio, apresentado num ritmo tão atraente quanto tedioso. Os
episódios seguintes são compostos por um turbilhão de estilos literários e uma série
de fatos que vão do melancólico ao cômico e do verossímil ao absurdo. Mesmo que
prazerosa, a leitura do livro causa um cansaço de esforço físico devido suas
reviravoltas e, por momentos, a que sentir certo incômodo metafísico.

A seguir, são introduzidos os demais protagonistas: uma psicóloga bruxa, um


peão nostálgico, um escritor suicida e obscuro, uma promotora de eventos
ninfomaníaca, uma advogada que acredita mais na lei de Deus, uma arquiteta
perfeccionista, um médico distante, uma cozinheira alegre e uma modelo triste, um
sociólogo andarilho e dom Juan, um seminarista incrédulo, um ex-policial com
problemas de memória, uma professora conselheira, um triatleta índio e hindu, um
jornalista cínico, um mecânico alcoólatra, uma fotógrafa caleidoscópica, uma
secretária estabanada, um funcionário público visionário, uma banqueira
camaleônica, uma florista sem personalidade e uma maquiadora ladra, não
exatamente nesta ordem. Compondo um périplo de vinte e três episódios, por vezes
complexos, por vezes confusos e, todos, abrangendo diferentes facetas do espírito
humano.

A maior parte da ação ocorre dentro do farol, que se converte em casa, refúgio,
prisão, mas também, personagem silenciosa. Cenário que influencia nas decisões das
demais personagens. E, encontra-se respaldo para isso uma oração do primeiro
episódio: ―Dizem que o farol é mal-assombrado…‖ E não só pelos fantasmas já
existentes, unem-se a esses os fantasmas e demônios trazidos pelos protagonistas (e
os mesmos talvez também o sejam), como confirma o diálogo ―No porão moram os
fantasmas...‖ ―e no sótão, os demônios.‖. Mas o farol é ainda labirinto.
Diferentemente de sua conceituação, ele não serve como guia – tanto que seu foco
luminoso encontra-se destruído. Sua função é mais de perda que de encontro.

Cada um de seus cômodos convida à perdição. O farol-torre é o símbolo da


tensão entre a loucura e a razão. Retornando ao tema, o farol é um labirinto. Ou
melhor, desconstrução do labirinto. Um labirinto vertical. Um labirinto em espiral.
Uma encruzilhada cronológica, um ―local‖ – na falta de termo que melhor o defina –
onde qualquer acontecimento é potencialmente possível. Desde um eterno mesmo
dia, até o ataque de insanos fantasmas. Não sem uma referência ao hotel de ―O
Iluminado‖ de Stephen King.
Um emaranhado de teorias e referências inunda a obra. Pode-se ler sobre
mitologia, buracos de minhoca, lapsos de memória, teologia, mundos paralelos,
teorias conspiratórias, viagens no tempo, sociedades secretas, assombrações e cultura
inútil. A definição de romance é um tanto antiquada e, por vezes, fora de contexto. O
que o leitor encontra, na melhor definição, é uma ―miscelânea nonsense‖. Entre os
textos escolhidos no decorrer da narrativa, pode ser encontrado um ensaio, um conto,
dois poemas (um clássico e um pós-moderno), uma crônica, um monólogo, um
roteiro de teatro, uma carta, uma palavras-cruzadas, um diálogo, isso sem contar na
coletânea de pinturas, tornando o livro uma experimentação literária única.

A própria exploração do dramatis personae segue uma equação quase


exponencial. Todas as personagens pendem entre a luz e as sombras, tal um farol.
Resulta, então, o fato de não existirem heróis ou vilões na trama. Existem humanos,
atravessando um lado e outro a linha que separa o divino do profano. Decisões
inusitadas para situações extremas. Ao fim, os amigos de adolescência descobrem
nem mesmo conhecer a si próprios.

As cartas de Tarô surgem nessa intersecção. São elas a definir a personalidade


de cada uma das personagens. Direta e indiretamente. Como num jogo que se inicia.
Notadamente, tem-se uma quebra de clímax na passagem de um capítulo para outro.
Nega-se a linearidade e a simultaneidade. Os instantes podem ocorrer ao mesmo
tempo, sob perspectivas diferentes, ou um fato futuro pode ser apresentado antes de
um acontecimento presente. No farol, o tempo é caótico. Tal um jogo de cartas,
repleto de seus truques e blefes. Uma consequência de haver protagonistas variados.
Cada episódio reflete o ponto de vista e as inclinações da personagem central naquele
momento. Ao final, nota-se que os episódios não passam de variações de um mesmo
tema. Como peças de um quebra-cabeça que só pode ser visto do alto, sob visão
panorâmica. E, nesta situação, o múltiplo é, ao mesmo tempo, o uno. E o uno é
formado por múltiplos. Um eterno ciclo pessoal/impessoal,
temporal/atemporal/intertemporal. Como as várias facetas de um mesmo ser.
Existindo dois capítulos que dão pistas que corroboram com esta teoria. A primeira
pista pode ser notada, de maneira sutil em ―O Papa‖, quando Cristovão devaneia
entre os amigos que ―tudo o que ocorre, parece estar ocorrendo comigo‖. A segunda,
mais explícita, é mostrada em ―O Eremita‖, quando este diz que ―Talvez não
passemos de meras palavras errantes fruto de algum escritor mediano‖, mas esse não
a revela a ninguém.

Há, ainda, a exploração da hipótese de toda série de peripécias, aventuras,


desventuras, encontros e desencontros das personagens, não passarem de um sonho,
na qual Ana, que, ao invés de morta, dorme intranquila em seu quarto. Fantasia
dentro de fantasia.

E, já no último episódio – onde deveriam ser respondidas todas as perguntas –


um novo leque de indagações é aberto. O ser é o nada. Aquele que é, termina por
não-ser. Um turbilhão de memórias e sensações invade as páginas. Todo começo é
visto como um fim e todo final passa a ser um início. Como num jogo de espelhos,
cenas já ocorridas são apresentadas em outros contextos. A luz do farol é observada
sob outros panoramas. E um novo horizonte de eventos á apresentado.

Lendo o livro uma segunda vez, percebe-se o esforço dobrado por parte do
escritor. O primeiro, de criar uma história de rica alegoria e inovadora inventividade.
O segundo, construir um texto coeso e coerente, mesmo se apropriando de um tempo
inconsistente. O logro no primeiro é perceptível. No segundo, nem tanto. Seu
trabalho, se não absurdo, é quase inútil. O tempo transcorre e não transcorre. A
linearidade não o limita, mas o faz chegar ao extremo. No limite entre a sequenciação
e o anacronismo, peca por tentar tornar um redutio ad absurdum em um prospectus
aeternitatis. O livro passa a ser uma tentativa de propor uma ordem no caos que
compõe o espírito humano. As pontas soltas são visíveis. A fusão entre os tempos e
os espaços ocorre no interior de um farol de uma cidade pequena. Um quarto
confunde-se com outro. Uma personagem com outra. A luz confunde-se com a treva.
Chega-se um ponto em que não é possível perceber o quanto de misticismo adentrou
a literatura e o quanto a literatura se infiltrou no misticismo.

Assim, negar o tempo equivale a refutar a realidade. Entretanto, o que seria a


realidade senão um emaranhado de fatos e objetos perdidos no tempo? Se o tempo –
alicerce central da realidade – na verdade, não existe, a própria realidade que tocamos
– ou pensamos tocar – e vivemos – ou imaginamos viver – pode simplesmente não
passar de um instante perdido numa série caótica, sem princípio nem fim.

E, talvez, até mesmo o que acabo de escrever, também não exista.

NOTA

Sob caráter de ilustração, apresento a seguir o prefácio de ―Cartas ao Farol‖,


que atesta e comprova o nonsense e a desconstrução presentes já em suas primeiras
páginas:

―Prefácio

Inicialmente, devo dizer que este livro não tem início nem fim, para decepção
daqueles que desejam histórias sequenciadas e de desenvolvimento previsível.
Aqueles que o lerem sem o compromisso da retórica, apenas pelo prazer da leitura,
deverão achá-lo intrigante, satírico, autobiográfico, enfim, prazeroso.

Não pude classificá-lo como romance, uma vez que esse não possui os fatos
amarrados numa sequência temporal. Na verdade, os capítulos nada mais são que
contos reunidos e ligados por uma espinha dorsal condutora.

A própria ideia principal do livro nasceu de um conto nunca terminado.

Todas as personagens existem – ou existiram – e tive o prazer de conviver com


cada uma delas. A sua grande maioria está com os nomes trocados num intuito de
respeitar a privacidade de cada um. Outros, são o resultado da mistura entre as
personalidades de várias pessoas. Quanto mais complexo uma personagem, tanto
mais próxima da realidade ela se apresenta.

Regência e seu farol surgiram-me num sonho, quando ainda não me corroia a
ideia do livro. Os outros elementos (cabalísticos, sobrenaturais, estilísticos)
apresentaram-se à medida que a escrita fluía. Como parte de um sonho maior, que se
tem quando se está acordado.

Todo prólogo encerra, também, a conclusão. No nascimento deixamos


germinar a semente da morte. Mas a própria morte, em si, não é o fim. É o começo de
outra etapa, uma nova perspectiva. Pois, nunca termina. Nunca é o fim.

As lacunas que ficarem em aberto no decorrer da(s) narrativa(s) deverão ser


preenchidas pelo leitor. Nossas perguntas não podem ser respondidas por ninguém, a
não ser por nós mesmos.‖
Parábola de Cervantes e Shakespeare

Diz-se que Cervantes e Shakespeare, que em vida nunca


trocaram palavras e provavelmente não souberam da existência um
do outro, chegaram à Eternidade no mesmo dia. Lá se conheceram
e, à partir daí, não se separaram mais. Onde um fosse, o outro se
encontrava acompanhando, tal qual um irmão, uma sombra, um
reflexo.

Um anjo, muito intrigado com o insólito do fato, decidiu por


indagar o Senhor. E, em sua infinita sabedoria, Ele lhe respondeu:

―Não há mistério algum. Tudo se deve ao fato de a vida de um


completar a obra do outro. E vice-versa. Agora, cabe a ti julgar, o
quê de quem completa qual.‖
De Tudo um Pouco
“…enfiou-me o bico pela boca
até ao mais profundo do meu ser.”
Franz Kafka. “O Abutre”

Andava de ônibus como qualquer outro trabalhador da cidade que não possuía
carro. No entanto, não o era. Era aluno de uma dessas escolas técnicas que existem
espalhadas pelo país.

Diferente de alguns de seus colegas de classe, não possuía um pai rico para
levá-lo à escola. Ao contrário, o pai, pedreiro, passava por dificuldades para
conseguir serviço. Ainda assim ele, o filho, sentia esperança de as coisas melhorarem.

O coletivo estava relativamente cheio. Algumas pessoas se encontravam de pé,


mas nada que pudesse impedir as outras de andarem pelo ônibus. Estava sentado na
extremidade do banco voltada para o corredor. De seu lado direito, um homem
dormia encostado à janela. Em dado momento, uma mulher estacionou de pé ao seu
lado esquerdo. À princípio, não deu atenção a ela. Mas a curiosidade era seu maior
defeito e decidiu dar-lhe uma rápida olhada. Antes não houvesse feito. Passou a
viagem toda a observando.

Em sua aparência, deveria ter bem mais de 50 anos, todavia, conseguia ser
mais atraente que quatro jovens com metade de sua idade. Usava uma saia preta de
linho que ia até quase o joelho. Justíssima, dava o delineamento perfeito de seus
quadris. Vestia uma blusa de seda vinho, entreaberta, mostrando seus voluptuosos
seios. Tudo em seu corpo tinha o cheiro da mais pura luxúria. Em um de seus
ombros, uma dessas bolsas femininas, tiracolo, média. Podia-se perceber que estava
pesada. Tal fato era fisicamente perceptível ao frear ou acelerar do ônibus. Sua dona
era levada por ela e não o contrário. Não só com terceiras intenções, mas também
com espírito samaritano, ofereceu-se para levar sua bolsa. Ela, assentindo, entregou-
lhe-a educadamente.

A viagem fora seguindo tediosamente natural e o ônibus, cada vez enchendo-se


mais. Quando ele deu por si, não existia um único canto do ônibus que estivesse
vazio. Era quase impossível entrar ou sair do coletivo. Um minuto ou outro, ele
observava aquela versão mais velha de Vênus. Em um desses olhares, ficou por
instantes parado, levado por pensamentos obscenos, próprios da adolescência.
Imaginava camisolas de seda, quartos à meia luz, camas redondas e taças de vinho
bebidas vagarosamente. Enquanto isso, o ônibus ia lotando até mesmo em espaços
onde não poderia ser lotado. Para muitas pessoas, a vida é como o primeiro ônibus
que se vê. Entra-se imediatamente, sem esperar o próximo, mais vazio, ou algum que
a leve mais próxima do lugar aonde ela quer chegar. Existem ainda aquelas que
sequer sabem qual o destino do ônibus que tomaram. E passam a vida toda tentando
encontrar um ponto conhecido ou seguro onde possam desembarcar, mesmo
ignorando que nunca encontraram um local semelhante ao ponto de partida. E há
ainda, aquelas que sempre deixam passar o ponto onde deveriam ficar, tentando
encontrar um mais próximo, sem perceber que cada vez mais se afastam de onde
deveria ser seu destino. Isso sem contar naqueles que tomam o ônibus às pressas e,
após se encontrarem confortavelmente sentados, descobrem estar no ônibus errado e
revoltados brigam com o motorista, ordenando-o para que lhes deixe sair
imediatamente e fora do ponto. Para ele, entretanto, isso não passava pela cabeça.
Flashbacks pornográficos atravessavam sua mente. No momento em que retornou ao
banco onde sempre estivera sentado, percebeu que aquela mulher havia desaparecido.
Olhou no banco de trás e no da frente, mas nada. Levantou-se, procurou pelo ônibus
(que a essa altura da viagem já havia se esvaziado) e somente aí que percebeu. Ela
havia saído do ônibus, e pior, esquecido com ele sua bolsa.

Decidiu não entregar a bolsa para o motorista ou o cobrador, mas ele mesmo
procurar a mulher e lha entregar. Imaginou que a recompensa poderia ser bem
agradável. Escondeu a bolsa em sua mochila, no momento em que ia sair do ônibus.

Na sala de aula, estava estranho. Mais calado que o de costume. Tudo para ele
era denunciador. Mesmo não tendo feito nada de errado, sentia como se houvesse
feito. Sentia como se alguém fosse descobrir o que escondia em sua mochila a
qualquer momento. Desconfiava até mesmo da própria sombra. Se alguém sequer
tocava sua mochila, era motivo de escândalo, gritos apavorados, palidez no rosto e
suor frio. Como acharam que estivesse doente, mandaram-no de volta para casa.

Chegando a casa, correu para seu quarto sem falar com ninguém. Sua casa era
humilde, porém, confortável. Precisava de algumas urgentes reformas. Seu pai,
mesmo sabendo disso, nada podia fazer. Para se comprar os materiais necessários
para tal fim era preciso dinheiro, que ele não tinha. Vez por outra, se fazia necessário
concertar uma porta ou um azulejo solto.

Ficou o resto da manhã deitado em sua cama. Imaginando tudo o que ocorrera.
Como acontecera tão rápido. Entre um pensamento e outro, imaginava aquela linda
mulher entrando em seu quarto, usando um robe de cetim vermelho. Seus longos
cabelos balançando como ondas de um mar em chamas. Suas peças íntimas podendo
ser vistas através do fino tecido. Seus lábios convidativos lhe murmurando frases
censuráveis. Suas mãos a lhe acariciar as pernas e a subir por elas. Os deleitáveis
seios a mostra. A postura de fêmea no cio. O corpo estremecendo de desejo. O suor
morno da pele macia. Um delírio consciente. Um arrepio libidinoso. Como que num
estalo de lucidez, atentou para um importante fato: ainda estava com a bolsa dela em
seu poder.

Tirou-a de dentro de sua mochila e, pondo-a de pé em sua cama, ficou a


analisando.

Por fora, não possuía nada de especial. Nada que denunciasse a quem
pertencesse. Um nome, sigla. Nada. Era uma bolsa normal como qualquer outra. De
couro sintético, rosa, vulgar, igual, como uma bolsa qualquer. Imaginava o que havia
dentro, assim como as conseqüências de seu gesto. Poderia simplesmente entregá-la a
sua mãe, contar toda a história e dar isto tudo por encerrado. Mas era óbvio que não o
faria.

Imaginava que a mulher poderia dar-lhe uma recompensa a altura do feito. Ou


poderia ser preso como batedor de carteira, ou melhor, batedor de bolsa.

Passou intermináveis minutos refletindo e, ao fim, quando decidiu por abrir a


bolsa, a mesma já estava aberta em suas mãos.

Estranho reparar como as coisas podem parecer diferentes quando as olhamos


mais de uma vez. Assim era a bolsa. Por fora, aparentava ser menor do que por
dentro. Primeiramente, retirou de dentro dela um pente, uma lixa de unha, um vidro
de esmalte e um de perfume, que por sua vez, parecia ser bem caro. Encontrou
também uma pulseira de prata, uma caixa de fio dental, um pacote de drops, algumas
cartelas de analgésico – e as mulheres sempre as levam –, um lápis labial, um maço
de cigarros e um isqueiro, batom, pó de arroz, um livro de bolso, e todas essas coisas
que as mulheres sentem prazer em usar. Nunca entendeu o porquê de elas usarem
tudo aquilo.

Depois, começaram a aparecer as coisas menos convencionais. Um livro de


mandarim para iniciantes, uma colher de pau, um estranho lenço com caracteres em
japonês, uma fita em russo do último discurso de Lênin (soube disso por que na fita
estava escrito e por que fez questão de ouvi-la em seu rádio, mesmo não a
entendendo nada do que era dito) e um cd de Rita Lee, um dente de leite preso em um
cordão de ouro, cartas de tarô, um pacote de absorventes, um soutien e uma calcinha
limpos, uma meia-calça, um sabonete perfumado e mais um monte de coisas que
coisas que as mulheres tem costume de levar consigo. A pequena bolsa parecia não
ter fundo.

Retirou de dentro dela um livro antigo de bruxarias caseiras, uma caixa de


quebra-cabeças que além de parecer estar faltando peças, possuía muitas que não se
encaixavam, uma blusa de lã feita à mão, uma samambaia num xaxim, uma raquete
de tênis e uma bicicleta ergonômica, um pote de vidro com algo que parecia ser um
filhote de morcego morto, uma rosa sem perfume, um retirador de caroços de
azeitona, formigas aos montes, um travesseiro em forma de coração, uma boneca de
porcelana e uma que aparentava ser de vodu, um pé de coelho, uma porção de carnês
e boletos para serem pagos, uma vassoura de capim, um estranho relógio com as
horas de diversos países e uma clepsidra, uma sombrinha, cartões telefônicos usados
e cartões de crédito diversos, uma caixa de grampos de cabelo, uma carta de amor
anônima, borboletas empalhadas, vários pares de sapatos de salto alto, fotografias
antigas, um robe de cetim vermelho e um vestido de crochê, uma coruja que saiu
voando da bolsa no momento em que ele tocou sua asa, recortes de revistas com
atores e cantores famosos, um bule de café vazio, lentes de contato castanhas e óculos
escuros, uma estátua de sto. Antônio, um aquário cheio de água com peixinho
dourado dentro, e ele não parecia estar nem na metade de seu inventário.
Já estava cansado quando, logo após retirar um carretel com linha e agulha, um
ovo de fênix, um punhado de barro, um pneu e um macaco hidráulico, diversas velas,
alguns talheres e uma porção de pequenas estatuetas de anjos, sentiu algo bem maior
tocar sua mão. Algo realmente grande. Diferente da colcha de retalhos ou do chuveiro
que retirara antes. Não, era diferente de tudo o que retirou até o momento.

Era algo com cabelos. Mas não era uma peruca. Cabelos que decidiu puxar.
Delicada mas insistentemente. Vieram com facilidade, juntamente com a cabeça, o
pescoço, o ombro e todo o resto do corpo que os acompanhava. Era uma jovem que, à
primeira vista, aparentava ter a mesma idade que ele. Uma jovem nua. E a
semelhança com a dona da bolsa era incrível. Era como se fosse a versão mais jovem
desta. Tudo nela era idêntico, com exceção da idade, é obvio. Os cabelos, o rosto
rejuvenescido, o corpo bem delineado. Olharam-se calados, ambos assustados. Coube
a ela quebrar o silêncio, pedindo para ele lhe arrumar algumas roupas.

Perguntou depois, enquanto se vestia, se ele havia roubado a bolsa da mãe dela.
Ele prometeu contar-lhe toda a história se ela lhe respondesse o que ela fazia em
lugar tão insólito. Ela assentiu em responder, depois que ele lhe desse algo para
comer.

Após ele lhe levar comida no quarto, ela lhe disse que sua mãe – que ela
revelou ser descendente das sacerdotisas atlantes antediluvianas – era muito ciumenta
e, por isso, sempre a levava junto dela. Desde que ela completou seus quinze anos,
sua mãe a colocou dentro daquela bolsa, só deixando-a sair em alguns eventos, para
tomar banho e outras coisas. Achava até divertido o fato de andar junto da mãe para
todo lado, mesmo que fosse dentro de uma bolsa. O único problema era que sua mãe
possuía um enorme defeito: ser muito distraída.

Lembrou-se de uma vez em que sua mãe esquecera a bolsa num aeroporto e ela
fora parar na Arábia Saudita. Passou seis meses servindo de dançarina para um sultão
até sua mãe lhe encontrar. Em outra, passou uma semana presa numa tumba,
dormindo ao lado de um tio seu que falecera. Seu pai já havia sumido há muito
tempo, perdido talvez em alguma mala, nalguma viagem de férias.

Contudo, ele percebera que ela, apesar dos pesares, era belíssima. Uma beleza
lapidada, moldada, batizada na água, no fogo e no sangue, mesmo ele não sabendo o
significado profundo disso. Ele, então, contou-a que havia se oferecido para segurar a
bolsa da mãe dela em um ônibus e ela fora embora. Procurava dentro da bolsa algo
que pudesse pô-los em contato. Nunca esperava encontrá-la. E ela, agradeceu a Deus
por sua mãe não tê-la esquecido em algum guarda-volumes de supermercado, outra
vez.

Ela – que lembrava tudo que lia, via ou ouvia – sabia de cor o número de
telefone de sua casa, e até o endereço. Mas ele, fazendo uso de seu senso de
oportunidade, deu-lhe a ideia de saírem, para que ela se divertisse um pouco antes de
voltar para casa. Ela, surpresa pela inesperada proposta, aceitou alegremente. Havia
um problema apenas: como tirá-la de sua casa sem que a mãe dele percebesse? Muito
simples! Ela, muito rapidamente entrou em sua bolsa e ele, colocou-a dentro de sua
camisa e vestiu um casacão para que sua mãe não percebesse e saiu de seu quarto.

Andou pela casa na ponta dos pés. Quando passou pela porta da cozinha, a mãe
o chamou. Um calafrio correu sua espinha e, pálido, perguntou gaguejando à ela o
que queria. Ela pediu ao filho para jogar o lixo fora quando saísse. Mais que
depressa, ele, abraçando a bolsa em seu peito, pegou a sacola e correu para fora de
casa. Jogou o lixo e, escondido na varanda de casa, abriu a bolsa para que a moça
saísse. Ela pegou dentro do objeto um pente, um espelho e um estojo de maquiagem,
com a destreza de quem conhece cada recanto da superfície interna da bolsa. Ele
reparou que ela usava roupas diferentes das anteriores.

Saíram e andaram pela cidade, que ela não conhecia, mas fez questão de
conhecer. Todas as ruas, casas e pontos turísticos. Terminaram seu passeio na Praça
dos Namorados, sentados num banco chupando picolé. Ela, reparando em tudo, olhou
um casal de namorados que passava por eles. Comentou que nunca havia saído com
um namorado antes e ele, fazendo mais uma vez uso seu senso de oportunidade, disse
que poderia fingir ser seu namorado. Ela concordou, porém, disse que ela é quem
deveria fazer o pedido, pois estava cansada de ser dominada e que, ao menos uma
vez, mesmo que fosse de mentira, gostaria de tomar as rédeas de seu destino. Um
namoro de mentira que trouxe as mentiras rotineiras. As mentiras das quais se está
habituado a viver. As mentiras gerais dos relacionamentos. As juras mentirosas e os
risos dissimulados. Um passeio de mãos dadas e um beijo mentiroso. A noite fora
boa.

Chegaram a casa dele e, ao contrário do que se pensaria, ela não entrou na


bolsa. Entraram de mãos dadas casa adentro. Primeiramente, para surpresa da mãe
dele, ao vê-lo entrar em casa com o que parecia ser uma namorada, e depois, para
surpresa deles, ver que a mãe dela os esperava sentada no sofá da sala.

Não foram necessárias explicações, uma vez que se sabe, as mães possuem um
sexto sentido no que diz respeito aos filhos. Olharam-se e a filha, lacônica, pediu a
ele se podia utilizar seu quarto. Enquanto elas iam para o quarto, percebeu que eram
idênticas. Gerações de uma mesma mulher. Faces atemporais de uma mesma moeda.
Reflexos de um espelho inverso. Uma era um pouco de tudo na outra, do mesmo
modo que a outra era de tudo um pouco de uma. Faziam parte uma da outra. O
nascente e o poente eram apenas pontos de vista diferentes do mesmo fenômeno.
Verões diferentes de uma única mulher. E toda mulher tem seus verões. E, também as
demais estações. Naquele instante, em que uma estava ao lado da outra, percebeu que
não eram mãe e filha, mas sim a mesma mulher. E viu também o quanto ambas eram
extremamente lindas. Lindas na semelhança e na diferença.

Os minutos rolaram sobre si mesmos enquanto aquele paradoxo se realizava.


Paralelas a se tocarem. A porta do quarto se abriu. Saíram dele abraçadas, em
silêncio, como de costume. A mãe pediu desculpas pelo que elas haviam causado. A
mãe do rapaz, mesmo não entendendo nada, aceitou as desculpas. Ele apenas olhou
para a filha e esta lhe disse: ―Até algum dia…‖ As duas saíram pela porta sem mais
palavras.

Depois do ocorrido, ele voltou à sua vida de sempre. Da casa à escola. Mas o
beijo de mentira ficara gravado em sua boca.

Os anos se passaram. Ele terminou o ensinou médio e ingressou na


universidade. E o futuro técnico tornou-se filósofo. Um dia, em uma de suas viagens
de ônibus, algo de inusitado lhe ocorreu. Estava lendo distraído (não mais olhava para
quem entrava ou saía do ônibus), mas viu um vulto familiar passar por ele, sem
percebê-lo. Ela ficara a uns quatro bancos atrás dele e estava de pé. Usava aquela saia
preta justíssima, aquela voluptuosa blusa vinho entreaberta e aquela bolsa tiracolo.
Mesmo não vendo seu rosto de frente, sabia quem era. Contudo, aquela jovem tinha
algo que mais lhe lembrava sua mãe. Um simulacro juvenil. Em nada lembrando a
moça que ele vira saindo da bolsa, mas também lembrando. Era outra. Uma nova
mulher. Uma combinação das duas. Uma amálgama. Mas ainda assim, a mesma.
Percebeu também que, quando alguém se ofereceu para segurar sua bolsa, ela
recusou. Disse que não era tão pesada. Ele pensou, os pais cuidam dos filhos, mas
chega um momento em que os filhos cuidam dos pais. Alguns bem melhor até que os
próprios pais.

Ficou olhando-a por instantes, imaginando o que aquela mulher passara para se
tornar o que se tornou. Quando ela percebeu que estava sendo observada, virou-se
para o lado e ele, por medo ou vergonha, virou-se de frente e encolheu os ombros,
quase se escondendo no banco. Em vão, pois ela o vira. Mas também nada fizera. Em
seu silêncio, em sua omissão (omissão mútua), percebeu o que ele fizera.

Ambos sabiam o que aconteceria ao se encontrarem. Ele deu a ela um amor


livre. Uma liberdade como em poucos momentos de sua vida provara. A liberdade
para vir. E, quem sabe no futuro, se encontrarem em outra viagem e então, ele possa
segurar sua bolsa mais uma vez. Afinal, uma parte dele também estava dentro dela.
Distrações de uma senhora ao banheiro

Obs.: Espero que as mulheres não me considerem machista com este meu relato,
principalmente as senhoras, que são um possível alvo dele. Antes de qualquer coisa,
gostaria de esclarecer que o que narrarei a seguir me foi contado por um amigo e
poderia ocorrer a qualquer um. Até mesmo com um homem.

As mulheres podem ser muito despreocupadas, principalmente ao banheiro.

O cenário da estória poderia ser qualquer um. Qualquer praça, parque ou lugar
público destinado ao entretenimento da família.

A família que a protagoniza poderia ser até mesmo a sua. Mas, felizmente, não
é. Pois, como disse, quem me contou essa estória foi um amigo, entre uma piada e
uma curiosidade, numa dessas conversas em ônibus, bares e locais similares. Mas não
irei me estender mais nos pormenores de como consegui a situação a ser descrita.
―Vamos aos finalmentes‖ como já dito por um personagem por mim esquecido.

