Amedeo Cencini

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Uvro, SP, BrasiJ)

Cencinl, Amedeo
Vida fraterna : comunhão de santos e pecadores :
"- como o orvalho do Hermon - " / Amedeo Cencini ;
Giuseppe Bertazzo , tradução . - São Paulo : Paulinas,
2003. - (Coleção perspectiva)

11tulo original: "-come rugiada dell'Ermon - " :


la vila fraterna comunlone di santl e peccatori.
Bibliografia.
ISBN 85-356-0612-2

1. Comunidades. religiosas 2. Espiritualidade


3. Fraternidade 4. Vida religiosa e monástica 1. Titulo.
li. Titulo: "-como o orvalho do Hermon - ".III. Série.

03-3737 CDD-248.894

Índice para catálogo sistemático:

1. Fraternidade : Vida religiosa : Cristianismo 248.894

11tulo original da obra: "... COME RUGIADA DELL'ERMON... "


La uita fraterna, comunione di santi e peccatori
© Rglie di San Paolo. Via Francesco Albani, 21- 20149 Milano, 1998.
Direção-geral: Fláuia Reginatto
Editora responsável: Vera luanise Bombonatto
Assistente de edição: Valentina Vettorazzo
· Tradução: Giuseppe Bertazzo
Copidesque: Maria de Fátima Mendonça Couto
Coordenação de revisão: Andréia Schweitzer
Revisão: Janice Yunes e Leonilda Menossi
Direção de arte: lrma Cipriani
Gerente de produção: Fe/fclo Ca/egaro Neto
Capa: Cristina Nogueira da Silua
Editoração eletrônica: Fama Produções Gráficas

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer fonna e ' u
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© Pia Sociedade Filhas de São Paulo - São Paulo, 2003
INTRODUÇÃO

*
ste livro é a continuaçã_o natural de A vida fraterna
nos tempos da nova evangelização: como é bom
os irmãos viverem juntos, 1 como um segundo volume,
que, por um lado, .tem a sua autonomia e originalidade,
mas, por outro, se torna ainda mais compree.nsível e
lógico se for lido depois daquele texto, pois desenvolve
seu argumento e amplia suas perspectivas, de maneira
a se captarem principalmente as implicações práticas
da teoria ali exposta.
O mesmo título exp~icita a_relação com o outro
volume, mediante a citação do mesmo salmo, o 133,
também citado naquele título, que usa a imagem do
"orvalho do Hermon" para cantar ~ beleza da vida em
comum; ou seja, este livro quer apresentar um aspec-
to daquela beleza ou indicar o caminho que leve à sua
realização.

1 Publicado por Paulinas, São Paulo, 1998.

11
VII>~ t~"Tt~ ~ COMUNHAO Dl "'"'- ·

Estas duas publicações analisam, em conjunto, o que lhe propõe novamente, de maneira visível e eficaz,
mesmo tema - a vida fraterna no atual momento his- o valor e o gosto pelo estar e crescer juntos, unir, de
tórico da vida consagrada - , mas segundo dois ângu- forma estável, a existência e o destino aos dos outros.
los diferentes e complementares. A primeira examina Numa sociedade em que as relações, até as que pare-
o significado teológico e psicológico do viver em co- ciam mais naturais e insubstituíveis para a vida e o bem-
mum, em nome do Senhor, e por força de uma regra estar do indivíduo, tornam-se frágeis e precárias, arris-
e de uma tradição que, hoje, ainda continuam a ter cadas e inseguras oão_pod" passar despercebldo_o_
sentido. A segunda quer entender a maneira de colo- ~lliLdsu; ue constrói rela ões_não funda~
car em prática, concretamente, o verdadeiro ser do _sobre_a carne e o sangue, sobre a simpatia ou sintonia_
ideal comunitário, sugerindo os princípios fundamen- humana, fortes e duradouras mais do que as da carne e
tais da praxe operacional, obviamente, sem dicotomias _d,o_.san9JJ!h._Num ~eralmente dominado pelo
rígidas. É Impossível, e logo o constataremos, falar do princípio ou peloCsuper-QQQer do indivídu~ pelo retro-
estilo de vida comunitária sem nos referirmos àquilo cesso ao privado e~ recuo do grupo ~te doifidr-
que inspira a comunidade e que a fraternidade deveria víduo e de suas pretensões,3 pela intolerância ao que é
viver e testemunhar. Não se pode indicar a comunhão diferente e pela rejeição de quem é fraco, permanece,
como objetivo da fraternidade sem, antes, assinalar as todavia, irreprimível a saudade do relacionamento, a
raízes e as condições que tornam possível essa mesma necessidade do "tu", o apelo de uma natureza, na qual
comunhão. está profundamente impressa a dimensão relacional e
O primeiro volwne apresentou-nos a imagem de amigável.
uma vida comunitária redescoberta, se é que isso fosse Por tudo isso, a experiência comunitária na vida
necessário, em seu valor profético, em sua dimensão de consagrada continua atual e moderna, sinal que a Igreja
sinal, de signum fraterni~atis,2 _numa .cultura ~~e parece e a sociedade não poderiam dispensar, sonho que pode

l
ter perdido o sentido da dimensao social e am1gavel, mas tornar-se realidade para toda a humanidade: "ao mtm-
que - hoje como nunca -, talvez por causa dessa mes- do de hoje, gue deseja a unidade e a fratemi~
ma perda ou "esquecimento", parece sensível a tudo o gue esqueceu os caminhos ou o preço é que precLc;o
pagar para percorrê-los, as pessoas consagradi " são
chamadas a mostrar que aspirar à fraternidade não é
2 Cf. JoÃO PAUW II. Vita consecrata. A uida consagrada e sua
missão na Igreja e no mundo. São Paulo, Paulinas, 1993 (da-
qui em diante, indicado com a
sigla VC). Signum Jraternitatis é
3 Cf. Amimo, M. lnculturation and the Challenges o/ Modemity.
o título da segunda parte. Roma, 1982.

12 13
,,--
uma utopia::.4 mas com um condição: que a experiên- significaria obter a salvação neste mundo como princí-
cia de fraternidade consiga ser au en ica e verdadeira, pio do mundo que virá. Conforme as palavras do Evan-
que proponha modelos visíveis e que possam ser imita- gelho, seria fermento para toda a sociedade, porque
dos, que transmita lima imagem atraente e convincente constituiria uma amostra do mundo futuro ".6
da própria irmandade, imagem nova e mais eloqüente Se for verdade que os religiosos, na situação atual,
para o homem de hoje e suficientemente corajosa para são chamados a ser companheiros de viagem da huma-
abandonar o que nos torna menos irmãos ou não ex- nidade no caminho rumo a essa vida plena, é "a comuni-
pressa, a contento, o sentido e a beleza de nos reco- dade, na qual se aprende a viver com as pessoas que
nhecermos como irmãos. Foi impressionante, sob este Nosso Senhor colocou perto de nós, com suas diferen-
ponto de vista, a insistência com que, no recente Con- ças e seus limites" ,7 o ambiente em que se aprende a
gresso Internacional dos Jovens Religiosos e das Jo- caminhar juntos.
vens Religiosas,5 se frisou a centralidade da comunida-
de na dinâmica da vida consagrada e no testemunho A análise da primeira publicação pôs em evidên-
que ela é chamada a dar à Igreja e ao mundo. A reação cia, de maneira particularmente insistente, a impor-
dos jovens sobre isso foi inequívoca e até entusiasmada, tância e centralidade da comunicação na comunida-
para sublinhar, em especial, que a fraternidade religiosa .Q.g._a que leve a partilhar, sobretudo, os bens do
é o sinal terreno e atual da vida plena e futura , quando .ɧQírito, para que se realize u~a autêntica comunhão.
as pessoas se amarem por força do amor divino e so- So~rtilhando a fé e transmitindo um para o
mente por causa dele, realização plena de todo amor outro, entre os membros da comunidade, o dom rece-
humano. Só assim a vida consagrada "seria uma luz bido cada dia do alto, é que nos habilitaremos a ser
para o porvir, uma esperança para o futuro, porque anunciadores dessa mesma fé fora da comunidade,
mediante um método preciso, o da partilha ou o do
anúncio por contágio, especialmente indicado em tem-
pos de nova evangelização, para uma humanidade e
4 E. Martinez Sornalo, na apresentação da exortação apostólica uma cultura que mal suportariam outros modelos -
Vila consecrota, cit. por CArrANA, V. La vita consacrata per il como o didático ou o apologético - e que, no entanto,
terzo millennio. La Rivista dei clero italiano 6 (1996), 450.
· 5 Esse congresso, o primeiro do gênero, reuniu, em Roma, de 29
de setembro a 4 de outubro de 1997, cerca de 850 religiosos e
6 RuPNIK, M. 1. Dal/'esperienza alia sapienza. Profezia dei/a vita
religiosas com menos de 30 anos, pertencentes a 230 institutos
femininos e 150 institutos masculinos (cf. BRENA, E. Religiosi di religiosa . Roma, 1996. p. 51.
oggi e non dei futuro. Testimonl 8 (1997), 22-28).
7 CArrANA, La vita consacrata .. ., cit. , p. 448.

14 15
necessitam de sinais fortes e evidentes, de palavras cora- Um dado significativo e bastante preocupante é o
josas e inequívocas, de urna testemunha que confesse o que nos apresentam as estatísticas sobre as desistências
que viu, tocou, ouviu e contemplou (cf. lJo 1,1). de religiosas (de vida ativa como também de vida
contemplativa), de religiosos (sacerdotes ou não) e mem-
bros de institutos leigos. Observando os dados relativos
Mas é bom, de verdade, viver juntos? aos anos 80, nota-se - com uma certa surpresa e em
todos os grupos - que a motivação muito freqüente
Antes de avançarmos em nossa análise, temos de para se pedir a dispensa dos votos ou a secularização
nos colocar algumas perguntas, começando com uma (para os religiosos sacerdotes) ou as demissões é justa-
interrogação-verificação primordial: podemos falar, de mente a dificuldade de se viver em comunidade: mui-
verdade, de "costume de partilhar a fé"? Podemos afir- to mais comum do que as motivações relativas a dificul-
mar, com segurança, que as nossas permutas relacionais dades, por exemplo, sobre o celibato, a eventuais crises
são animadas por uma comunicação de experiências de fé, relações problemáticas com as estruturas, falta de
que constrói lentamente a comunhão, a qual, por sua vocação ou outras. 9 É um dado que nos faz corar de
vez, se alimenta da partilha dos dons de todos? vergonha e sobre o qual não podemos deixar de refletir.
Em A vida fraterna nos tempos da nova evange- Se, por um lado, "é bom estarmos juntos", por outro,
lização observávamos, com realismo, que tudo isso pa- não podemos fingir que é também uma maxima
rece, por enquanto, um ponto de chegada não muito poenitentia, ou, como afirma o subtítulo deste livro: a
próximo, e que seria, sem dúvida, ainda mais bonito fraternidade religiosa é uma comunhão de santos, mas
viver juntos se tivé~mos a capacidade de partilhar os também de pecadores.
dons do Espírito. O documento sobre a vida fraterna É nesta perspectiva realista e objetiva que quere-
faz substancialmente a mesma advertência quando fala mos nos colocar, sem ceder a fáceis exacerbações, nem
da "escassa qualidade da fundamental comunicação dos de um lado nem do outro, mas procurando encontrar e
bens espirituais".8 propor instrumentos concretos, como modos de ser e
de viver juntos, com nossas qualidades e nossos defei-
tos. Falamos em modalidades práticas que nos dêem a

8 CoNGREGAÇÃO para os Institutos de Vida Consagrada e as Socie-


dades de Vida Apostólica. "Congregauit nos in unum Christi
9 Os dados a esse respeito podem ser consultados na Congrega-
amor." A uida fraterna em comunidade. São Paulo, Paulinas, ção para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de
1994. (Daqui em diante, indicado como a sigla VFC.) Vida Apostólica.

16 17
' 1°" ~Tl'N"-COMUN H~O DE IANTOI E PECADO~[\

possibilidade de edificar a autêntica fraternidade evan- no mistério, no grande mistério da comunhão com Deus,
gélica "nos momentos bons e ruins", apresentando-a que é três vezes Santo, aquele que é "paciente e mise-
ao mundo e à Igreja como signum fraternitatis coloca- ricordioso" (Nm 14,18). A fraternidade religiosa pode
do no alto do monte de um testemunho luminoso e tornar-se comunhão de santos e de pecadores precisa-
sedutor, mas nem por isso menos cansativo e muito mente porque é, antes de tudo, comunhão com Deus
humano e, exatamente por isso, imediatamente com- santo e misericordioso. E isto somente com a condi-
preensível. ção de que essa experiência provoque a conversão de
Afinal, o santo e o pecador convivem em cada um um coração suficientemente sincero a ponto de reco-
de nós. É surpreendente descobrir, a cada dia, que um nhecer a sua santidade e o seu pecado; e tão livre que
precisa do outro, que o santo que está em nós é menos permita que "uma cresça junto com o outro", dentro
santo se não aprender a viver com o pecador que habi- e fora de si, até o tempo da colheita, como diz Jesus
ta nele. O santo não é, porventura, um pecador recon- (cf. Mt 13,30).
ciliado? O mesmo acontece na comunidade consagra- Somente assim a experiência e a utopia da primi-
da, que é tudo, menos um clube de aristocratas do tiva comunidade dos fiéis ("um só coração e uma só
espírito ou, ainda, de pessoas sem iniciativa que brin- alma", At 4,32) poderá tomar-se realidade e a fraterni-
cam de agradar uns aos outros, ou de "perfeitos" que dade religiosa continuar cantando, em voz alta, sem
nunca têm nada do que se queixar e de se perdoar mu- nenhum acanhamento, diante de um mundo que per-
tuamente. Por outro lado, não é um grupo de peniten-
deu o sentido, não, porém, a nostalgia da fraternidade.
tes mais ou menos deprimidos, ou de impenitentes que
vivem mais ou menos na indiferença, inconscientes ato- "Como é bom os irmãos viverem unidos... É como
res de um psicodrama coletivo ou de uma terapia de o orvalho do Hermon ... !" Mas qual é o significado des-
grupo, que se repete sempre da mesma forma, para sa imàgem do salmo 'que aqui retomamos?
que a pessoa permaneça o que é, sem esperança nem , O orvalho tem uma importância vital para uma
vontade de mudar. terra estorricada pelo sol, como é o caso da Palestina
Se for verdade que, por sua própria natureza, o no verão. Ele evoca a idéia de frescor, fertilidade, bem-
bem cria comunhão, porque tende a se difundir (bonum estar geral, 10 numa palavra, de vida para o solo. O amor
diffusivum sui), é possível construir união e solidarie-
dade mesmo tendo consciência e experiência dos nos- 10 Observa Lqmbardi: o orvalho, "caindo do alto, espalha-se uni-
sos limites e daqueles dos outros. A comunidade religio- forme e imparcialmente sobre todas as coisas, com a mesma
sa é o fruto dessa comunhão, no bem e no mal, do medida e quantidade ... O orvalho uniformiza e nivela os senti-
bem e do mal. Uma comunhão que afunda suas raízes mentos de fraternidade, de sorte a alcançar a situação que, nos

18 19
fraterno diz o salmista e assim comenta B. Proietti, é forte crise de identidade está atingindo o modelo tradi-
tudo i~ para Israel e para cada indivíduo. A qualidade cional , que o seu universo simbólico está se desagre-
dos relacionamentos recíprocos transfigura-se, de ma- gando e que é "essencial descobrir ou criar um novo
neira que o ter "um só coração e uma só alma" (At 4 ,32) modelo". O problema é que este modelo "ainda não
não é pura utopia. Com o seu canto entusiasmado e está disponível". 12 Para sermos mais exatos: são mui-
cheio de maravilha, o salmista pede, ao mesmo tempo, tos os diagnósticos, e os instrumentos para isto estão
implicitamente, em sua oração, o esforço necessário para sendo cada vez mais refinados, esboçando quadros às
que essa vida fraterna se torne realidade. 11 Também nós vezes por demais pessimistas sobre o futuro da vida con-
queremos unir-nos a esta prece com a presente reflexão, sagrada. Permanecem, no entanto, indefinidas as pers-
a fim de que a própria vida consagrada se transforme em pectivas quanto à maneira de sair desta situação. Por
"orvalho" para a Igreja e para o mundo inteiro. esta razão, continua indeterminada a fisionomia que a
E não é tudo. Há um outro motivo que realça a vida consagrada terá de assumir.
importância do tratado sobre a comunidade no momento Por causa desse contraste, provavelmente, surge
atual. aquela sensação de frustração, que, não raro, criou
uma ojeriza em relação ao muito falar, analisar e es-
crever sobre o presente e o futuro da vida consagrada;
Renovação da vida consagrada: ou, então, aquela sensação de nostalgia de "quando as
o caminho é a comunidade coisas eram claras e até funcionavam bem". Por isso,
várias pessoas pensaram que podiam sair dessa situa-
A ênfase sobre a renovação da vida consagrada ção de impasse, dessa passagem sem fim , simplesmen-
foi tão insistente e, no fim, tão inconcludente, logo a te voltando a certos esquemas já bem experimentados
partir do pós-concílio até hoje, que alguns nem querem no passado, ou acentuando exclusivamente o aspecto
mais ouvir falar nesse assunto. Ninguém duvida que uma moral-ascético da crise, como se ela fosse apenas

12 Consideração de C. Maccise feita no congresso internacional


Atos 4,32, é definida como um só coração e uma só alma, isto
é, wúformidade de sentimentos na caridade" (LoMBARDI , G. I preparatório ao Sínodo sobre a vida consagrada (Roma, no-
sa/mi de/ pe//egríno. Gerusalemme, 1970. p. 85). vembro, 1993). No mesmo congresso, o historiador L Cada
11
Cf. PROIETTI, B. Se il tuo fratello ... cade in miseria ... aiutalo (Lv assim se expressou: "A vida consagrada chegou ao fim de uma
25,35). Realtà e conseguenze dell'essere fratelli per l'AT. ln: era" , porém, é "cedo demais" para se definir, com clareza, qual
Consacrati per una comunione fraterna . Roma, 1995. p . 48. será a sua imagem no futuro.

20 21
r
conseqüência de uma diminuição da obsetvância e do de tudo, trata-se de identificar a comunidade e "criá-la "
entusiasmo e bastasse uma boa (re)animação espiritual como um lugar estratégico da renovação da vida con-
para solucioná-la. sagrada, como "o caminho" da própria renovação, o
O problema, entretanto, parece ser outro. Duran- seu coração e o seu centro. Em segundo lugar, é preci-
te esses anos pós-conciliares, tivemos muitas indicações so entender "como transformar em estilo de vida ccr
autorizadas a respeito do caminho de renovação da vida munitária o novo modelo de vida consagrada que foi
consagrada: é só pensar na riqueza dos documentos da se delineando, nesses anos, e que corre o risco de perma-
Igreja que apareceram nesses decênios depois do Per- necer uma aquisição apenas teórica de alguém" _14 É
f ectae caritatis: Euange/ica testificatio, Mutuae rela- substancial, então, que essas aquisições, as que amadu-
tiones, Potissimum institutioni, Congregavit nos in receram e as que estão amadurecendo agora "sejam
unum Christi amor, até o recente Vito consecrata. Sem entregues não simplesmente aos indivíduos , mas ao
'nós-comunidade' e se tornem uma nova praxe de vida
dúvida, não podemos afirmar que ignoramos o que hoje
nas comunidades e das comunidades" .1s
a vida consagrada nos pede para poder continuar res-
pondendo plenamente à sua missão. A dificuldade con- Como não podemos gerar sozinhos, porque ape-
siste nisto, como bem observa L. Guccini, "as melhores nas a comunidade é geradora de vida, também a novi-
conquistas conciliares e pós-conciliares permaneceram dade de vida - a renovação da vida religiosa - só
sepultadas no coração dos indivíduos, ao passo que a poderá ser ação comunitária, realização de fratern i-
disposição geral da vida consagrada - refiro-me à orga- dades que aprendem, lenta mas estavelmente, novos
nização estrutural, aos modelos de vida e de apostolado estilos de vida e de serviço, novas dinâmicas relacionais
- continuou substancialmente a mesma e, aos poucos, na vida comunitária e apostólica. Parafraseando o que
Madeleine Delbrel afirma sobre testemunho, podería-
desacreditada até pelos que a vivem. Faltou o compro-
mos dizer que a conversão ou a renovação de uma só
misso - ou, talvez, a possibilidade - de transformar,
pessoa tem só a sua assinatura, ao passo que a conver-
aos poucos, 'a uida comunitária' de acordo com o que
são e a renovação de uma comunidade têm a assinatura
se vinha adquirindo". 13
de Cristo.
Aqui está o nó do problema, que apresentamos
em dois objetivos estritamente ligados entre si. Antes

13
GucaNJ, L. Vita religiosa, un futuro da costruire. Indicazioni
per un itinerario (conferência à Assembléia Regional USMI da
14 Idem, ibidem, p. 4.
Lombardia, Milano, 15 de maio de 1997, p. 2).
15 Idem, ibidem.

22 23
\110~ f ~TikN~· COMUNH ~O OI WlTOS1 m~oom
INTRODUC O

Partilha e projetos grada, não apenas no sentido de abertura da


De qual comunidade falamos? Ou em quais condi- casa, como também de disponibilidade em par-
ticipar da vida dos outros, deixando de lado
ções isto se torna possível?
qualquer regime de separação;
Sem a pretensão de fazer o elenco completo de
e) se inspira sempre mais no modelo familiar , to-
requisitos (quiçá impossíveis), tentaremos apresentar
mado no sentido amplo, nas formas de mora-
alguns deles. Uma comunidade interpreta e encarna a
dia, na organização dos relacionamentos inter-
renovação da vida consagrada na medida em que:
nos, nas relações com o ambiente que existe
a) passa da lógica da observância à lógica da co- ao redor, na recuperação das dimensões nor-
munhão: visa não só "fazer o bem", mas tam- mais da vida cotidiana (afazeres domésticos,
bém "querer o bem" dos seus membros, numa cuidados com a casa, ritmo inteligente na orga-
fraternidade na qual o componente afetivo nização do dia ... );
agápico se une fortemente com o apostólico;
f) se enraíza tão profundamente no lugar, que tem
b) aprende e ensina a viver, em seu interior, a par- condições de aceitar até as provocações que
tilha da fé e da oração, graças à qual cada mem- chegam do ambiente em que a comunidade está
bro oferece apoio ao outro no caminho difícil inserida; 16
da vida e da consagração, e se elabora juntos
g) se torna lugar e sujeito de for.mação perma-
um projeto para se viver de maneira evangélica
nente bem como de animação vocacional. Em
· todos ~s casos, seu esÚlo de vida torna-se teste-
e de acordo com o carisma recebido como um
dom;
munho luminoso e contagiante da beleza de
c) testemunha e confessa a fé e a esperança, mas Deus e do seguimento de Jesus.
também o que é típico da observância e do tes-
Provavelmente, poder-se-iam encontrar outros
temunho religioso (por exemplo, os votos), ou o
componentes, ou esses mesmos poderiam ser sintetiza-
que constitui a sua riqueza (por exemplo, a
dos em torno de elementos verdadeiramente centrais
espiritualidade espedfiea), como um bem a ser neste caminho de renovação. Nós, na mesma linha do
compartilhado com ~s de fora, ou seja, com os texto precedente, escolhemos levar em consideração o
leigos que entram em contato com ela;
d) recupera o sentido da hospitalidade e do aco- 16 Cf. idem, ibidem, pp. 4·6; cf. também: PEGORARO, G. La via à la
lhimento como dimensão natural da vida consa- reciprocità. Testlmoni 3 (1995), 27-28.

24 25
V1 01' fAATI ~N'-' COMUNHM DE IANTOI EPECAOOm

que apresentamos como segunda condição dessa lista: aceito sem mais nem menos, nem a fé nem as respos-
a partilha como estilo fraterno de vida , que leva a tas que a fé é chamada a dar às expectativas do mo-
comunidade a se projetar continuamente à luz do mento histórico. Tudo é sempre reconduzido à motiva-
Evangelho e do carisma, isto é, a encontrar fo~mas ção que deu origem à escolha dos indivíduos e ao
sempre mais transparentes e eloqüentes do seu proprio nascimento da comunidade, àquela evangelícidade
ser e da sua própria opção. carismática que está na base de tudo e que não pode
Parece-nos, além disso, um requisito que se pres- ser colocada entre parênteses por um instante sequer.
ta, sobretudo, a sintetizar todos os outros que foram São muito interessantes, a esse respeito, os signi-
indicados e a expressar plenamente o esforço de reju- ficados etimológicos do verbo projetar (ou projetar-se). 17
venescimento da vida consagrada, neste caminho rumo
Pode significar, em primeiro lugar, edificar alguma coi-
a uma terra ainda não vislumbrada, que é, por enquan-
sa, construí-la pessoalmente, com a própria cabeça e
to, apenas prometida, na qual, talvez, nenhum de nós
com as próprias mãos. Contudo, pode significar tam-
entrará, mas em direção à qual, mesmo assim, cami-
bém lançar-se para além de si mesmo, além da medi-
nhamos juntos. Por um lado, efetivamente, a partilha
da daquilo que é mais fácil fazer ou se tem absoluta
indica a união dos ânimos, o afeto recíproco como
sentimento humano que nasce, renasce e se torna sem- certeza de que se sabe fazer. ·Enfim, a raiz de projetar
pre mais puro e intenso pelo idêntico amor que se tem retrata a idéia de se entregar a alguém, confiar a prér
para com Deus. De outro, ela se converte em método pria vida a um ,outro, ~ão se fec~ar dentro de uma lógi-
de vida e até método de uma santidade que pode se- ca que privilegia o .individual, e limitada aos própri9s
não ser' com~itária, de uma irmandade de pessoas que interesses, mas se abrir à confiança e à esperança, apos-
vêm de lugares diferentes, mas percorrem a mesma es- tando em algo (um ideal) ou em alguém maior do que
trada, têm gênios até opostos, porém possuem a mes- nós e digno. de confiança. 18
ma fé, têm nomes diferentes, mas a mesma inconfun- Torna-se fácil a aplicação desses significados à
dível identidade, não se escolheram, no entanto, comunidade como sujeito 'agente e que faz projetos. Uma
encontram-se nos mesmos projetos de vida evangélico- comunidade que projeta, ou na qual se costuma pensar
carismática. a sua própria essência e o seu agir, constrói o seu futu-
Esse projetar e projetar-se juntos rejuvenesce e ro graças à partilha das contribuições de todos os seus
renova a vida comum, impedindo-a de se fossilizar, de
se repetir, aborrecida e esteril, matando o amor e a 11 Do latim proicio.
fraternidade, tornando vazia e inautêntica a fid~lidade. is Cf. CENCINI, A. Coleção Animadores de pastoral ju ueni/ e na-
Onde se costuma projetar vida e consagração nada é cional. 5v., São Paulo, Paulinas, 1999.