A dita família, como já dito, é uma família normal, composta por dois filhos,
uma menina de cinco anos e um menino de dez, um pai e, como toda família
tradicional, uma mãe. Divertiam-se num desses feriados ou num desses sábados ou
domingos. Não se preocupavam com o horário, apenas com a diversão. O pai, como
todos, parecia possuir mais de cinco braços, carregando brinquedos e doces comidos
pelos filhos. A mãe, sempre prestativa, vigiava todos os passos das crianças que não
se preocupavam com mais nada a não ser brincar. Um acidente, porém, muda os
planos. Outra criança, também preocupada somente com a sua diversão, tropeça e cai
com seu sorvete na roupa da mãe da nossa família. A criança corre sem se preocupar
e desaparece no meio de multidão. A família fica estática, pensando no que fazer,
mas a mãe, sempre prática, vai mais que depressa procurar um banheiro para se
limpar. A família decide ficar do lado de fora. Ela entra no cômodo e, após se limpar,
decide também se arrumar, coisas de mulher. Ela olha os ladrilhos ao seu redor, cor
de lua, e se lembra de sua infância. Os tempos na casa da avó. Ao lavar as mãos ela
se recorda dos passeios na chuva que fazia quando menina. As amigas da escola. Sua
face no espelho está mais velha. Ela vê suas rugas e se lembra do casamento. O
nascimento do filho. A mudança para outra cidade. O nascimento da filha. O
falecimento da sogra. O primeiro braço quebrado do filho. As brigas e as alegrias. As
derrotas e as conquistas. Tudo se passou por seus olhos apenas no descer da água
pelo ralo da pia. Um estalo que lhe fez relembrar que a vida é curta e que é muito
bom vivê-la. Então, ela lembra-se que a família estava do lado de fora lhe esperando.
Sai rápido, com medo de o marido lhe dar uma bronca por ela haver demorado tanto.
Ao sair, quem lhe espera são um calvo senhor idoso, uma moça de mais ou menos
quinze anos e um rapaz com uma moça ao seu lado e um bebê no colo. ―Puxa, mãe.‖
Diz o rapaz, com um sorriso nos lábios‖ Dessa vez a senhora conseguiu se superar.‖

Bom, espero que ninguém se ofenda. Cabe a você o julgamento.


Depois da queda...
“É por que merecera também a
maldição de minha amada ser-me
roubada na hora de fazê-las?”
Edgar Allan Poe, “Ligéia”

Descendo rapidamente pelas enormes escadas da mansão Locke, a srta.


Granger demonstrava sua pressa em chegar à sala de estudos de seu patrão. Ainda
sofrendo os efeitos da cena que acabara de presenciar, ela, em sua delicadeza de
corpo, mostrava-se mais forte do que aparentava. Chegando à porta da saleta, antes
de entrar, acalmou o corpo, controlando o nervosismo que poderia lhe acusar. Usando
um de seus métodos de dissimulação, entrou na sala. Fria, seca e ereta, com seu
enorme vestido preto, que dava para quem quer que a visse a impressão de estar
flutuando, aproximou-se de seu patrão, de costas sentado em sua poltrona preferida.

Ele, L. Locke, sempre compenetrado em seus estudos e alheio ao mundo,


sequer notou a chegada da governanta. Ela, aproximando-se, com a voz suave, que
sempre fora sua marca, disse:

— A sra. Locke encontra-se no quarto aos prantos. – dando as costas e saindo


do recinto sem mais palavras.

— Obrigado, Ofélia. – disse ele, distraído. — Eu já vou… Peraí! Mas como?


Eu nem mesmo sou casado! – fechou o livro que estava lendo e rapidamente dirigiu-
se para os andares superiores da enorme casa.

Subiu as escadas circunflexas da mansão, que pertencia a sua família há


décadas, em rápidas passadas na direção dos quartos. Como que por intuição, entrou
no terceiro quarto.

Ao entrar no mal-iluminado quarto viu aquela bela mulher deitada na cama, e


encontrou-se pasmo. Ela continuava bela, com seus longos cabelos ruivos, alva, em
seu vestido amarelo, mesmo demonstrando haver chorado muito.

A visão daquela mulher dormindo causava-lhe estranhas sensações. Sempre


fora assim. O calor no peito, o frio na espinha, a sensação de estar engasgado. A sra.
Peer sempre lhe dava essa impressão.

Ao seu lado um bilhete amassado. A única coisa que ele ainda não entendia era
o fato de sua governanta tê-la chamado de... sra. Locke. A não ser que…

Pegou o bilhete ao lado do braço rosado dela, delicadamente sem acordá-la, e


abriu-o. Nele, iam escritas palavras borradas pela tinta da pena, demonstrando o
nervosismo daquele que o escrevera.
Querida Milady,

A missiva que levas em mãos no momento, é mais um desabafo do que um


pedido de desculpas. As verdades que a vida nos impõem levam-nos à atos
desesperadores.

Ainda me pergunto por que tu fizeste o que fizeste. Mesmo assim, perdoo-te e
entendo-te.

Mesmo que mereças, não irei te difamar, apesar de ser o ato mais correto, mas
não o de um verdadeiro cavalheiro. Talvez até demais para uma meretriz traidora
como tu foste.

É verdade o que muitos poetas e loucos dizem, que “não escolhemos os


caminhos do coração”. Não escolhemos a quem devemos nos apaixonar. Eu não
escolhi, tampouco tu escolheste. Apenas fomos levados por nossos impulsos. Eu pelos
meus, tu pelos teus.

O amor é o pior dos venenos que alguém pode estar vitimado. Espero
realmente que sejas feliz ao lado do cão que escolheste.

Só aviso-vos que, quando leres esta, não estarei mais convosco,


compartilhando do mundo dos vivos.

Daquele que muito lhe amou

Stephen G. Peer

— Fraco… – murmurou entre os dentes, dobrando novamente o papel e


colocando-o sobre o criado-mudo. Imaginou o que faria agora, com aquela musa de
outros escultores deitada em sua cama.

Enquanto a admirava, lembrou-se das muitas outras vezes em que se


encontraram. Quando se conheceram na faculdade de New Horizon. Ela, lembrava,
era muito recatada. Linda, mesmo sem o saber. Fora aquela beleza não percebida que
chamara a atenção de um homem tão excêntrico.

Sempre fora um pária entre os seus colegas, no entanto, com ela era diferente.
Graças a isso, criou-se entre eles uma leve e tênue, porém, agradável amizade. Ele, o
sonâmbulo, a viajar a lugares onde as mentes mortais não ousavam ultrapassar. Ela,
exata, pragmática, de temperamento forte. Os contrários a se atraírem.

Ainda assim, o tempo cuidou para que se afastassem.

Nunca se esquecera do dia em que ele, entre um devaneio e outro, com os


olhos do artesão a vislumbrar a perfeição, disse-lhe:
— Um dia você será minha!

Como previsto, ela simplesmente deu-lhe um tapa no rosto e saiu esbravejando


impropérios sobre sua pessoa. Depois deste incidente, vários anos se passaram sem se
haverem visto.

Encontrou-a novamente meses atrás, quando retornou de suas viagens pelo


Oriente, para finalmente cuidar dos negócios da família. Recatada e linda como
sempre. Para surpresa dela, ele havia herdado o título, as empresas e a fortuna do
falecido pai. Para surpresa dele, ela havia se casado com um rico empreendedor, o sr.
Peer.

Tal detalhe não o impediu de voltar a entrar em contato com a jovem Lady,
agora uma senhora respeitável.

Ao contrário do que se pensava, não foi a fortuna repentina e a tomada dos


negócios da família que o tornaram responsável. Continuara tendo o mesmo
temperamento excêntrico de anos anteriores. A andar com as roupas desalinhadas e
os gestos inconsequentes (pelo menos para ele, até o momento!).

Havia visto ela e o marido em alguma das constantes festas em que era
convidado ou que promovera.

Em uma daquelas noites, conversaram longa e avidamente. Ouvia atentamente


as histórias que o marido dela contava. Não sabia muito de seu passado. Apenas um
boato ou outro. Nada de concreto. Parecia haver criado sua fortuna do nada, através
do trabalho de suas próprias mãos. Não era membro da fidalguia, uma vez que era
órfão (pelo menos era o que diziam, mas nada confirmavam). Ainda assim, agia
como um verdadeiro cavalheiro. Conversava com Locke sobre os assuntos gerais à
mesma altura. Se fosse em outra realidade, poderiam se tornar amigos. Até o
momento em que o sr. Peer, muito requisitado, abandonou os dois amigos de escola
para atender alguém.

Viram-se sozinhos. Locke e a agora sra. Peer. Tentaram desconversar, criar um


novo assunto. Porém, o peso do tempo fora mais forte que ambos. Perceberam-se
discutindo sobre o passado. Entre uma frase e outra, ela lhe revelara que ele era o
motivo pelo qual se casara. Nunca casaria com um nefelibata, foram suas palavras.

Quanto às cenas que se seguiam depois é preferível a censura. Em almas como


a do sr. Locke, a realidade por diversas vezes mistura-se ao delírio. O único ato
realmente concreto fora um beijo. No entanto, não um beijo comum, de dois amantes
inconfessos. Um beijo de bocas, línguas, desejos e espíritos. De corpos que se
entregavam, de almas perdidas a se procurarem. Um beijo libertando toda a incontida
volúpia de anos. Era mais que um mero beijo. Era um ato pré-sexual. Aquilo, com
certeza, ficaria tatuado na vida, no espírito e na pele de ambos.
As semanas seguintes foram de uma tortura que lhe rasgavam o coração. Em
seus negócios, permanecia mais distraído que o costume. Apenas ela, o corpo dela,
cheiro dela, ocupavam-lhe os pensamentos. Somente um fato chamava-lhe a atenção:
o cinismo de sua governanta tornara-se mais pungente. Não sabia o porquê, mas a
aspereza da srta. Granger incomodava-o e muito.

Ignorava os fatos que resultaram no suicídio do sr. Peer. Pensava apenas no


que faria com a linda Lady Peer, a pedir-lhe asilo em sua casa.

Permaneceu sentado a noite toda a olhá-la. Taciturno a observando. No canto


da porta, a srta. Granger analisava a cena seus olhos vibóreos.

A manhã se fez e com ela, a promessa de um futuro. Lady Peer acordou


sentindo o cheiro da grama úmida na mansão Locke. Aquele cheiro lhe trazia caras,
porém dolorosas lembranças. Levantou-se da cama, passando a mão no rosto,
tentando apagar as marcas da noite passada. Olhou o cômodo ao redor. O desespero a
levara para aquele lugar. Por que sentira o desejo de encontrar aquele homem que
tanto a fizera sofrer?

Desceu lentamente as escadas daquela mansão que parecia assombrada.


Quando acordou, estava sozinha, mas sabia que alguém passara a noite a observá-la.
Sabia que era ele Locke. As cortinas da casa, sempre semicerradas, davam ao lugar o
tom de nostalgia próprio das casas mal-assombradas. Se prestasse atenção, poderia
ver algum fantasma a passear pelos corredores sombrios.

No canto da sala onde ela acabara de entrar, um em especial, sentado em uma


poltrona via-a sem sequer piscar.

— O nascer do sol é sempre triste... _ disse Locke a Lady Peer enquanto esta
passava por ele sem o notar. O fato de ouvir aquelas palavras arrancou-lhe o sangue
das faces. Nem mesmo quando viu que o emissor delas era ele. Ainda sentia calafrios.
Ele levantou-se do pequeno sofá e, parecendo passear por entre as sombras,
aproximou-se da jovem senhora.

— O que pensou que pudesse acontecer? — perguntou Locke, ainda entre


sombras.

— Eu sequer sei o que pensei ontem... – murmurou ela.

— Eu posso ser um monstro, mas nunca um desse tipo.

— E quanto a Stephen? – perguntou ela, cabisbaixa.

— Mandei dois homens o procurarem. Encontraram-no na ponte que divisa a


cidade.

— E ele estava...? – disse ela, sentando-se.


— Sim... O corpo boiava no rio, com uma faca de prata presa ao peito. Eu sinto
muito...

— Não sinta por ele. O lugar dele deve ser melhor do que o nosso. Ainda
estamos presos aos caprichos do corpo.

— Meus pêsames. Pode ficar aqui o tempo que quiser. – disse ele, pondo suas
mãos sobre as dela. – Ofélia!

A srta. Granger aproximou com seu jeito habitual, como se flutuasse pela casa.

— Ofélia, cuide para que a estadia de Lady Peer seja a mais agradável possível.
– disse Locke.

— Eu não sirvo meretrizes. – murmurou a srta Granger, retirando-se da sala do


mesmo modo como chegou. Logo atrás vinha seu patrão, bufando como um animal
furioso, pronto para o derradeiro ataque.

— Como ousa falar assim com milady?!

— O senhor pode até me obrigar a servi-la. É meu patrão e tenho consciência


disto. Entretanto, não pode me forçar a gostar de uma mulher que levou homem tão
honrado a um gesto tão louco. Será que o senhor não vê que ela lhe fará o mesmo?
Será que está tão cego de paixão assim? O destino dessa traidora é amargar entre as
almas errantes. É queimar acorrentada nos abismos do mais profundo dos infernos!

— Não quero ouvir mais nenhuma palavra! Não entendo seu ódio por lady
Peer, mas não tolerarei este comportamento. Quero que ainda hoje esteja com as
malas arrumadas e até o cair do sol, tenha saído da mansão!

— Como quiser, senhor. Se prefere uma rameira a uma serva fiel, nada posso
fazer. Só advirto-o, a escolha foi sua e não terá mais volta. – Ela virou-se e dirigiu-se
ao seu quarto, para arrumar suas coisas, porém, antes, virou-se silenciosamente para
Locke e disse:

— Cuidado, senhor. Pode ser a segunda vítima dos erros dessa mulher. – Sem
dar chance ao homem de responder-lhe, entrou em seus aposentos.

Ele dirigiu-se ainda tenso para a sala. Andava entre as sombras, evitando que a
luz do sol tocasse sua pele cinzenta.

— Desculpe a srta. Granger. Não sei o que deu nela. – disse à jovem viúva.

— Não sei por que mas, ela me lembra alguém... –murmurou lady Peer.

— Não se preocupe. Ela não mais lhe importunará.

— Mas...
— Os outros empregados lhe servirão no que precisar. Fique realmente à
vontade. Irei descansar um pouco. A luz do dia me cansa.

— Desculpe os transtornos que estou lhe causando.

— É um prazer para minha pessoa servir-te. Agora, pense no que fará agora em
diante. – Locke, ainda na penumbra, subiu as escadas lentamente, como se o dia lhe
sugasse as forças.

Ela permaneceu na sala sentada por muito tempo. Não imaginava o que poderia
fazer de agora em diante. O marido morto. A entrega inconsciente a um louco
fantasma do passado. Tentava reconstruir seu castelo de areia. Em meio às ruínas
tentava se reerguer. Mesmo sabendo que a base de seu mundo se manteria abalada.
Depois da queda nada mais é como antes. Mesmo o que é construído em cima. A
semente da entropia mantém-se entranhada no mais profundo do ser.

Tentava agarrar-se em qualquer coisa que a mantivesse sã. Pensava em como


iria avisar à família do marido sobre ocorrido. Não fazia ideia de como, uma vez que
não conhecia nenhum parente dele, uma vez que ele fosse órfão. Quando se
conheceram, ele morava sozinho numa cobertura no centro de Londres. Em seu
casamento, nenhum conhecido ou amigo dele comparecera. A única que conhecia, ou
pelo menos ouvira o falecido falar, era uma irmã. Tão misteriosa quanto ele.

A enigmática irmã mais velha de Stephen G. Peer mandava, uma vez por mês
uma carta para ele. Esta vinha através de um mensageiro que só ia embora depois que
recebia outra, de punho, dele. Lady Peer nunca sobe o nome dessa mulher ou onde
morava, no entanto, sempre sentira a presença dela sobre não só sobre Stephen, mas
também sobre ela.

Não sabia como ainda, mas deveria encontrá-la, lhe dizer tudo o que ocorrera e
aceitar a pena que seria imputada sobre ela. Levantou-se rapidamente e a passos
longos, subiu as escadas que levavam aos quartos. Com certeza contrataria um bom
detetive, o melhor que o dinheiro pudesse comprar. E, mesmo que gastasse toda a
herança que o marido a deixara, não se acalmaria enquanto não encontrasse sua
cunhada misteriosa.

Deu-se conta que sua vida era cercada por enigmas. Tanto o falecido marido,
quanto o louco anfitrião que a hospedava.

Entrou no quarto de Locke sem bater. Ele, como sempre, estava sentado na
penumbra com um livro e fitava-a com seus olhos sombrios.

— O que você lia? – sentia sempre o calafrio quando ele a olhava assim.

— Nada de mais... – disse ele, assentando o livro sobre os joelhos — Somente


algo sobre o livro de Nod e as relações fraternais entre Caim e Abel.

— E quais as ligações entre este livro lendário e uma relação tão trágica?
— Oh, minha inocente... O livro de Nod é o único relato sobre Caim e sua
genealogia que se tem ouvido falar. Pelo menos o único que aparenta ser fiel.
Infelizmente eu não o tenho em mãos. Apenas alguns fragmentos copiados por alguns
arqueólogos por mim contratados... É interessante perceber que talvez Caim não
odiasse seu irmão, mas sim tivesse amor por ele. Um amor tão grande que, para ele
não existia sacrifício mais puro que seu irmão.

— O que você diz é quase um sacrilégio...

— Talvez você esteja certa... Mas não tema. Apenas à mente do louco cabem
as interpretações de seus devaneios... Entretanto, diga-me: o que você tinha a me
falar?

— Eu estou indo embora. – Locke ouviu o que ela disse sem esboçar uma
emoção sequer. – Preciso encontrar a irmã de Stephen.

— Uma tempestade está se formando. – olhava apara janela, entrecortada pela


cortina, enquanto falava – É melhor que você fique em um local seguro. – disse ele,
finalmente, quase que em um misto de delírio e profecia.

— Se não for incômodo.

— Hospedar-te é, para mim, uma grande satisfação.

— Obrigada. E quanto a srta. Granger?

— Por causa do tempo, já mandei avisá-la para ir-se pela manhã de amanhã.

— É engraçado! – ela aproximava-se da janela e, abriu a cortina lentamente —


Eu não havia percebido que o sol já havia se posto.

— Por aqui o sol se põe muito cedo... Em compensação, a noite quase não tem
fim.

— Estranho...

— Estranho e belo são conceitos por nós mesmos criados.

— Eu... vou para meus aposentos arrumar minha mala.

— E por acaso você trouxe algo além de uma carta amassada e a roupa do
corpo?

— ...não...

— Tudo bem, sei que sempre lhe impressionei. Perdoe-me por isso.

— Vou descer para pensar por onde irei começar minha busca.
— Está bem, fique à vontade. Só uma coisa: nunca se esqueça de que o sangue
é mais denso que a água... — enquanto dizia estas misteriosas palavras, L. Locke ia
adentrando cada vez mais nas sombras de seu quarto.

Enquanto descia as escadas, Lady Peer deu de encontro com a srta Granger.
Esta, no momento em passou por ela, virou o rosto e resmungou algo
incompreensível.

Antes de descer, viu apenas a espectral mulher adentrar o quarto de L. Locke.

Parecia não haver ninguém na casa a não ser os três. Sabia que os empregados
possuíam uma casa ao lado. Era lá que eles, com exceção da srta. Granger que tinha
um aposento dentro da mansão, passavam as noites. Aquela noite, em especial,
parecia que a srta. iria quebrar esse tabu. Sua mala estava encostada junto à porta.

Ficou alguns minutos olhando aquela grande mala. Sabia que nela existia algo
de déjà vu. No entanto não sabia o quê. Era retangular, enorme, negra e de couro.
Havia, em sua extremidade esquerda um trinco e nele um selo. Um ―G‖ maiúsculo
estilizado. Onde é que já havia visto aquele brasão? Em sua mão encontrava a
resposta. O anel de casamento que o marido lhe dera! Que mórbida coincidência era
aquela? Movida por impulso e, novamente, sem pensar nas conseqüências de seus
atos, Lady Peer abriu a mala.

Ofélia Granger encontrava-se de pé, em frente a Locke, que possuía um cálice


de vinho em uma das mãos. Podia-se perceber que ele estava alterado pela bebida, e
ela, pelo ódio.

— Como o senhor ousa me tratar assim? – dizia ela, como uma amante
abandonada.

— Eu faço o que quero na hora que desejo... – ele mantinha-se insensível, a


taça em sua mão brilhava, graças à luz da lua cheia, que já se mostrava altíssima no
céu noturno.

— Ainda não sei como pode me trocar por aquela meretriz.

— Em primeiro lugar, não permito que se designe de tão honrada senhora


dessa maneira e em segundo, não fiz troca alguma. Você mesma fez.

— Eu sempre fui fiel e dedicada ao senhor e a sua família!

— Eu reconheço... Há quanto tempo você trabalha aqui, Ofélia?

— Há muito tempo senhor. Desde os áureos anos de luz da mansão Locke, eu


vi os meses de sofrimento de sua fidelíssima mãe de sua vida e o definhar silencioso
de seu honradíssimo pai, que Deus os tenha!
— Mais de quinze anos... Lembro-me que você ajudava nos estudos de um
irmão seu, não é?

— Sim, senhor. Eu e ele só tínhamos um ao outro. Eu cuidava dele desde que


perdemos nossos pais em um naufrágio. Tinha-o como se fosse um filho meu.

— Entendo... Ele ainda está estudando?

— Não. Agora ele já vive por conta própria.

— Hum... Mas, eu nunca vi você recebendo visitas e tão pouco saindo aos fins-
de-semana ou pedindo um dia de folga.

— Eu nunca quis me envolver na vida dele. Preferi ser seu anjo da guarda.
Entretanto, sempre me correspondo com ele.

Locke ouvia as palavras da mulher e ia andando pelo quarto. Quando ela


terminou de falar, ele estava de costas para ela, olhando o jardim pela janela.

— E onde anda o jovem... – a mente de Locke não lembrava o nome do rapaz.

— Stephen. Stephen Granger Peer. – no momento em que disse as palavras, ela


retirou de dentro de seu vestido algo semelhante a uma faca. A pureza de sua cor
prata contrastava com a escuridão do local. Locke permanecia parado. Talvez não
soubesse o que o esperava. Talvez o nome que escutara lhe surpreendera a ponto de
paralisá-lo. Talvez houvesse se conformado e deixado o destino cumprir-se. Não
poderia lutar contra o inevitável. Apenas virou-se rapidamente, como se fosse se
defender, mas não o fez. Olhou a mulher nos olhos enquanto ela empurrava a adaga
em seu peito.

— É o que dizem... O sangue é mais forte a água... – foi o que pronunciou


antes de cair no sofá. Enquanto a escuridão ia tomando conta de sua visão, ao longe
ele ainda conseguia ouvir a voz da mulher.

— Meu pequeno Stephen... Por que se envolveu com aquela vaca traiçoeira?
Seu futuro era tão brilhante. – dizia ela louca e com lágrimas nos olhos. –Eu não
poderia tê-lo deixado continuar sendo traído... Meu pobre irmão... tão inocente...

— E… Caim... matou... Abel... por amor... – disse Locke enquanto o sangue se


esvaia de seu corpo.

— Agora, a justiça será feita! Como a Nêmesis, devo punir a fonte do mal... –
ela flutuava pelo cômodo. Aproximou-se de Locke com a adaga em mãos. Parecia
que desejava beijá-lo.

— Não poderia deixar outro homem que muito prezo cair nas garras daquela
Lilith escarlate. Adeus, meu... bam!!! –o som do tiro ecoou por toda casa. O corpo de
Ofélia Granger Peer foi ao chão imediatamente. Logo atrás dela, estava Lady Peer,
com os olhos lagrimosos empunhando uma pequena pistola que encontrara na mala,
com sua mão trêmula. No instante em que o corpo da mulher foi ao chão, a arma em
suas mãos seguiu o mesmo destino.

Ignorando o corpo estendido no chão, Lady Peer correu de encontro ao


moribundo Locke, que exalava os últimos suspiros.

— É triste a vocação do sonhador... No momento que toca seu sonho... este se


desfaz no ar...

— Não diga nada. Eu vou chamar um médico. – falava ela, desesperada,


tentando estancar o sangue que fluía do corpo do rapaz.

— Um médico cuida de flagelos do corpo... Meu mal... corrói... a alma...


Adeus... minha Lady... Que a frieza... do beijo da morte não toque seus belos lábios...

— Adeus, meu querido... – disse ela, em lágrimas, tocando os lábios dele com
os seus.

O dia amanhecia na mansão Locke, mas com certeza o sol por muito tempo
não voltaria a se levantar naquele nostálgico jardim.
Entre os olhos

Era do tipo que qualquer mulher gostaria de ter como namorado ou marido. Ou
qualquer sogra como genro. Prestativo, romântico, carinhoso, cavalheiro, cumpridor
de suas obrigações. Adjetivos eram poucos e ingratos para defini-lo. Tinha uma
namorada que não compartilhava de tantos predicados, aliás, possuía outros: fútil,
efêmera, gostava de sair com as amigas e comprar compulsivamente. A única coisa
que jurava jamais fazer com o namorado era trair-lhe. Todos sabiam que sofria ao
lado daquela garota de visão umbilical. Mas a ela estava preso por qualquer mística
desconhecida. Como dizem, enquanto vivemos, somos cegos. E assim vivia sua vida,
entre uma briga e outra.

Se vivesse em meados do século XIX, seria considerada uma daquelas damas


inacessíveis. Motivo de poemas, sonetos e músicas para cortejá-la. Bonita,
inteligente, conseguia conversar com uma pessoa sobre física quântica e mudar para
assuntos mais domésticos, por exemplo, como fazer uma torta de limão, e depois,
para a política, e, até mesmo, sobre futebol. Infelizmente não vivia naquela época e,
por isso, morava com um namorado que não era o mais romântico, tão pouco, o mais
sentimental dos homens. Bebia muito, jogava mais ainda, chegava tarde e, pior, tinha
mais amantes do que podia contar. A única coisa que ainda não havia feito era bater
nela. Isso abominava. Ela suportava aquela situação sabe lá Deus por quê.

Um dia, encontraram-se em algum terminal rodoviário da cidade. O namorado


perfeito e a musa ideal. Bastou somente um olhar para que acontecesse. Apenas um
olhar para que entendessem. Entre seus olhos, a química que faz o amor. O som dos
ônibus passando era como a música de harpas celestiais. As vozes das pessoas que
caminhavam e corriam para embarcar em seus ônibus, era como o canto de anjos.
Nada disseram, apenas olhavam-se um para a outra, e a outra para um. Não fora
preciso nada dizer. Nem era necessário. Fora como se já se conhecessem há muitos
anos. Eternamente. Um segundo eterno. Atemporalmente. De repente, o ônibus dela
chegou e, empurrada pela fila, entrou de uma só vez no coletivo. Ele, por sua vez, fez
o mesmo, pensando o quanto aquela jovem era bonita e o quanto ela mexera com
seus sentimentos. Ela, por sua vez, permaneceu com aquele olhar gravado para
sempre em sua alma.

Nunca mais se viram depois desse dia.


A musa e o artesão
“Tecer era tudo o que fazia.
Tecer era tudo o que queria fazer.”
Marina Colasanti. “A Moça Tecelã”

O artesão modelava o barro, na esperança de criar a obra-prima de sua vida.


Hábeis mãos tocavam a massa de terra. Por toda sua vida, sonhara com este
momento: o de criar algo tão belo e perfeito que refletisse a beleza do mundo. Uma
obra perfeita que transparecesse a beleza da alma humana. Como Deus um dia
moldou Adão do barro, assim também fazia, tentando moldar algo de beleza rara.

Com as mãos acariciando o barro, o artesão dava forma à sua criação.


Tentando fazer alguma coisa concreta, sem flutuações abstratas ou sem significado.
Tudo no seu devido lugar.

Como que numa luz divina, a inspiração lhe vem à mente na forma de uma
mulher. Cansado de tanto ficar só em seu estúdio, o artesão decide criar uma
companheira imóvel. Alguém para que, ao menos, o fizesse imaginar ter companhia.
É melhor uma companheira silenciosa e imóvel do que nenhuma companheira.

E iniciou seu trabalho.

Os dias se passaram. Dia após dia. As semanas se passaram. Semana após


semana. Os meses se passaram. Mês após mês. E talvez, os anos houvessem se
passado. Ano após ano.

Contudo, nada mudou.

O artesão continuou tentando, em vão. Por mais que tentasse, não conseguia
criar a perfeição. A inspiração lhe escapava pelos dedos. Aquele estúdio não continha
a fonte inspiradora necessária para que ele terminasse seu trabalho. Decidiu então sair
pela rua, para pensar no que faria para terminar sua maior criação.

Andou por toda cidade, entre prédios e praças, lojas e parques, carros e
pessoas. Sempre à procura de um olhar, um gesto, algo que lhe devolvesse a
inspiração perdida. No entanto, o máximo que conseguia ver de interessante foi o
busto de um dos fundadores da cidade. Aliás, fundadora. Uma mulher que, anos atrás,
ajudara a construir a cidade. O engraçado é que nunca vira um busto de mulher, mas
sempre de homens. Era algo raro de se ver. E mais nada.

Quando percebeu, estava chegando à divisa de sua cidade. Decidiu não


continuar sua jornada. Estava com fome e à medida que as horas passavam, a noite se
aproximava.

Pegou um ônibus, e foi se sentar no último banco. Ainda possuía a esperança


de encontrar sua inspiração perdida por entre os passageiros.
Abaixou a cabeça por alguns instantes (ou talvez por uma eternidade),
pensando em montanhas e paisagens suspensas. Não lhe importavam muito as
pessoas que entravam e saíam do coletivo. Para ele, nenhuma delas possuía um rosto
definido.

De repente, levantou a cabeça, sobressaltado por uma visão angelical.

Era ela!

Sua musa. Em pé, de lado para ele, uma vez que o ônibus estava semilotado.
Ela era a perfeição. Linda como jamais se havia visto na face da Terra. Se Deus
possuía um sinônimo para beleza, este era ela. Depois de moldada, com certeza, sua
forma havia sido jogada fora. Era uma beleza singular, como nunca uma imaginação
humana conseguira conceber.

Fora apenas um segundo, em que ela olhara para ele e lhe fixasse os olhos, mas
o suficiente para que ambos entendessem tudo o que deveriam entender.

E, sem pronunciarem uma só palavra, saíram do coletivo e se dirigiram à casa


do artesão.

Os dias se passaram e o artesão não parou de trabalhar um só momento. Olhava


a musa e moldava o barro. Sempre neste movimento de quase captura. Captura
impossível da beleza. Ambos se entendiam. O artesão em seu silêncio compenetrado
e a musa em seu silêncio de admirada. E sem que percebessem, uma estranha e
silenciosa relação se fez entre os dois, tendo o barro como o catalisador. Enquanto
tocava o barro, era como se ele tocasse a pele dela. Acariciando-a, apalpando-a,
alisando-a, apertando-a, moldando-a.

A musa, por sua vez, sentia em seu corpo, essa estranha e maravilhosa
sensação. O artesão não mais tocava no barro quando o fazia, mas sim, seu corpo.
Cada toque no barro correspondia a um toque na pele da musa. O artesão sentia, em
suas mãos, como se estivesse experimentando sua fonte de inspiração e objeto de
desejo. Era assim que passavam todos os dias. Vencendo a carne e recriando o desejo.

Um dia, o impulso carnal tornou-se maior que o impulso artístico e o artesão e


sua musa se entregaram às luxúrias do corpo. Mãos que por muito tempo tocaram
apenas o barro, neste momento, passaram a acariciar a pele delicada, que
ansiosamente esperava ser modelada por aquelas mãos. Pelos se arrepiaram ao sentir
aquele toque cheio de calor. Beijos apaixonados eram retribuídos por outros, de
mesma intensidade. Uma noite se tornou um dia. Um dia se tornou uma noite. Num
círculo de vontades sem fim.

E, ao fim desse jogo cujas regras haviam sido quase todas quebradas, a última
que resistira, se desfez. Pela primeira vez desde que se conheceram, o artesão e a
musa trocaram suas primeiras palavras. Palavras de afeto e juramentos apaixonados.
A partir desse momento, tudo se tornou diferente. O artesão e a musa mudaram
para sempre. Tornaram-se amantes. Ele deixou de ser apenas um artesão e tornou-se
um homem sério responsável. Trocou os sonhos loucos de artista pelo pensamento
calculista do executivo. Ela deixou de ser apenas uma musa e tornou-se uma mulher
caprichosa e organizada. Trocou a frivolidade da musa pela preocupação da dona-de-
casa.

Com isso, durante o dia, ambos se concentravam em seus afazeres, enquanto


que à noite, entregavam-se à luxúria e à volúpia. Tudo corria como tinha de correr.

Tudo, menos o fato de que a peça artística da musa ainda estava lá. E, todas as
noites, o artesão ia a seu estúdio, admirá-la. Afinal, aquela era sua mais bela obra.

Esse era o único problema no relacionamento dos dois. A única pedra no


sapato da musa que ela não conseguia retirar. Um espírito real a ser exorcizado. E ela
deveria ser o exorcista.

Um dia em que ele saiu, como em todos os outros, ao trabalho, e ela desceu ao
estúdio levando em suas mãos um taco de madeira. Impulsionada pelo ciúme,
destroçou completamente sua rival. Arrancou-lhe a cabeça com uma tacada
impiedosa. Quebrou-lhe os braços batendo compulsivamente. Destroçou-lhe o colo
com tacadas copiosamente fortes.

Ao fim, sua única rival estava totalmente despedaçada e ela, certa de que nada
iria atrapalhar seu amor. Agora, seriam apenas ela e o artesão a trocarem amor. Ele
não dividiria seu amor com mais ninguém. Ouviu um soluço seco e olhando para trás
viu seu amado observando-a. Aparentava estar cansado e desiludido.

Caminhou para perto dela à distância de um braço. Nada disse.

Intrigada, ela se perguntava por que nada ele permanecia silencioso. ―Por
quê?‖ seria a pergunta mais lógica a ser feita. Mas aqueles que perdem os sonhos não
têm lógica.

―Eu te dei tudo e você me matou.‖ Foi o que o artesão disse a sua musa.

―O que fiz foi por amor.‖ Foi o que a musa murmurou ao seu artesão.

Impulsionado pela raiva, o artesão, com uma das mãos aberta, mesma mão que
haviam acariciado e transmitido amor, deu um tapa no rosto da musa, arrebentando-
lhe as bochechas, deformando-lhe a boca, arrancando-lhe um dos olhos e decepando-
lhe a cabeça do corpo, que caiu e quebrou-se no momento em que tocou o chão. Logo
após, o corpo também foi ao chão. Restaram apenas pedaços de barro espalhados por
todo o piso.

O artesão foi ao chão, mas não chorou. Ficou parado alguns minutos. Olhou os
pedaços de barro espalhados, sem esboçar nada, além de um cansaço que parecia
haver-lhe acompanhado a vida toda. Fechou os olhos. Respirou fundo. Levantou.
Dirigiu-se a sua mesa. Sentou-se de frente a ela. Pegou o barro e voltou a moldá-lo.

Sentado em seu estúdio, o artesão, modelava o barro na esperança de tentar


criar uma obra perfeita, que transparecesse a beleza da alma humana.
Telhado de amianto
“Nana, nenê
Que a Cuca vem pega
Papai foi p’rá roça
Mamãe foi passeá.”
(Antiga cantiga de ninar)

Estava decidido a não dormir naquela noite. Permaneceu sentado na cama do


quarto semi-iluminado, mexendo-se nervosamente e sussurrando algo
incompreensível.

O irmão mais velho, na cama contígua, acordou com o som dos sussurros e do
estrado de madeira gemendo.

―O que você está fazendo?‖ perguntou ao irmão.

O menino saiu de seu transe infantil e apenas cochichou: ―Eu não vou
dormir…‖

―Mas por que não?‖ levantando-se intrigado da cama.

―Por causa da música…‖ ainda em um sussurro.

―Que música?‖

―A que mamãe cantou hoje de noite pra mim…‖

―E o que isso tem haver?‖

―Se eu dormir a Cuca vem e me pega…‖

―A o quê? Ah, você tá com medo daquela música idiota? Você é um bobo
mesmo!‖

―Sou nada!‖

―Vai dormir!‖

―Você quer me enganar! A música dizia a verdade: papai foi pra roça trabalhar
na fazenda do coronel Timóteo e só volta de manhã. Mamãe ia na casa da tia que eu
ouvi falando só esperar a gente dormir para ir. Eu to sozinho e sem ninguém para
vigiar. Se eu dormir a Cuca me pega.‖

―Pega nada, seu medroso. A mãe já cantava essa música pra mim quando eu
tinha a sua idade e nunca nada me pegou.‖

―Você fala assim porque quando era da minha idade dormia com ela e o papai
na cama deles que eu sei. Você tava protegido e por isso a Cuca não te pegava. Eu tô
sozinho…‖
―Seu bebê chorão!‖

―Não sou.‖

―É sim.‖

―Não sou não.‖

―É sim é sim é sim.‖

―… eu quero a mamãe…‖

―Tá bom, tá bom! Eu tomo conta de você. Só não chora, tá bom?‖

―Verdade?‖

―Humhum.‖

―Palavra de honra?‖

―Tô te falando! Agora dorme que eu fico acordado te vigiando.‖

―Posso pedir mais uma coisa?‖

―Quié?‖

―Posso dormir junto com você?‖

―… tá bom. Vem logo antes que eu mude de ideia.‖

―Heee! Brigado, mano!‖

―De nada. Você não tá sozinho, eu tô aqui.‖

―Brigado. Boa noite!‖

―Boa noite.‖

Abraçados e encolhidos na grande, mas não tão grande, cama de solteiro, as


crianças caem no sono. Esquecem o mundo de fora e começam a viajar por seu
mundo de sonhos infantis. Crianças caem no sono muito facilmente. E o mundo ao
seu redor já não faz mais diferença. Elas somente sonham e esquecem tudo o que as
preocupava anteriormente. Os grilos, gafanhotos e todos os animais noturnos que
povoam o campo. Nenhum ruído é capaz de incomodar seu profundo sono. Nem
mesmo o som do arranhar de garras nas velhas telhas de amianto da humilde casa.
Capuz Escarlate
“Call of nature…”
Neil Jordan “The company of wolves”

Era uma vez, uma vila distante e pacata, como toda vila de conto de fadas (ou
de bardos). Ao redor dela existia uma floresta cujas árvores tocavam o céu. Nada era
próximo e tudo era difícil. Existia apenas uma estrada de acesso para esta humilde
vila.

Nessa vila, existia uma menina cuja alma não havia ainda sido tocada pela
maldade do mundo. Morava com sua mãe. Não conhecia seu pai. Também não se
preocupava e sequer tinha curiosidade em conhecê-lo ou saber sua ocupação na vida.
E sua mãe, por sua vez, nunca teve vontade de lhe revelar. Só tinha no mundo a mãe
e a avó, que morava fora dos limites da cidade. A segunda, nos últimos meses se
encontrava um tanto quanto doente. Um mal inominável que consistia de uma
misteriosa e infalível febre, que repetidamente a atacava por seis horas seguidas após
às seis da tarde, todos os dias. Isso, sem contar as crises que a deixavam acamada por
vários dias.

Por esse motivo, todos os dias, a menina ia levar broas, frutas e algumas
guloseimas para a velha senhora. Como já estivesse acostumada sair sozinha, a mãe
não se preocupou quando disse à jovem que fosse sempre pela estrada e não
conversasse com estranhos. Sabia ela que a filha, apesar de haver saído da infância há
poucos anos, era muito responsável.

A garota arrumou-se, colocou seu delicado capuz escarlate, bordado pela


própria avó, e saiu despreocupadamente de casa, levando nas mãos sua cesta.

A casa da avó era isolada. Seria necessário atravessar a única estrada de terra
que passava por dentro do bosque para chegar até lá.

A garota ia calmamente adentrando a floresta, olhando as flores e as borboletas


que passeavam pela trilha. Em um momento ou outro, conversava com algum rato do
mato.

As casas em seu caminho iam se tornando mais escassas.

Encostado em uma árvore, como se estivesse conversando com a mesma, Lobo


dirigiu a palavra à mocinha.

— O que uma garota tão linda está pensando em fazer numa floresta tão
assustadora?

— Eu só vou visitar minha avó doente seu Lobo. – respondeu a menina em tom
meigo, sem hesitar.

Lobo aparentava estar na casa dos 40 anos, usava um casaco xadrez desbotado
e entreaberto, calça jeans, botas. Olhava a menina de maneira paternal. Ela se
lembrava que, todas as vezes que sua mãe ouvia o nome Lobo, tremia de nervosismo
e deixava o que estivesse em suas mãos ir ao chão. Ela havia feito a menina prometer
que não mais falaria com ele. No entanto, ele era tão educado e preocupado com ela
que a adolescente não conseguia ficar sem responder as palavras que ele lhe dirigia.
Era como o pai que não tinha, mesmo que sua mãe não gostasse dele.

— Cuidado nestas trilhas, pequena! Eu não gostaria que nada de ruim


acontecesse com a minha predileta. – Disse ele, acariciando o capuz que estava sobre
a cabeça da menina.

— Não se preocupe, seu Lobo. Eu sempre tomo muito cuidado. Tchau!

— Tchau, minha pequena. – disse ele enquanto a garota se afastava.

A menina se afastava pela trilha despreocupada e ele, como se nunca estivesse


estado ali, simplesmente desapareceu por entre as árvores.

A menina passeava no caminho de terra tranqüila e sem se preocupar com o


tempo. As árvores com suas folhas verdes como nunca. O cheiro das flores. Os sons
do mato. Divertiu-se, horas com um rato branco que por ali procurava comida. Estava
tão distraída, que, quando se deu conta, notou que o sol já estava se pondo... Podia
ver a sombra da lua cheia começar a surgir no céu. Despediu-se do amiguinho e
correu pelo caminho. Não olhou para trás nenhum momento senão havia visto que o
rato estava, naquele instante, sendo devorado por um gato que por ali passava. Mas
essa é outra fábula.

Enquanto isso, a avó da menina, distraia-se com o tricô. Era um dos poucos
momentos do dia em que ela tinha forças para fazer algo.

A centenária mulher já havia escapado de quase tudo que se pode imaginar.


Desde as guerras mais banais ate uma epidemia de cólera. Era irônico estar quase a
beira da morte por causa de uma simples febre. Contudo, nos momentos em que
tricotava, esquecia-se de tudo mais. Encontrava-se tão entretida que por pouco não
ouviu as batidas em sua porta. A pessoa do outro lado parecia tranquila e certa de que
ela estava em casa.

— Quem é? –perguntou a anciã.

— Sou eu, vó, o Lobo. – disse a pessoa do outro lado.

— Pode entrar meu filho. É só levantar a aldraba que o ferrolho desce. – Assim
ele fez e entrou na humilde casa.

Lobo possuía o olhar turvo, envolto em trevas, mas ainda mantinha os gestos
educados de costume. Em suas mãos, uma espingarda.

—Me disseram que estava doente, vó. Fiquei preocupado.


—Ah, meu filho! Não precisava. Para nós velhos, um espirro quer dizer
pneumonia.

Tem uma fera solta por aí. A senhora tem de tomar cuidado.

— Não precisa se preocupar comigo, meu filho.

— O sol já está se pondo, vó... A menina vem para cá. Eu a encontrei no inicio
do bosque.

—Então, meu filho, é melhor que você vá embora.

— Por que, vó? Que crime existe em eu e ela no encontrarmos?

— Não se faça de desentendido, filho. Ela ainda é muito nova para conhecer a
verdade.

— Crianças são embaladas num mundo de ilusão... – murmurou derrotado.

—Por favor, filho... Você sabia das condições.

—Saber é o que mais faz doer.

— Então eu lhe imploro: vá de uma vez. – disse a velha em tom mais de ordem
que de pedido.

— O sol já está se pondo... Já posso até ver a lua... – disse Lobo, quase como
se não houvesse escutado o que foi dito pela anciã. Estava de costas para ela, olhando
a janela. Sua voz era estranhamente rouca.

— Lobo, vá embora de uma vez. – disse ela, agora em tom grave.

Lobo silenciosamente virou-se para a senhora, caminhou até sua cama. Uma
penumbra tomava conta de seus olhos. Ficou cabisbaixo ao lado dela.

—Adeus, vó. – disse, enquanto punha dois dedos sobre a boca da senhora. –
Perdão... a besta foi mais forte que eu... – num rápido movimento, antes que ela
pudesse perceber, toda a mão peluda dele estava sobre seu rosto.

A noite já houvera começado quando a menina chegou na casa da avó. Sentiu


um pouco de preocupação pelo fato de haver dividido um dos bolinhos que a mãe
fizera para a avó com seu amigo roedor. Contudo sabia que a avó era muito
compreensiva e não se preocuparia com tal pequeno fato. Talvez nem percebesse.
Ainda assim, contaria para a avó a verdade, pois ela e sua mãe assim a haviam
ensinado. Sempre dizer a verdade, não importando qual fosse ela. ―É melhor conviver
com uma triste verdade, do que com uma alegre mentira‖ dizia sempre a mãe.

Chegou em frente à porta e bateu delicadamente. Ouviu uma voz rouca e


baixa dizendo:
— Quem é?

— Sou eu, vovó! – respondeu alegremente.

— Entre minha filha. É só levantar a aldraba que o ferrolho desce. – disse a


voz, quase um murmúrio.

Na sala mal iluminada, entrou a menina sem se preocupar. Uma figura ofegante
se fazia deitada na cama, num canto mais escuro da sala.

—Vovó, perguntou a menina—, porque está num lugar tão escuro?

— É por que a luz me incomoda. Por favor, minha menina, deixe a cortina
fechada.

— Vovó, sua voz está tão rouca! A senhora se sente pior?

— Não querida... É o ar da noite que me deixa assim...

—Vovó, e seus olhos! Estão tão amarelos!

— É o luar que os faz ficar assim! – disse o vulto, revelando-se Lobo.

— Se-seu Lobo? O que está acontecendo? Por que o senhor está assim? Cadê
minha vovó? – indagava a menina, petrificada de espanto e medo.

— Em um lugar bem melhor. – disse ele, limpando o sangue que escorria de


sua boca.

Como se descrever um instante? Um gesto único que faz a diferença entre a


vida e a morte? Sabe-se lá por que intromissão do acaso, a garota, ao encostar-se à
parede, acuada de pavor, encontrou em suas mãos a velha espingarda do Lobo.

Foi necessário apenas um tiro, para que Lobo, que havia lançando-se em um
único salto para cima da menina, caísse agonizando no chão com o ombro
ensangüentado. Nesse instante, sem mais nada a pensar, tampouco olhando para trás,
a garota correu para um armário que existia no canto do cômodo. Era velho, mas
ainda assim, parecia ser muito resistente. Era embutido na parede. A menina trancou-
se ali e ficou a observar, pelo buraco da fechadura o que ocorria.

Talvez a coisa mais insensata que fizera até aquele dia.

Viu o educado e prestativo Lobo contorcer-se de dor no chão da casa da avó.


Ficou preocupada com ele, afinal levara um tiro dado por ela. Quando decidiu sair do
armário para ajudá-lo, ouviu apenas um pedido de perdão e viu o corpo do homem
que tinha quase como um pai, crescer e aumentar absurdamente, rasgar as roupas e
encher-se de pelos. O terror apoderou-se dela, que e nada podia fazer a não ser olhar,
pois naquele momento, o amável Lobo havia tornado-se uma fera de pelo cinzento,
caninos afiados e enormes olhos amarelos a lhe olhar também.
Amanhecer. A mãe da pequena já estava mais do que preocupada. A
menina nunca demorara tanto na casa da avó. Algo com certeza acontecera. Não
sabia o quê. Quando havia acabado de decidir ir ao encalço da filha, ouviu as batidas
na porta. Rapidamente fora abri-la, esperando que fosse a sua menina. Não era. Lobo
estava rasgado, ensanguentado e sua fisionomia era a de alguém que houvera passado
a noite brigando com fantasmas.

— Elas estão mortas... — foi o que dissera de cabeça baixa para a mulher.

— Não... – as lágrimas começaram a rolar pelo rosto da mulher, ao perceber


fios de lã escarlate presos na boca de Lobo. – O que você…?

— Perdão... – murmurou ele sem levantar os olhos. —... eu deveria ter


escutado o que disse a vó. Mas agora, as duas estão mortas... E eu sou o assassino.

A mulher não sabia o que fazer. Então, fez talvez aquilo que julgava não ser o
mais sensato a ser feito, mas o mais humano. Abraçou o homem amargurado em sua
frente, como uma mãe faz com um filho que brigou na escola. Ajoelharam. Ele, com
a cabeça em seu colo, murmurou palavras intermináveis.

— Eu a matei... meu amor... Eu matei nossa filha.

Ela, resignada em seu silêncio, apenas acariciava os cabelos do amado.


Desejou de todo o coração matá-lo, arrependeu-se do dia em que havia se apaixonado
por ele. Do dia em que o vira tornar-se besta pela primeira vez, da promessa que o
obrigara a fazer quando se descobriu grávida. Nada disse, apenas o acariciava, como
que sussurrasse ―Eu te perdoo‖.

Som algum fora proferido depois. Ficaram em silêncio ambos. Unidos pela
solidão e pela tragédia. Mais que isso, unidos por um amor animal. Como uma
matilha a chorar a morte de seu único filhote.

Vitória, 25/06/02. Lua cheia no céu.


Segunda pele
“Aquele que luta contra monstros deve acautelar-se;
para não tornar-se também um monstro.
Quando se olha muito tempo para um abismo,
o abismo olha para você.”
Nietzsche, “Além do Bem e do Mal”

Chegara, como todos os dias, cansado do trabalho. As costas tensas. A cabeça


doendo. O corpo dolorido. A paciência esgotada. Com seus passos negros ia
marcando o carpete da sala. Caminhava como quem vinha para sua cela descansar
após um dia no pátio. Contudo, sua cela era na cobertura de um grande prédio,
possuía ar condicionado, tevê a cabo, internet, serviço de quarto, vista para a praia de
Copacabana e todas as regalias que o dinheiro podia comprar. Cada um tem a prisão
que escolhe.

Lembrava-se, como todos os dias, do quanto havia lutado para chegar aonde
chegou. A infância pobre. As bebedeiras constantes do pai. As surras constantes da
mãe. As brigas constantes entre eles. A fuga de casa. A discriminação. A luta para
estudar e se formar em Direito, apesar de todas as adversidades. O primeiro emprego
na firma que estava até hoje. Tinha que ser o dobro a mais que o funcionário mais
eficiente. A ascensão no cargo. Podia não gostar, mas nunca esquecia seu passado.
Tudo era uma dolorosa e penosa lembrança.

No chão, cartas, demonstrando o tempo que estivera longe de casa. Extratos de


banco, contas de telefone celular, anúncios publicitários. Na secretária eletrônica,
recados dos mais variados. De um antigo amigo, de um cliente, e de diversas
mulheres. Sem importância.

Mesmo cansado, andara até a cozinha para preparar algo para comer. O
cardápio servido pelo serviço de quarto não lhe agradara muito. Macarronada não era
seu prato predileto. Como todo bom filho de negros, gostava de feijão. Ele,
particularmente, de uma receita de feijão tropeiro que aprendera com uma cozinheira
italiana de nome Luana. Após comer seu preparado, cumpriu o ritual diário de beber
um copo de uísque à noite.

Enquanto engolia aos poucos o drinque relaxante, lembrava-se o fato que não
conseguia engolir. O desacato de uma ordem sua por um jovem com pouco tempo de
empresa. Comandava todo um setor da firma e aquele rapazola branquelo, como ele
próprio o chamava, apenas um estagiário, recusara-se a obedecer uma ordem direta
dele de entregar alguns documentos num local por ele indicado. Dizia o menino que
era inviável. ―Inviável!‖, estava impressionado com aquele exemplo de
insubordinação, e por isso, ele não poderia passar impune. Além de ficar mais de três
horas esbravejando com o rapaz, deu-lhe, ainda, uma merecida suspensão de um mês.
Talvez assim ele aprendesse a acatar ordens, pensava. Estava extremamente feliz por
poder exercer seu poder sobre alguém, mesmo que fosse naquele insignificante rapaz.
Gostava daquela sensação de ter o controle na vida das pessoas. No entanto, algo
naquela situação lhe era familiar e incômodo.

Recostou-se no sofá e tentava lembrar o nome do rapaz enquanto girava os


cubos gelo chacoalhando o copo. Adolf era seu nome. Adolf Eller Schuler. Um nome
alemão comum para aquele jovem não tão comum. Ninguém ousara desobedecê-lo
até hoje, a não ser aquele garoto. Mas, havia algo de não estranho também em seu
sobrenome. De repente, no toque desesperado do telefone, veio a resposta.

Quem falava do outro lado da linha era Hutger Schuler, um dos chefes de setor
da empresa, como ele. Pedia, não, melhor, implorava para que ele reconsiderasse e
deixasse que seu filho único voltasse ao trabalho no dia seguinte. Disse que ele era
um ótimo rapaz e que estava arrependido pelo que acontecera. Permaneceu mudo,
enquanto o homem falava aquelas palavras comuns a todos os pais em defesa dos
filhos. E foi enquanto o homem falava que lembrou-se o porquê daquela cena lhe ser
tão familiar. Anos atrás, Schuler, o pai, o havia dado uma suspensão não só pelo
mesmo motivo, mas também pelo fato de ele ser negro, para ―aprender o seu lugar na
sociedade‖. E ele não possuía um advogado para lhe defender. Aprendera sozinho as
regras da vida. Cumprira sua pena e retornara disposto a tomar o cargo daquele porco
nazista, como o chamava. Anos depois, conseguiu a duras penas, sendo sua alma fora
uma delas. Hoje, por uma ironia do destino, aquele que o humilhara precisava de sua
intervenção. Se estivessem no inferno e dessa intervenção dependesse sua alma, não a
daria. Como isso não poderia fazer, disse apenas que deixaria o garoto cumprir a
punição para aprender algo sobre hierarquia. E que não pediria sua demissão agora,
mas pensaria na hipótese. O pai, mais envergonhado que decepcionado, deu-lhe um
boa noite automático e engasgado e desligou o telefone.

A constatação desse fato lhe dava um gosto de vingança bem mais saboroso. O
filho servira para se vingar do pai, mesmo que não soubesse a princípio. Ficou
sentado no sofá, mais deitado que sentado, por bastante tempo. Imaginava em como a
vida era irônica. Como um círculo vicioso. O filho até podia não ser racista como o
pai, mas pagara os crimes dele. Enquanto vangloriava-se de seu feito, que tinha um
sabor de vitória, acabou cochilando.

Acordou ressaltado, como se tivesse um sonho da qual não lembrava. A cabeça


doía. Levantou-se do sofá e dirigiu-se ao banheiro, com o intuito de tomar um banho.
Atrás, no sofá, uma poça marrom se fazia no chão abaixo desse.

Tomou um banho quente, com a mesma satisfação com que imaginara que
Hutger Schuler tivera depois de tê-lo pisado e humilhado. A vingança lhe viera com a
força dos anos. A água caia em seu rosto com o mesmo efeito que caia em uma casa
de tinta nova. A antiga acaba aparecendo. Saiu do box e, enquanto se secava, fora se
olhar no espelho. Para sua surpresa, quem lhe olhara era Hutger, não ele. Olhou para
suas mãos, brancas e pálidas, diferentes de antes. Tocou em seus cabelos, antes
crespos, agora lisos e loiros. Então, percebeu. Deixara de ser ele há muito tempo.
Fechara o círculo. Tornara-se Hutger no exato instante em que tomara a decisão de
assumir seu lugar de carrasco e saíra do seu lugar de vítima. E lembrou que quando
fazemos aos outros o que nos fazem, de bom ou mau, nos tornamos a pessoa que nos
fez isso anteriormente. Em tudo existe uma continuidade secreta, uma lei de ação e
reação nata. Se oprimimos, ao mesmo tempo somos oprimidos. Ao mesmo tempo nos
é tirado algo indispensável. No fim, tudo faz parte de um eterno círculo vicioso.
Ações contrárias de mesma força e intermináveis. Olhava-se no espelho para saber
quem era. Não era mais ele, era o outro. E perdera sua identidade para sempre.
Ao cair das estrelas
* baseado na websérie ―Crônicas Estelares‖:
http://www.youtube.com/user/cronicasestelares

Não me lembro quando foi a última vez que dormi. Talvez antes de o grande
círculo de luz me turvar a visão. Acredito ter visto estrelas caindo após isso. A noite
aparenta nunca ter fim. Este dia parece nunca acabar e o amanhã nunca chegar. Não
me lembro quanto tempo se passou desde… não me lembro… tudo ainda é tão
confuso.

Meu braço esquerdo ensangüentado ainda dói devido meu ferimento no ombro.
O calor da selva é sentido até em minha alma e as picadas dos mosquitos são sentidas
por toda minha pele. Alguns sons e odores me trazem estranhas lembranças. Algumas
vezes, o odor da selva é desagradável, mas eu agüento tudo, afinal, esse é um preço
pequeno a ser pago em troca da vida e da liberdade. Encosto-me em um grande
jequitibá e mancho seu tronco de vermelho. Pelo meu ponto de vista nenhum homem
deveria ―pertencer‖ a outro. Fomos todos feitos livres para seguirmos nosso próprio
destino.