26 27
INTPOOV< '°
membros - sem excluir ninguém - e dos dons Pes-
grada . Sem nenhuma pretensão de apresentar o ele-
soais de graça e natureza. Esse colocar em comum os mento que soluciona a crise, procuraremos situar-nos
bens não determina simplesmente uma soma, uma jus- nesta linha de coerência para avançar na direção certa.
taposição deles, como se estivessem numa exposição ou
à venda, mas faz avançar regularmente o objetivo que a
comunidade pretende atingir, além daquele que a pró- Projeto da trilogia e do texto
pria irmandade teria condições de alcançar, de acordo
com uma avaliação simplesmente racional das capacida- O presente volume procurará apresentar um prcr
des dos indivíduos. A comunidade não é composta da jeto estrutural de base sobre o qual devem fundamen-
soma ou do conjunto dos indivíduos presentes. tar-se todas as comunidades de consagrados, de manei-
Por um lado, ela evita o perigo de se fechar em si ra especial, a comunidade que queira encarnar um
mesma, nas suas observâncias ou na busca de uma per- verdadeiro e autêntico projeto de renovação; no tercei-
feição insuficientemente partilhada com o mundo exte- ro e último estudo, chegaremos à identificação dos ins-
rior. Por outro, evita ver-se privada da contribuição be- trumentos concretos e dos exercícios comunitários que
néfica ou da provocação saudável que muitas vezes pode tornam possível esse projeto.
vir do ambiente que a circunda. Este segundo volume ocupa uma posição inter-
No projeto dessa comunidade, ou desse tipo de mediária entre a análise teórica do primeiro e a indica-
comunidade, importa definir, com a maior precisão ção da prática operacional do terceiro. Neste sentido, é
possível, os princípios fundamentais, o projeto arquite- teórico-prático: apresenta princípios, embora queira
tônico que sustenta o edifício comunitário para depois sugerir logo também o valor prático.
se definirem os aspectos mais concretos, as pistas me- Em particular, esse tratado deve ser entendido e
todológicas que permitem à comunidade tornar-se cada dividido assim.
vez mais edifício de Deus, construído conforme o seu
Falamos da dificuldade de se viver uma vida frater-
projeto, para realizar o seu sonho.
na iluminada não só pela santidade de cada um, mas
Talvez tenha sido uma certa incoerência entre os também perpassada pelas fraquezas de quem faz parte
projetos de princípio e os de método a causa ou uma dela. Aliás, fizemos algumas afirmações importantes e
das causas da "renovação inacabada" 19 da vida consa- que representam uma espécie de pressupostos do nos-
so trabalho. Em síntese, se a comunidade religiosa é
19
A expressão ecoou num encontro da União dos Superiores Ge- fruto desta partilha, no bem e no mal, do bem e do mal,
rais (USG), cit. por GuCCINI, Vita religiosa .. . , cit., p . 3. então pode e deve tornar-se comunhão de santos e de

28 29
pecadores. Todavia, essa comunhão humana só pode-
rá nascer da comunhão com o Deus santo e cheio de
misericórdia (cf. Nm 14,18) e da conversão do coração
humano que se irrita em coração que experimentou a
ternura do Eterno; nascerá de um coração dividido para
chegar à partilha do amor. O processo de renovação da
vida consagrada passa através desta aposta: as nossas
fraternidades podem e devem converter-se em comu-
nhão de santos e de pecadores.
PRIMEIRA PARTE
A experiência espiritual da santidade e da miseri-
córdia de Deus, bem como a dupla comunhão fraternp.,
dos santos e dos pecadores, com a respectiva integração
do bem e do mal, formam as três partes em que o livro
está subdividido.
*
A COMUNHÃO
COM O DEUS SANTO E
MISERICORDIOSO

30
A COMUNHÃO COM O DEUS SAmO E MISERICORDIOSO

A comunhão com Deus está sempre no início e


no fim, no coração e no centro de todas as comunhões
humanas. Para o homem pode ser espontâneo amar e
se deixar amar. Desde o primeiro dia de sua vida, ele vai
continuamente ao encontro do outro para viver a expe-
riência sumamente gratificante e sempre nova do amor
oferecido e recebido, dentro de uma relação em que o
eu sente-se aceito por um tu. Com o tempo, poderá até
envelhecer sem que o seu coração fique velho, porque
é próprio da natureza o coração se manter jovem. Mas
a comunhão é coisa bem diferente, é amor que chega a
captar tudo do outro, o seu bem e o seu mal, e por toda
a vida.
O ser humano talvez possa realizar com alguém
este tipo de relação. Teremos, pois, a relação amigável
ou conjugal em que o outro, o amigo ou o cônjuge, é
escolhido para viver uma comunhão que exige, por sua
própria natureza, a livre escolha motivada por uma pre-
ferência subjetiva. Contudo, viver a comunhão com mui-
tos, com pessoas que você não escolheu, acolher total-
mente a realidade do outro que, humanamente falando,
lhe é estranho, com o seu bem e o seu mal, suas virtu-
des e seus pecados, sua esperança e seu desespero, seu
amor e sua incapacidade de amar.. . tudo isso não é algo
espontâneo para o ser humano. Somente poderá ser
fruto de uma experiência de plena e total aceitação de
sua pessoa, com todas as suas negatividades, por parte

33
---
de um outro, que o habilita, agora, a ter a mesma aber-
A COMUrlH/..O COMO DWS s..-1-rro [ ~ IS!i l(O " Of'O'SO

Iniciamos, então, por essa análise e pergunta, cuja


tura da mente e do coração para com os demais. solução consideramos preliminar a todo o argumento
Nesta primeira parte, queremos ver como o rela- (cap. 1), para depois refletir, mais de perto, sobre a cor-
cionamento com Deus permite esse tipo de experiên- relação entre a comunhão com Deus e a comunhão
cia, ou como a experiência pessoal do diálogo com Deus com os irmãos (cap. li e III).
abre a comunhão com o irmão. Mas queremos perce-
ber se, além desse tipo de conexão, que supõe urna
sucessão causal-temporal entre os dois momentos, corno
entre um antes e um depois - antes a experiência es-
piritual do indivíduo, depois a abertura universal para
os outros-, há uma outra conexão ainda mais profun-
da e radical entre a experiência individual e a espiritual
comunitária na vida consagrada, que, de alguma ma-
neira, as toma substancialmente iguais e simultâneas,
como se uma estivesse dentro da outra, porque têm
idêntica raiz.
Queremos nos perguntar, com outras palavras, se
essa abertura à fraternidade ou a essa comunhão com o
irmão é somente uma conseqüência comportamental de
uma experiência de oração e de encontro com Deus, ou
se já não é, por si mesma, um componente do relaciona·
mento mesmo com Deus, um estilo ou maneira de ceie·
brá-lo até o ponto de podermos falar, com toda a razão,
de uma experiência espirituai comunitária como típi·
ca experiência de Deus dentro da vida consagrada. A
fraternidade e a comunhão, j,ara serem autênticas, não
deveriam caracterizar, por si mesmas, a oração e o modo
de ser e de estar diante d~ Deus, dentro de um plano não
apenas de santidade individual, como também, e antes
de tudo, de santidade comunitária?

34 '5
apítulo primeiro

ESPIRITUALIDADE 1N DIVI DUAL


E COMUNITÁRIA:
INDIVÍDUOS SANTOS OU
COMUNIDADES SANTAS?

*
literatura espiritual sobre a experiência espiritual
da pessoa predomina, sem dúvida, sobre a que
trata da experiência comunitária. Este último conceito
não está totalmente ausente, mas recebe menor aten-
ção. Prova disso é o fato, talvez ainda mais evidente e
de certa forma conseqüência dele, que o mesmo pare-
ce acontecer entre o conceito de santidade individual e
o de santidade comunitária.
Normalmente, a santidade comunitária é apresen-
tada como uma conseqüência da santidade do indiví-
duo, assim tão santo que estimula em outros o mesmo
desejo, ou tão perfeito que chega a viver a perfeição da
caridade com os outros. Com certeza é assim. Isto, po-
rém, não significa que não existam e que não possam
ser estudados, propostos e vividos caminhos específi-
cos ao longo dos quais se possa construir em conjunto
um projeto de santidade. Aliás, somos do parecer que a
vida consagrada, hoje, precisa mesmo desses percur-
sos, porque é bonito encontrar um santo, mas ainda

37
VIDA f !tATERN A: COMU NH.l.O DE SANT05 E PECADORES
ISPIRITUALI DA D! INDIVIDUAL! COMUNITARIA: IN DIVIDUO! S#rTOI OU COMUN IDADES SM<TAI'

mais bonito e edificante é encontrar uma comunidade


se tem a sensação de que o conceito de santidade co-
de santos ou de irmãos/irmãs que, vivendo juntos, pro-
munitária seja tão vago a ponto de se tornar indefinido,
curam santificar-se juntos, propondo, assim, a todos um ou talvez nunca tenha sido apresentado seriamente como
modelo comum e imitável de santidade, muito mais visí- tema a ser discutido? A estas interrogações segue-se
vel e eficaz, eloqüente e coerente, porque, nesse mode- logo uma outra absolutamente inevitável: somos cha-
lo, o conteúdo do anúncio, isso é, o amor evangélico mados a ser santos individualmente ou a construir co-
identifica-se com o estilo de vida de quem anuncia. Muitas munidades santas?
vezes, o indivíduo santo, na medida em que vive sozi-
nho uma certa perfeição pessoal, corre o risco de ser
visto mais como um herói a ser admirado do que um As justificativas da santidade individual
modelo a ser imitado. Pelo contrário, uma fraternidade
de santos e aspirantes à santidade suscita muito mais Provavelmente, este fenômeno pode ser interpre-
facilmente, mesmo em quem observa de fora, o desejo tado na linha daquele individualismo dominante em ní-
de entrar naquela experiência para .caminhar junto, em vel cultural-social antes sublinhado e que já penetrou
direção a um objetivo que, quando vívido por muitas em nossos ambientes. Falamos longamente disso no
pessoas, parece estar mais ao alcance ,de todos. primeiro volume, indicando as sutis e nefastas conse-
qüências em relação à maneira de conceber a espiri-
Além disso, se santidade é o ágape de Deus, o seu
tualidade e da qualidade dos relacionamentos inter-
conceito implica, de imediato, a dimensão comunitária
pessoais. 1 Esse individualismo espiritual talvez encontre
em que o outro não seja apenas objeto quase passivo
numa mes~a tensão "individual" à santidade mais um
de benevolência, mas - justamente como acontece em
elemento de confirmação e reforço, no mínimo, por
Deus - seja amado até o ponto de se tornar ~apaz do
dois motivos.
mesmo amor de Deus, isto é, santo ou solicitado a sê-
lo. Em outras palavras, a autêntica santidade é conta-
giosa, expressa-se no amor que converte .o amado em
Ver o outro como um ser diferente
amante e, portanto, em santo. No mínimo, provoca-o
energicamente nesse sentido: a verd~deira s.antidade · O primeiro: a santidade, antes de tudo, parece
é comunitária. uma questão estritamente pessoal, porque é ligada ao
Mas por que, apesar de tudo isso, na Igreja e na caráter, à história, às fraquezas, à força de vontade do
vida consagrada, a reflexão sobre a experiência ·espiri-
tual individual prevalece sobre a comunitária?, Por que 1 Cf. CENc1N1, A vida fraterna nos tempos ... , cit. , pp. 128-40.