―Nossos intrincados destinos são um só…‖

Ainda posso sentir as feridas nas costas, mesmo que cicatrizadas, cravadas
pelas horas em que passei preso no pau-de-arara sendo chicoteado várias e várias
vezes pelo empregado de meu suposto ―dono‖. A cicatriz em meu rosto até hoje é
sentida. Há algo em minha mão esquerda que estrangula meu dedo. Uma reluzente
aliança que contrasta com a mão ensangüentada. Não consigo retirá-la, pois meu
dedo está muito inchado. Também não faço ideia de como ela foi para nele. Existem
muitas coisas que não me lembro e não fazem lógica. Algo desvia minha atenção do
objeto: um som como o de um tique taque e uma luz distante. Estão atrás de mim.

Preciso me lembrar. Superar a dor e recordar. Recordar quem eu sou. Chamam-


me Taú. Em minha terra, era conhecido como Lança Implacável. Nesta estranha terra
onde me exilaram, sou conhecido como escravo. Nasci guerreiro. Fui criado para
dominar. Entretanto, arrancaram-me de minha terra. Marcaram meu rosto.
Quebraram-me os dentes. Caçaram-me como a um animal. Prenderam-me com
correntes e me puseram em um navio. Os espíritos ancestrais me abandonaram. Mas
isso foi depois. Depois de ser vendido pelo meu próprio chefe da tribo. Agora não
tenho chefe. Não tenho tribo. Não tenho nada. Sou como uma ave desgarrada do
ninho buscando um lugar para chamar de lar. Semelhante às estrelas que vejo caindo.
Só tenho minha liberdade e uma chance. Contudo, algo me diz que em algum lugar,
eu deixei alguém. Quem? A dor não me deixa nenhum segundo. Não me permite
pensar direito. O sangue de meu ferimento se esvai. Mas não me lembro como me
feri. Fugindo? Sim, fugindo para longe dos grilhões do aço negro.
Negro como a cor de minha pele. Deixo os pensamentos sombrios para trás e
presto atenção nessa cena a minha frente. A floresta parece mais densa, porém
parece-me familiar. Como um sonho que já foi experimentado mais de uma vez. Um
riacho próximo convida-me a saciar-me. Uma sede sem fim me abrasa. Toco no
tronco de um jequitibá para que me ajude a sentar-me próximo da água e mancho seu
tronco de vermelho. Aproximo-me, pegando o líquido com as mãos em concha.
Contudo, não consigo beber a água. Algo me surpreende. A água que estava em
minhas mãos escorre entre meus dedos. Apanho um pouco e jogo no rosto.
Permaneço parado olhando o reflexo. Minha surpresa é tão grande que esqueço até a
dor. Que rosto é esse que me observa? Será o meu? Não pode ser possível. Não há
cicatriz. Todos os meus dentes estão perfeitos. Isso não pode ser! Minha memória me
trai. Vejo cenas de fatos que não ocorreram (ou acredito não haverem ocorrido). Vejo
os olhos de uma mulher. Mas não sei quem ela é (ou acredito não saber). Tenho um
nome nos lábios, mas não consigo pronunciá-lo. O reflexo observa-me atordoado.
Um som me devolve a atenção. O mesmo tique taque. Quantos estarão atrás de mim?
Não sei. É como se eu já estivesse fugindo a vida toda. Não faço ideia de quanto
tempo fujo ou de quanto tempo me resta.

―Ele é feio, mas é forte.‖ Foi o que o maldito comerciante de escravos disse
para o homem que ―comprou‖. Marcaram-me o rosto para que eu servisse de lição.
Esmurram-me a boca para que eu não incitasse os outros a reagir. Por que nos testam
como animais? Somos tão homens quanto eles! Mas talvez eles é que não sejam os
homens! Isso mesmo! Eles não são homens! São demônios! Demônios como os que
minha avó me falava quando eu era criança. Demônios que seqüestravam os
guerreiros mais fortes e os levavam para seus domínios no inferno. Se eles são
demônios, isto quer dizer que eu morri. Como não pensei nisso antes? Eu morri e isto
aqui é o inferno! Eu estou no inferno!

Desperto para este pensamento e nisso, o círculo de luz retorna sobre mim. O
clarão… minha mente clareando. As memórias retornam todas, como estrelas a
caírem.

Consigo pronunciar o nome dela: Isabel. Entendo nosso destino de párias. Vejo
o padre, o altar, a igreja e nosso casamento em segredo. Sinto o preconceito e a
incompreensão do mundo. Eu, escravo e negro. Ela, sinhá e branca. Vejo nossos
encontros escondidos. Experimento uma vez mais a perseguição. Revivo outra vez a
tocaia. Uma vez mais a bala transpassa meu braço. De novo ela cai alvejada
mortalmente. O círculo de luz, novamente, nos envolve e leva.

Um ruído ensurdecedor me desperta. Estou na selva, porém, não é a mesma


selva (nunca foi). Há um grande templo, construído a milhares de anos (pelo menos, é
o que acredito que seja), feito em pedra e aço. Dentro dele, há um altar de pedra.
Sobre o altar, ela jaz (mas não está morta) Isabel.
Não ouso tocá-la. Pelo menos, não ainda. Pendurado sobre ela está um relógio.
Interminavelmente a fazer seu tique taque. Consigo ver suas implacáveis engrenagens
se movimentando. Observo ao redor. É noite. Será eternamente noite neste templo e
as estrelas continuarão a cair ao seu redor. O círculo de luz está abaixo e acima e ao
nosso redor.

Ao cair das estrelas, entendo meu destino e o de Isabel. Nosso mundo agora
segue distante. Agora ele também é uma estrela a cair. Os ponteiros do relógio
seguem implacáveis.

Não ouso (ainda!) tocá-la. Não tenho certeza se estou morto ou sonhando.

Toco, porém, o relógio.

Se estiver morto, será me dado o descanso. Contudo, se estiver sonhando, será


me concedido o despertar.

Entretanto, se o que me ocorre não estiver em nenhuma destas alternativas,


entenderei os desígnios que me levam e, finalmente, saberei quem sou.
A Consulta
“Cegos são como demônios sem asas.”
Neuza Paranhos. “Anjos e gárgulas”

Entrou no consultório oftalmológico e sentiu o frio agradável do ar


condicionado. A grande sala de espera não possuía nada de especial. À sua esquerda
estavam as recepcionistas, num grande balcão. Quatro cadeiras lado a lado, sendo que
apenas uma estava desocupada. À sua direita, diversas cadeiras para as pacientes, mas
somente algumas estavam ocupadas. Apenas uma mulher gorda, uma menina com o
pai e a mãe, uma jovem estudante com alguém que parecia sua irmã e um rapaz de
rosto aquilino.

Dirigiu-se para a primeira atendente, no sentido da porta fumè para dentro, e


lhe deu seu nome e o do médico que iria consultá-lo. Ela, muito educadamente,
apanhou sua ficha e mandou-o sentar até que o médico pudesse atendê-lo. Todo o ano
se consultava com o mesmo oftalmologista, no mesmo consultório, pelo mesmo
problema: miopia galopante aguda. Desde criança enxergava o mundo através de seus
olhos de vidro. Sem seus óculos fundo de garrafa via menos que um morcego. Ficou
lendo uma revista sem compromisso enquanto o tempo passava.

Antes de entrar na sala do médico, a recepcionista veio e, com todos os anos,


pediu que ele tirasse os óculos para que ela lhe aplicasse o colírio que todos os anos
lhe aplicava.

Sentou-se confortavelmente no banco e esperou os efeitos do remédio. Por


acaso, ficou sentado de frente para a porta fumè. Via as pessoas entrando e saindo por
seus olhos embaçados e, reparou que logo atrás delas, uma sombra passava perto
delas e, em outros momentos, a porta se abria e fechava sozinha. Abaixou a cabeça e
fechou os olhos com as palmas das mãos, uma vez que ardiam muito. Minutos
depois, levantou-os e abriu-os bem, para que pudessem ser bem alimentados pela luz
fria das lâmpadas fluorescentes. No momento em olhou a porta, uma surpresa: logo
saindo da sala, uma criatura, vestida com roupas normais, mas possuindo barbatanas
que saiam de seu pescoço e subiam por toda sua cabeça grande e verde. Era um ser de
mais ou menos 2 metros e corpo forte. A camisa azul era colada em seus músculos
verdes. Coçou os olhos e não mais viu a criatura. Imaginou-a fruto do colírio. Algum
efeito colateral adverso. Foi à recepcionista perguntar qual a composição do remédio.
Ela lhe disse que era a mesma dos outros anos. Já estava se conformando, quando
olhou para trás e viu que em uma das cadeiras das atendentes que antes ele julgava
vazia, sentada estava outra criatura, com o mesmo uniforme das outras atendentes.
Essa atendente possuía em seu corpo enormes pinças saídas das costas e
protuberâncias pontiagudas saídas dos braços e do rosto, isso sem contar no longo
cabelo espesso e azul-marinho quase negro e na pele vermelha. Ela lhe olhou e sorriu.
Um sorriso com dentes marfim pontiagudos que lhe produziu um calafrio na espinha.
Ainda assim, lhe retribuiu com um magro sorriso.
Assustado, olhou para os lados enquanto ia para sua cadeira e reparou que as
criaturas estavam em todos os lugares. Andando junto com as pessoas normais.
Sentando ao lado delas. Tomando café como qualquer um. E pior, havia um sentado
ao seu lado lendo uma revista.

Após muito pensar, chegou a conclusão de que aquelas criaturas eram


demônios. Mas se o eram, o que estariam fazendo naquele consultório tão bem
conceituado?

Assustado, ouviu a recepcionista humana chamando-o para entrar na sala do


médico. Foi indignado, decidido a reclamar com ele sobre aquele despropósito. Como
é que poderia ser cabível tal desrespeito?

Sentou em frente ao médico e, sua primeira atitude foi reclamar:

— Doutor, como pode tal absurdo?! Acabo de ver demônios sendo atendidos em
seu consultório!

O médico, calmamente lhe disse, enquanto lia sua ficha:

— Que mal há? Eles são clientes como outros quaisquer! E além disso, estamos
aumentando nossa clientela.

— Mas, doutor, são demônios! — insistiu.

O médico, sem olhar para ele, ainda lendo sua ficha, disse apenas:

— Demônios também tem direitos.


Érebo

Ontem à noite eu tive um sonho…

Sonhei que andava sem destino pela neve branca…

Atrás de mim só estava o branco mortífero.

À minha frente só a mesma visão…

Em meu sonho eu estava ferido mortalmente.

Ou pelo menos assim me imaginava…

Sonhei também que em minha direção caminhava um jovem em chamas…

As chamas envolviam todo seu corpo, mas eu conseguia ainda ver seu semblante.

Não era um semblante assustado ou dolorido, pelo contrário, ele transmitia calma e
paz.

Andava tranqüilamente pelo frio congelante, em chamas e vestido com um kimono


rasgado e sem as mangas e de calça negras.

Possuía feições árabes, mas não lembrava um árabe.

Possuía feições judias, mas não lembrava um judeu.

Possuía feições latinas, mas também não lembrava um latino.

Possuía feições negras, mas também não lembrava um negro.

Possuía feições européias, mas também não lembrava um europeu.

Enfim, possuía um pouco de cada um de nós e não possuía nada de nós.

Ele andava devagar atravessando o frio e suas chamas sequer diminuíam.

Seus olhos verdes acinzentados transmitiam todo o mundo por eles.

E ele continuava andando em minha direção…

Acordo assustado e respirando difícil. É a quinta noite que tenho o mesmo


sonho estranho. Na verdade, era a quinta noite que tinha apenas uma hora e meia de
sono. Talvez deva ser o enclausuramento, ou quem sabe, o fato de saber que não
existe a um raio de uns 10 mil km. Ninguém, a não ser eu e o Murray, se bem que ele
não poderia ser considerado a melhor das companhias. Sempre calado e de
temperamento explosivo, enquanto eu, em minha ânsia por alguém para conversar,
tentava criar um laço de amizade com aquele eremita. Falamos apenas de nossas
pesquisas no extinto vulcão Érebo, localizado na região noroeste do círculo polar
Ártico. Ambos fomos escolhidos por sermos os mais dedicados geógrafos do Centro
de Geografia Internacional. As pesquisas haviam se iniciado depois de declarações
dos moradores da região sobre sons estranhos vindos do referido vulcão.

À princípio, achamos que era apenas o som do vento sobre os iglus dos
esquimós, mas depois que nos foi mandada uma fita que um deles gravou bem
próximo ao vulcão, mudamos de opinião. Era um som assustador, como o de gemidos
humanos, mas isso seria impossível, uma vez que as temperaturas dentro de um
vulcão são extremamente absurdas. Um ser humano derreteria completamente
somente se aproximando alguns quilômetros do referido centro. Meus colegas do
centro acharam melhor mandar dois de nós, ao invés de uma expedição completa
como de costume, para constatar a veracidade dos fatos. Um especialista em regiões
geladas e um em fenômenos vulcânicos. O primeiro era eu, o segundo, meu
misterioso companheiro, Murray.

O passado dele era uma incógnita. A única coisa que sabia era que ele havia
tido uma experiência próxima da morte antes de ser contratado pelo centro. Possuía
um currículo invejável. Dele, era só isso que sabíamos. Quanto a mim, minha vida
não era das piores, mas também não era as mil maravilhas. Anos atrás, havia perdido
minha esposa e meu filho ainda em seu ventre. Era um parto de risco. Ainda assim o
assumimos e aceitamos os problemas inevitáveis que ocorreram. Um dos dois deveria
ser escolhido para viver. Ela ou ele. Os médicos, mesmo a nossa revelia, optaram
pela minha esposa. Minha esposa morreu no parto, junto com o feto.

Estava sentado de frente para uma grande mesa na qual existiam fotos da
região, mapas cartográficos, duas xícaras de café e inúmeras pilhas de papel. Isso sem
contar no toca-fitas que levamos. Murray ouvia a fita várias vezes, tentando encontrar
algo que a denunciasse como uma fraude. Em vão. Os gemidos, apesar de parecerem
pertencer a uma pessoa já cansada, eram incessantes, como que, quem quer que
gritasse, estivesse passando por uma tortura horrível e ininterrupta. É certo que
isolamos o som dos demais sons pertencentes à fita. Pedras, chicotes, coisas pegando
fogo e outros gemidos em igual intensidade. Aparentava mais ser o som de uma
masmorra que o do interior de um vulcão. O som que mais nos chamou a atenção foi
um semelhante a um rio de magma, já gravado por nós em outro vulcão. Se realmente
tratava-se de uma montagem, estava muito bem feita. Se não era, como explicá-la?

Depois de muito relutar e discutir, decidimos por mandar uma sonda para
dentro do vulcão.

O processo de montagem de uma sonda além de ser demorado, é também


muito delicado. Não podemos simplesmente tirar a sonda de dentro da caixa e
mandá-la para dentro do vulcão. Primeiro por causa da energia gasta por ela, que não
é pouca, e depois por que uma sonda é muito lenta, totalmente diferente do que é
mostrado nos filmes. E principalmente por que não tínhamos muita prática com tal
material.

Levamos um dia inteiro montando os equipamentos, fazendo mapas e


programando os computadores. A ironia é que a sondagem em si leva no máximo 15
minutos, uma vez que, por causa da temperatura, o equipamento só agüenta esse
tempo. Após tudo terminado, decidimos ir imediatamente para o vulcão. Como já
havíamos perdido a noção do tempo, começamos nossa sondagem às 3 horas da
manhã. Sabíamos o horário se olhássemos no relógio, mas não éramos homens de dar
atenção para marcadores de tempo. A beleza do céu ártico à noite sempre me deixava
boquiaberto. E, lógico, meu companheiro sequer se importava com tais maravilhas da
natureza. Se achava bonito, não demonstrava. Murray, o homem de gelo.

A sonda entrou pela fenda calmamente, filmando tudo o que estava à sua
frente. Vimos a crosta congelada do extinto vulcão. Totalmente coberta de neve. Era
difícil imaginar algum movimento vindo de dentro daquele gigante adormecido. Mas
nós não imaginávamos que iríamos encontrar o que encontramos. À mais ou menos
uns 15 km do centro do vulcão, vimos aquilo que deveria ter sido nossa advertência
para desistir dessa louca empreitada. Um esqueleto encravado na rocha, que estava
mais escura, juntamente com a comprovação de que a temperatura local era de 35 o C.
Contudo, não um esqueleto humano, mas o de uma criatura semelhante a um lobo. Na
verdade se assemelhava com as descrições que os antigos têm dos lobisomens,
monstros incríveis, metade homem e metade lobo. Estávamos a uma distância
pequena, mas segura, do Érebo, ainda assim, aquela visão nos causou um enorme
arrepio. Pensamos em pesquisar aquele fóssil mais tarde e nos concentrar em nosso
real objetivo: o centro do vulcão Érebo.

A câmera foi descendo, e quanto mais descia, mais a temperatura aumentava.


Era como se o vulcão estivesse ativo, esperando um momento para explodir seu jato
de magma incandescente. De repente, a sonda parou. Não por que o cabo acabara,
pois ainda existia mais para alguns quilômetros. Era como se houvesse chegado ao
fundo do vulcão. Mas isso era impossível! Ou não?

A sonda havia parado de frente para um lago de magma e algo que se


assemelhava muito com uma escada feita de pedra. Tentamos fazê-la se mover para
frente com suas rodas. Nada. Tentamos pô-la para os lados. À toa. Por fim, tentamos
trazê-la de volta. Em vão. Era como se ela estivesse presa em algo. Decidimos
ampliar o espectro da câmera da sonda e teríamos descoberto o que a prendia se não
fosse uma tempestade de neve que começou ao nosso redor. Como estávamos um
pouco distantes da base de operações, decidimos desligar os aparelhos, abandonar
tudo ali e ir embora, para mais tarde continuarmos nossas pesquisas. Não tivemos
tempo sequer de desligar a sonda. Sobre nós caiu uma nuvem branca em alta
velocidade. Não preciso dizer que perdi de vista não só meu companheiro, mas
também todo o material. Juntamente com meu senso de direção. Permaneci andando
para onde imaginava ser meu sul, onde estava a base de operações. Neste momento,
em minha mente veio a lembrança de meu sonho. Novamente o jovem em chamas
vinha em minha direção, e com ele meu inevitável destino. Mas eu não poderia
morrer assim, num lugar como esse. Eu não deveria morrer assim. Continuaria
negando meu destino se não houvesse batido com a cara em um muro, que me fez ir
ao chão. Quando me levantei e olhei bem, percebi que não se tratava de um muro,
mas sim da base de operações. Não sabia como, mas havia chegado lá. Não seria
desta vez que a natureza me venceria. Fui tateando sua estrutura, tentando encontrar a
porta de entrada. A bendita porta de entrada! Quando a encontrei percebi que, para
meu desespero, a tranca estava tão congelada quanto eu. Comecei a forçar a porta,
puxando-a com todas as minhas poucas forças. É incrível o que uma pessoa
desesperada pode fazer. Arrombei a porta e, com a mesma força, fechei-a novamente.
Sentei-me de costas para ela e só aí me dei conta de que estava sozinho. Onde estaria
Murray? Talvez ainda perdido na neve. Quem sabe encontrou algum iglu e se
abrigou. Ou alguma caverna. Este lugar é cheio delas. Talvez morto, como eu. Não
me importava. A única coisa em que eu pensava era dormir. Dormir e nunca mais
acordar…

Enquanto dormia, minha mente vagou por lugares estranhos e nunca antes
visitados, mas já conhecidos. Em um desses sonhos, estava eu numa arena romana,
cercada de neve por fora, e quente como um vulcão por dentro. No auditório estavam
Murray, o conselho do centro de geografia, minha esposa e vários esquimós. Todos
gritavam pedindo a minha pele. Em frente a mim, na arena, duas criaturas me
fitavam. Ambas com mais de dois metros cada, corpos bronzeados e musculosos, e
cabeças de lobo, ao invés de humanas. Em princípio, achei que se tratavam de
máscaras, mas depois, olhando bem, vi que realmente eram os rostos de ambas. Antes
que eu pudesse reagir, pularam em minha direção, como dois cães famintos. Corri
para longe. Bati de frente a uma porta de madeira gigantesca que me impedia.
Comecei a bater nela com todas as minhas, mas era inútil. A porta sequer balançava.
Apenas emitia um som oco e ressoante. Continuei batendo, quando meu olhar se
voltou para meus dois algozes. Percebi que haviam me encurralado. Não havia outro
lugar para fugir a não ser pela porta. Meu desespero aumentara e comecei a bater na
porta com mais força. Até o momento em que os monstros enfiaram suas garras em
minhas costas e tudo ao meu redor escureceu…

Acordei sobressaltado, com uma pancada forte à porta. Deveria ser Murray! As
batidas então do meu sonho na verdade eram dele. Por quanto tempo será que ele
ficou batendo à porta? Gritei seu nome. Perguntei quem era, mas a única coisa que
ouvia era o som do vento. Tinha de ser Murray, quem mais seria? Usei o restante de
minhas forças para puxar a porta de modo que ela abrisse. Ele deveria estar ferido
para não abrir a porta, uma vez que era bem mais forte que eu. No momento em que a
porta se abriu, sobre mim caiu um cadáver já em acelerado estado de putrefação. O
cadáver de Murray!

Acordei mais uma vez, já não sabendo o que era realidade e o que era sonho.
Em minha frente, parado, estava Murray. Possuía os olhos fundos e as roupas
rasgadas, como se estivessem queimadas. Seu rosto, apesar de pálido, estava
extremamente bronzeado. Olhava para mim com o mesmo olhar de superioridade de
sempre.

―Vá embora daqui, seu inútil! Vá embora antes que fique do mesmo jeito que
eu.‖ Foi o que aquele espectro me disse e antes de desaparecer. ―Aqui é o inferno…‖
Fiquei sentado por horas imaginando o que significava tudo aquilo. Se realmente
acontecera ou se ainda era um sonho meu. Murray realmente deveria ter morrido
naquela tempestade e seu corpo poderia estar em qualquer lugar daquela tundra
gelada. Mas o que significara tudo aquilo que ocorreu conosco? Deveria haver uma
resposta para minhas perguntas em algum lugar. E eu sabia onde. Neste momento eu
decidi investigar o interior do vulcão. E não me importavam os avisos de uma alma
penada.

Esperei a tempestade passar, me equipei com o material necessário para meu


objetivo, deixei uma mensagem para o Centro, explicando tudo que ocorrera e,
quando não havia mais o que fazer naquele lugar abandonado, iniciei minha jornada.

Saí da base de operações sob a temperatura de –35o C. Ainda achava incrível o


fato de estar vivo sob aquelas condições climáticas. Aproximei-me dos aparelhos da
sonda. O cabo ainda fazia força, como se puxasse algo impossível de sair do lugar.
Deixei-o do jeito que estava. No vídeo, havia a indicação de que o espectro da câmera
estava aumentado, contudo,, não ousei o que ela transmitia por medo de interferir em
minha decisão e me fazer voltar atrás. Cheguei ao topo do vulcão. Exalava o bafo
quente como o de um grande dragão adormecido. Mesmo com medo, comecei a
descer pela boca do Érebo com o cabo da sonda. As vibrações do cabo, juntamente
com o ruído do vulcão, produziam em mim, uma sensação de desconforto como
nunca havia sentido.

Enfim, cheguei ao local onde a câmera estava presa. Não havia nada a
prendendo. A única coisa que senti, fora uma variação na gravidade local. Sentia-me
extremamente pesado. O cabo não puxava a sonda pois ela estava pesada demais.
Com extrema dificuldade me aproximei dela. Olhei para frente e vi o que ela estivera
filmando todo esse tempo. Uma escada de pedra descendo pelas paredes de uma
cratera, cujo fundo era escondido por uma espessa nuvem de enxofre. O odor forte do
enxofre entrou por minhas narinas no momento em que comecei a descer as escadas.
Quase desmaiei por causa do cheiro exalado pela nuvem. Mesmo com o corpo
totalmente coberto, com casacos e mais casacos, minha pele sentia como se enxofre
entrasse por meus poros.

Com dificuldade, ultrapassei a nuvem e continuei descendo a escada que ia em


espiral pela cratera. Olhei uma vez mais para o fundo e vi apenas a treva. Ainda
assim, continuei descendo, até ser engolido pela escuridão. Não sei o quanto mais
desci na escuridão, sei apenas que quando ela terminou, eu estava em uma espécie de
calabouço no fundo do vulcão. Ouvia gemidos e sons de um monstro gritando ao
longe. Continuei andando por aquele lugar, e quanto mais andava, mais o calor me
obrigava a retirar uma peça de roupa. Quando dei por mim, estava apenas de camisa,
calça e botas. E ainda assim, continuava com calor.

Ao meu lado, existia uma parede com estranhos desenhos. Uma em especial,
possuía caracteres que mais lembravam letras de um idioma totalmente diferente do
que eu já houvesse visto. Toquei a parede, para limpar a fuligem dos caracteres e
passei a entender tudo o que lá estava escrito. Lá dizia:

Este é o lugar das almas perdidas.

Este é o lar dos fracassados.

Este é o cárcere dos corações arrependidos.

Neste lugar, para sempre estará.

Neste lugar, todos os seus pesadelos se tornam realidade.

Aqui o sol não penetra.

Somente a treva é plena.

Aqui é a prisão e o lar da grande besta.

Somente a treva é plena.

Aqui se pode ouvi-la gritar.

Somente a treva é plena.

E no dia em que ela despertar.

Somente a treva será plena.

Todo o mundo igual será.

E somente a treva será plena.

Como seu coração…

… Inferno.

Minha espinha gelou ao ler aquela litania amaldiçoada. Continuei minha


jornada por aquele lugar que descobrira ser o inferno. O mesmo mostrado em várias
culturas e em diversas religiões. Não era algo fantasioso. E realmente, não era nada
bonito de se ver. Era real e existia no centro da Terra. Talvez eu estivesse delirando
por causa do enxofre. Poderia acordar e me descobrir sonhando a qualquer momento.
Será que o céu também em sentido literal?
Aproximei-me por entre as pedras, para o lugar onde ouvi os gritos. Fiquei
escondido vendo a cena que se desenrolava diante de meus olhos.

Vi milhares de pessoas com os braços algemados em uma tora, que carregavam


sobre suas costas. Essa tora estava presa por correntes em uma espécie de
engrenagem deitada. As várias pessoas que ali estavam presas, andavam em círculos,
movimentando-a . Quanto mais andavam, mais a engrenagem se mexia, e com ela,
todas as outras. As últimas, eram presas em correntes presas no teto, e as faziam
mover-se. Uma das pontas de cada uma das correntes, segurava diversas pessoas,
suspensas de ponta cabeça. Estas, eram jogadas dentro de uma enorme cratera,
inundada de magma, para, minutos depois, serem puxadas. Queimaduras
cicatrizavam em questão de segundos, a tempo de, recomeçar a agonia. E existiam
também, aquelas pessoas que, com as mãos nuas, carregavam pesados baldes cheios
de magma incandescente, trazido de um rio próximo. Eles também, sempre repetiam
o mesmo processo. Iam ao rio de magma, enfiavam os baldes e os braços, a uma
altura de até o cotovelo, dentro do rio fervente. Puxá-los depois e despejá-los na
cratera. Percebo também que, todos eram supervisionados por grandes e fortes
homens, que usavam roupas como a de guerreiros da idade média, tanto de culturas
ocidentais como orientais, era possível ver vikings ao lado de samurais. E em suas
costas, saíam duas enormes estruturas que se assemelhavam muito com asas negras.
Todos eram extremamente pálidos, e possuíam um arsenal de espadas, chicotes,
arcos, flechas e diversas outras armas medievais.

Fiquei por muito tempo horrorizado e impressionado com o que via ao meu
redor. Todavia, nada foi mais forte do que me veio a seguir. Uma das pessoas que
carregava os baldes com magma quente nas mãos era minha falecida esposa.

Minha primeira reação foi de espanto. O que minha mulher estaria fazendo
num lugar como aquele? Seja lá o que fosse, eu não deveria deixá-la fazer mais
nenhum momento. Disfarcei para que aqueles gigantes alados brancos não pudessem
me ver. Corri ao seu encontro. Quando ela me viu, chorou como uma louca. Largou
os baldes no chão, esqueceu a dor e me abraçou. ―Você veio me salvar.‖ ela disse.
Era o que eu pretendia. Corri com ela por entre pedras escondidas, sem perceber que
cada vez mais íamos para o fundo do vulcão.

Corremos feito dois desesperados, sem pronunciarmos uma só palavra um para


o outro. Ouvi atrás de nós o som como o de asas batendo. Nos escondemos atrás de
um grande pilar localizado bem abaixo do vulcão. Nossos algozes passaram por ele e
nos perderam de vista. Olhei para o rosto morto de minha pobre esposa. Por que ela
estaria neste lugar esquecido por Deus? Ela olhou para mim, como quem tem medo
até da própria sombra. Que espécie de horrores ela sofreu naquele lugar?

―Eu não amei nosso filho? Eu o matei? Eu não queria aquilo. Eu daria minha
vida por ele. Como eu me arrependo…‖ Enquanto ela dizia isso, me lembrei do que
estava escrito no início dos subterrâneos. ―Este é o cárcere dos corações
arrependidos.‖ Eu também viria para cá no dia em que morresse. E como seria
horrível, pois eu já sabia como era o inferno.