38 39
VIDA fllATtRNA: COM\J NH,l.0 Dl SANTOS { PECADOREI
llPIRrTUAllDADE INDIVID\JM 1 COMUNrTÁRIA: INDIVf DUm sn rros ou COMUlllD• Dll l MfT• 'i'

indivíduo. Por isso, parece bastante lógico que cada


intolerâncias ou a sutil imposição de uma única manei-
um tenha de se empenhar nesse seu esforço de perfei- ra de sentir e agir, ou até certas formas de integralismo
ção muito pessoal, caminhando ao longo de uma es- presentes em nossas fraternidades) e, especificamente,
trada que não pode ser igual à dos outros. É o mesmo de reduzir sempre mais a santidade a uma aventura so-
que dizer: se cada um tem a sua própria personalida- litária, pelo fato de não ser fácil encontrar a alma gê-
de, única-singular-irrepetível, igualmente distinto e in- mea ou torná-la tal.
confundível será o seu caminho de santidade. Não só
será desnecessário, mas tampouco possível compar-
tilhar, a não ser em pequena medida, os diferentes Ver o outro como um pecador
caminhos. Enfim, cada qual siga o seu caminho com
seus propósitos, suas metas, angústias, dúvidas, "seu" O segundo motivo (ou justificativa) é apresentado
Deus ... por uma consideração ainda mais imediata e eficaz: para
No máximo, será possível percorrer um certo ca- que o caminho de santidade seja rápido e com uma
minho comum de santidade somente quando encon- meta bem precisa, não poderá ser retardado pelas fra-
trarmos alguém parecido com a nossa própria perso- quezas e incoerências de quem está por perto. Quem
nalidade, com os nossos mesmos gostos espirituais e desejar levar a sério o seu compromisso de perfeição
psicológicos. Nós nos tornamos amigos porque nos des- deverá concentrar sua atenção e seus esforços sobre a
cobrimos iguais, ou, por vezes, existe a tendência a própria conduta, porque já terá muito com que se pre-
moldar o outro, tomando a si mesmo por modelo, tal- ocupar, sem se encarregar dos outros ("por acaso eu
vez até forçando um pouco, não aceitando que seja di- sou o guarda de meu irmão?", Gn 4 ,9), especialmente
ferente - diferença que, mais cedo ou mais tarde, se aquele que é mais vulnerável ou tem menos boa vonta-
imporá por si mesma, colocando em crise a falsa ami- de nesse caminho. Do contrário, corre o risco de ficar
zade. É a necessidade patológica, afirma De' Certeau, esperando indefinidamente e de o outro sequer iniciar a
de sermos idênticos, ou o temor de sermos diferentes caminhada. Aliás, em certos casos, será melhor ficar
ou, ainda, a incapacidade de gerir a nossa própria di~ atento para não se deixar condicionar-contaminar por
versidade e a dos outros, 2 com evidentes conseqüên- certos sujeitos e por seu mau exemplo.
cias no nível dos relacionamentos (quais sejam: as várias Em suma, teremos a santidade como não-conta-
minação, conseguindo, talvez, ter alguns santos (não
2
contaminados, naturalmente), nunca, porém, comunida-
Cf. DE CER'IF.Au, M. Mai senza l'altro. Parola, Spirlto e Vita 27
(1993), 300. des santas. Com relação ao mundo, teremos, quando

40 41
VI D... flV'<TERN.-.: COMUNH,l.O DE 1"-NTOS [ PCC"-DOREI
[I PIRrTUMID"-DE IN DIVI DUM ! COMUNrTARl k INDIVIDUm 1.-.nros o u COMU ll D~Dg ~ n rr~ S>

muito, comunidades incontaminadas diante de um mun- O carisma, caminho comunitário


do que está naufragando e uma vida consagrada que
para a santidade de todos
acredita ser santa, sem assumir responsabilidade com o
mundo; ou, então, como no caso precedente, podemos Na base de um projeto comum de consagração
ter aqui uma interpretação seletiva do outro com quem existe um idêntico chamado de Deus, porque é vincu-
percorrer um caminho de santidade: se antes se tratava lado a um mesmo carisma e , por isso, orientado para
da alma gêmea ou daquele que procuro moldar à minha um mesmo modo de ser, de rezar, de fazer apostolado ,
feição, agora, excluindo os demais, trata-se do confrade de viver a fraternidade , inclusive a mesma identidade e
"virtuoso", daquele menos contaminado pelo mal. santidade. O carisma religioso é, efetivamente, a reve-
lação do eu, o nome que Deus me deu, aquela especí-
Enfim, a diversidade e o pecado do outro pare-
fica semelhança com Deus que sou chamado a expres-
cem, de certa forma , legitimar a interpretação pre-
sar e na qual ·consiste a minha plena realização e
ponderantemente individualista do caminho de santi-
santidade.
dade ou de perfeição e, em geral, da experiência
espiritual. Pois bem, numa comunidade compartilha-se o
mesmo carisma, isto é, a mesma identidade, o mesmo
Mas, em oposição a isso, onde nasce, ou como se projeto de semelhança divina e , portanto, o idêntico
legitima o conceito comunitário de santidade? É apenas ideal de santidade, entendido não como ponto de che-
um modo diferente de apresentar sempre as mesmas gada, mas como percurso que conduz até aquela meta:
coisas, ou até uma moda Óriginal para mitigar ·a severi- um carisma não é somente valor estático, objetivo final,
dade da ascese individual - ou é componente daquela mas também método, caminho espiritual experiencial,
nova imagem de comunidade que lentamente está nas- pedagogia da busca de Deus. Tudo isso como dom do
cendo, hoje, pela nova evangelização: aquela que não Espírito que, por meio do fundador/fundadora, chega
pode mais se dar por satisfeita em buscar tão-somente indicando-nos um caminho respeitável, autenticado não
a perfeição dos seus membros, mas que deve cada vez apenas pelo reconhecimento da Igreja, mas pela e.."<.-
mais testemunhar, tornar visível e praticável por todos periência de muitos irmãos e irmãs que percorreram
o dom de graça que recebeu? aquele caminho e nele se santificaram. Afinal, há uma
comunidade que já pàlmilhou aquele caminho, ofere-
cendo um modelo bem visível de santidade aos seus
"descendentes".
Um indivíduo torna-se membro de uma família
religiosa, isto é, "pertence" a ela não só juridicamente,

42 43
V1 D,O. fl\-"Tl kN.._ COMUN HÀO DE s,o.NTOS E PEC...DO R!S ES mlTUM ID,0. DE INDIVI DUM E(OMU NITÁRI.._ INDIVIDUO! IAUTOS OU COMU~llDADEI IA.rfAI'

mas de fato e com todo o seu ser, na medida em que sorrateiro e traidor como quando ele se camufla e es-
percorre novamente aquele mesmo caminho, aplica em conde atrás dos semblantes ou dos sonhos de perfeição
sua busca o mesmo método, para celebrar, no fim, a individual.
mesma experiêncià de Deus vivida pelo fundador e por
O que surpreende é que estamos tão pouco cons-
muitos irmãos no passado. E se este dom de sabedoria
cientes dessa espécie de "pecado solitário" (que, às ve-
espiritual e experiencial lhe é agora confiado, assim como
zes, parece até receber estímulo) e quanto cada um, em
a outros irmãos, agora é perfeitamente lógico e inevitá-
comunidade, corre o risco de, na prática, cuidar de seus
vel que ele venha a ser compartilhado com esses ir-
negócios espirituais, provendo de qualquer maneira -
mãos, num caminho de santidade, portanto, essencial-
isto é, por sua própria conta - as próprias necessida-
mente comunitário.
des e, quando muito, rezando pelos vizinhos· ou fazen-
Poderíamos dizer que existe uma espécie de do aliança, como já dissemos, com o amigo igual-a-si
circularidade e convergência de significado entre os

11
ou especialmente "virtuoso". O que surpreende é como
conceitos de auto-identidade, pertença, experiência se pode ignorar e esquecer o sentido comunitário do
de Deus, de caminho de santidade e de experiência de carisma como elemento que fundamenta a identidade
fraternidade. Basicamente, esses conceitos são equiva- dos consagrados e unifica os caminhos de santidade. O
lentes e um remete ao outro, um não pode existir sem o que, ao contrário, não surpreende de modo algum, a
outro, mas todos juntos giram em torno do conceito de essa altura, são os dados sobre as motivações que se
carisma. apr~entam para deixar a vida consagrada, como aludi-
mos anteriormente.
Se a finalidade da vida cristã é a santificação dos
que crêem, a vida consagrada é e propõe uma forma Na realidade, para que viver em comunidade se,
qualificada de se santificar em conjunto, .é caminho afinal, cada um se preocupa com sua perfeição particu-
específico de santidade construída em conjunto, a par- lar? Como podemos falar em profecia do ágape divino
tir daquela única inspiração central (o carisma), na qual quando os relacionamentos interpessoais, numa função
cada membro reconhece o caminho que lhe é indica- presunÇosamente auto-santificadora, são escolhidos com
do pela providência de Deus, a própria maneira de se critérios humanos, quando não pagãos? Ademais, que
realizar na santidade. Escolher viver em comunidade força de coesão pode existir numa fraternidade na
significa caminhar unidos nesta peregrinação em dire- qual o que é mais importante e central na realidade
ção ao Santo, compartilhar essa tensão e essa mesma não é colocado no centro da vida? Que coerência e
realização superando aquele individualismo radical que credibilidade podemos esperar de uma fraternidade na
todos carregamos dentro de nós e que nunca é tão qual o anúncio não combina com o estilo do próprio

44 45
VIDA r RAT! RN!< COMUNH.1.0 D! SANTOS 1 PCCADOR CS t rnRITUALIDADI IN DIVIDUAL 1 COMUN ITÁRIAJ l ~I DMDUOl SMfTOl ou COl' UrllD• DH S• lfT• P

anúncio? Isso para não falar da capacidade do testemu- mente e na mesma hora por causa do mesmo martírio,
nho ou do grau de atração vocacional. Os santos indivi- nem mesmo a santidade de uma fraternidade de super-
dualistas (supondo que possam existir hoje) poderão so- homens ou de pessoas escolhidas a dedo para essa
mente atrair puritanos ecologistas do espírito que mesma operação. Sonho, em vez, com a canonização
confundem a santidade com a ausência de todo contá- de uma fraternidade na qual a boa vontade de um aos
gio; ou frios misantropos que escolhem a vida consagra- poucos acolheu a diversidade ou o pecado do outro,
da para justificar o seu medo do contato interpessoal. não se contentando em aceitar ou perdoar, ignorar ou
Não desejamos ser excessivamente rigorosos, mas fazer de conta de que nada aconteceu, para cada um
devemos compreender que um certo individualismo es- voltar a se concentrar em seu próprio esforço de perfei-
piritual é bem mais que uma simples inconsistência da ção; uma frat~rnidaçie que procura com afinco e pa-
psique e do espírito; e não é, de forma alguma, raro ciência "crescer em conjunto, um perto do outro", diante
nos nossos ambientes e no nosso modo de conceber a de Deus' e sempre mais unidos, na partilha da graça e
experiência espiritual. Mas é e representa em si mesmo do perdão. 3
qualquer coisa de monstruoso, uma contradição radical Sonho impossível e utópico? Tenho a convicção de
com a substância do plano religioso, a idéia de comuni- que, na realidade, seja o sonho de todos, talvez até de
dade, a mensagem que a vida consagrada deve dar ao
mundo.
3 No Congresso Internacional dos Jovens Religiosos e das J ovens
Devemos chegar a entender que, em comunidade, Religiosas, a respeito do qual já falamos, idealizei, em minhas
ou nos santificamos todos juntos ou ninguém ,se santifi- considerações, um diálogo entre Jesus e o jovem consagrado,
ca, e que o irmão, diferente e com toda a sua carga de durante o qual o Senhor transmite o seu sonho de que haja
comunidades santas e não somente indivíduos santos. A reação
pecado e fraquezas, é companheiro de viagem na cami-
dos jovens e das jovens presentes foi imediata e muito positiva.
nhada para Deus, bem como parte integrante do meu Alguns dias depois, um antigo professor de uma pontifícia uni-
relacionamento com ele. Não posso considerá-lo como versidade romana, que presenciara a conferência, enviou uma
alguém estranho àquele relacionamento ou ignorá-lo, nem nota à secretaria do Congresso, na qual explicava que nada ha-
considerar-me superior (eu, santo) a ele (pecador). via de novo nesse imaginário sonho divino, pelo fato de já e.'Xis-
tirem comunidades de religiosos mártires (por exemplo, uma
É um sonho? Certamente. Eu sonho, de verdade, comunidade de passionistas espanhóis trucidados juntos duran-
com o dia em que será canonizada uma comunidade re- te a revolução anticlerical espanhola). Evidentemente, não era
ligiosa, em que poderemos celebrar a santidade de uma esse o sentido da expressão, mas talvez essa diferente reação e
comunidade e não apenas de santos individuais ·ou de interpretação expressem uma real diferença de gerações a res-
um grupo de mártires religiosos santificados conjunta- peito da concepção da fraternidade.