Enquanto pensava, ouvi algo como uma respiração profunda vinda do alto do
pilar. Olhei para o alto e meu coração gelou. Um gigante acorrentado dormia sentado
num trono, cujo pilar era uma das extremidades. Sua pele era bronzeada, suas orelhas
compridas, seu cabelo grande e em suas costas, enormes asas negras. Pela respiração,
notava-se que estava lá há muito tempo. Talvez milhões de anos. Desde o dia em que
foi expulso do céu. Que Deus proteja o mundo no dia em que ele acordar.

―Meu Deus…‖ sussurrei ao ver aquele gigante. A grande besta. De repente,


como se em crítica ao que havia dito, todo o lugar começou a tremer. Minha esposa
se desesperou. Disse para ela não se preocupar, pois eu iria resolver nosso problema.
Lembrei-me da sonda, na entrada. Possuía um controle remoto. Talvez ele servisse.
Liguei-o e percebi que a sonda respondera às minhas ordens. Programei-a para andar
em linha reta, não importando o que acontecesse. Corremos, eu e minha esposa para a
suposta saída. No meio do caminho, porém, fomos interrompidos por Murray, que
estava pior do que antes. Todo seu corpo, além de queimado, possuía milhões de
estranhos caracteres em línguas que não entendia e nunca tinha visto.

―Você é um inútil mesmo, veio aqui. E olhe só o que sobrou de mim. Um


dicionário ambulante.‖ Tentei ignorá-lo, no entanto, ele me chamou. ―Hospes, quod
dico paulum est: adsta ac audiere! Não adianta nada tentar levá-la. I won't maybe die
victim of the horror and of the mystery of the more stranger of all the hallucinations?
Como eu, ela está presa neste buraco para sempre. Él visible universo és una ilusión.
Todos nós somos amaldiçoados por nossos males passados. Angrwa fyiet uqg
antmirqx. Olhe para mim e veja no que me tornaram. Das unglück traurig sein oben
die Erde. Eu que nada dizia agora sou um dicionário universal. Je ne vous raconte
que la vérité. Não há mais nada. G’doch ew tujh’bar. Somente as trevas me fazem
companhia. E mesmo assim, atsuku moyase. Nenhum de nós merece salvação. Dixi.
Abi”. Depois de dizer todas aquelas coisas, aparentemente sem sentido, saiu andando
calmamente por entre as ruínas que ali existiam.

Continuei correndo com minha esposa, em busca da saída. Cheguei até onde
estava a escada. No chão se encontrava a sonda, totalmente despedaçada. Mais que
depressa, arranquei o cabo dela e amarrei-o em minha cintura, e na de minha esposa
também.

Liguei o cabo no reverso, para que pudéssemos ser puxados por ele. Em um
instante, estávamos subindo a cratera. Era como se as trevas ao nosso redor
estivessem vivas. Ouvi sons como lamentos vindos de todos os lados. Subíamos em
alta velocidade, contudo, quando chegamos perto da nuvem de enxofre, sentimos
como se houvéssemos sido puxados para baixo por uma força invisível. Minha
mulher, como era um fantasma sólido, escorregou pelo cabo e ficou segurando minha
mão. Entretanto, a gravidade fortíssima puxava-a. Perdendo já minhas forças, nossas
mãos se soltaram e ela caiu pela neblina intoxicante. Fui puxado com uma velocidade
além da imaginação pelo cabo e jogado para fora do vulcão. Caí em cima do solo
branco do Ártico. E acho que quebrei várias das minhas costelas.

Levantei-me andei sem sentido pela neve. Atrás de mim, só o branco mortífero.
A minha frente só a mesma visão. Estava ferido mortalmente. Ou pelo menos assim
me imaginava. Vi um rapaz, que poderia ser um ancião, vindo em minha frente, em
chamas e andando calmamente sobre o frio congelante. Usava um kimono rasgado
sem mangas e calça negra. Era o rapaz de meu sonho. Desta vez vi seu rosto, e
descobri quem era. Mas por que Ele viria neste fim de mundo? Somente para me
salvar? Não sei. Sei somente que fui ao chão antes de ele tocar minha face com sua
mão direita. Notei que em seu peito existia algo. Um coração cercado por espinhos e
também em chamas. Ele me sorriu e tudo se tornou branco. Branco como a neve.
Branco como a morte.

A realidade pode ser mais fantástica do que um sonho.

Hoje, parei de sonhar e acordei…

… para sempre…
Copo Empoeirado

Era uma vez um copo empoeirado em cima de uma geladeira de hotel. Um


copo de vidro vazio. Inerte. Sem nada de especial. Apenas um copo de vidro, como
aqueles que se acha em qualquer bar. Apenas um copo.

Não se sabe quem em sua esplendorosa amnésia o esqueceu por lá, em cima
daquela geladeira. Nem quem, nem quando, ou até mesmo, por quê. Talvez tivesse
sido alguma sede que passou. Talvez. Ou talvez, a precaução para alguma futura sede
que pudesse ocorrer. Quem sabe, há doido nesse mundo para tudo. Não importava o
motivo. O copo estava definitivamente lá. Fazendo parte da paisagem.

Uma coisa se tinha certeza, aquele copo não estava lá por falta de copos no
hotel. Uma vez que o local onde ele havia se hospedado era a suíte de um grande
hotel, daqueles que entram e saem várias pessoas ricas e importantes, embaixadores,
bacharéis, empresários, banqueiros, e vários outros componentes da alta roda da
sociedade. Lá estava o copo. Destoando toda aquela opulência. Quem diria que um
simples copo chegaria tão longe?

Coincidência ou não, o presidente do país onde se localizava o hotel do copo,


foi justamente se hospedar no hotel onde o copo hibernava seu sono de séculos. E,
por uma coincidência ou não ainda maior, justamente no quarto onde o copo passava
seus dias e noites sem fim.

Ao entrar em sua suíte presidencial, é óbvio, o presidente nem mesmo ficou


estupefato com tanta beleza e ostentação. A sala era enorme, tanto em largura quanto
em profundidade. Toda acarpetada, com rodapés dourados, armários em mogno
maciço, plantas ornamentais raras cercando todo o ambiente, sofás ovais enormes,
negros como o ébano e quadros caríssimos cercando quase todas as paredes daquela
sala que parecia ser saída de um daqueles filmes de Hollywood. Mas o presidente
apenas passou por ela direto, sem nem ao menos olhar o que havia naquela sala única.
O quarto era um sonho. O que qualquer casal em lua-de-mel desejaria estar se
encontrava naquele cômodo. A cama de casal, em ferro inox era forrada com um
lençol cor vinho, ótimo para os amantes. Possuía ainda um enorme espelho no teto,
talvez para as noites mais quentes. E um frigobar com vinhos e champanhes de várias
marcas, e vários gostos. Sem contar nas outras bebidas quentes que eram oferecidas
pelo hotel. O quarto era ótimo para aquelas noites em que se quer fazer qualquer
coisa menos dormir. Entretanto, o presidente apenas entrou no referido quarto e não
outra coisa senão descalçar os sapatos, sem sequer olhar para aquilo tudo. Tudo o que
ele queria era um bom e gelado copo d’água, que só poderia ser encontrado na
cozinha.

Aquela cozinha monstruosa possuía um fogão de seis bocas, a bancada de


mármore possuía duas pias. Armários embutidos cercavam toda a extensão da
cozinha. Tudo naquele cômodo era grande ou duplicado. Os ladrilhos do piso eram
creme escuro, enquanto os da parede eram creme claro. Uma geladeira duplex, de
100 litros, gigantesca, mistura de geladeira e freezer encontrava-se ao fundo da
cozinha. E, em cima daquela geladeira tamanho família, encontrava-se um copo. Sem
nada de especial. Não era um pinguim de geladeira, ou coisa do gênero. Era apenas
um copo, daqueles que se encontra em qualquer botequim.

Imagine a surpresa do presidente ao se deparar com aquela cena? É óbvio que


ficou indignadíssimo ao ver aquele copo insignificante, imundo em cima daquela
geladeira creme lindíssima. Chamou imediatamente seu secretário, reclamando sobre
tal situação. Este, eficientíssimo, disse-lhe que resolveria o assunto.

No momento em que ele saiu do quarto, teve uma conversa seriíssima com o
segurança do presidente, afinal, ele sempre vistoriava os locais onde o presidente rira
se hospedar e, era um absurdo um copo imundo passar despercebido por aqueles
olhos treinados. Ao fim, o secretário mandou o segurança resolver o problema, pois
tinha assuntos mais importantes a tratar e não poderia se deter com assuntos tão
ínfimos.

O segurança desceu até o saguão do hotel e conversou com o homem que


poderia resolver a situação: o gerente. Após ouvir toda a história contada pelo
segurança, o gerente do hotel sentiu-se envergonhado e prometeu que iria resolver o
problema o mais rápido possível.

Logo assim que viu o segurança do presidente subir o elevador, o gerente


chamou a recepcionista e queixou-se com ela. Era o fim da picada o presidente
encontrar um copo sujo em cima da geladeira da maior suíte do hotel. Isso seria
péssimo para os negócios. Alguém precisava ir até o quarto do presidente resolver
esta situação calamitosa. E a recepcionista foi a escolhida.

Ela reclamou, urrou, mas de nada adiantou e foi indo cumprir sua difícil
missão. Na metade do caminho, ela encontrou o porteiro do hotel e fofocou tudo para
ele. Claro que, ela, usando de seus dotes femininos, convenceu o porteiro a ir resolver
o assunto para ela. Ele, imaginando talvez, algum favor da moça em troca, aceitou a
tarefa.

Chegando ao elevador, o porteiro conversou sobre tudo, morrendo de rir com o


ascensorista do elevador. Ambos caíram na gargalhada por causa dessa história
absurda. Conversa vai, conversa vem, o porteiro pediu ao ascensorista que arrumasse
a situação, já que ele ficava passeando de elevador o dia inteiro. Um pouco relutante,
o ascensorista resolveu fazer o favor para o porteiro, já que devia dinheiro para o
outro.

No momento exato em que o ascensorista ia ao quarto do presidente, a


arrumadeira passou por ele, fato que lhe dá uma daquelas ideias que só temos quando
nos convém. Ele fez floreios, elogiou o serviço dela, como deixava as camas
arrumadas, os banheiros limpos, e todos os quartos com cheiro de novo, até que
entrou no referido problema. Ele lhe prometeu um dinheiro em troca do favor e esta,
nada boba, prometeu que não só resolveria este problema, como também iria vigiar
para que outros incidentes como esse não se repetissem mais.

No momento em que saiu do elevador, pronta para fazer o serviço, ela decidiu
interfonar para a portaria e chamou o carregador, também chamado de boy. Quando
ele chegou perto dela , ela foi curta e grossa: alguém deveria tirar o copo de cima da
geladeira do quarto do presidente e este alguém era ele.

―Sempre sobra pr’á mim!‖ reclamou o carregador. E, conversando consigo,


tomou uma importante decisão ―Não farei nada disso. Que outro idiota o faça!‖ E
assim, o carregador voltou atrás bem no momento em que estava em frente à porta do
quarto da presidente. E foi embora. E o copo continuou em seu lugar adotivo.

O presidente saiu do hotel o mais rápido possível, não se esquecendo de deixar


sua queixa por escrito ao dono do hotel e a promessa de nunca mais se hospedar lá.
Ao ler aquela reclamação, o dono do hotel tomou uma decisão drástica, demitindo
todos aqueles incompetentes e contratou profissionais treinados, além de mandar um
pedido de desculpas por escrito ao presidente, com uma garrafa de champanhe junto.
E o copo continuou lá.

O tempo passou. Outros presidentes vieram, se hospedaram no mesmo hotel e


foram para o mesmo quarto. Ficaram indignados da mesma maneira e nada fizeram.
E o copo ficou lá. Outros funcionários foram demitidos e novos contratados e nada
fizeram. E o copo continuou lá. O hotel teve vários donos depois, que por sua vez
nada fizeram, a não ser ouvir reclamações e demitir funcionários. E o copo continuou
lá, tombado à história. Um patrimônio do hotel. Um ponto turístico a ser visto por
todos os governantes do mundo.

Um copo empoeirado em cima de uma linda geladeira creme, numa suíte de


hotel. Talvez sempre estivesse lá. Nunca havia saída dali. Nunca havia estado em
outro local. Sempre estava ali, naquela suíte de hotel. Fazendo parte do cenário e das
sedes nunca vão chegar…
Dom: a infame autobiografia secreta autorizada e inacabada de Dênis
Vasconcelos (1954-1974+)

Você deve estar se perguntando por que te deixei entrar aqui…

Espero que as marcas de sangue no chão do corredor não tenham te


impressionado. Não tive nada haver com aquilo, diga-se de passagem.

Os presos da cela ao lado estranharam-se novamente. Vinte homens confinados


num cubículo onde deveriam haver dez, causa certo desconforto. Principalmente,
neste lugar, repleto de artistas e adeptos da sociedade alternativa. O AI-5 não perdoa
nenhum deles. Mas não estamos aqui para falar dos métodos de administração do
Governo, estamos? Aqui, o instinto não fala, grita.

Comigo isso não é problema, como pode ver. Eles têm medo de mim. Por isso
eu permaneço sozinho. Os próprios agentes têm receio em colocar alguém para
dividir cela comigo.

O jeito como falam já denuncia: ―Dênis Vasconcelos, visita.‖ Faltou apenas o


termo ―senhor‖. Olham-me de soslaio, como alguém próximo da jaula do jaguar.

E eu os entendo. O próprio fato de você estar aqui comigo já é motivo de


receio. Da sua parte. Mas, não se preocupe. Saiba que aceitei sua visita por que sei de
suas intenções. E elas me interessam.

Agora, vamos ao que é realmente relevante…

Segundo me lembro, sou acusado de haver assassinado minha namorada e meu


melhor amigo, sendo condenado ao corredor da morte.

Segundo me lembro, eu sou culpado.

Quanto mais próximo o fim, mais esclarecedor se torna o início.

Minha história não é um conto de fadas, é uma saga. É a saga de um vilão.

Em meu cárcere, meus fantasmas vêm me visitar todos os dias. Não para me
condenar, não para me assombrar, não para me torturar. Do mesmo modo que faço,
eles vêm para me ver. Nada falam, também permaneço em silêncio.

Os guardas acreditam que eu seja esquizofrênico.

É provável que também o seja.

Mas sou mais que isso.

Eu sei o que está pensando.

Não em sentido figurado.


Eu realmente posso ―escutar‖ os pensamentos dos outros.

Em escala maior, posso influenciar as pessoas a fazerem coisas. Coisas que


para elas parecem desagradáveis.

Agora assim, você deve acreditar que eu sou esquizofrênico!

Mas, como já disse antes, sou mais que isso...

Como eu descobri?

Resposta difícil talvez eu sempre possuísse a habilidade. Minha mãe sempre


me disse que eu era especial. Que estava destinada a grandiosidade ela estava certa.

Minha mãe criou-me sozinha depois que meu pai morreu ou sumiu, quando eu
tinha cerca de quatro anos. Nunca soubemos o que realmente ocorreu. A única
certeza sobre ele é que trabalhava para o Governo e sumia de vez em quando. Um
dia, saiu de casa e nunca mais voltou.

Passamos a minha infância a sua sombra, até minha mãe decidir tentar seguir
em frente.

Foi quando ela arrumou um traste que tinha como passatempos preferidos
beber e espancar mulheres. Não sei qual foi o dia em que ele chegou em casa e
levantou a mão Pra minha mãe.

Sinceramente, não entendi até hoje como tudo aconteceu. Lembro-me de tê-lo
em minha frente (ele era muito maior que eu, na época) e gritar ―Larga minha mãe e
sai da nossa vida!‖ que ele obedeceu prontamente.

Nunca mais o vimos.

Desse dia em diante, as mentes das pessoas eram para mim como um rádio cuja
estação eu definia a meu bel prazer.

Apesar de não ser dos melhores alunos, minhas notas eram impecáveis, posto que as
mentes dos professores faziam-me o favor de me ditarem as respostas das provas.
Não pagava para entrar em um cinema, já que me concediam passe livre no filme que
eu desejava, inclusive os de classificação imprópria.

Na época, eu tinha um amigo, quase um irmão, Raul. Minha falta de


imaginação em cometer algumas violações era compensada pelo fato de ele ser um
gênio do crime.

Praticávamos pequenos furtos, dávamos golpes e seduzimos as garotas nas


festas. Essa fora minha adolescência. E eu era feliz. Pelo menos eu acreditava.
Pelo menos até eu conhecer Aurora. Ela era inteligente e de personalidade
forte. E, pior, imune a minha influência. Isso atiçava-me. E, de certa forma,
melhorou-me.

Diminui os golpes com Raul, que também parecia haver se emendado também.
Arranjei um emprego numa oficina mecânica e até voltei a freqüentar a escola. Minha
mãe olhava feliz a mudança em seu único filho.

Entretanto, conforme eu disse anteriormente, esta é a saga de um vilão.

Amava Aurora, mas algo em mim precisava de mais. Por isso, às escondidas,
eu deixava a sombra ser alimentada por mulheres de índole duvidosa.

Não sei se lhe contei mas – muito devido a meus singulares dons – eu era
afligido por uma constante dor de cabeça.

Aí entra uma das mulheres (ou melhor, você sabe quem entrava, ahahahah).
Uma delas apresentou-me as drogas.

Cometi meu primeiro erro: deixei-me levar. Dizem que as percepções das
pessoas normais são modificadas com os entorpecentes. Eu, sinceramente, não sei.

Comigo, a droga abriu uma perspectiva que nunca imaginara. Era como abrir
em uma porta. E do outro lado estava o mundo. Não sei até hoje se o que vi foi uma
premonição, ou uma alucinação fruto da droga. Ou ambos.

Vi quatro meninos. Vi uma cidade em ruínas. Vi uma lua crescente que se


tornava minguante. Vi um mar de cadáveres e eu andava sobre eles. Vi minha mãe
chorando lágrimas de sangue. Vi Aurora afundar em um rio de sangue e um Raul
esquelético.

Ao fim, eu era outro. E a quantidade de erros que eu cometeria só aumentaria.

Aurora tentou me avisar. Raul tentou me avisar. Minha mãe tentou me avisar.
Mas eu já estava além de qualquer redenção.

A verdade é que a droga NÃO me viciou. O seu uso foi simplesmente um


gatilho para que eu perdesse o medo de usar minhas habilidades e explorasse meu
verdadeiro potencial.

Usava quando achava que a consciência – que ainda insistia em me incomodar


– me atrapalharia. À medida que praticava, seu uso diminuía, até o momento em que
não precisava mais, pois havia conseguido matar minha consciência.

Passei a evitar minha mãe, saia de casa antes dela acordar e chegava quando
ela já dormia. Terminei com Aurora, mesmo que não oficialmente, já que nada falei a
ela. E não conversava com Raul.
Descobri meus talentos ocultos. As pessoas passaram a meros fantoches de
minha vontade. Não mais praticava os truques e golpes da adolescência. Eu cresci.
Era isso que eu achava.

Quando queria dinheiro, ia a algum banco e dominava a mente de algum caixa


ou gerente que depositava satisfeito a quantia que eu desejava em minha conta. Até
hoje a tenho em um paraíso fiscal (bem servida, por sinal).

Saciava meus desejos sexuais com a mulher que queria à hora que desejasse. E elas
acreditavam que eu era o marido, o namorado, ou simplesmente, o homem que
pertencia à suas fantasias.

Nem mesmo os guardas me atrapalhavam. Quando eu andava sozinho, uma vez ou


outra um deles me fazia escolta (acreditando ser eu um superior, é claro!).

Também me descobrir detentor de outros talentos, que não acho ser necessário
contar histórias. Basta você saber que não havia porta que eu não pudesse destrancar
mentalmente. Objeto algum estava distante de minha mão, pois eu os trazia. Entre
outras bizarrices.

Fui criando para mim uma vida bem cômoda. Até o dia em que o dono da
oficina em que eu trabalhara, um homem corpulento e de pouca instrução, encontrou-
me na rua. Num tom paternal, porém duro, ele me dizia que eu estava estragando
minha vida e que deveria emendar-me. Ele até mesmo me aceitaria de volta ao
trabalho, uma vez que isso traria de volta a confiança da minha mãe em mim. Era o
conselho de um pai. Pena, eu nunca tive uma figura paterna.

Na noite daquele mesmo dia, ele recebeu uma visita que lançou-o três vezes no
teto e duas num Opala, e só não foi morto porque havia algo que insista em dizer:
―Você é humano.‖

Uma semana depois, ao final de mais um dia agindo como ―O Rei do Mundo‖,
encontrei minha casa diferente. As luzes estavam todas acessas e pensei
imediatamente: aconteceu algo com mamãe.

Sim, acontecera. Mas não aquilo que eu imaginava. Encontrei-a de braços


cruzados, próxima da porta. Cansada e com olheiras, e percebi o quanto minha mãe
estava velha. Aurora e Raul estavam sentados dentro de casa.

Entrei ignorando tudo aquilo que minha mãe falava. Parei próximo a um
espelho e pude observar que Aurora e Raul se aproximavam. Falaram em tudo que eu
já passara em minha vida.

Parecia que meu corpo houvera desligado para aquela cena, religando somente
quando Raul me tocara.

Esse foi meu grande erro: ―ouvir e ver‖ os pensamentos de meu amigo.
Descobri que ele contara a minha mãe e a Aurora sobre minhas habilidades. Contou
sobre tudo o que já havíamos feito e minhas visitas a bordéis, sobre como eu me
afastara dele e o que fizera com meu antigo patrão. E descobri mais. Descobri que ele
era apaixonado por Aurora e sofria ao vê-la sendo enganada por mim. Eu não entendi
desse jeito. Para mim, ele não era um amigo evitando a mulher que amava pelo bem
do melhor amigo. Era um traidor. Inebriado de ódio, eu o lancei para longe e fí-lo ter
um ataque mental repentino e fulminante.

Aurora correu para acudi-lo. Quando ajoelhou-se para levantá-lo, eu a fiz


permanecer no mesmo lugar, pois dei a ela um infarto. Ela era uma traidora e não
merecia viver mais um segundo.

Minha mãe olhava-me sem sequer se mover. E fora aquele olhar que me fez
cair em si. Os olhos da mulher que sempre me vira como um menininho perdido e
sem pai. O olhar da mulher que ainda me amava, mesmo tendo me tornado um
monstro. Não. Eu não escutei a mente de minha mãe. E nem precisava. Seu olhar
dizia tudo.

Minutos depois, ciente e arrependido pelo que fizera, e tendo minha mãe como
testemunha, eu chamei os policiais que me atenderam imediatamente.

Minha prisão já tem cerca de seis meses. Certo que fui eu que influenciei juízes
e promotores para que me dessem a pena mais dura. E aqui estou. Expiando meu
maior pecado. Tomando consciência do que realmente sou.

Ouvi dizer que todo homem persegue algo, um objetivo, uma meta, o que for,
durante toda sua vida, mesmo que ele próprio não o saiba. Comigo foi assim. Porém,
gostaria que soubesse que não, eu não acredito em destino. O destino nada mais é que
uma escolha feita. É como se eu houvesse aberto uma porta.

Percebo que, desde o dia em que expulsei meu padrasto abusivo de casa, desde
o dia em que descobri meus insólitos dons, desde o dia em que passei a escutar a
mente das pessoas, eu tenho perseguido um objetivo: morrer. Não se impressione. Eu
não me impressionei quando descobri.

Isso significou que, todos que conheci, tudo o que fiz, todo o mal que causei,
tinha o único propósito de encontrar um meio de morrer, posto que eu mesmo não
possua até hoje a coragem necessária para dar termo a minha vida.

A execução será em poucas horas. Os guardas estão apreensivos. Pensam que


eu farei algo. Mas se enganam. Não irei como um cordeiro a ser imolado. Serei um
touro no abatedouro. Que sabe seu fim, mas o encara sem medo. Por que eu sei que,
quando um homem morre, uma porta se abre.

Estranho você desejar me visitar hoje. Hoje, quando eu finalmente estou


próximo de alcançar meu objetivo. Hoje, você me vem com essa proposta absurda?
Trabalhar para o Exército… programas experimentais secretos… auxiliar na
ordem… Guerra fria…

Agora é sua vez. Diga-me, coronel, como eu posso servir a meu país?
A Prole de Narciso
“O toi plus parfait que Aloi-même.”
Paul Valéry “Fragments de Narcisse”

Achava-se muito bonito. Em momentos, irresistível e, realmente o era.

Narciso era uma daquelas pessoas que chamam atenção aonde chegam. O tipo
de homem que apaixona todas as mulheres e é invejado por todos os homens. Saber é
poder. E sabia-se possuidor dessa arma chamada beleza, e pior, sabia muito bem
como usá-la. Prova disso era seu cargo, conseguido após vitoriosas e diversas
seduções a variadas superioras. E isso, sem sombra de dúvida, provocava em seus
colegas, como ele mesmo gostava de dizer, um ―espírito negativo‖, que ele, é lógico,
não partilhava.

Na verdade, Narciso era um canalha. Desses que aos quinze come a tia rica
solteira só para ganhar aquela mobilete vermelha e, depois que o escândalo vem à
tona, diz que foi seduzido. Ou que vai para a escola com aquele short curtíssimo e
fica balançando as pernas na aula de matemática, para aquela professora mal amada e
mal casada dar-lhe uma nota mais alta.

Dizia-se conhecedor do interior das mulheres. Sabia que todas, bem lá no


fundo, queriam apenas um amante loiro, de corpo bem feito, bem disposto e que
durasse apenas para uma noite. Mas Narciso não era só sedução e prostituição do
corpo. Ele tinha um propósito oculto: a perpetuação da espécie. Sua missão sagrada
era criar um rebento à sua imagem e perfeição. De preferência um homem, uma vez
que as mulheres são mais vulneráveis.

Deitara-se com todas. Morenas, asiáticas, negras, loiras, ruivas. Altas e baixas.
Gordas e magras. Amigas e inimigas. Gostosas e desgostosas. Amadas e mal amadas.
Até mesmo as lésbicas mais convictas. Nenhuma escapava de seu charme e de sua
cama. Alanahs, Alettas, Annas, Ashleys, Bárbaras, Brianas, Carlas, Carmens,
Carolines, Cléos, Danis, Devons, Elianas, Evas, Fabianes, Felicias, Fernandas,
Gabrielas, Gianas, Hanahs, Hollys, Imanis, Isis, Isabellas, Janines, Jasmines, Jennas,
Joanas, Julias, Keilas, Kerrys, Kiras, Lisas, Luanas, Mercedez, Mônicas, Nikkis,
Ninas, Nilzas, Ofélias, Osas, Pamelas, Paulas, Priyas, Quenias, Queenys, Ritas,
Roxannes, Sandras, Saras, Silvias, Shylas, Tanias, Terezas, Umas, Úrsulas, Valeskas,
Vanessas, Verônicas, Vivianes, Wendys, Whitneys, Xenas, Xeylas, Yokos, Yumis,
Zdenkas, Zélias, Zoes. Um alfabeto sexual. Para ele, apenas nomes, corpos
amarrotados em sua cama. Apenas companhias para uma noite. Satisfações de
prazeres noturnos. No entanto, nenhuma possuía aquela perfeição que ele procurava.
Que ele próprio tinha. Uma tinha os seios grandes demais. Outra, unhas encravadas
nos pés. Os ombros de outra não eram atraentes. Aquela, dentes muito separados. A
outra, muito bela, era burra como uma porta. Enfim, um desfile de imperfeições.
Contudo, provara a todas, apenas com o intuito de encontrar a parceira perfeita. A
Eva. Aquela que lhe serviria de instrumento para manter seu legado sobre a Terra.
Um dia, num bar qualquer, já perdendo as esperanças entre um copo e outro de
tequila, a inspiração lhe surge na forma de uma morena longilínea, de ombros
simétricos, coxas arredondadas, mãos delicadas, formas sinuosas, seios convidativos,
lábios eróticos, sorriso branco e sem falhas, ventre torneado, olhos de Capitu,
nádegas de passista, longos e lindos cabelos tingidos e um bronzeado artificial
perfeito. Na mais simples das definições, uma mulher extremamente gostosa. Talvez
a mais gostosa que já vira em toda sua vida. E já havia visto e tocado em uma grande
infinidade de mulheres Não reparou na roupa que aquela Vênus moderna usava, uma
vez que imediatamente, à primeira vista, imaginou-a nua. ―Se ela quisesse, poderia
ter qualquer homem que desejasse. Mas homem, já basta eu.‖ Pensou
automaticamente.

Aproximou-se da beldade. A corte foi rápida. Sabia fazê-la muito bem. Uma
bebida, algumas palavras sussurradas ao pé do ouvido. Aquele velho jogo de cartas
marcadas. A nativa, por sua vez, havia se agradado daquele nórdico que lhe tentava
convencer. Gostava daquela sensação que causava em todos os homens e aquele
parecia ter algo a mais que os outros para lhe oferecer. Ele sabia que conseguiria o
que viera buscar. Por anos havia planejado cuidadosamente aquele encontro. Aquele
momento único. Já estava com tudo preparado.

Seu carro dirigiu-se rápido para um motelzinho nas proximidades.

Os detalhes do quarto quadrado e semi-iluminado sequer foram notados.


Roupas arrancadas e lençóis ao chão. Libido desenfreada mútua. Partira para cima da
fêmea de maneira insaciável e esta lhe respondera de igual forma. Mordidas,
arranhões, beijos. Movimentos eróticos e incontroláveis. Não eram homem nem
mulher. Eram dois animais na cópula.

Horas depois, a mulher deitada num canto ignorado da cama, acendendo um


cigarro. Narciso, de costas para ela, com o olhar infinito. Seus pensamentos vagavam
entre sonhos obscuros e imagens obtusas. Podia-se até imaginar estar chorando.

―Não se preocupe.‖ disse-lhe a mulher. ―Isso acontece com qualquer um…‖


Do outro lado da janela

Eram quase seis da tarde e Nicolau voltava da visita quinzenal que fazia ao
túmulo de seus pais.

Beirando os sessenta anos, o descendente de judeus de cabelos e barba brancos,


parecia mais velho. Sempre assim se assemelhava após suas visitas. No momento em
que chegou em sua casa, um humilde sobrado no subúrbio, sentiu um cheiro familiar,
que não sentia há muito tempo. Dirigiu-se à cozinha para ver o que Joana, sua
empregada, estava cozinhado.

— O que está fazendo Joana? — perguntou.

— Peixe ensopado, seu Nicolau. — respondeu a empregada mulata.

— Minha mãe fazia um que era delicioso. — respondeu. Sua mãe havia
morrido de solidão, um ano após seu pai morrer de um infarto fulminante no sótão de
sua casa, onde moravam os três.

— Ela morreu faz muito tempo, não? — perguntou ela, sem intenção de
ofender, por pura curiosidade.

Nicolau apenas deu as costas para a empregada e nada respondeu. Faziam


cinco anos.

Olhou a porta do quarto deles. Vinte anos fechada. Vinte anos sem que uma
viva alma atravessasse aquela porta. Neste momento, sem nenhum motivo especial,
decidiu abri-la. Tirou a chave hibernante que sempre guardava no bolso da calça e
colocou-a na fechadura. À princípio, ela estava dura como pedra, mas, com um pouco
de esforço, cedeu de tão velha. Girou a maçaneta da porta e a abriu. A porta rangia
horrivelmente, graças aos anos que estava ali, parada, entregue ao efeito do tempo.

Ao entrar no quarto, milhões de recordações inundaram sua mente. Lembrou-se


principalmente, e não sabia o porquê, de quando uma vez, quando criança, encontrou
naquele quarto, uma planta do sótão da casa e fora brincar, achando talvez, que se
tratasse de um mapa do tesouro. Quando seu pai o encontrou brincando com aquele
pedaço de papel, deu-lhe um sermão de mais de meia hora, além de fazê-lo prometer
nunca mais tocar naquela planta até tornar-se adulto. O tempo passou, e com ele, a
amnésia que todos temos. Tornou-se adulto, mas sequer lembrou-se daquele mapa,
até o dia de hoje.

Sabia exatamente onde seu pai havia escondido o mapa. Em cima do armário.
Não foi esforço algum para ele, erguer a mão direita e pegar aquela folha de papel
velha de cima daquele armário empoeirado.
A maior surpresa para Nicolau, foi o fato de a folha, apesar de velha, continuar
intacta.Com suas mãos enrugadas, desdobrou o papel, e nele viu desenhado,
exatamente como era na realidade, o sótão. Inclusive com todos os entulhos que um
sótão possuía. O que mais chamou a atenção de Nicolau foi, dessa vez, um ―X‖
marcado em um ponto do cômodo. Uma janela. Mas, por quê?

Neste momento, ouviu Joana chamando-o, pois o jantar estava pronto.

II

Duas pessoas, cada uma em sua solidão, partilham momentos de silêncio em


um jantar que, já havia se tornado rotineiro. Todas as noites eram iguais naquela casa.
Joana já estava acostumada a aguentar a tristeza que se respirava naquele lugar que
aprendera a chamar de lar. Como Nicolau, era também vítima de uma tragédia
familiar. E se acostumara a entender porque Nicolau era tão nostálgico e saudosista.

— O jantar estava delicioso, Joana. — disse Nicolau, repetindo um velho ritual


e pensando no mapa que encontrara horas atrás.

— Obrigado, seu Nicolau. — disse ela. — E me desculpe pelo que eu


perguntei sobre seus pais.

— Não ligue para esse velho ranzinza. Existem coisas que eu não gosto de
falar, mas você não é a culpada. Mas se quer saber, meus pais morreram há vinte
anos. Bom, na verdade, meu pai, há vinte um infartado, minha mãe foi um ano
depois, de solidão. Desde então sou somente eu e esta casa.

— Quanto tempo. E o senhor, não pensou em ter filhos?

— Na minha idade, Joana? Quem iria querer este velho decrépito e


resmungão? Mas eu tive um filho sim, há muito tempo...

— E onde está esse desnaturado que nunca vem ver o próprio pai?

— Morreu junto com a mãe.

— Me desculpe mais uma vez. Eu e minha boca grande…

— Não se preocupe. Algumas feridas cicatrizam melhor do que outras. Depois


que eles se foram, eu voltei a morar com meus pais.

— Sei como se sente. O meu morreu criança ainda. Junto com o pai, aquele
pinguço dos diabos.

— Não diga isso.

— Por que o miserável foi fumar em cima da cama e adormecer? Ambos


morreram incinerados, enquanto eu trabalhava. Às vezes acho que a culpa também
foi minha. Eu sabia que algo do tipo poderia acontecer e não fiz nada…
— Calma, Joana. Você não teve culpa de nada. Existem coisas no mundo que
nunca possuem uma explicação. Apenas estão lá. Cabe a nós nos adequarmos e
vivermos com elas.

— O senhor tem razão. Mas como o senhor mesmo disse, existem feridas que
cicatrizam melhor do que outras.

— Eles estão em lugar melhor do que nós.

— Assim espero…

Joana pegou os pratos e levou-os para a cozinha. Nicolau ficou sentado à mesa
olhando o estranho mapa que se encontrava em suas mãos. Que segredo poderia ser
aquele que fez seu pai obrigá-lo a jurar que só tornaria a tocar naquele pedaço de
papel velho e sujo somente agora, ao fim de sua vida? Decidiu ir até o sótão ver o que
encontrava.

A porta do sótão também rangia graças à ferrugem, pois não possuía o costume
de entrar lá várias vezes, para falar a verdade, foram raríssimas as vezes em que
entrou no sótão. Ao entrar, apenas iluminado pela luz do corredor, percebeu as
consequências: um lugar cheio de teias de aranha, ratos e poeira para todos os lados.
Caixas velhas empilhadas pelos cantos. Roupas velhas espalhadas pelo chão. Uma
bicicleta velha de cabeça para baixo ao centro parecia com uma escultura enfeitando
o local. Fios suspensos sob o teto, alguns enrolados por papéis rasgados, davam a
impressão de uma grande festa. Isso sem contar nas diversas garrafas, dos mais
diversos tipos de bebidas, espalhadas por todo o sótão. Era como se um grupo de
jovens desordeiros houvesse feito a maior festa de suas vidas naquele local.

Acendeu a luz, o que não adiantou muito, uma vez que a mesma estava coberta
de poeira e era muito fraca e abriu o mapa. Começou a andar segundo o que estava
escrito no pedaço de papel, sempre prestando atenção ao caminho que seguia.
Chegou a uma velha janela triangular, fechada e pregada com tábuas em forma de
―X‖. Sempre viu aquela janela, mas nunca se atreveu a abri-la. Nunca se preocupou
em abri-la. E agora a surpresa, o segredo de seu pai se encontrava nela. Talvez em
uma das tábuas, ou nas bordas da janela. Não sabia. Decidiu arrancar aqueles pedaços
de madeira velhos da janela. Forçou-as um pouco e elas facilmente cederam. Sentado
no chão, tentou encontrar algo de diferente nelas, em vão. A única coisa que lhe
chamou a atenção naquelas tábuas velhas foi o fato de elas serem muito bem
pregadas uma na outra, mas fora isso, nada de anormal, uma vez que seu pai era
marceneiro e sabia fazer um ótimo trabalho com madeira.

Mesmo não percebendo nada, ainda precisava de luz, por isso decidiu abrir a
janela, mesmo sabendo que o vento frio poderia lhe causar um resfriado. Precisava de
um pouco mais de luz, mesmo que apenas a da lua. Antes de abri-la, percebeu acima
dela, na quina superior, um pequeno quadro circular de um belo jardim. Desceu o
ferrolho da janela e começou a puxá-la, tarefa não tão fácil, pois faziam anos que
aquela janela estava fechada. Uma luz intensa saiu do lado de fora da janela, mais
forte que a do sol, o que ocasionou numa cegueira temporária em Nicolau. Quando
seus olhos se acostumaram com ela, pode ver o que se encontrava do outro lado da
janela.

— Éden! — foram as palavras murmuradas pelo idoso Nicolau.

O que ele vira através daquela velha janela não era a casa de dona Roberta, sua
vizinha. Na verdade, se não houvesse enlouquecido, o que estava vendo era o mais
belo jardim que ser humano algum poderia imaginar que existisse, muito além da
nossa curta imaginação.

Um contraste incrível. De um lado um sótão velho e empoeirado, de outro um


jardim até aonde a vista alcançava com lindas rosas, margaridas, orquídeas, tulipas,
cravos, e flores nunca antes vistas, de todas as cores, possíveis e impossíveis. Uma
horta enorme, com árvores frutíferas para todos os lados que se olhasse, algumas até
desconhecidas. A única palavra que veio à mente da Nicolau foi ―paraíso‖. E
realmente o era. Um paraíso sem fim. Por um instante, Nicolau pensou estar louco,
mas ao colocar uma das mãos pela janela, sentiu o calor do sol. Era impossível, pois
já passavam das dez da noite e estava muito frio. Nicolau pensou até em entrar no
jardim, mas temendo estar delirando, por isso, apenas ficou olhando. Uma visão
única. Estava tão maravilhado que, não percebeu um estranho facho de que se
aproximava dele lentamente pelo céu. Era quase impossível ficar sem olhar para
aquele jardim divino. Parecia que a noite nunca chegaria, sempre um sol de brilho
insólito iluminava toda a paisagem.

— Seu Nicolau, vou dormir! O senhor quer mais alguma coisa? — gritou
Joana, em pé na escada do sótão.

— Não, pode ir dormir Joana. — falou Nicolau, fechando instintivamente a


janela, escurecendo o sótão sujo.

Descendo as escadas, fechou a porta, indo de encontro a ela.

— Também vou para cama. Estou muito cansado. — disse ele, sem perceber
que uma de suas mãos estava mais bronzeada que a outra.

III

Acordou às cinco da manhã, como de costume. Escovou os dentes, como de


costume, deu sua caminhada pelo bairro, como de costume. Voltou para casa e tomou
o café, como de costume. Apesar disso tudo, não conseguiu retirar de sua mente a
incrível experiência que participara na noite anterior. O jardim secreto que havia
encontrado do outro lado de sua janela ainda estava em sua mente, como algo
palpável. Pensou que havia delirado, mas reparou que sua mão direita estava mais
bronzeada que a sua mão esquerda. Delírios não causam tal efeito. Pensou em tentar
descobrir uma explicação científica para o que acabara de ver. É obvio que não
existia. Como se explicar algo tão fantástico? Portal dimensional, foi o que ouvira
falar num filme de ficção científica. Mas, por que logo ele? Por que seu pai escondera
dele um segredo desse? O que faria agora? Trancar a janela novamente? O segredo
morreria com ele. Revelar ao mundo? Não teria paz pelo resto de seus dias. Passou a
manhã toda pensando e chegou à conclusão de que o mundo não estava preparado
para tais revelações. Decidiu não contar a ninguém sobre o segredo em seu sótão e
levar tal segredo para o túmulo, como seu pai o fez. Queimaria o mapa no fogão da
cozinha. Pregaria novamente a janela do sótão. E para não haver o perigo de alguém
descobrir, iria ao seu advogado, e deixaria como uma das cláusulas de seu
testamento, que demolissem a casa. E como ficaria Joana? Sua fiel e devotada
empregada era mais que isso, era um membro de sua família solitária. Deixaria para
ela todos os seus outros bens. Todos, menos a casa.

Após o almoço, saiu para a praça, como de costume, e foi jogar bocha
com seus amigos. Logo após, foi ver seu advogado, para mudar algumas cláusulas em
seu testamento. Fez tudo como havia planejado, além de acrescentar que o terreno de
sua casa, após demolida, deveria ser entregue a alguma instituição de caridade, um
orfanato. Um detalhe que seu advogado não entendeu foi o de Nicolau insistir que
nenhuma das janelas de sua casa deveria ser aberta após sua morte. A casa deveria ser
demolida completamente fechada.

Foi para casa mais ou menos às cinco da tarde. Joana não estava, fora a
uma ótica encomendar óculos novos, pois os antigos haviam se quebrado, e uma vez
que sem eles não enxergava um palmo na sua frente, deveria tê-los o mais breve
possível. Nicolau teria tempo para fazer o que queria: entrar no sótão e trancar para
sempre a passagem para o jardim secreto.

Ao abrir a janela triangular, maravilhou-se novamente com o que via. O


paraíso secreto que possuía continuava lá. Intacto. Não era uma alucinação decorrente
do sono. Era palpável. Sentiu um forte cheiro de grama úmida, como se houvesse
acabado de chover. Fez talvez a coisa mais louca de toda sua vida. Pulou a janela,
sem pensar no medo de aquilo ser apenas uma ilusão e cair da janela. Todavia, não
caiu. Pisou em solo firme, talvez nunca tenha pisado em uma grama tão real.
Arrancou um talo de capim e pôs na boca. Sentiu o gosto de mato molhado e riu de si
mesmo. Andou descalço pelo jardim, e no momento em que olhou para trás, viu a
janela do sótão incrustada numa árvore, como o ninho de algum animal. E realmente
o era, mas não ligou para isso. O ninho do animal homem. Sem perceber, não viu que
ao entrar naquele mundo novo e estranho, o pequeno quadro redondo que se
encontrava em cima da janela estava negro como breu, sem nenhum desenho.

Ficou maravilhado com o que viu. Andou pelo jardim por horas, sem
perceber que o tempo passava. Comeu frutas que nunca havia comido, como uma
estranha maça dourada. Sentiu cheiros que nunca havia sentido, como o de uma
orquídea negra. Andou como nunca havia andado. Bebeu água pura e cristalina. Viu
o límpido céu azul e o clima agradável do local e descobriu como Adão se sentiu ao
chegar no paraíso. Não viu animais, mas não lhe importava, pois assim, aproveitaria o
máximo seu paraíso. Ainda assim sentia como se não estivesse sozinho.
Notou que no centro do jardim, a uma razoável distância dele, erguia-se uma
frondosa árvore. Gigantesca, a maior do jardim. Seu caule possuía uma largura
inacreditável. Seu topo se erguia além dos céus. Sua sombra cobria uma distância
interminável. Parecia que aquele ser vegetal sustentava toda aquela fauna singular.
Era como uma montanha viva. Ela dava a vida àquele jardim. Nutria-o com sua força.
Podia ouvir o bater do coração de madeira juntamente com o seu. E aquele pulsar o
dava forças. Sentia como se estivesse mais forte, mais jovem. Correu ao encontro do
gigante uma distância de sem-tempo. Não se sentiu cansado um único instante.
Aproximou-se da árvore. Abraçou seu tronco e sentiu sua vida. De repente, num
acesso de infantilidade, começou a escalá-la. Lembrou-se da árvore da vida bíblica,
todavia esta, que escalava com vontade sobre-humana, não possuía fruto algum.
Tinha apenas aquele peculiar cheiro de juventude. Subia uma altura incalculável.
Quanto mais subia, menor se sentia cansado. No momento em que chegou quase no
topo, equilibrou-se de frente para ela em um de seus galhos. Houvera chegado ao
auge de sua infância. Um perfeito menino, de alma e corpo. Ficou parado
silenciosamente olhando o tronco maciço e imortal. Abriu os braços e se deixou levar
ao solo, como uma folha que cai. Enquanto caía, sentia o peso dos anos aumentar em
seu corpo. Voltava a sua idade verdadeira. Aterrissou num monte de folhas mortas
espalhadas pelo chão. Gargalhou com vontade e de maneira agradável.

Permaneceu na grama por horas, como uma criança após um dia inteiro de
brincadeiras. E, talvez houvesse ficado lá, se não ouvisse alguém lhe chamar. Era
Joana. Ao mesmo tempo, como em resposta, uma luz, vinda de lugar nenhum,
apareceu por trás de Nicolau e se materializou. Nicolau olhou com o coração
pulsando fortemente. Mais brilhante que o sol e mais veloz que um raio. Com forma
humana e não-humana. Era o guardião do lugar. Percebeu por que seu pai não havia
deixado ele entrar no paraíso quando criança. A criatura abriu suas asas chamejantes,
empunhou uma espada de luz e começou a avançar em sua direção. Nicolau,
instintivamente, correu para alcançar a janela, mas, para seu espanto, Joana estava
bem em frente a ela, parada. Ouviu-a falando algo sobre a lâmpada do poste estar
muito forte e percebeu que ela estava sem seus óculos. Gritou pelo nome dela, que
atendeu. Disse que iria atendê-lo após fechar a janela do sótão que ele esquecera
aberta. Tropeçou no momento que corria como um desesperado. Quando chegou à
janela era muito tarde. Joana já a havia fechado. Bateu no tronco maciço da árvore
várias vezes, até perceber que a passagem mágica houvera desaparecido. Atrás dele, a
estranha luz se tornava mais forte.

Depois desse acontecimento, Nicolau jamais foi visto novamente. E após


muitas buscas da polícia, deram-no como morto, apesar dos protestos de Joana. Esta,
como estava escrito no testamento, foi a única herdeira de Nicolau. A casa foi
demolida, sendo seguidas todas as recomendações dele. Nenhuma janela fora aberta.
O mais engraçado é que todas foram pregadas com tábuas. Até mesmo uma certa
janela triangular do sótão, que, segundo um dos pedreiros que demoliram a casa, uma
única vez fez ruídos como o de alguém batendo do lado de fora. O que os fez
derrubarem-na o mais rápido possível, pois a julgaram mal assombrada.
O Homem que Decidiu Semear Sonhos
“E compreendeu..”
Ignácio de Loyola Brandão, “O Homem que Compreendeu”

Ninguém em casa lhe deu muito crédito na manhã em que acordou e disse aos
familiares: ―Vou plantar sonhos de agora em diante‖. A mulher, sempre
condescendente, permaneceu alheia a tudo, como se o marido não estivesse falando
nada. Os filhos já haviam se acostumado com aquelas ideias sem pé nem cabeça do
pai. No entanto, continuou repetindo para quem quisesse ouvir seu plano. E assim,
saiu para trabalhar da maneira costumeira. Fora de ônibus para iniciar sua profissão
de fé. O trocador lia avidamente um livro. ―Que livro está lendo?‖ perguntou o
homem, enquanto atravessava a roleta. ―É Guimarães Rosa. Grande Sertão
Veredas…‖ disse o rapaz, um tanto quanto envergonhado e surpreso. ―Você gosta de
ler?‖ A resposta foi um silencioso aceno de cabeça. ―Por que não tenta escrever algo
você mesmo?‖ ―Eu não levo jeito para essas coisas não senhor…‖ ―Bobagem, em
primeiro lugar não se deve desistir na primeira tentativa, e em segundo, quem falou
que Guimarães Rosa acertou na primeira tentativa?‖ o trocador sorriu para ele
enquanto o homem ia para seu acento no ônibus.

O homem, sentado em seu banco, reparava nas pessoas que entravam e saíam
do ônibus. Um sério homem de terno, com seu celular ao ouvido, reclamando da
pessoa do outro lado da linha. A mulher que se lamentava ao carregar suas compras.
O homem que, indiferente a tudo, lia o jornal. Nisso, por um minuto, quase desistiu
de seu objetivo. Pensou melhor e continuou seu plano. Não era homem de se abater
facilmente. O mundo ainda era como um campo a ser cultivado. Desceu do ônibus e
continuou seu trajeto a pé. Chegou ao trabalho um pouco adiantado. Sorriu para o
rabugento porteiro. Este não era dado a conversa-fiada. No entanto, insistiu. Como se
uma lâmpada se acendesse sobre sua cabeça, falou iluminado para o homem: ―Posso
te dar um conselho?‖ O homem apenas sacudiu os ombros, demonstrando que não se
importava. ―O melhor que tem a fazer para você mesmo é sair desse emprego‖. O
guarda franziu as sobrancelhas, demonstrando que discordava. ―Você não
entendeu…‖ tentou se retificar. ―estou lhe falando para fazer um curso, sei lá. Você é
jovem, rapaz! Pode conseguir um emprego que lhe pague melhor.‖ ―Não trabalho por
dinheiro…‖ foi a resposta ―… e não tenho ambição.‖ Tentou ainda, um último
argumento. ―Não estou falando de dinheiro. Estou falando de qualidade de vida.‖
Mas, em resposta, ouviu um ―Eu estou satisfeito com a vida que levo.‖ Continuaria
ali conversando com o homem, se não estivesse no seu horário de trabalhar. Apressou
o passo e chegou na sala antes de todos. Aproximou-se de sua mesa e começou a
retirar seu material de trabalho. De repente, uma voz infantil se dirigiu a ele:
―Professor, posso falar com o senhor?‖

Ficou de pé e viu um menino com os olhos brilhantes a fitá-lo. Ajoelhou-se


para ficar da mesma altura que o pequeno. ―O que é que você quer, meu filho?‖
perguntou carinhosamente ao menino. O garoto, cabisbaixo, tomava fôlego para falar
―Gostaria de saber do senhor o que é um … um…otorrinolaringologista?‖ Ficou
alguns segundos fitando o aluno. ―E porque você quer saber o que é isso?‖ ―É por que
minha mãe disse que é uma profissão bonita e que eu deveria ser isso quando
crescer.‖ Naquele momento, como que num estalo, a verdade apareceu à sua frente.
Já semeava sonhos há muito tempo. Seu trabalho como professor lhe proporcionava
isso. Criava futuros. Os trocadores, os porteiros, e até os otorrinolaringologistas
dependiam de um professor para lhes ensinar. Sorriu para o menino. ―Eu te explico, e
vou explicar mais. Aí, quando você se tornar adulto, vai poder decidir o que você
quiser ser. Mas é você quem terá de decidir. Agora vai brincar, daqui a pouco a aula
começa…‖ O menino, mesmo sem a resposta, saiu sorridente da sala de aula. O
professor, solitário em seu jardim, contemplava cada uma das cadeiras. Suas
sementes estavam para chegar, deveria escolher os melhores textos para que elas
pudessem crescer e alcançar as nuvens. Em verdade, o professor era um semeador de
sonhos. Amém.
Azrael: Memórias fragmentadas de um imortal

a Jorge Luis Borges

―A linha que nos prende a realidade é mais tênue do que imaginamos. O tempo
é efêmero.‖ Nos diz no último parágrafo o protagonista do romance Azrael:
Memorias fragmentadas de un inmortal do argentino Raoul San Pedro. Segundo
críticos é uma dessas ―fábulas modernas, que prenuncia o fim do modernismo e o
começo der algo novo‖. Entretanto, peca em alguns detalhes, como uma colcha de
retalhos na qual se veem as emendas.

Basicamente, o romance é um diário, um livro de memórias narradas em


primeira pessoa pelo próprio protagonista: Azrael, um homem que possui a peculiar
capacidade de não morrer (ou morrer inúmeras vezes). Tal como as ―Viagens de
Gulliver‖ ou ―Memórias póstumas de Brás Cubas‖, ele é repleto de sentimentos,
opiniões, pontos-de-vista e até preconceitos do personagem-narrador. Contudo, seu
ponto forte sejam os lapsos de memória de Azrael. Partindo da premissa de que toda
pessoa sofre de tais lapsos (confundir o momento em que encontrou esta ou aquela
pessoa, trocar datas e locais onde ocorreram acontecimentos significativos) assombra
o leitor as peripécias da qual a memória de alguém que não morre seja capaz. A
equação é, então, elevada à enésima potência. A confusão entre fatos, personagens
históricos, acontecimentos do passado, presente e futuro e até mesmo descrições
físicas (não apenas de outros, mas também de si mesmo) é apresentada com tanta
convicção por Azrael que dá-nos quase a certeza da verossimilhança deste lapso.

O insólito prefácio da obra narra a invasão de uma humilde capela medieval


por um guerreiro árabe, Azrael, à época das invasões árabes. Com força poética e
densidade narrativa, o guerreiro irrompe o culto católico, em plena ceia Eucarística,
no momento em que o padre eleva a hóstia, com injúrias em árabe à fé cristã e num
golpe único de sua cimitarra, parte o altar em dois. O padre a sua frente olha-o
assustado. Seus olhos fitam-se. O algoz e sua vítima. Existe sangue na batina do
padre, no rosto de ambos e nas roupas do rapaz. Mas esse não pertence a nenhum dos
dois. O sangue vem da hóstia despedaçada caída no chão. De um pedaço de pão que
na verdade era a carne de um homem que é deus. Sons como o de anjos chorando são
ouvidos por todos, incluindo o jovem. Esse, larga sua espada, como se ela possuísse o
peso de todos os pecados do mundo e sem entender começa a chorar. À primeira
vista, parece uma forma de campanha em defesa à igreja católica e seu rito, mas é
muito mais que isso. O livro todo é mais do que parece.

Logo em seguida existe uma seleção de poemas, das quais um em especial


chama a atenção, ―Yo, el inmortal…‖ (―Eu, o imortal…‖). Ele é o resumo do livro.
Condensa toda a ideia principal de imortalidade e mutabilidade do ser. A repetição da
litania ―Yo hallabame‖ (―Eu estava presente‖) dá ao poema o tom de cantiga
medieval e também de profecia. Há também outro bem interessante, que mostra outra
dimensão da obra, ―Contra el tiempo‖ (―Contra o tempo‖), na qual o tempo
cronológico comparado a um tigre ou jaguar é revelado como o grande vilão, a
entrelaçar ―nuestras vidas em tus pelos‖.

A aventura de Azrael começa em Nothingrey, na Alemanha, à época da


Reforma Protestante, onde ele é um jovem loiro, filho de família nobre, mas criado
entre camponeses, prometido noivo a uma jovem que ele descreve como tendo ―a
pele alva como os campos no inverno e os cabelos negros como as asas dos corvos‖.
Essa jovem, cujo nome varia entre Lenneth e Maryah, é filha de um grande
comerciante. Por um motivo não explícito, o rapaz é posto num cargo de diplomata
do rei. Nesse ponto, a história muda de cenário e Azrael aparece em plena Revolução
Russa, como emissário do rei alemão, onde se apaixona loucamente por ―A…‖, moça
pertencente ao movimento de tomada do poder russo. Neste ponto, Azrael é descrito
como um rapaz ruivo e de feições menos ingênuas.

A origem do protagonista-narrador também é feita de maneira fragmentada.


Numa madrugada, em meio a um tiroteio entre soldados do kzar e revolucionários,
Azrael recebe uma bala e cai ensangüentado na neve estrangeira. Enquanto sente o
sangue esvair de seu corpo, o mensageiro tem uma espécie de delírio do passado. Ele
se vê na origem dos tempos, no útero de sua mãe e como um recém-nascido em
questão de segundos. Vê-se na Grécia antiga, levado em uma cesta por uma anciã
cega, perseguida por soldados de armadura negra e vermelha (um mistério que só é
revelado capítulos mais à frente). Desesperada, a mulher joga o cesto com o bebê
num rio de nome desconhecido, antes de ter sua vida arrancada por um dos homens.
A criança, por uma fatalidade, percebe que seu barco improvisado começa a afundar.
Seu corpo submerge rapidamente nas turvas e profundas águas do rio. Profundas e
turvas como a alma humana. Estranhamente, ela não morre, mas vive. É retirada por
camponeses alemães. Quando ele acorda de seu sonho, vê-se num quarto de hotel
com ―A…‖ cuidando de seus ferimentos. Os jogos com nossa percepção por parte do
autor são inúmeros. O movimento do livro é variado e nos perguntamos por alguns
instantes se estamos realmente lendo o mesmo livro, tão rápidas são as mudanças a
ocorrerem não só no personagem, como também na narrativa.