46 47
VI DA FRATERNA: COMUNH,l,O DC SANTOS C PCCADORCS

Deus, daquele Deus que é Trindade, perfeita comunhão Capítulo segundo


e plena partilha, e que isso seria um sinal de eficácia
excepcional neste mundo sufocado pelo individualismo.
A EXPERl~NCIA ESPIRITUAL,
Vejamos, por isso mesmo, como podem ser supe-
radas aquelas duas atitudes que parecem oferecer, como ESFERA DA DIFERENÇA
já vimos, uma certa legitimidade à interpretação indivi- E DA INTEGRAÇÃO
dualista da santidade: ver o outro como um ser diferen-
te (cap. II), um pecador (cap. III). Com certeza, será a
qualidade da experiência espiritual, pessoal e comunitá-
ria que nos oferecerá a resposta não só teórico-doutri-
*
nária, mas, .sobretudo, prático-experiencial. A realida-
de da diferença e do pecado do outro não representa scolhemos a vida consagrada, como dissemos, ba-
um obstáculo à comunhão para quem vive a experiên- sicamente porque descobrimos num carisma um
cia espiritual como . lugar da diferença que será inte- caminho específico de experiência do divino. 1 É no
grada e da misericórdia que abre as portas à concórdia, âmbito dessa experiência, comum a todos os que com-
ou para quem aprende a permanecer diante do Deus partilham o mesmo carisma, "peregrinos" de um mes-
santo e misericordioso. mo caminho, que a pessoa, "em busca de Deus", E?TI-
contra aquele Deus que revela a si mesma. É o aspecto
comunitário e, ao mesmo tempo, pessoal da dimensão
mística do carisma.
Realizar essa síntese não é algo que se consegue
sem esforço, sobretudo porque, como lembramos no
capítulo anterior, não é totalmente fácil e tranqüilo para
o ser humano acolher o outro com toda a sua diversida-
de até o ponto de partilhar com ele o mesmo caminho

1
Assim se expressa a Regra de Santo Agostinho: "O motivo essen-
cial de vocês viverem juntos é que, no projeto comum de buscar
incansavelmente Deus, tenham plena unidade de mente e de
coração" (cap. 3).

48 49
VID,&. IAATERN.0.: COMUNHÃO DE \,&.NTO\ E PEC-'DOREI
,&. ! XP!R l !N( I,&. m lRITU,&.L !SHR,&. D,&. Dl ffRfNCA ! D~. l'fHGRH.ÁO

de auto-realização e, portanto, de santidade. Mesmo ou miraculoso. Essa ilusão já se encontra descrita na par-
assim, essa síntese é condição e elemento constitutivo te final do Evangelho. Jesus anuncia que, no fim dos
da comunidade religiosa, já que é no seu âmbito que as tempos, dir-se-á: 'O Senhor está aqui, neste lugar', ou se
duas dimensões, a pessoal e a interpessoal, encontram anunciará: 'O Senhor está lá, naquele tal lugar'. Isso, do
um justo equilíbrio. mesmo modo que aquilo, é ilusório. [... ]Deus não está
Já, 'ele vem', esperado até o último dia, surpreendendo
sempre os desejos que o anunciam. [... ] É o além, por-
A diferença que está sempre mais longe de onde o procuramos. Não
podemos agarrá-lo de lugar algum, mas aprendemos que
Essa síntese lembra a qualidade global da própria é infinito pelo caminho indefinido que o cerca depois
relação pessoal com Deus e um aspecto particular des- de tê-lo acolhido ou que o chama, depois de tê-lo perce-
ta, implícito na idéia mesma da "peregrinação" e da bido. O infinito para nós é o espírito desse itinerário in-
busca de Deus como caminho ininterrupto, continua- definido. Nós não podemos nunca circunscrever em nos-
mente exposto à imprevisível novidade da teofania. sos conceitos, na nossa afetividade, na nossa experiência
Deus, efetivamente, como afirma ainda De Certeau, comum ou individual aquele que, por definiÇão, está além.
"revela-se sempre rasgando os sinais que também, como [... ] Mas podemos dizer, e a experiência no-lo ensina:
ocorreu no passado, com o véu do templo, marcam a Deus é 'maior'. Isto é, ele se nos revela incessantemente
sua vinda". 2 pelo fato de ser, a todo instante e em relação a qualquer
Por isso, é importante aprender a viver a fé permi- conhecimento, maior do que as concepções, das expe-
tindo que Deus seja diferente de como o coração hu- riências sociais ou individuais que temos a seu respeito. "3
mano gostaria que fosse, sem a pretensão de "impedi-lo" Mais longe, além, maior, infinito .. . É a experiên-
(Jo 20,17), de moldá-lo aos nossos desejos, de reencon- cia da santidade de Deus, diante da qual o homem per-
trá-lo sempre onde nós marcamos o encontro, de excluir cebe toda a sua pequenez e distância. Trata-se da expe-
o mistério. "Nós tentamos localizar Deus. Dizemos: 'está riência da "peregrinação da fé", imagem que descreve
aqui', ou: 'está lá'. Pensamos que esteja em tal forma com perfeição o longo caminho de fé de Maria, a pri-
de experiência mais afetiva, ou em outra mais racional, meira consagrada do Pai. 4
ou, ainda, naquela espécie de acontecimento psicológico

2
DE CEJITTAu, M. Mai senza l'altro. Viaggio nella differenza. 3 Idem, ibidem, pp. 22, 28, 29, 30.
4
Magnano, 1993. p. 112. Cf. Lumen gentium 58 e Redemptoris Mater 17.

50 51
VlDA fllATERNA: COM\JNH.&.0 D! IANTOI l HCADORll
A ! XP!Rl [ NCIA ! SPIRITUl\L !HERA DA DIF! R!WA E Dll n rrEG•>L>o

Como a virgem de Nazaré (e totalmente o oposto e sem limites para quem o procura. Poderá, então,
de quem se julga dono de sua própria vida e lê tudo avançar. Mais que isso, será irresistivelmente fascina-
conforme o seu critério), o peregrino encontra-se dian- do e seduzido por descobertas, a cada dia novas e
te do inimaginável e do inédito, diante de um projeto de imprevisíveis:
Deus que lhe diz respeito, mas que vai muito além do
Mais precisamente: o peregrino do divino, no iní-
que teria conseguido pensar de si mesmo e dos seus
cio, respeita, no relacionamento com Deus, aquela dis-
projetos de santidade. Igualmente à serva do Senhor, e
tância que 1 do ponto de vista quantitativo - se assim
ao contrário de quem perdeu o sentido do mistério, ele
podemos dizer - não se reduz e parece que nunca di-
"guarda no coração" (Lc 2,19.51) o que viu e não en- minui, apesar de sua grande procura e do seu cami-
tende nem pode entender de imédiato; medita continua-

!
nhar, e que é o sentido da transcendência (ou daquilo
mente, "rumina", colhendo sempre mais a dimensão que a Bíblia chama de "temor de Deus") e da diferença.
transcendente, o sentido escondido, numa palavra, o Mas depois, passa a vivê-la de maneira diferente: trata-se
mistério. de uma distância que não. afasta nem separa, não mor-
Como os humildes e os simples, e de maneira di- tifica nem desencoraja quem procura. Pelo contrário, é
ferente dos sábios e inteligentes, o peregrino que busca o espaço fecundo do mistério que abre novos horizon-
o divino tem uma vivíssima percepção da superioridade tes, do dom gratuito de Deus que vem ao encontro de
e alteridade de Deus, percebe em todas as coisas uma sua criatura através de caminhos novos e imprevistos; é
ausência, silêncio de Deus que submete à dura prova e
ulterior perspectiva, intui em cada acontecimento, mes-
purifica, mas acaba aumentando ainda mais o desejo de
mo naquele que parece simples e transparente, um sig-
procurar o seu rosto e de se deixar encontrar por ele e
nificado que o supera, tem o sentido da surpresa e
nele se descobrir.
da maravilha.
Antes tratava-se do mistério do não-conhecimen-
to, impenetrável porque obscuro; agora e cada vez mais
A integração continua sendo mistério, mas pelo motivo totalmente
oposto: pelo excesso de luz que o envolve e que impede
Nesse momento, aquela distância, diversidade, ao 'olho humano, não acostumado a um brilho tão in-
alteridade e transcendência de Deus não adquirem uma tenso,' penetrar nele. Contudo, isso não impede que o
vertente apenas negativa, não é só inacessibilidade e coração se sinta atraído, que experimente progressiva-
impossibilidade de avançar; mas precisamente por Deus mente a beleza do mistério e procure avançar nele, por-
ser Outro e não classificável, ele abre mais um espaço que percebe que é precisamente nele que está escondida

52 53
V1 D" f !V<TIRN1' COM UN H.&.0 DE S"NTO\ E PCCADOR l\ A IXP[ Rl !NCIA ESPIRrTVAl ESFERA DA DJFE WICA E DA lrrT Ea>r> o

a parte mais vital do "eu", a que ainda deve conhecer e integração, da distância e da intimidade.6 Santidade que
realizar, aquela que parece impossível e alta demais para não ·esmaga e afasta, mas atrai e chama a si, deixa-se
ele ... , para, enfim, perceber que pode andar sobre as tocar e até se doa à pessoa, santidade boa e benevolen-
águas e amar com o coração de Deus. te, que não faz diferenças porque "nada escapa ao seu
É a fase da integração, o que não significa elimi- calor" (SI 18, 7).
nação da diferença ou - menos ainda - tentativa de Aquela mesma distância doravante converte-se em
redimensionar o sentido da transcendência de Deus, mas terra santa, objeto de grata contemplação e de emocio-
o acolhimento pleno dela e descoberta do seu valor po- nada surpresa. A ausência de Deus transforma-se em
sitivo, até o ponto de se deixar moldar por ela. 5 É este o nova presença e em nova intimidade, na qual Deus se
sentido da santidade de Deus, mistério que une as duas revela não pelos sinais de sempre, facilmente decifrá-
polaridades aparentemente opostas da diferença e da veis, como se estivesse se impondo e, enfim, se repe-
tindo, conforme a lógica humana, mas no "murmúrio
de brisa suave" (lRs 19,12) que pede uma total aten-
ção aos pequenos sinais de sua grandeza. O silêncio de
Deus permite escutar uma palavra nova, que é dura,
mas que dá a vida, nutre a mente, aquece o coração e
5 O conceito de integração é usado aqui, sobretudo, no sentido ilumina o caminho. O mistério que está contido em cada
psicológico, como processo intrapsíquico, que permite ao sujei- acontecimento torna-se lugar de formação contínua, em
to integrar as diferenças, em sentido positivo e negativo, do
que a pessoa que tem fé aprende a reconhecer Deus 1
próprio eu, do outro e da vida em geral. Esse conceito foi intro-
duzido pelo psicólogo norte-americano Kernberg, o qual , na
ora no deserto, ora no lago durante a tempestade, no
evolução da capacidade de relações objetuais da criança e, pos- Tabor ou no Calvário, entre a multidão ou no segredo
teriormente, do adulto, prevê esta fase depois da fase da dife- da consciência.
renciação. Já usamos, em outras publicações, esse conceito para
No espaço marcado por aquela distância não há
delinear também o amadurecimento da liberdade afetiva no ce-
libatário consagrado e do mesmo ato de fé (cf. CENCINI, A. Por apenas o peregrino que busca a Deus e a sua santidade,
amor. Liberdade e maturidade afetiva no celibato. São Paulo, mas também a comunidade de peregrinos, ela mesma
Paulinas, 1998; Id. Com amor. Liberdade... São Paulo, Paulinas, peregrina, envolvida com o mistério da santidade de Deus.
1998). É óbvio que a adesão de fé é dom de Deus, mas, como
todo dom que vem do alto, indica e pressupõe determinadas
6
atitudes humanas necessárias para expressar e viver plenamen- A respeito dessa interpretação do mistério como síntese dos
te a mesma adesão. É exatamente nesse sentido que o conceito opostos, cf. lMODA, F. Psicologia e mistério. O desenuoluimen-
nos parece útil também no presente contexto. to humano. São Paulo, Paulinas, 1996. p. 295.