Os movimentos seguintes são os de uma espiral. A memória de Azrael flerta


com o passado, o presente e o futuro. Um aviso para os amantes da História: não
leiam este livro com a intenção de ele ser um roteiro cronológico. Ele nunca poderia
sê-lo, mesmo com a fidelidade dos cenários descritos. As brincadeiras com a própria
noção do tempo são constantes. Em determinado momento, Azrael é moreno. Esta em
Paris, à época da Revolução Francesa, bebendo as mágoas pela morte de Joana D’arc,
pairando entre a bebedeira e a insanidade em um bar sem nome. Nele, ele conhece e
vai para cama com uma jovem cortesã muito semelhante à militante ―A…‖, que mais
tarde ele descobre como sendo um simulacro dela. Em outro momento, ele é um
soldado aliado na 2ª Guerra, já homem adulto, que encontra, entre os escombros e
corpos de judeus mortos, o de uma adolescente idêntica à sua noiva, deixada com a
mesma idade, na Alemanha feudal. Noutro momento, ele enfrenta uma das versões
que ele define o ―anjo melancólico‖, a Valquíria, guerreira enviada por Odin para
levar a alma dos cavaleiros mortos em campo de batalha, assustando-lhe a
semelhança desta com Lenneth e com ―A…‖. Presenciando o massacre de
Constantinopla por alquimistas transformados em lobisomens. É um samurai no
Japão feudal, que canta a ―Shima Uta‖ (―Canção da Ilha‖), enquanto enfrenta um clã
de homens-macacos ninja. Um escravo confundido com o deus Marduk na gloriosa
Babilônia. Vendo, entre um sonho e um delírio, o Bahamut, o peixe gargantuesco que
sustenta o universo. Um corsário à serviço da rainha da Inglaterra, a testemunhar o
atentado de Gandhi. Um mafioso italiano a se confessar numa igreja de Roma. Ou um
cangaceiro nordestino, numa tocaia de 40 dias, esperando com seus companheiros,
um homem que ele, ao final, descobrira ser ele mesmo. Um prisioneiro a dividir cela
com Nelson Mandela, numa ilha-prisão chamada Areópago. E até mesmo, um
humilde pescador conversando sobre deus com certo menino judeu de nome Jesus. O
jogo com os personagens históricos, reais e fictícios não pára por aí. Em determinado
instante, vemos Hitler recebendo uma carta de Rasputin o aconselhando a não invadir
a Rússia. Noutro, dom Quixote e Sancho Pança guardando a prisão onde se encontra
preso Miguel de Cervantes. E Napoleão a conversar com Marte, deus da guerra.

Talvez a única personagem (se é que a podemos chamar assim) imutável do


livro seja a cimitarra com ideogramas indecifráveis desenhados na lâmina, que Azrael
carrega por toda sua odisséia temporal. Ela aparece vinda de um mosteiro budista em
suas mãos, enquanto foge de Gengis Khan. Mais tarde, é descoberta como uma
lendária arma usada por Cronos, e logo em seguida, modificada por Hefesto, capaz de
matar qualquer um, até mesmo deuses, e tem papel importantíssimo no clímax da
estória, quando Azrael, após descobrir a morte de toda sua família por Marte, trava
com ele a última e derradeira batalha, na ilha de Krakatoa, na qual, Azrael sai
vitorioso após enfiar sua cimitarra no peito do deus da guerra e descobrir-se como
resposta para o enigma por trás da morte dos deuses. A descrição da cena em que
Marte desce dos céus, furioso, atravessando lentamente nuvens negras, com as mãos
em chamas e ―olhos em trevas‖, pronto para enfrentar um imortal, repleto de
tatuagens sagradas, talvez seu melhor servo, cansado de lutar, mas com sua espada
em punho é digna de um quadro, assim como várias outras de todo o livro.

Ao fim do livro, encontramos um Azrael mouro, sozinho, com o corpo coberto


por cicatrizes, idoso, porém com uma força não só mental mas também física, maior
do que quando era apenas um jovem, em uma humilde cidade portuária (que alguns
críticos discutem ser Barcelona na Espanha ou Cairo, na Índia, ou então Vitória, no
Espírito Santo), escrevendo suas memórias e abrindo novamente o círculo temporal
da história.

Escrito à época da ditadura peronista, o livro assusta por seu caráter inovador.
Ele é a prova de que a realidade é mais frágil do que imaginamos.

A própria biografia do autor permanece no obscurantismo, uma vez que, dois


anos após a publicação do livro, ele seria internado num sanatório e vindo a falecer,
devido uma crise nervosa fulminante.
Antes de publicar Azrael, Raoul já havia escrito alguns poemas pouco
entendíveis e contos menos compreensíveis ainda. Mesmo insistindo não ter escrito a
obra, mas sim tê-la encontrado em pergaminhos que datam dos séc. I, IV e VI, sobre
a lenda de um imortal errante. Alguns críticos insinuam que a obra seja semi-pseudo-
auto-biográfica, no entanto, os detalhes da vida de Raoul são escassos. A vida dele e
de seu personagem se confundem. Há aqueles que acreditam que ele era casado e
poderia ter uma família paralela, outros, que era um viúvo com uma filha e envolvido
no golpe argentino. Existem também aqueles que digam que Raoul San Pedro é
apenas um pseudônimo para Luís José Mendonça, brasileiro exilado na Argentina
pelo regime militar brasileiro. Proibido de ser publicado aqui no país pelo AI-5, por
ser ―um insulto à realidade e um gesto vil contra o bom senso‖ como escrito no
relatório do censor de época, caiu nas graças do Governo há poucos anos, ganhando a
obra uma edição de luxo em papel pergaminho e ilustrações que, infelizmente,
deixam a desejar. O que a obra mais perde nesta versão é uma linha do tempo da vida
de Azrael, que mais lembra um jogo de amarelinha (felizmente presente na obra que
tenho a vista) e um conto-ensaio ao fim do livro, para os que se interessam na obra
por trás da obra.

Não importando a discussão acerca da autoria, não há como negar que Azrael
seja uma obra à frente de seu tempo, polêmica, e que sua maior e mais marcante
característica seja a fragmentação do ser, marca da pós-modernidade, e a discussão
sobre a fragilidade da realidade.
A Ordem de São Jorge

Desde sua mais que remota origem, a Ordem de São Jorge conta com apenas
um membro, que nunca é o mesmo, mas atende pelo mesmo nome. A crença no fim
da Ordem deu-se por esse motivo e pela constatação de que a mesma possui dois
membros entre espaços longos de tempo e por períodos curtíssimos.

Os primeiros relatos da existência da Ordem datam de 305 d.C., na Capadócia,


cidade de nascimento do, como eles membros chamam, ―Primeiro Jorge‖, que
morrera mártir dois anos antes. Lá, foram relatadas proezas de um homem que se
intitulava Jorge, que enfrentava perigos e defendia os desafortunados. Após o
falecimento do mesmo, existem escritos que informam certa comoção por parte de
alguns seguidores em igrejas da Constantinopla. Os relatos, em seguida, atravessam o
tempo. Segundo George Longspear, em seu ―Treaty of Medieval Saints‖ (1873) as
evidências da existência de adeptos da ordem datam do século X. Inclusive, foram
registrados dados de um suposto frei George, exorcista e cavaleiro, que pertencera à
Távola do Rei Arthur.

Sabe-se que se inspiravam nos feitos de São Jorge, mas não revelavam a
ninguém. Sabe-se também que professavam a fé católica, mas mantinham os hábitos
dos primeiros cristãos, orando em cavernas e locais inacessíveis. Sobre os
mandamentos da ordem sabe-se pouco – a maior parte são informações distorcidas
pelo Romantismo, pelas Novelas de Cavalaria e pela tradição oral –, visto que todos
os escritos feitos por seus membros são destruídos totalmente após suas mortes.

Segundo a tradição, todos os membros, ao ingressarem, abrem mão de seus


nomes de batismo e passam a atender pelo nome de Jorge. Tal passagem é feita
depois da morte de um antecessor, que o convida para o culto. Ao ingressarem,
tornam-se padres e cavaleiros. Nem todos sabem utilizar uma espada, tampouco
montar. Nenhum é ordenado padre.

Diz-se que possuem a mesma espada, a Ascalon, que está permanentemente


embainhada, passada para o novo membro. Segundo a lenda, fora desembainhada
apenas pelo ―Primeiro Jorge‖, os seguintes não se acreditam dignos de empunhá-la,
mas expulsam demônios e abençoam pessoas com a mesma. Possuem também um
diário, que é destruído sempre após a ascensão de um membro que, após ler o diário
de seu antecessor, o destrói, e escreve o seu próprio.

Tem-se a certeza de que todos morrem como mártires. Contudo, os critérios


para a escolha de novos seguidores são polêmicos. Alguns escolhem seus sucessores
entre seus algozes. Estes passam a seguir o credo sem questionar. É o único momento
em que a Ordem possui mais de um membro. Após abandonarem suas vidas
pregressas, tornam-se membros, seguidores e devotos da ―crença da cruz escarlate‖
como era chamado o culto na Constantinopla.
As orações utilizadas pelos seguidores são todas secretas, entretanto, o trecho
de uma delas pôde ser ouvido uma vez, e talvez tenha sido esse que inspirou a tão
difundida ―Oração de São Jorge‖:

―Se meu corpo for mutilado,

Minha alma é intocável.

Se minha língua for arrancada,

Minhas ideias repercutirão.

Se minhas mãos forem inutilizadas,

Tocarei as estrelas.

Se meu corpo for destruído,

Serei imortal.‖

Outro motivo que deve ter inspirado a oração está no fato de alguns seguidores
do culto serem capazes de prodígios. Em Portugal, durante a invasão napoleônica,
certo soldado de nome Jorge saiu ileso após uma saraivada de flechas a ele
direcionadas. À época das Cruzadas, um sarraceno que atendia pelo nome de Jorge,
teve seu corpo amarrado por seus algozes, mas todas as cordas arrebentaram-se
misteriosamente e este pôde escapar do jugo. Contudo, nenhum deles atribuía o
mérito para si.

Uma vez (não sei se deveria revelar) conheci um membro da Ordem. Era um
homem taciturno, porém, de personalidade forte. Apesar de não confessar fazer parte
do credo – muitos não o fazem por só o saberem que são no momento da morte –
revelou-me que em um fato todos os seguidores concordam: consideram que o dragão
é mais alegórico que real. Para eles, o dragão pode ser feito de escamas, chumbo, pó,
água ou fogo, cimento ou madeira, decepções ou pesadelos. A luta contra o dragão
nunca finda. E, o eterno último membro da Ordem de São Jorge, sempre travará sua
luta secreta e incansável contra a besta escondida em si.
Cronoguarda
“Considerer a gift.
A tomorrow legacy.”
Philip K. Dick “The Schrödinger paradox”
2015 d.C.

O grande desastre

Entre a fumaça e a poeira ainda presentes no ar, a única coisa que se conseguia
ver num raio de mais de 600 km era a gigantesca cratera. A mudar a paisagem
daquele dia que para muitos podia ter sido comum como qualquer outro na cidade de
Santa Bárbara.

Um dia em que muitos trabalhavam, outros dormiam. Alguns sorriam, em


contradição ao choro de outros. Em diversos lugares pessoas juravam ter visto um
fantasma atemporal. Pessoas se amavam loucamente enquanto outras se odiavam, o
que no fim é idêntico. Alguns ganhavam e outros perdiam, como faces da mesma
moeda. Uns enriqueciam em detrimento da pobreza de muitos. Uns nasciam e outros
terminavam com vidas, como ciclos a se fecharem. Realmente poderia ser um dia
comum como qualquer outro.

Acima, o sol, mais belo que nunca num céu de límpido azul, denunciava-se,
como a única testemunha de um insólito nascimento. O nascimento de um segundo
Adão em um jardim de morte.

Um menino. O primeiro a andar por sobre a terra devastada. A se perguntar por


que milagre era o único sobrevivente naquele ventre aberto ao sol. Caminhando pelo
que antes era uma cidade. Além dele, somente a poeira e os vestígios de um mundo
que já não é mais.

Uma criança em seu batismo de sangue. A se tornar homem da mais cruel


maneira. Em um ritual de passagem nuclear. A chorar a morte de seus entes e a jurar
vingança a um assassino invisível. Um assassino infinito.

Era um fantasma num mundo morto.

Ao coçar o olho esquerdo, percebeu algo fantástico: o mundo ainda estava lá.
Congelado, mas lá. Uma fotografia invisível em terceira dimensão.

Nada mais podia fazer a não ser chorar. Não passava de um insignificante grão
de areia em uma cratera sem fim. Cada homem deve acatar o que traz consigo. Para
ele não era o fim, mas o início de um novo ciclo. Num mundo que sentia pela
primeira vez os efeitos devastadores de uma explosão quântica.

2068 d.C.

contagem regressiva para o fim do mundo


Um cômodo sujo e aparentemente abandonado de uma pensão no subúrbio da
cidade. Páginas de uma Bíblia, fotos antigas, recortes de jornal e de revistas
científicas colados nas paredes. Cheiro de cola velha, comida estragada e de sonhos
desfeitos. Folhas de caderno espalhadas pelo chão contendo cálculos absurdos e
anotações ilegíveis. Perto da cama desarrumada, no chão, uma poça seca contendo
algo semelhante a sangue coagulado.

Enquanto recolhia de um canto do quarto algo semelhante a um parafuso


minúsculo, o agente Tanaka, da Cronoguarda, devaneava até o dia em que despertou
num quarto de hospital com as memórias em frangalhos. O que lhe ocorrera antes do
despertar eram ainda flashes e déjà vus desconexos. Sentia já haver recolhido aquele
parafuso antes.

Juntamente com dois outros agentes sabia que aquele abandono era realmente
relativo. O morador do lugar fora profissional e apenas indícios mínimos
comprovaram o fim de sua estada há apenas um dia.

Tanaka lembrava-se das últimas horas que havia estado na Cúpula. O


comandante Farga em pessoa o havia convocado para aquela tarefa. Chegara
correndo, como se o tempo lhe esvaísse entre os dedos. E realmente lhe esvaía.

A Cúpula, como assim era chamado o Comitê de Assuntos de Ordem


Temporal, uma fortaleza semelhante a uma cidade, na verdade, era uma cidade.
Construída sobre os destroços da antiga Santa Bárbara, devastada pela explosão de
um deslocador cronológico. Autosuficiente. Existentes no local, além da Agência de
Controle Cronológico e a Cronoguarda, toda uma estrutura que ia desde hospitais até
lanchonetes e parques de diversão. Um pequeno mundo parado no tempo,
funcionando em regime de condomínio fechado, de quase isolamento. Nem todo
mundo podia entrar, tão pouco sair. Mas seus moradores (todos funcionários e seus
familiares) nunca reclamaram desse detalhe, pois a segurança era o ponto forte da
Cúpula. Isso até aquele dia.

O comandante lembrava um professor de história que Tanaka tivera. Olhava o


monitor de 200‖ de cristal líquido onde imagens simultâneas eram apresentadas:
imagens de crimes contra o tempo. Sobre ele, os dizeres: ―O tempo move-se somente
em uma direção‖.

Após o Grande Desastre, fora criado o DICC (Departamento de Investigação


de Crimes Cronológicos) que passou a definir as bases para como seria tratado o
tempo de agora em diante. Toda e qualquer infração contra o tempo era punida
severamente.

Videntes e cartomantes foram proibidos de praticar suas artes adivinhatórias


por estarem infringindo o princípio da consequencialidade, que dizia que toda ação
deveria ter um resultado, porém, este não poderia ser condicionado a situações
específicas, ou seja, a pessoa não poderia adivinhar seu futuro. Os relógios eram
ajustados em fabrica rigorosamente, respeitando a Hora Zero, o fuso horário oficial.
Aqueles pegos adiantando ou atrasando seus devidos relógios eram advertidos e
multados pelo crime de armazenamento indevido de tempo. O complexo já estava
em estado de alerta vermelho quando o agente Tanaka soube pelo tenente Nilson que
uma bomba C8 (os explosivos C5 e os C6 tornaram-se obsoletos após a guerra
separatista na República parlamentar da América) havia sido instalada na central da
agência do tempo, mais exatamente no núcleo nervoso de Hawking, que era como era
denominado o bloqueador cronológico. Para piorar a situação, o criminoso usara a
máquina e se deslocara para um tempo incógnito.

―Alguém quer cometer o maior dos crimes.‖ Falava o comandante Farga.


―Alguém quer mudar a história.‖

―Como ele fez isso?‖ perguntara Tanaka, lacônico como de costume. ―Sempre
pensei que os retornos no tempo houvessem sido bloqueados‖. Ainda possuía a
influência dos sonhos e do menino que os assombrava. Um menino chorando em
meio a destroços. Uma charada sem respostas.

―Teoricamente. O bloqueador fora criado para impedir qualquer salto


cronológico.‖ disse o engenheiro Correia.

―Mas alguém provou, na prática, que é possível infringir a maior das nossas
leis: O tempo não pode ser modificado‖. O comandante falava como alguém cansado
e apreensivo. E não era sem razão.

―Pirataria, o de sempre. Roubo de tecnologia japonesa ou árabe‖ continuou


Correia. ―Só ainda não descobri como ele conseguiu apagar seu registro.‖

―Registro?‖

―Sim. O registro de transgressões contra o tempo que é gerado pelo


bloqueador. Ele apagou seu registro do ponto de chegada. Ou seja, ele conseguiu
desaparecer no passado.‖

―Será possível que ninguém viu esse cara entrando aqui?‖

―Ele usou uma espécie de indutor de imagens. As câmeras nunca poderiam vê-
lo, uma vez que suas imagens seriam distorcidas ao tentar inutilmente filmá-lo.
Quanto à bomba, tecnologia de espaço compacto. Coisa refinada, de egípcios. É
minha teoria.‖

―Por que ninguém tentou desarmar a bomba?‖

―Tentaram. Descobriram que ela está acoplada a um codificador de dna.‖

―Isso quer dizer que…‖

―Exato. Somente aquele que armou a bomba pode desarmá-la.‖


―Tentaram o banco de dna?

―nem sinal. Nenhum dna bate com a assinatura.

―Deixe-me vê-la.‖

Após um exame minucioso no pequeno artefato, que aparentemente não


possuía nada de incomum, o agente levantou-se e pediu para que fossem chamados
dois outros agentes para lhe acompanharem. Ele sabia quem havia feito a bomba. A
questão agora era: para onde ele havia se deslocado?

O suspeito era Farach ibn-Rushd Malagrado, terrorista já preso outras vezes


por roubo de tecnologia. Um terrorista tecnológico. Tanaka já o havia pego outras
vezes. Outra peça para aquele quebra-cabeças.

Agora, olhando aquele minúsculo parafuso, Tanaka se perguntava se realmente


fora uma boa ideia aceitar aquele caso. Estava afastado há dezoito meses, após um
incidente com uma seita denominada ―Apóstolos do segundo Adão‖ que culminou na
morte de três de seus colegas e melhores amigos. Aquela não era a maneira melhor de
se retornar ao trabalho. Tinha menos de 21 horas para resolver aquele caso e impedir
que o mundo acabasse. Não deveriam deixar o universo nas mãos de um único
homem.

Encontraram também outro parafuso, além de um minúsculo cartão de


memória e diversos recortes encontrados espalhados pelo quarto. O que mais lhe
chamou a atenção fora um folheto do início do século da seita ―Apóstolos do segundo
Adão‖ que ele colocou no bolso da jaqueta, para um exame melhor no futuro.

Iam para a central em silêncio. Para Tanaka aquela situação lhe trazia
lembranças dolorosas. A invasão ao galpão onde estavam reunidos os últimos
membros da seita fanática ―Apóstolos do segundo Adão‖. Ele e outros três agentes,
Hamerski, Gomes e Onion (apenas Onion), amigos seus desde a Academia, foram
convocados para invadir o local. A seita estava sendo acusada de ser responsável por
suicídios de membros e roubo de tecnologia. Apenas quatro contra mais de cinqüenta.
Uma luta justa. Infelizmente, não fora tão fácil assim. Aquela invasão era uma
emboscada. Os membros da seita haviam iniciado um culto de suicídio coletivo e os
quatro estavam no meio. Gritavam palavras ilógicas ―Estamos no local de poder”,
“Não podem nos ferir‖. No fogo cruzado, Hamerski e Gomes foram mortos e ao fim,
quando o grande galpão explodiu, Onion, o caçula dos três. O único sobrevivente foi
Tanaka. Todos os cinqüenta membros, além dos corpos dos dois agentes foram
encontrados quando a poeira abaixou. Apenas o corpo de Onion não fora encontrado.
Um detalhe lhe chamou a atenção: seus dois companheiros tiveram seu implante
temporal arrancado.

O implante temporal era constituído de uma esfera metálica introduzida no


ombro direito do agente, numa versão menor do bloqueador temporal. Tinha a função
de ligar o agente ao seu tempo caso ele percebesse que o mesmo estivesse deslocado.
A esfera cobria quase toda a extensão interna do ombro e somente era perceptível por
causa da tatuagem estilizada no emblema da Cronoguarda, um ―G‖ dentro de um ―C‖
desenhados como a metade de um relógio de ponteiro. Tanaka possuía um
semelhante em seu ombro. No pulso, outra tatuagem em movimento, mostrava um
pequeno relógio de Wheatsone.

O fato que mais perturbava Tanaka naquele caso, eram as misteriosas palavras
que um dos membros da seita dissera antes de expirar: ―Nada é que já não tenha sido.
Quando um são três e três são um, o tempo é cíclico”.Elas lhe perturbavam da
mesma maneira que aquele cartão de memória que tinha em suas mãos. Tinha medo
de saber o que encontraria nele. Havia lido coisas e teorias que para um leigo seriam
ilógicas e desconexas, mas com elas, podia prever a época para onde o criminoso
houvera ido: o início do século, mais precisamente em 2015, o dia do grande desastre.
O dia em que o homem tentou ser maior que o tempo e maior que Deus e pagou alto
por sua arrogância. O Grande Desastre. O incidente que modificou o mundo
conhecido.

Fechou os olhos e pode, por um instante ver seus amigos, no passado. Na


memória. Os golpes de karatê que trocara com Hamerski. Onion lhe apontando o
indicador e falando ―bang‖. As piadas repetidas de Gomes, que às vezes o faziam rir
sozinho.

Chegou rapidamente à Cúpula. A jaqueta no ombro, expondo a tatuagem com o


emblema da Cronoguarda e o desejo de o tempo estar ao seu favor. Seu pulso
brilhava para lhe contradizer. No cronômetro da bomba restavam apenas 18 horas. O
tempo, impaciente, corria na direção do inevitável. Estranhamente, a imagem da
criança de seus sonhos lhe viera à memória. Antes de ir para a sala do bloqueador,
dirigiu-se aos arquivos da Cronoguarda. Tinha que retirar uma dúvida.

Pediu para acessar a caixa preta de Hamerski e de Gomes. Todos os agentes


possuíam juntamente com seus implantes, um dispositivo de USB, chamado de caixa
preta, instalado na nuca com ligações diretas no cérebro e nos aparelhos auditivo e
visual. Se algo acontecesse com o agente, podia ser revisto depois, graças a esse
aparelho. Pilotos de avião possuíam algo semelhante. Tanaka nunca tivera coragem
para acessar aquelas informações até hoje. Algumas cicatrizes fecham melhor que
outras. Mas seu instinto policial lhe mandava descobrir o que aquele fatídico dia (ou
noite, não se lembrava ao certo) revelava e porque achava que tinha tanto a ver com
essa crise.

Passos na escuridão. Um homem caindo em sua frente, vítima de uma bala


disparada por ele. As imagens do último dia de vida de Hamerski passavam pelos
olhos de Tanaka. Tentou manter a frieza, inutilmente. A dor era muito maior. Pelos
olhos do amigo morto, viu o grande círculo místico utilizado pelos membros da seita.
E, de repente, o grande clarão, seus olhos indo ao chão e se apagando. Se chorasse,
ninguém veria. A sala de Registro Mnemônico fora separada para ele.
O que foi visto pelos olhos já mortos de Gomes também não foi diferente. A
corrida na escuridão. O zunir das balas em seu ouvido. A percepção de haver caído
em uma armadilha. O homem na luz a sua frente. A surpresa que Tanaka não pôde ter
pelo fato de Gomes ter sido atingido exatamente no olho em que estava implantada a
câmera. E, na escuridão, o som de mais dois disparos. Era como morrer duas vezes e
retornar para contar a história. Parcas lágrimas finalmente rolaram pelo rosto do
agente nesse momento.

Ainda abalado, mas não vencido, pegou o cartão de memória que encontrara no
quarto de Malagrado e carregou-o no computador. Sua surpresa fora maior ainda ao
descobrir que este pertencia ao seu amigo Onion. Lembranças secretas daquela
fatídica noite passaram por seus olhos, mas de uma maneira como nunca antes
esperara. Os mesmos derradeiros passos de seus outros companheiros foram seguidos
por Onion. Vários homens diferentes, mas seguindo a mesma seqüência de morte e
sangue. Dizem que aqueles que não têm medo da morte a tem como aliada e
protetora. Por um segundo Onion teve esse medo. Uma rajada entre as trevas dava
fim a esse medo. Os olhos de Onion, ainda abertos, viam os homens cercando-o.
Estática na imagem. Cenas sem sentido. Mas ainda não era o fim. Tanaka passou a
ver além. Além do fim. A morte ainda tardaria para chegar. Os olhos de Onion (e
também os de Tanaka) vêem-se deitados em uma cama de hospital. O resto é
demasiado forte para um ser humano suportar, por isso, os olhos são vendados e
postos novamente na escuridão. Apenas os gritos venciam a treva. Quando estes se
abrem novamente, a única coisa que Tanaka via antes do apagamento geral e
definitivo era o rosto de Onion, semelhante ao de um morto, mas exalando uma
espécie de divindade profana. A se olhar. Vendo a si mesmo. Vendo Tanaka. Ele
sabia que Tanaka estava ali. Neste instante, ele desligou o aparelho de cartão de
memória. Para algumas imagens, a mente humana ainda não está preparada. A mente
do policial, menos ainda.

A imagem do quebra-cabeças ainda era misteriosa, assim como o encaixe de


muitas de suas peças. Não tinha tempo para esses encaixes, no entanto, percebeu que
para, ao menos, descobrir a imagem, teria que extrapolar alguns limites. Hawking lhe
daria o tempo necessário.

Chegou à sala da máquina. Faltavam 12 horas para a detonação, tinha tempo de


sobra, pensou. Era uma grande câmara metálica circular de formato simples. Um
grande tubo cilíndrico em vidro negro erguia-se no centro de Hawking. Uma
infinidade de fios e tubos e uma parede de vidro onde, no exterior, se encontrava o
engenheiro responsável pela definição do local e tempo para onde o agente iria ser
deslocado. Tanaka, já dentro do cilindro, disse para a agente Murad, responsável pela
manutenção do mecanismo o que pretendia, o tempo para onde iria.

―Tem certeza disso?‖ indagou a agente.

―Em tese, não é isso que Hawking é? Uma máquina do tempo? Um deslocador
temporal?‖
―Sim. Em tese. Não temos nenhuma confirmação de que Malagrado esteja no
passado ou tenha sido desintegrado.‖

―Teremos que arriscar.‖

―O processo de deslocamento no tempo não será nada agradável‖ avisou


Murad. ―Utilizando o bloqueador, a subestrutura atômica do seu corpo será
transformada em táquions, partículas de energia que podem viajar mais rápido que a
luz, e, em seguida, lançado para a estratosfera terrestre. Lá, com o auxílio de satélites,
que estão ligados ao bloqueador, a energia será direcionada a ponto de dar uma volta
contrária por todo o globo terrestre. A velocidade do raio determinará em que ano o
usuário deverá parar. Já no ano solicitado, após ter sua velocidade reduzida a zero,
através do implante temporal, você poderá ter seu corpo, que no momento serão
impulsos eletromagnéticos, reconstituído em matéria original. O retorno será feito
através de um impulso dado pelo próprio implante.‖

―Animadora, Murad. Se der certo, nos veremos na Corte Marcial.‖

―Não sei como o comandante Farga autorizou isso...‖ murmurou ela, antes de
ativar a máquina.

―Não autorizou.‖ Foram as últimas palavras de Tanaka antes de ter seu corpo
catapultado através do tempo.

A viagem no tempo, na prática, era mais insólita. Neste ponto, a narração


torna-se falha e confusa, uma vez que os atos são simultâneos, e as palavras,
sucessivas. Digamos apenas que, é como se você se visse, ontem, amanhã e hoje, ao
mesmo tempo e em tempo nenhum. Dinamismo. Círculos se quebram e se
reconstroem infinitamente. Início e fim se tornam iguais, pois assim o são. Esmagado
e sugado ao mesmo tempo. O avesso do avesso do avesso. Percepção. Consciência
espalhada e única. Um túnel sem fim. Estase. Lembranças da infância. O tempo a se
engolir. Sentidos misturados, mas ainda individuais. Paradoxo. Treinamento na
academia. O ventre materno. O 1o dia na escola. O fundo de um caixão. Forma.
Loucura. Fagulhas. Vontade. Onisciência. Eternidades. Indo e vindo. Tudo e nada.
Entropia. Concepção. ―O tempo é caos. Agora eu percebo. Para que o princípio se
torne algo palpável, deve existir o caos para fazê-lo.‖ O tempo lentamente retorna ao
seu não-corpo. O som de todas as coisas vai cessando. Os sentidos vão retornando um
a um. O deslocamento estava completado. Mas algo estava errado. Muito errado.

2015 d.C.

Horas antes do grande desastre

Uma assombração. Tanaka demorou para perceber que ainda não era
totalmente de carne e osso. Por instantes, ele ainda era uma transmissão, como a
imagem tremeluzente de uma tevê quebrada. Um fantasma-do-que-virá. Aparecendo
em diversos lugares ao mesmo tempo. Mais semelhante à estática. Um chiado. Nunca
ocorrera antes. Tentava se lembrar o que fora fazer ali. A mente em frangalhos.
Estabilizou-se fisicamente num terreno baldio, que julgava ser o local onde o
bloqueador de sua época estava. Algo estava acontecendo. O tempo já havia se
corrompido.

Engraçado como alguns detalhes nos escapam. Sempre julgou que a Cúpula e
toda a organização se localizassem exatamente onde houvera o 1º incidente.
Enganara-se. Em seu relógio, tinha menos de 6 horas para descobrir o local onde
estava o deslocador sem nenhuma pista. Procurou nas listas telefônicas em vão, pois
o projeto do deslocador era secreto. Tentou com a telefonista e ela riu dele do outro
lado da linha, antes de bater-lhe com o telefone na cara. Já estava desistindo, quando,
ao enfiar a mão num dos bolsos da jaqueta, encontrou o folheto que lá guardara. O
inesperado faz a diferença nesses momentos. Era uma folha amassada onde se lia no
topo em letras vermelhas ―Apóstolos do segundo Adão‖. Abaixo, em letras negras
―venha para um lugar onde seu destino pode ser mudado‖, e o endereço logo abaixo.
Era um folheto do ano de 2040. Nesse momento, todas as peças começaram a se
encaixar. O dia da invasão. O armazém onde eram as reuniões da seita. ―Local de
poder‖, como ouvira os membros da seita chamar. Eles sabiam onde havia sido a
explosão. No porto, que no futuro, seria abandonado. Olhou para seu pulso e teve
outra surpresa. Faltavam apenas 2 horas para o fim de tudo. O tempo estava ansioso.
Corria como nunca correra antes. Ou seu corpo estava acelerando os fatos? Não
parou para pensar, correu para o porto, mesmo não tendo certeza de onde ele ficava
exatamente.

Não foi problema encontrar o porto. Era estranho perceber que o mesmo estava
abandonado durante o dia. Percebeu onde estava o deslocador por algo inevitável.
Fora puxado pelo mesmo, como um parafuso é puxado por um imã. Entrou num
galpão abandonado. Já em sua entrada, dois seguranças mortos. Era como se o ar de
seus pulmões houvesse sido arrancado. Entrou na treva com sua arma em punho.
Reparou na tecnologia usada dentro do galpão. Como a daqui a 50 anos. Entrou no
subsolo, sentindo cada vez mais a pressão exercida pelo deslocador. Sem saber o
motivo, a melodia de Carmina Burana veio a sua mente. Um pequeno cômodo sem
nada de especial, um notebook e uma cadeira e a sua frente um tubo verde
fluorescente comum rapaz de costas a fitá-lo. Tanaka não acreditou no que suas
suspeitas o levaram, mas era verdade, Onion estava ali de costas para ele, vivo.
Imaginou em diversas coisas que podia ter lhe dito, mas ele se adiantou.

―Você chegou na hora.‖ Disse Onion, em voz baixa, sem se mover.

―Eu esperava encontrá-lo aqui, mas não desconfiei que fosse você.‖ Falou
Tanaka, com a arma levantada.

―O tempo todo você sabia, só não queria admitir.‖

―No final, o tempo sempre anda em círculos.‖ Disse Tanaka, analisando o


jovem.
―Estou feliz de que tenha sido você a me encontrar.‖ Disse Onion sorrindo,
sem se virar.

―Se não fosse o cartão de memória, eu demoraria bem mais para descobrir.‖
disse Tanaka, com a arma agora abaixada.

―Tempo, é sempre o tempo… Deus não precisa do tempo, sabia?‖ Disse Onion,
de cabeça baixa, mas ainda de costas. ―Para Ele, um instante do passado e do futuro
são simultâneos a um do presente. O passado, o presente e o futuro são um mesmo
momento para a visão onisciente.‖

―Você está falando coisas sem sentido.‖

―O que é o sentido, senão algo que nos é imposto para termos uma direção a
seguir? Uma âncora da realidade.‖

―Eu não entendo. Eu vi você morrer.‖

―Realmente. Naquele dia eu morri. Contudo, existem diversas maneiras de


morrer. Na verdade, a morte pode ser a única liberdade absoluta. É meu destino viver
para sempre. Mesmo que isso resulte na extinção da humanidade. Tudo começou com
um e deve terminar com um. Eu sou o segundo Adão.‖

―Você? Mas e quanto a Malagrado?‖

―Apenas um fantoche nas cordas do destino. Sua vida foi útil para que se
cumprisse um propósito maior.‖

―Que espécie de propósito?‖

―O domínio do homem no tempo e no espaço.‖

―O que você se tornou, meu amigo?‖

―Algo mais que homem, menos que deus.‖ Neste momento, Onion se virou, e,
por sua camisa branca de linho aberta, viu-se em seu peito três símbolos equidistantes
entre si, formando um triângulo. O rosto do rapaz era como que o de um zumbi, mas
possuía algo de estranho, quase divino. Tanaka, instintivamente, levantou sua arma e
a apontou para Onion. ―Sabe qual é um dos motivos por que deus está em todas as
eras? Por que ele é três e ao mesmo tempo é um. Um paradoxo. Assim como eu me
tornei.‖

―Quando um são três e três são um… Mas, gostaria de fazer uma pergunta: por
que e como?‖

―Nada é que já não tenha sido. Se estou aqui neste ponto do tempo é por que já
estive aqui antes. Percebi isso minutos antes, quando me vi frente a frente com isso.‖
Atrás de Onion começara a levitar um tubo verde fluorescente que Tanaka calculou
ser o centro do deslocador temporal. ―No fim, acho que passei toda a vida para viver
este único momento. Um único instante na vida de um homem pode valer mais do
que toda sua vida.‖

―Onion…‖

―A verdade é que eu tenho setenta anos. O tempo parou para mim neste dia. Eu
tinha dezessete anos. Por uma ironia do destino, fui o único a sobreviver e desde
então, não mais pude envelhecer. Disseram que minhas células congelaram. Eu nunca
pude morrer.‖

―O menino do meu sonho… Sempre achei que você fosse jovem assim por ser
um super-dotado, por isso a sua pouca idade. Você sempre demonstrou isso.‖

―Eu sou um Peter Pan! E como tal, tenho minha própria Terra do Nunca. Sabe
por quê? As pessoas que estavam na cidade no momento da explosão não morreram.
Todos, com uma exceção, ficaram presos no limbo. Congelados em um mesmo
instante. Fantasmas do tempo. O tempo continuou andando, mas para eles não. Este
dia, este minuto, aquele segundo, sempre se repete enesimamente. Mas eu posso vê-
los quando fecho meus olhos. Como fotografias em terceira dimensão.‖ Neste
momento, Onion piscou os olhos e, estes, tornaram-se transparentes e semelhantes
aos de um gato.

―Se isso é verdade, tudo o que acreditamos ter acontecido, não é verdade. Todo
o nosso passado é uma mentira.‖

―Dizem que houvera destroços logo após a explosão. É mentira! Eu estava aqui
e posso garantir que tudo que havia, além de mim, era uma gigantesca e limpa
cratera, e mais nada. Tudo, casas, móveis, folhas de árvore, tudo ficou preso no
limbo. Mas eu nada sabia. O trauma havia me deixado com amnésia. Que só terminou
no dia em que os outros, e também eu, morremos. Aquele portal. Neste exato lugar,
no futuro, será aberto à custa de 50 seguidores meus, Hamerski, Gomes, somente para
que eu visse tudo o que aconteceria no passado.‖

―A estática na imagem…‖

―Eu vi este passado e voltei. Contudo, eu morri. Quando acordei, possuía os


três implantes presos em meu peito, imortal novamente e com uma consciência de
tudo maior do que qualquer mortal poderia imaginar. Para se tornar como Deus, além
de possuir a consciência do tempo, eu deveria ser como ele.Ser três sem deixar de ser
um e ainda assim ser três.‖

―Mas você não agüentou a força temporal envolvida.‖

―Pior, ao invés de me mesclar, assimilar as características necessárias para me


tornar um com o tempo, eu me fechei mais em mim mesmo. A trindade temporal
consiste no dinamismo, na estase e na entropia, por que tudo que começa tem um fim.
Essas características se misturam, se completam. Hamerski era o dinamismo, vontade
e ação. A estase era Gomes, a noção do real e do imaginário. Eu, a entropia. Apenas
assimilei minha característica. E agora, aqui estou, morrendo e nascendo, para depois
morrer novamente.‖

―Mas você disse que veio aqui consertar o passado.‖

―Seu imbecil! Eu já repeti essa cena 73 vezes! E todas têm o mesmo fim. Claro
que com algumas variações. Da primeira vez, você apenas entra aqui, atira e me
mata. Mas assim, não teria nenhuma emoção ou chance minha se me salvar. Por isso,
comecei a intervir. A cada tentativa minha de mudar o passado, eu mudo um fato,
uma frase, algo para que eu possa mudar para eu mesmo mudar. Em outro momento,
eu te mato e você me mata. Em outro, me suicido após te matar. Em um outro, me
suicido na sua frente, mas, mesmo com as variações, todos tem o mesmo fim. Foi
então que percebi que não temos o tempo, o tempo é que nos tem.‖

―Isso não é possível! Você está me dizendo que já sabia de tudo o que
aconteceria aqui?‖

―Algumas coisas, mas só me recordo quando é tarde demais. Como agora.


Cada detalhe do futuro, fui eu que preparei. Cada detalhe do quarto. Todas as
situações, tudo já havia sido montado para que você viesse para cá. Mas não
adiantou.‖

―Percebe a profundidade do que está dizendo? Pelo que você me disse, o tempo
é realmente cíclico! Nós dois criamos nosso futuro.‖

―É até irônico! Quando eu sobrevivi, jurei me vingar de quem havia sido o


responsável por essa tragédia, sem saber que sempre fora eu. Eu, mesmo sem saber,
jurei vingança por um crime que cometi. Eu criei o futuro apocalíptico que tentei
evitar. Eu criei a seita que foi fundada com o intuito de me criar.‖

―Paradoxo…‖

―Na era que agora se inicia nós forjamos e somos suas vítimas, como o soldado
que atira em si mesmo ao limpar seu rifle. Eu sou o pai e o primeiro filho desses anos
negros que viram. No princípio só existia Adão e no fim só haverá Adão. Mas você
pode mudar isso.‖

―Eu? O que está dizendo?‖

―No dia em que o homem quis se introduzir na trindade divina, ele destruiu o
conceito de deus e parou de acreditar. Você, para me destruir, deve tomar o meu
lugar.‖

―Isso é loucura!‖

―Para que o futuro viva, eu devo morrer, e você deve tomar meu lugar.‖
―E se eu não fizer isso?‖

―Você não tem escolha. O tempo se move em círculos. Se você não me matar,
o universo todo se congela no tempo.‖

―O que você está dizendo?‖

―Quando eu me aproximei do deslocador, ele se tornou instável. Isso quer dizer


que eu e ele vamos ficar nos equiparando energeticamente. Nos anulando
mutuamente, como imãs de pólos misturados a se repelir e atrair infinitamente.‖

―O universo vai junto no vácuo.‖

―Atire em mim ou usarei minha energia contra você.‖

―Isso é loucura. Você disse que não pode morrer!‖

―Sim, mas os parafusos que você achou podiam me matar, uma vez que foram
expostos aos mesmos efeitos que eu.‖

―Mas eu não trouxe os parafusos…‖

―Você não… entendo. Um detalhe para a próxima vez que nos encontrarmos
aqui. Sem os parafusos eu não morro, mas pode ser que o impossível ocorra. Atire
assim mesmo.‖

―O tempo nunca nos dá uma escolha simples.‖

―O tempo é caos. Agora eu percebo. Para que o princípio se torne algo


palpável, deve existir o caos para fazê-lo.‖

―O tempo realmente é cíclico.‖

―Como nos velhos tempos…‖ Dizendo isso, Onion levanta seu dedo indicador
e aponta para Tanaka, que responde apontando o revólver para ele. ―Nunca se
esqueça: a cada geração deve existir um imortal.‖

Um silêncio mortífero se fez e, por um segundo, fora como se toda existência


parasse para ver aquela cena. Duas forças iguais e opostas se analisando, se anulando.
Um tentando perceber a fraqueza do outro. O silêncio que se fazia não só em seus
corpos, mas também em suas mentes. Um único gesto poderia decidir o destino de
tudo o que viveu, vive e viverá. Não deveriam ter deixado o universo nas mãos de
apenas dois homens. Um som de revólver atirando e outro agudo, pássaros voando
sem rumo desesperados e uma explosão devastando toda uma cidade marcaram o dia
que ficou gravado na memória de todos para sempre.
Facho de luz. Fogo-fátuo. Ontem, amanhã e hoje, ao mesmo tempo e em tempo
nenhum. Dinamismo. Círculos se quebram e se reconstroem infinitamente. Fim e
início se tornam iguais, pois assim o são. Esmagado e sugado ao mesmo tempo.
Fragmentos de memória. O avesso do avesso do avesso. Percepção. Consciência
espalhada e única. Um túnel sem fim. Ausência do ser. Estase. Lembranças da
infância. O tempo a se engolir. Sentidos misturados, mas ainda individuais. Paradoxo.
Treinamento na academia. O ventre materno. O 1 o dia na escola. O fundo de um
caixão. Forma. Loucura. Rondas de moto, corridas de moto. Fagulhas. Um instante
infinito. Vontade. Conversas com Gomes, Hamerski e Onion no ginásio. Onisciência.
Eternidades. Tiroteio no armazém. Memórias do-que-virá. Indo e vindo. ―Nada é que
já não tenha sido. Quando um são três e três são um, o tempo é cíclico‖. Tudo e nada.
Entropia. Concepção. ―A era que agora se inicia nós forjamos e somos suas vítimas,
como o soldado que atira em si mesmo ao limpar seu rifle. Eu sou o pai e o primeiro
filho desses anos negros que viram. No princípio só existia Adão e no fim só haverá
Adão‖. Um olho no presente e outro no passado. O tempo lentamente retornando ao
seu não-corpo. O som de todas as coisas vai cessando. O sentidos vão retornando um
a um. Mas não havia nada do outro lado. Nada… e então fez-se a luz…

2068 d.C.

contagem regressiva para o fim do mundo

Um cômodo sujo e aparentemente abandonado de uma pensão no subúrbio da


cidade. Páginas de uma Bíblia, fotos antigas, recortes de jornal e de revistas
científicas colados nas paredes. Cheiro de cola velha, comida estragada e de sonhos
desfeitos. Folhas de caderno espalhadas pelo chão contendo cálculos absurdos e
anotações ilegíveis. Perto da cama desarrumada, no chão, uma poça seca contendo
algo semelhante a sangue coagulado.

Enquanto recolhia de um canto do quarto algo semelhante a um parafuso


minúsculo, o agente Tanaka, da Cronoguarda, devaneava até o dia em que despertou
num quarto de hospital com as memórias em frangalhos. O que lhe ocorrera antes do
despertar eram ainda flashes e déjà vus desconexos. Sentia já haver recolhido aquele
parafuso antes.

Juntamente com dois outros agentes sabia que aquele abandono era realmente
relativo. O morador do lugar fora profissional e apenas indícios mínimos
comprovaram o fim de sua estada há apenas um dia.

Tanaka lembrava-se das últimas horas que havia estado na Cúpula. O


comandante Farga em pessoa o havia convocado para aquela tarefa. Chegara
correndo, como se o tempo lhe esvaísse entre os dedos. E realmente lhe esvaía.
Diário Obscuro

Em meados de 1999, quando eu já havia iniciado minha busca por obras


insólitas, deparei-me em um sebo com uma rara tradução de Shadow of Atlantis do
cel. Alexandre Braghine que datava de 1959, em capa dura e com mapas do
continente perdido.

Curiosamente, o atendente insistiu que eu levasse, juntamente, um pequeno


caderno com aparência desgastada com capa dura em azul índigo e preto, por ele
acreditar ser meu. Discuti sobre a confusão, mas ele não deu ouvidos. Eu, perdendo,
nos argumentos, levei o caderno junto comigo.

Tinha a intenção de jogá-lo fora na primeira lixeira que passasse por mim,
quando me impeliu a curiosidade de abri-lo e folheá-lo. Surpreendeu-me uma
caligrafia pequena, cuidadosa e trabalhada, quase desenhada. O objeto possuía
diversas folhas rasgadas e trechos rasurados, como se o autor estivesse fazendo algo
pessoal.

Meu inglês não é dos melhores, porém, assombrou-me o fato de haver


compreendido o conteúdo do que entendi ser um diário, assinado por uma senhora
Ford, Dama do Gelo.

Pesquisei onde já ouvira tal nome e a constatação encheu-me tanto de surpresa


quanto aguçou minha curiosidade.

Das páginas que li, traduzo e transcrevo algumas que achei estarem com sua
essência ainda imaculada. O caderno é datado de 1917 e não transcrevo todo seu
conteúdo por motivos que apresentarei em seguida.

―Escálo

O decaído senhor do trovão africano é uma muralha negra de ímpeto, orgulho e


libido.

Sua personalidade é forte e não desiste até vencer uma discussão. Deixa-se
levar pelo calor das emoções e do desejo. E isso tem suas consequências. Como a
quantidade de raios que se veem no Brasil e na África. Somente devido a esse detalhe
que conseguimos convocá-lo para participar da Liga Obscura.

Entretanto, devido deixar-se levar por seus sentimentos, é o melhor


companheiro em campo de batalha. Não admite deixar nenhum parceiro de armas
para trás.

Não admite, também, uma derrota em campo. Faz o que precisa ser feito,
mesmo que isso inclua ações extremadas.
Sua grande fraqueza, provavelmente, são as mulheres. Foi devido elas
que ele tornou-se um desterrado, tendo suas reais habilidades confinadas em
um machado de nióbio.

Mesmo assim, não mede esforços para conseguir satisfazer seus desejos. E a
isso tenho que transformar em nossa vantagem.

Goneril

Essa bruxa lamurienta considero, por vezes, mais um estorvo que uma aliada.

Seu pessimismo é crônico.

Na Irlanda ninguém a houvera visto, porém todos, de alguma forma, em


alguma situação de luto, concordaram que haviam escutado seu gemido sobrenatural,
o keening.

Acredita ser da família das fadas, contudo, tenho índicos de que sua linhagem
aproxime-se mais às nornes ou às disir.

Por isso o perigo. Explico: às vezes, uma incontrolável sede de sangue invade-a
e somente com feitiços específicos de contenção consegue-se fazê-la retornar à
sanidade.

No entanto, feiticeiros colegas de equipe dela, membros da Liga Obscura,


realizam tais feitiços como moeda de troca.

E não é nada bom ter uma criatura dessas em débito com você. Ela não
esquecera quando o voto terminar.

Trínculos

Estas criaturas – cuja aparência se assemelha a roedores, lagartos, macacos e


doninhas – infestavam uma cidade romana da qual ignoro o nome, antes de
ingressarem na Liga Obscura.

Os habitantes diziam, que eram as almas dos mortos malvados e sua maldição
era errarem pela Terra torturando os ímpios, perseguindo os incautos, zombando dos
tolos e causando horror aos homens. Eram chamados de lêmures.

São incontáveis e nunca são encontrados sozinhos, apesar de seu número


sempre variar. De três, podem se multiplicar inexplicavelmente em dezenas, passando
a centenas, para, em seguida, tornarem-se meia dúzia.

Compartilham de uma mesma e perturbada consciência. Possuem um senso de


justiça peculiar. Senso esse que será de grande auxílio para levarmos a termo nossas
missões.
Quince

Advindo de uma linhagem de assassinos, sua pontaria é certeira.

Esconde-se à sombra do pai, o ―Tell‖, e por isso, não revela seu verdadeiro
potencial. Foi o único membro da Liga Obscura que, ao ser convocado, fez questão
de ser chamado pelo codinome, pois não se sente digno do sobrenome que leva.

Em seu alforje, carrega apenas uma flecha, pois segundo a Ordem da qual faz
parte ―um bom assassino necessita apenas de uma flecha‖.

É versado em diversos tipos de arma e consegue aprender a utilizar qualquer


arma que esteja ao alcance de sua mão. Entretanto, percebi, em diversas ocasiões, que
pode muito mais.

Provavelmente (e infelizmente) essa limitação auto-imposta seja prejudicial


para si e para o restante da equipe.

Tamora

É perigosa, como seus demais colegas de equipe. Todavia, é também um


perigo para eles.

A feiticeira é uma linda mulher e uma voraz serpente. Divertia-se, antes de


haver sido convidada a participar da Liga Obscura, seduzindo e devorando gregos.

Seu silvo hipnótico é uma de suas mais poderosas armas. Da mesma feita, sua
beleza feminina também.

Aprendeu seus feitiços devido sua remota natureza divina: é um dos diversos
frutos das inúmeras paixões de Zeus. E graças às habilidades que absorveu dos
feiticeiros que foram vítimas de seus desejos sexuais e alimentícios. Somando aos
anteriores, outro desejo se apodera dela: por poder. Ainda não descobri qual deles se
sobressai.

Tenho percebido-a insinuando-se para Escálo e conversando muito com Elbow


e Morgan. Sempre sibilina e sempre sedutora…

Preciso ficar de olho nela.

Pistola

Esse habilidoso ladrão é possuidor de um senso de humor negro e de um


sarcasmo cáustico. Possui comentários constrangedores para tudo e uma resposta
(mesmo que inconveniente) para qualquer pergunta.

Pode assumir a forma de um corvo, graças à maldição que compartilha com


seus irmãos. Esses, por sua vez, desapareceram no mundo em busca da irmã
desaparecida. Sua ajuda à Liga Obscura tem como pagamento a ajuda para encontrá-
la.

Parece que é uma característica familiar: Pistola também desaparece quando


mais se precisa dele para fazer sabe-se-lá-o-quê. Em uma dessas partidas, tivemos
que soltá-lo em Paris. Em contrapartida, demonstra a habilidade de surgir quando
menos se espera.

Elbow

Há nele aquele espírito prático dos comerciantes. Tudo para o duende tem uma
moeda de troca.

Acredita piamente que todo homem tem um preço. E, graças a isso, consegui
que prestasse seus serviços à Liga Obscura. Ao trapacear um trapaceiro, consegui
algo que muitos de seus inimigos buscam, seu verdadeiro nome: Rumpletisken.

Sei que ele só está na Liga para conseguir algo que também seja só meu. Tenho
minhas suspeitas se o incidente envolvendo o Mão Negra, em 1914, tenha sido
proposital. Sei que, na primeira oportunidade, ele colocará os membros da Liga uns
contra os outros ou contra mim mesma.

Sei de tudo isso.

Mas continuarei caminhando com meus pés gélidos nas brasas.

É difícil admitir, mas, ele é um mal necessário, mesmo sob o risco de pôr tudo
mais a perder.

Gertrude

Apesar de aterradora, é a mais pacífica e sábia membro desta formação da Liga


Obscura.

Essa dragão fêmea chinesa apresenta a paciência de quem já viveu inúmeras


eras.

Cavalga os céus melhor que os pássaros, perfura as águas com mais destreza
que os peixes. Estremece o chão com mais fúria que os elefantes. Sua carne concede
aos que a provam, longevidade. Dizem que Mao Tsé Tung tinha um dragão feito
cativo e, aos poucos, alimentava-se da carne do mesmo para viver longos anos.

Sua pérola ora está à sua boca, reluzente como o sol, ora está em seu ventre.
Ela é considerada a fonte real do poder de Gertrude, seu coração. Porém, He quem
diga que, na realidade, a pérola é um ovo de dragão que Gertrude está a chocar, o seu
ovo.

Cedo ou tarde descobriremos.


Yorick

Minha carta na manga tem a aparência de um agitado adolescente negro de


uma perna só.

Entretanto, não se engane, porque esse adolescente brincalhão e tão cínico


quanto pistola e que fuma permanentemente um cachimbo que parece nunca se
apagar tem a idade da floresta Amazônica.

Não retira seu píleo, um gorro vermelho que fica em sua cabeça, por nada.
Yorick possui uma quantidade tão grande de habilidades que eu poderia ficar o dia
inteiro enumerando apenas as que chamam mais a atenção:

Teleporte, animalismo, invisibilidade, mímica, controle do vento (redemoinho),


controle cronológico local, dominação, ilusionismo, entre outros.

Como acredita que sou sua ―dona‖, por eu o haver capturado séculos atrás,
posso contar com ele sem pestanejar.

Porém, somente por causa desse detalhe…

Belário/ Morgan

Guardião dos sonhos. Mestre dos pesadelos. O Sonâmbulo. São alguns nomes
que este insólito senhor recebeu através dos séculos.

O senhor das areias oníricas é alguém que possui uma característica singular:
dupla personalidade.

Na antiguidade, acreditava-se que se tratavam de entidades distintas, irmãos


gêmeos, dada a natureza diversa de ambos. Num país europeu, é chamado de João
Pestana e de Insonho. Aliás, fora o Insonho que aceitou o convite de integrante da
Liga Obscura.

O restante do mundo, os incautos, acreditam piamente nessa mentira. Mas é


apenas o que ela é: uma mentira. Assim como quase tudo que este senhor diz.

Esse é seu real talento, fazer as pessoas acreditarem em suas mentiras. Sejam
elas alegres ou tristes.

Hipnose, telepatia, influência, dominação, lavagem cerebral, tortura


psicológica estão entre a lista de habilidades dele. Sem mencionar a manipulação e
controle das areias oníricas, que geram sonhos e pesadelos.

É realmente um senhor singular.‖


… o relato acima pode ser tomado por falso. Também assim o acreditei. Após
algumas leituras e anotando certos lapsos e desencontros, cheguei à conclusão de que
é verdadeiro.

Concluí isso pelos seguintes fatos:

Primeiro, percebi em alguns trechos, segundo as afirmações da suposta autora,


ela realmente conviveu com as criaturas citadas. Ou melhor, comandou-as, posto que
as observações são de alguém que observa seus subordinados, não de um amigo. O
texto é mais um bestiário que um diário, e, apesar de pessoal, o texto ainda é solene,
burocrático e cuidadoso nos pormenores.

A autora escreve para si, não para um público. Não transcrevi, por conta disso,
todo seu conteúdo, uma vez que acreditei ser deveras constrangedor para uma dama
(convencendo-me de que a autoria era de uma dama).

O nome senhora Ford que assina a autoria é de uma personagem de


Shakespeare, da peça As Alegres Comadres de Windsor. Do mesmo modo, os nomes
atribuídos a todos os operativos apresentados/analisados por ela pertencem a
personagens shakespereanos.

Possivelmente, o fato de atribuírem nomes de personagens do teatro deva-se a


alguns pontos em comum entre as personalidades. Talvez todos. Outro fato está em
Shakespeare – aquele que é um e nenhum – pode ser considerado também, um ser
fantástico. Para alguns a mera existência do autor tenha sido um mito.

A alcunha de Dama do Gelo vem de um conto da tradição oral publicado por


Hans Cristian Andersen em 1814. Dois séculos depois da morte do bardo.

Ela é cuidadosa ao não revelar certos fatos históricos ou nomes verdadeiros,


apenas insinua. Esse cuidado chama a atenção. Percebe-se que é de alguém que não
deseja ser descoberto aquilo que se faz.

O último e, provavelmente, o mais contundente, seja que acreditar na


existência de uma elite secreta de manutenção da realidade (mesmo estando isso
implícito) formada por criaturas fantásticas que se identifiquem por nomes de
personagens de shakespereanos é uma ideia tão fantástica quanto duvidar de sua
existência.

Soma-se o detalhe de que somente o tipo de criatura citada (leia-se monstro)


seria capaz de fazer aquilo que a autora deixa entender que eles farão: o que precisa
ser feito, sem os pudores dos heróis, custe o preço que custar.

Pós-escrito de 2013.

Após buscas cuidadosas no escritório e entre os rascunhos de histórias antigas,


percebi que desapareceu o caderno azul índigo, o diário Obscuro, como decidi
chamá-lo.
Não sei em que momento desapareceu. Entretanto, entendo seu
desaparecimento como algo inevitável e as razões de isso haver ocorrido.

Nossa era, repleta de descrença, decadência e atos abomináveis quando a


ciência encontra-se num estágio em que a lógica não consegue explicar tudo. Talvez
aja a necessidade de atuação de uma Liga Obscura. Que faça o que precisa ser feito.

Talvez ainda seja preciso convocar monstros para se enfrentar monstros.

Provavelmente, neste exato momento, a senhora Ford, Dama do Gelo, esteja


catalogando operativos em seu diário.

Fico mais feliz em saber que não consigo encontrar o caderno.


Sobre o autor

Péssimo para falar sobre si. Nascido em Niterói (RJ).


Criado em Vitória (ES) desde os 10 anos, sempre buscou
inspiração no mundo ao redor e além. O particular é a alma
do universal. Formado em Letras pela UFES. Reside com a
esposa, Lena, e com o filho, Joaquim Henrique, e
aguardando a chegada do próximo (ou próxima), em Nova
Betânia, Viana (ES).

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