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VIDA f~T(RN~ COMUNH.&.0 DE SANTOS l PlU.DORES
A EXP[Rl {N(IA E S P JRITU~ l ESFERA DA DJiEPHIQ . E D"- lllHG•H,) O

Em que sentido, nos perguntamos agora, esta pas- A comunhão que caracteriza uma comunidade
sagem da diferença à integração, na experiência pessoal religiosa é a dos peregrinos em busca de Deus. Comu-
do indivíduo, está ligada ao relacionamento com o outro nhão fraterna que será sempre mais intensa quanto mais
e ao caminho comum de santificação? o for e continuará sendo a busca; tanto mais verdadeira
quanto mais vivida até as últimas conseqüências tiver
sido a peregrinação da fé; tanto mais forte quanto mais
Santidade de Deus e caminho comunitário sofrida tiver sido a experiência da alteridade de Deus e
de santidade na medida em que tiver sido acolhido, com emocionada
gratidão, o dom de sua santidade.
A resposta à pergunta precedente poderia ser
esta: a distância de Deus, o três vezes Santo, é tam- Então, a santidade de Deus e a experiência dela
bém o espaço em que nasce a fraternidade na co- põem aos poucos em movimento o processo de santifi-
munidade religiosa e no qual tem início o caminho cação da fraternidade.
de santidade de toda a fraternidade. É o espaço no
qual, buscando a Deus, nos encontramos também en-
tre nós e aprendemos a nos acolher reciprocamente,
A experiência da santidade de Deus
permite acolher a alteridade do irmão
peregrinos comprometidos na mesma busca. Trata-se
de uma relação que pode parecer singular, mas, na Este é o ponto de partida, mas pressupõe uma for-
verdade, não existe para nós outra fraternidade e, con- te motivação, de natureza teológica e experiencial-psi-
seqüentemente, outra santidade, a não ser aquela que cológica. Se a experiência espiritual é o âmbito da dife-
se desenvolve ao longo do tempo e das dificuldades da rença em que se experimenta a superioridade misteriosa
peregrinação comum rumo ao monte santo de Deus e de Deus, não como impossibilidade de se chegar a ele,
por causa dele. "A perfeita comunhão dos santos é e sim como sinal de uma medida normalmente su-
meta na Jerusalém celeste" (VFC 26). Há uma comu- perabundante (cf. Lc 6,38) de graça e como convite a
nhão a ser construída aqui embaixo, que talvez não entrar no mistério que dá sentido à vida, a diferença,
será perfeita nem "somente para santos", mas, mes- então, não será mais conflituosa e vista como um obs-
mo assim, é comunhão, fraternidade , vínculo estreito, táculo, nem mesmo aquela que faz parte das relações
laços que vêm de Deus e da busca do seu rosto, comu- humanas e que está inevitavelmente ligada à diversi-
nhão de santidade com a santidade de Deus e, por dade de temperamento, sensibilidade, cultura etc. dos
isso, também com os irmãos. vários membros de uma comunidade.

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VI DA FRATERNA: COMUNH.l.O DE SANTOS E PECADOR ( \ A EXP[ Rl[t lC IA HPIRrrU!ll ESf[P}\ DA DIFEREllU! E D~ llfTEG•H_JO

É verdade que se trata de dois planos diferentes, pensamento, de uma vida em conjunto e que, ao mes-
mas quando a experiência espiritual, que por sua natu- mo tempo, permita e valorize a diversidade, as caracte-
reza é totalizante e invade todas as dimensões do eu, rísticas individuais."7
per~ite entrar realmente no espaço transcendente de Só assim a diferença não será mais maldita e re-
Deus, aceitando a distância do seu silêncio, de sua au- cusada, e sim aceita e reconhecida como componente
sência e do seu mistério - permitindo descobrir e ex- natural e até providencial do caminho comunitário de
perimentar a fecundidade do silêncio, da ausência e do santidade. A tentativa - por mais sutil que seja - de
mistério divinos-, é nesse momento que ela muda o eliminar a distância que separa de Deus, como se qui-
coração e a mente de quem busca a Deus até no plano sesse torná-lo igual à sua própria imagem divina e aos
dos relacionamentos humanos: acaba com o medo da próprios gostos, torna os indivíduos incapazes de acei-
diferença ou com a pretensão de moldar o outro, dis- tar a diversidade do irmão ou torna logo conflituosa a
pondo-o a aceitar a alteridade não somente como um própria diversidade, dentro de um inverossímil projeto
dado natural e que não pode ser eliminado, mas tam- individual de santidade.
bém como uma realidade positiva.
Acontece que a experiência - por mais sofrida
que possa ser- da alteridade-diversidade de Deus como A experiência da santidade de Deus
lugar de uma nova intimidade com ele e, portanto, de permite descobrir a semelhança com
sua santidade, treina e habilita a viver bem a fraternidade, o irmão
ou torna capaz de acolher o irmão na sua alteridade-
O caminho em direção ao Totalmente Outro é
diversidade como um bem a ser valorizado em função
caminho para a verdade e a fonte da vida; é peregri-
de uma santidade comum. É isto que torna possível a
nação não só em direção ao Santo, mas também às
vida comum. Não existiria fraternidade alguma sem essa
raízes da vida e do eu. Quando o caminho é autêntico e
capacidade de viver a unidade na diversidade, isto é,
se te~ a coragem de enfrentar a surpresa da radical
não existe outra possibilidade de se edificar a comuni-
alteridade divina, descobre-se que a raiz da qual temos
dade fora do paradigma trinitário, da comunhão na di-
origem é comum a todos, e esta fonte e orig~m nos
versidade. "Dado que o coração da vida religiosa é a
tornam parecidos, seus filhos e irmãos entre nós. E como
comunidade, a vida religiosa é precisamente um cami-
um caminho de convergência em direção ao centro.
nho, uma praxe espiritual e social da unidade no respei-
to da individualidade. [... ]Trata-se de entender a convi-
vência, encontrar as modalidades, também no plano do 7 RUPNIK, Dall'esperienza ai/a sapienza, cit., p. 35.

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VI DA FRATIRNA: COMUNH -'0 DI IANTO l I PI CADORll

Partimos de estradas diferentes, mas o ponto de chega- pouco hermética, De Certeau diz que "a não-identida-
da é o mesmo. E no espaço transcendente de Deus de é o modo sobre o qual se elabora a comunhão":ª
descobre-se, para nossa surpresa, que substancialmen- isto é, a autêntica comunhão entre nós, ou a verdadeira
te idênticos são: o cansaço, a dúvida, a fraqueza, a ten- semelhança, nasce quando temos a capacidade de acei-
tação de parar, aquele sentimento de estarmos perdidos tar e enfrentar, construtivamente, a diversidade de um e
etc. , como também a vontade de caminhar, o desejo de do outro, de forma autêntica e não na base de artificiais
ver o rosto de Deus, a invocação para que responda ao e forçados processos de nivelamento da personalidade
grito de socorro, a aspiração à santidade e assim por que podem produzir somente semelhanças aparentes.
diante. Ou se descobre que o espaço transcendente do Neste último caso, a vida comunitária tornar-se-ia um
Deus santo é tão amplo, que é capaz de hospedar e aco- baile de máscaras e a santidade do indivíduo seria uma
lher todas as nossas diferenças; aliás, constitui exatamente máscara. Mas se Deus é verdadeiramente o Santo e se
a única e comum raiz que impede que as diferenças que-
0 crente experimentou a sua santidade como har-
brem a unidade. monização de todas as diferenças e distância num pro-
Somente em Deus todas as nossas diferenças po- jeto de unidade, aí, então, a diferença se converte em
dem ser harmonizadas, perdendo a sua força dilacerante riqueza ou, paradoxalmente, evidência de uma origem
e destrutiva, aquele poder centrífugo diabólico que ten- comum: a fantasia incontida de Deus.
de a separar e a nos dividir, mas que, em todo caso,
será sempre mais fraco do que a força unificadora do
Espírito que abraça todas as coisas. A diversidade dá A experiência da santidade de Deus
condições de descobrir a semelhança que existe ante- é experiência de fraternidade santificadora
riormente ou que se encontra em sua raiz; isto é, quan-
do a diferença não é mais amaldiçoada e recusada, cap- Enfim, há urna motivação teológica e, ao mesmo
ta-se uma identidade de fundo que satisfaz á natural tempo, psicológica, que nos permite entender como a
necessidade de se sentir iguais e em harmonia; ao mes- distância que nos separa de Deus possa se tornar espa-
mo tempo, impede que a necessidade se torne patolo- ço no qual floresce a fraternidade e tem início o cami-
gia, mania de se assemelhar em tudo, exigência de um nho de santidade comunitária.
se espelhar no outro, pretensão de moldar a personali-
dade do outro sempre da mesma forma.
É paradoxal, mas este é o único modo de se cons- 8
DE CERTEAU, M. Mai senza l'altro. Parola, Spirito e Vita 27
truir a comunhão. Com uma fórmula sintética e um (1993), 298.

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VIDA FRATERNA: COMUNH-'0 Dl SANTm l PECADORES
A ! XPERl ! NCIA ES PIR ITUAL !SFEPA DA DIHR!ll.;>, E DA lllHG»OO

O ser humano, conforme uma antropologia cris- ou excedente, ou inédita e surpreendente. Por esta ra-
tã, é uma "unidade dialogal espiritual", 9 realiza-se na zão, é importante escutar e acolher o irmão, mesmo
sua individualidade aberta ao diálogo, com Deus e com quando o seu ponto de vista e a sua avaliação diferem
os irmãos. Com efeito, para o cristão, o conhecimento dos nossos. Por vezes, prestar atenção é sinal não só de
de Deus é um ato essencialmente intersubjetivo que que estamos ouvindo a Deus, mas introduz e dispõe a
acontece no interior de uma série de mediações, dentre pessoa a sair de si mesma para deixar espaço não à
elas, a primeira é a da Palavra pronunciada por Deus e sua, mas à vontade do Pai. A carta de Barnabé assim
que, depois, fez ecoar na comunicação fraterna. Como adverte: "Não se isolem, fechando-se em si mesmos,
afirma Basílio, o crente que se torna monge tem uma
1 interioridade dialógica, isto é, toma cuidado para não
pretender que sua interpretação do divino seja exausti-
como se já fossem justificados, mas encontrem-se e,
juntos, procurem o que é bom para todos. A Escritura
diz a esse respeito: 'Ai dos que são sábios aos próprios
1 va ou de fazer a verdade coincidir diretamente com a
sua idéia. Por isso mesmo, decide estabelecer um diá-
olhos, inteligentes diante si mesmos! ' (Is 5,21)" . 10
Assim, o âmbito da experiência espiritual toma-
1 logo com o irmão.
Assim, a distância que o separa da compreensão
se o lugar de uma nova fraternidade, a qual não nasce,
é verdade, da carne e do sangue, mas, mesmo assim, é
da verdade plena torna-se o espaço dentro do qual pro- profundamente humana e contagiosa. A fraternidade tem
cura e acolhe o irmão, por ele sente-se acolhido e, jun- raízes místicas e ocultas, mas o seu florescimento , po-
tos, buscam a Deus. É o espaço no qual cada um sente a rém, é um dos sinais mais visíveis e atraentes do Reino
necessidade do dom da inspiração do outro, da sua ex- que está por vir. Uma fraternidade floresce quando, aos
periência de peregrino e em busca de Deus, de sua pala- poucos, consegue integrar as diferenças, descobrir a se-
vra e de sua intervenção. Sabe que a comunidade é o melhança, entender que a viagem que leva cada pessoa
lugar em que a graça de Deus o alcança e que o irmão a Deus não se faz com um trem superveloz que chega
é preciosa e indispensável mediação da vontade de Deus imediatamente, sem paradas, ao seu destino, mas pas-
a seu respeito. Aquela distância é, especialmente, o es- sa por todas as estações e faz tantas paradas quantos
paço em que a diversidade do outro - do seu ponto de são os irmãos que compõem a fraternidade, para que
vista ou do seu discernimento - torna-se, de alguma todos possam participar da experiência.
maneira, sinal da vontade de Deus sempre alternativa
1
° Carta de Barnabé 4, 10. A passagem citada encontra-se na
9 Cf. TENACE, M. L'antropologia tra la filosofia e la teologia. ln: Liturgia das horas, no Ofício das Leituras da 2" feira da XVII
W.AA. Lezioni su/la diuinoumanità. Roma, 1994. p. 395. semana do ano.

62 63
VIDA fRATERN A: COMUN HÂO DE IANTOI E PECADOR[\
A EXPE Rl[N(IA ESPIRITUAL ESFE RA DA DIFEPENCA E D... l ~íHGP; O IJ

Em outras palavras, a comunidade na qual se pro- a) Na prática, do ponto de vista carismático-insti-


cura Deus juntos é fraternidade que testemunha a bele- tucional, trataremos de explicitar e propor o
za da consagração e atrai poderosamente, porque nela caminho espiritual específico previsto pelo
se busca Deus em conjunto. E é, desde já, comunhão carisma do instituto, e não apenas nos objeti-
de santos. vos gerais e finais, mas também nos interme-
diários e parciais. Esse caminho deve estar
evidente para todos, em seus componentes mís-
Sinais de comunhão na busca de Deus
ticos e ascéticos, como doutrina teológica e
Vamos tentar captar pelo menos alguns desses si- como método pedagógico, para que cada um
nais de uma comunidade na· qual buscamos juntos o saiba sobre qual base comum irá, depois, con-
rosto de Deus e apresentá-los em duplas de termos ou cretizar e personalizar a experiência do divino.

1 de comportamentos que parecem opostos entre si, mas


que convergem para o mistério da fraternidade que busca
Efetivamente, a precisa indicação carismática é
que leva a pessoa não só a repetir e reviver
a Deus. uma certa experiência espiritual, como também
1 a experienciar de maneira criativa e original uma
interpretação pessoal daquela intuição caris-
Experiência espiritual individual e mática. Por outro lado, o carisma é um dom
comunitária que vem do alto. Ninguém pode pretender ser
É o primeiro inequívoco sinal e a primeira síntese o único depositário e intérprete oficial dele, por-
a ser realizada. Reafirmamos o princípio básico: o que que todos o receberam como uma dádiva -
faz de uma convivência de pessoas uma comunidade cada qual conforme a medida da graça. Então,
religiosa não é o caminho espiritual dos indivíduos, e todos os membros da fraternidade têm a obri-
sim colocar em comum esses caminhos até constituir gação de não deixar faltar à comunidade o dom
idealmente um só caminho. No fundo, como já ressal- de sua interpretaç~o particular.
tamos, o carisma não é, talvez, proposta de uma mes- Tudo isso, porém, não deve, absolutamente, ter
ma experiência de Deus? um caráter apenas teórico ou simplesmente especulativo:
A partilha em comunidade tem esse objetivo, como são as experiências compartilhadas e não só - mas so-
o cume de uma montanha com duas vias de acesso ou bretudo - as reflexões teóricas. Coloca-se a fraternidade
duas encostas, uma carismático-institucional e outra a par do dom recebido e efetivamente experienciado -
pessoal-experiencial. com as luzes e as sombras que caracterizam todas as

64 65
VIDA FRATERNA: COMVN H.l.O DE SANTOS E PECADORES A [XPERl!NCIA EIPIRíTUAL !IH!•, DA DIHWICA t DA Hrr<G.,0 0

experiências humanas-, e não apenas as intenções O demônio do individualismo espiritual, matreira-


ou as hipóteses de trabalho. Dá-se com simplicidade mente pudico e reservado, falsamente humilde e discre-
aos irmãos a contribuição do seu próprio caminho exis- to, quer nos levar a pensar que é bom cada qual guar-
tencial-espiritual, com o cansaço e a alegria que o ca- dar para si o que o Espírito lhe revelou no segredo de
racterizam, e não a análise erudita e até um tanto cheia sua consciência: o próprio Evangelho não afirma que
de presunção ou de arrazoados sobre o que se deveria devemos viver a oração "a portas fechadas", no "pró-
fazer. prio quarto" (cf. Mt 6,6)? E mais: não é porventura indi-
A comunidade cresce na busca do divino e o caris- zível o mistério revelado pelo Pai na intimidade da ora-
ma vive e revive graças a essa partilha e celebração da ção? E nã~ se trata, ainda, de assunto "delicado" que é
vida de cada um. Contudo, repetimos, é indispensável mais prudente confiar ao ouvido e ao juízo discreto do
que haja, de antemão, uma prévia e clara definição do diretor espiritual?
carisma e de sua original proposta de intimidade divina. Se pelo menos entendêssemos, uma vez por to-
Onde não existe essa definição, onde continua ainda das, até que ponto compreendemos equivocadamente
genérica e confusa ou não há convergência na interpre- e usamos de maneira imprópria esses argumentos, ce-
tação, será mais difícil, se isso for possível, praticar a dendo a essa estúpida e presunçosa tentação, empo-
partilha e buscar a Deus juntos. É o que acontece, ou brecendo, como conseqüência, as nossas irmandades!
não, em muitas comunidades. E quanto empobrecemos a nós mesmos, porque o dom
guardado somente para si definha, "estraga", perde o
b) Podemos chegar à mesma disponibilidade e von-
sentido precisamente pelo fato de ter sido sufocado
tade de partilha também a partir da experiên-
em sua natural destinação final , que é comunitária;
cia individual-espiritual. A relação com Deus e
torna-se um aborto e não pode mais ser útil para nin-
a dificuldade em se confrontar com a sua autori-
guém. Agindo assim; empobrecemos não só a nós
dade e o seu mistério deveriam, efetivamente,
mesmos, os nossos carismas e as nossas comunidades,
levar a descobrir sempre mais o sentido e a ri-
mas também a comunidade ~clesial e civil às quais de-
queza da fraternidade, sua importância e função
veríamos ter levado esta boa notícia. Se há algo de
exatamente para uma autêntica experiência de
indizível ni~so tudo não é tanto a nossa experiência espi-
Deus. Por conseguinte, deveria também levar a
ritual que, quando autêntica, encontra sempre as pala-
procurar o irmão para s'er por ele ajudado nesse
vras para expressá-la. Indizíveis e incríveis serão, nesse
difícil caminho, a fim de melhor compreender a
caso, a nossa ingenuidade e preguiça, a estupidez e indi-
Palavra e o carisma, vivendo juntos o mistério
sublime do Deus inefável. ferença em não reconhecermos ·a mentira diabólica e

66 67
í
VIDA 11\ATIRN'-' COMUNH .l.O DE SANTOS E PECADORES A !XP!RlfNCIA ! I P/R ITUAL ESFERA DA Dl f! W/CA E DA llrT!G•HJ O

em não nos empenharmos em oferecer aos outros o com generosidade (cf. lPd 4 ,9), nos descobriríamos pa-
dom recebido e que lhes era destinado pelo Espírito. recidos ao longo do caminho da procura do mesmo
Uma espiritualidade que não pode ser revelada é Deus e quanto nos pode enriquecer a experiência do
falsa; não traz benefício para ninguém, nem ao seu "titu- irmão. Em outras palavras: quanto mais partilhamos,
lar"; é sal que já não tem sabor e que só serve para ser tanto mais nos descobrimos iguais na diversidade e nos
jogado fora (cf. Mt, 5,13). Já quando alguém se esforça edificamos reciprocamente.
em expressar, com palavras simples e fáceis, o dom da É bonito viver numa fraternidade na qual cada um
inspiração, é ele mesmo que o compreende melhor, cap- pode dizer: "Não ocultei tua justiça no fundo do cora-

'
ta-lhe mais profundamente o. sentido e sabor, colhe de ção, proclamei tua fidelidade e tua salvação. Não es-
maneira nova o seu significado e o mistério nele escon- condi tua graça e tua fidelidade à grande assembléia"
didos, contemplando, admirado, a sua beleza. 11 Ter de (SI 40, 11) dos meus irmãos ou irmãs. E como será rico
1 dizer e explicar aos outros o dom do Espírito para que
eles o compreendam e possam deliciar-se com ele obri-
aquele depósito de sabedoria espiritual que é fruto da
partilha dos dons e das experiências de cada um em
ga-nos a ser claros, a apresentar exemplos, a descer das nossas comunidades! Será igual a uma mina com um
1 nuvens para chegar às coisas práticas, a usar parábolas e filão de ouro inesgotável, como uma espécie de "banco
analogias, a deixar que a ·fantasia case com a reflexão comum de bens espirituais" para o qual todos contribui-
para se ter condições de decifrar o misterioso murmúrio ram com a abundância dos dons recebidos e deposita-
do Espírito. Portanto, falar aos outros é o mesmo que dos e do qual todos podem sacar, especialmente nos
falar a si mesmos, enquanto os caminhos do Espírito es- momentos de necessidade, para caminhar juntos, mais
pontaneamente tendem sempre mais a se unificar no velozes, em direção ao Senhor, nosso tesouro único e
mesmo Espírito, autor e distribuidor de todos os dons, comum. O fruto delicioso deste "investimento comuni-
certos de que "nada é nosso e tudo deve ser comunicado tário espiritual" é a unidade do caminho e da experiên-
para que tudo circule" 12 e leve à unidade o .riquíssimo cia de Deus, é a própria santidade!
patrimônio que existe numa comunidade religiosa.
Se aprendêssemos a partilhar a busca de Deus, Solidão e companhia
cada um colocando a serviço dos outros os seus dons
Viver em comunidade, portanto, quer dizer, fun-
11 Cf. CENCJNJ, A uida fraterna nos tempos ... , cit., 'pp. 256-74. damentalmente, compartilhar algo que é importante
12 CIARDI, F. (org.). li coraggio della comunione. Vie nuove per la para a vida e essencial para a sobrevivência. É o sig-
vita religiosa. Roma, 1994. p. 33. nificado etimológico da palavra "com-panhia": lite-

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VIDA FIV.THNA: COMUNH,l.O DE SANTOS E PECADO RES /\ EXPERl! NCI /\ ESPI RrTUAl ESfERA DA DIFE PEH<'.A E DA ll rT EG•~.o o

ralmente "ter o pão em comum", ou partilhar o pão como se todos fossem iguais, como também o
que vamos comer, alimentar-nos da mesma comida ao da relação intensa, mas equívoca, parecida com
longo da viagem. 13 Se a viagem é o caminho que leva a aliança entre corações solitários {quando não
ao monte santo de Deus, "o pão" é exatamente a busca entre chorões!). Se Deus e a busca de Deus esti-
do divino, com os seus previstos e imprevistos, o maná verem no centro de nossas trocas interpessoais,
da Palavra do dia, as provocações cotidianas e as ilumi- nem podemos imaginar o quanto estas podem
nações do Espírito, mas também as novas descobertas, se tornar mais verdadeiras e mais simples, mais
as dificuldades encontradas, as dúvidas surgida~. fraternas e respeitadoras da individualidade do
a) A amizade religiosa vem deste tipo de compa- outro, mais calorosas e amigáveis.
nhia: é autêntica quando o que une os dois Essa amizade, vejamos bem, não significa por si

r amigos é a mesma motivação e a finalidade


essencial de sua consagração. "É preciso relem-
brar uns aos outros", sublinha Ciardi, "o pro-
mesma a escolha preferencial e exclusiva de alguém, de
quem faz o "meu tipo" , em tudo semelhante ao meu
eu, mas é, antes de tudo, a decisão de viver com todos
1 jeto comum que a todos e a cada um foi co-
municado pelo Espírito, de tal maneira que se
aprofunde o motivo pelo qual estamos jun-
uma relação de amizade ou de partilhar com todos o
"pão do caminho". Só depois, pode levar a estabelecer
vínculos particulares com alguém, sempre visando ao
tos'' . 14 Quando em comunidade e nos relacio- caminho comum de santidade e em torno do projeto de
namentos interpessoais existe esta disponibi- partilha do pão comum, alguém que não terá de ser
lidade em abrir o próprio espírito para confessar necessariamente a cópia de si mesmo. A verdadeira
a ação de Deus nele, é inevitável que o rela- amizade supõe e promove uma certa diversidade - tam-
cionamento fique mais profundo, que se torne bém amizade que nasce da partilha do próprio caminho
significativo e mais forte do que tudo que o espiritual. Em todo caso, a condição é que essa amiza-
poderia comprometer, evitando os dois extre- de abra o coração dos dois amigos à relação com todos
mos: o do relacionamento frio e insignifican- e não se torne absorvente, colocando, pouco a pouco,
te, vivido para com todos da mesma maneira, sua necessidade de afeto e a busca de compreensão no
lugar da busca de Deus. 15 Trata-se de realizar e integrar
13 Cf. DEVOTO, G. & Ou, A Nuouo uocabolario illustrato de/la o outro pólo da síntese, o da solidão.
língua italiana. Firenze, 1988. p. 679. Cf. também CENCINI,
A Accompagnamento. ln: W . AA. Dizionario di scienze
dell'educazione. Roma, 1997. pp. 22-23. 15 A respeito do sentido da amizade na vida consagrada, cf. CENC1N1,
14
CIARDI (org.), li coraggio della comunione, cit., p. 33. Com amor. Liberdade... , cit., pp. 288-94.

70 71
VIDA fRATERN"' COMU NH"O DE SANTOS E PECADOR ES A EXPERIFNCIA ESPI RITUA L ESFERA DA DIH R!tl<'.t E DA "fH G'~C)O

b) A típica amizade religiosa é companhia que não duas pessoas consagradas experimentam, em sua con-
invade indevidamente o espaço alheio, princi- creta afeição, a presença daquele Deus que elas bus-
palmente aquele reservado ao encontro a sós cam juntas, uma seguindo e acolhendo a outra em seu
com Deus. Pelo contrário, a partilha da expe- caminho em direção ao Santo. Porque, efetivamente,
riência espiritual - e a escuta daquilo que Deus não há nada mais bonito e natural do que ver dois con-
realizou no coração do irmão - remete irresis- sagrados que se querem bem "em Deus'', mas também
tivelmente ao seu próprio relacionamento com com toda a carga de sua humanidade; ou que, parti-
Deus: converte-se num apelo ou num convite, lhando o pão da busca de Deus, experimentam, em seu
talvez numa advertência ou até numa repreen- grau máximo e contemporaneamente, a companhia e
são de Deus, que, por meio do amigo, me cha- a solidão.
ma a uma intimidade maior com ele. Uma companhia que não respeita a solidão é, pelo
Podemos dizer que esse é o selo que autentica a contrário, uma amizade entre duas pessoas consagra-
amizade religiosa: quando a companhia aumenta a ne- das que não colocam no centro de seu relacionamen-
cessidade de solidão, aí existe realmente amizade. E, se to o que é essencial: por isso, não é amizade verda-
é verdade que quem encontra um amigo encontrou um deira e não leva a crescer em conjunto, assim como
tesouro (Eclo 6,14), a pessoa consagrada, que encontra uma solidão ou uma intimidade com Deus que não
um amigo em sua comunidade, encontra o tesouro de abre à "com-panhia" não é verdadeira espiritualidade nem
estar a sós com Deus. Por outro -lado, "para permane- autêntica solidão: é, antes, um fechamento que empo-
cer em verdadeira companhia com os outros é necessá- brece o indivíduo e a própria comunidade. Mais uma vez,
rio que, antes; se consiga ficar consigo mesmo" .16 É trata-se de juntar busca individual e peregrinação comu-
como se as duas realidades, companhia e solidão, fos- nitária para Deus. Quando isto acontece, encontramos
sem inseparáveis e indivisíveis; duas realidades comple- uma comunidade na qual juntos se busca a Deus.
mentares, uma reflexo da outra; dois lados da mesma
moeda: uma remete à outra e a autentica, enquanto Diálogo e silêncio
ambas expressam a realidade de uma fraternidade na
qual se procura a Deus juntos. O onsagrado já o dissemos citando a sabedoria
dos Padres, em uma interioridade dialóqica. O diálogo
Tudo isso não é real apenas no plano teórico: mas
- e a capacidade de dialogar - é parte essencial não
se torna como tal e visível, convincente e atraente quando
simplesmente da sua maturidade em se relacionar, mas
16
também da sua identidade espiritual: um diálogo que
RAVASJ , G. Come spettri. Auvenire, 10/1/1997, p . 1.

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VID,>. fPATCRN,4.; COMUNH,l.O DE s,>.NTOS E rEC.-.DOR ES A EXPER l[N CIA ESPI RITUM ESFE RA DA DlfERElll'.A E DA llrHG •lld O

nasce no silêncio nutre-se dele e conduz novamente ao Como sempre, encontramos o equilíbrio olhando
silêncio. para as duas vertentes no plano prático.
Uma comunidade cujos membros buscam a Deus a) Um diálogo ininterrupto se dá , em primeiro lu-
consegue equilibrar, de modo criativo e natural, diálogo gar, no segredo e no silêncio da alma do consa-
e silêncio, até porque buscar a Deus na fraternidade grado, com aquela Palavra que todos os dias
religiosa é ação essencialmente comunitária, que se rea- não apenas nutre e dá vida, como o maná, mas
liza com um uso sábio da palavra que evoca o silêncio. propõe, ilumina, pergunta e espera resposta.
Nessa comunidade, a palavra circula livremente, sem Palavra que não é só para ser guardada no co-
perturbar o silêncio, ao passo que este cria as condi- ração como um tesouro, e sim como uma pes-
ções ideais para que se digam palavras de vida: existe, soa viva com quem dialogar e pela qual nos
ao mesmo tempo, muita palavra e muito silêncio, mas sentimos amados. É o primeiro diálogo na vida
uma dentro do outro, não em fases sucessivas. do consagrado, logo permeado de profundo
silêncio, e mesmo assim diálogo verdadeiro e
Outrora, este equilíbrio era garantido pelo horá-
efetivo, troca de palavras com uma outra pes-
rio e por um ambiente favorável: tratava-se, no entan-
soa, num acontecimento comunicativo, chama-
to, de um equilíbrio mais impessoal e sobretudo exte-
do oração, na qual estão gravadas e concreta-
rior, dentro do qual as duas realidades permaneciam
mente reconhecíveis, como na "caixa-preta" dos
de certo modo separadas; havia o tempo do silêncio,
aviões, os vestígios e as fases do caminho da
durante o qual a palavra era proibida, e o tempo do
pessoa para Deus, mas também do caminho
recreio, quando ela podia circular livremente, como se
de Deus em direção à pessoa.
falar fosse atividade apenas lúdica ou puramente de
relaxamento, pouco espiritual e menos nobre do que O consagrado sabe que não pode guardar para si
se abster de falar; como se as duas realidades, palavra aquela Palavra e experiência, e pretender - como já
e silêncio, fossem opostas entre si. Hoje, desapare- lembramos - compreender totalmente o seu sentido. É
cendo certas estruturas - talvez defensivas-, o equi- então que o diálogo passa do silêncio da interioridade à
líbrio pode ser somente fruto de tirocínio dos sentidos partilha fraterna em comunidade, mas sempre girando
lentamente treinados a escutar o silêncio como seio de em torno do mesmo conteúdo, com idêntica inspiração,
cada palavra e da sabedoria do espírito que aprendeu, com a mesma finalidade: buscar o rosto de Deus, identi-
enfim, a discernir corretamente o tempo de calar e de ficar os vestígios da passagem daquele que caminha so-
falar (d. Ecl 3,7). bre as águas e cujo rastro ficou invisível (cf. SI 76,20).

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VIDA f ltATIRNA COMUNHÀO DI SANTOS 1 PICADOR IS A I XPW ( NCIA I SPI RíTVAl I SHRA DA Dlf!Plll".A (DA 11mr.•>()O

Seria absurdo ter a pretensão de reconhecer, sozinho, menos, por meio de uma série de mediacões
o mistério! humanas. É como um método de salvação·.

Dessa permuta resulta um fruto não totalmente Nossa vida, desse ponto de vista , está cheia de
previsto: a Palavra de Deus, ao mesmo tempo que ecoa mediações, ou, se preferirmos, tem um excesso de teo-
na riqueza de experiências e na variedade de interpre- fania à espera de ser desvelada ou ·de revelacão divina
ainda revestida, de palavras, imagens, sinais ~ semblan-
tações suscitadas pelo mesmo Espírito, une corações e
tes humanos. E por isso que se busca a Deus em con-
mentes no mesmo caminho de santidade. Fruto não
junto, porque um se torna para o outro mediação do
totalmente previsto, talvez, mas, na realidade, conse-
divino, por mais misteriosa que seja essa mediacão .
qüência inevitável nos planos psicológico e espiritual.
"Numa religião como a nossa, que se baseia", r~ta
"Expressar Deus" em comunidade, confessando aos
Bosco, "no acontecimento da encarnação, as media-
outros o que ele operou em mim e o que me falou, não ções humanas não são exceção, e sim norma. A estra-
somente cria fraternidade verdadeira e sólida, mas aju- tégia de Deus impôs ao ser humano uma responsabili-
da cada membro a reconhecer a ação e a palavra de dade salvifica: salvar a pessoa por meio da pessoa e
Deus em sua própria vida, levando a descobrir a subs- salvá-la por meio da comunidade. "17
tancial convergência e unidade dos caminhos de santi-
dade, mesmo que sejam diferentes. Contudo, na vida espiritual nada funciona auto-
maticamente. Até a mediação da qual Deus providen-
Do silêncio ao diálogo e do diálogo ao silêncio; cialmente se serve não é logo evidente, não me revela,
o silêncio resguarda o diálogo com Deus; e, por sua vez, de imediato, a vontade de Deus nem se impõe de ma-
o diálogo com Deus resguarda e promove o diálogo com neira inequívoca. Não pode ser considerada do mesmo
os membros, os quais - por sua vez - remetem nova- modo que uma comunicação ou informação qualquer;
mente ao silêncio da intimidade com Deus e consigo mes- precisa, em vez disso, de um espaço seu para ser deci-
mos. E tudo como sinal sempre mais evidente de um frada e compreendida corretamente. Este espaço é o
caminho comunitário de santidade. silêncio, seio que não só gera a palavra, como foi acen-
tuado anteriormente, mas também a compreensão da
b) Talvez não seja aceito por todos .nem todos es- palavra, a partir daquela que vem de Deus. Lá, no
tejam convictos disso. No entanto, é um fato
que Deus aprecia a tal ponto a lógica da media-
ção que normalmente se revela à pessoa, como 17
Basco, V. II ruolo educativo della comun ità religiosa.
nos diz a Bíblia, mediante outra pessoa, ou, pelo Leumann, 1978. p. 10.

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VI DA f RATIRNA: COMUNHÃO DESANTOS E PECADOR ES A EXP[ Rl [ NCIA ES PIRITUAL ESf [RA DA DIHREllCA E DA llfTEGPH_JO

silêncio, o mistério da teofania se abre e se ilumina. profundezas do espírito, o sentido dos acontecimentos,
Somente quando as palavras silenciam, cada uma delas dos encontros, das palavras, das provocações, dos im-
pode manifestar a sua origem e o seu destino, de onde previstos, de tal sorte que saiba reconhecer dentro e
vem e para onde vai. além da vida cotidiana o apelo misterioso do Deus que
Em nossas fraternidades há muitíssimas palavras vem e a possibilidade de lhe responder e ir ao seu en-
que não nascem no silêncio e permanecem sem silên- contro. Silêncio que suavize ress~nâncias agressivas e
cio; não são acolhidas neste seio fecundo e, por isso, ressentimentos excessivos; silêncio que desperte bene-
correm o risco de se tornarem mudas, incompreendidas, volência gratuita e consideração positiva em relação aos
desprovidas de sentido; ou de receber um sentido su- outros; silêncio que suscite senso de responsabilidade
perficial, aquele que podemos entender ou atribuir de para com o irmão e acolhimento do dom da sua pre-

!
imediato, sem alguma reflexão silenciosa que permita ir sença; silêncio enqÚanto escuta de Deus que me fala
além das aparências. Dessa forma, é como se fosse in- por meio de alguém, e de alguém que me fala com a
terrompido aquele diálogo que Deus realiza para nos sua pessoa, com seu humor, seu pedido de ajuda e seus
comunicar a sua vontade. Mas também é interrompido silêncios. Silêncio enquanto morada do mistério.
- ou se torna sem sentido - o diálogo fraterno que, Este silêncio ou clima de silêncio deveria ser -
quando privado de silêncio, se torna simplesmente som assim como o diálogo - de tipo comunitário: não só
que fere o ar, quando não, às vezes, prejudica os pró- visível (ou "audível") concretamente no estilo de vida e
prios relacionamentos ou as pessoas. no horário de uma comunidade, mas deveria ser silên-
O diálogo é um dos primeiros indicadores da qua- cio que reflete sobre as mesmas realidades ou a mesma
lidade da vida fraterna. Ele tem uma função importante palavra, chamado a captar o sentido de determinados
no que diz respeito ao caminho de uma comunidade acontecimentos a respeito . dos quais a comunidade é
rumo à santidade comunitária. Contudo, para voltar a convidada a fazer um discernimento, para descobrir,
ser instrumento e expressão da busca comunitária de juntos, o caminho que leva a todos até o monte da
Deus, o diálogo entre nós precisa de silêncio. Não de um morada santa.
silêncio qualquer, evidentemente, enquanto ausência ou Voltaremos, mais detalhadamente, a estes temas
simples recusa de palavras, nem daquele silêncio que ao falarmos da collatio, do discernimento e do projeto
é instrumento disciplinar. Igualmente, não precisamos comunitário, 18 como expressão plena e específica de
apenas daquele silêncio exclusivamente ligado à ora-
ção. A busca comunitária de Deus precisa de um silên-
cio interior como clima habitual, que deixe ecoar, nas 18
No próximo volume, o último desta trilogia.

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VIDA fll.ATIRNA: COMUNH,i-0 DESANTOS l PECADOR[! A IXPI Rl( NC IA ! IPIRITUAl !Sf!RA DA DIF!R!ll".A f DA lllTf(,P>V O

um caminho percorrido por toda a fraternidade. Por vezes um pouco perdido no meio do grupo - deveria
enquanto, é suficiente dizer que quando o silêncio e a tornar-se precioso nos relacionamentos da fraternidade
palavra "dialogam" juntos, na fraternidade religiosa , comunitária! A luz que afasta o medo ou a rejeição do
todos os seus momentos e detalhes tornam-se busca e , outro, a suspeita ou a desconfiança, a indiferença ou a
desde já, manifestação do rosto de Deus, esfera da dife- falta de estima em relação a ele: esta luz é o verdadeiro
rença e da integração. sinal de que, em nosso coração e para a nossa comuni-
dade, começou o dia. É mais forte do que todas as tre-
vas que nos impedem de reconhecer o irmão, de sentir
Entre noite e dia alegria em ficar com ele e em caminharmos juntos para
a santa morada do Altíssimo.
Vamos concluir este capítulo sobre a integração
das diferenças do outro e dos vários outros com os quais Na mesma linha do apólogo rabínico, há um anti-

' convivemos em fraternidade com um apólogo rabínico. go aforismo tibetano: "De longe, vi um animal que vi-
nha ao meu encontro; descobri depois que, na realida-
1 "Um velho rabino perguntou aos seus discípulos:
de, era um homem. Quando ele chegou na minha frente,
'Como podemos identificar o momento exato em que descobri que era meu irmão".
1 termina a noite e inicia o dia?' Os discípulos responderam:
'Quando se pode diferenciar de longe, sem esforço, um
cachorro de uma ovelha, ou uma tamareira de uma fi-
gueira'. 'Não', disse o rabino. E eles: 'E então, quando?'
O rabino respondeu: 'O momento preciso é quando, per-
dido entre a multidão, o rosto de um desconhecido qual-
quer torna-se para vocês tão precioso quanto o rosto
de um pai, de uma mãe, de um irmão, de uma irmã, de
um filho ou de uma filha, de um esposo ou de uma
esposa, de um amigo. Até esse momento, ainda é noite
no coração de vocês'." 19 ·

O a pólogo refere-se aos relacionamentos huma-


nos comuns. Tanto mais o rosto do outro - muitas

19
CHENU, B. Tracce dei volto. Bose-Magnano, 1996. p. 145.

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